Resenha Narracao Fato

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narrativas

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  • Ano VII, n. 07 Julho/2011

    Resenha

    A narrao do fato: notas para uma teoria do acontecimento (SODR, Muniz. Petrpolis, RJ: Vozes, 2009, 287p.)

    Poliana QUEIROZ1

    A mais recente obra do professor Muniz Sodr, A narrao do fato: notas para uma

    teoria do acontecimento, busca numa perspectiva original em matria de estudos da

    mdia, refletir sobre a fundamentao terica da narrativa jornalstica da atualidade. Em

    termos metodolgicos, o autor se prope a estabelecer um raio-X da notcia, apontando

    as dificuldades de conceituao e buscando resolv-las com a hiptese da

    temporalizao do cotidiano atravs da marcao e ritmizao do acontecimento. Em

    seguida expe as diferenas entre o factual e o ficcional e, por fim, mostra uma das

    principais derivaes romanescas do fait-divers.

    O livro, resultado da pesquisa realizada pelo docente titular da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com apoio do Conselho Nacional de Pesquisas

    Cientficas (CNPq), est dividido em trs consistentes captulos. Nele, alm da literatura

    acadmica, foi utilizado, sobretudo, material coletado na imprensa cotidiana.

    O primeiro captulo, intitulado O discurso do acontecimento, dedicado ao

    debate a respeito da inexistncia de um conceito para o gnero jornalstico conhecido

    como notcia. Para confirmar seu pensamento, o autor recorre afirmao de Mrio

    Erbolato: ningum conseguiu defini-la satisfatoriamente. Os tericos dizem como ela

    deve ser, mas no como realmente (p.20).

    Por ser um conceito consensualmente difcil, Sodr destaca que natural a

    comunidade jornalstica ter dificuldade de definir o que seria notcia. Como vlvula de

    escape para este problema, a clebre frase do jornalista norte-americano Amus

    Cummings: Se um cachorro morde um homem, no notcia, mas, se um homem

    morde um cachorro, notcia (p. 20) instalou-se na tradio jornalstica como um

    modelo apropriado prtica profissional.

    1 Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Comunicao (PPGC/UFPB).

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    Contudo, esta assertiva, sem carter cientfico, baseada no paradigma do

    cachorro, considerada insuficiente teoricamente para determinar uma notcia. A

    impreciso conceitual do senso comum instiga o pesquisador a buscar uma definio

    precisa, longe da justificativa pragmtica de faro, instinto e arbtrio profissional.

    Na tentativa de trazer alguma luz para o assunto, o autor procura traar uma

    delimitao clara, que permita aos estudos posteriores utilizar categorias conceituais

    bem fundamentadas na compreenso dos aspectos envolvidos na narrativa jornalstica

    como: fato, acontecimento e notcia.

    a partir da filosofia Kantiana que Sodr fundamenta seu entendimento sobre o

    termo fato: Os objetos para conceitos cuja realidade objetiva pode ser provada (seja

    mediante pura razo, seja por experincia, e, no primeiro caso, a partir dos dados

    tericos ou prticos da razo, mas em todos os casos por meio de uma intuio que lhes

    corresponda) so fatos. Acrescenta ainda que O mundo dos fatos a que podemos

    tambm chamar de estado de coisas o mundo da experincia emprica, isto , de

    relaes contingentes, do fenmeno que pode acontecer ou no, fora de qualquer ordem

    necessria (p. 28).

    Para explicar o que seria acontecimento, resgatada a definio didtica de

    Mouillaud: A hiptese que sustentamos a de que o acontecimento a sombra

    projetada de um conceito construdo pelo sistema da informao, o conceito de fato

    (p.33). Essa sombra corresponde a critrios como os valores-notcia.

    O acontecimento, nas palavras do professor, considerado um desdobramento

    do fato, que aborda um conjunto de normas e convenes discursivas, como um enredo

    e o enquadramento. ele garante noticiabilidade para alguns fatos sociais na pauta

    jornalstica. Sua construo no se realiza apenas no campo jornalstico, o pblico, nas

    sociedades midiatizadas contemporneas, tambm consegue exercer o papel de produtor

    da informao. A internet possibilita deslocar para o receptor o poder de pautar os

    acontecimentos, que podero ser transformados em notcia.

    No caminho metodolgico traado para a formulao de uma teoria do

    acontecimento, o autor levanta algumas discusses importantes para a atividade

    jornalstica como: atualidade, verdade, credibilidade, histria, situando o jornalismo

    entre o conhecimento comum e o conhecimento sistemtico (cincia).

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    Dando sequncia ao captulo, o escritor desenvolve o conceito de notcia -

    utilizado quase sempre como sinnimo da prtica profissional jornalstica. Parte-se do

    fato bruto [...] para transform-lo em acontecimento por meio da interpretao em

    que implica a notcia, esse microrrelato que, desdobrado ou ampliado, nos dar

    possibilidade de acesso argumentativo ao fato social (p. 71). Classifica as notcias de

    acordo com tempos e modos de ocorrncia como: previstas (anunciadas com

    antecedncia), imprevistas (de carter inesperado) e mistas (renem o previsto e o

    imprevisto).

    Para Sodr, a semelhana entre os acontecimentos que se constituem notcia a

    marcao do fato (determina o que a marcao jornalstica identifica como valor-

    notcia) e a pontuao rtmica (relacionada ao fator tempo no qual o acontecimento

    miditico atua na singularizao dos fatos sociais em sua atualizao jornalstica).

    Distingue dois nveis rtmicos a partir das prticas de produo das notcias: num

    primeiro nvel, o que ritimiza o cotidiano so as rotinas, inscritas individual e

    coletivamente na vida social; num segundo nvel, os acontecimentos, que pontuam

    em diferentes escalas de intensidade essas rotinas (p. 90).

    Desta maneira, conclui que a notcia comunica algo a ser notado ou sinalizado

    como marca factual de um instante particular. Logo, nesta comunicao, o tempo

    uma instncia pressuposta, o verdadeiro vetor da enunciao, que organiza a semiose

    manifesta (p. 91).

    No segundo captulo do livro, A experincia narrativa, Muniz Sodr disserta

    sobre as relaes de semelhana e diferena entre a narrativa literria e a narrativa

    jornalstica e afirma ser consensual a existncia de uma fronteira entre elas. Para fazer

    esta relao busca elementos histricos e da anlise do discurso. Apresenta a notcia

    como parte de um discurso, um gnero sociodiscursivo (p. 138), que por produzir

    sentido ideolgico, heterogneo e se aplica a duas formas de escrita. A divergncia

    encontrada que a narrativa literria no necessariamente tem valor de realidade, como

    ocorre com a jornalstica.

    Ao se discutir narrativa, Sodr acredita que convm sempre repassar os

    conceitos de enunciado resultado da ao, o produto fechado ou acabado da prtica

    social de linguagem ou discurso e enunciao ato comunicativo que gerou o

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    enunciado, portanto, s circunstncias de tempo, lugar e sujeito, necessrias produo

    da fala (p. 175). Cita Lyotard para definir a forma narrativa, este admite existir uma

    pluralidade de jogos de linguagem, que encontraram facilmente lugar no relato dos

    enunciados (p. 178).

    Em termos claros, o autor define a narrao como ato de contar uma histria,

    fato que, segundo ele, concorda com os aspectos da narratologia (disciplina voltada

    teorizao dos textos narrativos). E, descreve que O esquema bsico de uma sequncia

    narrativa algo como: situao inicial complicao reao resoluo situao

    final avaliao ou moral da histria (p. 204). No jornalismo, essa maneira de

    organizao textual ora conservada (quando a notcia segue a ordem temporal dos

    acontecimentos), ora desconsiderada (pelo uso da forma conhecida como pirmide

    invertida sequncia que privilegia o acontecimento mais importante numa escala

    decrescente). De forma esclarecedora, diferentes estilos de narrar uma notcia so

    apresentados a partir de exemplos extrados de jornais.

    Finalizando o segundo captulo, so apresentados casos de fraude no jornalismo,

    caractersticas do sensacionalismo e explicao sobre fait-divers (para os franceses) e

    features (para os norte-americanos), esses ltimos associado ao jornalismo como prtica

    social da narrativa.

    O terceiro e ltimo captulo, O fato em vermelho-sangue, aborda a crtica

    acadmica sobre a literatura policial, que a classifica como subliteratura. Apesar dessa

    distino da academia, podemos observar a importncia do tema para Muniz Sodr que,

    de uma forma sensvel, busca escrever sobre a relao entre a literatura policial e a

    narrao jornalstica, encontrando nos fait-divers o ponto de apoio necessrio anlise.

    No decorrer do capitulo, o escritor nos leva a caminhar por um percurso

    histrico para mostrar como a fico policial nasceu do texto do jornal impresso, com a

    mesma estrutura do texto folhetinesco, produzido por intelectuais como Balzac,

    Dickens, Dostoievski e, aqui no Brasil, Machado de Assis.

    Nos dias atuais, os folhetinistas da narrativa policial ainda so oriundos do meio

    jornalstico, porm, os folhetins, de acordo com Sodr, esto mais prximos do gnero

    simblico que do informativo, considerando sensato caracterizar esse tipo de texto como

    outra literatura, ao invs de subliteratura.

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    A literatura folhetinesca defendida pelo autor, entre outros motivos, por esta

    ter a capacidade de prender a ateno dos leitores, influindo-lhes o gosto pela leitura, e

    divertir com a produo voltada escala industrial. Nesse sentido, so as condies

    industriais que indicam a associao entre o jornalismo e a narrativa policial ou

    detetivesca, devido o interesse pelo fato criminoso.

    Ao passo que a literatura tida como sria tem o intuito de ser verdadeira, com

    durao no tempo, a literatura folhetinesca, segundo Sodr, pretende ser verossmil,

    aproximando a superfcie do cotidiano de forma a entreter, de maneira simples, os

    leitores. Aponta ainda que a evoluo estilstica do romance policial no abre mo das

    estveis da estrutura folhetinesca com o uso do heri, do mito, da retrica e da

    informao jornalstica. Na novela policial, a informao um dado exterior,

    separvel, destinado a produzir efeitos de real e reforar a verossimilhana da

    fabulao (p. 265).

    O livro termina com a defesa da alteridade do romance policial em meio ao

    cnone hegemnico da crtica literria. O escritor conclama o jornalismo cultural a

    desempenhar papel importante na valorizao desse gnero literrio que nasceu atrelado

    noticia, tentando desfazer assim o preconceito da academia sobre o romance policial.

    O livro, A narrao do fato: notas para uma teoria do acontecimento traz de

    forma original e relevante uma teorizao densa sobre a formulao de uma teoria do

    acontecimento, como caminho para o entendimento do jornalismo enquanto processo de

    construo de sentidos, longe da lgica proposta pelos manuais deontolgicos sobre o

    fazer jornalstico.

    O percurso metodolgico utilizado pelo autor para conduzir toda obra aproxima

    o leitor da pesquisa. A cada captulo, a leitura se torna mais leve. Isso porque no texto

    no so usadas somente referncias acadmicas. Sodr exemplifica determinadas

    tipificaes do texto jornalstico por meio de recortes de material informativo retirados

    de jornais, aproximando as discusses tericas do cotidiano.

    A obra , sem duvida, uma contribuio relevante para os estudos do jornalismo,

    servindo de referncia significativa tanto para pesquisadores como jornalistas inseridos

    no campo de produo das notcias.