Repensando as uniões inter-raciais no Brasil

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    REPENSANDO AS UNIES INTER-RACIAIS NO BRASIL

    Moutinho, Laura.Razo, cor e desejo.So Paulo: EditoraUnesp, 2004. 450 p.

    Repensando as unies inter-raciais no BrasilRethinking interracial unions in Brazil

    Moema de Poli

    Pesquisadora do IBGEAv. Trs, 671 casa 1 Camboinhas

    24358-000 Niteri RJ [email protected]

    O livro de Laura Moutinho, que foi sua tese de doutorado em An-tropologia no Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antro-pologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2001, leitura obrigatria para aqueles que se interessam pelo estudo das relaesraciais no Brasil. Com toda certeza agradar aos leitores porque, ao elegercomo tema os casais inter-raciais ou heterocrmicos, aborda-o a partir dediferentes fontes e enfoca demografia, literatura e pesquisa de campo com-parativa, no Brasil e na frica do Sul. O estudo , portanto, exaustivo etem a pretenso, acredito, de atingir o tema por vrias perspectivas deanlise, esmiuando uma discusso to antiga quanto a da idia de nao

    brasileira construda a partir da miscigenao. Como diz Peter Fry noprefcio, um tema do qual muito se fala mas que pouco se conhece, efeti-vamente, atravs de pesquisa e anlises sociolgicas.

    O estudo comea pelas estatsticas, mostrando como os dados de cordos censos demogrficos os primeiros estudos datam do censo de 1980

    abalaram as convices, com base na prpria historiografia brasileira,a respeito da magnitude da miscigenao racial. As estatsticas mostra-ram que as unies inter-raciais (ou heterocrmicas) so, na verdade,mais reduzidas do que se imaginava, e que o nosso padro de casamento endogmico (em torno de 80 por cento das unies acontece dentro dosmesmos grupos de cor). So essas estatsticas que iro fornecer os subs-dios para as questes cujas respostas a autora vai buscar.

    Em primeiro lugar est a constatao de que o supervit de mulhe-res brancas no mercado matrimonial faz que o casamento inter-racialdestas com os homens pretos e pardos seja um pouco mais freqenteque o contrrio (unies de mulheres pretas e pardas com homens bran-cos). As estatsticas tambm oferecem pistas indicando que o merca-

    do matrimonial sofre influncias das posies de classe social, j que ospadres de endogamia racial so mais elevados medida que a posiosocial dos indivduos se eleva. Tambm verdade que esses padres deendogamia so relativamente estveis ao longo do tempo, uma vez quesuas propores tm se mantido, atravs dos censos dos ltimos cin-qenta anos, praticamente inalteradas. Laura Moutinho cita os estu-dos da professora Elza Berqu sobre o estado conjugal das mulheressegundo a cor, que apontam para o alto celibato entre as mulherespretas porque estas se apresentam num percentual mais elevado en-tre as solteiras. Nesse sentido seria interessante que a autora tambmtivesse observado os dados sobre os arranjos familiares, que a meu veresto mais prximos da condio real de conjugalidade das mulheres,uma vez que aquelas que se declaram solteiras podem, de fato, estar

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    vivendo em unio conjugal. Refora esse esse argumento o fato de que oscasamentos formais (legais) tm perdido bastante o significado nas lti-mas duas dcadas, o que tem se refletido at mesmo sobre o status legaldas chamadas unies consensuais.

    De qualquer forma, a questo sobre a qual o estudo pretende sedebruar est bem colocada: seriam apenas os aspectos demogrficosos responsveis pelos percentuais mais elevados de unies de mulhe-res brancas com homens mais escuros? Que valores e representaesesto, de fato, envolvidos nesse tipo de arranjo afetivo-sexual? o quea autora pretende buscar, e para isso sua pesquisa vai alm dos casaisque coabitam (aqueles que esto presentes nas estatsticas) para investi-gar os relacionamentos heterocrmicos de forma mais ampla incluindonamoros, casos e rolos, na terminologia de seus entrevistados, partindoda hiptese de que as chamadas diferenas raciais esto referidas a deter-minados atributos erticos, estticos e sexuais, e no somente capa-cidade intelectual ou moral.

    Antes de chegar s entrevistas dos casais inter-raciais, entretanto, aautora vai discutir os clssicos da historiografia social brasileira queabordaram a questo da mestiagem como um problema para a nao.So eles: Nina Rodrigues (As raas humanas e a responsabilidade penal no Bra-sil); Oliveira Vianna (A evoluo do povo brasileiro); Paulo Prado (Retrato doBrasil); Gilberto Freyre (Casa-grande e senzala) e Srgio Buarque de Holanda(Razes do Brasil). A base para suas anlises John Norvell, que escreveuem A brancura desconfortvel das camadas mdias brasileiras1 sobre osparadoxos da mestiagem que, desde a publicao de Retrato do Brasil, de

    Paulo Prado (1928), permeiam o imaginrio da nao brasileira at os diasde hoje. A palavra de ordem que define esse pensamento hierarquia: umahierarquia tanto de gnero quanto de raa.

    Em Paulo Prado, Gilberto Freyre e Srgio Buarque est presente aviso de um Brasil que se constri sob o domnio das paixes e dosexcessos, uma nao literalmente construda na cama (citandoNorvell), definida pelo sexo e pelo desejo do casal miscigenador: o ho-mem branco e a mulher negra (ou mulata). Um par heterocrmicodiferente daquele colocado como mais significativo segundo o perfilestatstico exposto inicialmente.

    Dos clssicos do pensamento social brasileiro, a autora passa aos clssi-cos da nossa literatura ao analisar aqueles que escreveram conhecidos ro-mances abordando relacionamentos afetivo-sexuais inter-raciais. Partindo

    de Alusio Azevedo (O cortio) e Adolfo Caminha (O bom crioulo), ambos doperodo naturalista, e passando por Jorge Amado, representante do ro-mance regionalista (Jubiab e Gabriela, cravo e canela), chega at NelsonRodrigues (na biografia O anjo pornogrfico, de Ruy Castro) e Abdias doNascimento (Anjo negro e Sortilgio) buscando marcar os valores e repre-sentaes sobre raa e erotismo e as diferenas entre os sexos presentesem suas obras. Nos dois primeiros romances, ambientados em fins dosculo XIX, os dramas afetivo-sexuais inter-raciais so acionados para

    1 Em Maggie, Ivonne; Rezende, Cludia B. Raa como retrica: a construo da dife-rena. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001.

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    restabelecer as hierarquias entre raa, gnero, classe e nao num meiosocial de grande efervescncia aps a Abolio e o advento da Repblica.EmJubiab, de Jorge Amado, fica patente que o par homem negro/mu-lher branca um contato tabu porque irrealizvel na vida real. E emGabriela, cravo e canela tem-se uma reatualizao do mito de origemfreyreano. Tanto em Nelson Rodrigues quanto em Abdias do Nascimentodesenha-se a impossibilidade de uma relao afetivo-sexual inter-racial,especialmente aquela entre o homem negro e a mulher branca, que seconfirma enquanto uma relao tabu. A mesma impossibilidade se refe-re miscigenao como estratgia para o embranquecimento, que apare-ce, sobretudo em Abdias, como um engodo ou iluso, algo destrutivo doser negro, cujo nico caminho de afirmao social deve ser o da suaafricanidade proporcionada pela religio o candombl.

    Uma questo bastante interessante ressaltada por Laura Moutinhoao agregar as anlises da historiografia s da literatura: a relao en-tre o homem branco e a mulher mestia ou negra presente na primeira construda fora do casamento formal e constitutiva da nao brasileira,e refora uma estrutura de dominao de gnero e raa, enquanto a rela-o inversa do casal miscigenador ameaa essas hierarquias, colocando anu as diferenas de classe, j que o casamento colocaria o homem negrono lugar ocupado pelo branco na estrutura de dominao social e econ-mica. Interessante observar tambm que o casal inter-racial aquele mar-cado pelo desejo e cercado pelo erotismo. Este ser o objeto de um cap-tulo no qual a autora retorna aos clssicos da sociologia ps-colonial quefazem referncia explcita ao casal homem negro/mulher branca. So

    eles: Gilberto Freyre (agora em Sobrados e mocambos); Donald Pierson (Bran-cos e negros na Bahia); Roger Bastide (Manifestaes do preconceito de cor);Florestan Fernandes (Cor e estrutura social em mudana); Costa Pinto(O negro no Rio de Janeiro); Carl Degler (Nem preto nem branco) e Thales deAzevedo (Democracia racial). Ainda que a autora perceba em alguns o vismarxista e em outros uma aproximao maior com o pensamentoweberiano, em todos os autores a relao estabelecida entre raa,mestiagem e gnero no pode prescindir da idia de prestgio e de suarelao com a noo de classe social. Orientam sua anlise as observaesde Ortner e Whitehead sobre gnero, sexualidade e reproduo em que asdiferenas de gnero so representadas em termos de oposies binrias natureza (mulher)/cultura (homem); privado (mulher)/pblico (ho-mem) , que organizam relaes de status e prestgio. Na opinio de Laura

    Moutinho, o que vale para as anlises de gnero tambm serve para asanlises de raa/cor onde esses mesmos elementos podem ser agregados.

    Nesse sentido, a autora percebe que os principais elementos presentesnas anlises dos referidos autores a respeito dos relacionamentos afetivo-sexuais inter-raciais so o erotismo e a mobilidade social. O erotismo es-taria mais presente nas relaes no formais (amasia-mento, concubinato,prostituio) caracterizadas predominantemente pelo casal homem

    branco/mulher negra ou mulata, enquanto a mobilidade social seria ooperador lgico da relao entre o homem negro e a mulher branca numarelao formal de casamento. Nesse caso, a aquisio de prestgio socialvia educao formal conduziria o homem negro agregao de statusatravs da unio com a mulher branca que lhe abre a possibilidade do

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    embranquecimento. Segundo Laura Moutinho, a articulao entre core prestgio social conduzida pelos diferentes autores segundo sua noode classe social. Os que esto mais prximos de uma viso weberiana(como Donald Pierson e Thales de Azevedo) interpretam a possibilidadede manipulao de certos atributos de prestgio como forma de compen-sar o estigma da cor negra e ingressar em certos grupos de status. Aque-les que esto mais prximos de uma viso marxista j interpretam essecampo de manobra como uma estratgia de cooptao individualizadados mulatos para o grupo branco que dificulta a construo de umaidentidade negra e revela o carter discriminatrio da miscigenao pre-sente na idia de embranquecimento nela embutida. Todos estariam tra-

    balhando de forma mais ou menos explcita com a relao estabelecidaentre o homem negro e a mulher branca e com a possibilidade de mano-

    brar e compensar o estigma da cor com elementos de prestgio. Entreesses autores, diferencia-se ainda a viso da mulher negra ou mulata:elas agora so abordadas mais como vtimas do branco conquistador,enquanto os autores anteriormente analisados as viam como erotizadas.

    No meu entender o mais interessante vem a seguir. Trata-se da pesquisade campo realizada no Rio de Janeiro com pessoas que mantm relaciona-mentos afetivos heterocrmicos. Afinal, o que falta na literatura abor-dada, lembra a prpria autora: a voz, a prpria percepo daqueles quevivenciam amores e prazeres inter-raciais. Na maioria dos casos LauraMoutinho no conseguiu entrevistar ambos os membros do casal. O moti-vo: receio do confronto entre as idias de cada um a res-peito do seu relacio-namento. Ela enfatiza que seu objetivo no bvio mostrar que existe

    ainda preconceito contra casais inter-raciais. O que pretende investigaro peso relativo da corna constituio das identidades e assimetrias entre ho-mens e mulheres no mercado dos prazeres carioca, sobretudo na relaoentre homens negros e mulheres brancas.

    Primeiramente descreve as dificuldades que enfrentou para fazer apesquisa; em seguida analisa o peso relativo da cor/raa nessas rela-es inter-raciais no que se refere a sociabilidade, famlia, parentescoe amizade dos informantes; na terceira parte aborda a correlao entreos desejos erticos inter-raciais e os discursos das normas sociais;depois apresenta os valores e as motivaes dos prprios informantesque orientam suas escolhas afetivo-sexuais e, por ltimo, a relaoentre cor negra e erotismo representada pelo fantasma da prostitui-o que paira sobre as mulheres negras e pelos atributos erticos que

    pesam sobre o homem negro. Foram trinta entrevistas, 14 com ho-mens (sete no-brancos e seis brancos) e 16 com mulheres (dez bran-cas e seis no-brancas), a maioria entre 20 e 35 anos de idade, buscan-do recuperar trajetrias, histrias e expectativas sexuais e afetivas deseus relacionamentos afetivo-sexuais heterocrmicos.

    Entre as dificuldades encontradas, algumas so j bastante conhe-cidas dos estudiosos da questo das relaes raciais no Brasil:

    a) na viso dos informantes as famlias no tm cor nem raa, somisturadas;

    b) freqentemente os negros tm mais dificuldade que os brancos em fa-lar sobre preconceito racial, e as percepes das desigualdades e hie-

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    rarquias com base nas diferenas de cor/raa no esto presentes otempo todo para os informantes;c) a cor das pessoas relevante em alguns momentos, mas no em

    todos, seja do ponto de vista da sociedade seja do ponto de vista doindivduo;

    d) nesse campo as formas de abordagem so fundamentais, podendoimplicar a obteno ou negao da resposta esperada um verda-deiro jogo de luz e sombra, como revela a autora;

    e) talvez o mais importante entre todos os fatores sejam os problemasinerentes a toda e qualquer forma de classificao com base na corou raa no Brasil, ou seja, nem todos aqueles classificados comocasais inter-raciais pelo pesquisador foram assim percebidos pelos

    prprios casais, diz a autora;f) uma outra questo j abordada em outros estudos se refere percep-

    o equivocada de que o preconceito racial menor entre as camadassociais mais baixas.

    Laura Moutinho constata que os relacionamentos inter-raciais so-frem uma maior resistncia familiar entre seus entrevistados perten-centes s camadas de nvel econmico mais baixo.

    As anlises de alguns discursos conduzem a autora a concluir que a possibilidade do convvio com negros numa situao de igualdadesocial, compartilhando as mesmas redes de solidariedade, que justifica asinteraes em termos de amizade, sexo e amor inter-racial. De qualquerforma, nesse tipo de relao afetivo-sexual heterocrmico a cor sempre

    um elemento importante e central na construo dos gneros masculino/feminino, e o erotismo vinculado cor negra aparece como uma moedade troca fundamental nesse mercado. No caso do homem negro, ele freqentemente citado nas entrevistas com mulheres brancas que man-tm relacionamentos afetivos-sexuais heterocrmicos como mais quentes,mais viris e toda uma srie de superlativos que demarcam um desempe-nho sexual superior ao do homem branco. Em contrapartida, est presentenos discursos dos homens negros a atrao exercida pela mulher branca, enesse sentido surgem acusaes de que, por um lado, seu relacionamento de interesse na busca por ascenso social e, por outro lado, que foicooptado pelo branco, o que um fator de desagregao da identidadenegra na luta contra a discriminao racial. O que leva a autora a con-cluir que, o par homem negro/mulher branca, embora exista em maiornmero segundo as estatsticas, possivelmente sofra mais preconceito queo par contrrio. O interesse pela mulher negra ou mulata, segundo osinformantes, mais caracterstico dos brancos estrangeiros. E o erotismoassociado cor negra, associado ao gnero feminino, aproxima a mu-lher negra da prostituta.

    A questo interessante que surge nesse ponto relaciona-se inversodo papel de dominao, que exercido pelo homem branco na esfera sociale pelo homem negro na esfera ertica. A autora faz uma sugestiva associa-o com o binmio natureza/cultura, onde temos no eixo normativo domi-nado pelo homem branco a cultura englobando a natureza, e exatamente arelao inversa no eixo do erotismo.

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    A partir desse momento o livro passa a fazer um contraponto do Brasilcom a frica do Sul, onde a autora esteve por um ms na Cidade doCabo analisando os processos criminais enquadrados nas leis que proi-

    biram os casamentos (Mixed Marriage Act) e relacionamentos (ImmoralityAct) inter-raciais at 1985. O que chama a ateno, a princpio, so asdiferenas no que se refere etiqueta das relaes raciais nos dois pases:enquanto no Brasil evita-se falar sobre unies inter-raciais, na frica doSul esses relacionamentos eram expostos publicamente por razes consi-deradas de Estado e regulamentados por leis especficas. Mas a autorarevela algumas similitudes menos aparentes: a igual presena dos fatoresque marcam as relaes afetivo-sexuais inter-raciais, a mobilidade social eo desejo ertico, ainda que com sentidos significativamente distintos.

    Apoiada em literatura especfica (Coetzee, Fernando Rosa Ribeiro, SaulDubow e Jonathan Hyslop) desconhecida da maioria de ns, LauraMoutinho passa a discorrer sobre a importncia dos arranjos afetivo-raciais na construo da idia de nao tambm na frica do Sul, ondeo conceito de apartheid nasce junto com o conceito da raa ber, que vnos coloureds uma ameaa a sua hegemonia social e poltica. Nessaparte do livro, muitas citaes em ingls so colocadas no corpo dotexto. Penso que teria sido melhor se elas tivessem sido traduzidaspara facilitar a leitura de questes s vezes bem especficas dos autorese dos processos citados, deixando o trecho original em ingls para asnotas de rodap.

    Os autores citados mostram como se desenvolve na frica do Sul umverdadeiro horror s relaes inter-raciais, vistas como uma ameaa ao

    orgulho e pureza raciais da civilizao branca. O perigo negro era,especialmente, a ameaa que o homem negro representava para a purezada mulher branca. Tudo indica que o perigo era mais ideolgico que real,significando muito mais um controle sobre a sexualidade da mulher brancae sobre seu papel central na reproduo da famlia, j que a autora cons-tata em sua pesquisa que num perodo de sete anos a maior parte dosprocessos eram referentes a casamentos inter-raciais em que o marido erao elemento mais claro do casal, e no o contrrio.

    Mas um ponto ainda ressalta no caso africano, o controle sexual emoral tambm exercido sobre o homem branco, refletido no decretoImmorality Act, de 1927. Outra diferena se refere excessiva erotizaodas mulheres negras ou mestias (coloureds, natives e bantus), queno foi encontrada na pesquisa realizada pela autora. A maior preocupa-

    o dos sul-africanos, segundo demonstra na anlise, parece relacionar-secom a manuteno das fronteiras inter-raciais, mais do que com a preser-vao da raa branca.

    Outro ponto interessante da comparao entre Brasil e frica doSul refere-se aos usos das categorias de classificao racial. LauraMoutinho mostra como era possvel certa manipulao da identidaderacial baseada, essencialmente, na aparncia, nas brechas da prpria leique, em determinada seo, determinava que a pessoa que aparentar sereuropean e non-european (os equivalentes de branco e no-branco no Brasil)ser julgada como tal, at que se prove o contrrio. E so narrados vriosprocessos em que as pessoas citadas questionam sua classificao racialseja com base na aparncia, seja com base na ascendncia ou mesmo na

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    convivncia e aceitao pelo grupo ao qual alegassem pertencer. O quedemonstra a complexidade do sistema de classificao racial sul-africanoe, nesses termos, sua proximidade com o brasileiro, ambos distantes domodelo norte-americano. De qualquer forma, parece que o sistema deapartheid, conclui a autora, foi bem sucedido se no em eliminar ao menosem coibir de forma dramtica aquilo que aconteceu no Brasil, as formasde compensar atravs de status e prestgio as desvantagens inerentes raa negra.

    A questo que Laura Moutinho quer demonstrar como sexualidade edesejo no qualquer desejo, mas o desejo inter-racial nortearam aconstruo da nao, tanto no Brasil quanto na frica do Sul, ainda quepor vias diversas: um pela sua interdio legal, outro pelainstitucionalizao; um expresso na ameaa do homem negro sobre amulher branca e outro no encontro ertico do homem branco com a mu-lata. Num caso ou no outro o desejo inter-racial o elo de afirmao daidentidade nacional em ambas as naes, todas as duas, igualmente,marcadas pela mestiagem. Mestiagem com estratgias diferentes deexcluso social do elemento negro, um pela ideologia do branquea-mento (excluso pela incorporao) e o outro pela ideologia do apartheid(excluso pelo enquistamento). Num (Brasil) o desejo inter-racial se rea-liza, e no outro (frica do Sul) negado.

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