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  • XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

    1 a 5 de setembro de 2003-08-02

    UNICAMP

    Campinas - SP

    GT 19 Religio e Sociedade

    A Reunio das Trs.

    Reflexes sobre as mudanas nas relaes entre a Igreja catlica e as

    romarias em Juazeiro do Norte

    Autora: Renata Marinho Paz

  • Durante quase um sculo, as romarias de Juazeiro do Norte foram consideradas

    pela Igreja catlica como fonte de fanatismo, ignorncia e superstio. Entretanto, a

    despeito das proibies e da rejeio da hierarquia eclesistica, elas continuaram a ser

    realizadas por devotos que buscam a terra da me de Deus, lugar sagrado de significado

    primordial para a religiosidade vivida pelos sertanejos.

    Nas ltimas trs dcadas, esta postura de rejeio comeou a ser modificada.

    Setores da Igreja mais sintonizados com a mentalidade ps-conciliar comearam a realizar

    trabalhos pastorais junto aos romeiros, apesar do silncio da Diocese do Crato. Com o

    estabelecimento de uma pastoral evangelizadora e canalizadora da religiosidade popular,

    paulatinamente a Igreja passou a se apropriar e a imprimir uma viso mais flexvel em

    relao s romarias, ao padre Ccero e ao movimento scio-religioso de Juazeiro num

    sentido mais amplo, ressignificando no s as romarias, mas a sua prpria ao social e

    poltica.

    Considerando o trabalho da equipe de pastoral da romaria como expresso das

    transformaes nas relaes entre a Igreja e as romarias, a proposta analisar estas

    mudanas, tomando como foco a Reunio das Trs. Cerne das atividades desenvolvidas

    pela equipe de pastoral, esta reunio constitui-se num encontro com os romeiros promovido

    pela parquia de Nossa Senhora das Dores em todas as grandes romarias. um momento

    de reflexo e de troca de experincias entre os romeiros e a equipe; nela, o processo de

    abertura frente ao universo simblico dos romeiros evidente, assim como a apropriao e

    ressignificao de suas crenas e prticas religiosas. O objetivo desta anlise fazer uma

    descrio densa desta reunio, balizada em trs aspectos: quais so os fundamentos deste

    trabalho, como ele realizado, e como ele percebido e apropriado pelos romeiros.

    I

    Quinta-feira, 1 de novembro de 2001, dia de Todos os Santos. Juazeiro j est

    tomada por pessoas que vieram para a Festa de Finados, uma das maiores romarias do

    calendrio religioso daquele santurio. Percorro as ruas entre uma multido de romeiros e

    barracas improvisadas que vendem de tudo um pouco: utenslios domsticos, roupas,

  • comidas, fitas cassete com msicas populares e religiosas, ervas, chapus, fotos de santos e

    artistas, artigos de couro, velas, brinquedos...

    Sigo no meio da multido. Meu destino o Centro de Apoio ao Romeiro, uma

    pequena sala localizada no interior da igreja matriz de Nossa Senhora das Dores,

    vinculado equipe de pastoral de romaria, No meio de dezenas de pessoas que procuram

    a sala para pedir informaes, comprar fitas e livretos com msicas religiosas, beber gua,

    etc., encontro Arlene, uma freira que chama ateno pela sua jovialidade. Ela comea a

    me falar sobre o trabalho desenvolvido no Centro de Apoio pela equipe da pastoral de

    romaria1.

    O objetivo da gente bem pastoral mesmo, no sentido de acolher

    o romeiro, de escutar, valorizar, orientar. A gente procura ter um

    contato mais direto com os coordenadores de romaria, que eles [os

    romeiros] chamam de fretante. (...) a feito um cadastro pra que se

    possa saber de onde eles vem, o nmero de romeiros, quanto tempo

    vo passar, onde vo ficar, e com isso a gente pode fazer um

    trabalho estatstico. A gente tem o cadastro de mais ou menos dez

    por cento dos fretantes, e o que a gente faz tentar manter um

    contato permanente com eles, n? (...). Aqui mesmo na sala nas

    romarias o movimento esse a que voc t vendo, uma coisa

    mais prtica: tem esse bebedouro grande pra oferecer gua,

    ajudamos pessoas perdidas a se encontrar, quem perdeu documentos

    (...). Tambm tem muita gente que vem conversar, se aconselhar, e

    a gente procura tratar bem os romeiros como pessoas que precisam

    ser ouvidas (...), a coisa do acolhimento mesmo. O sentido do nosso

    trabalho bem pastoral mesmo, uma viso que conduz, que toca

    (...).

    Criado em meados dos anos setenta, o Centro de Apoio ao Romeiro, vinculado

    parquia de Nossa Senhora das Dores, foi organizado por duas freiras com formao em

    psicologia social pela universidade de Louvain, na Blgica, que tambm fundaram o

    Instituto de Pesquisas da Religio. Aps realizarem suas pesquisas em Juazeiro do Norte, as

    irms acabaram se fixando na cidade, a fim de desenvolver atividades sociais junto

    comunidades carentes e trabalhos pastorais junto aos romeiros.

    Uma das atividades desenvolvidas pela equipe de pastoral a chamada Reunio

    das Trs, promovida nos perodos de romarias, com o objetivo de viabilizar um contato

    maior com os romeiros, constituindo-se num momento de reflexo, de relato e troca de

  • experincias nos mais diversos campos. Amplamente divulgada nas missas e na

    programao oficial da romaria, a reunio aberta ao pblico, sendo realizada sempre s

    trs horas da tarde, no Circulo Operrio So Jos, vizinho matriz. Essas reunies

    comearam a ser promovidas seguindo a demanda dos prprios romeiros. De acordo com a

    irm Therezinha, que junto com a irm Anette foi uma das precursoras na realizao de

    trabalhos pastorais com os romeiros em Juazeiro2,

    A gente percebeu que os romeiros ficavam onde hoje tem aquela

    capela com o Senhor dos Passos (...) e os romeiros ficavam l

    esperando, chegavam muito cedo para assistir a missa, para a

    confisso, e sentavam l e ficavam. A a gente vendo aquilo, ns

    perguntamos: padre Murilo3, no d pra gente aproveitar essa hora

    que os romeiros esto l esperando pra conversar com eles, talvez

    fazer uma pequena preparao, porque naquela poca havia a

    confisso comunitria (...). Depois aos pouquinhos ns fomos

    vendo a necessidade da parquia ter uma sala para receber os

    romeiros, pra conversar, porque eles gostam muito de conversar,

    contar os problemas deles, pedir conselhos (...) Ento nessa salinha

    a gente passava o dia todo at a noite recebendo romeiros. (...) E a

    partir da comeou, porque at ento a maioria dos padres no

    queria nem saber de falar de romeiro, os romeiros eram realmente

    marginalizados nas parquias, a maioria dos padres no aceitavam.

    (...) Sei que com o tempo a coisa comeou a mudar. Comeou assim

    a haver um intercmbio e os romeiros comearam a ser aceitos

    pelos padres, e os padres tambm comearam a vir alguns em

    romaria (...).

    Convidada pela irm Arlene, que me lembra que hoje o Dia do Romeiro, resolvi

    participar da reunio desta tarde e, para tanto, comprei o livreto de cantos produzido pela

    pastoral da romaria da parquia, intitulado Cantos do povo de Deus romeiros da Me das

    Dores e do padre Ccero. Sem ele, praticamente impossvel acompanhar a reunio, que

    muito cantada. A msica e o canto, segundo irm Arlene, tocam o muito romeiro (...)

    expressam um sentimento forte. (...) Nasceu do povo a vontade de cantar para ficar bem

    mais prximo de Deus (...) a msica um importante instrumento de aproximao e

    conscientizao.

    1 Entrevista concedida em 01.11.2001, em Juazeiro do Norte.

    2 Entrevista concedida em 08.11.2001.

    3 Padre Murilo de S Barreto proco da matriz de Nossa Senhora das Dores desde 1958, sendo um dos

    principais agentes envolvidos nas mudanas na postura da Igreja em relao s romarias quele santurio.

  • Este livro, segundo a irm Therezinha, comeou a ser produzido em 1979,

    constituindo-se em um importante instrumento pastoral. Nesse livreto,

    (...) que se chama at hoje Livro do Romeiro, a gente contava

    primeiro uma histria, e depois a gente comeou a pegar msicas,

    melodias deles [benditos], ento ns pegamos essas melodias e

    comeamos a colocar letras diferentes nas melodias (...) a colocar

    letra de catequese. Ento a cada ano a gente faz o bendito do ano da

    romaria, e isso um instrumento pastoral porque eles pegam esses

    livrinhos, eles aprendem e depois levam para os lugares de onde

    eles vem.

    Nestes livretos, boa parte dos cantos so benditos, uma das expresses mais fortes da

    religiosidade popular em Juazeiro, alguns sendo considerados verdadeiros hinos dos

    romeiros que afluem quele santurio. Os benditos so dotados de uma melodia, uma

    estrutura estrfica e rmica bastante repetitiva, sendo facilmente acompanhados pelo

    pblico por possurem uma regularidade, elemento bsico no processo mnemnico. Atravs

    dos benditos, a Igreja se apropria e faz referncias elementos do universo simblico do

    romeiro, mas insere modificaes, enfatizando o carter redentor de Cristo, ou a

    necessidade de se viver em comunidade, para introduzir uma mensagem evangelizadora,

    em geral pautada na Campanha da Fraternidade.

    Nesta perspectiva, padre Murilo explica a metodologia utilizada para elaborao dos

    cantos: ela [a equipe] colhe, grava a melodia que o romeiro canta, e empurra a letra de

    catequese, de evangelizao (...) ento se casa facilmente a melodia que ele j sabe com a

    letra que ele aprende.4 Trata-se de um claro processo de apropriao e ressignificao de

    um importante elemento do universo simblico do romeiro, que acaba se transformando em

    instrumento pastoral.

    Este ano o livro se chama F em Deus, Romeiro! A mensagem inicial do

    apstolo Lucas Avance para guas mais profundas ... e lance as redes para pesca... em

    ateno a tua palavra, Senhor, vou lanar as redes... apanharam tamanha quantidade de

    peixes que as redes se arrebentavam. (Lc 5, 4-6). A referncia direta evangelizao: ir

    em guas mais profundas, mesmo em momentos de desnimo e cansao significa,

    primeiramente, confiar em Deus e, em segundo lugar, ser um evangelizador, l, em

    4 Entrevista concedida a Oswald Barroso e Cica de Castro, em 18 de setembro de 1989 (Acervo do Museu da

    Imagem e do Som, Fortaleza)

  • nossa comunidade. tambm (...) sair do nosso egosmo e amar ao prximo como Jesus

    nos amou (mimeo, p. 02).

    II

    O Crculo Operrio So Jos uma espcie de auditrio amplo, repleto de cadeiras

    plsticas e grandes ventiladores de teto (essenciais para o clima quente de Juazeiro), capaz

    de acolher aproximadamente quatrocentas pessoas. A reunio comea com uma saudao

    festiva por parte das freiras encarregadas de conduzir a reunio. So moas bem jovens e

    animadas, que parecem ter bastante intimidade com os romeiros. O palco do auditrio est

    repleto de imagens de santos dispostos lado a lado, e cartazes com frases edificantes sobre a

    vida e obra de vrios deles. A reunio bastante alegre, com uma participao ativa de

    romeiros que se inscreveram no incio da reunio para dar depoimentos, cantar, etc. As

    freiras, juntamente com um violonista, cantam vrias msicas contidas no livreto, sempre

    acompanhadas de muitas palmas e vivas. Aproveitando o dia de Todos os Santos, os

    romeiros so estimulados pelas freiras a dar depoimentos de graas obtidas e a mostrarem

    composies prprias de benditos sobre os santos de sua devoo. Havia um nmero

    aprecivel de romeiros desejosos de expor suas experincias e cantar seus benditos num

    microfone diante de uma platia bastante numerosa. Louvores a So Jos, Santo Antnio,

    Santa Rita, Santa Luzia e outros santos - sempre precedidos por vivas Me das Dores e ao

    padre Ccero (nessa ordem) - relatavam diversos tipos de graas alcanadas, indo de curas

    de enfermidades a boas colheitas.

    Em um determinado momento, as irms pediram que quem soubesse de cor

    alguma passagem ou frase da Bblia que contasse para os demais. Vrios romeiros

    comearam a relatar, sobretudo as frases mais conhecidas, tais como Eu vim para que

    todos tenham vida, O senhor meu pastor e nada me faltar, etc. Uma romeira, muito

    compenetrada, disse com a voz impostada a seguinte frase bblica: Benditos sejam os

    romeiros do meu padrinho Ccero Romo Batista. Aproveitando o dia de Todos os Santos,

    as irms pediram que eles contassem a vida dos santos de sua devoo. Surgiram as

    histrias de Santa Luzia, So Jorge, Santa Rita, narradas pelos romeiros. A meu ver, o mais

    interessante foi o relato de uma romeira que contou a histria de Santo Amncio. Segundo

    ela, este santo amansou o leo que o ameaava porque confiava primeiramente em Deus, e

    no meu padrinho Ccero e em Nossa Senhora das Dores. Foi aplaudidssima...

  • comum encontrar romeiros que afirmam que padre Ccero uma das trs

    pessoas da Santssima Trindade. Seu Jos Joo de Freitas, 52 anos, romeiro de Palmeira dos

    ndios (AL) diz que

    O meu padrim Cio o Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele veio pro

    mundo pra salvar todos ns. Pra ele perdoar o pecado de ns todos,

    que nem ele se mudou, mas o meu padrim Cio no morreu. Todo

    dia que ns disser valei-me meu padrim Cio ele t aqui mais ns. [Quer dizer que foi Jesus Cristo que veio com outro nome,

    assim?] Foi ele, ele despois da vinda do Padre Eterno, ele disse que

    o primeiro foi ele quem veio. Quer dizer que ele h de ser uma das

    trs pessoas da santssima trindade, ele h de ser um. A gente no

    faz assim: em nome do pai, do filho...? Quer dizer que ele do

    filho.

    Uma histria contada por seu Joo Martins, 63 anos, adventcio alagoano tambm

    segue essa linha de pensamento, com um detalhe muito significativo: seu Joo pai da irm

    Arlene.

    Meu, padim, meu padim nasceu de uma manjedoura. Essas

    conversa de outro tempo, que eu ouvia meus pai contar (...) Que

    naqueles tempo por aqui andava Nossa Senhora, andava uma

    mulher, j em tempo de descansar. A ela chegou numa fazenda,

    pediu um arrancho (...) o dono da fazenda disse que ela fosse pruma

    estrebaria bem longe da casa. Agora essa mulher, ningum sabe

    quem essa mulher. Muita gente no sabe, e eu sei quem . [Quem

    ?] Nossa Senhora que veio pra descansar aqui, e meu padim

    nasceu de uma manjedoura.(...) Eu sei que o nascimento de meu

    padim foi assim...5

    Esses depoimentos denotam a capacidade criativa do romeiro de adequar, melhor

    dizendo, de apreender a mensagem religiosa a partir de elementos prximos da sua prpria

    realidade. Considero que a anlise de Michel de Certau sobre as prticas ordinrias, sobre

    as representaes cotidianas que os atores sociais elaboram comumente uma srie de

    prticas disseminadas frente a um sistema panptico permite questionar a viso dos fiis

    como entes meramente passivos ou, num sentido mais amplo, de perceber a apropriao

    popular dos elementos impostos pelo catolicismo oficial como uma produo potica (do

    5 Perspectivas como estas, que relacionam a vida do padre Ccero com santos ou o prprio Cristo denotam a

    existncia de uma cultura bblica (Velho, 1987), em que elementos do evangelho so apreendidos a partir de

    elementos prximos da prpria realidade do devoto. Esta cultura serviria de referncia para se pensar as

    experincias vividas, indo alm do mero recurso instrumental, de termos e expresses, atingindo o nvel das

    crenas e atitudes.

  • grego poien: inventar, gerar, criar) que, silenciosa, atua simultaneamente aos sistemas de

    produo que se pretendem dominantes. Segundo Certau,

    A uma produo racionalizada, expansionista, alm de

    centralizadora e barulhenta, corresponde outra produo,

    qualificada de consumo: esta astuciosa, dispersa, mas ao mesmo

    tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisvel, pois

    no se faz notar com produtos prprios, mas nas maneiras de

    empregar os produtos impostos por uma ordem econmica

    dominante. (1994, p. 39)

    Neste sentido, os romeiros tem as suas maneiras de fazer, ou estilos de ao que

    atuam num campo que, a princpio, os regulam. Ao afirmar que Nossa Senhora me do

    padre Ccero, remetendo-o a Jesus Cristo, ou que ele uma das pessoas da Santssima

    Trindade, os romeiros se utilizam, se apropriam e ressignificam de um modo muito

    particular a palavra do evangelho. Diante deste processo de reapropriao, dois aspectos

    chamaram a minha ateno nesta reunio: primeiramente, no houve nenhum esforo

    explcito por parte das irms em corrigir as histrias que alguns romeiros contavam, por

    mais heterodoxas que fossem. Em segundo lugar, o cuidado que elas tiveram de

    apresentar os santos de uma maneira distinta do que normalmente se percebe na dimenso

    devocional do catolicismo popular, na medida em que foram apresentados como modelos

    concretos de vida crist, e no como entes poderosos, protetores de todas as horas.

    Aps muitos relatos de histrias de santos, graas alcanadas, de trabalhos

    pastorais desenvolvidos pelos romeiros em suas parquias de origem, cantos e saudaes, a

    reunio foi encerrada por volta das cinco horas. Se as irms fossem abrir espao para todos

    os romeiros que desejassem falar, certamente o encontro duraria pelo menos mais duas

    horas.

    III

    Inseridas num contexto de mudanas em termos da realizao de trabalhos

    pastorais junto aos romeiros, mas sobretudo no que diz respeito s modificaes na viso

    sobre as romarias ao padre Ccero e religiosidade vivida em Juazeiro, essas reunies so

    importantes para a reflexo sobre as mudanas recentes na postura da Igreja face as

    romarias de Juazeiro. Durante quase um sculo, a atitude da hierarquia eclesistica em

    relao ao movimento de Juazeiro e figura do padre Ccero foi de intolerncia, rejeio e

    silncio. Engendradas no contexto de romanizao do catolicismo brasileiro, as romarias ao

  • padre Ccero de Juazeiro do Norte comearam a ser realizadas ainda no final do sculo

    XIX.6. Milhares de romeiros comearam a afluir em direo ao pequeno lugarejo situado no

    sul do Cear. Camponeses humildes, pequenos comerciantes, mas tambm profissionais

    liberais, fazendeiros, enfim, toda sorte de pessoas, lideradas por padres das regies

    circunvizinhas e Estados limtrofes, buscavam a salvao em Juazeiro, atrados pelos

    fenmenos envolvendo o padre Ccero e a beata Maria de Arajo. Preocupado com o

    movimento nascente e com as implicaes teolgicas dos supostos milagres, a partir de

    1891, o bispo do Cear, Dom Joaquim Jos Vieira, instaurou duas comisses episcopais de

    inqurito para averiguao dos fatos, que acabaram sendo considerados como prodgios

    vos e supersticiosos. A negao dos milagres deu origem a uma ampla questo religiosa

    envolvendo o padre Ccero e a hierarquia eclesistica, que culminou com a imposio de

    uma srie de vetos ao padre Ccero e seus fiis, com destaque para a suspenso de ordens

    ao sacerdote e a proibio de se realizar romarias a Juazeiro (Della Cava, 1976, p. 59-63).

    A postura da Igreja foi extremamente incisiva: no havia dvidas de que Juazeiro era

    considerado um centro de fanatismo e superstio, um mal a ser combatido em nome da f

    catlica.

    Abandonado pelo clero e pelas elites, rechaado pela Diocese, o movimento de

    Juazeiro continuou crescendo pela fora da crena dos fiis. Para o povo, a opinio da

    hierarquia eclesistica pouco importava. Tratado como seita, alijado de servios religiosos

    regulares, o povo dava vazo sua religiosidade atravs de crenas e prticas que passavam

    ao largo do que era oficialmente aceito pela Igreja. Em um relatrio enviado ao bispo em

    1894, o vigrio do Crato, Monsenhor Alexandrino, afirma que O povo de Joaseiro, em sua

    quase totalidade, no aceita a deciso da Santa S baseado em sofismas. Espera a volta do

    padre Ccero a quem tudo confia. No cr em Papa, Bispo, em qualquer outra autoridade

    eclesistica. O Padre Ccero para eles tudo, e depois do Padre Ccero, a Maria de

    Arajo. (Della Cava, 1976, p. 138)

    Padim Cio passou a ser considerado santo e Juazeiro transformou-se numa

    cidade sagrada, lugar primordial para a religiosidade de milhares de nordestinos. Neste

    6 Em 1889, aps uma noite viglia com os devotos da Associao do Sagrado Corao de Jesus, Padre Ccero

    deu comunho s suas beatas, quando uma delas, Maria de Arajo, teria entrado em xtase e transformado a

    hstia em sangue. Este fenmeno se repetiu diversas vezes, dando origem a uma profunda discusso teolgica

    e poltica envolvendo o padre Ccero e a hierarquia eclesistica.

  • contexto, a ortodoxia catlica, por considerar a religiosidade popular como fonte de

    fanatismo e erro, como desvio da verdadeira religio, empenhava-se em combater as

    prticas e representaes catlicas populares7. A viso da Igreja em relao religiosidade

    popular e, conseqentemente, s romarias, pautava-se numa franca rejeio e intolerncia.

    A diocese do Crato temia que uma atitude mais condescendente ou compreensiva pudesse

    fomentar ainda mais a devoo ao padre Ccero ou legitimar a religiosidade popular.

    Embora combatidas, elas continuaram sendo realizadas, atraindo cada vez mais devotos.

    Percebe-se ento a construo de uma forte tenso entre a hierarquia catlica e os romeiros.

    Nesta perspectiva, a realizao de qualquer trabalho pastoral com os romeiros era

    inconcebvel.

    Aps quase um sculo de combate e negao, a postura de rejeio da ortodoxia

    catlica face a essas crenas e prticas religiosas comeou a ser modificada em meados dos

    anos sessenta, com o redimensionamento da Igreja encetado a partir do Conclio Vaticano

    II, momento em que a hierarquia eclesistica, ao ter que se confrontar com propostas

    ecumnicas e com o multiculturalismo, com o temor frente revoluo cubana, a

    marxizao dos grupos de ao catlica e o avano protestante, deixou de lado uma postura

    autoritria e desconfiada para assumir uma estratgia de compreenso e renovao pastoral

    frente s crenas e prticas do catolicismo popular. Seguindo a abertura promovida pela

    Igreja, sobretudo aps as conferncias de Medelln e Puebla, a postura da ortodoxia frente

    religiosidade popular foi sendo paulatinamente modificada. Esta, ao invs de ser

    considerado como algo desfigurado, profanador e concorrente do trabalho legtimo do

    catolicismo oficial, passa a ser percebido como expresso da f, da identidade e da cultura

    de um povo. Isso tornou-se possvel a partir do momento em que a Igreja catlica passou a

    redefinir sua identidade como estando relacionada, ainda que muitas vezes teoricamente,

    aos pobres e oprimidos (Brando, 1985, p. 117-8).

    Em linhas gerais, embora os resultados das mudanas propostas pelo Conclio

    tenham sido mais evidenciados no Brasil sobretudo a partir dos anos 70, algumas reflexes

    sobre a necessidade de uma atuao diferenciada face s romarias de Juazeiro comearam a

    7 Caracterizado pela devoo aos santos e almas, pelo apego s promessas e milagres, o catolicismo popular

    fortemente marcado por rituais coletivos e festivos, conduzidos por leigos. Frente a isso, a romanizao

    encetou esforos no sentido de impor um catolicismo mais interiorizado espiritualmente, menos festivo e mais

    sacramental, menos coletivo e mais individual, onde a presena do sacerdote fundamental.

  • surgir pontualmente ainda nos anos 60. Em um levantamento scio-religioso realizado em

    19638, a Diocese do Crato indica uma srie de elementos relacionados situao da

    religiosidade popular na regio do Cariri (mais especificamente nos municpios do Crato,

    Juazeiro e Barbalha), e as aes a serem empreendidas no plano religioso. A tnica deste

    documento a necessidade de renovao pastoral dos dois centros mais significativos:

    Crato e Juazeiro. Este ltimo merece um tratamento diferenciado: ali a ao missionria

    considerada indispensvel, devendo ser realizada uma catequese de tipo popular, a cargo

    tanto de leigos quanto de sacerdotes.

    O ponto de partida dessa catequese a devoo Nossa Senhora das Dores, j

    presente entre os romeiros, mas que deve ser trabalhada de forma que a sua exaltao,

    segundo o padre Murilo9, permita colocar a devoo ao padre Ccero no seu devido lugar.

    A devoo Nossa Senhora das Dores, na viso da Igreja, por se encontrar (...) eivada de

    sentimentos supersticiosos e de motivaes de ordem temporal e biolgica (...)10 exige um

    trabalho de purificao. Este trabalho catequtico deveria evitar, contudo, uma preocupao

    (...) apologtica e moralizante, bem como o combate agressivo s supersties. O que

    importa transmitir uma mensagem evanglica de que os fiis carecem muito. E com isso

    as supersties desaparecero (ibid., p. 17).

    Algumas questes colocadas no Levantamento revelam tanto a produo de um

    discurso que no visa mais depreciar e combater as prticas e representaes da

    religiosidade popular, quanto a preocupao em realizar trabalhos pastorais mais

    especficos junto aos romeiros. Evangelizar adquire uma importncia fundamental. Neste

    projeto de evangelizao, a Igreja assume uma postura relativamente mais flexvel diante

    da religiosidade popular que, ao invs de ser considerada como desvio da verdadeira

    religio, passa a ser percebida como fonte de ignorncia. Nesta medida, o clero renovado

    pelas diretrizes conciliares (...) tambm se sentia missionado a tirar da inconscincia

    religiosa e poltica a massa dos catlicos, mesmo que para isso fosse necessrio usar de

    grande violncia simblica (Steil, 1996, p. 255)

    8 Levantamento Scio-Religioso da Diocese do Crato: Caminhos para a Ao no Plano Religioso. 1963

    (mimeo) 9 Padre Murilo de S Barreto proco da matriz de Nossa Senhora das Dores em Juazeiro desde 1958, sendo

    um dos principais responsveis pelas mudanas na postura da igreja em relao s romarias quele santurio. 10

    Levantamento, p. 16

  • Aqui o trabalho de transformao da religiosidade popular evidente. Se no

    processo de romanizao do catolicismo no Brasil uma das principais ferramentas para a

    implantao desse modelo de catolicismo foi a substituio das devoes aos santos e

    almas cultuados popularmente por devoes em voga na Europa, neste movimento de

    abertura frente religiosidade popular h uma certa tolerncia em relao s devoes

    populares, desde que purificadas. Enfatiza-se o culto a Nossa Senhora das Dores, mas

    atravs de um trabalho de apropriao e purificao da devoo santa. Simultaneamente a

    isso comea a haver uma certa tolerncia ao padre Ccero.

    A evangelizao torna-se, na viso da ortodoxia, um importante instrumento para a

    conscientizao do romeiro. Para isso, a pastoral evangelizadora baseia-se num processo de

    abertura, aproximao, apropriao e transformao das crenas e prticas religiosas dos

    romeiros. Evangelizar significa acolher, buscar uma forma de comunicao mais prxima

    do universo simblico do romeiro e, com isso, canalizar as prticas e representaes da

    religiosidade popular.

    Subjacente a esta pastoral evangelizadora h um interesse da Igreja em retirar o

    fiel da ignorncia, ao visar a purificao da sua religiosidade. Se h inteno de purific-la

    por que a Igreja parte da premissa de que a religiosidade popular ignorante e/ou

    incompleta. Em outras palavras, este trabalho de evangelizao reflete uma luta simblica

    pelo poder de codificao e hierarquizao das diversas esferas que compem o campo

    religioso. Isto por que a classificao de objetos, costumes ou prticas como sendo

    populares traz consigo uma definio de lugares ou de posies que traduzem, em ltima

    instncia, um combate, um jogo pela definio da validade de uma certa lgica ou ordem.

    Os indivduos e grupos travam, consciente ou inconscientemente, uma luta simblica

    contnua pela dominao e pela codificao, buscando classificar uns aos outros ou, melhor

    dizendo, uns buscando classificar os outros, j que o povo mesmo no se preocupa em se

    classificar como popular...

    Codificar torna-se algo do campo da violncia simblica. A luta pelo poder de

    definir o que popular, de falar pelo povo e no lugar do povo , ao mesmo tempo, uma luta

    cognitiva e poltica, que visa classificar, hierarquizar os grupos e impor a viso legtima do

    mundo social (Bourdieu, 1990, p. 86). A Igreja, ao definir a religiosidade do romeiro como

    sendo popular, est definindo qual o seu lugar e o seu poder. Por basear-se na (...)

  • tendncia dos especialistas de fecharem-se na referncia autrquica ao saber religioso j

    acumulado e no esoterismo de uma produo quase acumulativa (Bourdieu, op. cit. p. 38-

    9), a ortodoxia catlica no s classifica e hierarquiza as prticas e representaes

    religiosas, mas tambm diz o que legtimo e o que deve ser transformado.

    Para efetivar as diretrizes conciliares, a Igreja catlica, alm de formar um clero

    com de acordo com a mentalidade conciliar, tambm se empenhou em trazer sacerdotes,

    religiosas e leigos para o pas. Para ajudar na realizao de trabalhos pastorais junto aos

    romeiros, a parquia de Nossa Senhora das Dores acolheu, em meados dos anos 70, as

    irms que fundaram Centro de Apoio ao Romeiro e o Instituto de Pesquisas da Religio.

    Atravs de um trabalho de conhecimento e aproximao perante ao romeiro e

    religiosidade popular, as irms puderam fundamentar a pastoral evangelizadora e

    canalizadora da parquia.

    Evangelizar a tnica do trabalho da equipe de pastoral de romaria da parquia de

    Nossa Senhora das Dores. Segundo padre Murilo, este trabalho est baseado em trs

    posies:

    Primeiro, realizar um acolhimento necessrio (...), evanglico,

    que se d a quem d a quem vem de fora. Em segundo lugar, uma

    liturgia que bata com os anseios dessa fisionomia nordestina. E em

    terceiro, que seja canalizadora, no sentido de purificar quando ela

    vem mesclada de alguns resduos da distoro da religiosidade

    popular.11

    Neste depoimento, o processo de abertura, aproximao, apropriao e

    transformao das crenas e prticas religiosas dos romeiros evidente significa acolher,

    buscar uma forma de comunicao mais prxima do universo simblico do romeiro e, com

    isso, canalizar as prticas e representaes da religiosidade popular.

    interessante notar que as irms partem do princpio que o trabalho de

    evangelizao realizado pela Igreja ps-conciliar

    (...) com as melhores intenes, caiu muitas vezes na mesma armadilha e

    procurou incutir artificialmente novas expresses religiosas, cortando as

    tradicionais, por fidelidade ao evangelho. (...) Em ns dorme e desejo de

    dominao atravs da sabedoria da formulao doutrinal, dos ministrios, etc. A

    religio do povo fica assim sempre marginalizada, julgada inferior como a sua

    11

    Padre Murilo, entrevista concedida em 08.09.1999.

  • inteligncia, a sua arte, as suas expresses festivas, os seus pensamentos, as

    suas condies. (Dumoulin e Guimares, 1986, p. 03)

    Ao mesmo tempo em que reconhecem a postura de dominao subjacente s aes

    da Igreja, as irms tambm se colocam contra uma viso ingnua e reificadora da

    religiosidade popular. Ou seja, enfatizam o respeito a ela, mas no a consideram como

    sendo pura, sem manchas (idem). Uma das diretrizes de seus trabalhos pastorais junto aos

    romeiros reside na necessidade de purificar a religiosidade popular, em seus aspectos de

    egosmo, isolamento, abdicao da realidade ou da responsabilidade, que fanatizam ou

    geram temor ou insegurana. (idem)

    A tnica destas reunies a troca de experincias entre os romeiros e as irms.

    Embora sejam organizadas pela equipe, que planeja e conduz o encontro, o espao para a

    participao dos romeiros muito amplo, e eles se sentem vontade para cantar seus

    benditos, expor suas idias e experincias. A dimenso de troca muito forte e no h, at

    onde pude perceber tanto nessa como em outras reunies, uma imposio direta da

    mensagem evangelizadora, no sentido das irms se colocarem como pessoas que vo

    ensinar corretamente a vida dos santos ou as passagens bblicas, por exemplo. H uma

    abertura no sentido de deixar os romeiros se expressarem, mesmo que eles digam coisas

    pouco ortodoxas. No h por parte das irms esforo no sentido de restringir os

    significados dados aos elementos sagrados colocados por elas ou pelos prprios romeiros.

    Assim, esta reunio antes de tudo uma forma de aproximao do romeiro junto equipe

    de pastoral e sua mensagem evangelizadora.

    possvel pensar a reunio das trs como uma espcie de culto paralitrgico onde

    ocorre a interpenetrao de elementos das crenas e prticas do chamado catolicismo

    popular com as mensagens evangelizadoras e canalizadoras da ortodoxia catlica. Esta

    reunio um momento de celebrao religiosa, mas no se restringe a isso: trata-se de um

    momento de interao, de apropriao, de circularidade (Ginzburg, 1987, p. 21) entre as

    partes. Isso pode ser percebido atravs da nfase no culto a Nossa Senhora das Dores,

    colocado acima e frente da devoo ao padre Ccero, a eleio do chapu como smbolo

    no s do romeiro do padre Ccero, mas da comunho, da comunidade dos romeiros, assim

    como a aceitao da santidade do padre Ccero e da devoo controlada aos santos.

  • No trabalho pastoral desenvolvido pelos diversos setores da Igreja em Juazeiro, a

    evangelizao e a canalizao assumem diferentes configuraes. Se para as irms a

    conscincia do processo de dominao simblica inerente s aes da Igreja, que s vezes

    se comporta como uma me possessiva (idem, p. 06), um ponto de partida para uma

    atuao mais compreensiva, menos impositiva, voltada para uma evangelizao encarnada

    na realidade sertaneja, preocupada mais com a insero do romeiro em sua comunidade,

    com a sua vida e suas dificuldades, nota-se que os padres so mais normativos no sentido

    de estarem mais preocupados com a imposio de smbolos e significados. Neste caso, a

    dimenso purificadora em relao religiosidade popular torna-se mais patente.

    A Reunio das Trs denota como a Igreja, a partir das reformulaes introduzidas

    pelo Conclio Vaticano II (sobretudo aps Medelln e Puebla), vem mudando

    paulatinamente suas perspectivas em relao religiosidade popular, reorientando seus

    interesses ou mudando as regras do jogo, na medida em que deixa de combat-la e

    passa a purific-la. A Igreja se apropria de determinados elementos do universo simblico

    do romeiro, reelabora-os e os devolve para os fiis atravs de canes populares, como no

    caso dos benditos, espaos fsicos, objetos e personagens, como o prprio padre Ccero.

    Mais que isso, a Reunio um exemplo de como, atravs deste processo, a Igreja

    ressignifica a romaria e com isso consegue estabelecer uma base de entendimento entre os

    preceitos ortodoxos e as prticas e representaes catlicas populares.

    No trabalho desenvolvido pela equipe de pastoral, o romeiro possui um papel ativo

    na tarefa de evangelizao. Boa parte do pblico que costuma participar da Reunio das

    Trs formada de fretantes e/ou de leigos que realizam atividades pastorais em suas

    comunidades de origem, como o senhor Jos Alves Silva, fretante de 58 anos de idade, 30

    de romaria, proveniente de Altinho (PE), e freqentador assduo dessas reunies. Seu Jos

    comeou a vir em 1971, e percebe muitas mudanas nas romarias. Diz ele que

    Tem muita melhoria, tem, porque, as pessoas mais antiga, eles

    podiam ser at mais devotos, mais fiis, mas o tempo evoluiu. O

    povo novo aprendeu mais tambm, n? Ultimamente apareceu esse

    encontro, essas irms, elas ensinam muito, apesar de que tem

    romeiro que no conhece esse encontro no. Ento eu digo muito a

    eles como esse encontro. Muitos romeiros no esto cadastrados

    no centro de informao ao romeiro, eles nem conhece. Eu sempre

    digo muito s pessoas, fretantes de romaria que venham dar o seu

    nome, fazer aquela ficha no centro. (...)

  • Tem uns trinta anos... Desde que eu comecei a vir eu comecei a

    frequentar. Eu gosto desse lado, viu? Eu no sei se Deus que quer

    que eu seja assim. Eu no gosto de nada que seja errado.

    Ultimamente eu praticamente renunciei ao mundo. Eu tou mais

    ligado igreja. Hoje eu tenho uma tarefa na minha igreja, l eu sou

    evangelizador de comunidade, eu fao parte daquele projeto Dai-me alma, que um projeto at bonzinho, n? (...) Toda segunda, tera e quarta eu tenho encontro na periferia, ento eu fao tudo,

    fao a leitura, reflexes, aquelas coisas todinha, e aquelas coisa

    mais o que ns aprende aqui, n?12

    Como uma parcela significativa daqueles que participam mais ativamente destas

    reunies composta por aqueles que desenvolvem algum tipo de trabalho nas igrejas de

    suas comunidades, h uma nfase maior no aspecto evangelizador passado pela equipe de

    pastoral de romaria: a idia de que essas pessoas disseminem essa mensagem em suas

    comunidades. Segundo padre Murilo, A gente procura trabalhar a idia de que eles so os

    carteiros de Cristo, aquelas pessoas que vem aqui em Juazeiro pegar, aprender uma

    mensagem evangelizadora, de comunidade, de amor ao prximo, e repassar essa

    mensagem para os seus irmos nas suas cidades.13 Em Juazeiro, o trabalho de

    evangelizao tem uma participao ativa do romeiro, tanto durante a romaria quanto no

    papel que ele pode vir a desempenhar na sua prpria comunidade, atuando ele mesmo como

    instrumento evangelizador.

    O trabalho pastoral capitaneado pelas irms realizado a partir de estudos sobre os

    romeiros e sua religiosidade, permitindo a construo de uma base slida, fundada em suas

    tradies. Um dos exemplos que considero mais significativos sobre esta proposta de ao

    baseada num substrato tradicional o trabalho realizado sobre a festa de Nossa Senhora das

    Candeias. Segundo padre Murilo, esta devoo se faz presente em Juazeiro desde a sua

    formao, quando o brigadeiro Leandro Bezerra, um dos fundadores da comunidade de

    Tabuleiro Grande, que deu origem ao povoado de Juazeiro, edificou uma capelinha

    dedicada santa, em 1827. Deste perodo at fins dos anos 70, essa era uma festa sem

    conotao de romaria.

    Faz uns dez ou quinze anos que, aos poucos, a gente estudando e

    descobriu recuperar as tradies, as origens da ordem devocional

    de Juazeiro, porque pastoralmente para ns de extrema

    12

    Entrevista concedida em 31.11.2001 13

    Entrevista conceda a Oswald Barroso e Cica de Castro, em 03.02.90 (acervo do MIS Fortaleza)

  • importncia que a gente se monte em cima de uma evangelizao

    a partir de um substrato. Quando este substrato forte ento voc

    j conta com uma boa oferta de trabalho que o que acontece na

    evangelizao em Juazeiro. Ela tem que partir do que existe pra

    voc montar o novo. Novo no no dogma porque o dogma no

    tem novidade, mas novo na apresentao, na expresso, na

    singularidade, na conotao regional que forte e que hoje a

    Igreja defende como sendo dos dados do respeito ao poder do

    povo. Ento ns fazemos dessa festa alm disso um acontecimento

    tradicional, um acontecimento popular, um acontecimento dentre

    as razes. Ns fazemos tambm como sendo simbolicamente um

    coroamento do tempo de romaria. 14

    As atividades pastorais desenvolvidas com os romeiros em Juazeiro no possuem

    mais o forte carter reformador que marcou as aes da Igreja nos primeiros anos aps a

    realizao do Conclio. possvel perceber um claro esforo de compreenso do universo

    simblico do romeiro, a fim de possibilitar a construo de um trabalho mais prximo de

    sua realidade. A partir do estabelecimento de uma ao pastoral evangelizadora e

    canalizadora, percebe-se que a Igreja passa a ressignificar no s a romaria, ou a religio

    popular, num sentido mais amplo, mas tambm a sua prpria ao social e poltica,

    instaurando assim um novo ciclo de aproximaes e enfrentamentos entre romeiros e

    Igreja.

    IV

    Neste momento, interessante propor algumas reflexes acerca dessa idia de

    enfrentamento. Viu-se que a histria das romarias de Juazeiro marcada por uma postura

    de dominao ou tentativa de dominao do catolicismo oficial frente religio popular,

    sobretudo atravs das aes reformadoras da romanizao e tambm da canalizao

    promovida a partir do Conclio Vaticano II. Todavia, se essas reformas pretenderam

    rejeitar, controlar, canalizar, enfim, atuar coercivamente sobre a religiosidade popular,

    porque essa exerce presses sobre o chamado catolicismo oficial. Alm disso, em certa

    medida essas reformas derivam dessas presses. Nesse sentido, percebe-se que esse

    14

    Padre Murilo, em 03.02.90

  • enfrentamento marcado pela apropriao mtua, ainda que assimtrica, entre esses

    universos.

    O ponto a enfocar que, na realidade, o que ocorre um influxo recproco,

    embora assimtrico, entre as prticas e representaes dos romeiros, ou do catolicismo

    popular num sentido mais amplo, e as do catolicismo oficial. Em outras palavras, embora

    tenha enfatizado a postura de dominao ou tentativa de dominao do catolicismo oficial

    perante religiosidade popular, importante ressaltar que, se essa postura existe, porque

    esta religiosidade exerce presses sobre o catolicismo oficial.

    A relao que gestada em Juazeiro a partir de meados dos anos 70 no se baseia

    mais na rejeio ou combate ostensivo sobre as romarias. Ao contrrio: a preocupao da

    Igreja passa a ser de compreender e atribuir novos sentidos ao universo simblico dos

    romeiros, de domestic-lo, num processo de dominao simblica. Ao realizar uma pastoral

    pautada na canalizao da religiosidade popular e no acolhimento, a Igreja tem contribudo

    bastante para a construo de uma nova viso sobre as romarias.

    A acentuao positiva da religiosidade popular baseia-se no desconhecimento,

    tanto por parte dos romeiros quanto de setores da Igreja, do processo de dominao

    simblica embutido no trabalho de evangelizao. Os romeiros e aqueles que participam do

    trabalho de evangelizao partilham e acreditam no que esto fazendo. Isto um

    paradoxo? Para Bourdieu no. Pensando em termos da dominao simblica ele afirma que

    esta, para ser instaurada, necessita que dominantes e dominados partilhem as mesmas

    estruturas de percepo. O poder simblico supe, ento, o reconhecimento e o

    desconhecimento das regras que o fundamentam.

    A dominao simblica apoia-se no desconhecimento, portanto

    no reconhecimento, em nome dos quais ela se exerce. Um dos

    efeitos da dominao simblica a transfigurao das relaes de

    dominao em relaes afetivas, com a transformao do poder em

    carisma e/ou encanto. Assim, a violncia simblica acaba por

    extorquir submisses que no so percebidas como tal, apoiadas

    que esto em expectativas coletivas. (Bourdieu, 1998, pgs. 170-171)

    Dificilmente se poderia afirmar que o grupo responsvel pelos trabalhos pastorais

    junto aos romeiros tem o interesse explcito em doutrinar, de assumir a postura de, sendo

  • detentores do conhecimento religioso, impor a doutrina a fim de que eles sigam

    corretamente o evangelho e no se deixem envolver, por exemplo, pelo proselitismo

    evanglico. Por outro lado, a Igreja tem sua doutrina, seus dogmas, e no pode se furtar

    misso de lev-los ao povo, afinal, no lhe resta outro papel. Eles acreditam tanto no que

    fazem quanto na forma como o trabalho est sendo feito, sobretudo porque este trabalho

    est legitimado por um embasamento acadmico-cientfico e por longos anos de contato

    direto pautado num esforo compreensivo sobre aquela realidade.

    Por ser velada, doce, eufemstica e acolhedora, a dominao simblica existe sem

    que seja percebida (melhor dizendo: s existe porque no percebida), e a ela no se pode

    referir como estando fundada em interesses explcitos e utilitrios. Dominao e

    dependncia simblica so, nessa medida, elementos mutuamente imbricados.

    O capital simblico garante formas de dominao que implicam

    a dependncia em relao queles que permite dominar: no existe

    com efeito a no ser na e pela estima, o reconhecimento, a crena, o

    crdito e a confiana dos outros, e no pode perpetuar-se a no ser

    enquanto conseguir obter a crena na sua existncia. (...) Essas

    disposies comuns, e a doxa compartilhada que elas fundamenta,

    so produtos de uma socializao idntica ou semelhante, que leva

    incorporao generalizada das estruturas objetivas desse mercado.

    A violncia simblica apoia-se na consonncia dessas estruturas

    cognitivas do habitus dos dominados e a estrutura da relao de

    dominao qual eles (ou elas) se aplicam: o dominado percebe o

    dominante atravs de categorias que a relao de dominao

    produziu e que, assim, esto de acordo com os interesses do

    dominante. (Bourdieu, 1997, pgs. 193-194. Grifos meus)

    Mantm-se a misso evangelizadora, no sentido de que se deve buscar a mudana

    ou a adequao de alguns elementos ao arcabouo da doutrina catlica. O que muda

    significativamente so os pressupostos e a forma como isso vem sendo feito.

    V

    Gostaria de comentar alguns aspectos da viso de Bourdieu sobre o processo de

    dominao simblica. Este processo coloca os fiis como entes passivos, disciplinados,

    conformados s imposies, ainda que veladas, da igreja. Ora, uma das caractersticas

    fundamentais do catolicismo popular a sua dinmica, a sua capacidade de atuar

  • criativamente sobre os elementos do chamado catolicismo oficial, de realizar uma

    bricolagem ou uma produo disseminada. Neste sentido, Oliveira afirma que O

    catolicismo popular incorpora elementos do catolicismo oficial mas lhe d uma significao

    prpria, que pode inclusive opor-se significao que lhe oficialmente atribuda pelos

    especialistas. (1985, p. 135)

    Considero que a anlise de Michel de Certau sobre as prticas ordinrias, sobre as

    representaes cotidianas que os atores sociais elaboram comumente uma srie de

    prticas disseminadas frente a um sistema panptico permite questionar a viso dos fiis

    como entes meramente passivos ou, num sentido mais amplo, de perceber a apropriao

    popular dos elementos impostos pelo catolicismo oficial como uma produo potica (do

    grego poien: inventar, gerar, criar) que, silenciosa, atua simultaneamente aos sistemas de

    produo que se pretendem dominantes. Segundo Certau,

    A uma produo racionalizada, expansionista, alm de

    centralizadora e barulhenta, corresponde outra produo,

    qualificada de consumo: esta astuciosa, dispersa, mas ao mesmo

    tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisvel, pois

    no se faz notar com produtos prprios, mas nas maneiras de

    empregar os produtos impostos por uma ordem econmica

    dominante. (1994, p. 39)

    Neste sentido, os romeiros tem as suas maneiras de fazer, ou estilos de ao que

    atuam num campo que, a princpio, os regulam. Ao afirmar que Nossa Senhora me do

    padre Ccero, remetendo-o a Jesus Cristo, ou que ele uma das pessoas da Santssima

    Trindade, os romeiros se utilizam, se apropriam e ressignificam de um modo muito

    particular a palavra ortodoxa. Eles possuem um modo de introduzir novas formas de ao e

    percepo, um segundo nvel imbricado no primeiro. Ainda para Certau,

    necessrio (...) precisar a natureza dessas operaes por outro

    prisma, no mais a ttulo da relao que mantm com um sistema ou

    uma ordem, mas enquanto h relaes de fora definindo as redes

    onde se inscrevem e delimitam as circunstncias de que podem

    aproveitar-se. Sendo assim, (...) trata-se de combates ou jogos entre

    o fraco e o forte, e das aes que o fraco pode empreender. (Idem,

    ibidem, p. 97)

  • Assim, para se compreender a religiosidade popular, deve-se situar na tenso (ou

    no espao de enfrentamento e aproximaes) entre dois movimentos: de um lado os

    mecanismos de dominao simblica, (que visam tornar aceitveis pelos dominados as

    representaes e os modos de consumo) e, por outro lado, as lgicas especficas em

    funcionamento nos usos e modos de apropriao do que imposto.

    Perante um domnio religioso marcado pelas estratgias do catolicismo oficial, que

    deixou de combater as romarias para tentar canaliz-las, o romeiro tem as suas tticas, as

    suas maneiras de fazer que denotam os diferentes usos possveis frente aos elementos

    oficiais, sendo essa apropriao influenciada pelas suas necessidades, seus desejos,

    intenes e interpretaes pr-existentes.

    A religiosidade popular em Juazeiro, aqui expressa atravs das romarias, vincula-

    se a uma arte de fazer, de jogar e desfazer o jogo do outro, no caso o catolicismo ortodoxo.

    Se por um lado para Bourdieu a dominao simblica s pode ser exercida com a

    colaborao daqueles que esto submetidos a ela, que a sofrem sem saber, porque

    contribuem para construi-la como tal, por outro lado o dilogo com Certau, ao mesmo

    tempo que permite definir a dominao simblica como hegemnica, no a percebe como

    algo inescapvel. O fato dessa dominao ser desconhecida como tal, de ser incorporada e

    legitimada no implica em dizer que todos estejam sempre em conformidade com ela. Da a

    possibilidade de se pensar em tticas (conscientes ou no) frente ao sistema simblico

    dominante. No caso em tela, pensar a relao Igreja/romeiros como algo unilateral

    obliterar a percepo dos diferentes modos de consumo encontrveis em Juazeiro, na

    medida em que as produes disseminadas, no capitalizveis das devoes populares

    podem ser apropriadas e tornadas capitalizveis. Na realidade, parte do trabalho de

    evangelizao como o realizado atravs da reunio das trs est pautada neste processo de

    apropriao.

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