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76 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009. LÓRI E O MAR: UMA INICIAÇÃO Renata Tavares [email protected] Vitória-PR 2009

Renata Tavares renata.ribeiro.tavares@gmail

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76 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009.

LÓRI E O MAR: UMA INICIAÇÃO

Renata Tavares

[email protected]

Vitória-PR

2009

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77 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009.

LÓRI E O MAR: UMA INICIAÇÃO

Renata Tavares1

[email protected]

RESUMO: Este trabalho propõe uma interpretação poética de uma passagem do romance

Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, que visa demonstrar o

quanto as questões levantadas pela autora são pertinentes às discussões da filosofia

contemporânea, pois colocam em relevo justamente a liminaridade do humano e sua

necessária existência como busca de si mesmo.

Palavras-Chave: Aprendizagem - Entre-ser - Paixão.

O romance Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, é,

como todas as obras desta autora, uma fonte inesgotável de questões acerca do homem, e do

que há de mais caro e essecial a todo homem, o “humano” que buscamos e que não sabemos

dizer. Clarice, com singeleza de pintora, traça duas histórias, dois seres humanos,

delicadamente, tão delicadamente quanto toca em cada um de nós, fazendo reconhecer no

amor nossa mais fundamental busca de sentido e desejo de realização. E com estes mesmos

traços mostra a dificuldade do caminho de quem sente. Mais que isso, de quem enfrenta esta

busca e aprende a se buscar.

Um dos momentos mais emblemáticos do romance é a cena de Lóri junto ao mar. É o

momento da iniciação.

É um costume antigo das religiões que, uma vez decidido a trilhar um caminho, o

neófito passe por um rito de iniciação, do qual o batismo é o exemplo mais comum. E por que

há este rito? Ele significa sempre a morte do antigo ser, para que haja um esvaziamento, e um

novo espaço, em que possa surgir um novo ser. Este é o sentido do verbo teleutai, em grego,

fazer morrer. A morte é a entrada de uma passagem, onde se deixa as vestes, as posses e o

próprio corpo para iniciar um caminho desconhecido, do qual se pressente levar ao ponto

onde se quer ou se necessita chegar.

Mas o que é um rito? O rito é o vigor de manifestação do mito na palavra, na dança, 1 Professora colaboradora do colegiado de filosofia da Faculdade Estadual de Filosofia e Letras de União da Vitória – PR.

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78 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009. na música, etc. O rito traz, assim, toda a força do mito, toda a presença do mito. No rito somos

postos na presença do mistério, diretamente, sem representação nem mediação. Um rito não é

símbolo. Não precisa de elementos além de si mesmo. Ao contrário, diz por si mesmo, coloca

plenamente na presença do sagrado. Rito é, assim, experienciação do sagrado. Não é uma

mera experiência sensorial, nem intelectual. Não pode ser vivido senão como o vigor da

tensão mito/rito

Um rito de iniciação é a experienciação daquele ser que que se abre pela primeira vez

para a presença do sagrado. Esta palavra sagrado não tem aqui um significado dentro de uma

teoria teológica. Como fonte de vigor de toda busca religiosa, o sagrado é aquele inominável,

o isto, o thaumátzein, a admiração - o tudo um do dito de Heráclito.

O diálogo entre Lóri e Ulisses a leva ao momento de tensão máxima, diante do

thaumatzein. Lóri percebe que terá de deixar morrer seu antigo ser, que há muito

“funcionava” dentro do “sistema de pessoa inteiramente só”. Apesar da dor que significa o

viver contendo o sentir e negando as possibilidades de viver, ela não quer deixar o conhecido.

Abrir-se ao thaumatzein, romper com o sistema do individualismo mais profundo é muito

difícil. Parece mais difícil do que continuar contendo a dor e semi-vivendo. É quando

finalmente diz:

- Parece tão fácil à primeira vista seguir conselhos de alguém. Seus conselhos, por exemplo. Já agora falava sério: - Seus conselhos. Mas existe um grande, o maior obstáculo para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. É como enorme esforço que consigo me sobrepor a mim mesma. Ela jamais falara tantas palavras em seguida. Por isso, queria evitar o principal. De repente, porém notou que se não dissesse o final, nada teria dito, e falou: - Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes, por uma palavra tua ou por uma palavra lida, tudo se esclarece. Sim, tudo se esclarecia e ela surgia de dentro de si mesma quase com esplendor.2

Seguir os conselhos de alguém era o que Lóri procurava antes, e é a nossa postura de

busca de certezas. De fato tentara se enganar pensando que Ulisses poderia ensiná-la algo de

um estilo de vida filosófico ou literário. Mas logo percebeu que não poderia seguir conselhos,

e inclusive, irritava-se com a inutilidade desta tentativa diante do que realmente buscava. O

que realmente buscava era algo que não só não se resolvia com fórmulas prontas, mas, além

disto, esbarrava na maior dificuldade que pode um ser humano ter: realizar-se como aquilo 2 LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 53.

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79 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009. que é, no horizonte do que ainda não é. “Eu sou um monte intransponível no meu próprio

caminho” remete, mais uma vez, à tensão humana do entre. O entre-ser vige no aberto, que é

possibidade tanto da maior solidão quanto da maior entrega.

Da solidão, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres nos dá uma série de

imagens-questões. A infértil e desesperada tentativa de cortar a dor reaparece na imagem de

Lóri pintada demais, como se fosse uma prostituta, na tentativa de esconder seu rosto sob uma

máscara, e no reconhecimento de sua incapacidade de ligar-se à terra, com as crianças na

escola, como se não estivesse preparada para a ligação que para a mulher significa ser mãe. A

imagem se repete mais uma vez no jogo que faz com Ulisses o tempo todo, dizendo que quer

mas não quer, e que não quer, mas quer. Exibe o corpo e se pinta, ao mesmo tempo em que se

comporta como uma virgem. Seduz e se retira. Na piscina, demonstra, além de ter medo de

mostrar sua alma, que ainda tem vergonha de possuir um corpo.

Mas quais são os esforços de Lóri para romper com este sistema de solidão, para

ligar-se à terra, para encontrar-se consigo mesma, humana, corpo, alma? Ela lutava

bravamente contra si mesma, e contra a necessidade de se encontrar. Ulisses aconselhando e

ela querendo e não querendo. E ele esperando. Pois esta conquista não é realmente fácil. São

pequenos passos, são tentativas e embates que não resultam tão facilmente na entrega à

alegria e à liberdade. Em primeiro lugar, a tentativa é penosa porque estamos absolutamente

imersos num mistério, naquilo que toca nosso ser. É a nossa dor: “viver é um negócio muito

perigoso”.3 Isto já é desde sempre a nossa condição. Mas, decorrente disto e como se não

bastasse, há ainda, dentro de cada um de nós, as marcas de uma longa cultura contra a alegria

e a liberdade. Há, dentro de cada um de nós, a lembrança do medo, da tortura, da real

manifestação do bruto poder de dominação do corpo e da alma, inscrita em nossas células.

Quando Lóri fala em seguir conselhos, diz: parece fácil. Dentro da nossa cultura

comunicacional, esta é a resposta mais óbvia, buscar uma receita e seguir os passos em busca

de um objetivo. Mas que cultura comunicacional é esta? É a do mundo em que se pensa, age,

vive no horizonte da técnica, isto é, do ser enquanto disponibilidade para gerar mais e mais

recursos para manter em andamento este mesmo mundo da técnica. Neste sentido, a natureza

é recurso natural, e o homem é recurso humano. Tudo se planifica na disponibilidade, e o

homem, neste horizonte, tende a se ver na planificação, sem necessidade de auto-conquista.

Por sua vez, a explosão de um mundo como mundo da técnica só pode se dar a partir de certas

decisões primordiais, como pensar o homem como sujeito possuidor da natureza, ou mesmo

3 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 26.

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80 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009. muito simplesmente como ser capaz de eliminar a angústia diante do mistério estabelecendo

respostas. A simplificação dos sentimentos, a explicação simplória da vida a que se mantém

preso o homem de hoje, para não se questionar, não muda a intensidade com que o real se

manifesta em seu infinito de possibilidades.

Sentindo isto, Lóri diz: seguir conselhos não é tão simples assim. Normalmente,

conselhos não passam de respostas pré-estabelecidas, conceitos que podem nos parecer

desejáveis, porém, como não se dão no envolvimento de nosso próprio ser, como não são uma

correspondência própria de cada um de nós ao apelo do dar-se da realidade. O horizonte de

um homem que segue conselhos não pode ser o horizonte do humano. É ainda muito pouco. O

humano continua sendo uma enorme dificuldade, um monte intransponível.

“Mas, de repente, a uma palavra tua ou uma palavra lida, tudo se esclarece.”4

Como algo se esclarece para nós? Como se dá este surgir de dentro de nós mesmos

quase com esplendor? É aí que saem de cena todas as respostas. E começa um caminho em

que são as palavras que fazem surgir, e não mais a exigência que nós encontremos a palavra

correta. “A uma palavra tua, tudo se esclarece.” Como se esclarece? É o próprio

desvelamento, a que os gregos, nomeavam aletheia. É um feixe de luz, na escuridão imensa.

Então se tem de repente uma pequena amostra do que seria encontrar-se, um vislumbre do que

seria realizar-se enquanto ser humano. “São manchas cósmicas que substituem entender.”5

Na via contrária de toda a cultura ocidental, a obra de Clarice nos toca com a

possibilidade de intuir o humano, ao invés de entendê-lo segundo parâmetros e conceitos. À

primeira vista isto nos soa como uma espécie de fuga daquilo que realmente leva à verdade,

como se quiséssemos apenas nos deixar levar por uma crença indemonstrável. Mas se nos

deixamos tocar, percebemos que Clarice nos coloca diante de uma possibilidade

extremamente concreta: a de viver o humano, como busca, caminho, travessia.

O esplendor de surgir de dentro de si mesma é a luz que não esconde as trevas. É a

resposta que, ao invés de pretender eliminar, põe em manifesto cada vez mais a pergunta de

onde surge. É uma aceitação ainda que momentânea do mover-se entre questões. É um breve

sopro da liberdade que nos constitui. Mas como fazer para surgir de dentro de si mesmo em

toda a grandeza do telos do humano?

O começo é uma prece. Ulisses, que nada tinha de religioso, surpreendentemente

pergunta a Lóri: Você sabe rezar? “Não rezar o padre-nosso, mas pedir a si mesma, pedir o

4 LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 53. 5 Op. cit. p. 44.

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81 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009. máximo a si mesma?”6 Não, ela nunca havia pedido. Havia reinvindicado, havia exigido, mas

nunca se colocado humildemente diante do mistério, para pedir, pedir o que realmente

importa. “Pede-se vida? Pede-se vida. Mas já não se está tendo vida? Existe uma mais real. O

que é real?”7

Sua dor de viver, de, nessa dor, saber que existe uma vida mais real a leva a desistir

da prepotência de sozinha encontrar uma saída, e a pedir. E a sua prece é a beleza

extraordinária que se dá no ser humano quando, convencido de sua pequenez diante do

universo, mas certo do infinito dentro de si, apenas fecha os olhos e se entrega:

Alivia minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como que eu como, o sono que eu durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.8

Um momento de alívio, a palavra emocionada, o gesto infinitamente prolongado da

mão que busca o que ali já não está mais. Esta é a a prece, o silêncio que esvaziou o espaço,

onde agora a mão se estende sozinha, na plenitude do que é.

Lóri está agora onde nunca esteve antes: concentrada, humilde, voltada a seu próprio

ser sem intermediários, sem insinuações, sem a tentativa de parecer o que não é.

Pode parecer estranho, mas o quanto a presença no nada, a suave aceitação do vazio

nos preenche! Há muitos séculos atrás, Heráclito nos disse: “Physis kryptestai philei.” Isto

significa: a excessividade poética ama velar-se. Excessividade poética é tudo o que se dá e se

constitui como mundo, no dar-se da linguagem. Mas tudo o que se dá ama velar-se. É próprio

do que se dá, o velar-se. 6 Op. cit. p. 53. 7 Op. cit. p. 55. 8 Op. Cit. p. 56.

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Condição e mistério do mundo: mas nós não conseguimos admitir este velar-se.

Se admitíssemos, talvez víssemos com mais frequência que é ele que nos preenche,

na sua magnitude, na sua presença enquanto infinito. Não, diz Lóri, que eu não tenha

vergonha de desejar que na hora da minha morte haja um ser amado para segurar a minha

mão. Que eu não tenha mais tanta vergonha de admitir o que sou, que tenho medo da morte,

que o infinito é demais para a minha capacidade humana. Se a morte é meu telos, que eu

aceite sem prepotência e sem heroísmo, num diálogo protegido por uma mão humana amiga.

É tão simples o pedido: só precisamos uns dos outros.

Não é de outra maneira que Lóri precisa de Ulisses e Ulisses de Lóri. No horizonte

deste pedido, compreendemos mais profundamente o amor que roga, humano, a presença de

um outro ser. É a dor/amor em que desde sempre nos damos, que já estendemos os olhos a

nossos pais, quando pequenos, e a cada dia de nossas vidas buscamos uns aos outros. E

podemos tentar nos enganar com um falso amor. Mas, cedo ou tarde, reconhecemos que um

falso amor não nos basta. A dor de ser não permite enganos. Ela só se cura na plena presença

da verdade do amor como entre, como liberdade e doação. Por isso, Lóri e Ulisses não se

satisfazem em viver um amor que não está pronto. Eles querem um amor de verdade, o

impossível, e precisam realizar-se muito além do que conhecem e têm de certezas acerca de si

mesmos. Escutaram, um no outro, e em si mesmos, o apelo do pathos que é viver. E já não

pode haver mais fuga. Lóri então se aquieta, e diz a prece que talvez tenha buscado dizer

durante toda a sua vida. É um esvaziar-se, o esvaziar-se que prepara o nascimento do novo

ser. Na lua que que vela, a noite absolutamente escura, o silêncio se torna maior e mais vivo,

para dele nascer o dia.

O ódio de Lóri, que era a imensa resistência a todo este apelo, começa a se desfazer.

Como se aos poucos se preparasse para iniciar-se numa nova vida. Um vislumbre dessa nova

vida havia se dado na imagem de Ulisses na piscina. Lóri sentira ali “um primeiro passo

assustador para alguma coisa.”9 É quando, desarmada, como uma criança “em encantamento

pelas cores orientais do Sol que desenhava figuras góticas nas sombras”10 se dá conta da

beleza de Ulisses. Da beleza que havia em Ulisses apenas por ser um homem, e existir nele

uma calma virilidade. Lóri descobre “o sublime no trivial, o invisível sob o tangível”11. É é

como se de repente descobrisse

(...) que a sua capacidade de descobrir os segredos da vida natural

9 Op. cit., p. 70. 10 Op. cit., p. 70. 11 Op. cit., p. 70.

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ainda estivesse intacta. E desarmada também pela leve angústia que lhe veio ao sentir que podia descobrir outros segredos, talvez um mortal. 12

Descobrir o sublime sob o trivial, o extraordinário em uma experiência ordinária é,

sem dúvida, uma experienciação de felicidade. De repente, nesta experienciação, Lóri

estranha a si mesma. Não está mais no fulcro da dor. Está apenas vivendo um momento em

plena presença. Neste estranhamento, pode dizer, encantada, humilde, e pela primeira vez:

“estou sendo”.

Estou sendo, diz Lóri. Estou sendo, diz Ulisses. Nisto, há um encontro. Porque o

estar sendo não é mais banal, como fazemos parecer todos os dias. Dois seres humanos se

encontram quando encontram-se no humano, e o humano é presença, vigor do entre-ser. O

entre nunca se apresenta como banal, ao contrário, toda banalidade o esconde. Toda tentativa

de conter a dor deste entre tende simplesmente a diminuir a ambigüidade, tornar tudo

conhecido e planificado. E, na maravilhosa riqueza da realidade que se dá, da physis que se

oferece, velando-se, nada é simplesmente plano e sem vigor.

E é então que se dá o momento da verdadeira iniciação: a entrada no mar.

Estamos mais uma vez diante da a imagem-questão água. Da ausência da água em

sua vida até ali, Lóri passa a desejar mais que tudo matar aquela sede. E agora, ela está diante

do mar, no momento mais silencioso do dia e na sua maior solidão. Somente ela, uma mulher,

toda a sua humanidade sentida a cada contração de seu coração, e a imensidade de

possibilidades no mistério do mar.

O que é o mar? O mar é a imensidão, é horizonte. E horizonte é aquilo que, quanto

mais caminhamos em sua direção, tanto mais ele se afasta, e mostra a tensão do ilimitado no

limite: o limite de nossa visão, no ilimitado do que não podemos ver. E assim, o mar é o lugar

das grandes travessias. A travessia de Ulisses, o barqueiro, no mar cheio de perigo. A maior

travessia de todas, aquela que se dá dentro de nós: a tempestade que tantas vezes destrói

nossos corações, ou a calmaria que alcançamos quando estamos em paz.

Segundo o Dicionário de Símbolos, “as significações simbólicas da água podem

reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de

regenerescência.”13 Todas elas remetem a uma idéia de possibilidade: toda vida surge da

12 Op. cit., p. 71. 13 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007, p. 15.

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84 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009. água, toda força e fecundidade dela dependem. Ao mesmo tempo, submergir nas águas é ser

absorvido no indiferenciado, no todo. E emergir dele é reencontrar-se como ser diferenciado,

mas renovado, renascido, revigorado por uma fonte de energia doadora de infinitas

possibilidades.

Esta imagem da indistinção primordial de onde nasce a vida nos remete ao grande

mistério da realidade que se doa, e nos entrega ao silêncio do sentido desta doação. Por isso, a

entrada no mar, que durante o dia, na balbúrdia dos divertimentos, parece algo superficial, é,

na verdade, um encontro do homem com tudo o que ele não conhece, mas do qual faz parte,

do qual vive, no qual espera, numa espera sagrada, numa permanência junto a. O homem

habita, nesta permanência. Esta permanência é seu modo de ser.

Mas não somos a todo tempo conscientes deste nosso permanecer e habitar junto às

coisas e no aberto misterioso da doação. Quando isto acontece? Apenas quando tudo está em

silêncio, como num começo de manhã, e nos assustamos diante da grandeza do mar, um susto

e uma admiração diante do ordinário do que sempre esteve ali, do que sempre nos pareceu

determinado e coerente.

Na praia vazia, a mulher diante do mar, nada há de coerente. Há apenas: ser. Como

diz Clarice: dois seres absolutamente ininteligíveis, incompreensíveis: a mulher e o mar.

Diante do mar, o entendimento frio, a compreensão, revela seu limite. O cão preto nas areias é

mais livre, porque é o mistério que não se indaga. O incompreensível se revela mais pleno, e

atração da mulher para ele é forte demais, para que ela resista.

Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.14

Finalmente, a necessidade do encontro se torna maior do que a dura resistência da

compreensão. Só quando esta necessidade chega ao limite e irrompe em coragem, é que se dá

um consolo da dor:

Seu corpo se consola de sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cãos nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada.15

A dor que não podia ser curada se apresenta como coragem de entrar no mar, de 14 LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 , p. 78. 15 Op. Cit., p. 78.

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85 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009. adentrar o silêncio frio. Clarice chama isto de cumprir uma coragem:

Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem16.

Por que cumprir? Porque não foi Lóri que escolheu que a vastidão do mar fosse

uma realização da Natureza. É ela que está inscrita nesta realização antes de tudo. Mas o mar

é uma realização da Natureza apenas. Como toda realização da Natureza, é o dar-se do Ser,

apenas, plenitude de realização, presença, sem a dor da indagação, que é exclusivamente

humana. Sendo humana, agir exige coragem. Ela tem que prosseguir na dor. Não pode se dar

como realização da Natureza, apenas, mas precisa levar a si mesma à plenitude do que é.

Lóri aceita: “Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e

agride em ritual as pernas.”17 Esta aceitação é um susto profundo. Nada é tão assustador do

que o frio e o silêncio batendo contra um corpo no vazio de uma madrugada. Nele, Lóri

experiencia o que não pode dizer em palavras: estar plenamente vivendo, de repente, inteira,

se lançando em frente dentro de si mesma, ao invés de recuar e se proteger como sempre

havia feito. Não, ao contrário, ela se lançava contra o mais desafiador, o mar gelado, o

silêncio, os seus próprios limites de indivíduo. E aceitava exatamente o que é ser: tensão de

um corpo rígido e ao mesmo tempo frágil contra o mar absolutamente poderoso.

A entrada no mar é o momento em que Lóri toma posse de si mesma, entrando

em contato com o humano que a faz humana. Ela está no pleno vigor de sua ação, escolhendo

cumprir o telos do apelo mais profundo que se dá aos seres humanos. Isto vai de encontro,

porém, à idéia que fazemos de posse, como se o humano fosse algo que se pudesse ter ou não

ter, escolher ou não escolher. Apropriar-se de si não é o encontro de nada que se precise

inventar ou obter, ao contrário, é apenas reconhecer o horizonte do ser, e o entre que somos.

Por isso, a apropriação de si mesma é uma entrega:

A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido secreto.18

16 Op. Cit., p. 79. 17 Op. Cit., p. 79. 18 Op. Cit., p. 79.

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86 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009.

A oposição que é um pedido secreto é o movimento da realidade em sua

manifestação poética, em seu devir. É uma oposição que não configura aprisionamento, ao

contrário, diz da maior liberdade que é a realidade em constante movimento. Ser, e ser

humano, precisa ser entendido no horizonte deste pedido secreto, a não ser que nos

contentemos com faces e disfarces do humano, que queiramos excluir do humano o mistério,

como temos feito até hoje. Lóri experiencia a possibilidade de adentrar o mistério, e isso

significa adentrar sem medo o humano. Por isso parece despertar de um profundo sono

secular. Torna-se alerta, torna-se um ser humano de maneira plena:

O caminho lento aumenta sua coragem secreta – e de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo tudo líquido deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé – fertilizada.19

E isto é “uma alegria fatal”. Ela não precisa mais de coragem para adentrar a

realidade, agora parece uma iniciada. “Agora já é antiga no ritual retomado que abandonara

há milênios”.20 Pode brincar com a água e beber o mar com a concha das mãos. E ficar “toda

igual a si mesma.” 21

Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois sabe que terá tudo de novo.22

O que Lóri sempre temeu era a experienciação do amor, porque esta é como o susto

do mar gelado e silencioso. Mas uma coragem antiga nos seres humanos – o apelo que, como

Ulisses, ouvimos – a leva a se entregar. E como quem, pela primeira vez, se assusta e se

encanta na dor e prazer do amor, Lóri sabe que não importa o que tente fazer ou conter: ser

amante é saber que se pode ter, de alguma maneira e em algum momento que não se sabe,

tudo de novo.

E agora, pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro, seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.23

Perigo da vida que se realiza se dá constantemente na liminaridade do entre. Perigo de 19 Op. Cit., p. 79. 20 Op. Cit., p. 79. 21 Op. Cit., p. 80. 22 Op. Cit., p. 80. 23 Op. Cit., p. 80.

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87 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 4, Edição 8, Ano 2009. não estar mais atrelado aos conceitos e amarras que perfazem o estreito campo de visão de

nossa vida cotidiana e abrir-se ao horizonte do ilimitado. Perigo, afinal, de ser: de ser humano

no horizonte do impossível.

REFERÊNCIAS

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