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1 IN: NASCIMENTO, E.L. (Org.) . Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de ensino. 1.ed. São Carlos: Editora Claraluz, 2009, p.151-194. RESSIGNIFICANDO A AULA DE LEITURA A PARTIR DOS GÊNEROS TEXTUAIS Cláudia Valéria Doná Hila 1 INTRODUÇÃO Para o mundo acadêmico, muitas ideias e conceitos que serão aqui expostos inicialmente correm o risco de serem tomados como sendo do senso comum. No entanto, basta tomarmos os resultados das avaliações feitas pelo Ministério da Educação, a exemplo do SAEB ou da Prova Brasil, para percebermos que a formação de leitores críticos, em especial, na rede pública, tem passado ainda longe das escolas, o que gera a necessidade de se resssignificar temas debatidos academicamente, porém ainda sem repercussões significativas nas escolas. Esses resultados revelam que, após dez anos de publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, os conceitos e diretrizes ali apresentados, em especial, na área da leitura, ainda não foram totalmente apropriados pelos professores. Conceitos como texto, contexto, estratégias e fases de leitura, embora apareçam nos manuais didáticos destinados aos professores das séries iniciais, e tenham sido objetos de muitas pesquisas, na prática não são ainda devidamente compreendidos por muitos profissionais que atuam na educação básica. Dúvidas sobre como transpô-los são ainda bastante recorrentes, seja na formação inicial, nos cursos de Letras ou Pedagogia, seja na formação continuada. Em ambos os casos, parece prevalecer um trabalho ainda espontansta com o texto na sala de aula, no qual as perguntas de leitura nascem muito mais da intuição professor do que do seu efetivo conhecimento sobre teorias que subsidiam essa prática. Se pensarmos na inserção dos gêneros textuais na sala de aula, a situação é ainda lacunar no que concerne ao trabalho do professor. Trabalhos recentes como os de Lopes-Rossi e Bortoni-Ricardo (2008), Koerner (2008), Brandão (2008), Hila (2007) evidenciam o desconhecimento de professores em formação e em serviço a respeito das bases teóricas 1 Docente da Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pesquisadora dos projetos: “Gêneros textuais e ferramentas didáticas para o ensino-aprendizagem de língua portuguesa” (UEL/CNPq) e “Interação e escrita no ensino e aprendizagem” (UEM/CNPq). Endereço eletrônico: [email protected] .

Ressignificando a aula de leitura- livro SIGET09[1] · 2 acerca dos gêneros textuais, o que explica, em parte, a dificuldade desses professores repensarem a aula de leitura, para

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IN: NASCIMENTO, E.L. (Org.) . Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de ensino. 1.ed. São Carlos: Editora Claraluz, 2009, p.151-194.

RESSIGNIFICANDO A AULA DE LEITURA A PARTIR DOS GÊNEROS TEXTUAIS

Cláudia Valéria Doná Hila1

INTRODUÇÃO

Para o mundo acadêmico, muitas ideias e conceitos que serão aqui expostos

inicialmente correm o risco de serem tomados como sendo do senso comum. No entanto,

basta tomarmos os resultados das avaliações feitas pelo Ministério da Educação, a exemplo do

SAEB ou da Prova Brasil, para percebermos que a formação de leitores críticos, em especial,

na rede pública, tem passado ainda longe das escolas, o que gera a necessidade de se

resssignificar temas já debatidos academicamente, porém ainda sem repercussões

significativas nas escolas.

Esses resultados revelam que, após dez anos de publicação dos Parâmetros

Curriculares Nacionais, os conceitos e diretrizes ali apresentados, em especial, na área da

leitura, ainda não foram totalmente apropriados pelos professores. Conceitos como texto,

contexto, estratégias e fases de leitura, embora apareçam nos manuais didáticos destinados

aos professores das séries iniciais, e tenham sido objetos de muitas pesquisas, na prática não

são ainda devidamente compreendidos por muitos profissionais que atuam na educação

básica. Dúvidas sobre como transpô-los são ainda bastante recorrentes, seja na formação

inicial, nos cursos de Letras ou Pedagogia, seja na formação continuada. Em ambos os casos,

parece prevalecer um trabalho ainda espontaneísta com o texto na sala de aula, no qual as

perguntas de leitura nascem muito mais da intuição professor do que do seu efetivo

conhecimento sobre teorias que subsidiam essa prática.

Se pensarmos na inserção dos gêneros textuais na sala de aula, a situação é ainda

lacunar no que concerne ao trabalho do professor. Trabalhos recentes como os de Lopes-Rossi

e Bortoni-Ricardo (2008), Koerner (2008), Brandão (2008), Hila (2007) evidenciam o

desconhecimento de professores em formação e em serviço a respeito das bases teóricas

1 Docente da Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pesquisadora dos projetos: “Gêneros textuais e ferramentas didáticas para o ensino-aprendizagem de língua portuguesa” (UEL/CNPq) e “Interação e escrita no ensino e aprendizagem” (UEM/CNPq). Endereço eletrônico: [email protected] .

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acerca dos gêneros textuais, o que explica, em parte, a dificuldade desses professores

repensarem a aula de leitura, para além do uso do texto como pretexto para a gramática..

No caso específico dos professores de língua portuguesa que atuam nas séries iniciais,

é reconhecido o pouco espaço dado à formação linguística dos pedagogos (BARROS, 2008;

MELLO, 2007), especialmente notada nos currículos de formação de professores que, se não

justifica o imbróglio atual no que se refere à formação de crianças leitoras, ao menos

consegue explicar em parte as raízes de um problema cuja responsabilidade passa por

diferentes instâncias, entre as quais a Universidade é apenas uma delas.

Mas, apesar desse cenário já demasiadamente conhecido, entendemos, tal como os

pesquisadores da vertente mais didática do Interacionismo Sociodiscursivo, que é necessário

auxiliar o docente a se apropriar dos pré-construídos existentes (cf. BRONCKART, 2005)

por meio de processos de mediação formativa e instrumental, para que ele possa ressignificar

a sua prática. Isso não equivale apresentar-lhe “fórmulas prontas”, deixando de lado a sua

capacidade de reflexão, ou o desenvolvimento do chamado professor pesquisador.

Entendemos que diante do contexto de grande parte dos professores em exercício da rede

pública, o trabalho de gerar a apropriação dos pré-construídos, base de toda reflexão, tem

ocorrido por intermédio de cursos de formação continuada, que se não levam em especial esse

professor a produzir dissertações, teses e artigos, ao menos o auxilia a enxergar o outro de si

mesmo (BAKTHIN, 2003) e a fazer da reflexão a instância geradora para a revisão de suas

práticas.

O trabalho que será aqui exposto é fruto de uma série de cursos de formação

continuada, ministrados por professores formadores do curso de Letras do noroeste do Paraná

e também por estagiários (professores em formação), entre os anos de 2005 e 2008, para

professores de séries iniciais do ensino fundamental. Percebemos neste contexto de formação,

que as discussões teóricas no campo da linguagem chegam em ritmo muito lento (quando

chegam) nas séries iniciais. Por isso, insistimos em voltar a “antigos conceitos”, explicar

“novos", não para o pesquisador já acostumado com eles, mas, principalmente, para nosso

interlocutor mais direto- o professor de séries iniciais.

Recortamos para este trabalho, o momento em que os professores (em formação inicial

e em exercício), após terem passado pelo processo de inicial de apropriação de teorias

discursivas concernentes ao ensino da leitura e à apropriação dos gêneros textuais (porque

serão necessários outros eventos para que a apropriação realmente se efetive) são convidados

a planejarem atividades de leitura que, em sua grande maioria, constituem partes de projetos,

oficinas ou sequências didáticas.

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Nosso principal objetivo, portanto, não é denunciar ou apontar as lacunas e

deficiências na formação do professor, já tão conhecidas e propagadas pelo mundo acadêmico,

ao contrário é o de apresentar exemplos de como os professores de séries iniciais, a partir de

processos de mediação, conseguem ressignificar o planejamento de uma aula de leitura tendo

como objeto um dado gênero textual. Os exemplos dos exercícios que serão expostos foram

retirados de um banco de dados inseridos no projeto “Gêneros textuais e ferramentas didáticas

para o ensino-aprendizagem de língua portuguesa” e de um manual didático.

O texto vem organizado da seguinte maneira: a) apresentação da prática de leitura com

gêneros textuais normalmente encontrada na sala de aula em séries iniciais antes da nossa

intervenção (como tem sido); b) a importância de uma prática de leitura norteada pelo gênero

textual (por que um novo objeto); c) bases epistemológicas orientadas para a leitura e os

gêneros textuais, já acrescidas de exemplos de exercícios planejados pelos professores em

formação e em exercício (implicações conceituais e práticas para a sala de aula); d)

organização de uma aula de leitura tendo como foco um gênero textual (sugestão de como

planejar).

1. A PRÁTICA DOS PROFESSORES COM A LEITURA DO GÊNERO NA SALA DE AULA

Em nossa experiência e nos relatos de experiências de outros formadores (LOPES-

ROSSI e BORTONI-RICARDO e MARTINS, 2008; MENEGASSI, 2009; ANGELO &

MENEGASSI, 2007; HILA, 2007) tem sido comum encontrarmos alguns dados interessantes

em relação às aulas de leitura propostas em séries iniciais. Nos tópicos a seguir passaremos a

nos referir a elas.

1.1 SOBRE OS TEXTOS ESCOLHIDOS

Em relação a esse aspecto, nos cursos de formação por nós ministrados, temos nos

deparado com três grupos de professores. O primeiro é composto por aqueles que não

escolhem os textos a serem levados para a sala de aula, e seguem os que estão nas coleções

avaliadas pelo PNLD/2007 de 1ª a 4ª séries (BRASIL, 2006). Tais coleções foram

organizadas pelo sistema de avaliação em cinco blocos: (1) por unidades temáticas; (2) por

unidades temáticas sensíveis a gêneros/tipos de texto; (3) por projetos temáticos; (4) com base

em textos; (5) por eixos de ensino.

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Tem-se, assim, organizações sensíveis aos gêneros, o que não quer dizer a partir de

gêneros, coleções que trazem uma diversidade de textos, porém com problemas quanto ao

tipo de tratamento dado a eles. Não houve, portanto, até a última avaliação do MEC nenhuma

coleção organizada pensando especificamente no trabalho com o gênero textual. E mesmo nas

chamadas coleções sensíveis ao gênero prevalece um tratamento ainda equivocado com o

texto (BORTONI-RICARDO, 2008). Acrescentemos que, tal como ocorre nas coleções de 5ª

a 8ª séries, grande parte dos autores têm formação acadêmica em Literatura e Teoria Literária

o que explica, ainda, o forte predomínio dos gêneros literários em boa parte das coleções (que

obviamente têm sua relevância nessa etapa da formação leitora da criança, mas que não dão

conta de inserir a criança num mundo em que outros letramentos se fazem necessários, a

exemplo do que expõe Barros neste volume.

O segundo grupo é composto por professores que trabalham com o livro didático e o

complementam selecionando outros textos para serem levados à sala de aula. Nesse grupo, há

muitos textos ainda voltados apenas para a esfera literária (quando não aparecem de forma

adaptada e não original), dando, inclusive, a gêneros literários distintos um tratamento

tipológico uniforme, isto é, considerando que um conto de fadas, uma narrativa de aventura,

uma crônica possuam a mesma organização composicional, exatamente porque parte dos

professores ainda estão muito presos à noção de tipologia, em especial à da narrativa

tradicional baseada nos moldes da Antiga Retórica.

Todavia, há um terceiro grupo de professores que já se atentou para a diversidade de

gêneros e os levam para a sala de aula, porém ainda não conseguem elaborar totalmente

questões que deem um tratamento adequado a essa noção. Como resultado, acabam

gramaticalizando total ou parcialmente o gênero (BALTAR, 2005), encontrando-se num

processo de interface entre a prática tradicional da leitura e práticas de natureza mais

discursivas.

1.2 SOBRE OS TIPOS DE PERGUNTAS ENCONTRADAS

Menegassi (2009), utilizando a taxonomia proposta por Marcuschi (2004) - perguntas

de copiação (que copiam literalmente partes do texto), perguntas inferenciais (que usam o

texto, mas que a partir dele constroem novas ideias), perguntas-pretexto para o ensino da

gramática e perguntas vale-tudo (que não necessitam do texto e qualquer resposta é válida),

estudou o trabalho desenvolvido por um grupo de professores de séries iniciais da rede

pública do noroeste do Paraná. Observou que, mesmo quando o professor trabalha com um

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gênero fora da esfera da literatura, o tratamento é o mesmo, ou seja, prevalecem as perguntas

de copiação, as vale-tudo e as perguntas-pretexto para o ensino da gramática, o que

demonstra a dificuldade desses professores em se apropriar de conceitos de natureza mais

discursiva, seja no que concerne aos gêneros textuais, seja aos processos envolvidos no ato da

leitura, sem que para isso estejam inseridos em processos de formação continuada.

1.3 SOBRE A ORDEM DAS PERGUNTAS A SEREM FORMULADAS PARA O TEXTO

Para o planejamento de uma aula de leitura não só importam os tipos de perguntas (a

serem definidas pelos objetivos de leitura), mas também a sua ordem. Em relação a esse

aspecto, presenciamos constantemente a dificuldade de planejamento de uma ordem das

perguntas (a grande maioria dos professores nem sequer pensava numa possível ordenação),

tanto de professores em formação como em exercício, bem como a falta de trabalhos

científicos que explorem a transposição das teorias de leitura para a elaboração e

sequenciação das perguntas de leitura para as séries iniciais. Mesmo dentre os professores que

conhecem algumas das teorias de leitura, ou que encontram-se, como temos visto, em

processos de interface, grande parte ainda não percebe que, sendo um processo a ser ensinado,

a leitura obedece a fases, as quais estabelecem uma ordem de processamento mais adequada

à formação do leitor crítico.

É comum, por exemplo, seja nos livros didáticos, ou nas perguntas elaboradas pelos

próprios professores, que uma das primeiras questões do texto seja “qual o tema do texto?”,

ou seja, inicia-se com aquilo que seria o final do processo de compreensão. A fim de

ilustrarmos essa constatação, observemos as perguntas abaixo, elaboradas por uma professora

do 2º ano, por ocasião da Páscoa:

Coelhos

Você sabia que os dentes do coelho não param de crescer? É isso mesmo. Os dentes do coelho como o de qualquer outro anima roedor, nunca param de crescer. Por isso é que eles vivem roendo cenoura, para gastar os dentes.

Existem mais de 40 espécies de coelhos, sendo um mais lindo que o outro. Os coelhos são bichinhos mansos e muito graciosos. O coelho selvagem, ascendente do coelho doméstico, chegou ao continente europeu pelos espanhóis vindos do norte da África.

O coelho fica o tempo todo mexendo o nariz, pois seu olfato é muito sensível e, assim, ele fica sabendo se existe algum perigo por perto.

Por se procriarem com muita facilidade, os coelhos são conhecidos como símbolo da fertilidade.

Leia o texto com atenção e responda: 1. Que tipo de texto e esse? 2. Qual a temática do texto? 3. O que acontece com os dentes do coelho?

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4. Você gosta de coelhos? Por quê? 5. Por que o coelho fica o tempo todo mexendo o nariz? 6. Encontre no texto uma palavra escrita em letra maiúscula. 7. Separe as sílabas das seguintes palavras do texto: coelho, espanhóis, símbolo. 8. Agora desenhe o seu coelhinho e Boa Páscoa.

Analisando as perguntas elaboradas pela professora, podemos perceber que não há

uma ordem conscientemente planejada para a sequência das perguntas, visto que a pergunta 2,

por exemplo, remete à fase final do processo de compreensão, ou seja, à busca da temática, as

3 e 5 à fase inicial, pois se referem a aspectos da compreensão literal do texto (devendo vir

antes, portanto, da pergunta 2).

A questão 4 remete à fase de interpretação, também estando na posição inadequada.

Além disso, se pensarmos nas informações relevantes para a construção da temática do texto,

a professora seleciona apenas duas (a respeito dos dentes e do nariz) e descarta as demais, por

quê?

Já as perguntas 6 e 7 não precisam do texto, sendo pretextos para reforço de aspectos

gramaticais da aula, provavelmente conteúdos da série, como uso da maiúscula e separação

silábica, não tendo nenhuma relação com o gênero. Por fim, ignorando que na pergunta 4 a

criança possa ter escrito que não gosta de coelhos, a pergunta 8 solicita que ela o desenhe,

pergunta essa que não acrescenta nenhum dado de compreensão ao texto, que pode ser

incoerente ao que se já perguntou. Além disso, o texto oferecido vem sem referência

(provavelmente adaptado pela professora), numa clara evidência de didatização do gênero.

Claro está que escolhemos um exemplo que ilustra a dificuldade de parte dos

professores, mas que insistimos não é uma regra. O nosso intuito foi que, por meio dele

pudéssemos auxiliar os professores apenas a identificar os problemas dessa aula, para

ressignificar o planejamento da aula de leitura.

2. POR QUE OS GÊNEROS TEXTUAIS NA AULA DE LEITURA?

Desde o surgimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), os

gêneros textuais são prescritos como objetos de ensino (embora isso seja questionável) para as

aulas de Língua Materna, o que, de uma forma ou outra, traz implicações para reorganizações

curriculares.

Obviamente, o trabalho com os gêneros textuais não é recente na sala de aula . A

noção de gêneros, especialmente aqueles advindos da esfera literária, como os poéticos (mais

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conhecidos como gêneros líricos, épicos e dramáticos) e os retóricos,já estava muito presente

nas escolas do século XIX até meados do século XX. Rojo (2008) atesta essa afirmação e

ilustra que não apenas no caso dos referenciais brasileiros, mas também nos referenciais

inglês, australiano, canadense, genebrinos, dentre outros, se não fazem menção direta a

importância do gênero textual como articulador das práticas em sala de aula, têm em comum

princípios como:

(...) a educação linguística básica para a vida, o aprendizado, a cidadania e o trabalho; o ensino da literatura como acesso às tradições culturais (“heranças”); a necessidade de trabalho com as diferentes mídias, modalidades de linguagem e tecnologias da informação e da comunicação; a análise e o funcionamento da linguagem (oral, escrita) situada, em contextos diversos de uso, para diferentes propósitos e de maneira adequada a audiências variadas. (p.77)

No caso da prática da leitura, o que se tem ressaltado é que a escola precisa formar

leitores críticos que consigam construir significados para além da superfície do texto,

observando as funções sociais da leitura e da escrita nos mais variados contextos, a fim de

levá-los a participar plena e criticamente de práticas sociais que envolvem o uso da escrita e

da oralidade. A noção, portanto, de prática social, convoca um dos primeiros argumentos em

defesa do uso dos gêneros em sala de aula.

Podemos considerar as práticas sociais como formas de organização de uma sociedade

das atividades e das ações realizadas pelos indivíduos em grupos organizados. Obviamente

essa organização difere-se de época para época, de cultura para cultura e de lugar para lugar.

Por meio dessas práticas definem-se as atividades humanas, bem como os papéis e lugares

sociais para aqueles que nela estão envolvidos.

A prática social “ir à escola”, por exemplo, exige diversas atividades tanto por parte do

professor, como por parte do aluno, como: planejar a aula, ouvir o professor, elaborar/realizar

exercícios, discutir tópicos, prestar atenção à aula, organizar atividades, etc. Exige também

que assumamos nessa esfera social o papel social quer de professor, quer de aluno (e não, por

exemplo, de namorados, de patrão, de empregado). Nessas e em outras inúmeras atividades, o

homem elabora os chamados gêneros textuais, tais como: agenda, prova, discussão oral,

resumo, debate regrado, seminário, plano de aula, etc.

Dessa forma, as práticas sociais mobilizam diversas atividades de linguagem, as quais

envolvem diferentes maneiras de expressão, via os gêneros textuais, materializados em

diferentes tipos de textos, que implicam diferentes capacidades de compreensão e de produção.

Isso explica, então, a razão pela qual não podemos mais usar em sala de aula apenas a noção

de tipologia textual ou de modalidade retórica para a aula de leitura e produção textual - as

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quais definem os textos como narrativos, argumentativos, descritivos, expositivos, injuntivos,

já que além de não nos comunicarmos por esses tipos de textos, eles não dão conta de

desenvolver as capacidades de leitura e de escrita necessárias para a participação efetiva do

indivíduo num mundo multissemiótico, no qual há necessidades de leitores não apenas do

texto verbal, mas de textos que trazem múltiplos sistemas de linguagem (verbal, visual,

audiovisual, gestual). Como um aluno lerá, por exemplo, um anúncio publicitário, uma

manchete de jornal, uma tira apenas com a noção de tipologia textual?

Por isso mesmo, a noção de letramento passa a ser ampliada, ou seja, o bom leitor não

é mais aquele que apenas compreende literalmente o que lê, mas, nas palavras de Dionísio

(2005, p.159), é aquele “capaz de atribuir sentidos a mensagens oriundas de múltiplas formas

de linguagem, bem como capaz de produzir mensagens, incorporando múltiplas fontes de

linguagem”.

Dessa forma, cabe ao professor a tarefa de dar a oportunidade aos alunos de se

apropriarem das características discursivas e linguísticas dos mais variados gêneros textuais,

inseridos em práticas reais e contextualizadas, de modo a fazê-los letrados. E mais, para a

grande maioria do alunado de séries iniciais, é apenas pelos olhos do professor “letrado” que

os textos chegam até a sala de aula. E o problema, a nosso ver, reside muito aí, ou seja, no

baixo nível de letramento do próprio professor (cf. KLEIMAN, 2008) que também acaba por

não ter acesso (e não entraremos aqui nos motivos disso) à multiplicidade de gêneros

multimodais (ou não) à disposição na sociedade.

Por que então esse professor deve trabalhar na sua aula de leitura com os gêneros

textuais? E as razões para esse trabalho são muitas, tais como explica Barbosa (2000):

(a) abrem possibilidade de se integrar a prática da leitura, da escrita e da análise linguística,

comumente estanques nos currículos da escola básica;

(b) permitem a concretização de um ideal de formação com vistas ao exercício pleno da

cidadania (já que se utilizam de textos de efetiva circulação social e de diferentes esferas e

práticas sociais);

(c) possibilitam a concretização de uma perspectiva enunciativa para as aulas de língua

portuguesa, o que quer dizer, uma perspectiva que leve em conta o conhecimento situado, a

linguagem efetivamente em uso, o trabalho com textos e práticas didáticas plurais e

multimodais;

(d) conseguem dar conta tanto de noções discursivas como também mantém noções

eminentemente estruturais ou linguísticas/enunciativas, todas elas necessárias para o

letramento do sujeito e para a correta compreensão do próprio gênero;

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(e) fornecem subsídios para (re)pensarmos novas formas de organização curricular.

Completando os argumentos, Bronckart (2003, p.103) sustenta que a apropriação dos

gêneros “é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades

comunicativas humanas”. Dolz & Schneuwly (2004) vão na mesma direção defendendo a

ideia de que o desenvolvimento da autonomia do aluno no âmbito da leitura e da produção

textual é consequência direta do domínio do funcionamento da linguagem em situações reais

de comunicação, presentificadas pelos gêneros textuais, já que são por meio deles que as

práticas sociais são realizadas. Nascimento (2006) assume a tese de que o letramento é um

processo de apropriação de gêneros textuais.

Brandão (2001, p.43), tematizando mais especificamente a questão da leitura, vai um

pouco mais além ao afirmar que o professor, ao mediar o aprendizado de estratégias de leitura

adequadas aos gêneros textuais, estará “contribuindo com sua parcela de formar o cidadão no

seu sentido pleno” (grifo da autora). Isso porque o uso do gênero na sala permite incorporar,

na visão de Nascimento (2008), em um único objeto, elementos da ordem do social e do

histórico, do conteúdo temático, da estrutura composicional, do estilo e da situação de

produção de um dado discurso (quem fala, para quem fala, lugares sociais dos interlocutores,

posicionamentos ideológicos, em que tempo e situação, em que veículo, com qual objetivo,

etc.).

Logo, para um efetivo trabalho de formação de leitores na sala de aula, partimos da

defesa de que um dos objetivos da escola é de um lado possibilitar a inserção de nossos

alunos nas atividades de linguagem que envolvem práticas sociais de sua comunidade; de

outro, é o de mediar processos de formação para que possamos integrar os aprendizes às

diversas categorias de textos em que se materializam as práticas sociais. Numa sociedade

letrada tais práticas implicam a leitura e recepção/compreensão de textos escritos. Esse é o

conceito de letramento que subjaz ao enfoque dos gêneros textuais como objeto de ensino-

aprendizagem e que temos defendido em nosso trabalho.

3. BASES EPISTEMOLÓGICAS DOS GÊNEROS TEXTUAIS PARA O ENSINO DA

LEITURA

O conceito de gênero textual e sua implicação para a sala de aula pode ser

compreendido à luz de várias correntes teóricas tais como: O Interacionismo Social

(especialmente com Bakhtin), O Interacionismo Sociodiscursivo e a Escola de Genebra

(Bronckart, Schneuwly, Dolz, dentre outros); a chamada Escola de Sidney (Hasan, Kress,

Martin, etc.) e, também, a partir da Nova Retórica (com os trabalhos mais recentes de Charles

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Bazerman, Caroline Miller, etc). No campo mais aplicado, as contribuições de Bakhtin e da

Escola de Genebra tem sido as mais utilizadas.

Também faremos outro recorte justificável e sabemos um tanto reducionista, pois

entendemos tal como atesta Rojo (2008), que o conceito de gênero tem todo um processo

histórico de constituição, em obras bem anteriores ao texto que ficou mais famoso “Os

gêneros do discurso”, de Mikail Bakhtin (2003). Nesse sentido, Rojo (2008) reforça que todos

aqueles que desejam debruçar-se sobre os estudos com gêneros discursivos deveriam

estabelecer um diálogo com outras obras, anteriores à A estética da criação verbal, no qual se

encontra o capítulo a que nos referimos, dentre elas o próprio Marxismo e filosofia da

linguagem, para relacionar o conceito de gênero com outros como dialogismo, hibridismo,

cronotopos, etc. Porém, por uma questão de espaço, delimitação e didatizações necessárias

ao trabalho, nos deteremos apenas nas implicações decorrentes de alguns conceitos presentes

no capítulo “Os gêneros do discurso” (BAKHTIN, op.cit.) já que são os mais utilizadas no

campo de formação inicial e continuada.

Um primeiro conceito necessário para se entender a noção de gênero é o de enunciado

concreto: “O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos

e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana”

(BAKHTIN, 2003 p.261). A vida, para Volochinov/Bakhtin (1976, p. 10) “não afeta um

enunciado de fora; ela penetra e exerce influência num enunciado de dentro”, exatamente

porque “a enunciação está na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado; ela, por

assim dizer, bombeia energia de uma situação da vida para um discurso verbal” (p.6) tornando

aquele enunciado, naquele momento, único e singular. Vida e enunciado são indissociáveis,

separá-los ou ignorá-los significa impedir a desejada autonomia do indivíduo e a formação de

um leitor crítico.

E o que vem a ser um enunciado concreto? Como o professor de séries iniciais pode

entender esse conceito?

Se tomarmos como exemplo “A porta está aberta” e pensarmos no seu uso na sala de

aula, poderemos ter duas perspectivas de ensino diferentes: uma que tomará a frase

isoladamente, podendo usá-la para o mero reconhecimento de estruturas gramaticais,

desvinculadas do sentido, como em questões do tipo: “Quem é o sujeito da frase?”, “Que tipo

de predicados essa frase apresenta?” Outra, diferentemente, centrada na significação do

enunciado concreto, que terá que levar em conta os elementos do contextuais ou, para

Bakhtin, a situação social mais imediata, que compõem as condições de produção do

enunciado:

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São elementos essenciais desta situação social mais imediata os parceiros da interlocução: o locutor e seu interlocutor, ou horizonte/auditório social, a que a palavra do locutor se dirige. São relações sociais, institucionais e interpessoais desta parceria, vista a partir do foco da apreciação valorativa do locutor que determinam muitos aspectos temáticos, estilísticos e composicionais do texto ou discurso. (ROJO, 2005, p.197).

Assim, se a frase “A porta está aberta” for dita por um marido no momento de uma

discussão, com o intuito de se ver livre da mulher, terá como significado que a mulher saia do

recinto. Se, ao contrário, alguém de fora da casa, que o falante conhece e gosta, grita pelo seu

nome, o significado é para que essa pessoa entre no recinto. Nesse sentido

Bakhtin/Volochinov (1992) colocam que o tema da significação (ou o sentido do texto) é

determinado não apenas pelas formas linguísticas que entram em composição no texto (como

as palavras, os sons, as formas morfológicas/sintáticas, etc., mas também pelos elementos

não-verbais da situação. Ou, nas palavras de Volochinov/Bakhtin (1976, p.9) o que se chama

de “compreensão ou de avaliação de um enunciado sempre engloba a situação pragmática

extraverbal juntamente com o discurso verbal”. Por isso mesmo somente o enunciado

concreto, inserido num contexto social e histórico preciso é que possui significação.

Outro conceito importante para refletirmos sobre a questão da leitura é o conceito de

dialogismo, tomado por Bakhtin/Volochinov (1992) como a propriedade básica e inerente da

linguagem, o que implica a presença de parceiros (locutor e interlocutor) e a noção de

compreensão responsiva ativa. Afirmam os autores (p.132): “Compreender é opor à palavra

do outro a contrapalavra”. Contrapalavra entendida aqui como diálogo, como efeito da

interação entre os parceiros envolvidos no ato de comunicação. Assim, a compreensão de um

enunciado é sempre uma resposta, na medida em que introduz o objeto da compreensão num

novo contexto – o contexto potencial da resposta:

O ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. (BAKHTIN, 2003, p. 271).

Tomando, então, o enunciado como uma entidade concreta e a língua como

instrumento sócio-histórico, Bakhtin (2003) explica que os enunciados refletem

ideologicamente os campos ou as esferas nas quais estão instaurados (por exemplo, esfera do

trabalho, da escola, da religião, do jornal, etc).

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O que o autor quer dizer com isso é que cada esfera da atividade humana produz seus

tipos específicos de enunciados, o que faz com que cada enunciado, cada gênero textual, traga

marcas da esfera na qual está inserido. Daí se materializa uma das principais ideias de Bakhtin:

se as esferas são numerosas, a fim de que não precisemos criar um novo enunciado a cada

nova situação de comunicação, cada “esfera de utilização da língua elabora os seus tipos

relativamente estáveis de enunciados, isto é seus gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003,

p.279).

As esferas estão divididas em dois grandes estratos: (1) as esferas do cotidiano

(familiares, pessoais, de pequenos grupos), nas quais circulam a ideologia do cotidiano e as

esferas dos sistemas ideológicos constituídos (como é o caso da Religião, da Ciência, da Arte,

da Política, etc). Essas esferas instituem os lugares dos parceiros da enunciação, os temas (o

que pode ser dito ou não), as finalidades ou intenções. Logo, o ponto de partida para o

trabalho em sala, quando pensamos na questão do letramento, com qualquer gênero é a esfera,

já que ela também será responsável pela produção de sentidos do texto. Mas como pensar na

esfera em termos de transposição para a sala de aula?

A título de exemplo, vejamos um exercício elaborado por professores em exercício,

durante um corso de formação, para uma 3ª série da rede pública, com o objetivo de trabalhar

com as esferas, dentro de um projeto maior que envolvia o trabalho com gêneros publicitários

para crianças.

Observe a foto abaixo:

(Fonte: ttp://4.bp.blogspot.com/_Noo3CCfiW9o/SLYa4VyObbI/AAAAAAAAAwE/gxrUloAwR-4/s400/bala+7+belo.jpg)

1. O que você vê nessa foto? 2. Se você visse essa foto numa revista para crianças ou mesmo no gibi ela significaria algo mais

que uma bala? Assinale a alternativa correta. ( ) Não, continuaria sendo uma bala. ( ) Sim, significaria um apelo para que comprássemos a bala. 3. Agora vamos imaginar que você foi ao dentista e pegou uma revista dirigida à saúde bucal na

qual havia essa foto seguida de uma reportagem. Nesse caso a foto significaria um apelo para que você consumisse balas? Justifique.

4. Observando o que você respondeu na questão 2 e 3, a que conclusão você diria que um texto, mesmo sendo uma foto como essa, sempre vai significar a mesma coisa? Justifique.

13

Nesse exercício, o objetivo era evidenciar para a criança que o sentido do texto não

verbal está diretamente relacionado ao suporte e à esfera. A foto foi escolhida a partir de uma

entrevista com as crianças que revelou ser as balas 7 Belo as mais consumidas por elas na

escola, respeitando-se o contexto social mais imediato.

Se temos uma revista para crianças, na qual as propagandas e o consumo são

valorizados, temos um sentido favorável ao consumo das balas, exatamente porque na esfera

da publicidade esse é o apelo maior que se quer alcançar. O mesmo não ocorre na esfera da

saúde, na qual a foto das balas muito provavelmente estaria inserida em uma reportagem que

apontaria os malefícios dos doces e do açúcar para os dentes. A criança, ao responder as

perguntas, partiria do significado descontextualizado na pergunta 1, passaria para o

significado contextualizado (dentro de um enunciado concreto) da foto na esfera da

publicidade na pergunta 3, pensaria noutro significado em outra esfera na pergunta 4 e

chegaria à conclusão de que a depender do contexto (da esfera) do texto teremos significados

diferentes.

Obviamente, esse exercício de forma isolada pode não parecer interessante, porém

ilustra que, quando pensamos em projetos de leitura, vários serão os exercícios para a

apropriação de um gênero, dentre eles os relativos ao contexto de produção, no qual a esfera é

um dos componentes que o professor precisa levar em conta, já que faz parte do contexto de

produção do texto.

Baseado sobretudo nas ideias de Bakhtin, como a dimensão ideológica da linguagem,

na teoria de Habermas sobre o agir comunicativo e nos trabalhos de Vygotsky acerca do

processo de internalização, Bronckart (2003, p. 93) define o contexto de produção de um

texto (oral ou escrito) como “conjunto dos parâmetros que podem exercer uma influência

sobre a forma como o texto organizado”. Esses parâmetros, de forma bastante didática, são

explicados por Saito e Nascimento (2005, p.14):

1. A esfera da comunicação: cenário ou formação social na qual o texto se localiza

(Mídia, Literatura, Família, Igreja, Escola, etc.);

2. A identidade social dos interlocutores: o lugar social de onde falam os parceiros da

interação, isto é, o texto além de ter um emissor que é a pessoa que produz e um

receptor a que recebe, também apresenta posições sociais por eles desempenhadas.

Para exemplificar esta categoria, mostramos um recorte de um exercício de leitura

visando à questão do papel social, formulado por professoras em formação do curso de Letras,

para ser desenvolvido em um 3º ano, inserido em um projeto maior acerca do gênero “carta do

leitor”:

14

Leia atentamente a carta abaixo, para em seguida responder às questões que a seguem

ARQUEÓLOGO Oi, pessoal da CHC, tudo bem por aí? Meu nome é Diego, eu acho demais a revista. A CHC de que mais gostei foi a 151 – Bichos de Arrepiar. Gostaria que vocês falassem sobre dança, eu me amarro nesse assunto. Por favor, me coloquem na página de cartas. A seção de que mais gosto é a Quando crescer, vou ser... Gostaria que vocês falassem sobre o trabalho do arqueólogo. Aí, galera do Brasil. Escrevam para mim. Quero fazer novas amizades.

Diego Alves de Lima Rua Trindade, 129, 58070-270 Sudoeste/PB (Revista CHC, 174, novembro de 2006)

Ao ler a carta de Diego, percebemos algumas de suas características. Assinale com x as que estiverem corretas: ( ) Diego se coloca na posição de leitor da revista ao escrever sua carta ( ) Diego se coloca na posição de um arqueólogo ( ) Diego se coloca na posição de leitor interessado por assuntos de profissão ( ) Diego se coloca na posição de leitor interessado por assuntos de dança

Esse exercício aplicado em sala de aula demonstrou que as crianças, quando

devidamente mediadas pelos professores (no caso em formação) conseguem entender,

com relativa facilidade, a questão do papel social, que será essencial para que

compreendam gêneros como a carta do leitor, no qual o papel social é determinante para

as escolhas temáticas, lingüísticas e argumentativas.

3. Finalidade: objetivo ou o intuito discurso da interação. Como exemplo, podemos tomar uma das questões aplicadas pela Provinha Brasil, no ano

de 2008, para 1ª série (ou 2º ano):

Professor(a) Aplicador(a): antes de fazer a pergunta para os alunos responderem à questão, verifique se todos já terminaram de ler.

OI JUCA, CONVIDO VOCÊ PARA MEU ANIVERSÁRIO. SERÁ NO DIA 12 DE SETEMBRO, NO QUINTAL DA MINHA CASA.

FRANCISCO

ESSE TEXTO SERVE PARA: (a) CONVIDAR PARA UM ANIVERSÁRIO (b) CONVIDAR PARA JOGAR BOLA (c) FAZER UMA PROPAGANDA (d) FAZER UMA RECEITA DE BOLO

4. Concepção do referente: o conteúdo temático, o referente de que se fala (daremos um

exemplo ainda nesta seção).

15

5. Suporte material: as circunstâncias físicas em que o ato da interação se desenrola

(livro didático, outdoor, jornal-online, oral ou escrito). Marcuschi (2004, p. 11)

exemplifica a importância do suporte na construção do sentido a partir do seguinte

texto:

Paulo, te amo, me ligue o mais rápido que puder.Te espero no fone 55 44 33 22. Verônica

O autor demonstra que vários sentidos seriam possíveis para esse texto dependendo do suporte:

Por exemplo, se isto estiver escrito num papel colocado sobre a mesa da pessoa indicada (Paulo), pode ser um bilhete; se for passado pela secretária eletrônica é um recado; remetido pelos correios num formulário próprio, pode ser um telegrama; exposto num outdoor pode ser uma declaração de amor. O certo é que o conteúdo não muda, mas o gênero é sempre identificado na relação com o suporte (MARCUSCHI, 2004, p.11).

6. A relação interdiscursiva: o modo como se dá o diálogo entre as vozes que circulam

no texto (que vozes são essas? da dona de casa? do vendedor? do político? da criança?)

que fala em certas passagens do discurso (das diferentes esferas), as vozes que

emergem e se confrontam no texto.

Talvez, para as séries iniciais, esse será um dos aspectos de maior dificuldade de

planejamento do professor, mas que pode ser possível de ser colocado em sala com a devida

ajuda de professores formadores. Por exemplo, num projeto que envolveu a leitura e a escrita

do gênero fábula moderna, uma das atividades de leitura propostas por uma professora em

exercício para o gênero (após ter trabalhado a fábula “A cigarra e a formiga” de La Fontaine)

foi:

Leia atentamente o texto abaixo para em seguida responder ao que se pede:

SEM BARRA (versão poética de José Paulo Paes)

Enquanto a formiga Carrega a comida Para o formigueiro, A cigarra canta, canta o dia inteiro.

A formiga é só trabalho. A cigarra é só cantiga.

Mas sem a cantiga Da cigarra Que distrai da fadiga, Seria uma barra O trabalho da formiga!

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(PAES, J.P. Poemas para brincar. São Paulo: Ática, 1989)

1. O autor reescreveu a fábula a seu modo, criando um novo jeito de contar. Embora ele traga as personagens da fábula de La Fontaine- a cigarra e a formiga, o texto não é mais uma fábula. Que texto é esse? Justifique a sua resposta. 2. Releia o texto, se necessário. O autor alterou a forma ou o conteúdo também? 3. O que você percebeu sobre a posição do poeta no texto? Ele concorda com a fábula “A cigarra e a formiga”de La Fontaine. Explique

Observamos nesse exercício que a professora, ao trazer para a sala o poema de José

Paulo Paes, o qual faz um jogo de intertextualidade com a fábula de La Fontaine, consegue

de maneira simples também evocar a questão das vozes, como no exercício 3, no qual a

criança precisa retomar as vozes representadas pela cigarra e pela formiga na fábula

tradicional, mas também precisa perceber as novas vozes trazidas pelo texto que funcionam

como contrapalavras (no sentido bakhtiniano) àquelas da fábula. Se nesta, o trabalho do

artista (evocado pela figura da cigarra) não tinha valor, no poema, ao contrário, passa a ser

fundamental para o trabalho daqueles que se preocupam com o dia de amanhã. São diferentes

vozes que se encontram e que polemizam o texto trazendo um novo sentido para o poema.

Além dos elementos do contexto de produção, para a realização de um efetivo trabalho

de apropriação do gênero, a noção dos gêneros primários e especialmente dos secundários

também se faz necessária. Sem ter uma pretensão didática, Bakhtin (1992) divide os gêneros

em primários e secundários. Os gêneros primários ocorrem em situações mais cotidianas

(como a conversa familiar, por exemplo) e os gêneros secundários já ocorrem em situações

de comunicação mais complexas (por isso precisam ser ensinados) decorrentes dos sistemas

ideológicos constituídos, como é o caso do romance, do artigo científico, da reportagem, do

anúncio publicitário, etc. São esses últimos que, portanto, precisam de mediação para serem

compreendidos pelo sujeito no processo de letramento escolar. Cabe, então, à escola e seus

professores essa tarefa.

Para melhor entender como podemos pensar os gêneros secundários no ensino,

precisamos, antes, compreender quais são as dimensões constitutivas de um gênero discursivo.

Bakhtin (1992, p.262) insiste que, além de refletir os valores ideológicos das esferas onde são

produzidos, os enunciados:

[...] refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo, por sua estruturação composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo de atuação.

17

Fica claro, assim, que o tema, a estrutura composicional e o estilo são dimensões

indissociáveis para se pensar os gêneros discursivos na perspectiva bakhtiniana. Para efeitos

didáticos comentaremos e exemplificaremos cada uma dessas dimensões separadamente.

Os temas podem ser entendidos como os conteúdos ideologicamente dizíveis de um

gênero discursivo. Por exemplo, quando pensamos no gênero “lista de supermercado”, quais

são, normalmente, os conteúdos recorrentes? Ou, ainda, o gênero “diário de viagem/bordo”?

E no gênero memorial (um dos utilizados pela Olimpíada Nacional de Língua Portuguesa no

ano de 2008)? E quando pensamos no gênero notícia de jornal sensacionalista? Será que neste

último seriam cabíveis, em uma primeira página, temas em torno dos problemas educacionais,

por exemplo? Os temas, então, presentes em um determinado gênero do discurso, além de

refletirem as esferas onde estão inseridos, apresentam valores ideológicos desses lugares, isto

é, ideias, regras e valores compartilhadas pela comunidade pertencente àquela determinada

esfera.

O exercício abaixo, produzido por duas professoras de uma 3ª. série da rede pública,

ilustra o trabalho com o tema. Nesse caso, o intuito era que as crianças observassem que os

suportes podem instaurar diferentes temas (e interlocutores, os quais foram trabalhados em

outro exercício):

Observe as capas de revista abaixo. A partir delas assinale a matéria que seria possível ser publicada na revista a.

( ) Eleições municipais e o voto consciente ( ) Saiba tudo sobre o novo desenho do Homem-Aranha ( ) Os carros mais velozes do mundo

b.

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( ) Tudo que você precisa saber sobre tendências em maquiagem ( ) As receitas de Natal mais baratas ( ) As invenções mais esquisitas

c.

( ) Conheça o que você pode fazer para preservar a natureza ( ) Saiba tudo sobre a estréia do Homem Aranha ( ) As mais belas histórias de amor

Passemos agora para o segundo elemento constitutivo do gênero: a estrutura

composicional, a qual diz respeito à forma de composição compartilhada pelos textos

pertencentes a um determinado gênero, tanto em relação às estruturas textuais, como

discursivas e semióticas. Há gêneros, como a receita, por exemplo, que apresentam estruturas

textuais mais marcadas (título, ingredientes, modo de fazer) que outros gêneros, como, por

exemplo, o gênero crônica, da esfera da literatura. Há também gêneros como o anúncio

publicitário que, além de seus elementos textuais (slogan, provas, peroração) trazem

elementos não verbais (fotos, desenhos, ilustrações) como partes integrantes de sua estrutura

composicional, portanto imprescindíveis para a produção de sentidos do gênero, não podendo

ser isolados do processo de compreensão e de interpretação na sala de aula. É o caso de outros

gêneros multimodais como a reportagem, as histórias em quadrinhos, a tira jornalística, etc.

Dessa forma, quando pensamos na aula de leitura, precisamos, dentro de uma proposta

inserida num letramento maior, auxiliar o aluno a observar se para um determinado gênero há

ou não uma estrutura mais estável, qual é essa estrutura, já que isso o ajudará posteriormente,

também, no processo de recepção e produção escrita do próprio gênero. Vejamos um

exercício retirado do livro didático “Linguagens no século XXI”, de Heloísa Harue Tahazaki

(6ª série, p.123), mas que pode ser adaptado para séries anteriores, como a 4ª série, por

exemplo.

Após ter trabalhado as condições de produção do gênero “Nota biográfica” é dado um

texto que reproduz uma nota biográfica de Giuseppe Garibaldi. Então é solicitado alguns

exercícios de compreensão e interpretação, dentre eles destacaremos apenas o exercício 1, 2 e

3, no intuito de ilustrar uma possibilidade de exercício com a estrutura composicional. Os

exercícios foram:

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1. Qual dos quadros abaixo apresenta o modo como essa biografia foi organizada?

1 1º. Descrição dos sucessos em ordem cronológica 2º. Comentário sobre os fatos relatados

2 Descrição detalhada das etapas da vida da personagem: infância, juventude, maturidade e velhice.

3 1º. Apresentação dos dados pessoais do personagem 2º. Descrição dos fatos grandiosos

2. Em que parágrafos do texto foram apresentadas cada uma das partes, segundo sua resposta ao exercício anterior? 3. As partes que se destacam numa nota autobiográfica são quase sempre as mesmas.

1- Nome e sobrenome completos 2- Data de nascimento e morte 3- Principais ações de sua vida

Procure no texto lido, os trechos que correspondem aos itens acima.

Nesses exercícios, pretende-se que os alunos percebam que o gênero nota biográfica é

bastante regular na sua estrutura composicional. A questão 1, cuja resposta é o quadro 3,

resume as partes da nota biográfica. Já a segunda questão, para confirmar se realmente o

aluno percebeu essa estrutura, solicita-se que ele a encontre no interior do texto. Finalmente,

na terceira questão, os alunos precisam exemplificar as partes do gênero. Dessa forma, de

forma bastante variada, as questões contribuem para a fixação da estrutura do gênero, que será

necessária, posteriormente, para a etapa da produção textual. Reforçamos, entretanto, que

exercícios assim cumprem sua função de auxiliar o processo de recepção e produção de um

gênero se inseridos juntos com outros focados no tema e no estilo do gênero, para não caírem

apenas nos velhos e conhecidos aspectos estruturais do texto.

Quanto ao estilo, a terceira dimensão constitutiva do gênero, este refere-se às unidades

linguístico-discursivas que são mais comuns ou mais prototípicas do gênero em estudo, como

as estruturas frasais, o tipo de vocabulário, as preferências gramaticais, tais como a utilização

de um determinado tempo verbal, além das vozes e das modalizações. Utilizando o mesmo

exemplo do livro didático anterior, vejamos alguns dos exercícios propostos pela autora para

o estudo da língua (TAKAZAKI, 2002, p.124):

Estudo da língua 1. Com base na biografia de Giuseppe Garibaldi, resuma em uma frase o fato ocorrido em cada ano citado abaixo:

1807 – Nasceu Giuseppe Garibaldi em Gênova, Itália. 1834-1848 ...........

A apresentação ordenada de datas e dos fatos referentes a cada data chama-se cronologia.

2. Que tempo verbal você usou para iniciar cada frase? 3. Procure, no texto, períodos em que o presente está sendo usado para narrar os fatos que ocorreram.

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Nesses exercícios, o objetivo é levar a criança a perceber que no relato histórico

podemos usar tanto o pretérito perfeito do indicativo, como ilustrado no exercício 1 (no

entanto, a criança poderia continuar o exercício usando o presente do indicativo), como o

presente do indicativo, para marcar os fatos que já ocorreram. Todavia, para que esses

exercícios contribuam para a análise significativa do gênero, o professor deve comparar as

versões realizadas pelas crianças – no presente e no pretérito perfeito –, evidenciando as

diferenças de sentido em seu emprego. Por exemplo, enquanto o uso do presente histórico

manifesta uma necessidade do autor de atualizar os fatos ou de produzir no leitor uma

experiência mais intensa com os acontecimentos, o pretérito perfeito marca objetivamente

uma determinada ação. Nesse caso, a mediação do professor será essencial, sem o quê apenas

os exercícios não atingirão o propósito de contribuir para a produção de sentidos do relato.

Trabalhar com os elementos pertencentes ao estilo, especialmente os lingüístico-

discursivos, significa, portanto, selecionar aqueles elementos que são constitutivos e,

principalmente, significativos do próprio gênero, levando em conta, para isso, o nível da

criança e da sala. O percurso metodológico caminha do gênero, do seu conhecimento e do seu

contexto de produção, para a posterior seleção do ponto gramatical que seja significativo para

seu processo de recepção. No ensino tradicional ocorre justamente o contrário, primeiro o

professor define o conteúdo gramatical, por exemplo, o tempo verbal, depois escolhe um

gênero para trabalhá-lo, ignorando os aspectos estilísticos do próprio gênero e as suas

condições de produção.

É importante ressaltarmos que essas três dimensões constitutivas do gênero (o tema, a

estrutura composicional e o estilo) devem ser pensadas, conforme já dissemos, concomitante

ao extralinguístico, ou seja, em relação aos parâmetros do contexto social envolvidos na

produção e recepção do enunciado. Afirmam Bakhtin/Volochinov (1992, p.113): “a situação

social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim

dizer (...) a estrutura da enunciação”, isto é, do próprio gênero textual.

Se levarmos em consideração que o enunciado concreto é produto da interação entre

pelo menos dois indivíduos, pois “mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser

substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor”

(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1992, p.112) , os parceiros da interação – locutor e interlocutor

são partes constitutivas do enunciado. Para Rojo (2005, p.197) “São as relações sociais,

institucionais e interpessoais dessa parceria, vistas a partir do foco da apreciação valorativa do

locutor, que determinam muitos aspectos temáticos, composicionais e estilísticos do texto ou

discurso.”

21

Resumidamente, a partir dos conceitos explanados nessa seção, Rojo (2005, p.199)

expõe a ordem de estudo para aqueles que desejam estudar os gêneros discursivos:

(...) aqueles que adotam a perspectiva dos gêneros do discurso partirão sempre de uma análise em detalhe dos aspectos sócio-históricos da situação enunciativa, privilegiando, sobretudo, a vontade enunciativa do locutor – isso é, sua finalidade, mas também e principalmente sua apreciação valorativa sobre seu(s) interlocutor(es) e tema(s) discursivo -, e, a partir dessa análise, buscarão as marcas lingüísticas (formas do texto/enunciado e da língua- composição e estilo) que refletem, no enunciado/texto, esses aspectos da situação.

Sendo assim, além das características típicas dos gêneros que precisamos levar em

conta para elaborar perguntas de leitura como o tema, a estrutura composicional (que

atualmente também inclui o texto não verbal) e as marcas linguísticas, há as chamadas

características discursivas, que não são tão visíveis no texto e referem-se às condições de

produção e de circulação do gênero na sociedade. Dessa forma, a apropriação de um gênero

pela criança exige que o professor desenvolva uma série de atividades de leitura e de escrita

para que ela se aproprie: (1) do contexto de produção do gênero; (2) de sua estrutura

composicional: (3) do seu estilo.

Lopes-Rossi (2002) ilustra algumas perguntas de leitura que o professor pode usar

para trabalhar o contexto de produção, pensando na aula de leitura, como: -Quem escreve em

geral esse tipo de gênero? -Com que propósito? -Onde normalmente encontramos esse gênero?

-Como o redator obtém as informações? -Quem escreveu esse texto que estou lendo? -Quem

lê esse gênero? -Por que o faz? -Onde o encontra? -Que tipo de resposta pode dar ao texto?

- Que influência pode sofrer devido a essa leitura? - Em que condições esse gênero pode ser

produzido e pode circular na nossa sociedade?

Para a autora, esse nível de conhecimento do gênero é que vai permitir a compreensão,

no âmbito da leitura, da escolha vocabular adequada, do uso de determinados recursos

linguísticos e não de outros, da seleção de informações a ser usada no texto, da determinação

do estilo. Na realidade, reforça Lopes Rossi (2002), que essas novas bases epistemológicas

permitem-nos uma releitura dos modelos teóricos interacionistas (cf. KLEIMAN, 1993;

SOLÉ, 1998) e discursivos (cf. ORLANDI, 1988, POSSENTI, 1999) e uma adaptação de

ambos.

Além de pensarmos nesses aspectos, outro fator preocupante do professor diz respeito

aos gêneros a serem selecionados para a aula de leitura (ou para projetos de leitura e escrita).

Nesse caso, devem ser observados: (a) o nível da sala e de desenvolvimento real das crianças;

(b) o contexto da escola; (c) o currículo das séries iniciais; (d) a diversidade de textos e de

esferas (não adianta diversificar apenas dentro da esfera da literatura, mas trazer outras); (e)

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os objetivos a serem alcançados em cada série. Além dos PCN, Dolz e Schneuwly (2004)

estabelecem quatro domínios e seus respectivos gêneros, já podendo ser trabalhados de 1ª a

4ª séries:

1. domínio do narrar: conto maravilhoso, conto de fadas, fábula, lenda, narrativa de enigma, narrativa de aventura, adivinha, piada, etc;

2. domínio do relatar: relato de experiência; relato de viagem; diário íntimo; diário compartilhado; anedota ou caso; autobiografia; adivinha; notícia; reportagem, etc;

3. domínio do argumentar: carta do leitor; carta de reclamação; debate regrado; resenha; comentário, etc.;

4. domínio do expor: texto expositivo (em livro didático); seminário; verbete; entrevista com especialista; tomada de notas; resumo; relatório de experiência, etc.

5. domínio do prescrever: instruções de montagem; receita; regulamento; regras de jogo; instruções de uso; etc.

É preciso reforçarmos que a leitura dos gêneros textuais nem sempre pressupõe a

produção escrita visando atividades de autoria. As aulas de leitura do gênero textual, neste

caso, podem apenas objetivar a formação do leitor crítico e em outros momentos o professor

pode contemplar também a produção textual.

4. ORGANIZANDO A AULA DE LEITURA CRÍTICA A PARTIR DOS GÊNEROS

TEXTUAIS

Já expusemos alguns pressupostos básicos para o planejamento de perguntas de leitura

que podem ser utilizadas tanto no interior de projetos como fora deles. Antes de passarmos

adiante, voltaremos a alguns outros aspectos teóricos, já bastante debatidos, mas, pela nossa

experiência na formação de professores em exercício, ainda muito pouco presentes na prática

da sala de aula em séries iniciais. Ressaltamos que nesse texto não objetivamos comentar

aspectos inerentes a qualquer tipo de leitura, como a leitura prazer, a leitura busca de

informações, mas à leitura crítica.

Inicialmente, pelo que já explanamos, precisamos como professores formadores

entender que tanto o processo da leitura quanto da escrita precisam ser ensinados. Não se

aprende a ler bem, com proficiência crítica apenas lendo, sem nenhum tipo de mediação. A

ideia de quanto mais se lê, melhor leitor se é, na realidade, não passa de um grande e perigoso

equívoco. Equívoco esse que, muitas vezes, transforma-se, nas escolas, em “campeonatos” no

qual quem lê mais, lê melhor.

Ora, o pensamento crítico é uma função mental superior (cf. VYGOTSKY, 1984). Isso

quer dizer que para a criança alcançar esse processo, ela necessitará de mediação

intencionalmente planejada para um bom ensino (mediação professor x criança; ferramenta x

23

criança; material didático apropriado x criança; criança x criança; família x criança).

Mediação essa que leva tempo para se processar, o que pressupõe que quantidade não é

sinônimo necessariamente de qualidade. Entendendo que essa função, em nossa sociedade, é

delegada à escola, o papel do professor para a apropriação do pensamento crítico é, então,

fundamental.

Na visão interacionista da linguagem, a leitura é entendida como atividade de

(co)produção de sentidos. Isso quer dizer que o leitor, pensando na criança, buscará

inicialmente em seu repertório sociocultural, ou no seu conhecimento prévio, informações

para complementar e compreender o que está sendo lido. Depois disso, as lacunas se

completarão no confronto com o próprio texto, com o professor e com os colegas, num

processo considerado por Dell’Isola (1996) ad infinitum:

O texto é enunciação projetada pelo autor, continuada ad infinitum e perpetuada pelo leitor, um exercendo influência sobre o outro [...] Através do processo de interação sujeito/linguagem gerado pela leitura, o leitor será co-produtor do texto, completando-o com sua bagagem histórico-cultural. (1996, p.73)

Em função desse processo de (co)produção no qual elementos textuais, contextuais e

pragmáticos são importantes, o professor antes de iniciar a leitura propriamente dita do gênero

textual inicia o trabalho com a fase da pré-leitura, que consiste em uma série de atividades

incentivadas e acionadas, no intuito de acionar os esquemas mentais que a criança tem sobre o

que será lido (LEFFA, 1996, p.36).

Taglieber & Pereira (1997) orientam que o trabalho com a pré-leitura é importante

para otimizar e melhorar o trabalho de compreensão do texto. Esse trabalho pode ser realizado

por meio de várias estratégias, tais como a utilização de: (a) figuras ou slides relacionadas ao

texto; (b) perguntas e respostas; (c) questionamento recíproco; (d) autoquestionamento. No

entanto, é fundamental que ao usar quaisquer dessas estratégias o objetivo seja que os alunos

façam previsões, lancem hipóteses e tragam seu conhecimento de mundo sem recorrer ao

texto, não tendo, portanto, a função de realizar a etapa da compreensão (SOLÉ, 1998).

A título de exemplo, vejamos uma possibilidade de elaboração de questões elaboradas

para essa fase, formuladas por estagiárias do curso de Letras, em um curso de formação de

professores, para aplicação de uma aula de leitura envolvendo o gênero trailler de filme

infantil, em um 2º ano (o professor escolheria, no caso, a atividade/estratégia de pré-leitura

que melhor lhe convém). As sugestões, a partir das atividades de pré-leitura foram:

24

FASE DA PRÉ-LEITURA

1. Utilização de figuras ou slides

2. Utilização de perguntas e respostas -Vocês gostam de assistir filmes? - Quais foram os últimos filmes a que vocês assistiram? - Quais vocês mais gostaram?

Realizada a etapa da pré-leitura, o professor passa para o gênero a ser lido, de forma

que as crianças realizem uma leitura silenciosa, no caso de gêneros multimodais como é o

caso de trailler de filme infantil, as crianças assistem ao vídeo pelo menos duas vezes, para

depois o professor entregar/trabalhar as perguntas escritas de compreensão e interpretação

sobre o texto (o que também pode ser feito oralmente, no caso de crianças ainda não

alfabetizadas).

Na fase da leitura propriamente dita, o trabalho de planejamento das perguntas de

leitura, pensado de forma um pouco mais didática, respeita algumas fases. Menegassi (1995)

concebe a leitura como um processo composto por quatro etapas: decodificação, compreensão,

interpretação e retenção e orienta um trabalho de elaboração de perguntas que siga essa ordem

de processamento.

A criança, em uma primeira série, ainda em fase de alfabetização, está na fase de

transcrição fonológica, devendo chegar à fase de decodificação. A decodificação significa

que a criança está apta a ler textos, porém não necessariamente a compreendê-los, está

alfabetizada, mas, às vezes, ainda não letrada em uma determinada prática de linguagem. A

compreensão exige a mediação do professor a partir da elaboração de perguntas adequadas a

cada nível de ensino.

Enquanto a criança não está plenamente alfabetizada e não consegue decodificar ou

recontar um texto, os exercícios de leitura oral podem enfocar alguns dos elementos do

contexto de produção (como: que texto é esse? onde podemos encontrá-lo? para que ele serve?

quem normalmente escreve? para quem?). Em um segundo momento, o professor pode

25

iniciar os exercícios referentes á fase de compreensão dos textos, respeitando-se a natureza

do gênero textual que estará trabalhando.

Compreender significa ter a capacidade de confrontar e entender as informações do

texto somadas às informações trazidas pelo leitor para a produção de uma nova informação.

Nesse momento, pensando em crianças na fase de alfabetização e primeiras séries, as

atividades de paráfrases, resumos orais e escritos, “histórias embaralhadas”, dentre outras, são

interessantes, desde que devidamente mediadas. Essa fase envolve então perguntas/atividades

que buscam diretamente informações no texto (as conhecidas perguntas de copiação), mas vai,

além disso. Orientamos os professores, para que nesse momento também insiram as questões

que denominaremos de gênero, que são aquelas que envolvem a estrutura composicional, o

estilo e o tema do gênero, além das questões de inferenciação. Por isso mesmo, essa é uma

fase muito rica que, se devidamente elaborada no sentido de se respeitar uma ordem correta

das questões, pode ajudar tanto o professor como o aluno a perceberem que a produção de

sentidos é decorrente da junção de elementos textuais, mas também contextuais.

Em uma terceira fase, inicia-se o processo de interpretação. Nesse momento a criança

já passou pela compreensão do texto e, de posse dessas novas informações trazidas pelo texto

ela as avalia, reflete sobre elas e as julga. Essa fase envolve dois tipos de perguntas: a

primeira mais centrada na perspectiva do leitor e a segunda na interação leitor e texto. A

perspectiva de leitura focada no leitor, defendida por estudiosos da psicologia cognitivista

(GOODMAN, 1987; SMITH, 1999) reforça que ler é atribuir significado ao texto. Menegassi

e Ângelo (2005, p.27) ressaltam que nessa perspectiva o leitor levanta hipóteses, faz

inferências, confirma hipótese, emprega estratégias de leitura como seleção, predição,

inferência, confirmação, autocorreção e verificação. Nesse momento, as perguntas levam o

leitor a refletir sobre o tema a partir de suas experiências de vida. Os autores ilustram alguns

tipos de perguntas focadas no leitor: “A partir da leitura do texto a que conclusão você

chegaria sobre a moral da história?”; “Explique com poucas palavras o título do texto”; “O

final do texto é pessimista ou otimista? Justifique”.

O segundo tipo de perguntas presente na fase da interpretação é aquele voltado à

interação leitor e texto. Tais perguntas são diferentes das anteriores, porque agora tanto os

conhecimentos do leitor como os advindos do texto e de seu contexto são valorizados, sendo

agora o leitor capaz de avaliar e de julgar a intencionalidade do texto e de fazer apreciações

valorativas sobre ela (KLEIMAN, 1996). Nesse caso, as perguntas partem do texto, mas são

refletidas e/ou avaliadas pelo leitor, ou, ainda, relacionam o tema do texto com a vida do

leitor. Como exemplos dessas perguntas poderíamos ter: “Já aconteceu com você alguma

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situação semelhante como a vivida pelo personagem? Como você agiu?”; “A partir da

advertência que o autor faz no texto como você a aplicaria na sua vida?”

Dessa forma, levando em consideração trabalhos de formação continuada

desenvolvidos com a colaboração de professoras em formação do curso de Letras e

professores em formação contínua, tomando como pressuposto que a leitura é um processo,

permeado por fases e estratégias distintas, temos sugerido em alguns cursos e oficinas uma

ordem metodológica para as perguntas de leitura crítica, introduzindo, agora, a noção de

gêneros textuais. Na realidade, oferecer essa ordem de planejamento das perguntas tem como

intenção auxiliar os professores a perfazerem um caminho metodológico um pouco mais

seguro que o daquele baseado apenas no conhecimento empírico/espontâneo, conforme ilustra

o quadro abaixo:

FASE 1 - PRÉ LEITURA (Preparação para o encontro com o texto) 1º) Questões de pré-leitura para acionar o conhecimento prévio das crianças (por meio de atividades como utilização de figuras/slides, perguntas e respostas, questionamento recíproco, etc.) FASE 2- LEITURA (Encontro com o texto) 2º) Questões iniciais de contexto de produção : envolvem alguns dos aspectos do contexto de produção sobre o gênero no geral (por exemplo, o gênero carta do leitor, o gênero fábula , etc.) e não sobre o texto em especifico que será lido (pensando no público-alvo crianças de séries iniciais do ensino fundamental), como: que texto é esse? onde podemos encontrá-lo? para que ele serve? para quem ele é normalmente feito/escrito? Etc. 3º) Questões de compreensão e específicas do gênero (texto específico) escolhido para a aula: envolvem o reconhecimento das principais informações do texto, de seu tema, de sua organização composicional, de seus elementos lingüístico e discursivos importantes para a caracterização do gênero. 4º) Questões de interpretação: envolvem o julgamento, a reflexão e a avaliação do leitor sobre o que foi lido.

Vamos ilustrar essa sequência de perguntas a partir de um trabalho desenvolvido por

professores em formação da Universidade Estadual de Maringá, em curso de capacitação de

professores em exercício, de 1ª a 4ª séries, no ano de 2008. O exemplo foi elaborado por duas

professoras do 3º ano, após realizarem sessões de estudo sobre os gêneros textuais e oficinas

de leitura. O gênero escolhido pelas professoras para o trabalho foi o gênero multimodal capa

de revista infantil (Revista Mundo Estranho, edição 24, 2008). Vejamos o texto e as

atividades propostas pelas professoras. Metodologicamente elas definiram o seguinte

planejamento e sequenciação das perguntas para o trabalho em sala de aula:

Aula de leitura- 3º. ano

a) Fase da pré-leitura

1. Diga o nome de três revistas que você conhece. 2. Qual é a sua revista favorita? Por quê? 3. Para que servem as revistas?

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b) Entregar o texto para as crianças. c) Fase da leitura. d) Solicitar que as crianças leiam sozinhas a capa abaixo inicialmente2.

4º) Entregar as perguntas de leitura na seguinte ordem: perguntas do contexto geral de produção do gênero, perguntas de compreensão e do gênero em específico, perguntas de interpretação.

Agora que você leu o texto, responda as perguntas.

1. Que tipo de texto é esse? (pergunta do contexto de produção) 2. Em que lugares encontramos esse texto? (pergunta do contexto de produção) 3. Qual a finalidade de lermos esse tipo de texto? (pergunta do contexto de produção) 4. Qual é a matéria principal da capa da revista? (pergunta de compreensão) 5. O que levou você a chegar a esta resposta? Explique.(pergunta de compreensão) 6. Para quem você acha que essa revista foi feita? Observe o conteúdo, o formato das letras, os desenhos.

Justifique. (pergunta de compreensão/ gênero, visando o interlocutor) 7. Marque um x em alguns dos elementos obrigatórios de uma capa de revista (pergunta de

compreensão/gênero acerca da estrutura composicional): ( ) título, manchete, comentário, ilustração. ( ) título, manchete, ilustração, reportagens, editora, endereço, edição ( ) título, manchete, reportagens, editora, endereço e edição. 8. Observe o título da revista. Qual o sentido do termo estranho a partir das reportagens que fazem parte

da capa? (pergunta de compreensão ) 9. Observando a forma como os editores colocam as seguintes manchetes na capa:”Como parar um carro

sem freio?”, “Como adestrar um cachorro?” , “Como estancar um sangramento?”. “Como hipnotizar alguém” o que elas têm em comum na forma de organização? Assinale a alternativa correta (pergunta de compreensão/gênero focando o estilo).

( ) Todas são escritas em forma de frases interrogativas. ( ) Todas são escritas por meio de frases afirmativas. ( )Todas são escritas por meio de frases exclamativas. 10. Observe as ilustrações presentes no canto esquerdo da capa, as quais anunciam outras reportagens. Por que os editores as escolheram? (pergunta de compreensão/gênero) 11. Como podemos chamar/nomear esse texto? (pergunta de compreensão) ( ) capa de jornal ( ) capa de revista infantil ( ) capa de DVD 12. Como você chegou a conclusão da resposta anterior? (pergunta do contexto de produção e de compreensão)

2 A capa foi entregue colorida às crianças, na medida em que a cor também faz parte da significação do texto.

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13. Você leria alguma matéria apresentada na capa? Qual? Explique por quê.(pergunta de interpretação) 14.A partir da leitura das reportagens da capa, que outra matéria você poderia sugerir para a revista? (pergunta de interpretação)

Podemos observar, a partir desse exemplo, para um contexto específico (e não para

qualquer 2º ano) que as professoras ao elegerem o gênero capa de revista para a aula de leitura

conseguem estabelecer uma ordem adequada das perguntas – partindo das questões gerais do

gênero sobre o contexto de produção, passando pelas questões de compreensão/gênero e de

interpretação. Não há a presença nem de perguntas de copiação, nem de perguntas-pretexto

para a gramática, mas todas as perguntas são orientadas para a produção de sentidos da capa,

observando-se o nível de idade das crianças.

Ressaltamos que a nomeação do gênero pela criança só se deu na pergunta 11, porque

no contexto da sala onde foi desenvolvida a atividade, as crianças ainda não estavam

familiarizadas com a noção de gênero (nem tampouco a professora). Sendo assim, quando na

pergunta 1 questionava-se “que texto é esse?” as crianças (e suas professoras) estavam

habituadas a responder “dissertativo”, “jornalístico”, “narrativo”, “literário”, confundindo

tipologia com esferas de circulação, apresentando dificuldades de nomear o gênero. Nesses

casos, e no contexto dessa atividade, a nomeação veio ao final do processo de compreensão, a

partir do momento em que a familiarização com o nome do gênero foi maior, mas não há

necessidade de essa nomeação aparecer apenas no final das perguntas de compreensão.

Obviamente entendemos que a nomeação é importante, pois ajuda a criança a se aproximar

do pensamento científico e a perceber que o uso de um termo como “informativo”,

“narrativo” não dá conta da diversidade de gêneros.

Além disso, é fundamental percebermos que existem na atividade perguntas abertas e

perguntas fechadas. Em relação a esse aspecto, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), ao

explanarem sobre as sequências didáticas, orientam que as perguntas de leitura devem ser de

natureza diversificada, isto é, não só abertas e não só fechadas. Dependendo da sala, do nível

das crianças, as perguntas que introduzem aspectos linguísticos, discursivos ou pragmáticos

difíceis/novos, que ainda não foram internalizados ou que são novos para a grande maioria da

sala, podem aparecer em forma de perguntas lacunadas ou fechadas, pois esses tipos de

perguntas orientam o pensamento da criança. É o caso da pergunta 7, acerca dos elementos da

estrutura composicional, já que pela idade das crianças e pelo contexto da escola elas ainda

não teriam nenhum conhecimento prévio para responderem sozinhas a questão.

Da mesma forma, a questão 9 sobre o estilo que reforça as tipologias frasais (sem ser

pretexto, pois essas tipologias fazem parte da estrutura das manchetes). Depois,

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gradativamente, na medida em que as crianças forem adquirindo conhecimentos prévios sobre

esses elementos, o professor vai substituindo por perguntas abertas. Assim, as perguntas

fechadas são bastante interessantes para orientar processos iniciais de inferenciação, aspectos

novos em relação ao gênero ou conteúdos que as crianças não possuem conhecimento anterior.

Esses tipos de perguntas serviriam como um andaime para que a criança iniciasse o processo

de reconhecimento das chamadas ideias implícitas, o que, repetimos, só é possível mediante o

trabalho de mediação intencionalmente organizado para a aula de leitura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho com a leitura de gêneros textuais nas séries iniciais ainda é carente de

mediações formativas, especialmente pelos estudiosos do campo da linguagem, cujo foco de

atenção e de intervenções recai mais na segunda etapa do ensino fundamental e no ensino

médio. Por isso entendemos que há necessidade de oferecer ao professor em exercício (e em

formação) a vivência e a análise de processos de mediações formativas que lhe possibilitem

tanto o contato com conteúdos científicos relevantes para sua prática, como o olhar para a

transposição didática dessas teorias. Foi nesse intuito que este texto se desenvolveu.

Como se viu, é no contato com os diferentes gêneros textuais que a criança se insere

nas mais variadas práticas sociais, possibilitando seu efetivo letramento; de outro lado, esse

contato, quando não subsidiado por bases epistemológicas seguras, corre o risco de insistir na

pedagogia tradicional do ensino de língua portuguesa, na qual o texto na sala de aula, longe de

alcançar seu caráter discursivo, ainda permanece como pretexto de práticas estéreis para a

formação de um leitor crítico.

Entendemos, tal como Adorno (1996), no caso específico do ensino e aprendizagem da

leitura em séries iniciais, especialmente na rede pública, que embora tenha prevalecido nos

currículos de formação de professores (e também nas escolas) uma pseudoformação, isto é, a

ausência de uma pedagogia sistematizada e intencionalmente planejada para o

desenvolvimento de conteúdos específicos de linguagem e sua correta transposição para a sala

de aula, o cenário tem se modificado, ainda que lentamente, por incessantes trabalhos de

formação continuada, os quais se não atingem todos os professores, se não mudam de forma

significativa o resultado de provas e exames nacionais, conseguem provocar um novo olhar

para uma prática que não estava mais dando conta da formação leitora dos alunos.

Para Vygotsky (1984), educar significa intervir na capacidade de ser e de agir das

pessoas por meio dos mediadores culturais, isto é, pelos instrumentos simbólicos e materiais

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que possibilitarão as bases do desenvolvimento e da aprendizagem seja dos professores, seja

de seus alunos. Exatamente por isso, defendemos, para uma efetiva formação dos professores

que atuam em séries iniciais, a necessidade da integração entre os aportes teóricos de teorias

da linguagem (ou das didáticas específicas do campo da linguagem), notadamente presentes

nos cursos de Letras para os cursos de Pedagogia (assim como o contrário também é

necessário, na medida em que o curso de Pedagogia oferece bases epistemológicas essenciais

para o futuro professor de Letras). É nesse diálogo que teorias discursivas concernentes ao

ensino e aprendizagem da leitura poderão integrar os cursos de formação inicial e continuada,

não apenas no que tange aos seus aspectos metodológicos, mas também conceituais e

procedimentais, especialmente no que diz respeito à transposição dessas teorias para a prática

docente dos pedagogos.

No que tange à aula de leitura, experiências formativas por nós vivenciadas têm

demonstrado que saber sequenciar uma ordem adequada das perguntas de leitura – perguntas

gerais sobre o contexto de produção do gênero, perguntas de compreensão/de gênero,

específicas do texto em questão, perguntas de interpretação – auxiliam o professor a organizar

a aula de leitura, bem como auxiliam as crianças a construírem andaimes necessários para a

correta produção de sentidos do texto. Todavia, essa sequenciação só consegue seus efeitos na

medida em antes o professor compreendeu suas teorias de base.

Abrindo a discussão para o campo da formação, é notória a importância do já debatido

diálogo entre a teoria e prática, da parceria entre professores formadores, professores em

formação e em exercício, para a ressignificação das práticas de leitura presentes na sala de

aula. É, portanto, nessa grande arena de vozes (emprestando a expressão bakhtiniana) que

poderemos instaurar no professor em exercício (e em formação) uma prática orientada

dialeticamente por bases epistemológicas para que, por fim, ele promova na criança não

apenas o desejo de ler, mas que lhe ofereça instrumentos reais para que seus olhos consigam

ler muito além das palavras contidas no texto.

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