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VISÕES DA RELIGIÃO: O OLHAR FOTOGRÁFICO NAS FESTAS RELIGIOSAS DA CIDADE DE SANTA FÉ – PR. TEIXEIRA, Joubert Paulo (PPH-UEM –Capes) PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo (DHI/UEM -NEE/UNICAMP) * É inegável que a sociedade atual, caminhando para um mundo cada vez mais globalizado, atravessa um período de estandardização dos comportamentos. Na contra-corrente dessa tendência assistimos a um crescente apego às identidades locais por parte de diversos grupos sociais, além de um interesse cada vez maior sobre a diversidade cultural. A memória desses grupos passa a ser alvo de atenção, sendo sua preservação fator preponderante para a continuidade dos laços identitários dos mesmos. A memória é vista assim como um bem portador de saberes e práticas do passado, necessitando por isso ser preservada. Elencando de forma esquemática junto a Pollack 1 , podemos separar os elementos constitutivos da memória primeiramente em acontecimentos vividos pessoalmente, em segundo lugar os acontecimentos dos quais o indivíduo não participou, mas que pertencem ao seu grupo e ele vive como que indiretamente, e por último, a constituição da memória por pessoas ou personagens, além dos lugares. Portelli a propósito da memória, elenca o fato de ser construída por indivíduos, mas que “é social e pode ser compartilhada (razão pela qual cada indivíduo tem algo a contribuir para a história ‘social’” 2 . Se por um lado a memória só é materializada nas reminiscências dos indivíduos, só se torna memória coletiva quando abstraída e separada do indivíduo, sendo mediada por ideologias, linguagens, senso comum etc. Como define o autor, deve-se procurar oposições não só entre campos de memória, mas também entre as próprias memórias dos grupos, que são múltiplas. * Mestrando do PPH-UEM/Pr. Bolsista da Capes. Graduado em História pela UEM – Orientadora: Doutora em História Social pela USP e pós-doutoranda pelo NEE/UNICAMP, sob a tutela do Prof. Dr. Pedro Paulo Funari. Docente do DHI-UEM/Pr. 1 POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Em: Estudos Históricos. vol. 05, nº 10. 2 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. Em: FERREIRA, Marieta de Moraes , AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. p. 127

RELIGIOSAS DA CIDADE DE SANTA FÉ – PR. - DHI UEM Joubert Paulo.pdf · 1 POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Em: Estudos Históricos. vol. 05, nº 10. 2 PORTELLI, Alessandro

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VISÕES DA RELIGIÃO: O OLHAR FOTOGRÁFICO NAS FESTAS RELIGIOSAS DA CIDADE DE SANTA FÉ – PR.

TEIXEIRA, Joubert Paulo (PPH-UEM –Capes) PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo (DHI/UEM -NEE/UNICAMP)*

É inegável que a sociedade atual, caminhando para um mundo cada vez

mais globalizado, atravessa um período de estandardização dos

comportamentos. Na contra-corrente dessa tendência assistimos a um

crescente apego às identidades locais por parte de diversos grupos sociais,

além de um interesse cada vez maior sobre a diversidade cultural.

A memória desses grupos passa a ser alvo de atenção, sendo sua

preservação fator preponderante para a continuidade dos laços identitários dos

mesmos. A memória é vista assim como um bem portador de saberes e

práticas do passado, necessitando por isso ser preservada.

Elencando de forma esquemática junto a Pollack1, podemos separar os

elementos constitutivos da memória primeiramente em acontecimentos vividos

pessoalmente, em segundo lugar os acontecimentos dos quais o indivíduo não

participou, mas que pertencem ao seu grupo e ele vive como que

indiretamente, e por último, a constituição da memória por pessoas ou

personagens, além dos lugares.

Portelli a propósito da memória, elenca o fato de ser construída por

indivíduos, mas que “é social e pode ser compartilhada (razão pela qual cada

indivíduo tem algo a contribuir para a história ‘social’”2. Se por um lado a

memória só é materializada nas reminiscências dos indivíduos, só se torna

memória coletiva quando abstraída e separada do indivíduo, sendo mediada

por ideologias, linguagens, senso comum etc. Como define o autor, deve-se

procurar oposições não só entre campos de memória, mas também entre as

próprias memórias dos grupos, que são múltiplas.

* Mestrando do PPH-UEM/Pr. Bolsista da Capes. Graduado em História pela UEM – Orientadora: Doutora em História Social pela USP e pós-doutoranda pelo NEE/UNICAMP, sob a tutela do Prof. Dr. Pedro Paulo Funari. Docente do DHI-UEM/Pr. 1 POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Em: Estudos Históricos. vol. 05, nº 10. 2 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. Em: FERREIRA, Marieta de Moraes , AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. p. 127

2

Diferenciando a história da memória podemos dizer que enquanto a

memória sempre emerge de um grupo unido por ela, sendo assim coletiva,

plural e individualizada, a história pertence a todos e a ninguém, tendo uma

vocação para o universal. Segundo Nora

a memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse

sentido, ela está em permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e

do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a

todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas

revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta

do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo

vivido no eterno presente; a história uma representação do passado.3

Para ele o que ocorre em nossa sociedade atual é a passagem de uma

memória verdadeira, abrigada no gesto e no hábito, para a história, que é

quase seu contrário, pois é voluntária e deliberada, vivida como um dever, e

não mais como espontânea, individual e não mais coletiva. Segundo ele este

tipo de memória se apóia inteiramente no vestígio, no que há de mais concreto,

pois quanto menos a memória é vivida no interior, mais ela tem necessidade de

suportes exteriores e de referências tangíveis, vivendo somente através delas.

O que está em jogo na memória é o sentido da identidade individual e do

grupo, pois a construção desta se produz em referência aos outros, a critérios

de aceitabilidade, admissibilidade, credibilidade, como expõe Pollack, e ainda

a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das

instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo,

sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis.4

Numa sociedade que desenraiza, que estantardiza os comportamentos,

a construção dos lugares de memória surgem como a vontade de busca do

grupo que se auto-reconhece e se diferencia, tentando resgatar sinais de

pertencimento. É a quebra das raízes que leva-nos a buscar nossas origens; a

incerteza sobre o passado transforma tudo em vestígio, pois nossa percepção

do passado leva-nos, como expõe Nora, à apropriação do que sabemos não

mais nos pertencer.

3 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Em: Projeto História. p. 09. 4 POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Em: Estudos Históricos. v. 02, nº 03. p. 09

3

Nora ainda explicita o desejo de cada grupo em preservar sua memória,

garantindo a preservação do grupo e sua identidade; preservar todo e qualquer

vestígio que possa provar a existência do mesmo, ou fazê-lo se lembrar e ser

lembrado:

À medida que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos

obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos,

imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez

mais prolífero devesse se tornar prova em não se sabe que tribunal da

história.5

Dessa forma, fotografia é vista por nós como um documento privilegiado

na materialização da memória, requerendo, porém, uma análise diferenciada.

Seus usos e funções exercem um fascínio sobre os agentes históricos, que

constroem formas de representação postas em circulação por meio desses

documentos.

Como apontam Mauad e Cardoso6, o fator principal para se chegar ao

que não foi imediatamente revelado pela fotografia é inseri-la no panorama

cultural no qual foi produzida, e entendê-la como uma escolha realizada de

acordo com uma dada visão de mundo.

Em momentos importantes, nos quais sentimos a necessidade de

eternizar, a fotografia surge como um documento para manter viva a memória,

para garantir a coesão do grupo, manter valores em comum, além de

comunicar a futuros o seu próprio modo de vida. Pois nossa sociedade busca

reviver a memória em lugares, objetos e ações. A memória impregna o objeto e

o restitui ao todo ausente, re-situa o sujeito no mundo vivido.

A relevância do documento fotográfico como fonte de pesquisa se reflete

pelo fato de que vivemos em uma sociedade onde o acesso à informação

passa cada vez mais do escrito ao visual – não excetuando suportes que

veiculam os dois gêneros de informação. A fotografia constitui-se como

mediadora nas relações entre os indivíduos; instrumento de sociabilidade. É

necessário atentar para o fato de que nos últimos vinte anos, a fotografia

deixou de ser um mero instrumento ilustrativo da pesquisa histórica para

assumir seu local como documento. 5 NORA, Pierre. memória e história: a problemática dos lugares. Em: Projeto História. p. 15 6 CARDOSO, Ciro F. e ANDRADE, Ana Maria Mauad. História e Imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. Em: CARDOSO, Ciro F. e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. p. 406

4

A associação da cidade de Santa Fé com a religião se deu desde os

momentos iniciais de sua fundação, quando os loteadores da cidade colocaram

a colonização como uma obra patriótica, abençoada por Deus, como está

presente em película de cunho propagandístico produzido pela imobiliária na

década de 19507. Essa concepção é construída de forma explícita pela

película, por ocasião da colocação do Cruzeiro – após procissão – “o Cruzeiro

plantado como uma semente do cristianismo em solo paranaense”. A

colonização foi assim colocada como um plano patriótico criando condição de

prosperidade ao povo.

A Igreja exercia grande força na vida das pessoas na década de 1950

em Santa Fé, pois como aponta o senhor Manoel Fernandes “naquela época,

as pessoas estavam bastante ligadas a igreja, católica principalmente, a

palavra do padre, era como se fosse uma suprema ordem a ser cumprida por

todos”8.

A Igreja, e sua praça, se tornava um

espaço de construção de sociabilidades,

ocupando o espaço central na cidade em sua

planta inicial, com as duas ruas mais largas se

cruzando à sua frente. Como apontado por

Schwartz e Lockhart9, esse estilo veio para o

Brasil logo no início da colonização, pois regra

geral, as igrejas ficavam nas praças principais ou

em locais altos dentro da cidade. As praças, não

só as da igreja, eram cenários para encontros,

cerimônias etc. Em outro parágrafo, os referidos autores explicitam essa

organização da cidade em torno da Igreja:

As cidades eram organizadas internamente em freguesias segundo os

limites tradicionais, a época de incorporação à municipalidade ou, às vezes,

alguma ação governamental. As freguesias mais comuns eram formadas pelas

divisões eclesiais, centradas nas igrejas paroquiais. Ali as pessoas faziam

contato de forma contínua, ouviam a missa, compareciam a casamentos,

batizados e funerais, celebravam as festas do santo padroeiro e organizavam

7 Cidade Santa Fé. [Filme]. Rossi Filmes. Londrina, 1950. 30 min. PxB. Son. 8 Entrevista do senhor Manoel Fernandes presente em MACEDO, Sérgio. Alguns pontos da história de nossa terra. 9 SCHWARTZ, S. & LOCKHART, J. A América Latina na época colonial. p. 272.

5

várias atividades civis e religiosas.[...] A paróquia era o núcleo do bairro,

unidade básica da cidade10.

Como aponta Eliade11, o homem religioso não concebe o espaço de

forma homogênea, há assim porções de espaço diferentes de outras. Certas

partes desse espaço adquirem um status orientador, ou seja, o sagrado

manifestando-se, organiza certas porções de espaço, fundando-o. Nesses

espaços torna-se possível a comunicação com deuses e santos, ou seja, com o

sagrado; um local que se torna uma via de comunicação entre homens e Deus.

A Igreja torna-se assim um local de comunicação com os céus. Assim

como o espaço sagrado é um lugar qualitativamente diferente de outros,

adquirindo o status de centro do mundo, a Igreja – ou qualquer templo sagrado

– adquire também o significado de centro, pois o centro é justamente o lugar

onde se efetua um rotura de nível, onde o espaço se torna sagrado.

Como aponta Eliade, o homem religioso deseja viver o mais próximo

possível desse centro, deseja não só isso, mas que também sua casa se torne

um centro. Talvez seja por isso que a artimanha dos corretores santafeenses

com a “Igreja sobre rodas” teve tanto sucesso na venda de terrenos.

A seguinte fotografia, constante no acervo da Secretaria da Cultura da

Prefeitura Municipal de Santa Fé, foi adquirida em um movimento em 1991

realizado pela Prefeitura para resgatar a memória da cidade, no qual vários

pioneiros doaram fotografias suas. A fotografia apresenta a cromia preto e

branco e medidas de 23x17 cm, boa conservação do suporte e conteúdo.

Conforme indicação da legenda, data

de 1950. Trata-se de uma reprodução

da fotografia original, que se perdeu.

Na fotografia pode-se ver uma

edificação de madeira ao centro do

positivo com uma cruz em cima

(Igreja) e duas pequenas torres em

suas laterais, fixadas na própria estrutura da Igreja. Há um espaço aberto à

frente e ao lado da edificação. Pode-se ver árvores ao fundo e troncos de

madeira no canto médio direito. No canto médio esquerdo, ao fundo, pode-se

10 Idem. p. 274 11 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. p. 44.

6

ver a silhueta do que parece ser uma edificação. Dentro da Igreja consegue-se

ver a sombra de algo, porém não é possível identificar. Vê-se que há uma

distância entre a Igreja e o solo, sendo que aquela é sustentada por pilares.

Na verdade esta fotografia foi utilizada como um artefato

propagandístico para vender lotes na cidade de Santa Fé. Além do que, a

própria Igreja sobre rodas implica num “artifício” para valorizar o solo urbano e

para criar a sensação de progresso. Em 1950 Santa Fé ainda estava em seu

período de colonização, com a imobiliária Carezzato e França vendendo lotes

na região da cidade. De 1948, data do início do loteamento, até 1950, ocasião

de um grande evento na cidade, todos os eventos foram filmados e

fotografados pela imobiliária.

Em 1950, realizou-se uma procissão com a imagem de Nossa Senhora

das Graças, inaugurou-se uma escolinha construída pela imobiliária, uma

capelinha (a da fotografia) com capacidade para 30 pessoas, houve um

churrasco para todos da cidade, além dos visitantes, realizou-se uma reunião

com compradores de lotes da cidade. Todos esses eventos tiveram a presença

de autoridades do Estado do Paraná.

O filme, assim como as fotografias cumpriam a função de criar uma “boa

imagem” da cidade, apoiada em diversas representações, segurança,

religiosidade etc, para atrair compradores; o que deu certo como já frisamos.

Como dissemos, o temor a Deus e a religiosidade eram muito grandes, logo, as

pessoas que compravam lotes queriam que seus lotes fossem perto da Igreja.

Assim a malícia dos loteadores falou mais alto.

Construíram uma pequena Igreja sobre rodas, a qual rebocavam para

perto do lote que queriam vender, para que o possível comprador comprovasse

que seu lote era perto da Igreja. Assim que vendiam o terreno e o comprador

voltava para sua região para organizar a mudança para Santa Fé, eles

rebocavam a Igreja para perto de outro lote a ser vendido, e assim

sucessivamente. Isso começou em 1948, ocasionando uma grande quantidade

de vendas de lotes; em 1950 por ocasião do evento de inauguração já

mencionado, a Igreja já estava se “estabilizando” em um local da cidade, sendo

fotografada para que, junto com o filme e outras fotografias, desse lugar a uma

nova forma de propaganda: a exibição do filme e fotografias de Santa Fé em

várias cidades do Estado de São Paulo e Minas Gerais.

7

A série de fotografias a seguir retrata a festa realizada em 23/07/1950

por ocasião da inauguração do patrimônio de Santa Fé, antecedida por uma

procissão da imagem de Nossa Senhora das Graças, doada pela senhora

Helena Carezatto, esposa de Lupércio Carezatto, dono da imobiliária que

loteou a cidade. A procissão percorreu a avenida principal da cidade e terminou

na capelinha construída pela imobiliária,

ocorrendo ali a primeira missa

ministrada pelo padre José Schrek dos

pallotinos de Londrina.

A fotografia ao lado, presente no

acervo da Secretaria de Cultura da

Prefeitura Municipal de Santa Fé,

possui medidas de 23x17 centímetros, e

retrata a procissão de Nossa das Graças. Vemos um agrupamento de pessoas

circundando o plano médio da fotografia, indo do canto inferior direito ao centro

da fotografia, em perspectiva, e chegando ao canto inferior esquerdo. Atrás

dessa linha de pessoas vêem-se diversas árvores, presentes também ao

fundo. Ao centro há um espaço vazio.

Podemos perceber que esse grupo de pessoas está abrindo espaço

para a passagem do grupo que está caminhando. Algumas pessoas estão

carregando um andor com a imagem de Nossa Senhora das Graças. Logo

atrás da imagem podemos perceber a presença de um Cruzeiro e uma faixa

branca.

O que nos chama atenção nessa fotografia são dois homens presentes

no canto esquerdo da fotografia. Estão segurando o que parece ser uma

câmera fotográfica ou filmadora. Podemos inferir que seja a equipe da Rossi

Filmes de Londrina, que produziu o filme publicitário da cidade. Isso é

corroborado pelo fato de que o ângulo onde estão gera uma imagem muito

semelhante à presente no filme. Vê-se aqui a mescla de uma festa religiosa,

significativa para a população, com uma utilização publicitária por parte dos

loteadores da cidade dos registros da mesma.

8

Se opondo a qualquer aspecto do que viemos fazendo até o momento,

que Barthes chamaria de studium12, ou um interesse em analisar o processo de

gênese da fotografia, está o que ele chama de punctum, algo que nos punge,

nos atravessa como uma flecha. São pontos presentes na fotografia que nos

chamam a atenção, nos marcando sobremaneira. E é precisamente a silhueta

de um homem no canto esquerdo da fotografia que exerce (pelo menos para

nós) essa função de punctum. Esse homem sem rosto, o qual só conhecemos

sua sombra, leva-nos a questionar sua identidade; quem seria este homem?

Estaria triste, alegre, compenetrado? Mesmo que não conheçamos as pessoas

retratadas na fotografia, o próprio fato de podermos ver-lhes os rostos aplaca

nossa curiosidade, mas este homem sem rosto se torna um item destoante na

festa retratada, enfim, um punctum.

A seguinte fotografia, também

constante da mesma série, e

possuindo as mesmas medidas,

retrata um ângulo mais restrito da

procissão. Em seu conteúdo imagético

vemos um aglomerado de pessoas

ocupando todo o centro da fotografia.

Logo atrás vemos a imagem de Nossa

Senhora das Graças e mais ao fundo

árvores. No canto direito pode-se ver um tronco de madeira, provavelmente o

Cruzeiro, fincado neste dia. O homem vestido de terno branco e usando óculos

é o senhor Lupércio Carezatto, dono da imobiliária Santa Fé (depois Carezatto

e França), loteadora da cidade.

Percebe-se que as pessoas portando chapéus estão com eles nas

mãos, sinal de respeito à procissão do santo e também ao sacerdote religioso.

O enquadramento utilizado pelo fotógrafo, mesmo sendo grande angular,

cortou os pés das pessoas do quadro, bem como a cabeça da santa. Para

compor o quadro corretamente o fotógrafo deveria ter se distanciado mais do

assunto, porém não deve ter havido tempo para tal, pois o que aparenta é que

o objetivo principal era registrar o exato momento da bênção do padre.

12 BARTHES, Roland. A câmara clara. p. 44-46.

9

Percebe-se que o sacerdote tem em uma de suas mãos um livro aberto – a

bíblia? – e gesticula com sua mão direita. Vemos aqui uma fotografia

jornalística, o registro de um momento significativo. As câmeras de 1950 já

possuíam uma capacidade de captura rápida, proporcionando a possibilidade

de registrar momentos sem necessidade de longas exposições.

Um detalhe também significativo é

que diversas pessoas estão trajadas com

ternos, camisas e as mulheres com

vestidos, corroborando a tradição,

principalmente em cidades do interior e

mais ainda daquela época, das pessoas

guardarem suas melhores roupas para as

missas de domingo ou procissões; eram as chamadas “roupas de domingo”.

Segundo o livro tombo da paróquia, as procissões da cidade eram

freqüentadíssimas, sendo inúmeras também as comunhões e as crismas; em

30 de maio de 1952, por exemplo, foram registradas 600 crismas e em 06 de

abril de 1957 foram 1530 comunhões13.

O mesmo livro registra um excelente comportamento dos fiéis, que

segundo a visão do padre que fazia seu registro no livro, seriam todos ordeiros

e tementes a Deus. Percebe-se em ambas fotografias um ordenamento

interessante, as mulheres estão de um lado da procissão e os homens de

outro, em duas filas distintas, sendo da

mesma forma a entrada na igreja, como

retratado na fotografia abaixo.

Esta é uma antiga tradição da

Igreja Católica, colocada em desuso nos

tempos atuais. Em visita às ruínas de San

Ignacio Mini na Argentina, fomos

informados que na Igreja dessa

localidade, na época colonial, havia duas portas laterais, sendo uma destinada

à entrada dos homens e a outra às mulheres. A porta central era reservada à

entrada do clero durante as missas.

13 LIVRO TOMBO da paróquia Nossa Senhora das Graças. p. 05 verso e 09 verso.

10

As duas fotografias a seguir

pertencem ao senhor Eloy Rodrigues dos

Santos. Possuindo medidas 11,4x8,4 cm e

11,8x8,5 cm respectivamente, retratam a

procissão de Nossa Senhora das Graças em

1957, realizada pela missão dos

capuchinhos, em visita à cidade.

Retratando um aglomerado de

pessoas que abrem caminho para a

passagem da santa, certos elementos nos

chamam atenção na fotografia ao lado, como

a profusão de mulheres com a cabeça coberta com véus, como o grupo com

véus brancos no canto direito superior, sem dúvida em uma demonstração de

respeito ao sagrado, com o branco como uma cor simbólica em rituais

litúrgicos. As três crianças com vestidos semelhantes no canto direito.

Novamente percebemos as pessoas com roupas de ocasiões especiais. Os

membros da igreja com as mãos postas na mesma posição das imagens de

santos.

Podemos perceber também em ambas as fotografias a bandeira da

congregação dos Marianos, fundada por um grupo liderado pelo senhor José

Brambilla, um pioneiro da cidade famoso por ser rezador de terços, em 21 de

junho de 1951. Mas novamente retornando ao que Barthes chama de punctum,

o que nos marca é a compenetração do indivíduo carregando o andor da santa

na fotografia superior. Seu rosto levemente abaixado, a mão que segura o

andor ao lado de sua face esquerda. O que teria sentido esse indivíduo?

Questões que estamos longe de responder, porém ficando esses momentos

registrados na memória fotográfica.

Junto com Martins14 podemos concluir que não só a fotografia, mas

também o fotógrafo se incorpora ao sagrado. É precisamente a tolerância por

parte dos agentes envolvidos nesses atos religiosos da intrusão do fotógrafo

que o recria como protagonista do culto, o intermediador entre esses eventos e

nós, por meio de uma ótica específica, mesmo que o fotógrafo não se dê conta

14 MARTINS, José de Souza. A imagem incomum: a fotografia dos atos de fé no Brasil. Em: Estudos avançados. p. 15.

11

disso, ou ainda que sua atuação seja totalmente diversa dos agentes

envolvidos.

BIBLIOGRAFIA

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DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papyrus, 1996. JORNAL PULSANDO. Apucarana, Julho de 1977. Número especial. KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo; Ática, 1989. ________. Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia: Ateliê Editorial, 2002.

LIVRO TOMBO da paróquia Nossa Senhora das Graças. MACEDO, Sérgio. Alguns pontos da história de nossa terra. (dissertação). Snt. NEIVA JÚNIOR, Eduardo. A imagem. São Paulo: Ática, 1994. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Em: Projeto História. nº 10, 1993. POLACK, Michael. Memória e identidade social. Em: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1992, v. 05, nº 10. POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Em: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1989, v. 02, nº 03. PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. Em: FERREIRA, Marieta

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de Moraes , AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001.

SCHWARTZ, Stuart B. e LOCHART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

TEIXEIRA, Joubert Paulo e outros. Descrevendo fotografias. Em: MORELLI, Ailton José (Org.). Introdução ao estudo de História. Maringá (PR): EDUEM, 2005.