4
42 WWW.CARTACAPITAL.COM.BR Seu País H oje, estamos aqui, na cidade do Guarujá para denunciar que neste en- dereço, no apartamento 23, mora um torturador, que entre outras coisas participou da tortura de Frei Tito e da hoje presidenta Dilma Rousseff.” O brado entoado em coro por cerca de 60 manifestantes despertou a atenção dos poucos pedestres que cami- nhavam pela Rua Tereza Moura, na Praia das Astúrias, naquela manhã chuvosa de segunda-feira. O alvo do escracho, Mau- rício Lopes Lima, tenente-coronel refor- mado do Exército, permaneceu em seu apartamento no segundo andar enquan- to os jovens penduravam faixas em fren- te ao prédio e batucavam tambores im- provisados com latas de tinta. “A ditadu- ra já acabou! Quero saber que militar que torturou”, cantarolavam. O asfalto servia de palco para as ence- nações de sessões de tortura à moda dos anos de chumbo, de choques elétricos a espancamentos. Assustados, vizinhos desceram do prédio para ver o que acon- tecia. Uma delas esperava o táxi para ir ao oftalmologista. Sabia que seu vizinho havia atuado na repressão e que a pre- sidenta tinha sido torturada. “Mas nun- ca liguei uma coisa à outra.” Um zelador mostrava-se surpreso com o passado do condômino. Já as crianças de uma esco- la vizinha disputavam a atenção dos ci- negrafistas. “Filma eu!” Recluso em seu apartamento, Lima não atendeu aos pe- didos de entrevista de CartaCapital. Aos 76 anos, “quase gagá”, segundo ele mes- mo, negou ter participado de torturas ou mortes ao jornal O Globo. A manifestação havia sido planejada com semanas de antecedência pelos mili- tantes do Levante Popular da Juventude. Uma ação orquestrada nacionalmente, que No front. O técnico de informática Júnior e a aluna de artes cênicas Lira mobilizam a juventude paulista A real comissão da verdade CIDADANIA | Grupo de jovens se mobiliza para expor os torturadores da ditadura POR RODRIGO MARTINS* OLGA VLAHOU •CCSeuROGDRIGO698.indd 42 17.05.12 23:58:40

Reportagem Carta Capital

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Reportagem da Revista Carta capital sobre os escrachos promovidos pelo Levante Popular da Juventude contra torturadores da ditadura militar.

Citation preview

Page 1: Reportagem Carta Capital

42 www.cartacapital.com.br

Seu País

Hoje, estamos aqui, na cidade do Guarujá para denunciar que neste en-dereço, no apartamento 23, mora um torturador, que entre outras coisas participou da tortura

de Frei Tito e da hoje presidenta Dilma Rousseff.” O brado entoado em coro por cerca de 60 manifestantes despertou a atenção dos poucos pedestres que cami-nhavam pela Rua Tereza Moura, na Praia das Astúrias, naquela manhã chuvosa de segunda-feira. O alvo do escracho, Mau-rício Lopes Lima, tenente-coronel refor-

mado do Exército, permaneceu em seu apartamento no segundo andar enquan-to os jovens penduravam faixas em fren-te ao prédio e batucavam tambores im-provisados com latas de tinta. “A ditadu-ra já acabou! Quero saber que militar que torturou”, cantarolavam.

O asfalto servia de palco para as ence-nações de sessões de tortura à moda dos anos de chumbo, de choques elétricos a espancamentos. Assustados, vizinhos desceram do prédio para ver o que acon-tecia. Uma delas esperava o táxi para ir ao oftalmologista. Sabia que seu vizinho

havia atuado na repressão e que a pre-sidenta tinha sido torturada. “Mas nun-ca liguei uma coisa à outra.” Um zelador mostrava-se surpreso com o passado do condômino. Já as crianças de uma esco-la vizinha disputavam a atenção dos ci-negrafistas. “Filma eu!” Recluso em seu apartamento, Lima não atendeu aos pe-didos de entrevista de CartaCapital. Aos 76 anos, “quase gagá”, segundo ele mes-mo, negou ter participado de torturas ou mortes ao jornal O Globo.

A manifestação havia sido planejada com semanas de antecedência pelos mili-tantes do Levante Popular da Juventude. Uma ação orquestrada nacionalmente, que

No front. O técnico de informática Júnior e a aluna de artes cênicas Lira mobilizam a juventude paulista

A real comissão da verdade cidadania | Grupo de jovens se mobiliza para expor os torturadores da ditaduraPOR RODRIGO MARTINS*

ol

ga

vl

ah

ou

•CCSeuROGDRIGO698.indd 42 17.05.12 23:58:40

Page 2: Reportagem Carta Capital

cartacapital | 23 de maio de 2012 43

Seu País

resultou em protestos semelhantes em 11 estados diferentes, todos realizados na segunda-feira 14. Na Bahia, por exem-plo, mais de cem jovens foram às ruas da capital para fazer um esculacho con-tra o torturador Dalmar Caribé, cabo do Exército na ditadura e participante dos assassinatos de Carlos Lamarca e Zequi-nha Barreto. No chão, uma enorme man-cha de tinta vermelha simbolizava o san-gue derramado pela repressão.

No Rio de Janeiro, a manifestação ocorreu em frente à residência do ge-neral da reserva José Antônio Noguei-ra Belham, denunciado como tortura-dor do ex-deputado Rubens Paiva, cujo

mandato foi cassado pelos militares. Belham foi o chefe do DOI-Codi do Rio. Emocionado, o escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do parlamentar desapareci-do desde 1971, elogiou a iniciativa: “Obri-gado, garotada. A família agradece”.

As ações têm preparação meticulosa. Até horas antes do “escracho” no Gua-rujá, muitos jovens nem sequer sabiam quem seria o alvo do protesto ou a loca-lização exata do ato. “Um grupo menor, de três a sete integrantes, é escolhido pa-ra fazer a pesquisa, eleger o alvo, levantar o endereço e organizar o protesto. É uma forma de evitar o vazamento das infor-

A última rodada de protestos ocorreu em 11 estados. No Guarujá, o cerco foi contra o torturador reconhecido por Dilma Rousseff

pie

ro

lo

ca

te

ll

i

•CCSeuROGDRIGO698.indd 43 17.05.12 23:58:42

Page 3: Reportagem Carta Capital

44 www.cartacapital.com.br

Seu País Cidadania

mações e alertar os torturadores”, expli-ca o porta-voz do grupo paulista, Edison Magalhães Rocha, o Júnior, de 26 anos.

Técnico de redes de computadores, que batalha para concluir um curso superior de tecnólogo numa faculdade privada, Júnior é filho de um metalúr-gico que chegou a ser detido em 1979 em uma greve no ABC Paulista. “Meu pai era sindicalista, mas não chegou a ficar preso ou ser torturado. A maioria do pessoal não tem parentes que foram perseguidos na ditadura. Alguns pais ficam até reticentes, com medo de re-taliações. A minha mãe fica preocupa-da, mas apoia. Até prepara o almoço para as nossas reuniões.”

Criado em 2006 no Rio Grande do Sul, o Levante é integrado por jovens entre 14 e 28 anos, em sua maioria sem liga-ção com partidos políticos e sem histó-rico familiar de luta contra a ditadura. Os mais velhos têm experiência de mi-litância em universidades ou movimen-tos sociais, como os Sem-Terra (MST) e a Via Campesina. Para muitos, o Le-vante é a primeira experiência de atu-ação política. “Conseguimos mobilizar universitários, estudantes secundaris-tas, jovens trabalhadores, o pessoal que vive nas periferias. É um grupo hetero-gêneo, de diferentes classes sociais”, ex-plica o assistente pedagógico Lúcio Lu-peno, de 27 anos, um dos coordenado-res do Levante em Porto Alegre. “Co-mecei a militar aqui durante a faculda-de. Já estou velho, logo mais eu passo o bastão pra moçada mais jovem.”

Normalmente preocupado com de-mandas como políticas de acesso à uni-versidade e oferta de emprego para a ju-ventude, o Levante decidiu perseguir torturadores após o seu primeiro acam-pamento nacional, ocorrido em feverei-ro deste ano, em Santa Cruz do Sul (RS), com a presença de 1,2 mil jovens de 17 es-tados. As várias “células” do grupo espa-lhadas pelo País, e abrigadas em univer-sidades, escolas e associações comunitá-rias, resolveram entrar no debate em re-ação aos militares da reserva, que inten-

sificaram os ataques à criação da Comis-são da Verdade. “Mais do que preservar a memória dos que morreram pela de-mocracia, decidimos entrar nessa dis-cussão porque ainda hoje os jovens, so-bretudo os pobres e negros, são vítimas da violência das polícias, com estruturas herdadas da ditadura”, conta Lupeno.

O barulho dos jovens incomoda. Em Belo Horizonte, um grupo de 40 mani-festantes protestou em frente à casa de João Bosco Nacif da Silva, médico-le-gista da Polícia Civil da ditadura. O livro Brasil Nunca Mais, editado pela Arqui-diocese de São Paulo em 1985, o cita co-mo responsável por assinar laudos médi-cos falsos, como o que atestou a morte de João Lucas Alves como suicídio em 1969, apesar de os colegas de cela garantirem ter sido espancado até a morte. Enfureci-do, o legista bateu boca com os manifes-tantes e tentou agredir um deles.

“Aqui não tem nenhum criminoso, pa-rem com isso”, bradava o senhor fran-zino, de cabelos implacavelmente bran-cos. “Tivemos de encerrar o ato mais cedo, para evitar que a ação descam-basse em violência”, comenta o biólo-go mineiro Renan Santos, de 26 anos. “Sempre tomamos o cuidado de esco-lher como alvo apenas os torturadores que já foram citados em livros e proces-sos que tramitam na Justiça. E, para a nossa surpresa, os vizinhos costumam apoiar os nossos protestos.”

Não é a primeira vez que o grupo de jovens promove uma rodada de escra-chos. Em 26 de março, manifestações

Em cerimônia que reuniu seus quatro últimos antecessores vivos, Dilma Rousseff instalou a Comissão da Verdade

com um discurso moderado, embora firme. Prometeu uma investigação sobre os crimes da ditadura sem revanchismos, mas sem perdão. “A palavra verdade, na tradição grega, é o contrário de esquecimento. Não abriga nem o ressentimento nem o ódio ou o perdão: é memória e é história”, afirmou a presidenta, que lutou contra o regime e acabou presa e torturada. “Merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes”, disse,

com os olhos marejados, ao se lembrar dos companheiros mortos.

A Comissão da Verdade iniciou os trabalhos na quarta-feira 16, em meio a divergências entre os integrantes do grupo e os ataques de militares da reserva, que ameaçam criar uma comissão paralela para rebater as versões apresentadas pela oficial. Em parte, o desgaste poderia ter sido evitado se o governo tivesse sido mais criterioso na escolha dos integrantes. Entre os sete nomeados, a que teve uma luta mais destacada contra o regime foi a advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha, especializada na defesa

de presos políticos durante a ditadura. Os demais tiveram participações circunstanciais.

Em nota, o Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça (CPMVJ) criticou a composição do grupo, a começar pelo ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, que atuou como perito do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos contra os familiares dos desaparecidos no Araguaia. Coube a Dipp uma das primeiras declarações da comissão que irritaram parentes de vítimas da ditadura. Coordenador dos trabalhos, o ministro afirmou que “toda violação” deve ser

Tropeço inicial A Comissão da Verdade inicia os trabalhos em meio aos ataques dos militares da reserva e divergências entre os integrantes

A maioria não tem vínculos partidários ou familiares perseguidos pela ditadura. Para muitos, é a primeira experiência política

Punição. Parentes de vítimas celebram a “condenação moral” dos algozes

Emoção. Dilma chorou ao lembrar dos companheiros mortos

pe

dr

o l

ad

eir

a/

af

p

•CCSeuROGDRIGO698.indd 44 17.05.12 23:58:43

Page 4: Reportagem Carta Capital

cartacapital | 23 de maio de 2012 45

Seu País Cidadania

de somente agora esses crápulas estão tendo o que merecem, ainda que seja apenas uma condenação moral.”

Em acareação na CPI das Ossadas de Perus, em 1991, Araújo ficou diante de Seixas e da ex-presa política Amélia Te-les. Os dois disseram ter sido torturados por ele. Naquele momento, o delegado respondeu: “Nunca torturei mulher feia”. “É cínico demais”, revolta-se Seixas.

Ao menos um efeito prático o escracho contra o “Capitão Lisboa” teve. Após o caso ser noticiado, o Itaú Unibanco, que estava listado pela Dacala como um dos seus clientes, rescindiu o contrato com a empresa. A Anhanguera Educacional e o banco Santander também anunciaram que iriam reavaliar os contratos. “Fica-mos muito felizes”, conta a estudante de Artes Cênicas da USP, Lira Alli, que aju-dou a organizar o ato. “Pouco depois, uma amiga da família disse que o reco-nheceu como seu torturador.”

A amiga era Laurita Salles, presa nas dependências do DOI-Codi paulista em 1974, quando estava prestes a completar 22 anos de idade. “Fui torturada por cin-co dias, queriam que eu entregasse o para-deiro de uma pessoa que eu não conhecia. Quando li o jornal, reconheci o rosto da-quele homem. Não tenho certeza se foi ele quem me torturou, mas ele estava lá, fazia parte do grupo”, relembra. “Fiquei muito emocionada ao ver esses jovens se mani-festando. Eu era exatamente igual a eles 30 anos atrás, tentando mudar o mundo.” •*Colaborou Piero Locatelli

di, em 1971. Após a manifestação, o ex-agente da ditadura negou as acusações. “Fui trabalhar no serviço de busca, que não interroga ninguém, não mata nin-guém”, afirmou à Folha de S.Paulo.

O filho do militante assassinado, Ivan Seixas, afirma ter testemunhado as sessões de tortura. “Fui preso com o meu pai. Eu tinha apenas 16 anos e fui torturado por ele. Aliás, minha mãe e minhas irmãs também. Eu só te-nho é que agradecer esses jovens, por-que após mais de 30 anos de impunida-

semelhantes ocorreram em sete estados. Em São Paulo e no Rio, o local escolhido foram os escritórios da empresa de se-gurança Dacala, pertencente ao delega-do aposentado David dos Santos Araú-jo. Em 2010, ele foi acusado de tortura pelo Ministério Público Federal, numa ação que cobrava o ressarcimento das indenizações pagas a suas vítimas. Se-gundo a Procuradoria, Araújo era cha-mado de “capitão Lisboa” e participou da tortura e do assassinato do militante Joaquim Alencar de Seixas, no DOI-Co-

apurada, inclusive os supostos crimes de quem resistiu à ditadura, como se eles já não tivessem sido punidos com prisões arbitrárias, torturas, julgamentos em tribunais de exceção, exílio e mortes. Antes dele, outro integrante da comissão, José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, havia defendido com denodo tucano a mesma tese.

O ex-ministro da Defesa Nelson Jobim, que ressurgiu das cinzas para opinar a respeito, voltou a bater na tecla da investigação dos “dois lados” e citou um suposto acordo com o então ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi para investigar os crimes da esquerda armada. Vannuchi reagiu com indignação: “Em 2010, eu

chamava a ideia de bilateralidade sugerida por Jobim de monstrengo jurídico”. A psicanalista Maria Rita Kehl e a advogada Rosa Cunha, que defendeu Dilma na ditadura, reagiram às invectivas para mudar o foco de atuação do grupo. “A história a ser investigada não tem dois lados, o outro foi assassinado”, resumiu Cunha.

Presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e um dos mais proeminentes advogados do Brasil, Marco Antonio Barbosa minimizou as divergências internas da comissão. “Discordar é algo natural e salutar em uma democracia. Mas essa tese de investigar os ‘dois lados’ é baboseira, perda de tempo. Respeito a opinião do ministro Gilson Dipp,

mas o que precisa ser investigada é a violência do Estado, que promoveu crimes contra a humanidade.”

Na avaliação de Nilmário Miranda, ministro dos Direitos Humanos no primeiro mandato do presidente Lula, a comissão pode fazer um bom trabalho, mesmo após três décadas de distanciamento entre os crimes da ditadura e a atual investigação. “Não vamos começar do zero. As Comissões dos Mortos e Desaparecidos Políticos (1995) e da Anistia (2001) levantaram milhares de documentos e depoimentos. Precisamos aprofundar as investigações, sobretudo com os documentos produzidos pela repressão e que não estavam disponíveis para consulta”, disse

a CartaCapital. Segundo ele, a comissão não deve punir ninguém. Mesmo assim acredita que as revelações podem levar torturadores ao banco dos réus.

“Dos 163 desaparecidos políticos da ditadura, só foram identificados quatro ossadas desde 1979. Se o Supremo Tribunal Federal considerar os sequestros e as mortes com ocultação de cadáver como crimes continuados, há espaço para a responsabilização, porque esses crimes não prescrevem e não estariam cobertos pela Lei da Anistia”, avalia Miranda. “O resgate da memória desse período é imprescindível.”

De qualquer forma, a comissão começou mal. Espera-se que termine bem.

•CCSeuROGDRIGO698.indd 45 17.05.12 23:58:43