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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542. HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. 1 Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro 2 Os debates sobre o fazer histórico são perenes desde que à historiografia foram impostos métodos para dar-lhe o rigor que uma disciplina séria deve possuir. François Hartog, historiador francês, membro do Centre Louis Gernet de Recherches Comparées sur les Sociétés Anciennes e Centre de Recherche Historique, além de membro-fundador da Association des Historiens da França, titular da cadeira de historiografia antiga e moderna da École de Hautes Études de Sciences Sociales (EHESS - França), é um nome central nos debates da historiografia atual, com erudição singular. Com tese sobre a escrita do outro a partir de Heródoto 3 , Hartog é estudioso da escrita da história na antiguidade e das formas históricas de temporalização, sendo um dos responsáveis por trazer ao centro do debate historiográfico a questão do tempo, que é fundamental para o trabalho do historiador, mas muitas vezes é negligenciada ou pouco refletida; ainda neste campo, o referido autor produziu o conceito de "regimes de historicidade" 4 , bastante difundido desde então. 1 Recebido em 07/10/2013. Aprovado em 19/11/2013. 2 Mestrando em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Licenciado em História pela Universidade de Pernambuco - Campus Mata Norte. Membro do Leitorado Antiguo grupo de ensino, extensão e pesquisa da UPE; desenvolve pesquisa acerca do caráter político das comédias de Aristófanes. 3 Le Miroir d'Hérodote. Essai sur la représentation de l'autre. Paris: Gallimard, 1980. 4 Na obra ora resenhada, o autor discute brevemente os "regimes de historicidade", reconhecendo que atualmente eles possuem um lugar privilegiado nas reflexões historiográficas, tornando-se uma das problemáticas a serem abordadas pelos historiadores, exatamente porque "nossas relações com ele deixaram de ser evidentes" (HARTOG, 2011, p. 201), pois reconhece-se que há diversos modos de temporalidades. A obra em que Hartog detém-se a esse debate é: Régimes d'historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Le seuil, 2002.

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  • Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.

    HARTOG, Franois. Evidncia da Histria: o que os historiadores veem. Belo

    Horizonte: Autntica Editora, 2011.1

    Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro2

    Os debates sobre o fazer histrico so perenes desde que historiografia

    foram impostos mtodos para dar-lhe o rigor que uma disciplina sria deve

    possuir. Franois Hartog, historiador francs, membro do Centre Louis Gernet de

    Recherches Compares sur les Socits Anciennes e Centre de Recherche

    Historique, alm de membro-fundador da Association des Historiens da Frana,

    titular da cadeira de historiografia antiga e moderna da cole de Hautes tudes de

    Sciences Sociales (EHESS - Frana), um nome central nos debates da

    historiografia atual, com erudio singular. Com tese sobre a escrita do outro a

    partir de Herdoto 3, Hartog estudioso da escrita da histria na antiguidade e das

    formas histricas de temporalizao, sendo um dos responsveis por trazer ao

    centro do debate historiogrfico a questo do tempo, que fundamental para o

    trabalho do historiador, mas muitas vezes negligenciada ou pouco refletida;

    ainda neste campo, o referido autor produziu o conceito de "regimes de

    historicidade"4, bastante difundido desde ento.

    1 Recebido em 07/10/2013. Aprovado em 19/11/2013.

    2 Mestrando em Histria Poltica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Licenciado em Histria pela Universidade de Pernambuco - Campus Mata Norte. Membro do Leitorado Antiguo grupo de ensino, extenso e pesquisa da UPE; desenvolve pesquisa acerca do carter poltico das comdias de Aristfanes. 3 Le Miroir d'Hrodote. Essai sur la reprsentation de l'autre. Paris: Gallimard, 1980. 4 Na obra ora resenhada, o autor discute brevemente os "regimes de historicidade", reconhecendo que atualmente eles possuem um lugar privilegiado nas reflexes historiogrficas, tornando-se uma das problemticas a serem abordadas pelos historiadores, exatamente porque "nossas relaes com ele deixaram de ser evidentes" (HARTOG, 2011, p. 201), pois reconhece-se que h diversos modos de temporalidades. A obra em que Hartog detm-se a esse debate : Rgimes d'historicit. Prsentisme et expriences du temps. Paris: Le seuil, 2002.

  • Luiz Henrique Bonifcio Cordeiro

    535 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.

    O livro ora resenhado, Evidncia da Histria: o que os historiadores veem,

    publicado originalmente na Frana em 2005 e traduzido para o Brasil em 2011,

    trata de questes chave para o trabalho do historiador, como as formas de escrever

    a histria, a importncia do tempo, o tipo de escrita que se impe aos documentos

    e quem deve se impor (o documento, a escrita ou o escritor). Ainda na parte

    introdutria, Hartog (2011, p. 14) claro ao defender que a evidncia do

    historiador aquela que busca o 'por que', o 'como se d' a viso do fato, unindo o

    que em Homero representado por energeia (a viso do fato), evidentia (como

    pensar o fato) e evidence (testemunho, isto , a fonte). Refletir sobre o estatuto da

    evidncia na Histria refletir sobre a prpria Histria. Hartog afirma que a

    evidncia, que tem a ver com a narrativa do historiador, nunca ser completa.

    A primeira parte do livro apresenta e discute como foi vista e feita a histria

    na antiguidade greco-romana. Hartog relaciona o que questiona nessa primeira

    parte segunda, observando uma ntima relao entre memria, escrita e

    instituio. Todavia, lembrado que a falta de cientificidade dos antigos est no

    fato deles no refletirem sobre a evidncia da qual tratavam, sem formulao de

    regras para a produo.

    Hartog afirma que a relao do historiador com a Histria como a do aedo

    com Minemosyne 5, promovendo uma viso dos acontecimentos como instrumento

    para conhec-los melhor. O historiador, a partir de Herdoto, transforma-se em

    figura subjetiva, imiscui-se com seu conhecimento. No sculo IV a. C., historiador e

    filsofo 'trocam figurinhas', ao para o bem da Histria; todavia, fazem com que

    essa torne-se a histria moralizante, a 'mestra da vida', ao importante para a

    historiografia antiga. Os gregos so inventores do historiador mais do que da

    prpria histria, pelo foco narrativo e pelo ato de identificar-se no texto. tambm

    com os gregos que o historiador filosofa sobre seu fazer; incessantemente, a

    produo historiogrfica passa por uma reviso filosfica feita pelos prprios

    historiadores, que rebuscam sempre a questo da memria, mostrando que a

    histria filosfica.

    5 Deusa grega da memria, que d voz ao aedo, revelando-lhe os segredos da memria.

  • Resenha: Evidncia da histria

    Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.

    Na relao histria-memria, Hartog considera a histria como um

    processo. O tempo do qual ela se serve s recentemente passou a ser visto como

    vetor para o progresso e o princpio organizador dos objetos de que trata a

    histria, estando imiscudo evidncia do historiador. Entretanto, o tempo faz

    parte de uma relao problemtica com a memria e com o indivduo, pois as

    lembranas nem sempre so justapostas.

    Hartog (2011, p. 26) denomina "cultura da memria" relao entre

    Histria e Memria; o historiador o novo Herdoto, ao tentar ser "senhor da

    imortalidade" (da memria). Contrapondo-se a essa imortalidade e a esse poder da

    memria, o autor afirma que "se a histria e a memria tiveram, de sada, um

    projeto comum, suas relaes efetivas foram complexas, mutveis e conflitantes".

    Contra Herdoto, Tucdides defendia que a memria seria sempre falvel,

    exatamente pela sua confuso com o tempo. A busca da memria, contudo, como

    uma busca das origens, intrnseca vida humana, alm de permitir compreender

    escolhas, sendo fundamental ao processo da histria. Ir em direo aos primrdios

    formular escolhas, esboar rupturas. A evidncia, ento, pode ser relativa, ampla,

    complexa...

    A histria produzida atravs de narrativas, isto , no se pode desvalorizar

    a boa articulao das palavras. Igualmente, a importncia da palavra no deve ser

    negligenciada ao se observar as sociedades grega e romana, pois os oradores e sua

    eloquncia foram fundamentais nessas sociedades e a partir dessa importncia

    que a histria ocidental comeou a ser escrita. Por isso, para Ccero, a cidade

    romana s se formou, saindo da vida 'selvagem', graas fora da palavra. Nessa

    relao entre fala e ao a palavra poltica foi de fundamental importncia nas

    cidades antigas, mas enquanto h as falas que vm depois da ao, imortalizando-a,

    h, paradoxalmente, as que controlam ou agem a partir de uma escolha sobre a

    situao. Hartog afirma que, como o orador, que tenta se perpetuar, o historiador

    visa a dar uma sobrevida a sua obra e, consequentemente, a si. Alm disso, ele

    conclui que a eloquncia busca a paz, mas floresce em meio a distrbios.

  • Luiz Henrique Bonifcio Cordeiro

    537 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.

    A escrita da histria como a eloquncia do orador, passvel de ocorrncias.

    No entanto, no possvel captar o tempo como ocorreu, por olhar a partir do

    presente; preciso reconstitu-lo, por isso, o resultado ser sempre diferente do

    ocorrido: ser sempre uma recriao, por isso, pode-se afirmar que o historiador

    passvel de narrativas.

    A narrativa, que uma montagem, d histria o status de independente, e

    Hartog (Ibidem, p. 61) apresenta a etimologia dessa independncia. Na etimologia

    da palavra e do fazer Histria, em Tucdides, estando ligado ao verbo historien

    (investigar) como o policial, que reconstitui, o histor tomado por testemunha, no

    aquele que viu diretamente, mas aquele que d seu parecer. Em um segundo

    sentido, mais inclinado a Herdoto, que tambm recorre historie (procedimento

    de investigao), como orculo, estando ligado ao verbo semainein (revelar), o

    histor esclarece a verdade para que se saiba viver com ela.

    Ao contrrio do que a priori possa parecer, historien e semainein se

    complementam na prtica historiogrfica. A histria funciona, nesse sentido, como

    uma autpsia medida que impe uma crtica ao testemunho da fonte e apresenta,

    por fim, um 'parecer'. A histria trata, em suma, de um fato morto. O histor faz a

    autpsia do fato, por isso um sentido 'melanclico' da histria, que sempre busca

    saber por que aconteceu; nunca age para evitar a catstrofe; aparece depois. Esse

    presente utiliza-se do passado, que j no existe de fato, para refletir sobre suas

    prprias incertezas. "Convocado como modelo, o passado naturalmente um

    passado constitudo por fragmentos escolhidos" (Ibid., p. 69).

    Com a investigao, Tucdides impe histria um status de verdade,

    afastando-se do projeto promovido por Herdoto, que, segundo aquele, falha ao

    querer revelar o que acha que deve ser revelado. Para Tucdides preciso

    imprimir uma rigorosa crtica. Hartog se apropria dos posicionamentos

    tucidideanos valorizando que, ao se afastar dos poetas que miram exclusivamente

    ao passado, o historiador parte do e para o presente.

    Em Tucdides, opsis (a vista) vale mais do que akoe (o ouvido), em prol de

    um conhecimento claro e distinto: "No s o que vi, pessoalmente, aquilo que

  • Resenha: Evidncia da histria

    Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.

    outros dizem ter visto, mas a condio de que essas vises (tanto a minha quanto

    as outras) resistam a uma rigorosa crtica" (HARTOG, 2011, p. 79). O histor que em

    Herdoto revelador, em Tucdides se porta como "avalista em um litgio"

    (Ibidem, p. 81); ou seja, os indcios encontrados, que em Herdoto so recebidos a

    partir da imaginao, em Tucdides so testemunhas passveis de questionamento.

    Sobre esse impasse entre os posicionamentos contrastantes entre os historiadores

    gregos, Hartog afirma que "impunha-se a existncia de Tucdides para que

    Herdoto pudesse aparecer como mentor" (Ibid., p. 84), j que foi com esse que,

    com justa medida, ficou o ttulo de pai da histria, apesar de ter sido com o outro

    que a histria passou a exercer uma crtica.

    Herdoto e Tucdides no rompem com a tradio de apresentar dois polos

    antagnicos dos indivduos de que tratam ao impor sua autpsia, enquanto Polbio,

    historiador do sculo II a.C., no pretende apresentar categorias ou justiamentos,

    mas o movimento e o momento da movimentao, representando um

    Mediterrneo globalizado, ao buscar causas e mostrar-se presente. Ele defendia,

    segundo Hartog (Ibid., p. 103), "que no houvesse separao entre fazer a histria

    e fazer histria, pelo fato de que, provavelmente, ele se tornou historiador porque

    j no podia ser um homem de ao". Polbio inaugura, segundo Hartog (Ibid., p.

    107), a sunopsis, "capacidade de ver em conjunto, de abranger em um s golpe de

    vista". A prtica historiogrfica, com Polbio, estreia uma nova fase por no se

    limitar a investigar (historien) ou a revelar (semainein); esse autor passa a unir a

    ao palavra, impondo universalidade e dinamicidade ao trabalho da histria.

    com Polbio que abre-se o caminho para os historiadores romanos, que passam a

    valorizar a retrica e o acontecimento, tendo boa receptividade em seu tempo. O

    maior destaque ressaltado pelos historiadores romanos foi ento as

    transformaes em prol de um conhecimento verossmil.

    A segunda parte do livro 6 , na verdade, uma continuao dos debates e

    temas empreendidos na primeira, mas localizados em autores chave da

    6 Evidncia nos Tempos Modernos.

  • Luiz Henrique Bonifcio Cordeiro

    539 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.

    historiografia do XIX e do XX. O primeiro captulo 7 inicia-se com uma observao

    arqueolgica do olhar do historiador, onde Hartog afirma que desde a antiguidade

    at o sculo XIX houve vrios regimes historiogrficos em consequncia dos

    diversos posicionamentos dos historiadores, que acreditavam produzir

    veridicamente por inclurem-se em sua observao, no se afastando seu presente

    da produo e por portarem-se como decifradores desse presente.

    Buscando o passado, desfalecido por si s, a histria visa a refletir sobre a

    vida; nas palavras de Hartog (HARTOG, 2011, p. 148), "evoca-se o fluxo das coisas".

    Aos que so pessimistas e consideram a histria idealista e presa ao mundo das

    ideias, Hartog responde que no enxergam atuao de seu tempo em tudo o que

    produz 8. Nosso autor salienta, no entanto, que a visibilidade real na histria no

    imediata, mas gradativa, por gerar fundamental preocupao com a vida e dar

    importncia morte para que essa preocupao prevalea: a histria , nesse

    sentido, um exerccio fnebre que prima pela vida; o que ele chama de

    "visibilidade invisvel" 9, onde os arquivos so mortos, mas, a partir do olhar do

    historiador, transformam-se em vozes para a histria.

    Outro regime de visibilidade do XIX aparece como uma "iluso", a partir de

    Fustel de Coulanges, que luta para impor uma 'histria-cincia'. Esse autor visa a

    ver os fatos e, para no cair na visibilidade iludida, defende que se feche os olhos

    ao presente. No entanto, Hartog (Ibid., p. 159) afirma que "[...] ao opor um visvel

    ilusrio a um real que se deve aprender a ver, [...], ele no deixa de depender de um

    pressuposto de mtodo: o historiador - em nome de sua competncia - aquele

    que, entre o visvel e o invisvel, "encontra os fatos" e consegue "v-los" ou v as

    coisas como elas so".

    Ao contrapor Thierry, Michelet e Coulanges, discordando ou no deles,

    Hartog (Ibid., p. 161) reconhece que todos pretendem estabelecer continuidade

    7 O olhar do historiador e a voz da histria, p. 143-161. 8 Hartog faz referncia direta ao terico francs do XIX Augustin Thierry (Ibid., p. 149). 9 O terico responsvel pela ideia de histria que vai de encontro de Thierry Jules Michelet (Ibid., p. 151).

  • Resenha: Evidncia da histria

    Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.

    para a histria em sua complexidade de real 10, o que lhe permite a afirmao de

    que "[...] o "realismo" plural, e a viso no se limita a ser uma questo de tica

    [...]". H, nesse sentido, a intencionalidade de fazer emergir uma observao da

    ao humana no tempo, independente de como seja essa observao. Esse

    posicionamento ratificado pelos Annales, com Lucien Febvre e Fernand Braudel,

    entre outros, que valorizam a complexidade da vida humana.

    Ao discutir o lugar da narrativa, Hartog reconhece que ela teve vrios

    sentidos ao longo da trajetria da histria como conhecimento. J depois de bem

    consolidada a histria social dos Annales 11, que se contrapunha narrativa, como

    ao indivduo e ao acontecimento, em Paul Ricoeur, no entanto, que h reflexo

    profunda acerca da relao entre a narrativa e a histria. Ricoeur, segundo Hartog

    (HARTOG, 2011, p. 175), ao desbravar o "mistrio do tempo", conclui que "seria

    impossvel existir histria sem um vnculo, por mais tnue que fosse, com a

    narrativa". Seria mais sensato falar em "eclipse da narrativa", parafraseando

    Ricoeur (Ibid., p. 177), e reconhecer que o acontecimento como uma "varivel da

    intriga": "com funes diversas, ele pertence a todos os nveis [...]" (Ibid., p. 183).

    A narrativa se configura como aspecto intrnseco ao saber histrico ao

    voltar tona por nunca ter desaparecido. Hartog afirma que o que mudou foram as

    maneiras de us-la. A discusso sobre sua epistemologia, no entanto, recente,

    alm de ser responsvel por recolocar o historiador no trabalho que produz,

    devido a questionamentos centrais: o que fao? o que vejo? como fao?

    Com olhar em perspectiva sobre a evidncia, Hartog afirma que os objetos

    da histria podem ser observados de fora dela. A partir de Claude Lvi-Strauss,

    com o "olhar distanciado" do estruturalismo, foi possvel ao historiador dar passos

    mais largos, dialogando com a lingustica e a etnologia. Nesse sentido, o historiador

    10 Literalmente, "reatar o fio da tradio" (MICHELET apud HARTOG, 2011, p. 161), que quer significar um elo entre passado e presente. 11 Para Hartog, os Annales abandonam a narrativa em prol do contrrio do que era cultivado naquela histria metdica do XIX, ao valorizar o social e o global: "sob seu microscpio, o acontecimento deixa de ser "visvel", legvel" (Ibid., p. 176), e o deixa devido ao social, que trabalha com o tempo das estruturas. Entende-se, da, que acontecimento e narrativa so inerentes um ao outro.

  • Luiz Henrique Bonifcio Cordeiro

    541 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.

    forneceu "uma arquitetura lgica a desenvolvimentos histricos que podem ser

    imprevisveis, sem nunca serem arbitrrios" (Ibid., p. 191).

    Se no incio do livro os historiadores gregos, que diramos aqui os

    inauguradores da escrita da histria foram considerados uma espcie de

    testemunha enquanto pesquisadores, na parte final, o lugar reservado

    testemunha colocado em xeque, para que se produza reflexo e posicionamento

    tambm neste aspecto. Prope-se um retorno testemunha, entendendo-a como a

    fonte, fazendo, a partir da, um aprofundamento epistemolgico da discusso sobre

    a prpria histria. Com firmeza, Hartog (Ibid., p. 203) afirma: "a testemunha no

    um historiador, e o historiador se ele pode ser, em caso de necessidade, uma

    testemunha no deve assumir tal funo; e sobretudo ele s capaz de comear a

    tornar-se historiador ao manter-se distncia da testemunha". Refletir sobre a

    testemunha e sobre o testemunho refletir sobre o que v ou sobre o que escreve

    o historiador. Hartog faz-nos ver que h testemunhas diversas, mais e menos

    experientes, talvez mais ou menos importantes ele d o exemplo das vtimas do

    Holocausto.

    Sobre a condio da testemunha na escrita da histria hoje, Hartog faz

    observaes sem pretender encerrar o debate. Primeiramente, reconhece que

    vivemos em um perodo em que a "economia miditica" gera o "imperativo do ao

    vivo" (HARTOG, 2011, p. 209), onde tende-se a acreditar que a testemunha no

    mente, tende-se a ouvir as singularidades. Em segundo lugar, o imediatismo e o

    sucesso da testemunha fazem com que se amplie a noo do que vem ela a ser. Em

    terceiro lugar, paradoxalmente, a "impossibilidade do testemunho" (Ibid., p. 211);

    sobre esta ltima observao, Hartog afirma que h um espao entre o que foi e o

    que poderia ter sido um acontecimento, o que permite afirmar que a testemunha

    permite uma reconstituio e no uma reconstruo. Testemunha-se o que j no

    se pode ver e uma testemunha apenas um dos caminhos possveis a se seguir.

    Teria a testemunha alguma autoridade? Ela importante para o

    estabelecimento de uma tradio, no entanto, necessrio interrog-la, fazer a

    autpsia, tal como o historiador grego, ou entend-la como um auctor (fiador)

  • Resenha: Evidncia da histria

    Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.

    latino. O que no se pode calar o historiador perante a testemunha. O "paradigma

    do vestgio", questo premente do XX, faz Hartog mobilizar mais uma vez Ricoeur,

    com a narrativa, que depende do testemunho, que por sua vez deve possuir

    credibilidade e que est ligado memria e sua tradio. Outra observao: "a

    testemunha de hoje em dia uma vtima ou o descendente de uma vtima" (Ibid., p.

    227); nasce a dvida entre o que seria autntico e o que seria real ou verdadeiro.

    Reconhece-se a "questo da urgncia a dar testemunho e da transmisso" (Ibid., p.

    228).

    Hartog prope que se valorize mais os arquivos com os quais se trabalha e

    se lhes compreenda mais a fundo, para que se possa julg-los como convm na

    prtica historiogrfica. O prprio ato de 'julgar' tema de reflexo, pois o

    historiador no deve se portar como absoluto, nem deixar ser 'absolutizado' pelo

    objeto. A crise atual, entendida como o momento de reflexes variadas de que

    objeto a prpria histria, contudo, tida por Hartog como um momento de

    transformaes 12.

    12 Essas so questes do ltimo captulo: Conjuntura do final de sculo: a evidncia em questo? p. 229-251.