resgate da mãe africa

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    1/223

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

    CURSO DE DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA

    ARQUEOLOGIA DA MEMRIA:RESGATE DA ME FRICA

    Orientanda:Maria Auxiliadora Gonalves da Silva

    Tese apresentada ao Programa de Ps - Graduao em

    Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, sob a

    orientao da Professora Doutora Maria do Carmo Tinco

    Brandopara obteno do grau de Doutor em Antropologia.

    RECIFE

    2007

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    2/223

    Silva, Maria Auxiliadora Gonalves da

    Arqueologia da memria: resgate da Me-frica. Recife: OAutor, 2007.

    225 folhas : il., fotos, tab.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco.CFCH. Arqueologia. Recife, 2007.

    Inclui bibliografia e anexos.

    1. Antropologia. 2. Memria Sobrevivncia cultural Resgate. 3. Etnias Populao. 4. Afrodescendentes Gruposafros. 5. Transmigrao. I. Ttulo.

    39301

    CDU (2. ed.)CDD (22. ed.)

    UFPEBCFCH2007/17

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    3/223

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    4/223

    AGRADECIMENTOS

    Na credibilidade de que ningum se realiza e cresce por si s, apresento meus

    agradecimentos ao Criador Primordial e aos Grandes Amigos Csmicos pelo

    acompanhamento e sustentao espiritual em todas as fases desta construo.

    minha Orientadora do Doutorado, Prof Dr Maria do Carmo Machado Tinco

    Brando, de forma muito especial, pelo profissionalismo nos momentos das orientaes e

    crticas, pela oportunidade, estmulo e apoio em toda a minha trajetria acadmica,

    permitindo a construo de uma grande estima e sincera amizade.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior-CAPES pelo

    financiamento da Bolsa, para o Estgio de Doutorado (Sandwich), no Programa Brasil-

    Espanha, CAPES-MECD proporcionando-me experincias e preciosas aquisies

    acadmicas e pessoais.

    Ao Prof Dr. D. ngel Baldomero Espina Barrio, Coordenador do Projeto

    Brasil/Espanha e meu Co-orientador em Salamanca-Espanha, pela ateno e presteza nos

    encaminhamentos das pesquisas, dentro e fora da Universidad de Salamanca.

    A todos os amigos adquiridos nesse Estgio, que de forma direta ou indiretamente

    me acolheram, me ensinaram e compartilharam comigo o viver Salamanca.

    todos os Professores que compem o Programa de Ps-Graduao do Doutorado

    da UFPE, pelo compartilhar o conhecimento. s Secretrias do Programa, Regina Salles de

    Souza Leo, AnaMaria da C. Albuquerque Melo e Mriam Fabrcio de Matos pela ateno,

    carinho, presteza e esforo nas informaes e documentos.

    s amigas que compuseram a minha Turma de Doutorado, de forma especial a

    Rosinha Barbosa e Fabiana Pereira, pela amizade construda, que nos permitiu compartilharo crescimento mental e espiritual.

    Aos Grupos Afros, pela contribuio inestimvel a este trabalho, pela delicadeza em

    abrir seus espaos, e de forma muito particular, a todos os responsveis pelos grupos, na

    concesso das entrevistas.

    Aos amigos da Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE, de forma

    especial os que fazem o Departamento de Letras e Cincias Humanas, pelo carinho no

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    5/223

    apoio e no incentivo em todo o decorrer do Doutorado e especialmente na fase de escrita da

    Tese.

    s Bibliotecrias e funcionrias da Biblioteca da UFRPE, amigas e companheiras

    de trabalho, como bibliotecria, iniciando na instituio, e que como professora passaram a

    compartilhar de toda a minha trajetria acadmica. Saliento ainda, o carinho e a confiana

    das mesmas na minha vitria, e indo alm do profissionalismo foram sem medir esforos,

    colaboradoras no atendimento e co-participantes no acesso e aquisio das informaes.

    Aos alunos do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Questo Negra, na colaborao

    das pesquisas. Ao ex-aluno Mrio Ribeiro dos Santos e Luiz Eduardo Pinheiro Sarmento

    pela solicitude nas pesquisas e outras informaes acessadas no Centro de Formao,Pesquisa e Memria Cultural - Casa do Carnaval Secretaria de Cultura da Prefeitura do

    Recife-PE.; ao ex-aluno e mestrando de Histria da UFRPE, Humberto da Silva Miranda,

    pelas contribuies tambm nas pesquisas; e a aluna de especializao em Histria, Janana

    Santos, pela colaborao na coleta de dados.

    grande amiga Prof. Dr Valria Severina Gomes, pela presena constante e

    solidria , alm da imensa presteza na leitura e reviso da tese.

    Prof Dr Mari Noeli Kiehl, pela delicadeza e disponibilidade na leitura e reviso.

    amiga Prof Ms. Valria Costa, pela amizade, apoio, contribuies e colaboraes

    importantes nas discusses referentes afro-descendncia, no contexto das prticas

    religiosas.

    Ao fotgrafo Celso Pereira Jnior, por gentilmente autorizar a publicao das

    fotografias do Grupo Afro Razes de Quilombo.

    Mario Galdino da Silveira Neto, pela generosidade, apoio e presteza nas questes

    relativas digitao.

    famlia, pela fora, estmulo, crdito no meu trabalho e compreenso nasausncias do convvio familiar em muitos momentos. E finalmente, a todos os amigos que

    compartilharam e, mais do que isto foram cmplices dos meus ideais, quedas, superaes e

    vitrias.

    A todos, a minha gratido!

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    6/223

    DEDICATRIA

    Maria Antnia,

    que sempre esteve presente como irm, amiga, cmplice, crtica, companheira esolcita em todos os momentos de viver e morrer, compreendidos como as construes, asdores, as quedas, as superaes, as oraes, as alegrias, as ausncias, as paixes, asfrustraes, as abundncias e as grandiosas vitrias, no decorrer desta vida eprovavelmente, de muitas outras....

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    7/223

    A memria compara-se escamas, tais como as do peixe, arrumadas

    como fatias de rochas sedimentadas pelo tempo, cuja escavao

    arqueolgica torna-se necessria para que se possa perpetuar uma

    experincia vivida.

    Arqueologicamente, a memria dos afrodescendentes reorganizada,

    trazida superfcie do cotidiano, cerceando-a de uma leitura crtica e

    revolucionria, como se ainda estivesse sob o controle do tempo que

    a transmigrou.Thaurus

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    8/223

    RESUMO

    A arqueologia da memria, nesse estudo est definida como o desenterrar datrajetria do africano pelo Atlntico, usando como apetrechos o imaginrio, a recordao ea percepo dos acontecimentos, transmitidos e armazenados no solo da conscincia e nacosmoviso coletiva dos afrodescendentes O carter arqueolgico est fundamentado napercepo da existncia de camadas superpostas da memria social dos Grupos-Afros, daRegio Metropolitana do Grande Recife, na medida em que estas se projetamconflituosamente, na busca da apreenso e do arquitetamento do mundo afrodescendente.Esta busca no presente est explicitado na afirmao e no reconhecimento da identidade ena reconstruo de uma cidadania diferenciada. O estudo apresentado um propsito deinvestigar, analisar e interpretar a expresso Resgate da Me frica, simbolizada pelosgrupos, como um grande ventre, que ainda alimenta seus filhos na dispora. A relevncia

    do estudo, da pesquisa e da anlise desta expresso concentrou-se nas formas de uso, nainterpretao dada, tanto nos discursos como nas articulaes entre o Movimento NegroUnificado- MNU-Recife e os Grupos Afros, uma vez que o primeiro visto comoagregador, catalizador e mobilizador da populao afro-descendente; e os segundos, seauto-consideram como os maiores disseminadores da cultura afro, principalmente junto ascrianas e aos adolescentes. Para tanto s encontrei um caminho de abordagem terica, queme daria uma compreenso maior daquilo que, segundo eles representa a fora e a vigamestra dos seus discursos e prticas a memria. Atrelei esta abordagem a amplaliteratura histrica/antropolgica da transmigrao, do processo de sobrevivncia, deresistncia e de luta, dos africanos no Brasil, em cuja definio passar de um lugar paraoutro (pas, regio, etc) e passar a alma de um corpo para outro, est impresso o que foi

    ontem o mapeamento da transformao da cultura africana num outro contexto territorial.Para a realidade do que hoje denominado de cultura afro-brasileira, o trabalho etnogrficome conduziu continuidade/descontinuidade da sobrevivncia dessa cultura, no contextopoltico-ideolgico, ponto chave de anlise de todo o estudo. Neste sentido, o contedo daTese compe-se de 4 captulos, assim desenvolvidos: 1 OlharesHistricos/Antropolgicos:Da Sobrevivncia Memria ; 2- Caminhos da Memria; 3-Arqueologia da Transmigrao; 4- Memria Afro-brasileira: Caminhos e descaminhos daRota Me fricaPalavras-chaves: 1. Antropologia. 2. Memria Sobrevivncia cultural Resgate. 3.Etnias Populao. 4. Afrodescendentes Grupos afros. 5. Transmigrao.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    9/223

    ABSTRACT

    The archaeology of memory is defined, in this study, as the uncovering of thehistory of the African peoples, via the Atlantic, using tools such as imagery, memory andthe perception of events, transmitted and stored deep in the consciousness of Afro-descendents, and in their collective world view. Its archaeological nature is based on theperception of the existence of superimposed layers in the social memory of Afro groups inthe metropolitan region of Recife, in the sense that they are projected in a conflicting way,seeking to understand and shape the Afro-descendent world. This search, in the present day,is clearly demonstrated in the affirmation and recognition of identity, and in thereconstruction of a distinct citizenship. This study seeks to investigate, analyze, andinterpret the expression Resgate da Me frica (Retrieving Mother Africa), which issymbolized by the groups as a large womb which still feeds its children in the Diaspora.

    The relevance of the study, research, and analysis of this expression lies in its forms ofusage, and the meaning attributed to it, in both the discourses and the dialogues between theMNU (the Unified Black Movement) in Recife and the Afro groups, since the former isseen as a gatherer, catalyst, and mobilizer of the Afro-descendent population; while thelatter are seen as the main disseminators of Afro culture, particularly among children andyoung people. To achieve my objectives, I found only one technical approach that wouldbroaden my understanding of that which represents, in their opinion, the strength andcornerstone of their discourses and practices the memory. To this approach, I linked thevast historical and anthropological literature on transmigration, the survival process, andthe resistance and struggle of the Africans in Brazil. Imprinted in the definition of the wordtransmigration the passage from a place to another (a country, region, etc.), and the

    passage of a soul from a body to another are images of what the past was like, and themapping of the transformation of the African culture in a different territorial context. Tounderstand what is today known as Afro-Brazilian culture, this ethnographic work lead meto investigate the continuity/discontinuity of the survival of this culture in the political-ideological context, which is the key point of analysis of the study as a whole. This Thesisconsists of four chapters, as follows: 1 Historical/Anthropological Perspectives: FromSurvival to Memory; 2 Paths of the Memory; 3 Archaeology of Transmigration; 4 Afro-Brazilian Memory: Directions and Misdirections of the Mother Africa Route

    Key Words: 1 Historical/Anthropological Perspectives: From Survival to Memory; 2 Paths of the Memory; 3 Archaeology of Transmigration; 4 Afro-Brazilian Memory:

    Directions and Misdirections of the Mother Africa Route.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    10/223

    LISTA DE QUADROS

    Quadro - 1 Identificao dos Grupos Afros 142

    Quadro - 2 Situao de Sedes dos Grupos Investigados 177

    Quadro - 3 Espaos Utilizados para as Atividades 178

    Quadro - 4 Grupos que trabalham com Crianas/Adolescentes e Tipos de

    Atividade 179

    Quadro - 5 Escolaridade 182

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    11/223

    LISTA DE MAPA E FOTOGRAFIAS

    MAPA

    Mapa do Recife e Regio Metropolitana Localizao dos Grupos Afros 143

    FOTOGRAFIAS

    Foto 1 - Grupo Afox Il de Egb Sada do Afox na Igreja do Rosrio dos

    Homens Pretos 1996. 146

    Foto 2 - Grupo Afox Il de Egb Apresentao em Salvador, 2004 150

    Foto 3 - Grupo Afox Il de Egb Apresentao na Blgica, 2005. 151

    Foto 4 - Grupo Afox Alafin Oy Apresentao em Olinda, Dia da ConscinciaNegra. 156

    Foto 5 - BACNARE Grupo que se apresentou em Taiwan 163

    Foto 6 - BACNAR Apresentao no Teatro do Parque, 2005 164

    Foto 7 - BACNAR Apresentao no Festival de Dana na Frana 165

    Foto 8 - Apresentao do Centro de Educao Cultural Daru Malungo 169

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    12/223

    SUMRIO

    INTRODUO 14

    CAPTULO IOLHARES HISTRICOS/ANTROPOLGICOS: DA SOBREVIVNCIA MEMRIA 26

    1.1Definindo os Olhares 261.2Aguando os Olhares 32

    CAPTULO II

    CAMINHOS DA MEMRIA 48

    2.1 Memria: Firmando suas Camadas 48

    2.2 A Memria como Teoria Social 56

    CAPTULO IIIARQUEOLOGIA DA TRANSMIGRAO 88

    3.1 Elos de Justificativa 88

    3.2 Os Trs Lados da Transmigrao 89

    3.2.1 Na frica, a Morte Social 99

    3.2.2 No Novo Mundo, a Alma em Outro Corpo 112

    3.2.3 Alma e Corpo Despertos 125

    CAPTULO IV

    MEMRIA AFRO-BRASILEIRA:CAMINHOS E DESCAMINHOS DA ROTA

    ME FRICA 137

    4.1 O Traar dos Caminhos 137

    4.2 Grupos Etnografados 144

    4.2.1 Grupo Afox Il de Egb 144

    4.2.2 - Grupo de Afox Alafin Oy 151

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    13/223

    4.2.3 Grupo Afro Cultura Negra Do Recife BACNAR 159

    4.2.4 Grupo Afro Centro De Educao Cultural Daru Malungo 165

    4.3 Outras Realidades do Campo 171

    4.4 Me frica, Memria e Vivncia 185

    CONSIDERAES FINAIS 203

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 212

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    14/223

    13

    INTRODUO

    Grupo Razes de Quilombos Evento Tera Negra Ptio de So Pedro, Recife-PE

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    15/223

    14

    INTRODUO

    As formas pelas quais o legado da transmigrao dos povos africanos foi construdo

    pelos estudiosos nacionais e internacionais me permitiram esboar um paralelo entre

    sobrevivncia e memria, no tempo e no espao, e a contextualizao de sua representao

    hoje, dentro dos grupos afros de alguns bairros do Recife e da Regio Metropolitana.

    Fazendo uma retrospectiva dos estudos sobre a transformao da ordenao dos

    africanos e mais tarde dos afro-descendentes, desde o sculo XIX, o tema da escravido

    tem sido objeto de investigao e de um percurso variado e extenso. A produo intelectual

    brasileira voltou-se para o tema a partir de diversas perspectivas e, logicamente, chegou adiferentes concluses. Sem dvida, a obra de Gilberto Freyre, da dcada de 1930, destaca-

    se pelo xito em termos de apresentao e circulao de suas idias. Na dcada de 1950

    Maggie e Rezende (2001), tambm sobressaram outros estudos1, que, procurando ir contra

    a idia de uma escravido branda, acabaram por considerar os escravos como vtimas

    passivas do sistema abordagem j bastante criticada pela historiografia brasileira da

    dcada de 1980.

    Nos meados do sculo XX, precisamente na dcada de 1960, a historiografia e a

    antropologia brasileira atualizaram os vieses racistas do sculo XIX, principalmente as duas

    ltimas dcadas 1870 e 1888- as quais atribuam ainda escravido a pobreza e a

    alienao dos negros. Contrapondo-se a esse vis, aps o turbulento perodo da dcada de

    1960, os estudos e pesquisas dos finais da dcada de 1970 vem emergir os movimentos de

    esquerda, num primeiro momento, e dos movimentos negros2, num segundo, vindo a

    corroborar com os esforos de estudiosos da Universidade de So Paulo, para romper com a

    concepo e a imagem das relaes escravistas harmoniosas, sistematizadas por Freyre

    (1980), quebrando o que Freitas (1978) tambm nomeou de interesses polticos. Entre 1970e 1980, segundo Maggie e Rezende (2001), os estudos voltaram-se com mais intensidade

    1Dentro do aspecto antropolgico, em 1950, a UNESCO promoveu estudos grandiosos no Brasil sobre asrelaes raciais, partindo da divulgao da harmonia nas relaes entre negros e brancos. O objetivo era ter oBrasil como referncia para a sada do terror gerado pelo ps-guerra, frente ao holocausto.2 Muito antes deste perodo os movimentos negros j haviam se manifestado em forma de organizaesnegras -1920/1930 - como o Centro Cvico de Palmares, que forneceu lderes e idias para a Frente NegraBrasileira, com representaes em So Paulo, Minas, Bahia, Rio Grande do Sul e Recife-PE.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    16/223

    15

    para as diferenas culturais entre brancos e negros3, levando busca de uma essncia

    cultural negra. Segundo Maggie e Rezende (2001), em 1980, dcada na qual se

    comemoraria o Centenrio da Abolio (1888-1988), descobre-se no Brasil, com o influxo

    da antropologia, que a identidade era construda. No entanto, a dcada de 1990, respaldada

    no que estes mesmos autores denominam de exemplar modelo de soluo dos conflitos

    raciais dos Estados Unidos, os estudos e pesquisas no Brasil voltaram-se para discusses

    do conceito de raa atrelada nao, como expresso mxima de categorias raciais

    acionadas em defesa de interesses e de projetos polticos. As reflexes agora recaem, de um

    lado, sobre a nao que busca na mistura a sua identidade; e, de outro, sobre a relevncia da

    raa, que, temendo a mistura, segrega e ope.O panorama cronolgico dos estudos relacionados s questes negras configura-se

    como linha norteadora dos estudos desenvolvidos nessa Tese. Os estudos sobre

    Movimentos Negros, objeto de meu interesse, tem como ponto de partida os finais da

    dcada de 1970, nos quais me deparo com as mais diversas manifestaes. Dentre elas

    esto o teatro negro, recitais de poesias, seminrios, palestras, exposies, apresentaes de

    danas e msicas afro-brasileiras, influenciadas pelos movimentos dos Estados Unidos,

    pelos movimentos de libertao da frica.4Alm disso, juntam-se a esses movimentos as

    exacerbadas manifestaes dentro do Brasil os estudos sobre as questes negras, fazendo

    eclodir os movimentos negros brasileiros (SILVA, 1994, p. 14). Projetados nas ideologias e

    aes dos movimentos externos, os movimentos negros brasileiros crescem em termosde

    organizao e tornam-se mais fortes, devido maturidade da revoluo dos negros dos

    Estados Unidos e do continente Africano, que os influenciavam. Vrios estudiosos desta

    temtica, segundo Cunha Jr. (1979, p. 20-21), confirmam que os estudos da influncia de

    tais fatos tornou-se naquele momento marcante nas formas e tentativas de pensar a questo

    brasileira e na definio dos rumos que deveriam ter os movimentos no Brasil.Fundamentando-me nesses estudos, volto meu interesse para a anlise dos Grupos

    Afros, de alguns bairros da Cidade do Recife e da Regio Metropolitana, objeto de estudo

    da Tese de Doutorado em Antropologia. Os Grupos Afros, apesar de fazerem parte dos

    3Neste perodo pouco espao sobrou para os estudos quantitativos sobre o lugar social do negro na sociedadebrasileira. Autores como Carlos Halsenbalg e Nelson do Valle e Silva so considerados pioneiros natentativa de provar que a desigualdade no Brasil no era apenas conseqncia das diferenas de classe, masque a raa (grifo das autoras) determinava de forma muito evidente a posio social dos indivduos.4Os movimentos de libertao da frica tinham comeado desde os fins da dcada de 1950.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    17/223

    16

    movimentos negros, diferem em seu contedo e ao em relao ao Movimento Negro

    Unificado, j estudado na Dissertao do Mestrado em Antropologia. Para essa

    diferenciao recorro a DAdesky (2001), como tambm ao Movimento Negro Unificado

    (MNU), estudado por Silva (1994), que separam os movimentos em trs espcies de

    natureza: a primeira- natureza cultural que envolve as entidades negras ou grupos afros,

    que tm objetivos e preocupaes especficas, desenvolvendo um trabalho sobre um

    determinado problema. No se constituem em grupos fortes e combativos, capazes de

    responder s demandas da comunidade negra. A segunda - natureza religiosa na qual

    encontram-se as entidades religiosas, vinculadas a espaos onde realizam seus batuques e

    outros rituais para os deuses africanos. A terceira - natureza poltica todo movimentonegro, seguindo as estruturas dos movimentos sociais.

    Dessa forma, um movimento negro, como o MNU, tem como objetivo desenvolver

    aes poltico-ideolgias, partindo de um programa e de uma organizao unificada a

    outros movimentos negros. Apresenta propostas claras e definidas, em funo dos

    interesses especficos e das reivindicaes gerais da comunidade negra. Entretanto, os

    estudos e anlises sobre o MNU mostram que as entidades negras de natureza cultural no

    tinham uma proposta ampla para mudar a realidade da populao negra de Recife e da

    Regio Metropolitana. Ao mesmo tempo, eu conclu que o prprio Movimento tinha

    desenvolvido uma ao poltica que no correspondia ao do seu papel de catalisador e

    mobilizador dessa mesma populao, na qual estavam inseridos os grupos afros.

    Sendo assim, meu interesse de estudo recaiu sobre os grupos afros que constituem

    os movimentos de natureza cultural maracatus, afoxs, escolas de samba, blocos, reggae,

    capoeira. Esses Grupos Afros atribuem seus surgimentos a fora do contexto social local,

    que, segundo eles, exige uma atuao diferenciada e adequada aos problemas sociais com

    vistas a uma mudana, uma minimizao do modo de viver e de ser daquela populaoquase que predominantemente negra.

    Isso implicou num trabalho especificamente com crianas e adolescentes dos bairros

    que se encontram propensos ou que j vivem uma situao de risco. Sendo assim, os grupos

    procuram recuperar-lhes a auto-estima, relacionada pobreza, identidade tnica e ao

    mesmo tempo conferir-lhes, atravs da memria-afro, instrumentos para o conhecimento e

    a prtica da cidadania. Caracterizam-se por usarem a msica percusso- e a dana, como

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    18/223

    17

    forma de atrair as crianas e adolescentes, divulgar e, ao mesmo tempo, preservar e

    perpetuar a memria afro. Para tanto, fazem uso de oficinas diversificadas, como confeco

    de instrumentos, percusso, dana, artesanato, propiciando-lhes uma profissionalizao.

    A pesquisa anterior sobreo MNU e a atual sobre os Grupos Afros correspondem

    complementao dos meus estudos sobre os movimentos negros. Nos dois trabalhos, os

    direcionamentos afastam-se, em virtude dos propsitos polticos e culturais, e se

    aproximam pela atuaojunto populao negra no que diz respeito cidadania. O

    destaque dado a este aspecto nos Grupos Afros no se configura como fator principal deste

    estudo, mas na importncia das prticas para a preservao, divulgao e perpetuao da

    memria afro.Esse enfoque redimensionoutanto a pesquisa de campo como as anlises, em dois

    mundos: um relacionado organizao/reordenao da histria individual e coletiva,

    percebida e vivida por esses grupos; e outro, estruturado nas expresses da msica e da

    dana, marcadas por um extenso e complexo processo de busca de resistncia,

    enraizamento e reforo s particularidades tnicas voltadas para a elaborao de estratgias

    de incluso social.

    Os caminhos traados para este estudo mostram duas percepes sobre o contexto

    dos Grupos Afros. Uma que conduz o meu fazer, a pesquisa etnogrfica; e a outra

    referente ao que levanto em termos bibliogrficos. O ontem e o hoje, na etnografia e no

    levantamento bibliogrfico misturam-se e confundem-se em ambas. Ontem, a msica e a

    dana, importante para os estudiosos devido ao extico, ao que estava por trs das

    apresentaes, das tmidas s mais ousadas e constantes buscas de organizao da

    populao escrava, aforriada, liberta. Hoje, o olhar dos estudiosos, com fins avaliativos e

    crticos, sobre uma populao tambm negra, que, de forma explcita, sem o controle, sem

    as regras e sem as proibies, impe msica e dana o carter de memria. Pelasleituras e anlises, os estudos iniciais sobre os Grupos Afros me apontaram que essa

    populao que os compe, organizada ou no, no passado e no presente constitui, ainda, um

    quadro que desperta algo instigante e diferente. A pesquisa de campo nos d uma outra

    viso do que hoje pesquisado em relao ao que foi tratado pelos clssicos e pelos

    contemporneos. A populao em estudo criou um mundo que s ela pode e tem o poder de

    reconstruo /reordenao, no que se refere a sua memria. Isso implica na certeza da

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    19/223

    18

    reapropriao e do uso da memria afro, adequada aos seus sentimentos, sua viso de

    mundo, a respeito do significado de reaproximao da Me frica e de ser a prpria frica.

    O mundo dos Grupos Afros estudados segue caminhos de uma histria no

    experienciada, mas repassada, reconstruda, reinventada e perpetuada. Essa histria,

    impossvel de ser dimensionada, faz os Grupos Afros encontrarem uma identidade de

    ritmos, sons e coreografias que estruturam propostas de luta e de reivindicaes para algo

    pouco palpvel a dignidade de ser cidado. Nessa incongruncia, estabeleo alguns

    pontos de anlise que implicam: em um mergulho na realidade dos dados coletados,

    situando os Grupos Afros no tempo e espao; na evidncia das diferentes posturas e saberes

    dos grupos afros em relao aos usos da memria, diante dos problemas e conflitos sociaisem que se encontram inseridas; e em um mapeamento das lacunas que envolvem as aes

    latentes e manifestas sobre o uso da memria afro.

    Os Grupos Afros investigadosesto voltados para as prticas no-verbais, definidas

    por Lienhard (1999) como aquelas que se integram numa operao comunicativa expressa

    pela cantiga, pela dana, atravs do ritmo de um instrumento. Nesse aspecto, as prticas

    no-verbais do o sentido desta operao comunicativa de ser, sentir e estar afro-

    descendente.5Os Grupos Afros, ao se colocarem como preservadores da identidade afro e

    construtores da cidadania6, atravs da manifestao da msica e da dana pura e

    simplesmente, possibilitam levantar alguns questionamentos: que elementos conceituais e

    ideolgicos lhes proporcionam a formao e a legitimao de construtores da cidadania?

    Qual a dimenso e o entendimento do que representa o uso da expresso resgate da Me

    frica? Como a memria afro contrape-se ao propsito de canonizao da diferena das

    estratgias colonialistas? Quais os princpios que asseguram a articulao da frica de

    ontem/hoje com a realidade que buscam transformar? Que mudanas na populao negra

    podem ser salientadas como resultado do uso da memria afro?Mediante tais questionamentos, parto do pressuposto de que os Grupos Afros no seu

    desempenho de movimento negro, de natureza cultural, refletem a ausncia de uma

    5Para o MNU, a contra-ideologia apela memria coletiva para reabilitar uma imagem positiva da frica eda histria dos negros no Brasil, invocando um passado glorioso e de rebelies armadas. Inclui nos seusdiscursos e aes a desigualdade a reivindicao no acesso aos bens materiais e s posies de prestgio.6 A cidadania a qual os Grupos Afros se referem est centrada na mudana das estruturas sociais, dasmentalidades e dos valores afros, afirmando a igualdade e equilibrando os direitos e deveres dos indivduos eda coletividade.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    20/223

    19

    proposta ampla capaz de mudar a realidade da populao negra do Recife e da Regio

    Metropolitana, porque:

    a vulnerabilidade e a fragilidade das suas formas de criao, organizao e

    legitimao como Grupos Afros configuram-se como barreiras para a

    conduo, a afirmao da identidade tnica e a prtica do exerccio da

    cidadania;

    as propostas e objetivos junto populao negra so ambguas e

    conflituosas, decorrentes da existncia dos vestgios dicotmicos e

    hierrquicos da poltica colonial, que freia e bloqueia a dialtica da

    continuidade/descontinuidade no uso e no papel da memria no cotidianodos grupos-afros.

    a poltica de alianas junto aos outros movimentos negros, para o

    fortalecimento da memria afro, as estratgias de mudana e a

    transformao da mentalidade da populao negra, no est voltada para

    uma crtica e uma reflexo da histria do povo africano, e dos afro-

    descendentes, inviabilizando umavivncia de um passado real, coerente e

    adequado ao presente.

    Dessa forma, estabeleci como objetivos gerais:

    identificar e analisar nos Grupos Afros da Regio Metropolitana do

    Recife, o uso da memria afro na configurao do jogo dialtico da

    afirmao da identidade afro-descendente e na abertura para o ativismo

    poltico em busca da cidadania ;

    detectaros caminhos e as perspectivas dos Grupos Afros no processo de

    releitura e de reinterpretao do patrimnio africano em relao ao

    contexto em que esto inseridos.

    Como objetivos especficos, proponho-me a:

    mapear os mecanismos e instrumentos de desagregao e as estratgias de

    agregao que norteiam os caminhos da continuidade/descontinuidade da

    cultura africana, usados pelos Grupos Afros;

    analisar as formas que identificam e legitimam os Grupos Afros como

    continuadores da memria afro;

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    21/223

    20

    investigar e analisarcomo atravs da msica e da dana as crianas e os

    adolescentes so formados para serem perpetuadores da memria afro e

    transformadores do cotidiano social, poltico, econmico dos afro-

    descendentes.

    Os questionamentos, as hipteses e os objetivos conduziram-me a um marco terico

    fundamentado na memria. Nesse marco tomo como terico principal Maurice Halbwachs,

    no qual encontro todo o direcionamento para um aporte sobre a definio, argumentao e

    compreenso, no tempo, espao e lugar, para o estudo da memria afro.

    Todos os autores que abordam a memria, por mim pesquisados, seja qual for o

    campo de interesse de estudo, tm em Maurice Halbwachs o direcionamento para aconstruo de suas discusses tericas especficas. Partindo de Maurice Halbwachs,

    busquei autores como Michael Pollak, Paul Ricoeur, Henry Rousso, Jol Candau, Marc

    Aug, Pierre Nora, Tzvetan Todorov, Arjun Appadurai e muitos outros, que me permitiram

    fazer a ponte com os aspectos histricos, antropolgicos e polticos no que se refere ao

    tempo, espao e lugar da memria. Tais aspectos implicaram em perscrutar a realidade da

    memria dos grupos afros nas formas, usos e abusos que geram a sacralizao e a

    banalizao, no mbito da continuidade/descontinuidade.

    A partir desse direcionamento, os procedimentos metodolgicos atrelaram-se a uma

    abordagem histrico/antropolgica, pois tratando-se da memria afro tive que ampliar meu

    olhar para o cruzamento das reas de Antropologia e de Histria, como suporte terico e

    metodolgico para compreender a evoluo da memria - no sentido de uso, interpretao e

    construo histrica por estudiosos - o processo de transmigrao, vista aqui como a rota

    frica/Brasil do comrcio escravista; o sistema escravista, englobando a reordenao dos

    africanos no Novo Mundo e dos seus descendentes nos sculos XVI a XIX Para tanto,

    utilizei o mtodo qualitativo, com apreocupao de aprofundar a compreenso de gruposocial, contido nos Grupos Afros, buscar os seus elementos constituintes e a explicao das

    estruturas e a evoluo desses elementos no cotidiano dos mesmos, acessados pelas

    etnografias e entrevistas.

    Para a Tese de Doutorado, apesar de ter feito contatos aleatrios com os Grupos

    Afros, desde o momento da Dissertao do Mestrado, a escolha dos Grupos Afros se deu

    atravs da Gerncia Operacional do Centro de Formao, Pesquisa e Memria Cultural,

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    22/223

    21

    conhecida como Casa do Carnaval7, ligada Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife.

    Essa Gerncia me apresentou um universo de 184 Grupos Afros, cadastrados, entre

    maracatus, escolas de samba, capoeira, blocos, afoxs, reggae, bloco de Samba e hip-hop.

    Para a minha amostra escolhi 20 (vinte) Grupos Afros, tendo o cuidado nessa escolha de

    estabelecer como categoria de seleo os critrios de Grupos antigos e grupos recentes, e

    dentro esses, grupos de msica e de dana que trabalhassem com crianas e adolescentes.

    Com esses critrios, dos 20 (vinte) escolhi 04 Grupos para um estudo etnogrfico,

    constando dos afoxs Alafin Oy e o Il de Egb e dos grupos de dana Bacnar e Daru

    Malungo. Este ltimo apresentava uma nova proposta de ao cultural pedaggica para os

    afro-descedentes. Com os outros 16 (dezesseis) grupos foram feitas apenas entrevistas. OsGrupos Afros escolhidos fazem parte de vrios bairros da cidade do Recife e da Regio

    Metropolitana.

    Para a coleta de dados,8 utilizei a observao- participante, visando colher as

    informaes sobre o discurso e a prtica; ter uma melhor aproximao com a realidade dos

    grupos e suas atividades, nos ensaios, desfiles, nas sedes provisrias, na rua ou em suas

    sedes; a entrevista semi-aberta, com o fim de captar de uma forma mais natural a dimenso

    da concepo, compreenso e interpretao do resgate da Me frica; tambm fiz uso de

    conversas informais. Junto a estes instrumentos foram feitas outras pesquisas, como

    levantamento bibliogrfico nas bibliotecas das Universidades locais e nacionais atravs de

    Bancos de Dados via Internet e pelo Programa de Comutao Bibliogrfica (COMUT), pela

    Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Dentro desse campo de

    levantamento bibliogrfico, foram realizadas pesquisas em Salamanca - Espanha, nas

    seguintes bibliotecas: Biblioteca Francisco Vitria, da Universidade de Salamanca,

    Biblioteca Pblica de Salamanca, Biblioteca da Faculdad de Filologa da Universidade De

    7 A Casa do Carnaval, na verdade, um nome fantasia. Desde 2005 atua como Gerncia Operacional doCentro de Formao, Pesquisa e Memria Cultural - Casa do Carnaval, ligada Secretaria de Cultura daPrefeitura do Recife. A Casa fica localizada no Ptio de So Pedro, 52, no bairro de So Jos/ Recife econstitui um espao que prioriza a formao, informao e preservao do nosso patrimnio, seja ele materialou imaterial. Oferece cursos, oficinas, seminrios, tardes de estudos, tudo referente s temticas de histria,

    patrimnio e cultura popular. Realiza exposies cclicas (Carnaval, So Joo e Natal), alm de outras datascomemorativas como o Aniversrio do Recife, Dia do ndio, Dia do Folclore, Dia da Conscincia Negra.8No perodo em que estava fazendo as disciplinas do doutorado, nas frias fiz um Curso em Salvador BA, noCentro de Estudos Afro-Oriental- CEAO, intitulado Fbrica de Idias, durante quase dois meses e no qual tivecontatos com pessoas que faziam parte de Grupos desta mesma natureza e nos quais fiz rpidas visitas, comoo Olodum, o Il Ay o de Steve Bike

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    23/223

    22

    Salamanca, Biblioteca da Faculdad de Geografia e Historia da Universidade de Salamanca,

    Biblioteca do Instituto Iberoamerica e Biblioteca da Faculdad de Educacin da Universidad

    de Salamanca .

    Sendo assim, desenvolvi a Tese em quatro captulos dentro de uma reflexo, re-

    leitura e reinterpretao do Resgate da Me frica: Uma Arqueologia da Memria.O

    primeiro captulo denominado Olhares Histricos/Antropolgicos: da Sobrevivncia

    Memria refere-se ao mapeamento dos direcionamentos e das adequaes dos estudos e das

    discusses sobre o domnio do conhecimento sobre os povos da frica nas Amricas e de

    forma especfica no Brasil. Para tanto, cruzo os olhares da Histria com o da Antropologia,

    considerando que estas duas reas, embora guardando suas peculiaridades apontam para odesencadeamento das novas tendncias sobre a temtica no Brasil, tendo como parmetro a

    continuidade/descontinuidade no processo de reconstruo da memria afro. No momento

    atual, considero que esses olhares passam a ser os demarcadores dos encaminhamentos, dos

    estudos e das anlises dos intelectuais, a respeito da memria afro, de acordo com as

    flutuaes e as transformaes das relaes sociais, culturais, econmicas e polticas, nas

    quais os grupos afros vivenciam e repassam a sua memria.

    No segundo captulo, Caminhos da Memria, abordo os aspectos tericos da

    memria, tendo Maurice Halbwachs como expoente essencial para, junto com outros

    estudiosos, fundamentar a anlise terica dos Grupos Afros estudados. Partindo do seu

    aporte durkheimiano, ou seja, o olhar sobre a memria como fenmeno social, pude

    antropologicamente perceber, nos eventos, acontecimentos e fatos, o quanto a histria

    deixou passar no que se refere dimenso da alteridade estabelecida no processo de

    transmigrao dos africanos para o novo mundo e sua importncia para a construo e

    valorizao da memria dos afro-descendentes. Outros autores entre filsofos,

    historiadores, psiclogos, antroplogos - que estudam a memria, estruturados nosprincpios de Halbwachs deram suporte paraa construo da compreenso do tempo e do

    espao, do passado e do presente no contexto social e poltico da memria coletiva dos

    Grupos Afros. Com base neles,saliento a memria que passa do sentimento de vitimizao

    para o de valorizao; de memria de opresso e dominao para a construo da memria

    coletiva, atravs da qual transformam-se em atores que intervm na memria vivida

    /aprendida e vivida / transmitida.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    24/223

    23

    No terceiro captulo, Arqueologia da Transmigrao, abordo dois aspectos deste

    processo na vida dos africanos. O primeiro est atrelado ruptura com o espao e o

    dilaceramento do corpo e da alma, no que diz respeito ao impacto e ao significado para os

    africanos deste processo. Para tanto, retomo o quadro humano retratado pelos viajantes,

    missionrios, mercadores e comerciantes atravs de pesquisas e estudos realizadas por

    estudiosos sobre a travessia do Atlntico, entre eles, Alberto Costa e Silva, David Brion

    Davis, Paul Giroy, Paul E. L Charles R.Boxer, Paul E. Lovejoy, Luiz Felipe Alencastro,

    Pierre Verger, John Thornton, entre outros. O segundo est fundamentado na abordagem

    dos africanos no Novo Mundo, no processo de reintegrao, readaptao espacial,

    temporal, scio-cultural. Nesse aspecto, busco no somente as crticas e as justificativasdadas a esse procedimento que conduz a continuidade da transmigrao, como tambm as

    reaes dos africanos/escravos a essa condio. Neste contexto, utilizo autores como

    Kwame Anthony Appiah, Achille Mbembe e Alpha I. Sow, que fazem a ligao crtica da

    frica como elemento mtico que sobreviveu nas disporas, no jogo da diferena e da

    identidade. Recorri, ento, em especial, aos clssicos brasileiros sobre a questo, como

    Raimundo Nina Rodrigues, Edison Carneiro, Arthur Ramos, Thales de Azevedo, Roger

    Bastide, Manuel Querino, Manolo Florentino, como tambm outros clssicos e

    contemporneos, nacionais e estrangeiros, que estudaram e ainda estudam o assunto.

    O quarto captulo, Memria Afro-Brasileira: Caminhos e Descaminhos da Rota

    Me frica refere-se anlise das entrevistas com as lideranas e membros dos grupos,

    bem como dos dados etnogrficos, atravs das quais identificarei os caminhos e estratgias

    de escavao da memria dos seus antepassados e a sua reverso para o contexto de suas

    prticas. A partir da foi possvel compreender a dialtica entre Grupo Afro e memria

    coletiva; o significado, o papel e a finalidade dos Grupos Afros, na Cidade do Recife e

    Regio Metropolitana ; a conscientizao e a participao que esto tendono processo de

    continuidade/descontinuidade da prpria histria, dentro dos parmetros de coerncia e

    coeso de grupo; a importncia dos lugares da memria material topogrfico, simblico e

    funcional - em relao ao que fica do passado no vivido do grupo e o que os grupos fazem

    deste mesmo passado.

    O desenvolvimento dos captulos conduziu-me s Consideraes Finais, nas quais

    confirmo as minhas hipteses, no que se refere s concepes, estratgias, formas de usos e

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    25/223

    24

    abusos da memria afro pelos Grupos; tambm, as reflexes a respeito das percepes e

    inadequaes desses Grupos, concernentes aos processos de

    continuidades/descontinuidades, frente compreenso, vivncia e interpretao da

    memria, no contexto frica/Brasil. Essa parte foi assim denominada - consideraes finais

    - por compreender que nenhuma pesquisa e estudo chega ao seu final, muito pelo contrrio.

    Assim, este trabalho apenas evidencia a minha contribuio para o pensamento a respeito

    da memria afro e gera espaos e oportunidades para que os aspectos no aprofundados -

    por no ser o momento e o objeto de meu interesse direto possam encaminhar outras

    pesquisas, novos estudos e publicaes.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    26/223

    25

    OLHARES HISTRICOS/ANTROPOLGICOS :DA SOBREVIVNCIA MEMRIA

    Grupo Razes de Quilombos Evento Tera Negra Ptio de So Pedro, Recife-PE

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    27/223

    26

    CAPTULO I OLHARES HISTRICOS/ANTROPOLGICOS: DASOBREVIVNCIA MEMRIA

    1.1 Definindo os Olhares

    A definio de olhares, neste captulo, tem como princpio mapear os direcionamentos

    e as adequaes dos estudos e das discusses sobre o domnio do conhecimento acerca dos

    povos da frica nas Amricas, e de forma especfica, no Brasil. Para tanto, atravs de

    diversos estudiosos busquei cruzar os olhares da Histria e da Antropologia que, na minha

    viso, ao mesmo tempo, se encontram, se desafiam e apontam para o desencadeamento das

    novas tendncias sobre a temtica. Esses olhares, para mim, significam alicerar e assinalar

    a expresso e a profundidade destes estudos no Brasil, pela tica da continuidade e da

    descontinuidade, no processo de reconstruo da memria afro. No ontem e no hoje,

    considero que esses olhares configuraram-se/reconfiguram-se em demarcadores dos

    encaminhamentos e metas dos intelectuais, medida que as flutuaes e as transformaes

    das relaes sociais, culturais, econmicas e polticas se intensificaram/intensificam, dentroe fora do contexto da sociedade e dos grupos em que os afrodescendentes esto inseridos.

    Partindo dessa premissa, a literatura levantada mostra que o assunto, desde cedo

    foi a grande preocupao de todos aqueles dedicados observao e sistematizao das

    informaes.Tal preocupao, segundo Rodrigues (1977), era notria no meio intelectual

    da poca incio de 1900 - apesar da falta de solidez do terreno investigado e dos

    minguados conhecimentos preliminares que estes estudos pressupunham. Diante da

    exposio de vulnerabilidade daquele momento, nada mais representativo para enfocar e

    explicar as dificuldades em busca deste domnio e a ausncia de qualquer produo a

    respeito dos negros, do que a expresso de Romero (1949, p. 7), uma desgraa. Esse

    comentrio denota uma exploso de indignao do autor,ao constatar o pouco interesse e

    consagrao aos estudos sobre os negros africanos no pas. Expunha o escritor a ingratido

    para com os negros pela no ocupao dos intelectuais com a cultura dos africanos, de

    forma particular, sobre as suas lnguas e suas religies. A expresso de Romero (1949,

    p.7-10),refletiu ontema preocupao com a eminncia de perdermos a frica que temos

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    28/223

    27

    em nossa casa. Naquele momento, foi a convocao aos especialistas para agilizarem a

    memria africana, antes que a morte levasse tudo consigo. Em sua concepo,

    desconhecer a cultura desses povos, apesar da ignorncia que os caracterizavam como

    inferiores e dignos de serem objeto de cincia, como dizia Romero (1949), comprometia

    tudo o que se podia representar e se configurar como um imenso manancial para o estudo

    do pensamento primitivo.

    A definio dos olhares, quehojeatendem a convocao de Romero (1949) sobre

    estes estudos, est atrelada percepo de um outro momento de reordenao dos

    afrodescendentes, no que diz respeito resistncia, continuidade e descontinuidade de

    toda bagagem cultural da Me frica.Portanto, para este estudo, o direcionamento do uso da expresso sobrevivncia

    est vinculada a toda heterogeneidade da bagagem cultural transportada pelos africanos,

    como a religiosidade, a dana, a msica, a lngua e os costumes, reordenados, praticados e

    perpetuados por vrias geraes na dispora brasileira. Conseqentemente, o conceito de

    memria vem a ser usado como a retomada, o resgate deste passado e desta experincia

    vivida, reordenada pelos seus descendentes num tempo, num espao e em um lugar. Tais

    reordenaes so refletidas no presente por uma contra-ideologia,9 defendida e usada

    como instrumento de sustentao das lutas por incluso, igualdade e afirmao da

    identidade dos grupos-afros. Nesses trs aspectos est implcito o significado de

    continuidade e descontinuidade, configurado desde o desembarque no Brasil at a criao

    dos movimentos negros nos dias atuais. DAdesky (2001) considera movimento negro

    como todo aquele grupo que exprime a sua identidade negra atravs da natureza cultural

    (grupos afro), da natureza religiosa ou da natureza poltica (MNU)

    Considero, portanto, que continuidade e descontinuidade, alm de serem a

    representao das flutuaes e das transformaes de uma sociedade, na qual a populaoafrodescendente vive, instiga-a tambm a reivindicar o atendimento de suas necessidades,

    dos seus interesses, permeados de sobremaneira pelos princpios de uma ao poltica.

    9Aqui definida pela tica do MNU, como tomada de conscincia de uma identidade particular - a de afro-brasileiros- considerada diferente, porm, no oposta a uma identidade nacional mais global. Ela apela memria coletiva com o objetivo de reabilitar uma imagem positiva da frica (por vezes mtica) e da histriados negros no Brasil, trazendo tona um passado glorioso e de rebelies armadas. Ela mostra tambm que ainsero scio-econmica do negro somente parcial devido ao racismo latente da sociedade. Reclama dadesigualdade no acesso dos negros aos bens materiais e s posies de prestgio.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    29/223

    28

    Nesse sentido, as concepes de sobrevivncia e memria, aqui definidas,

    somente podero fundamentar as discusses e anlises das idias de contra-ideologia e

    ao poltica dos grupos-afro se forem atreladas aos olhares definidores da Histria e da

    Antropologia, que, nos seus processos de transformaes tericas e metodolgicas,

    perpassam as limitaes justificveis na poca dos primeiros estudos sobre a populao

    africana e seus descendentes.

    Os elos entre a Histria e a Antropologia, j demonstrados como imprescindveis

    para este captulo refletem o esforo contnuo das duas reas, na construo das rotas da

    ascendncia e da descendncia africana no Brasil, que deram origem s sobrevivncias. Em

    termos mais concretos e palpveis, agregar a Histria Antropologia e vice-versacorresponde a construo de uma ponte entre a frica e o Brasil. Todavia, o incio dessa

    edificao interdisciplinar est longe de uma coerncia de pensamentos, opinies e

    manifestaes impressas a respeito da temtica.

    Na tica de Mintiz e Price (2003), a Histria10 apia-se na Antropologia como

    instrumental analtico necessrio para avanar nas questes abordadas; e a Antropologia

    usa a histria como ferramenta para examinar o presente. Santos (2005) comenta que desde

    as dcadas de 1960 e 1970, o uso da Histria pela Antropologia vem se desenhando,

    levando os antroplogos a refletirem com profundidade todas as dimenses da sua

    disciplina. Considera ter sido este, o momento de repensar alguns pressupostos, como o

    10Sobre toda a transformao no arcabouo terico/metodolgico da Histria, que perpassa a Escola dosAnnales, em 1948 com March Bloch e Lucien Lebvre, d-se incio, portanto, ao processo de passagemHistria Velha, quela prisioneira do factual, do acontecimento, privilegiando as biografias dos grandes, ecom o foco centrado nas histrias das elites, dos estados, das grandes instituies. Por este ngulo, no levavaem conta os processos que antecediam os fenmenos guerras, revolues, pestes e crimes - nem a

    participao do povo na histria. Ao contrrio desta, a Histria Nova volta-se para esses fenmenos, tendocomo referncia a longa durao e atravs destes busca a explicaes, que se prolongam ao longo do tempo,da sobrevivncia e das transformaes relativas aos grandes grupos humanos, ou seja, detm-se na histria do

    povo, tambm chamada histria imvel ou quase imvel. nessa mudana que se inicia a aproximaocom as Cincias Sociais, impulsionando o encontro e discusses com a Antropologia.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    30/223

    29

    etnocentrismo e o relativismo cultural. Por esse caminho diz Lustosa (2006, p.4-5, grifo do

    autor) que,

    Foi o universo em desencanto em que mergulhou a humanidade a partir

    de ento que estimulou a guinada da Histria para os braos da

    Antropologia longo do tempo novas concepes se instalaram e a

    histria, prima pobre das Cincias Humanas na dcada de 1970 ingressa

    nos 1990 como a mais renovada e revigorante das formas de investigao

    sobre o humano.

    Somente a partir dos anos de 1990, as transformaes nos diferentes campos da

    investigao histrica levam revalorizao da anlise qualitativa e se resgata a

    importncia das experincias individuais, ou seja, enfatiza-se as situaes vividas e

    singulares. Nesse sentido, passa-se a repensar a concepo de documento, uma vez que, ao

    lidar com agrupamentos populacionais que no possuem a escrita, o historiador levado a

    adotar como fonte de pesquisas e informaes outros elementos, bem como metodologias

    que no constituam a tradio da pesquisa histrica. Isso fora a sintonia com outras reas,

    principalmente a antropologia, fazendo suas, as fontes e os mtodos destas cincias. Osdocumentos se tornam fundamentais para a compreenso da histria e da mentalidade de

    um povo.

    Sobre este aspecto, diz Geertz (2001, p.11), que hoje em dia um bocado difcil

    saber exatamente o que diz respeito uma gritaria na rua, referindo-se ao que se ouve falar

    (...) sobre o suposto impacto da Cincia da Antropologia sobre a disciplina da Histria.

    Como lhe respondendo, ressalta Schwarcz (1999) que entre o que foi ontem e o que hoje,

    a Histria sempre surgiu contraposta Antropologia, seja por alegaes de mtodo, de

    objeto, de procedimento ou de objetivos. A verdade que se estabeleceram divises, com o

    fim de virem a configurarem-se em limites evidentes ou identidades particulares em cada

    rea. No obstante, para Aug (1997), desde j evidenciavam-se as divergncias entre seus

    mtodos e, de forma explcita, enfoques epistemolgicos distintos, apesar de notria as

    influncias recprocas exercidas uma sobre a outra.

    Todavia, apesar da sua importncia, no pretendo expandir as discusses para o

    campo das origens de todo o processo dos espaos ocupados, divididos e comungados pela

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    31/223

    30

    Histria e a Antropologia. O importante para mim situar, neste contexto, como as duas

    reas, relacionando-se e influenciando-se mutuamente podem fundamentar e deixar

    explcito o carter de Arqueologia da Memria, necessrio para o meu estudo sobre os

    Grupos Afros.

    Nos estudos de Aug (1997) encontro explicao para esse carter dentro das duas

    disciplinas, quando ele considera que, o espao, enquanto matria da Antropologia um

    espao histrico; o tempo, como matria-prima da Histria, um tempo localizado e, nesse

    sentido, antropolgico. O espao da Antropologia constitudo como histrico um espao

    dominado por grupos humanos e conseqentemente, simbolizado. Segundo Aug (1997,

    p.15),Para aqueles que nascem numa sociedade, um a priori a partir do qual se

    constri a experincia de todos e forma-se a personalidade de cada um:

    neste sentido, ela ao mesmo tempo uma matriz intelectual, uma

    constituio social, uma herana e a condio primordial de toda histria,

    individual ou coletiva.[...] a constituio simblica do mundo e da

    sociedade, mesmo sendo por definio anterior aos acontecimentos a cuja

    interpretao ela serve, no em si um obstculo ao desenvolvimento da

    Histria.

    Refora Geertz (2001), atravs de suas anlise sobre algumas obras etnogrficas,

    que o elo entre a Histria e a Antropologia no uma questo de fuso das duas reas,

    dando origem a uma terceira, mas de redefini-las em termos uma da outra, administrando

    suas relaes dentro dos limites de um particular.

    No processo de rupturas Goldman (1999) comenta que a partir do momento em que

    a Antropologia contempornea critica o encaminhamento para o eterno e o universal, ela

    aponta para a ao e ou prxis, onde o tempo e o espao passam a constituir um meio em

    que tramas histricas se desenvolvem em liberdade. Nesse sentido, afirma Geertz (2001)

    que j faz algum tempo que o historiador, como memoralista da humanidade, e o

    antroplogo como explorador das formas elementares do elementar, no tm mais tanta

    aceitao. Assim como Geertz (2001), para Aug (1997) na verdade, h muita coisa unindo

    e muita separando, onde o outro garante a afinidade entre a Histria e a Antropologia.

    Para Geertz (2001, p.113)

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    32/223

    31

    A grande diferena que, quando ns olhamos para trs, o Outro se

    nos afigura ancestral. Foi ele que de algum modo levou, no importaquo errantemente, maneira como vivemos hoje. Mas, quando olhamos

    para os lados, isso no acontece. A burocracia, o pragmatismo... podem

    lembrar-nos vivamente os nossos, mas, na verdade, trata-se de um outro

    pas, com uma alteridade que [...] nos fazem lembrar sobretudo como

    nossa mentalidade mudou. Para a imaginao histrica, ns um

    momento em uma genealogia cultural, e o aqui uma herana. Para a

    imaginao antropolgica, o ns um verbete num dicionrio

    geogrfico cultural, e o aqui nossa casa.

    Isso significa, segundo Geertz (2001), uma mudana de territrio dos historiadores e

    dos antroplogos. Os historiadores dedicaram ateno histria no ocidental, como pases

    da frica, por exemplo, como fenmenos autnomos, e no meros episdios da expanso

    europia.. Os antroplogos voltaram seus olhares, para vilarejos, mercados, cooperativas,

    escolas, estilos arquitetnicos, representaes de poder, anlises de construo de um

    sentimento do passado, que no o da sua terra. Geertz (2001, p.123) categrico ao

    afirmar que

    [...] o interesse dos antroplogos no apenas pelo passado, mas pela

    maneira como os historiadores lhe do sentido atual, e do interesse dos

    historiadores no apenas pela estranheza cultural, mas tambm pelas

    maneiras como os antroplogos a trazem para perto de ns, no um

    simples modismo: sobreviver ao entusiasmo que gera, aos medos que

    desperta e s confuses que cria.[...]

    Constato, assim, que no h como estudar a memria dos afrodescendentes no

    Brasil, sem olhar a frica, e ao mesmo tempo olhar para ambas, sem serem sustentadas ou

    mesmo ancoradas na Histria e na Antropologia, uma vez que esto comprometidas direta

    ou indiretamente com as suas especificidades, tanto no que diz respeito ao Continente como

    s chamadas disporas. Isso significa e implica fortalecer os meus argumentos e anlises

    sobre a existncia de uma frica inventada ou real no uso da memria dos grupos afros de

    Recife e Olinda-PE.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    33/223

    32

    1.2 Aguando os Olhares

    Na tentativa de fundamentar uma posio sobre uma frica real ou reinventada,

    direciono o cruzamento dos olhares para os especialistas da Histria e da Antropologia, os

    quais, ao debruarem-se no contexto do tempo, do espao e do lugar sobre a relao

    sobrevivncia e memria, propiciaram a reconstruo e/ou recriao das minhas

    abordagens referentes sobrevivncia e memria dos afrodescendentes no Brasil.

    Por este ngulo debruo-me sobre a frica, atravs dos olhares especficos sobre os

    Outros que de l saram e que aqui chegaram. Neste contexto, refiro-me aos escritores,estudiosos e principalmente aos especialistas que, influenciados pelos olhares de fora,

    teceram suas observaes, opinies, anlises e interpretaes sobre os africanos e os seus

    descendentes. Nesse sentido, espreito seus olhares relacionados escravido, como ncora,

    abstraindo os contedos vinculados aos pontos essenciais dessa temtica, tais como a

    transmigrao trajeto do Atlntico - frica/ Brasil, a vivncia com o sistema, as

    reordenaes sociais culturais e as revoltas. A importncia desses olhares est na

    constatao adquirida nas informaes e observaes preliminares de que os grupos-afro

    estudados utilizam tais contedos no discurso e na prtica, como princpio fundamental dos

    ideais do Resgate da Me frica, correspondendo memria dos afrodescendentes.

    Pelo olhar da historiografia, o elo frica/Brasil/sobrevivncia, segundo Thornton

    (2004) demora a se firmar como temtica, tendo em vista que os estudos sobre a frica se

    limitavam ao continente ou a pases isolados e que a histria do Oceano Atlntico, at antes

    do sculo XIX, estava relacionada imigrao dos africanos. Esses dois lados da

    argumentao despertaram pouco interesse junto aos historiadores e deixaram implcito

    uma certa contradio e, ao mesmo tempo, uma justificao do grau da sua complexidade.Por outro lado, o mesmo autor revela que, historiadores nacionalistas, precursores nos

    estudos sobre a frica, refutaram tal concepo a respeito dos africanos, afirmando que era

    prpria da ideologia colonialista.

    A explicao de Leclerc (1973) vem nos dar a compreenso dos argumentos de

    Thornton (2004), de que o expansionismo europeu deu-se conta de que havia chegado a sua

    ltima fase de conquistas junto a territrios desconhecidos, assim como reconhecia que a

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    34/223

    33

    frica estava no bojo desta expectativa. Mesmo no apagar das luzes do sculo XVIII, a

    dimenso da ignorncia sobre o interior da frica, ou seja, sobre o continente era

    assustadora. Isso fez com que a artificialidade do saber, que sobre a mesma reinava, viesse

    a configurar-se em dois conhecimentos: um sobre as costas africanas, onde se encontravam

    algumas feitorias para armazenamento humano, at o momento do embarque; e o outro

    sobre os costumes africanos sobre os quais o exotismo logo transformava em superstio

    bizarra.Lembra Leclerc (1973), que, no sculo XIX, o aparecimento de uma nova atitude

    na Europa civilizada, frente s sociedades no pertencentes sua rbita, marca tambm a

    evidncia de que, nos meados deste mesmo sculo, a Europa era uma sociedade que estava

    em vias de mudanas e, ao mesmo tempo, buscando um novo sentido para suahistoricidade.

    Esses aspectos mostram, no s a ausncia de interesse para os estudos sobre a

    travessia do Atlntico, a forma como foram, at ento, estudados, como tambm o

    envolvimento de diversas reas do conhecimento, longe de interaes com outras reas,

    apontando interesses que no comerciais e econmicos.Com a expanso dos estudos sobre

    a frica, para alm da Europa, alguns especialistas11 buscaram resgatar a experincia

    positiva afro-americana, bem como destacar de forma direta a religio. Esses historiadores,

    segundo Thornton (2004), buscaram mostrar a influncia africana no s na cultura afro-

    americana, mas tambm na dos euro-americanos, baseando-se na historiografia africanista.

    Assim, mais uma vez constata-se que ao voltar-se para frica - cujo interesse era os

    antecedentes africanos na cultura americana - os historiadores no conseguiram

    aprofundarem-se sobre a dinmica das sociedades africanas pr-coloniais. Insistentemente,

    os estudos da cultura africana foram feitos mais pelo vis da antropologia moderna, do que

    pelo estudo minucioso de documentos contemporneos. Argumenta Thornton (2004, p.47)

    que,

    como o conhecimento dos antroplogos baseia-se no trabalho de campo

    na frica contempornea (em geral, a metade do sculo XX), at bem

    recentemente suas afirmaes sobre pocas antigas fundamentavam-se

    11Por exemplo, autores como Sydney Mintz e Richard Price; Sterling Stuckley, Albert Raboteau , MargaretWashington Creel e Mechal Sobel, que atuam dentro da literatura sobre os antecedentes africanos dos afro-americanos relacionados com o desenvolvimento da cultura afro-americana.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    35/223

    34

    em suposio terica ou no pressuposto de que a sociedade e a cultura

    africanas no haviam mudado.

    Apesar desta abordagem ter provocado resultados satisfatrios no campo dos

    estudos africanos, com nfase na histria cultural e social e aceitao da importncia da

    histria da frica na histria da Amrica, Thornton (2004) salienta que, entre alguns

    historiadores, ainda residem os questionamentos, a discusso e o debate sobre a forma pela

    qual os africanos influenciaram as sociedades da nova terra, como atores culturais12.

    relacionado a essas afirmaes que o estudo em pauta considera que na abordagem da

    historiografia sobre as sobrevivncias e memria, as particularidades necessitam da

    aproximao das duas reas, visando compreenso no tempo, no espao e no lugar da

    frica para e no Brasil.

    Mesmo defendendo que os africanos tinham importantes realizaes culturais, alm

    de um firme controle sobre o destino do continente, Thornton (2004) assinala tambm que

    mesmo diante das pesquisas sobre a frica, os tericos da dependncia, atrelados imagem

    da passividade, desenvolveram a noo de que os africanos eram possuidores de debilidade

    definitiva, embora abrissem espao para as pesquisa referentes reinterpretao do passado

    africano. Afirma o autor que a passividade, acrescida da simplicidade, no se configura

    como propriedade intrnseca das culturas ditas inferiores, mas resultante de uma ao

    criada pela brutalidade, rapina e violncia.

    Dentro desse contexto, especialistas em histria afro-americana avaliaram os afro-

    americanos como provedores de uma nica variante da cultura africana no Novo Mundo.

    Contudo, a partir do sculo XIX, os trabalhos e pesquisas, tanto dos historiadores

    nacionalistas como dos historiadores africanistas passaram a olhar os afro-americanos por

    outro ngulo, ou seja, com esprito de iniciativa, preservando e criando, apesar do sistema aque foram submetidos e do processo de racismo.

    Nesse sentido, a Histria, ao buscar as sobrevivncias africanas, adentrou indireta

    e s vezes diretamente a Antropologia, como, por exemplo, Russel-Wood ( 2005) e

    Thornton (2004), uma vez que partem da concepo de cultura para explic-la hoje, na

    12 nesse sentido e por este motivo que reas como a Histria, envolveram-se com a Antropologia, tanto nocampo das teorias como de metodologia, vivendo em constantes desafios e, paradoxalmente, buscando-se eamparando-se.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    36/223

    35

    historiografia, de onde partiram os olhares sobre sobrevivncias trazidas do continente

    africano, dentro das articulaes temporais e espaciais. Por essa razo, ao cruzar esses

    olhares, procuro estudiosos que foram buscar as sobrevivncias de uma frica do

    passado, deixado num Brasil tambm do passado, para tentar no hoje, com vistas no

    futuro, entender o que realmente compe, tanto na frica atual, como na dispora

    brasileira, o resgate cultural, com propsitos histricos e poltico- ideolgicos.

    Nas colocaes de Mbembe (20001), a frica empreende um esforo para romper

    com um imaginrio cultural e poltico, que repousa na escravido, no colonialismo, na

    promoo e na idia de unicidade identitria e, conseqentemente, numa falsificao da

    histria da frica pelo Outro. Isso implica recorrer a Appiah (1997), que refora osargumentos historiogrficos de Thornton (2004), ao referir-se contribuio dos

    antroplogos sobre as culturas africanas e, ao mesmo tempo, corroborar com o sentido de

    ruptura, dado por Mintiz e Price (2003), ao que j foi estudado sobre a cultura africana. Diz

    Appiah (1997, p.241-242) que:

    A vida cultural da frica negra permaneceu basicamente no afetada pelas

    idias europias at os ltimos anos do sculo XIX, e a maioria das culturas

    iniciou nosso sculo com estilos de vida muito pouco moldados pelo

    contato direto com os europeus. No surpreende, portanto, que a influncia

    cultural europia na frica antes do sculo XX tenha sido extremamente

    limitada. [...]. Para compreender a variedade das culturas contemporneas

    da frica, portanto, precisamos, em primeiro lugar, recordar a variedade

    das culturas pr-coloniais.

    Partindo do prefcio do livro de Sow (1977, p.9), que aponta que a Cultura na

    frica cada vez mais reconhecida como uma dimenso necessria a todo o verdadeiro

    desenvolvimento pertinente dizer que a constituio de instituies voltadas para a

    promoo poltica e a uma priorizao da frica inicia-se pela necessidade de uma releitura

    nas formas de resistncia colonizao e, por tabela, afirmao da identidade tnica.

    Sobre essa afirmao busco no entrar em detalhes explicativos sobre o sentido do

    desenvolvimento atrelado extenso do significado da cultura. No entanto, ressalto que

    paradoxalmente algo se torna comum frica e ao Brasil, no momento em que se procura

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    37/223

    36

    conhecer a sua significao profunda, o seu itninerrio histrico e suas manifestaes.

    Assim como no Brasil, os afrodescendentes encontram sentido no resgate da Me frica,

    os africanos, mais do que aqueles que se encontram nas disporas, buscam emergir todo o

    potencial da sua cultura, havendo mudanas entre os objetivos de ambos, embora na frica,

    as mudanas sejam bem maiores, tendo em vista a sua configurao de continente.

    Em Sow (1977) e Mbembe (2001) encontro apoio e respostas para esses meus

    pressupostos. Sow (1977) mostra dois aspectos primordiais que fundamentam, no a

    comparao, mas a constatao do sentimento que as envolvem. Primeiro, que ainda existe

    a necessidade de fazer o mundo inteiro conhecer os valores do patrimnio cultural africano

    em toda a sua diversidade e convergncia; e segundo romper com os embaraos por quepassam os especialistas, em busca de respostas que reflita o domnio da investigao ou

    ainda constitua objeto de impresses apressadas e de juzos pessoais. Tais posturas levam

    Sow (1977, p.12) questionar,

    se a soberania nacional reencontrada veio efetivamente libertar e

    valorizar culturas que as potncias coloniais tinham outrora abafado ou

    desfigurado. Pretende-se saber se a cultura do povo, ontem ignorada ou

    repelida, consegue hoje em dia voltar a desabrochar. [...]. Por que que

    as lnguas e as culturas africanas, que so principalmente estudadas e

    valorizadas fora da frica, s so consideradas e apresentadas enquanto

    documento etnogrficos?

    Essa problemtica, Sow (1977) encontra nas colocaes dos participantes da reunio

    regional de Abom,13 os quais afirmam que entre os observadores estrangeiros h um

    interesse gritante em denegrir as culturas africanas ou, pelo menos, marginaliz-las e por

    muito no conceb-las como subculturas. Por este caminho insistem nas diferenas e nos

    antagonismos, visando a diviso dos povos africanos.

    Para Mbembe (2001, p.182-183) a questo est no status da inferioridade, na

    negao da humanidade decorrente do perodo do comrcio escravista, que forou os

    africanos a terem um discurso expressado na tautologia somos seres humanos como

    13Reunio promovida pela UNESCO, cujo tema foi: La jeunesse et les valeurs culturelles africaines., Abom,1975.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    38/223

    37

    quaisquer outros ou temos um passado glorioso que testemunha nossa humanidade[...]

    A defesa da humanidade dos africanos, que foi negado pelo outro revela um discurso

    de reabilitao e, quase sempre acompanhada pela afirmao de que sua raa, tradies e

    costumes tm um carter especfico.

    Sow (1977) e Appiah (1997), em concordncia com Mbembe (2001), salientam

    que atravs da raa torna-se possvel fundamentar no s a diferena, mas tambm a idia

    de nao, uma vez que considerada como base moral para a solidariedade poltica. No ser

    africano para Mbembe (2001, p.183) revela, por um lado, que a raa o sujeito moral e ao

    mesmo tempo um fato imanente da conscincia. A revolta no contra o pertencimento

    africano a uma outra raa, mas contra o preconceito que designa a esta raa um statusinferior.

    Por outro lado, a tradio tem como ponto de partida a afirmao da autenticidade

    da cultura africana, que confere um eu particular irredutvel ao de qualquer outro grupo.

    Para Mbembe (2001) em cima dessa cultura autntica, alega-se que a frica reinventa sua

    relao consigo mesma e com o mundo para pertencer a si mesma e redescobrir a

    necessidade da regresso e da imaginao, que lhe permite ultrapassar a fase de humilhao

    e de angstia existencial provocada pela degradao da histria. A frica, nos estudos de

    Mbembe (2001) apresentada como um problema moral e poltico e est associada

    declarao de sua alteridade, onde a diferena representa a inspirao que determina os

    princpios e normas que governam a vida dos africanos, com toda autonomia e, se precisar,

    em oposio ao resto do mundo.

    Nesse contexto, os afro-brasileiros buscam encontrar esta autenticidade nas

    sobrevivncias africanas, atravs do chamado resgate da Me frica, caracterizando

    talvez a simbolizao da reinveno da frica. Considero a o distanciamento primordial

    da dispora brasileira com a frica, tendo em vista a dimenso e a diversidade daconcepo do que seja a Me frica. Refora Hall (2003), ao referir-se a dispora do

    Caribe, que retrabalhar a frica configura-se no instrumento mais poderoso, no sendo o

    passado, a herana, o ponto principal, mas a forma como so propostos a produo, a

    releitura e essencialmente a significao da frica. Para este autor essa questo foi

    abordada antropologicamente em termos de sobrevivncias, onde sinais e traos esto

    explcitos em toda parte. No entanto, Hall (2003, p.40) chama ateno para o fato de que

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    39/223

    38

    A frica passa bem, obrigado, na dispora. Mas no nem a frica

    daqueles territrios agora ignorados pelo cartgrafo ps-colonial, de onde

    os escravos eram seqestrados e transportados, nem a frica de hoje, que pelos menos quatro ou cinco continentes diferentes embrulhados num

    s, suas formas de subsistncia destrudas, seus povos estruturalmente

    ajustados a uma pobreza moderna devastadora. A frica que vai bem

    nesta parte do mundo aquilo que a frica se tornou no Novo Mundo, no

    turbilho violento do sincretismo colonial, reforjada na fornalha do

    panelo colonial.

    Contudo, para este autor, significativa a forma como essa mesma frica fornece

    recursos de sobrevivncia nos dias de hoje, para as disporas, trabalhados dentro formas e

    padres culturais novos e distintos. Entretanto, para Mbembe (2001), a sobrevivncia

    abordada em consonncia com os aspectos antropolgicos, filosficos, e sociolgicos,

    permitindo entender os significantes abertos a qualquer significado sobre a escravido, o

    colonialismo e outras decorrncias, como o apartheid, que testemunharam contra a vida. No

    campo antropolgico est a singularidade e a diferena, as quais devem se opor igualdade.

    No mbito sociolgico, destacam-se as prticas cotidianas pelas quais os africanos

    reconhecem o mundo, mantm laos de familiaridades e criam algo que lhes propiciam o

    sentido de pertinncia. No filosfico, os aspectos essenciais escravido, colonizao e

    apartheid - que Mbembe (2001, p.187) denomina de status do sofrimento na histria, que

    diz respeito as vrias formas com que as foras histricas infligem danos psquicos aos

    corpos coletivos, e as formas atravs das quais a violncia molda a subjetividade. Afirma

    Mbembe (2001, p.187- 188)

    [...] escravido, colonizao e apartheid - estes trs eventos

    testemunharam contra a vida. Sob o pretexto de que a origem e a raa so

    critrios para qualquer tipo de avaliao, eles interditam a vida. Da a

    pergunta: como se pode redimir a vida, ou seja, resgat-la da incessante

    operao de sua negao? Se h uma memria, ela caracterizada pela

    fragmentao, [...] no melhor dos casos a escravido experimentada

    como uma ferida [...]

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    40/223

    39

    Justifica-se, ento, segundo o autor, que em certas partes do Mundo Novo a

    escravido tambm esquecida, conscientemente reprimida pelos descendentes.

    Com base nesse Mundo Novo de Mbembe (2001), retomo s sobrevivncias

    redefinidas na dispora brasileira, dentro de um quadro, situao, condies e vivncias

    altamente particulares no que se refere ao afrodescendncia no pas.

    Tratar esta temtica de sobrevivncia significa primeiro passar pelos olhares e

    concepes do que ela representa no contexto da intelectualidade brasileira, mesmo com

    todas as influncias estrangeiras a respeito do que deixou aqui um povo, visto como

    inferior, assim como dentro de uma longa distncia do que ela pode representar para umapopulao como era, e ainda , para os africanos. Mergulhar hoje na frica e emergir com

    uma nova viso, difere em muito e em tudo. Uma coisa o ser africano no Continente e

    outro vivenciar a frica no Brasil, tendo por base as sobrevivncias e a memria dentro

    de um processo histrico.

    Dessa forma, trago tona, como ponto de partida para estas discusses, no caso

    brasileiro, a busca incessante pelas origens dos africanos, que por muito tempo fixou

    os olhares dos estudiosos14brasileiros e estrangeiros, obrigando-os a lanarem-se a todo

    instante traos de africanismos, passando ento a serem considerados como prova de

    sobrevivncia, como forma de fomentar uma memria. Nesse sentido ressalto que muitos

    so os estudiosos que retornam a Romero (1949), considerando que este autor o

    primeiro que coloca em evidncia esta lacuna em favor desses povos que aqui

    permaneceram.

    14Na questo sobre sobrevivncia, se destacaram: Nina Rodrigues, dison Carneiro, Arthur Ramos, ManuelQuerino, Gilberto Freyre, Melville Herskovits, Roger Bastide e muitos outros. No entanto, tocar neste assuntorequer uma parada na forma como essas aspectos esto relacionados s sobrevivncias africanas. Elas foramtratadas pela tica antropolgica, e de forma muito especfica pela Escola Culturalista Americana, tendo como

    princpio bsico o conceito da aculturao. Mais tarde contestada, pelo fato de que no necessitava de umcontato direto e contnuo para ocorrer tal processo, uma vez que pode acontecer atravs de contatosintermitentes e at mesmo sem a presena fsica dos grupos. Valorizou-se a noo de cultura em detrimentoda sociedade. Mais tarde surgem novas crticas que, apesar da evidncia abordada pelos antroplogosamericanos de que, por um lado, h uma srie de constantes caractersticas do processo de mudana cultural.Por outro, os resultados da aculturao, assimilao, sincretismo, reao, so, na realidade fenmenos decunho cultural. Tais aspectos permitem crticas da sociologia, sobre a sua tica exclusivamente tratada pelatradio, que v a questo pelo ngulo da totalidade de Mauss. O fenmeno em estudo passa a ser olhadocomo parte integrante da sociedade global.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    41/223

    40

    Por este ngulo, Rodrigues (1977) apia Romero (1949) em seu alerta, ao

    evidenciar, ou talvez denunciar, em seus prprios estudos, a permanncia desse estado de

    desinteresse. Afirmava Rodrigues (1977, p.17) naquele momento: so decorridos mais de

    vinte anos e infelizmente no apareceu at hoje o especialista que devia satisfazer o apelo,

    justo e patritico, do distinto escritor. Justificava assim, Rodrigues (1977), no s a

    preocupao de Romero (1949), como tambm a sua prpria responsabilidade em atender

    ao escritor. Assinalou Rodrigues (1977, p.17) que a profisso exercida determinava-lhe o

    dever de

    conhecer de perto os negros brasileiros, ofereceram-me oportunidade de

    apreciar a exatido do juzo externado h vinte anos pelo Slvio

    Romero, [...] porque ou esse estudo se faz de pronto, ou a sua

    possibilidade em breve cessar de todo. Assim pareceu-me esforo til e

    meritrio coligir, para o estudo da raa negra no Brasil, os documentos

    histricos e cientficos, referentes s colnias africanas que aintroduziram no pas.

    Desperta ento em Rodrigues (1977) a apreenso pelo retardamento a tais

    estudos, cujo preo seria a perpetuao de idias errneas sobre a procedncia dos negros

    e todo o seu patrimnio cultural, bem como a condenao impossibilidade de reverter a

    injustia feita s influncias exercidas por eles nesta sociedade. Desta inquietao

    comunga tambm o Frei Camilo de Monserrate, citado por Querino (1955, p.19), que, ao

    estranhar o pouco apreo e nenhuma importncia dada aos usos e costumes dos africanos

    entre ns, traou para os escritores brasileiros um roteiro em que deveriam [...] antes da

    extino completa da raa africana [...] apanhar dos prprios indivduos, que as

    representam informaes que dentro de pouco tempo ser impossvel [...]". No entanto,

    Querino (1955) ressalta, de maneira pouco elegante, que apesar deste roteiro j ter sido

    iniciado pelo malogrado Nina Rodrigues, o seu empreendimento, fugia do que havia

    sido traado pelo monge, tendo em vista faltarem requisitos indispensveis para um

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    42/223

    41

    estudo dentro do campo psicolgico, como tambm pelo processo de extino dos

    africanos que ocuparam, na frica, posio de destaque e que aqui serviram de guia dos

    destinos das tribos e depositrios dos segredos da prtica religiosa.

    A busca de uma frica no Brasil tem por base os aspectos da natureza interativa da

    cultura africana, sua reordenao e sua transformao. Entretanto, ressalto que todos os

    encaminhamentos antropolgicos feitos hoje para a questo da sobrevivncia da cultura

    africana no Brasil buscam respaldo nos estudos de Nina Rodrigues e depois em Melville

    Herkovits,15 que concebia a noo de sobrevivncias como articulao de aspectos

    africanistas, como a religiosidade, a dana, a msica , a lngua e os costumes relativos aos

    africanos nas disporas. Nesse sentido, Mintz e Price (2003, p.32-33) recusam-se a tratara herana africana como cultura, uma vez que a concebem

    como intimamente ligada s formas institucionais que a articulam. Em

    contraste, a idia de uma herana africana comum s ganha sentido num

    contexto comparativo, quando se pergunta que traos, se que existiram,

    os vrios sistemas culturais da frica ocidental e central podem ter tido

    em comum. [...] que eles podem ter servido de catalisadores nos

    processos pelos quais os indivduos de diversas sociedades forjaramnovas instituies, e podem ter fornecido alguns arcabouos dentro dos

    quais foi possvel desenvolver novas formas.

    Os estudos das sobrevivncias ou extenses da frica, como afirmam alguns

    autores, entre a populao de descendncia africana no Atlntico tm sido conduzidos

    para grandes preocupaes polticas e ideolgicas, visando apresentar o passado do negro,

    desde escravido, mas contextualizando-o no hoje com a viso no futuro. Dentro desse

    contexto, tomei como ponto de referncia inicial, para situar as questes de

    sobrevivncia/memria dos grupos-afros, as prticas culturais, de forma especfica a

    religiosidade, que dentro do seu bojo de significaes permitiu transformar-se - desde o

    15 Em sua obra, The Mity of the Negro Past. de 1941, tem na noo de sobrevivncia a preocupao deestudar o homem negro dentro do sentido da contestao do mito inferior e sem passado, envolvendo crticass anlises racistas nos Estados Unidos, Caribe, Haiti e no Brasil. Quando esteve no Brasil, publicou Estrutura Social do Candombl Afro-Brasileiro,publicado pelo Boletim do Instituto Joaquim Nabuco Recife; e Pesquisas Etnolgicas na Bahia.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    43/223

    42

    incio das reordenaes no Novo Mundo, at os dias atuais - num lugar, a princpio, de

    fomentao da proximidade, ou do retorno frica, como tambm de grande peso, cerne

    e suporte dos processos de negociao, de contestao e de reivindicao da identidade

    dos africanos/afro-descendentes.

    Sobre este aspecto, Dantas (1988, p.20) mostra que, de forma particular, de todas

    essas sobrevivncias apresentadas, a religiosa foi a elevada a uma valorizao mpar, ou

    como diz a autora,

    s culminncias de africanidade e apresentada como modelo de

    resistncia no qual a manuteno da tradio da frica e dos valores

    africanos permitiria uma forma alternativa de ser, se no a nvel das

    relaes econmicas e polticas, ao menos a nvel ideolgico.

    Por sua vez, Bastide (1989) afirma que a autonomia ideolgica dos negros inseridos

    na sociedade capitalista garantida pela sua insero religiosa16em algum grupo de origem

    africana, o qual detm todo um acervo cultural e um pensamento que permite o retorno

    frica. Reconhece o autor que, apesar de ter sofrido modificaes, as religies africanas

    no deixaram de constituir um sistema harmonioso e coerente de representaes coletivas e

    de gestos rituais, e no um tecido de supersties, como querem afirmar outros. RessaltaBastide (1989, p.11) que muito pelo contrario, subentendem uma cosmologia, uma

    psicologia e uma teodicia; enfim, que o pensamento africano um pensamento culto.

    A religio, tida aqui, como um dos elementos principais e fundamentais da

    estruturao das sobrevivncias, est calcada nos autores que trabalham sua valorizao

    ou sua reafricanizao, preocupao levantada por Rodrigues (1977), depois por Bastide

    (1989) e tantos outros. Dantas (1988), em seu estudo especfico sobre os candombls,

    aponta o vnculo estreito com a frica, de forma especial com os descendentes diretos,

    dando-lhes um carter de pureza africana e dentro dela a fidelidade frica17. Porm, a

    16At 1930, as religies negras poderiam ser includas na categoria das religies tnicas ou de preservao depatrimnios culturais dos antigos escravos negros e seus descendentes, enfim, religies que mantinham vivastradies de origem africana.17 A dcada de 1930 sob o influxo da valorizao da frica, os intelectuais, operando as categorias deReligio e Magia, Bem e Mal, fazem um recorte sobre os africanos mais puros, privilegiando-os no processode legitimao e legalizao. Dcada de 1960,o movimento de expanso da religio coincide com oaparelhamento da industria cultural transformando as religies exticas em instituies nacionais lucrativas,dentro do ponto de vista poltico e econmico.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    44/223

    43

    autora salienta que a busca incessante de africanismo, que implica fazer reconhecer que a

    identidade do negro, est atrelada a traos culturais africanos autnticos, cujos pedaos so

    atestadores dessa identidade negra. Ao mesmo tempo, diante da suposio de que sejam

    originrios da frica, por si mesmos no conferem autonomia ideolgica ao negro,

    considerando que a origem no define o significado e a funo das formas culturais.

    Segundo Ortiz (1988), apesar de todos os efeitos destruidores, as sobrevivncias

    da cultura africana conseguiram encarnar-se no solo brasileiro, mesmo que distribuda de

    forma desigual pelas regies, circunscrevendo-se segundo as divises tnicas. importante

    estabelecer que no cabe aqui discusses sobre as religies oriundas da frica, porm

    mediante as questes sobre sobrevivnvia, ressalto que tanto em Dantas (1988) como emOrtiz (1988) a Umbanda representa o Brasil, correspondendo integrao das prticas afro-

    brasileiras na moderna sociedade brasileira, decorrente das mudanas sociais que se

    efetuam numa direo determinada, e na consolidao de uma sociedade urbano-industrial ;

    j o Candombl a conservao da memria coletiva africana no solo brasileiro. Justifico a,

    ter salientado a religiosidade como elemento primordial para tratar este aspecto. Porm, ao

    contrrio de Dantas (1988, p.16), o Candombl no pode ser considerado o padro de

    pureza africana, porque na realidade um produto afro-brasileiro resultante do bricolage

    desta memria coletiva, sobre a matria nacional brasileira que a histria ofereceu aos

    negros escravos [...]. O Candombl continua sendo a fonte privilegiada do sagrado, onde

    a frica passa a conotar a idia de terra-Me, ou seja, o retorno nostlgico a um passado

    negro. J a umbanda tem a conscincia de sua brasilidade, de carter nacional.

    Apesar desses aspectos serem gritantes no meio intelectual, Ortiz (1988) e Prandi

    (1999) apontam que na religio afro-brasileira as crises e as transformaes polticas do

    pas -1930 - por um lado, significaram uma ruptura com o passado, passado simblico,

    um movimento de desagregao das antigas tradies18 afro-brasileiras., como dizHobsbawm e Ranger (1997, p. 9). Por outro, acentuaram o seu retorno tradio ps

    1964, incio de 1970) - ou seja, ao reaprendizado da lngua, dos ritos e dos mitos

    18Entende-se por tradio reiventada um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ouabertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas decomportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente uma continuidade em relao ao

    passado. Alis, sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histrico apropriado.

  • 7/26/2019 resgate da me africa

    45/223

    44

    deturpados e perdidos na adversidade da dispora. Significou o retorno frica para

    recuperar um patrimnio, que faz parte de uma cultura negra e brasileira.

    Nas ltimas dcadas do sculo XX, segundo Silva (1999), as tradies passam a

    ser consideradas algo reinventado, e, nesse contexto, o processo de reafricanizao

    assume significados e matizes diferentes ao longo do tempo e nos lugares onde ocorre,

    principalmente se considerarmos as noes de tradio nele envolvidas. Para Teixeira

    (1999) e Silva (1999), comum nas religies africanas, ou negras, como usa Prandi

    (1999), os pais e mes de santos buscarem, na frica, pedaos da tradio, tidos como

    perdidos ou esquecidos, trazendo novos conhecimentos ou aprofundamentos sobre os

    mesmos. Enfatiza Silva (1999, p.156) que,

    [...] atravessar o Atlntico em direo frica, passa a ter mais valor,

    [...] j que esta travessia constri uma origem mtica, constituind