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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
CURSO DE DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA
ARQUEOLOGIA DA MEMRIA:RESGATE DA ME FRICA
Orientanda:Maria Auxiliadora Gonalves da Silva
Tese apresentada ao Programa de Ps - Graduao em
Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, sob a
orientao da Professora Doutora Maria do Carmo Tinco
Brandopara obteno do grau de Doutor em Antropologia.
RECIFE
2007
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Silva, Maria Auxiliadora Gonalves da
Arqueologia da memria: resgate da Me-frica. Recife: OAutor, 2007.
225 folhas : il., fotos, tab.
Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco.CFCH. Arqueologia. Recife, 2007.
Inclui bibliografia e anexos.
1. Antropologia. 2. Memria Sobrevivncia cultural Resgate. 3. Etnias Populao. 4. Afrodescendentes Gruposafros. 5. Transmigrao. I. Ttulo.
39301
CDU (2. ed.)CDD (22. ed.)
UFPEBCFCH2007/17
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AGRADECIMENTOS
Na credibilidade de que ningum se realiza e cresce por si s, apresento meus
agradecimentos ao Criador Primordial e aos Grandes Amigos Csmicos pelo
acompanhamento e sustentao espiritual em todas as fases desta construo.
minha Orientadora do Doutorado, Prof Dr Maria do Carmo Machado Tinco
Brando, de forma muito especial, pelo profissionalismo nos momentos das orientaes e
crticas, pela oportunidade, estmulo e apoio em toda a minha trajetria acadmica,
permitindo a construo de uma grande estima e sincera amizade.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior-CAPES pelo
financiamento da Bolsa, para o Estgio de Doutorado (Sandwich), no Programa Brasil-
Espanha, CAPES-MECD proporcionando-me experincias e preciosas aquisies
acadmicas e pessoais.
Ao Prof Dr. D. ngel Baldomero Espina Barrio, Coordenador do Projeto
Brasil/Espanha e meu Co-orientador em Salamanca-Espanha, pela ateno e presteza nos
encaminhamentos das pesquisas, dentro e fora da Universidad de Salamanca.
A todos os amigos adquiridos nesse Estgio, que de forma direta ou indiretamente
me acolheram, me ensinaram e compartilharam comigo o viver Salamanca.
todos os Professores que compem o Programa de Ps-Graduao do Doutorado
da UFPE, pelo compartilhar o conhecimento. s Secretrias do Programa, Regina Salles de
Souza Leo, AnaMaria da C. Albuquerque Melo e Mriam Fabrcio de Matos pela ateno,
carinho, presteza e esforo nas informaes e documentos.
s amigas que compuseram a minha Turma de Doutorado, de forma especial a
Rosinha Barbosa e Fabiana Pereira, pela amizade construda, que nos permitiu compartilharo crescimento mental e espiritual.
Aos Grupos Afros, pela contribuio inestimvel a este trabalho, pela delicadeza em
abrir seus espaos, e de forma muito particular, a todos os responsveis pelos grupos, na
concesso das entrevistas.
Aos amigos da Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE, de forma
especial os que fazem o Departamento de Letras e Cincias Humanas, pelo carinho no
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apoio e no incentivo em todo o decorrer do Doutorado e especialmente na fase de escrita da
Tese.
s Bibliotecrias e funcionrias da Biblioteca da UFRPE, amigas e companheiras
de trabalho, como bibliotecria, iniciando na instituio, e que como professora passaram a
compartilhar de toda a minha trajetria acadmica. Saliento ainda, o carinho e a confiana
das mesmas na minha vitria, e indo alm do profissionalismo foram sem medir esforos,
colaboradoras no atendimento e co-participantes no acesso e aquisio das informaes.
Aos alunos do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Questo Negra, na colaborao
das pesquisas. Ao ex-aluno Mrio Ribeiro dos Santos e Luiz Eduardo Pinheiro Sarmento
pela solicitude nas pesquisas e outras informaes acessadas no Centro de Formao,Pesquisa e Memria Cultural - Casa do Carnaval Secretaria de Cultura da Prefeitura do
Recife-PE.; ao ex-aluno e mestrando de Histria da UFRPE, Humberto da Silva Miranda,
pelas contribuies tambm nas pesquisas; e a aluna de especializao em Histria, Janana
Santos, pela colaborao na coleta de dados.
grande amiga Prof. Dr Valria Severina Gomes, pela presena constante e
solidria , alm da imensa presteza na leitura e reviso da tese.
Prof Dr Mari Noeli Kiehl, pela delicadeza e disponibilidade na leitura e reviso.
amiga Prof Ms. Valria Costa, pela amizade, apoio, contribuies e colaboraes
importantes nas discusses referentes afro-descendncia, no contexto das prticas
religiosas.
Ao fotgrafo Celso Pereira Jnior, por gentilmente autorizar a publicao das
fotografias do Grupo Afro Razes de Quilombo.
Mario Galdino da Silveira Neto, pela generosidade, apoio e presteza nas questes
relativas digitao.
famlia, pela fora, estmulo, crdito no meu trabalho e compreenso nasausncias do convvio familiar em muitos momentos. E finalmente, a todos os amigos que
compartilharam e, mais do que isto foram cmplices dos meus ideais, quedas, superaes e
vitrias.
A todos, a minha gratido!
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DEDICATRIA
Maria Antnia,
que sempre esteve presente como irm, amiga, cmplice, crtica, companheira esolcita em todos os momentos de viver e morrer, compreendidos como as construes, asdores, as quedas, as superaes, as oraes, as alegrias, as ausncias, as paixes, asfrustraes, as abundncias e as grandiosas vitrias, no decorrer desta vida eprovavelmente, de muitas outras....
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A memria compara-se escamas, tais como as do peixe, arrumadas
como fatias de rochas sedimentadas pelo tempo, cuja escavao
arqueolgica torna-se necessria para que se possa perpetuar uma
experincia vivida.
Arqueologicamente, a memria dos afrodescendentes reorganizada,
trazida superfcie do cotidiano, cerceando-a de uma leitura crtica e
revolucionria, como se ainda estivesse sob o controle do tempo que
a transmigrou.Thaurus
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RESUMO
A arqueologia da memria, nesse estudo est definida como o desenterrar datrajetria do africano pelo Atlntico, usando como apetrechos o imaginrio, a recordao ea percepo dos acontecimentos, transmitidos e armazenados no solo da conscincia e nacosmoviso coletiva dos afrodescendentes O carter arqueolgico est fundamentado napercepo da existncia de camadas superpostas da memria social dos Grupos-Afros, daRegio Metropolitana do Grande Recife, na medida em que estas se projetamconflituosamente, na busca da apreenso e do arquitetamento do mundo afrodescendente.Esta busca no presente est explicitado na afirmao e no reconhecimento da identidade ena reconstruo de uma cidadania diferenciada. O estudo apresentado um propsito deinvestigar, analisar e interpretar a expresso Resgate da Me frica, simbolizada pelosgrupos, como um grande ventre, que ainda alimenta seus filhos na dispora. A relevncia
do estudo, da pesquisa e da anlise desta expresso concentrou-se nas formas de uso, nainterpretao dada, tanto nos discursos como nas articulaes entre o Movimento NegroUnificado- MNU-Recife e os Grupos Afros, uma vez que o primeiro visto comoagregador, catalizador e mobilizador da populao afro-descendente; e os segundos, seauto-consideram como os maiores disseminadores da cultura afro, principalmente junto ascrianas e aos adolescentes. Para tanto s encontrei um caminho de abordagem terica, queme daria uma compreenso maior daquilo que, segundo eles representa a fora e a vigamestra dos seus discursos e prticas a memria. Atrelei esta abordagem a amplaliteratura histrica/antropolgica da transmigrao, do processo de sobrevivncia, deresistncia e de luta, dos africanos no Brasil, em cuja definio passar de um lugar paraoutro (pas, regio, etc) e passar a alma de um corpo para outro, est impresso o que foi
ontem o mapeamento da transformao da cultura africana num outro contexto territorial.Para a realidade do que hoje denominado de cultura afro-brasileira, o trabalho etnogrficome conduziu continuidade/descontinuidade da sobrevivncia dessa cultura, no contextopoltico-ideolgico, ponto chave de anlise de todo o estudo. Neste sentido, o contedo daTese compe-se de 4 captulos, assim desenvolvidos: 1 OlharesHistricos/Antropolgicos:Da Sobrevivncia Memria ; 2- Caminhos da Memria; 3-Arqueologia da Transmigrao; 4- Memria Afro-brasileira: Caminhos e descaminhos daRota Me fricaPalavras-chaves: 1. Antropologia. 2. Memria Sobrevivncia cultural Resgate. 3.Etnias Populao. 4. Afrodescendentes Grupos afros. 5. Transmigrao.
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ABSTRACT
The archaeology of memory is defined, in this study, as the uncovering of thehistory of the African peoples, via the Atlantic, using tools such as imagery, memory andthe perception of events, transmitted and stored deep in the consciousness of Afro-descendents, and in their collective world view. Its archaeological nature is based on theperception of the existence of superimposed layers in the social memory of Afro groups inthe metropolitan region of Recife, in the sense that they are projected in a conflicting way,seeking to understand and shape the Afro-descendent world. This search, in the present day,is clearly demonstrated in the affirmation and recognition of identity, and in thereconstruction of a distinct citizenship. This study seeks to investigate, analyze, andinterpret the expression Resgate da Me frica (Retrieving Mother Africa), which issymbolized by the groups as a large womb which still feeds its children in the Diaspora.
The relevance of the study, research, and analysis of this expression lies in its forms ofusage, and the meaning attributed to it, in both the discourses and the dialogues between theMNU (the Unified Black Movement) in Recife and the Afro groups, since the former isseen as a gatherer, catalyst, and mobilizer of the Afro-descendent population; while thelatter are seen as the main disseminators of Afro culture, particularly among children andyoung people. To achieve my objectives, I found only one technical approach that wouldbroaden my understanding of that which represents, in their opinion, the strength andcornerstone of their discourses and practices the memory. To this approach, I linked thevast historical and anthropological literature on transmigration, the survival process, andthe resistance and struggle of the Africans in Brazil. Imprinted in the definition of the wordtransmigration the passage from a place to another (a country, region, etc.), and the
passage of a soul from a body to another are images of what the past was like, and themapping of the transformation of the African culture in a different territorial context. Tounderstand what is today known as Afro-Brazilian culture, this ethnographic work lead meto investigate the continuity/discontinuity of the survival of this culture in the political-ideological context, which is the key point of analysis of the study as a whole. This Thesisconsists of four chapters, as follows: 1 Historical/Anthropological Perspectives: FromSurvival to Memory; 2 Paths of the Memory; 3 Archaeology of Transmigration; 4 Afro-Brazilian Memory: Directions and Misdirections of the Mother Africa Route
Key Words: 1 Historical/Anthropological Perspectives: From Survival to Memory; 2 Paths of the Memory; 3 Archaeology of Transmigration; 4 Afro-Brazilian Memory:
Directions and Misdirections of the Mother Africa Route.
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LISTA DE QUADROS
Quadro - 1 Identificao dos Grupos Afros 142
Quadro - 2 Situao de Sedes dos Grupos Investigados 177
Quadro - 3 Espaos Utilizados para as Atividades 178
Quadro - 4 Grupos que trabalham com Crianas/Adolescentes e Tipos de
Atividade 179
Quadro - 5 Escolaridade 182
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LISTA DE MAPA E FOTOGRAFIAS
MAPA
Mapa do Recife e Regio Metropolitana Localizao dos Grupos Afros 143
FOTOGRAFIAS
Foto 1 - Grupo Afox Il de Egb Sada do Afox na Igreja do Rosrio dos
Homens Pretos 1996. 146
Foto 2 - Grupo Afox Il de Egb Apresentao em Salvador, 2004 150
Foto 3 - Grupo Afox Il de Egb Apresentao na Blgica, 2005. 151
Foto 4 - Grupo Afox Alafin Oy Apresentao em Olinda, Dia da ConscinciaNegra. 156
Foto 5 - BACNARE Grupo que se apresentou em Taiwan 163
Foto 6 - BACNAR Apresentao no Teatro do Parque, 2005 164
Foto 7 - BACNAR Apresentao no Festival de Dana na Frana 165
Foto 8 - Apresentao do Centro de Educao Cultural Daru Malungo 169
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SUMRIO
INTRODUO 14
CAPTULO IOLHARES HISTRICOS/ANTROPOLGICOS: DA SOBREVIVNCIA MEMRIA 26
1.1Definindo os Olhares 261.2Aguando os Olhares 32
CAPTULO II
CAMINHOS DA MEMRIA 48
2.1 Memria: Firmando suas Camadas 48
2.2 A Memria como Teoria Social 56
CAPTULO IIIARQUEOLOGIA DA TRANSMIGRAO 88
3.1 Elos de Justificativa 88
3.2 Os Trs Lados da Transmigrao 89
3.2.1 Na frica, a Morte Social 99
3.2.2 No Novo Mundo, a Alma em Outro Corpo 112
3.2.3 Alma e Corpo Despertos 125
CAPTULO IV
MEMRIA AFRO-BRASILEIRA:CAMINHOS E DESCAMINHOS DA ROTA
ME FRICA 137
4.1 O Traar dos Caminhos 137
4.2 Grupos Etnografados 144
4.2.1 Grupo Afox Il de Egb 144
4.2.2 - Grupo de Afox Alafin Oy 151
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4.2.3 Grupo Afro Cultura Negra Do Recife BACNAR 159
4.2.4 Grupo Afro Centro De Educao Cultural Daru Malungo 165
4.3 Outras Realidades do Campo 171
4.4 Me frica, Memria e Vivncia 185
CONSIDERAES FINAIS 203
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 212
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INTRODUO
Grupo Razes de Quilombos Evento Tera Negra Ptio de So Pedro, Recife-PE
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INTRODUO
As formas pelas quais o legado da transmigrao dos povos africanos foi construdo
pelos estudiosos nacionais e internacionais me permitiram esboar um paralelo entre
sobrevivncia e memria, no tempo e no espao, e a contextualizao de sua representao
hoje, dentro dos grupos afros de alguns bairros do Recife e da Regio Metropolitana.
Fazendo uma retrospectiva dos estudos sobre a transformao da ordenao dos
africanos e mais tarde dos afro-descendentes, desde o sculo XIX, o tema da escravido
tem sido objeto de investigao e de um percurso variado e extenso. A produo intelectual
brasileira voltou-se para o tema a partir de diversas perspectivas e, logicamente, chegou adiferentes concluses. Sem dvida, a obra de Gilberto Freyre, da dcada de 1930, destaca-
se pelo xito em termos de apresentao e circulao de suas idias. Na dcada de 1950
Maggie e Rezende (2001), tambm sobressaram outros estudos1, que, procurando ir contra
a idia de uma escravido branda, acabaram por considerar os escravos como vtimas
passivas do sistema abordagem j bastante criticada pela historiografia brasileira da
dcada de 1980.
Nos meados do sculo XX, precisamente na dcada de 1960, a historiografia e a
antropologia brasileira atualizaram os vieses racistas do sculo XIX, principalmente as duas
ltimas dcadas 1870 e 1888- as quais atribuam ainda escravido a pobreza e a
alienao dos negros. Contrapondo-se a esse vis, aps o turbulento perodo da dcada de
1960, os estudos e pesquisas dos finais da dcada de 1970 vem emergir os movimentos de
esquerda, num primeiro momento, e dos movimentos negros2, num segundo, vindo a
corroborar com os esforos de estudiosos da Universidade de So Paulo, para romper com a
concepo e a imagem das relaes escravistas harmoniosas, sistematizadas por Freyre
(1980), quebrando o que Freitas (1978) tambm nomeou de interesses polticos. Entre 1970e 1980, segundo Maggie e Rezende (2001), os estudos voltaram-se com mais intensidade
1Dentro do aspecto antropolgico, em 1950, a UNESCO promoveu estudos grandiosos no Brasil sobre asrelaes raciais, partindo da divulgao da harmonia nas relaes entre negros e brancos. O objetivo era ter oBrasil como referncia para a sada do terror gerado pelo ps-guerra, frente ao holocausto.2 Muito antes deste perodo os movimentos negros j haviam se manifestado em forma de organizaesnegras -1920/1930 - como o Centro Cvico de Palmares, que forneceu lderes e idias para a Frente NegraBrasileira, com representaes em So Paulo, Minas, Bahia, Rio Grande do Sul e Recife-PE.
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para as diferenas culturais entre brancos e negros3, levando busca de uma essncia
cultural negra. Segundo Maggie e Rezende (2001), em 1980, dcada na qual se
comemoraria o Centenrio da Abolio (1888-1988), descobre-se no Brasil, com o influxo
da antropologia, que a identidade era construda. No entanto, a dcada de 1990, respaldada
no que estes mesmos autores denominam de exemplar modelo de soluo dos conflitos
raciais dos Estados Unidos, os estudos e pesquisas no Brasil voltaram-se para discusses
do conceito de raa atrelada nao, como expresso mxima de categorias raciais
acionadas em defesa de interesses e de projetos polticos. As reflexes agora recaem, de um
lado, sobre a nao que busca na mistura a sua identidade; e, de outro, sobre a relevncia da
raa, que, temendo a mistura, segrega e ope.O panorama cronolgico dos estudos relacionados s questes negras configura-se
como linha norteadora dos estudos desenvolvidos nessa Tese. Os estudos sobre
Movimentos Negros, objeto de meu interesse, tem como ponto de partida os finais da
dcada de 1970, nos quais me deparo com as mais diversas manifestaes. Dentre elas
esto o teatro negro, recitais de poesias, seminrios, palestras, exposies, apresentaes de
danas e msicas afro-brasileiras, influenciadas pelos movimentos dos Estados Unidos,
pelos movimentos de libertao da frica.4Alm disso, juntam-se a esses movimentos as
exacerbadas manifestaes dentro do Brasil os estudos sobre as questes negras, fazendo
eclodir os movimentos negros brasileiros (SILVA, 1994, p. 14). Projetados nas ideologias e
aes dos movimentos externos, os movimentos negros brasileiros crescem em termosde
organizao e tornam-se mais fortes, devido maturidade da revoluo dos negros dos
Estados Unidos e do continente Africano, que os influenciavam. Vrios estudiosos desta
temtica, segundo Cunha Jr. (1979, p. 20-21), confirmam que os estudos da influncia de
tais fatos tornou-se naquele momento marcante nas formas e tentativas de pensar a questo
brasileira e na definio dos rumos que deveriam ter os movimentos no Brasil.Fundamentando-me nesses estudos, volto meu interesse para a anlise dos Grupos
Afros, de alguns bairros da Cidade do Recife e da Regio Metropolitana, objeto de estudo
da Tese de Doutorado em Antropologia. Os Grupos Afros, apesar de fazerem parte dos
3Neste perodo pouco espao sobrou para os estudos quantitativos sobre o lugar social do negro na sociedadebrasileira. Autores como Carlos Halsenbalg e Nelson do Valle e Silva so considerados pioneiros natentativa de provar que a desigualdade no Brasil no era apenas conseqncia das diferenas de classe, masque a raa (grifo das autoras) determinava de forma muito evidente a posio social dos indivduos.4Os movimentos de libertao da frica tinham comeado desde os fins da dcada de 1950.
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movimentos negros, diferem em seu contedo e ao em relao ao Movimento Negro
Unificado, j estudado na Dissertao do Mestrado em Antropologia. Para essa
diferenciao recorro a DAdesky (2001), como tambm ao Movimento Negro Unificado
(MNU), estudado por Silva (1994), que separam os movimentos em trs espcies de
natureza: a primeira- natureza cultural que envolve as entidades negras ou grupos afros,
que tm objetivos e preocupaes especficas, desenvolvendo um trabalho sobre um
determinado problema. No se constituem em grupos fortes e combativos, capazes de
responder s demandas da comunidade negra. A segunda - natureza religiosa na qual
encontram-se as entidades religiosas, vinculadas a espaos onde realizam seus batuques e
outros rituais para os deuses africanos. A terceira - natureza poltica todo movimentonegro, seguindo as estruturas dos movimentos sociais.
Dessa forma, um movimento negro, como o MNU, tem como objetivo desenvolver
aes poltico-ideolgias, partindo de um programa e de uma organizao unificada a
outros movimentos negros. Apresenta propostas claras e definidas, em funo dos
interesses especficos e das reivindicaes gerais da comunidade negra. Entretanto, os
estudos e anlises sobre o MNU mostram que as entidades negras de natureza cultural no
tinham uma proposta ampla para mudar a realidade da populao negra de Recife e da
Regio Metropolitana. Ao mesmo tempo, eu conclu que o prprio Movimento tinha
desenvolvido uma ao poltica que no correspondia ao do seu papel de catalisador e
mobilizador dessa mesma populao, na qual estavam inseridos os grupos afros.
Sendo assim, meu interesse de estudo recaiu sobre os grupos afros que constituem
os movimentos de natureza cultural maracatus, afoxs, escolas de samba, blocos, reggae,
capoeira. Esses Grupos Afros atribuem seus surgimentos a fora do contexto social local,
que, segundo eles, exige uma atuao diferenciada e adequada aos problemas sociais com
vistas a uma mudana, uma minimizao do modo de viver e de ser daquela populaoquase que predominantemente negra.
Isso implicou num trabalho especificamente com crianas e adolescentes dos bairros
que se encontram propensos ou que j vivem uma situao de risco. Sendo assim, os grupos
procuram recuperar-lhes a auto-estima, relacionada pobreza, identidade tnica e ao
mesmo tempo conferir-lhes, atravs da memria-afro, instrumentos para o conhecimento e
a prtica da cidadania. Caracterizam-se por usarem a msica percusso- e a dana, como
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forma de atrair as crianas e adolescentes, divulgar e, ao mesmo tempo, preservar e
perpetuar a memria afro. Para tanto, fazem uso de oficinas diversificadas, como confeco
de instrumentos, percusso, dana, artesanato, propiciando-lhes uma profissionalizao.
A pesquisa anterior sobreo MNU e a atual sobre os Grupos Afros correspondem
complementao dos meus estudos sobre os movimentos negros. Nos dois trabalhos, os
direcionamentos afastam-se, em virtude dos propsitos polticos e culturais, e se
aproximam pela atuaojunto populao negra no que diz respeito cidadania. O
destaque dado a este aspecto nos Grupos Afros no se configura como fator principal deste
estudo, mas na importncia das prticas para a preservao, divulgao e perpetuao da
memria afro.Esse enfoque redimensionoutanto a pesquisa de campo como as anlises, em dois
mundos: um relacionado organizao/reordenao da histria individual e coletiva,
percebida e vivida por esses grupos; e outro, estruturado nas expresses da msica e da
dana, marcadas por um extenso e complexo processo de busca de resistncia,
enraizamento e reforo s particularidades tnicas voltadas para a elaborao de estratgias
de incluso social.
Os caminhos traados para este estudo mostram duas percepes sobre o contexto
dos Grupos Afros. Uma que conduz o meu fazer, a pesquisa etnogrfica; e a outra
referente ao que levanto em termos bibliogrficos. O ontem e o hoje, na etnografia e no
levantamento bibliogrfico misturam-se e confundem-se em ambas. Ontem, a msica e a
dana, importante para os estudiosos devido ao extico, ao que estava por trs das
apresentaes, das tmidas s mais ousadas e constantes buscas de organizao da
populao escrava, aforriada, liberta. Hoje, o olhar dos estudiosos, com fins avaliativos e
crticos, sobre uma populao tambm negra, que, de forma explcita, sem o controle, sem
as regras e sem as proibies, impe msica e dana o carter de memria. Pelasleituras e anlises, os estudos iniciais sobre os Grupos Afros me apontaram que essa
populao que os compe, organizada ou no, no passado e no presente constitui, ainda, um
quadro que desperta algo instigante e diferente. A pesquisa de campo nos d uma outra
viso do que hoje pesquisado em relao ao que foi tratado pelos clssicos e pelos
contemporneos. A populao em estudo criou um mundo que s ela pode e tem o poder de
reconstruo /reordenao, no que se refere a sua memria. Isso implica na certeza da
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reapropriao e do uso da memria afro, adequada aos seus sentimentos, sua viso de
mundo, a respeito do significado de reaproximao da Me frica e de ser a prpria frica.
O mundo dos Grupos Afros estudados segue caminhos de uma histria no
experienciada, mas repassada, reconstruda, reinventada e perpetuada. Essa histria,
impossvel de ser dimensionada, faz os Grupos Afros encontrarem uma identidade de
ritmos, sons e coreografias que estruturam propostas de luta e de reivindicaes para algo
pouco palpvel a dignidade de ser cidado. Nessa incongruncia, estabeleo alguns
pontos de anlise que implicam: em um mergulho na realidade dos dados coletados,
situando os Grupos Afros no tempo e espao; na evidncia das diferentes posturas e saberes
dos grupos afros em relao aos usos da memria, diante dos problemas e conflitos sociaisem que se encontram inseridas; e em um mapeamento das lacunas que envolvem as aes
latentes e manifestas sobre o uso da memria afro.
Os Grupos Afros investigadosesto voltados para as prticas no-verbais, definidas
por Lienhard (1999) como aquelas que se integram numa operao comunicativa expressa
pela cantiga, pela dana, atravs do ritmo de um instrumento. Nesse aspecto, as prticas
no-verbais do o sentido desta operao comunicativa de ser, sentir e estar afro-
descendente.5Os Grupos Afros, ao se colocarem como preservadores da identidade afro e
construtores da cidadania6, atravs da manifestao da msica e da dana pura e
simplesmente, possibilitam levantar alguns questionamentos: que elementos conceituais e
ideolgicos lhes proporcionam a formao e a legitimao de construtores da cidadania?
Qual a dimenso e o entendimento do que representa o uso da expresso resgate da Me
frica? Como a memria afro contrape-se ao propsito de canonizao da diferena das
estratgias colonialistas? Quais os princpios que asseguram a articulao da frica de
ontem/hoje com a realidade que buscam transformar? Que mudanas na populao negra
podem ser salientadas como resultado do uso da memria afro?Mediante tais questionamentos, parto do pressuposto de que os Grupos Afros no seu
desempenho de movimento negro, de natureza cultural, refletem a ausncia de uma
5Para o MNU, a contra-ideologia apela memria coletiva para reabilitar uma imagem positiva da frica eda histria dos negros no Brasil, invocando um passado glorioso e de rebelies armadas. Inclui nos seusdiscursos e aes a desigualdade a reivindicao no acesso aos bens materiais e s posies de prestgio.6 A cidadania a qual os Grupos Afros se referem est centrada na mudana das estruturas sociais, dasmentalidades e dos valores afros, afirmando a igualdade e equilibrando os direitos e deveres dos indivduos eda coletividade.
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proposta ampla capaz de mudar a realidade da populao negra do Recife e da Regio
Metropolitana, porque:
a vulnerabilidade e a fragilidade das suas formas de criao, organizao e
legitimao como Grupos Afros configuram-se como barreiras para a
conduo, a afirmao da identidade tnica e a prtica do exerccio da
cidadania;
as propostas e objetivos junto populao negra so ambguas e
conflituosas, decorrentes da existncia dos vestgios dicotmicos e
hierrquicos da poltica colonial, que freia e bloqueia a dialtica da
continuidade/descontinuidade no uso e no papel da memria no cotidianodos grupos-afros.
a poltica de alianas junto aos outros movimentos negros, para o
fortalecimento da memria afro, as estratgias de mudana e a
transformao da mentalidade da populao negra, no est voltada para
uma crtica e uma reflexo da histria do povo africano, e dos afro-
descendentes, inviabilizando umavivncia de um passado real, coerente e
adequado ao presente.
Dessa forma, estabeleci como objetivos gerais:
identificar e analisar nos Grupos Afros da Regio Metropolitana do
Recife, o uso da memria afro na configurao do jogo dialtico da
afirmao da identidade afro-descendente e na abertura para o ativismo
poltico em busca da cidadania ;
detectaros caminhos e as perspectivas dos Grupos Afros no processo de
releitura e de reinterpretao do patrimnio africano em relao ao
contexto em que esto inseridos.
Como objetivos especficos, proponho-me a:
mapear os mecanismos e instrumentos de desagregao e as estratgias de
agregao que norteiam os caminhos da continuidade/descontinuidade da
cultura africana, usados pelos Grupos Afros;
analisar as formas que identificam e legitimam os Grupos Afros como
continuadores da memria afro;
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investigar e analisarcomo atravs da msica e da dana as crianas e os
adolescentes so formados para serem perpetuadores da memria afro e
transformadores do cotidiano social, poltico, econmico dos afro-
descendentes.
Os questionamentos, as hipteses e os objetivos conduziram-me a um marco terico
fundamentado na memria. Nesse marco tomo como terico principal Maurice Halbwachs,
no qual encontro todo o direcionamento para um aporte sobre a definio, argumentao e
compreenso, no tempo, espao e lugar, para o estudo da memria afro.
Todos os autores que abordam a memria, por mim pesquisados, seja qual for o
campo de interesse de estudo, tm em Maurice Halbwachs o direcionamento para aconstruo de suas discusses tericas especficas. Partindo de Maurice Halbwachs,
busquei autores como Michael Pollak, Paul Ricoeur, Henry Rousso, Jol Candau, Marc
Aug, Pierre Nora, Tzvetan Todorov, Arjun Appadurai e muitos outros, que me permitiram
fazer a ponte com os aspectos histricos, antropolgicos e polticos no que se refere ao
tempo, espao e lugar da memria. Tais aspectos implicaram em perscrutar a realidade da
memria dos grupos afros nas formas, usos e abusos que geram a sacralizao e a
banalizao, no mbito da continuidade/descontinuidade.
A partir desse direcionamento, os procedimentos metodolgicos atrelaram-se a uma
abordagem histrico/antropolgica, pois tratando-se da memria afro tive que ampliar meu
olhar para o cruzamento das reas de Antropologia e de Histria, como suporte terico e
metodolgico para compreender a evoluo da memria - no sentido de uso, interpretao e
construo histrica por estudiosos - o processo de transmigrao, vista aqui como a rota
frica/Brasil do comrcio escravista; o sistema escravista, englobando a reordenao dos
africanos no Novo Mundo e dos seus descendentes nos sculos XVI a XIX Para tanto,
utilizei o mtodo qualitativo, com apreocupao de aprofundar a compreenso de gruposocial, contido nos Grupos Afros, buscar os seus elementos constituintes e a explicao das
estruturas e a evoluo desses elementos no cotidiano dos mesmos, acessados pelas
etnografias e entrevistas.
Para a Tese de Doutorado, apesar de ter feito contatos aleatrios com os Grupos
Afros, desde o momento da Dissertao do Mestrado, a escolha dos Grupos Afros se deu
atravs da Gerncia Operacional do Centro de Formao, Pesquisa e Memria Cultural,
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conhecida como Casa do Carnaval7, ligada Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife.
Essa Gerncia me apresentou um universo de 184 Grupos Afros, cadastrados, entre
maracatus, escolas de samba, capoeira, blocos, afoxs, reggae, bloco de Samba e hip-hop.
Para a minha amostra escolhi 20 (vinte) Grupos Afros, tendo o cuidado nessa escolha de
estabelecer como categoria de seleo os critrios de Grupos antigos e grupos recentes, e
dentro esses, grupos de msica e de dana que trabalhassem com crianas e adolescentes.
Com esses critrios, dos 20 (vinte) escolhi 04 Grupos para um estudo etnogrfico,
constando dos afoxs Alafin Oy e o Il de Egb e dos grupos de dana Bacnar e Daru
Malungo. Este ltimo apresentava uma nova proposta de ao cultural pedaggica para os
afro-descedentes. Com os outros 16 (dezesseis) grupos foram feitas apenas entrevistas. OsGrupos Afros escolhidos fazem parte de vrios bairros da cidade do Recife e da Regio
Metropolitana.
Para a coleta de dados,8 utilizei a observao- participante, visando colher as
informaes sobre o discurso e a prtica; ter uma melhor aproximao com a realidade dos
grupos e suas atividades, nos ensaios, desfiles, nas sedes provisrias, na rua ou em suas
sedes; a entrevista semi-aberta, com o fim de captar de uma forma mais natural a dimenso
da concepo, compreenso e interpretao do resgate da Me frica; tambm fiz uso de
conversas informais. Junto a estes instrumentos foram feitas outras pesquisas, como
levantamento bibliogrfico nas bibliotecas das Universidades locais e nacionais atravs de
Bancos de Dados via Internet e pelo Programa de Comutao Bibliogrfica (COMUT), pela
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Dentro desse campo de
levantamento bibliogrfico, foram realizadas pesquisas em Salamanca - Espanha, nas
seguintes bibliotecas: Biblioteca Francisco Vitria, da Universidade de Salamanca,
Biblioteca Pblica de Salamanca, Biblioteca da Faculdad de Filologa da Universidade De
7 A Casa do Carnaval, na verdade, um nome fantasia. Desde 2005 atua como Gerncia Operacional doCentro de Formao, Pesquisa e Memria Cultural - Casa do Carnaval, ligada Secretaria de Cultura daPrefeitura do Recife. A Casa fica localizada no Ptio de So Pedro, 52, no bairro de So Jos/ Recife econstitui um espao que prioriza a formao, informao e preservao do nosso patrimnio, seja ele materialou imaterial. Oferece cursos, oficinas, seminrios, tardes de estudos, tudo referente s temticas de histria,
patrimnio e cultura popular. Realiza exposies cclicas (Carnaval, So Joo e Natal), alm de outras datascomemorativas como o Aniversrio do Recife, Dia do ndio, Dia do Folclore, Dia da Conscincia Negra.8No perodo em que estava fazendo as disciplinas do doutorado, nas frias fiz um Curso em Salvador BA, noCentro de Estudos Afro-Oriental- CEAO, intitulado Fbrica de Idias, durante quase dois meses e no qual tivecontatos com pessoas que faziam parte de Grupos desta mesma natureza e nos quais fiz rpidas visitas, comoo Olodum, o Il Ay o de Steve Bike
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Salamanca, Biblioteca da Faculdad de Geografia e Historia da Universidade de Salamanca,
Biblioteca do Instituto Iberoamerica e Biblioteca da Faculdad de Educacin da Universidad
de Salamanca .
Sendo assim, desenvolvi a Tese em quatro captulos dentro de uma reflexo, re-
leitura e reinterpretao do Resgate da Me frica: Uma Arqueologia da Memria.O
primeiro captulo denominado Olhares Histricos/Antropolgicos: da Sobrevivncia
Memria refere-se ao mapeamento dos direcionamentos e das adequaes dos estudos e das
discusses sobre o domnio do conhecimento sobre os povos da frica nas Amricas e de
forma especfica no Brasil. Para tanto, cruzo os olhares da Histria com o da Antropologia,
considerando que estas duas reas, embora guardando suas peculiaridades apontam para odesencadeamento das novas tendncias sobre a temtica no Brasil, tendo como parmetro a
continuidade/descontinuidade no processo de reconstruo da memria afro. No momento
atual, considero que esses olhares passam a ser os demarcadores dos encaminhamentos, dos
estudos e das anlises dos intelectuais, a respeito da memria afro, de acordo com as
flutuaes e as transformaes das relaes sociais, culturais, econmicas e polticas, nas
quais os grupos afros vivenciam e repassam a sua memria.
No segundo captulo, Caminhos da Memria, abordo os aspectos tericos da
memria, tendo Maurice Halbwachs como expoente essencial para, junto com outros
estudiosos, fundamentar a anlise terica dos Grupos Afros estudados. Partindo do seu
aporte durkheimiano, ou seja, o olhar sobre a memria como fenmeno social, pude
antropologicamente perceber, nos eventos, acontecimentos e fatos, o quanto a histria
deixou passar no que se refere dimenso da alteridade estabelecida no processo de
transmigrao dos africanos para o novo mundo e sua importncia para a construo e
valorizao da memria dos afro-descendentes. Outros autores entre filsofos,
historiadores, psiclogos, antroplogos - que estudam a memria, estruturados nosprincpios de Halbwachs deram suporte paraa construo da compreenso do tempo e do
espao, do passado e do presente no contexto social e poltico da memria coletiva dos
Grupos Afros. Com base neles,saliento a memria que passa do sentimento de vitimizao
para o de valorizao; de memria de opresso e dominao para a construo da memria
coletiva, atravs da qual transformam-se em atores que intervm na memria vivida
/aprendida e vivida / transmitida.
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No terceiro captulo, Arqueologia da Transmigrao, abordo dois aspectos deste
processo na vida dos africanos. O primeiro est atrelado ruptura com o espao e o
dilaceramento do corpo e da alma, no que diz respeito ao impacto e ao significado para os
africanos deste processo. Para tanto, retomo o quadro humano retratado pelos viajantes,
missionrios, mercadores e comerciantes atravs de pesquisas e estudos realizadas por
estudiosos sobre a travessia do Atlntico, entre eles, Alberto Costa e Silva, David Brion
Davis, Paul Giroy, Paul E. L Charles R.Boxer, Paul E. Lovejoy, Luiz Felipe Alencastro,
Pierre Verger, John Thornton, entre outros. O segundo est fundamentado na abordagem
dos africanos no Novo Mundo, no processo de reintegrao, readaptao espacial,
temporal, scio-cultural. Nesse aspecto, busco no somente as crticas e as justificativasdadas a esse procedimento que conduz a continuidade da transmigrao, como tambm as
reaes dos africanos/escravos a essa condio. Neste contexto, utilizo autores como
Kwame Anthony Appiah, Achille Mbembe e Alpha I. Sow, que fazem a ligao crtica da
frica como elemento mtico que sobreviveu nas disporas, no jogo da diferena e da
identidade. Recorri, ento, em especial, aos clssicos brasileiros sobre a questo, como
Raimundo Nina Rodrigues, Edison Carneiro, Arthur Ramos, Thales de Azevedo, Roger
Bastide, Manuel Querino, Manolo Florentino, como tambm outros clssicos e
contemporneos, nacionais e estrangeiros, que estudaram e ainda estudam o assunto.
O quarto captulo, Memria Afro-Brasileira: Caminhos e Descaminhos da Rota
Me frica refere-se anlise das entrevistas com as lideranas e membros dos grupos,
bem como dos dados etnogrficos, atravs das quais identificarei os caminhos e estratgias
de escavao da memria dos seus antepassados e a sua reverso para o contexto de suas
prticas. A partir da foi possvel compreender a dialtica entre Grupo Afro e memria
coletiva; o significado, o papel e a finalidade dos Grupos Afros, na Cidade do Recife e
Regio Metropolitana ; a conscientizao e a participao que esto tendono processo de
continuidade/descontinuidade da prpria histria, dentro dos parmetros de coerncia e
coeso de grupo; a importncia dos lugares da memria material topogrfico, simblico e
funcional - em relao ao que fica do passado no vivido do grupo e o que os grupos fazem
deste mesmo passado.
O desenvolvimento dos captulos conduziu-me s Consideraes Finais, nas quais
confirmo as minhas hipteses, no que se refere s concepes, estratgias, formas de usos e
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abusos da memria afro pelos Grupos; tambm, as reflexes a respeito das percepes e
inadequaes desses Grupos, concernentes aos processos de
continuidades/descontinuidades, frente compreenso, vivncia e interpretao da
memria, no contexto frica/Brasil. Essa parte foi assim denominada - consideraes finais
- por compreender que nenhuma pesquisa e estudo chega ao seu final, muito pelo contrrio.
Assim, este trabalho apenas evidencia a minha contribuio para o pensamento a respeito
da memria afro e gera espaos e oportunidades para que os aspectos no aprofundados -
por no ser o momento e o objeto de meu interesse direto possam encaminhar outras
pesquisas, novos estudos e publicaes.
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OLHARES HISTRICOS/ANTROPOLGICOS :DA SOBREVIVNCIA MEMRIA
Grupo Razes de Quilombos Evento Tera Negra Ptio de So Pedro, Recife-PE
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CAPTULO I OLHARES HISTRICOS/ANTROPOLGICOS: DASOBREVIVNCIA MEMRIA
1.1 Definindo os Olhares
A definio de olhares, neste captulo, tem como princpio mapear os direcionamentos
e as adequaes dos estudos e das discusses sobre o domnio do conhecimento acerca dos
povos da frica nas Amricas, e de forma especfica, no Brasil. Para tanto, atravs de
diversos estudiosos busquei cruzar os olhares da Histria e da Antropologia que, na minha
viso, ao mesmo tempo, se encontram, se desafiam e apontam para o desencadeamento das
novas tendncias sobre a temtica. Esses olhares, para mim, significam alicerar e assinalar
a expresso e a profundidade destes estudos no Brasil, pela tica da continuidade e da
descontinuidade, no processo de reconstruo da memria afro. No ontem e no hoje,
considero que esses olhares configuraram-se/reconfiguram-se em demarcadores dos
encaminhamentos e metas dos intelectuais, medida que as flutuaes e as transformaes
das relaes sociais, culturais, econmicas e polticas se intensificaram/intensificam, dentroe fora do contexto da sociedade e dos grupos em que os afrodescendentes esto inseridos.
Partindo dessa premissa, a literatura levantada mostra que o assunto, desde cedo
foi a grande preocupao de todos aqueles dedicados observao e sistematizao das
informaes.Tal preocupao, segundo Rodrigues (1977), era notria no meio intelectual
da poca incio de 1900 - apesar da falta de solidez do terreno investigado e dos
minguados conhecimentos preliminares que estes estudos pressupunham. Diante da
exposio de vulnerabilidade daquele momento, nada mais representativo para enfocar e
explicar as dificuldades em busca deste domnio e a ausncia de qualquer produo a
respeito dos negros, do que a expresso de Romero (1949, p. 7), uma desgraa. Esse
comentrio denota uma exploso de indignao do autor,ao constatar o pouco interesse e
consagrao aos estudos sobre os negros africanos no pas. Expunha o escritor a ingratido
para com os negros pela no ocupao dos intelectuais com a cultura dos africanos, de
forma particular, sobre as suas lnguas e suas religies. A expresso de Romero (1949,
p.7-10),refletiu ontema preocupao com a eminncia de perdermos a frica que temos
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em nossa casa. Naquele momento, foi a convocao aos especialistas para agilizarem a
memria africana, antes que a morte levasse tudo consigo. Em sua concepo,
desconhecer a cultura desses povos, apesar da ignorncia que os caracterizavam como
inferiores e dignos de serem objeto de cincia, como dizia Romero (1949), comprometia
tudo o que se podia representar e se configurar como um imenso manancial para o estudo
do pensamento primitivo.
A definio dos olhares, quehojeatendem a convocao de Romero (1949) sobre
estes estudos, est atrelada percepo de um outro momento de reordenao dos
afrodescendentes, no que diz respeito resistncia, continuidade e descontinuidade de
toda bagagem cultural da Me frica.Portanto, para este estudo, o direcionamento do uso da expresso sobrevivncia
est vinculada a toda heterogeneidade da bagagem cultural transportada pelos africanos,
como a religiosidade, a dana, a msica, a lngua e os costumes, reordenados, praticados e
perpetuados por vrias geraes na dispora brasileira. Conseqentemente, o conceito de
memria vem a ser usado como a retomada, o resgate deste passado e desta experincia
vivida, reordenada pelos seus descendentes num tempo, num espao e em um lugar. Tais
reordenaes so refletidas no presente por uma contra-ideologia,9 defendida e usada
como instrumento de sustentao das lutas por incluso, igualdade e afirmao da
identidade dos grupos-afros. Nesses trs aspectos est implcito o significado de
continuidade e descontinuidade, configurado desde o desembarque no Brasil at a criao
dos movimentos negros nos dias atuais. DAdesky (2001) considera movimento negro
como todo aquele grupo que exprime a sua identidade negra atravs da natureza cultural
(grupos afro), da natureza religiosa ou da natureza poltica (MNU)
Considero, portanto, que continuidade e descontinuidade, alm de serem a
representao das flutuaes e das transformaes de uma sociedade, na qual a populaoafrodescendente vive, instiga-a tambm a reivindicar o atendimento de suas necessidades,
dos seus interesses, permeados de sobremaneira pelos princpios de uma ao poltica.
9Aqui definida pela tica do MNU, como tomada de conscincia de uma identidade particular - a de afro-brasileiros- considerada diferente, porm, no oposta a uma identidade nacional mais global. Ela apela memria coletiva com o objetivo de reabilitar uma imagem positiva da frica (por vezes mtica) e da histriados negros no Brasil, trazendo tona um passado glorioso e de rebelies armadas. Ela mostra tambm que ainsero scio-econmica do negro somente parcial devido ao racismo latente da sociedade. Reclama dadesigualdade no acesso dos negros aos bens materiais e s posies de prestgio.
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Nesse sentido, as concepes de sobrevivncia e memria, aqui definidas,
somente podero fundamentar as discusses e anlises das idias de contra-ideologia e
ao poltica dos grupos-afro se forem atreladas aos olhares definidores da Histria e da
Antropologia, que, nos seus processos de transformaes tericas e metodolgicas,
perpassam as limitaes justificveis na poca dos primeiros estudos sobre a populao
africana e seus descendentes.
Os elos entre a Histria e a Antropologia, j demonstrados como imprescindveis
para este captulo refletem o esforo contnuo das duas reas, na construo das rotas da
ascendncia e da descendncia africana no Brasil, que deram origem s sobrevivncias. Em
termos mais concretos e palpveis, agregar a Histria Antropologia e vice-versacorresponde a construo de uma ponte entre a frica e o Brasil. Todavia, o incio dessa
edificao interdisciplinar est longe de uma coerncia de pensamentos, opinies e
manifestaes impressas a respeito da temtica.
Na tica de Mintiz e Price (2003), a Histria10 apia-se na Antropologia como
instrumental analtico necessrio para avanar nas questes abordadas; e a Antropologia
usa a histria como ferramenta para examinar o presente. Santos (2005) comenta que desde
as dcadas de 1960 e 1970, o uso da Histria pela Antropologia vem se desenhando,
levando os antroplogos a refletirem com profundidade todas as dimenses da sua
disciplina. Considera ter sido este, o momento de repensar alguns pressupostos, como o
10Sobre toda a transformao no arcabouo terico/metodolgico da Histria, que perpassa a Escola dosAnnales, em 1948 com March Bloch e Lucien Lebvre, d-se incio, portanto, ao processo de passagemHistria Velha, quela prisioneira do factual, do acontecimento, privilegiando as biografias dos grandes, ecom o foco centrado nas histrias das elites, dos estados, das grandes instituies. Por este ngulo, no levavaem conta os processos que antecediam os fenmenos guerras, revolues, pestes e crimes - nem a
participao do povo na histria. Ao contrrio desta, a Histria Nova volta-se para esses fenmenos, tendocomo referncia a longa durao e atravs destes busca a explicaes, que se prolongam ao longo do tempo,da sobrevivncia e das transformaes relativas aos grandes grupos humanos, ou seja, detm-se na histria do
povo, tambm chamada histria imvel ou quase imvel. nessa mudana que se inicia a aproximaocom as Cincias Sociais, impulsionando o encontro e discusses com a Antropologia.
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etnocentrismo e o relativismo cultural. Por esse caminho diz Lustosa (2006, p.4-5, grifo do
autor) que,
Foi o universo em desencanto em que mergulhou a humanidade a partir
de ento que estimulou a guinada da Histria para os braos da
Antropologia longo do tempo novas concepes se instalaram e a
histria, prima pobre das Cincias Humanas na dcada de 1970 ingressa
nos 1990 como a mais renovada e revigorante das formas de investigao
sobre o humano.
Somente a partir dos anos de 1990, as transformaes nos diferentes campos da
investigao histrica levam revalorizao da anlise qualitativa e se resgata a
importncia das experincias individuais, ou seja, enfatiza-se as situaes vividas e
singulares. Nesse sentido, passa-se a repensar a concepo de documento, uma vez que, ao
lidar com agrupamentos populacionais que no possuem a escrita, o historiador levado a
adotar como fonte de pesquisas e informaes outros elementos, bem como metodologias
que no constituam a tradio da pesquisa histrica. Isso fora a sintonia com outras reas,
principalmente a antropologia, fazendo suas, as fontes e os mtodos destas cincias. Osdocumentos se tornam fundamentais para a compreenso da histria e da mentalidade de
um povo.
Sobre este aspecto, diz Geertz (2001, p.11), que hoje em dia um bocado difcil
saber exatamente o que diz respeito uma gritaria na rua, referindo-se ao que se ouve falar
(...) sobre o suposto impacto da Cincia da Antropologia sobre a disciplina da Histria.
Como lhe respondendo, ressalta Schwarcz (1999) que entre o que foi ontem e o que hoje,
a Histria sempre surgiu contraposta Antropologia, seja por alegaes de mtodo, de
objeto, de procedimento ou de objetivos. A verdade que se estabeleceram divises, com o
fim de virem a configurarem-se em limites evidentes ou identidades particulares em cada
rea. No obstante, para Aug (1997), desde j evidenciavam-se as divergncias entre seus
mtodos e, de forma explcita, enfoques epistemolgicos distintos, apesar de notria as
influncias recprocas exercidas uma sobre a outra.
Todavia, apesar da sua importncia, no pretendo expandir as discusses para o
campo das origens de todo o processo dos espaos ocupados, divididos e comungados pela
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Histria e a Antropologia. O importante para mim situar, neste contexto, como as duas
reas, relacionando-se e influenciando-se mutuamente podem fundamentar e deixar
explcito o carter de Arqueologia da Memria, necessrio para o meu estudo sobre os
Grupos Afros.
Nos estudos de Aug (1997) encontro explicao para esse carter dentro das duas
disciplinas, quando ele considera que, o espao, enquanto matria da Antropologia um
espao histrico; o tempo, como matria-prima da Histria, um tempo localizado e, nesse
sentido, antropolgico. O espao da Antropologia constitudo como histrico um espao
dominado por grupos humanos e conseqentemente, simbolizado. Segundo Aug (1997,
p.15),Para aqueles que nascem numa sociedade, um a priori a partir do qual se
constri a experincia de todos e forma-se a personalidade de cada um:
neste sentido, ela ao mesmo tempo uma matriz intelectual, uma
constituio social, uma herana e a condio primordial de toda histria,
individual ou coletiva.[...] a constituio simblica do mundo e da
sociedade, mesmo sendo por definio anterior aos acontecimentos a cuja
interpretao ela serve, no em si um obstculo ao desenvolvimento da
Histria.
Refora Geertz (2001), atravs de suas anlise sobre algumas obras etnogrficas,
que o elo entre a Histria e a Antropologia no uma questo de fuso das duas reas,
dando origem a uma terceira, mas de redefini-las em termos uma da outra, administrando
suas relaes dentro dos limites de um particular.
No processo de rupturas Goldman (1999) comenta que a partir do momento em que
a Antropologia contempornea critica o encaminhamento para o eterno e o universal, ela
aponta para a ao e ou prxis, onde o tempo e o espao passam a constituir um meio em
que tramas histricas se desenvolvem em liberdade. Nesse sentido, afirma Geertz (2001)
que j faz algum tempo que o historiador, como memoralista da humanidade, e o
antroplogo como explorador das formas elementares do elementar, no tm mais tanta
aceitao. Assim como Geertz (2001), para Aug (1997) na verdade, h muita coisa unindo
e muita separando, onde o outro garante a afinidade entre a Histria e a Antropologia.
Para Geertz (2001, p.113)
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A grande diferena que, quando ns olhamos para trs, o Outro se
nos afigura ancestral. Foi ele que de algum modo levou, no importaquo errantemente, maneira como vivemos hoje. Mas, quando olhamos
para os lados, isso no acontece. A burocracia, o pragmatismo... podem
lembrar-nos vivamente os nossos, mas, na verdade, trata-se de um outro
pas, com uma alteridade que [...] nos fazem lembrar sobretudo como
nossa mentalidade mudou. Para a imaginao histrica, ns um
momento em uma genealogia cultural, e o aqui uma herana. Para a
imaginao antropolgica, o ns um verbete num dicionrio
geogrfico cultural, e o aqui nossa casa.
Isso significa, segundo Geertz (2001), uma mudana de territrio dos historiadores e
dos antroplogos. Os historiadores dedicaram ateno histria no ocidental, como pases
da frica, por exemplo, como fenmenos autnomos, e no meros episdios da expanso
europia.. Os antroplogos voltaram seus olhares, para vilarejos, mercados, cooperativas,
escolas, estilos arquitetnicos, representaes de poder, anlises de construo de um
sentimento do passado, que no o da sua terra. Geertz (2001, p.123) categrico ao
afirmar que
[...] o interesse dos antroplogos no apenas pelo passado, mas pela
maneira como os historiadores lhe do sentido atual, e do interesse dos
historiadores no apenas pela estranheza cultural, mas tambm pelas
maneiras como os antroplogos a trazem para perto de ns, no um
simples modismo: sobreviver ao entusiasmo que gera, aos medos que
desperta e s confuses que cria.[...]
Constato, assim, que no h como estudar a memria dos afrodescendentes no
Brasil, sem olhar a frica, e ao mesmo tempo olhar para ambas, sem serem sustentadas ou
mesmo ancoradas na Histria e na Antropologia, uma vez que esto comprometidas direta
ou indiretamente com as suas especificidades, tanto no que diz respeito ao Continente como
s chamadas disporas. Isso significa e implica fortalecer os meus argumentos e anlises
sobre a existncia de uma frica inventada ou real no uso da memria dos grupos afros de
Recife e Olinda-PE.
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1.2 Aguando os Olhares
Na tentativa de fundamentar uma posio sobre uma frica real ou reinventada,
direciono o cruzamento dos olhares para os especialistas da Histria e da Antropologia, os
quais, ao debruarem-se no contexto do tempo, do espao e do lugar sobre a relao
sobrevivncia e memria, propiciaram a reconstruo e/ou recriao das minhas
abordagens referentes sobrevivncia e memria dos afrodescendentes no Brasil.
Por este ngulo debruo-me sobre a frica, atravs dos olhares especficos sobre os
Outros que de l saram e que aqui chegaram. Neste contexto, refiro-me aos escritores,estudiosos e principalmente aos especialistas que, influenciados pelos olhares de fora,
teceram suas observaes, opinies, anlises e interpretaes sobre os africanos e os seus
descendentes. Nesse sentido, espreito seus olhares relacionados escravido, como ncora,
abstraindo os contedos vinculados aos pontos essenciais dessa temtica, tais como a
transmigrao trajeto do Atlntico - frica/ Brasil, a vivncia com o sistema, as
reordenaes sociais culturais e as revoltas. A importncia desses olhares est na
constatao adquirida nas informaes e observaes preliminares de que os grupos-afro
estudados utilizam tais contedos no discurso e na prtica, como princpio fundamental dos
ideais do Resgate da Me frica, correspondendo memria dos afrodescendentes.
Pelo olhar da historiografia, o elo frica/Brasil/sobrevivncia, segundo Thornton
(2004) demora a se firmar como temtica, tendo em vista que os estudos sobre a frica se
limitavam ao continente ou a pases isolados e que a histria do Oceano Atlntico, at antes
do sculo XIX, estava relacionada imigrao dos africanos. Esses dois lados da
argumentao despertaram pouco interesse junto aos historiadores e deixaram implcito
uma certa contradio e, ao mesmo tempo, uma justificao do grau da sua complexidade.Por outro lado, o mesmo autor revela que, historiadores nacionalistas, precursores nos
estudos sobre a frica, refutaram tal concepo a respeito dos africanos, afirmando que era
prpria da ideologia colonialista.
A explicao de Leclerc (1973) vem nos dar a compreenso dos argumentos de
Thornton (2004), de que o expansionismo europeu deu-se conta de que havia chegado a sua
ltima fase de conquistas junto a territrios desconhecidos, assim como reconhecia que a
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frica estava no bojo desta expectativa. Mesmo no apagar das luzes do sculo XVIII, a
dimenso da ignorncia sobre o interior da frica, ou seja, sobre o continente era
assustadora. Isso fez com que a artificialidade do saber, que sobre a mesma reinava, viesse
a configurar-se em dois conhecimentos: um sobre as costas africanas, onde se encontravam
algumas feitorias para armazenamento humano, at o momento do embarque; e o outro
sobre os costumes africanos sobre os quais o exotismo logo transformava em superstio
bizarra.Lembra Leclerc (1973), que, no sculo XIX, o aparecimento de uma nova atitude
na Europa civilizada, frente s sociedades no pertencentes sua rbita, marca tambm a
evidncia de que, nos meados deste mesmo sculo, a Europa era uma sociedade que estava
em vias de mudanas e, ao mesmo tempo, buscando um novo sentido para suahistoricidade.
Esses aspectos mostram, no s a ausncia de interesse para os estudos sobre a
travessia do Atlntico, a forma como foram, at ento, estudados, como tambm o
envolvimento de diversas reas do conhecimento, longe de interaes com outras reas,
apontando interesses que no comerciais e econmicos.Com a expanso dos estudos sobre
a frica, para alm da Europa, alguns especialistas11 buscaram resgatar a experincia
positiva afro-americana, bem como destacar de forma direta a religio. Esses historiadores,
segundo Thornton (2004), buscaram mostrar a influncia africana no s na cultura afro-
americana, mas tambm na dos euro-americanos, baseando-se na historiografia africanista.
Assim, mais uma vez constata-se que ao voltar-se para frica - cujo interesse era os
antecedentes africanos na cultura americana - os historiadores no conseguiram
aprofundarem-se sobre a dinmica das sociedades africanas pr-coloniais. Insistentemente,
os estudos da cultura africana foram feitos mais pelo vis da antropologia moderna, do que
pelo estudo minucioso de documentos contemporneos. Argumenta Thornton (2004, p.47)
que,
como o conhecimento dos antroplogos baseia-se no trabalho de campo
na frica contempornea (em geral, a metade do sculo XX), at bem
recentemente suas afirmaes sobre pocas antigas fundamentavam-se
11Por exemplo, autores como Sydney Mintz e Richard Price; Sterling Stuckley, Albert Raboteau , MargaretWashington Creel e Mechal Sobel, que atuam dentro da literatura sobre os antecedentes africanos dos afro-americanos relacionados com o desenvolvimento da cultura afro-americana.
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em suposio terica ou no pressuposto de que a sociedade e a cultura
africanas no haviam mudado.
Apesar desta abordagem ter provocado resultados satisfatrios no campo dos
estudos africanos, com nfase na histria cultural e social e aceitao da importncia da
histria da frica na histria da Amrica, Thornton (2004) salienta que, entre alguns
historiadores, ainda residem os questionamentos, a discusso e o debate sobre a forma pela
qual os africanos influenciaram as sociedades da nova terra, como atores culturais12.
relacionado a essas afirmaes que o estudo em pauta considera que na abordagem da
historiografia sobre as sobrevivncias e memria, as particularidades necessitam da
aproximao das duas reas, visando compreenso no tempo, no espao e no lugar da
frica para e no Brasil.
Mesmo defendendo que os africanos tinham importantes realizaes culturais, alm
de um firme controle sobre o destino do continente, Thornton (2004) assinala tambm que
mesmo diante das pesquisas sobre a frica, os tericos da dependncia, atrelados imagem
da passividade, desenvolveram a noo de que os africanos eram possuidores de debilidade
definitiva, embora abrissem espao para as pesquisa referentes reinterpretao do passado
africano. Afirma o autor que a passividade, acrescida da simplicidade, no se configura
como propriedade intrnseca das culturas ditas inferiores, mas resultante de uma ao
criada pela brutalidade, rapina e violncia.
Dentro desse contexto, especialistas em histria afro-americana avaliaram os afro-
americanos como provedores de uma nica variante da cultura africana no Novo Mundo.
Contudo, a partir do sculo XIX, os trabalhos e pesquisas, tanto dos historiadores
nacionalistas como dos historiadores africanistas passaram a olhar os afro-americanos por
outro ngulo, ou seja, com esprito de iniciativa, preservando e criando, apesar do sistema aque foram submetidos e do processo de racismo.
Nesse sentido, a Histria, ao buscar as sobrevivncias africanas, adentrou indireta
e s vezes diretamente a Antropologia, como, por exemplo, Russel-Wood ( 2005) e
Thornton (2004), uma vez que partem da concepo de cultura para explic-la hoje, na
12 nesse sentido e por este motivo que reas como a Histria, envolveram-se com a Antropologia, tanto nocampo das teorias como de metodologia, vivendo em constantes desafios e, paradoxalmente, buscando-se eamparando-se.
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historiografia, de onde partiram os olhares sobre sobrevivncias trazidas do continente
africano, dentro das articulaes temporais e espaciais. Por essa razo, ao cruzar esses
olhares, procuro estudiosos que foram buscar as sobrevivncias de uma frica do
passado, deixado num Brasil tambm do passado, para tentar no hoje, com vistas no
futuro, entender o que realmente compe, tanto na frica atual, como na dispora
brasileira, o resgate cultural, com propsitos histricos e poltico- ideolgicos.
Nas colocaes de Mbembe (20001), a frica empreende um esforo para romper
com um imaginrio cultural e poltico, que repousa na escravido, no colonialismo, na
promoo e na idia de unicidade identitria e, conseqentemente, numa falsificao da
histria da frica pelo Outro. Isso implica recorrer a Appiah (1997), que refora osargumentos historiogrficos de Thornton (2004), ao referir-se contribuio dos
antroplogos sobre as culturas africanas e, ao mesmo tempo, corroborar com o sentido de
ruptura, dado por Mintiz e Price (2003), ao que j foi estudado sobre a cultura africana. Diz
Appiah (1997, p.241-242) que:
A vida cultural da frica negra permaneceu basicamente no afetada pelas
idias europias at os ltimos anos do sculo XIX, e a maioria das culturas
iniciou nosso sculo com estilos de vida muito pouco moldados pelo
contato direto com os europeus. No surpreende, portanto, que a influncia
cultural europia na frica antes do sculo XX tenha sido extremamente
limitada. [...]. Para compreender a variedade das culturas contemporneas
da frica, portanto, precisamos, em primeiro lugar, recordar a variedade
das culturas pr-coloniais.
Partindo do prefcio do livro de Sow (1977, p.9), que aponta que a Cultura na
frica cada vez mais reconhecida como uma dimenso necessria a todo o verdadeiro
desenvolvimento pertinente dizer que a constituio de instituies voltadas para a
promoo poltica e a uma priorizao da frica inicia-se pela necessidade de uma releitura
nas formas de resistncia colonizao e, por tabela, afirmao da identidade tnica.
Sobre essa afirmao busco no entrar em detalhes explicativos sobre o sentido do
desenvolvimento atrelado extenso do significado da cultura. No entanto, ressalto que
paradoxalmente algo se torna comum frica e ao Brasil, no momento em que se procura
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conhecer a sua significao profunda, o seu itninerrio histrico e suas manifestaes.
Assim como no Brasil, os afrodescendentes encontram sentido no resgate da Me frica,
os africanos, mais do que aqueles que se encontram nas disporas, buscam emergir todo o
potencial da sua cultura, havendo mudanas entre os objetivos de ambos, embora na frica,
as mudanas sejam bem maiores, tendo em vista a sua configurao de continente.
Em Sow (1977) e Mbembe (2001) encontro apoio e respostas para esses meus
pressupostos. Sow (1977) mostra dois aspectos primordiais que fundamentam, no a
comparao, mas a constatao do sentimento que as envolvem. Primeiro, que ainda existe
a necessidade de fazer o mundo inteiro conhecer os valores do patrimnio cultural africano
em toda a sua diversidade e convergncia; e segundo romper com os embaraos por quepassam os especialistas, em busca de respostas que reflita o domnio da investigao ou
ainda constitua objeto de impresses apressadas e de juzos pessoais. Tais posturas levam
Sow (1977, p.12) questionar,
se a soberania nacional reencontrada veio efetivamente libertar e
valorizar culturas que as potncias coloniais tinham outrora abafado ou
desfigurado. Pretende-se saber se a cultura do povo, ontem ignorada ou
repelida, consegue hoje em dia voltar a desabrochar. [...]. Por que que
as lnguas e as culturas africanas, que so principalmente estudadas e
valorizadas fora da frica, s so consideradas e apresentadas enquanto
documento etnogrficos?
Essa problemtica, Sow (1977) encontra nas colocaes dos participantes da reunio
regional de Abom,13 os quais afirmam que entre os observadores estrangeiros h um
interesse gritante em denegrir as culturas africanas ou, pelo menos, marginaliz-las e por
muito no conceb-las como subculturas. Por este caminho insistem nas diferenas e nos
antagonismos, visando a diviso dos povos africanos.
Para Mbembe (2001, p.182-183) a questo est no status da inferioridade, na
negao da humanidade decorrente do perodo do comrcio escravista, que forou os
africanos a terem um discurso expressado na tautologia somos seres humanos como
13Reunio promovida pela UNESCO, cujo tema foi: La jeunesse et les valeurs culturelles africaines., Abom,1975.
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quaisquer outros ou temos um passado glorioso que testemunha nossa humanidade[...]
A defesa da humanidade dos africanos, que foi negado pelo outro revela um discurso
de reabilitao e, quase sempre acompanhada pela afirmao de que sua raa, tradies e
costumes tm um carter especfico.
Sow (1977) e Appiah (1997), em concordncia com Mbembe (2001), salientam
que atravs da raa torna-se possvel fundamentar no s a diferena, mas tambm a idia
de nao, uma vez que considerada como base moral para a solidariedade poltica. No ser
africano para Mbembe (2001, p.183) revela, por um lado, que a raa o sujeito moral e ao
mesmo tempo um fato imanente da conscincia. A revolta no contra o pertencimento
africano a uma outra raa, mas contra o preconceito que designa a esta raa um statusinferior.
Por outro lado, a tradio tem como ponto de partida a afirmao da autenticidade
da cultura africana, que confere um eu particular irredutvel ao de qualquer outro grupo.
Para Mbembe (2001) em cima dessa cultura autntica, alega-se que a frica reinventa sua
relao consigo mesma e com o mundo para pertencer a si mesma e redescobrir a
necessidade da regresso e da imaginao, que lhe permite ultrapassar a fase de humilhao
e de angstia existencial provocada pela degradao da histria. A frica, nos estudos de
Mbembe (2001) apresentada como um problema moral e poltico e est associada
declarao de sua alteridade, onde a diferena representa a inspirao que determina os
princpios e normas que governam a vida dos africanos, com toda autonomia e, se precisar,
em oposio ao resto do mundo.
Nesse contexto, os afro-brasileiros buscam encontrar esta autenticidade nas
sobrevivncias africanas, atravs do chamado resgate da Me frica, caracterizando
talvez a simbolizao da reinveno da frica. Considero a o distanciamento primordial
da dispora brasileira com a frica, tendo em vista a dimenso e a diversidade daconcepo do que seja a Me frica. Refora Hall (2003), ao referir-se a dispora do
Caribe, que retrabalhar a frica configura-se no instrumento mais poderoso, no sendo o
passado, a herana, o ponto principal, mas a forma como so propostos a produo, a
releitura e essencialmente a significao da frica. Para este autor essa questo foi
abordada antropologicamente em termos de sobrevivncias, onde sinais e traos esto
explcitos em toda parte. No entanto, Hall (2003, p.40) chama ateno para o fato de que
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A frica passa bem, obrigado, na dispora. Mas no nem a frica
daqueles territrios agora ignorados pelo cartgrafo ps-colonial, de onde
os escravos eram seqestrados e transportados, nem a frica de hoje, que pelos menos quatro ou cinco continentes diferentes embrulhados num
s, suas formas de subsistncia destrudas, seus povos estruturalmente
ajustados a uma pobreza moderna devastadora. A frica que vai bem
nesta parte do mundo aquilo que a frica se tornou no Novo Mundo, no
turbilho violento do sincretismo colonial, reforjada na fornalha do
panelo colonial.
Contudo, para este autor, significativa a forma como essa mesma frica fornece
recursos de sobrevivncia nos dias de hoje, para as disporas, trabalhados dentro formas e
padres culturais novos e distintos. Entretanto, para Mbembe (2001), a sobrevivncia
abordada em consonncia com os aspectos antropolgicos, filosficos, e sociolgicos,
permitindo entender os significantes abertos a qualquer significado sobre a escravido, o
colonialismo e outras decorrncias, como o apartheid, que testemunharam contra a vida. No
campo antropolgico est a singularidade e a diferena, as quais devem se opor igualdade.
No mbito sociolgico, destacam-se as prticas cotidianas pelas quais os africanos
reconhecem o mundo, mantm laos de familiaridades e criam algo que lhes propiciam o
sentido de pertinncia. No filosfico, os aspectos essenciais escravido, colonizao e
apartheid - que Mbembe (2001, p.187) denomina de status do sofrimento na histria, que
diz respeito as vrias formas com que as foras histricas infligem danos psquicos aos
corpos coletivos, e as formas atravs das quais a violncia molda a subjetividade. Afirma
Mbembe (2001, p.187- 188)
[...] escravido, colonizao e apartheid - estes trs eventos
testemunharam contra a vida. Sob o pretexto de que a origem e a raa so
critrios para qualquer tipo de avaliao, eles interditam a vida. Da a
pergunta: como se pode redimir a vida, ou seja, resgat-la da incessante
operao de sua negao? Se h uma memria, ela caracterizada pela
fragmentao, [...] no melhor dos casos a escravido experimentada
como uma ferida [...]
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Justifica-se, ento, segundo o autor, que em certas partes do Mundo Novo a
escravido tambm esquecida, conscientemente reprimida pelos descendentes.
Com base nesse Mundo Novo de Mbembe (2001), retomo s sobrevivncias
redefinidas na dispora brasileira, dentro de um quadro, situao, condies e vivncias
altamente particulares no que se refere ao afrodescendncia no pas.
Tratar esta temtica de sobrevivncia significa primeiro passar pelos olhares e
concepes do que ela representa no contexto da intelectualidade brasileira, mesmo com
todas as influncias estrangeiras a respeito do que deixou aqui um povo, visto como
inferior, assim como dentro de uma longa distncia do que ela pode representar para umapopulao como era, e ainda , para os africanos. Mergulhar hoje na frica e emergir com
uma nova viso, difere em muito e em tudo. Uma coisa o ser africano no Continente e
outro vivenciar a frica no Brasil, tendo por base as sobrevivncias e a memria dentro
de um processo histrico.
Dessa forma, trago tona, como ponto de partida para estas discusses, no caso
brasileiro, a busca incessante pelas origens dos africanos, que por muito tempo fixou
os olhares dos estudiosos14brasileiros e estrangeiros, obrigando-os a lanarem-se a todo
instante traos de africanismos, passando ento a serem considerados como prova de
sobrevivncia, como forma de fomentar uma memria. Nesse sentido ressalto que muitos
so os estudiosos que retornam a Romero (1949), considerando que este autor o
primeiro que coloca em evidncia esta lacuna em favor desses povos que aqui
permaneceram.
14Na questo sobre sobrevivncia, se destacaram: Nina Rodrigues, dison Carneiro, Arthur Ramos, ManuelQuerino, Gilberto Freyre, Melville Herskovits, Roger Bastide e muitos outros. No entanto, tocar neste assuntorequer uma parada na forma como essas aspectos esto relacionados s sobrevivncias africanas. Elas foramtratadas pela tica antropolgica, e de forma muito especfica pela Escola Culturalista Americana, tendo como
princpio bsico o conceito da aculturao. Mais tarde contestada, pelo fato de que no necessitava de umcontato direto e contnuo para ocorrer tal processo, uma vez que pode acontecer atravs de contatosintermitentes e at mesmo sem a presena fsica dos grupos. Valorizou-se a noo de cultura em detrimentoda sociedade. Mais tarde surgem novas crticas que, apesar da evidncia abordada pelos antroplogosamericanos de que, por um lado, h uma srie de constantes caractersticas do processo de mudana cultural.Por outro, os resultados da aculturao, assimilao, sincretismo, reao, so, na realidade fenmenos decunho cultural. Tais aspectos permitem crticas da sociologia, sobre a sua tica exclusivamente tratada pelatradio, que v a questo pelo ngulo da totalidade de Mauss. O fenmeno em estudo passa a ser olhadocomo parte integrante da sociedade global.
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Por este ngulo, Rodrigues (1977) apia Romero (1949) em seu alerta, ao
evidenciar, ou talvez denunciar, em seus prprios estudos, a permanncia desse estado de
desinteresse. Afirmava Rodrigues (1977, p.17) naquele momento: so decorridos mais de
vinte anos e infelizmente no apareceu at hoje o especialista que devia satisfazer o apelo,
justo e patritico, do distinto escritor. Justificava assim, Rodrigues (1977), no s a
preocupao de Romero (1949), como tambm a sua prpria responsabilidade em atender
ao escritor. Assinalou Rodrigues (1977, p.17) que a profisso exercida determinava-lhe o
dever de
conhecer de perto os negros brasileiros, ofereceram-me oportunidade de
apreciar a exatido do juzo externado h vinte anos pelo Slvio
Romero, [...] porque ou esse estudo se faz de pronto, ou a sua
possibilidade em breve cessar de todo. Assim pareceu-me esforo til e
meritrio coligir, para o estudo da raa negra no Brasil, os documentos
histricos e cientficos, referentes s colnias africanas que aintroduziram no pas.
Desperta ento em Rodrigues (1977) a apreenso pelo retardamento a tais
estudos, cujo preo seria a perpetuao de idias errneas sobre a procedncia dos negros
e todo o seu patrimnio cultural, bem como a condenao impossibilidade de reverter a
injustia feita s influncias exercidas por eles nesta sociedade. Desta inquietao
comunga tambm o Frei Camilo de Monserrate, citado por Querino (1955, p.19), que, ao
estranhar o pouco apreo e nenhuma importncia dada aos usos e costumes dos africanos
entre ns, traou para os escritores brasileiros um roteiro em que deveriam [...] antes da
extino completa da raa africana [...] apanhar dos prprios indivduos, que as
representam informaes que dentro de pouco tempo ser impossvel [...]". No entanto,
Querino (1955) ressalta, de maneira pouco elegante, que apesar deste roteiro j ter sido
iniciado pelo malogrado Nina Rodrigues, o seu empreendimento, fugia do que havia
sido traado pelo monge, tendo em vista faltarem requisitos indispensveis para um
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estudo dentro do campo psicolgico, como tambm pelo processo de extino dos
africanos que ocuparam, na frica, posio de destaque e que aqui serviram de guia dos
destinos das tribos e depositrios dos segredos da prtica religiosa.
A busca de uma frica no Brasil tem por base os aspectos da natureza interativa da
cultura africana, sua reordenao e sua transformao. Entretanto, ressalto que todos os
encaminhamentos antropolgicos feitos hoje para a questo da sobrevivncia da cultura
africana no Brasil buscam respaldo nos estudos de Nina Rodrigues e depois em Melville
Herkovits,15 que concebia a noo de sobrevivncias como articulao de aspectos
africanistas, como a religiosidade, a dana, a msica , a lngua e os costumes relativos aos
africanos nas disporas. Nesse sentido, Mintz e Price (2003, p.32-33) recusam-se a tratara herana africana como cultura, uma vez que a concebem
como intimamente ligada s formas institucionais que a articulam. Em
contraste, a idia de uma herana africana comum s ganha sentido num
contexto comparativo, quando se pergunta que traos, se que existiram,
os vrios sistemas culturais da frica ocidental e central podem ter tido
em comum. [...] que eles podem ter servido de catalisadores nos
processos pelos quais os indivduos de diversas sociedades forjaramnovas instituies, e podem ter fornecido alguns arcabouos dentro dos
quais foi possvel desenvolver novas formas.
Os estudos das sobrevivncias ou extenses da frica, como afirmam alguns
autores, entre a populao de descendncia africana no Atlntico tm sido conduzidos
para grandes preocupaes polticas e ideolgicas, visando apresentar o passado do negro,
desde escravido, mas contextualizando-o no hoje com a viso no futuro. Dentro desse
contexto, tomei como ponto de referncia inicial, para situar as questes de
sobrevivncia/memria dos grupos-afros, as prticas culturais, de forma especfica a
religiosidade, que dentro do seu bojo de significaes permitiu transformar-se - desde o
15 Em sua obra, The Mity of the Negro Past. de 1941, tem na noo de sobrevivncia a preocupao deestudar o homem negro dentro do sentido da contestao do mito inferior e sem passado, envolvendo crticass anlises racistas nos Estados Unidos, Caribe, Haiti e no Brasil. Quando esteve no Brasil, publicou Estrutura Social do Candombl Afro-Brasileiro,publicado pelo Boletim do Instituto Joaquim Nabuco Recife; e Pesquisas Etnolgicas na Bahia.
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incio das reordenaes no Novo Mundo, at os dias atuais - num lugar, a princpio, de
fomentao da proximidade, ou do retorno frica, como tambm de grande peso, cerne
e suporte dos processos de negociao, de contestao e de reivindicao da identidade
dos africanos/afro-descendentes.
Sobre este aspecto, Dantas (1988, p.20) mostra que, de forma particular, de todas
essas sobrevivncias apresentadas, a religiosa foi a elevada a uma valorizao mpar, ou
como diz a autora,
s culminncias de africanidade e apresentada como modelo de
resistncia no qual a manuteno da tradio da frica e dos valores
africanos permitiria uma forma alternativa de ser, se no a nvel das
relaes econmicas e polticas, ao menos a nvel ideolgico.
Por sua vez, Bastide (1989) afirma que a autonomia ideolgica dos negros inseridos
na sociedade capitalista garantida pela sua insero religiosa16em algum grupo de origem
africana, o qual detm todo um acervo cultural e um pensamento que permite o retorno
frica. Reconhece o autor que, apesar de ter sofrido modificaes, as religies africanas
no deixaram de constituir um sistema harmonioso e coerente de representaes coletivas e
de gestos rituais, e no um tecido de supersties, como querem afirmar outros. RessaltaBastide (1989, p.11) que muito pelo contrario, subentendem uma cosmologia, uma
psicologia e uma teodicia; enfim, que o pensamento africano um pensamento culto.
A religio, tida aqui, como um dos elementos principais e fundamentais da
estruturao das sobrevivncias, est calcada nos autores que trabalham sua valorizao
ou sua reafricanizao, preocupao levantada por Rodrigues (1977), depois por Bastide
(1989) e tantos outros. Dantas (1988), em seu estudo especfico sobre os candombls,
aponta o vnculo estreito com a frica, de forma especial com os descendentes diretos,
dando-lhes um carter de pureza africana e dentro dela a fidelidade frica17. Porm, a
16At 1930, as religies negras poderiam ser includas na categoria das religies tnicas ou de preservao depatrimnios culturais dos antigos escravos negros e seus descendentes, enfim, religies que mantinham vivastradies de origem africana.17 A dcada de 1930 sob o influxo da valorizao da frica, os intelectuais, operando as categorias deReligio e Magia, Bem e Mal, fazem um recorte sobre os africanos mais puros, privilegiando-os no processode legitimao e legalizao. Dcada de 1960,o movimento de expanso da religio coincide com oaparelhamento da industria cultural transformando as religies exticas em instituies nacionais lucrativas,dentro do ponto de vista poltico e econmico.
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autora salienta que a busca incessante de africanismo, que implica fazer reconhecer que a
identidade do negro, est atrelada a traos culturais africanos autnticos, cujos pedaos so
atestadores dessa identidade negra. Ao mesmo tempo, diante da suposio de que sejam
originrios da frica, por si mesmos no conferem autonomia ideolgica ao negro,
considerando que a origem no define o significado e a funo das formas culturais.
Segundo Ortiz (1988), apesar de todos os efeitos destruidores, as sobrevivncias
da cultura africana conseguiram encarnar-se no solo brasileiro, mesmo que distribuda de
forma desigual pelas regies, circunscrevendo-se segundo as divises tnicas. importante
estabelecer que no cabe aqui discusses sobre as religies oriundas da frica, porm
mediante as questes sobre sobrevivnvia, ressalto que tanto em Dantas (1988) como emOrtiz (1988) a Umbanda representa o Brasil, correspondendo integrao das prticas afro-
brasileiras na moderna sociedade brasileira, decorrente das mudanas sociais que se
efetuam numa direo determinada, e na consolidao de uma sociedade urbano-industrial ;
j o Candombl a conservao da memria coletiva africana no solo brasileiro. Justifico a,
ter salientado a religiosidade como elemento primordial para tratar este aspecto. Porm, ao
contrrio de Dantas (1988, p.16), o Candombl no pode ser considerado o padro de
pureza africana, porque na realidade um produto afro-brasileiro resultante do bricolage
desta memria coletiva, sobre a matria nacional brasileira que a histria ofereceu aos
negros escravos [...]. O Candombl continua sendo a fonte privilegiada do sagrado, onde
a frica passa a conotar a idia de terra-Me, ou seja, o retorno nostlgico a um passado
negro. J a umbanda tem a conscincia de sua brasilidade, de carter nacional.
Apesar desses aspectos serem gritantes no meio intelectual, Ortiz (1988) e Prandi
(1999) apontam que na religio afro-brasileira as crises e as transformaes polticas do
pas -1930 - por um lado, significaram uma ruptura com o passado, passado simblico,
um movimento de desagregao das antigas tradies18 afro-brasileiras., como dizHobsbawm e Ranger (1997, p. 9). Por outro, acentuaram o seu retorno tradio ps
1964, incio de 1970) - ou seja, ao reaprendizado da lngua, dos ritos e dos mitos
18Entende-se por tradio reiventada um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ouabertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas decomportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente uma continuidade em relao ao
passado. Alis, sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histrico apropriado.
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deturpados e perdidos na adversidade da dispora. Significou o retorno frica para
recuperar um patrimnio, que faz parte de uma cultura negra e brasileira.
Nas ltimas dcadas do sculo XX, segundo Silva (1999), as tradies passam a
ser consideradas algo reinventado, e, nesse contexto, o processo de reafricanizao
assume significados e matizes diferentes ao longo do tempo e nos lugares onde ocorre,
principalmente se considerarmos as noes de tradio nele envolvidas. Para Teixeira
(1999) e Silva (1999), comum nas religies africanas, ou negras, como usa Prandi
(1999), os pais e mes de santos buscarem, na frica, pedaos da tradio, tidos como
perdidos ou esquecidos, trazendo novos conhecimentos ou aprofundamentos sobre os
mesmos. Enfatiza Silva (1999, p.156) que,
[...] atravessar o Atlntico em direo frica, passa a ter mais valor,
[...] j que esta travessia constri uma origem mtica, constituind