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Revista Tex A edição traz fotografias de Pierr de pesquisadores, mestres de c destacam as significativas implica de jogo, dança, música e oportun A capoei africana e A obra fo Beribazau mestre C Formação do Brasil A Revista: Prefácio Os desafios contemporâne As metamorfoses da capo A repressão à capoeira O Capoeira A Guarda Negra: a capoeir Capoeira é defesa, ataque A performance ritual da ro A capoeira e seus aspecto Capoeira: metáforas em m A música na capoeira ango A mulher na capoeira Entrevista com a Senhora As relações entre a capoei Benefícios educacionais, f Capoeira e inclusão social A internacionalização da c Carybé Pierre Verger xtos do Brasil - Edição nº 14 – Capoeir re Verger e desenhos do Carybé, que ilustram capoeira e autoridades ligadas à cultura ações da capoeira para a cultura e a vida soc nidade para inserção social. ira é uma arte que está fortemente relaci e que marcou profundamente a cultura brasi oi apresentada pelo mestre Vila Isabel, do N u de Brasília e dois mestres brasileiros de Cobra Mansa e Mestra Janja no lançamento o de Jornalistas (Cefojor) que faz parte da pr em Angola (Novembro de 2008). eos da capoeira oeira: contribuição para uma história da capo ra no palco da política e, ginga de corpo e malandragem oda de capoeira angola os mítico-religiosos movimento ola da Bahia Rosângela C. Araújo (Mestra Janja) ira e a educação física no decorrer do século físicos e psicológicos da capoeira capoeira ra m entrevistas e artigos brasileira, na qual se cial, como modalidade ionada com a história ileira. Núcleo de Capoeiragem e capoeira de Angola, do livro, no Centro de rogramação da semana oeira o XX

Revista Brasil nº 14

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Capoeira , tema da revista brasil numero 14 , diversos artigos. divirta-se e compartilhe.

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Revista Textos do Br

A edição traz fotografias de Pierre Verger e desenhos do Carybé, que ilustram entrevistas e artigos

de pesquisadores, mestres de capoeira e autoridades ligadas à cultura brasileira, na qual se

destacam as significativas implicações da capoeira para a cultura e a vida social, como modalidade

de jogo, dança, música e oportunidade para inserção social.

A capoeira é

africana e que marcou profundamente a

A obra foi apresentada pelo mestre Vila Isabel, do Núcleo de Capoeiragem

Beribazau de Brasília e dois mestres brasileiros de capoeira de Angola,

mestre Cobra Mansa e Mestra Janja no lançamento do livro, no Centro de

Formação de Jornali

do Brasil em Angola (Novembro de 2008).

A Revista:

• Prefácio

• Os desafios contemporâneos da capoeira

• As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

• A repressão à capoeira

• O Capoeira

• A Guarda Negra: a capoeira no palco da política

• Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

• A performance ritual da roda de capoeira angola

• A capoeira e seus aspectos mítico

• Capoeira: metáforas em movimento

• A música na capoeira angola da Bahia

• A mulher na capoeira

• Entrevista com a Senhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja)

• As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

• Benefícios educacionais, físicos e psicológicos da capoeira

• Capoeira e inclusão social

• A internacionalização da capoeira

• Carybé

• Pierre Verger

Revista Textos do Brasil - Edição nº 14 – Capoeira

A edição traz fotografias de Pierre Verger e desenhos do Carybé, que ilustram entrevistas e artigos

de pesquisadores, mestres de capoeira e autoridades ligadas à cultura brasileira, na qual se

as significativas implicações da capoeira para a cultura e a vida social, como modalidade

de jogo, dança, música e oportunidade para inserção social.

A capoeira é uma arte que está fortemente relacionada com a história

africana e que marcou profundamente a cultura brasileira.

A obra foi apresentada pelo mestre Vila Isabel, do Núcleo de Capoeiragem

Beribazau de Brasília e dois mestres brasileiros de capoeira de Angola,

mestre Cobra Mansa e Mestra Janja no lançamento do livro, no Centro de

Formação de Jornalistas (Cefojor) que faz parte da programaçã

do Brasil em Angola (Novembro de 2008).

Os desafios contemporâneos da capoeira

As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

A Guarda Negra: a capoeira no palco da política

Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

A performance ritual da roda de capoeira angola

A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos

em movimento

angola da Bahia

Entrevista com a Senhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja)

As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

Benefícios educacionais, físicos e psicológicos da capoeira

A internacionalização da capoeira

Capoeira

A edição traz fotografias de Pierre Verger e desenhos do Carybé, que ilustram entrevistas e artigos

de pesquisadores, mestres de capoeira e autoridades ligadas à cultura brasileira, na qual se

as significativas implicações da capoeira para a cultura e a vida social, como modalidade

que está fortemente relacionada com a história

cultura brasileira.

A obra foi apresentada pelo mestre Vila Isabel, do Núcleo de Capoeiragem

Beribazau de Brasília e dois mestres brasileiros de capoeira de Angola,

mestre Cobra Mansa e Mestra Janja no lançamento do livro, no Centro de

stas (Cefojor) que faz parte da programação da semana

As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira

As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

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Comentários:

Aproveitamos o excelente material disponibilizado pelo Ministério das Relações Exteriores, para

presentear os amigos e leitores do Portal Capoeira com uma compilação especial para o Natal da

Revista Textos do Brasil - Edição nº 14 - Capoeira. Trata-se de uma composição reunindo todos os

textos da Revista em um único arquivo organizado, disponível para download em nosso site.

Fica ainda uma enorme satisfação ao ler a revista e encontrar em suas belíssimas páginas a

presença de grandes amigos e parceiros que nos ajudam no dia a dia a construir o nosso Portal e

contribuem para a disseminação com coerência e qualidade da nossa capoeiragem.

Saudações Capoeirísticas

Luciano Milani

Editor Portal Capoeira

Ministério das Relações Exteriores

Esplanada dos Ministérios Bloco H - Palácio Itamaraty

Anexo II - Sala 11 Brasília, DF - Brasil - 70170-900

Tel: (61) 3411-6713 Fax: (61) 3411-9226

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Page 4: Revista Brasil nº 14

A capoeira é uma das expressões mais características da cultura brasileira. É comum encontrarmos defi nições de que o “jogo da capoeira” consiste numa atividade esportiva, praticada em clubes, academias ou nas ruas, atividade sem regras fi xas, mas que segue um protocolo característico, com música própria, no qual o instrumento musical que comanda o desenvolvimento do jogo e da roda é o berim-bau. Trata-se, não obstante, de uma defi nição que reduz a prática da capoeira a seus aspectos puramente esportivos, preterindo todas as suas demais dimensões presentes na sociedade brasileira. O intuito desta publicação é justa-mente expor os elementos da capoeira que transcendem a atividade física, abordando as signifi cativas implicações que sua prática engendra em diversas áreas da vida social, razão pela qual pode ser considerada como uma das mais complexas manifestações culturais brasileiras.

Os aspectos mítico-religiosos da capoeira, por exemplo, integram uma dimensão do “sagrado”, marcante no Brasil, permeando as crenças, os modos de vida, os sonhos e as lutas de sua sociedade. Evidentemente, trata-se, como bem defi niu Sérgio Buarque de Holanda, de uma religiosidade intimista e familiar, transigente a diversas contribuições espirituais e paradigmática da cordialidade que esse autor atribuiu ao brasileiro. Desse modo, o componente de magia que reveste o universo da capoeira, embora proveniente do imaginário popular, expressa o vasto campo de signifi -cados dessa manifestação afro-brasileira e de suas ligações com o sagrado, assim como muitas das manifestações e tradições da cultura popular no Brasil.

Também o léxico da capoeira revela um pouco da re-lação idiossincrática do brasileiro com o meio ambiente. Com efeito, os nomes de movimentos e golpes da ca-poeira remetem, freqüentemente, a elementos da natu-reza, denotando a forte relação dessa prática com a ob-servação do meio ambiente. Outro exemplo é a própria etimologia do termo “capoeira”, que, de origem indígena, signifi ca “mata extinta”.

Ademais dos aspectos sociais, pela história da capoei-ra revelam-se também determinados aspectos signifi cati-vos da história do Brasil. As mutações ocorridas no jogo da capoeira refl etem muitas das transformações ocorridas no país nos últimos séculos. Nesse sentido, a abordagem histórica não poderia deixar de fora comentários sobre a repressão da capoeira, verifi cada sobretudo ao longo do século XIX e início do XX. A despeito das iniciativas para re-

primi-la, a capoeira superou todos os óbices que lhe foram impostos. Talvez isso tenha ocorrido justamente devido ao fato de se tratar de uma manifestação cultural ampla e profunda da índole brasileira, não sendo, por conseguinte, elemento de fácil repressão.

Produto da cultura popular brasileira, a capoeira era vista com certas reservas pela elite, que a associava à ba-dernagem, à vadiagem e à ausência dos bons costumes. Nesse sentido, é interessante notar que a capoeira é atual-mente utilizada para resolver mazelas sociais das quais no passado era tida como causadora. Com efeito, a capoeira tem se mostrado excelente instrumento de inclusão social. Isso se deve, em boa medida, ao fato de que as atitudes dos capoeiristas na roda privilegiam a relação equilibrada entre os opostos, entre os diversos, num constante exercício de humildade e paciência.

Em 2007, o Ministério das Relações Exteriores teve oportunidade de patrocinar a realização de mais de 50 eventos de capoeira em todos os continentes. Essa expan-são da capoeira para outros países tem provocado um inte-ressante processo de fortalecimento e de dinamização de sua prática. Existem, atualmente, diversos mestres estran-geiros que jogam capoeira tão bem quanto os brasileiros. Desse modo, talvez não seja exagero dizer que, embora a capoeira seja uma manifestação cultural originada no Bra-sil, e carregue, portanto, símbolos inquestionáveis de brasi-lidade, sua prática já é tão comum em âmbito internacional que se constitui em mais uma contribuição brasileira para o patrimônio cultural da humanidade. Prova disso são algu-mas das ilustrações dessa publicação – fotografi as de Pier-re Verger e desenhos de Carybé, ambos estrangeiros, mas que, por meio de sua arte, revelam ter apreendido adequa-damente as peculiaridades da capoeira.

Como anexo da presente edição da coleção Textos do Brasil, há um trecho do documentário “Mestre Bimba: a capoeira iluminada”, gentilmente cedido pela Lumen Pro-duções. Inspirado no livro “Mestre Bimba: Corpo de Man-dinga”, de Muniz Sodré, o fi lme apresenta depoimentos de antigos alunos e imagens, inéditas no cinema, da trajetória de vida de uma das principais referências do universo da capoeira. Desse modo, ao leitor que ainda não teve oportu-nidade de presenciar uma roda de capoeira, é apresentada uma amostra de seus movimentos, música e ritual. Quiçá a publicação e o documentário o incitem a tomar parte no fascinante mundo da capoeira...

COORDENAÇÃO DE DIVULGAÇÃO

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Os Desafi os Contemporâneos da Capoeira

A CAPOEIRA DEU A “VOLTA DO MUNDO”, LITERALMENTE. A PRÁTICA DE ESCRAVOS AFRICANOS E

CRIOULOS, DOCUMENTADA DESDE O FINAL DO PERÍODO COLONIAL E DURANTE O IMPÉRIO, VIROU

UMA BRINCADEIRA MASCULINA DAS CAMADAS POPULARES NA REPÚBLICA VELHA. TRANSFORMOU-

SE EM ESPORTE A PARTIR DA DÉCADA DE 1930 E, COMO TAL, PASSOU A SER PRATICADA POR

JOVENS DE AMBOS OS SEXOS E DE TODAS AS CLASSES SOCIAIS NAS DÉCADAS DE 1960 E 1970. A

PARTIR DA DÉCADA DE 1980, COMEÇOU A EXPANDIR-SE PELO MUNDO, SENDO PRATICADA HOJE

POR CENTENAS DE MILHARES DE PESSOAS NOS CINCO CONTINENTES.

Luiz Renato Vieira e Matthias Röhrig Assunção

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Os Desafi os Contemporâneos da Capoeira

A percepção da capoeira também mudou radicalmen-te. De ofensa contra a ordem pública, passível de correição imediata com açoite, e de costume bárbaro de negro, obs-táculo ao progresso que precisava ser erradicado, passou a ser vista como folclore exótico, digno de preservação e matriz de uma luta genuinamente brasileira. Mais recente-mente, cresceu a enfâse sobre a dimensão cultural da arte, que está na iminência de ser declarada patrimônio imate-rial do Brasil e da humanidade. A globalização da capoei-ra transformou-a numa expressão brasileira daquilo que o sociólogo Renato Ortiz, muito acertadamente, denominou cultura internacional-popular.

Desde os anos 1980, a capoeira tornou-se também campo de refl exão acadêmica, em que se entrecruzam pesquisas de mestrado e doutorado realizadas, no Brasil e no exterior, em áreas como antropologia, história, socio-logia, ciências da educação e educação física. Os próprios grupos de praticantes espalhados pelo Brasil e pelo mundo discutem os estudos sobre capoeira em círculos de debate ou nos eventos que organizam. Além da esfera estritamen-te acadêmica e do universo próprio da arte, a capoeira está cada vez mais presente em muitas outras esferas sociais, desde os palcos de teatro e salas de cinema aos anúncios de publicidade.

A geração de capoeiristas que se formou a partir dos anos 1980 está, de fato, participando de uma transição fundamental na história dessa arte. Se os atuais pratican-tes se acostumaram a ouvir de seus mestres e professores histórias sobre perseguição, rodas interrompidas pela polí-cia e correrias nas praças e festas de largo, a realidade que passaram a viver é, regra geral, completamente diferente. A capoeira tem-se inserido nas instituições e no contexto político mais amplo por muitas vias, alterando dramatica-mente sua prática e seu signifi cado. Este cenário acelerado de mudança traz novos desafi os tanto para os capoeiristas quanto para o Estado e os produtores culturais.

A FORMAÇÃO DO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO DA CAPOEIRA. Voltemos um pouco no tempo, para explicar melhor a emergência da capoeira contemporânea. No início dos anos 1970, os capoeiristas ainda tinham algo de exó-tico. A própria capoeira era vista como uma manifestação cultural que buscava se afi rmar como esporte, cujo lugar “natural” seriam as comunidades mais pobres e periféricas, de população predominantemente afrodescendente. Em instituições mais elitizadas, a capoeira ainda causava estra-nheza e, de fato, muitas delas fechavam suas portas para essa prática. Era necessário, portanto, um grande esforço de “organização”, dando continuidade à trajetória iniciada pelos capoeiras da primeira metade do século XX.

Assim, as décadas de 70 e 80 se caracterizam como a época dos grandes projetos relacionados à capoeira, a maioria deles com algum grau de pioneirismo (embora houvesse muitas e importantes iniciativas isoladas anterio-

Além da esfera estritamente acadêmica e do universo próprio da arte, a capoeira está cada vez mais presente em muitas outras esferas sociais, desde os palcos de teatro e salas de cinema aos anúncios de publicidade.

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res): capoeira na escola, na universidade, para portadores de necessidades especiais, nos cursos de licenciatura em educação física, em institutos de reeducação de menores infratores, como terapia, como “ginástica brasileira” e como objeto de dissertações e teses acadêmicas. Há na literatura sobre a capoeira diversos registros de trabalhos relevantes, em todas essas áreas e em algumas outras e não é nossa proposta aqui enumerá-los. O importante é destacar esse momento de mudança na história contemporânea da ca-poeira. Foi nas décadas de 70 e 80, também, que a capoeira conquistou seu lugar no cenário esportivo nacional, ainda sob a égide da Confederação Brasileira de Pugilismo, e ob-teve reconhecimento de vários órgãos governamentais li-gados ao esporte e à educação. No início, as competições de capoeira assemelhavam-se às de outras modalidades de luta, não considerando toda a riqueza da arte, reduzindo-a a um simples esporte de combate. Aos poucos, foi-se che-gando a formas mais elaboradas e completas de avaliação dos capoeiristas e as competições fi caram muito pareci-das com as próprias rodas de capoeira. Convém lembrar o papel das competições de capoeira dos Jogos Escolares Brasileiros (JEBs) nesse processo, como laboratório para a construção de uma visão mais global da capoeira.

É importante destacar que os anos 1980 foram também a década da expansão nacional dos grandes grupos de ca-poeira.1 Firmou-se esse modelo na organização da nossa arte, apesar dos esforços de alguns pela adoção do modelo tradicional das federações. Esse, sem dúvida, foi o passo que

mais se destacou na história contemporânea da capoeira: a consolidação da lógica da organização na forma de grupos, em que o professor ou mestre que se forma e organiza sua escola procura vincular-se a uma instituição já reconhecida no mercado. Pode-se, inclusive, discutir em que medida essa forma de organização contribui para preservar a diversidade e a riqueza cultural da capoeira e para o fortalecimento cole-tivo da arte como forma de resistência cultural.

Outra tendência importante, a partir do início dos anos 1980, foi a revalorização das tradições e dos “velhos mes-tres”, juntamente com o fortalecimento dos grupos de ca-poeira angola, que ganharam muito espaço à medida que a comunidade da capoeira começava a questionar os cami-nhos da desportivização.2 Iniciou-se, assim, uma trajetória de reafricanização da capoeira, principalmente nos centros de prática mais tradicionais, que se refl etiu nas linguagens próprias da capoeira: na musicalidade, na instrumentação musical e até mesmo na abordagem histórica dos pesqui-

(1) Cabe, aqui, um esclarecimento: no universo da capoeira, um grupo representa uma escola fundada por um ou mais mestres e reúne, sob um mesmo nome, os núcleos de ensino constituídos por seus alunos que alcançam a condição de professores ou mestres. Há grupos pequenos, reunindo dois ou três núcleos de ensino de capoeira, e grandes grupos, organizados juridicamente em moldes empresariais e disseminados em todo o mundo. Com certa freqüência, ocorre de o capoeirista já formado se desligar de um grupo e aderir a outro, já na condição de professor, por razões profi ssionais. Essas circunstâncias modifi caram profundamente o signifi cado da relação mestre-aluno no mundo da capoeiragem. Se, até os anos setenta, o nome do mestre era praticamente o sobrenome do capoeirista (p. ex. Mestre João Pequeno de Pastinha), atualmente o praticante se identifi ca pelo grupo do qual faz parte.

(2) É importante observar que durante a década de 70, período marcado pela vigência do regime militar e por intenso espírito de modernização e de desenvolvimento econômico, enfatizou-se a abordagem da capoeira a partir de seus aspectos esportivos e de “arte marcial brasileira”.

Foto: Alexandre Gomes

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sadores, que passaram a acentuar as origens africanas e buscar lutas ancestrais e “irmãs” da capoeira, como a lad-ja, da ilha caribenha Martinica, e o moringue, do Oceano Índico. O nacionalismo simplista, anteriormente tão forte, passou a dar lugar a uma visão mais global da cultura e do processo de formação da capoeira, inserindo-a na história da resistência dos africanos escravizados e de seus descen-dentes mundo afora. Viu-se que a capoeira precisava ser tratada como um esporte, mas que a arte não poderia ser reduzida somente ao seu aspecto desportivo. Essa abor-dagem culturalista, então, foi muito enfatizada a partir dos anos 1980, quando as palavras “resgate” e “bagagem” pas-saram defi nitivamente a fazer parte do vocabulário comum dos capoeiristas. Sintomaticamente, os capoeiristas, que ti-nham passado a utilizar atabaques com tarraxas, mais fun-cionais e fáceis de afi nar, voltaram a preferir os tambores trançados com grossas cordas de sisal. É nessa perspectiva – como cultura, e não como modalidade esportiva – que a

capoeira ganha o mundo nos anos 1990. Passada a fase da afi rmação de sua riqueza no Brasil, a capoeira torna-se um fenômeno cultural de massa em escala mundial.

Passou-se do perfi l aventureiro do capoeirista que ia arriscar a vida no exterior nos anos 1970 para uma visão estratégica, de conquista de mercados. Assim, atualmen-te não há grupo consolidado no Brasil que não tenha os seus representantes sediados no exterior. A capoeira é fa-cilmente vista e reconhecida como tal em qualquer grande cidade do mundo, com poucas exceções. Já é possível ver, com certa facilidade, professores autóctones, formados por brasileiros, ensinando capoeira em seus países. Esse é o desafi o que se coloca para nós, estudiosos e praticantes: compreender a nova inserção da capoeira como fenôme-no incorporado à cultura internacional-popular, em que em alguns momentos se destacam suas raízes brasileiras ou sua inserção no mercado de consumo e, em outros, se va-

Esse, sem dúvida, foi o passo que mais se destacou na história contemporânea da capoeira: a consolidação da lógica da organização na forma de grupos, em que o professor ou mestre que se forma e organiza sua escola procura vincular-se a uma instituição já reconhecida no mercado.

Foto: Lilia Menezes

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loriza sua ancestralidade africana e seu potencial de crítica à cultura ocidental. É fundamental, portanto, entender essa expansão internacional no contexto da dinâmica da cultura globalizada, mas também na sua lógica interna, que refl ete essas contradições.

OS ESTILOS NA CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA. A modernização e a desportivização da capoeira a partir da década de 1930 resultou na formação de dois estilos distin-tos. O primeiro estilo moderno, a capoeira regional, foi criado pelo Mestre Bimba (1900-1974) apoiado por um grupo de alunos. Bimba partiu de uma crítica da antiga “vadiação baia-na”, que não estaria à altura das novas lutas que vinham de-safi ando a capoeira nos ringues de luta livre da época. Bimba selecionou as técnicas que lhe pareciam mais adequadas, eliminou outras que considerava ultrapassadas e integrou alguns golpes novos – geralmente de grande efi cácia – à sua “luta regional baiana”. Mais importante ainda foi o de-

senvolvimento de uma didática, a formalização do ensino na academia – treinos com uniforme – e a imposição de uma disciplina e uma ética desportiva. Mas, apesar de grande su-cesso, principalmente a partir da década de 1960, seu estilo não logrou unanimidade entre os capoeiras baianos.

Outra corrente, liderada a partir da década de 1940 por Mestre Pastinha, se propôs a manter justamente aqueles elementos da antiga capoeira que a regional decidiu des-cartar, como as “chamadas”, o “jogo de dentro” mais lento, a teatralidade na roda, assim como uma série de rituais (co-meçando pelas ladainhas iniciais). Enquanto Bimba desta-cava a inovação, Pastinha e seu grupo enfatizavam o resga-te da tradição. Por essa razão, escolheram a denominação capoeira (de) angola para designar seu estilo, ressaltando, dessa forma, a continuidade em relação às origens africa-nas da arte. Mas, apesar dessa postura tradicionalista – de resto, característica dos angoleiros até hoje – não resta dú-

vida de que representa um estilo novo, que se defi niu não somente a partir da continuidade com a capoeira baiana como se praticava na década de 1930, mas também a par-tir da oposição sistemática ao estilo regional. Ou seja, se, por exemplo, na regional utilizavam-se balões, os angolei-ros condenavam seu uso, mesmo que esses existissem na capoeira baiana “tradicional”. Além do mais, é preciso lem-brar que a capoeira baiana antes da modernização não era homogênea e uniforme, mas que cada mestre ensinava um conjunto específi co de movimentos, ritmos e rituais. Tanto que a capoeira de outros mestres antigos como Waldemar, Cobrinha Verde ou Canjiquinha podia ter características bastante distintas da forma ensinada por Pastinha.

Dessa maneira, nunca houve tradição única e monolí-tica na capoeira baiana antiga, o que, por sua vez, facilitou que posteriormente cada grupo ressaltasse elementos di-versos e mesmo confl itantes da “tradição”. Por outro lado, convém salientar que ambos os estilos – regional e angola

– coincidem na sua ruptura com a malandragem antiga, transferindo a prática da capoeira da rua para uma aca-demia, com treinos regulares, uniformes e regulamentos, expandindo o ensino a grupos maiores de alunos e recru-tando novos segmentos da população brasileira: crianças e jovens da classe média e mulheres.

A expansão da capoeira moderna pelo Brasil a partir desses dois estilos baianos complicou ainda mais a ques-tão. A difusão ocorreu de várias maneiras: (1) por meio de alunos já formados pelos mestres baianos que se fi xaram em outros estados, sendo que a grande maioria migrou para cidades do Sudeste; (2) por iniciativa de alunos de ou-tros estados que só receberam instrução ocasional desses mestres quando iam à Bahia. Nesse caso, o caráter auto-didata da prática encorajava mudanças de estilo, como se pode ver no caso do grupo Senzala do Rio de Janeiro. Além do mais, as capoeiras baianas vão encontrar em várias ci-

Foto: Acervo Luiz Renato Foto: Acervo Luiz Renato

CapoeiraOs Desafi os Contemporâneos da Capoeira

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Os Desafi os Contemporâneos da Capoeira

dades tradições locais de capoeira. A importância dessas formas locais para a formação dos estilos contemporâneos é muito controversa, sobretudo no caso do Rio de Janeiro, onde professores como Sinhozinho já ensinavam um estilo de capoeira sem música antes da chegada dos baianos.

Atraídos pela esperança de melhorar suas condições de vida, muitos baianos migraram para as cidades do Sudeste entre 1950-1980 (depois dessa data, parte desse fl uxo des-tinar-se-á ao exterior). Entre os capoeiristas-migrantes havia mestres, alunos formados e praticantes amadores. Fora do Nordeste, a prática da capoeira virou parte da cultura especí-fi ca dos migrantes, e como tal, incorporou referências nostál-gicas à Bahia que ainda caracteriza a arte até hoje. A situação de exílio criou laços de solidariedade entre capoeiristas de estilos diferentes, a ponto de enfraquecer a oposição regio-nal-angola. Houve muitos casos em que professores e mes-tres de angola e regional ensinavam e criavam grupos juntos, particularmente em São Paulo (Cordão de Ouro etc.). Mas, de maneira geral, o estilo angola, mais dependente de todo um referencial cultural afro-baiano de mais difi cil assimilação pe-los novos grupos de praticantes, não se logrou impor duran-te esses anos. Predominou um estilo de jogo mais próximo da forma ensinada por Bimba, mesmo que fosse sem a sua didática (como o treino das oito seqüências).3 A música dos grupos fora da Bahia tampouco era típica da regional. Em vez dos toques de berimbau ensinados pelo Mestre Bimba, trei-nava e jogava-se sobretudo ao ritmo de São Bento Grande de Angola.4 Por essa razão a geração seguinte dos mestres vivendo fora da Bahia reduziu a ênfase na oposição entre an-gola e regional, freqüentemente argumentando que “a capo-eira é uma só”. Essa postura “ecumênica” tinha e tem várias vantagens. Primeiro, amenizava confl itos entre capoeiristas, em um momento em que ainda era necessário convencer a opinião pública de que sua arte não era “coisa de marginal”. Segundo, ia ao encontro de toda uma corrente nacionalista que tinha como objetivo fazer da capoeira não somente um esporte, mas a luta brasileira, expressão privilegiada da iden-tidade nacional.

Sob os auspícios do regime militar instalado em 1964, criou-se a Federação Paulista de Capoeira, em 1970, e o de-partamento de capoeira da Confederação Brasileira de Pugi-lismo (CBP), em 1972, que reunia as lutas que não possuíam confederações específi cas. Os grupos-membros se compro-metiam a implementar regras estabelecidas pela Federação, que iam da utilização obrigatória do uniforme, da saudação

(3) As “seqüências da capoeira regional”, ou “seqüências de Mestre Bimba” confi guram uma das mais importantes características do método de ensino criado por esse importante mestre baiano. Consistem em séries de movimentos de ataque e defesa, formando lutas simuladas e atuando como uma espécie de inventário dos principais golpes e técnicas da capoeira regional. As seqüências (alguns consideram uma seqüência com oito partes) eram utilizadas para o ensino dos iniciantes e para o treinamento diário dos capoeiristas em estágio mais adiantado.

(4) Além de fornecer a base rítmica para o desempenho da “bateria” da capoeira, o berimbau tem um importante valor simbólico signifi cativo na roda. Os toques do berimbau expressam algumas escolhas do grupo ou do mestre que conduz a roda, determinando a velocidade e outras características do jogo. Assim, além de diversos outros, existem toques “de angola” e “de regional”.

Em outras palavras a transformação da capoeiragem – entendida aqui como o contexto social da capoeira – também impactou o conteúdo da arte. Acreditamos, por isso, que é preciso, além da clássica oposição binária angola–regional, distinguir vários estilos de capoeira, dependendo dos aspectos enfatizados: luta, tradição, cultura, brincadeira ou dança.

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inicial (o “Salve!”, ainda hoje adotado por muitas escolas de capoeira) até ao regulamento minucioso de competições. Se essa evolução facilitou a integração da capoeira em ativida-des escolares e deportivas em âmbito nacional, e, por con-seqüencia, outra onda de expansão pelo Brasil afora, gerou, por outro lado, reações contrárias por parte de capoeiristas comprometidos com o ideal de resistência.

Diversos grupos, alguns dos quais grandes, não somen-te se recusaram a aderir à federação, mas buscaram de-marcar claramente essa linha, estabelecendo, por exemplo, sistemas de graduação e seqüências de cores de cordéis de graduação alternativos. Nesse processo, o resgate das tradições afro-baianas começou a assumir papel importan-te, a ponto de alguns deles aproximarem-se da capoeira angola. Isso coincidiu, é claro, com a revalorização da cultu-ra afro-brasileira pela qual lutava o movimento negro. Esse processo também favoreceu o fortalecimento da capoeira angola, que havia passado por longa fase de declínio marca-do pela extinção de toda uma geração de antigos mestres baianos e que culminou com a morte de Pastinha (1981). A partir da década de 1980, esse estilo passa a formar novos mestres e a conquistar novos adeptos não só no Brasil, mas também no exterior. A partir de então, ocorrem tensões en-tre um estilo angola, cujos grupos invocam uma linhagem direta com um mestre baiano, e estilos que poderiamos denominar de “angolizados”, por incorporar parte das ca-racterísticas estilísticas dos angoleiros, mas sem abandonar outras características suas, consideradas “regional” pelos primeiros. Isso ocorreu a ponto de alguns grupos passarem a reivindicar a condição de angoleiros, qualifi cativo que lhes é negado pelos praticantes do que poderiamos chamar o “núcleo duro” da angola.

A situação torna-se ainda mais confusa quando nos referimos ao qualifi cativo “regional”. Para os angoleiros em geral, todos os demais estilos são classifi cados, indis-tintamente, como pertencentes à Regional, vocábulo que assume, muitas vezes, conotação negativa em suas falas. Do outro lado do espectro estilístico, alguns herdeiros di-retos de Bimba, que procuram manter o estilo do mestre sem outras grandes inovações, igualmente proclamam que só eles merecem o epíteto de regional. Por isso, mui-tos mestres de capoeira que não pertencem a nenhum desses dois extremos ou estilos “puros” começaram a se autodefi nir como fazendo capoeira “contemporânea”, ou afi rmar que praticam os dois estilos (o que se afi gura van-tajoso do ponto de vista do mercado de ensino, cada vez mais competitivo). Também é comum o uso da expressão “angonal” como termo depreciativo pelos puristas, para desqualifi car quem está “em cima do muro”, mas reivindi-cado abertamente por outros.

Falar de capoeira “contemporânea”, no entanto, não esclarece muito de que capoeira se trata, dado que há mui-tas formas distintas na atualidade, a começar pela angola e regional contemporâneas. A saída da capoeira do seu

contexto original e seu ingresso em academias, escolas, universidades, palcos de dança, competições de luta livre e até salas de terapia multiplicou sentidos, signifi cados, for-mas, maneiras de treinar e de jogar. Em outras palavras a transformação da capoeiragem – entendida aqui como o contexto social da capoeira – também impactou o conte-údo da arte. Acreditamos, por isso, que é preciso, além da clássica oposição binária angola-regional, distinguir vários estilos de capoeira, dependendo dos aspectos enfatizados: luta, tradição, cultura, brincadeira ou dança.

Foto: Alexandre Gomes

Foto: Embratur

CapoeiraOs Desafi os Contemporâneos da Capoeira

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Os Desafi os Contemporâneos da Capoeira

DESAFIOS E PERSPECTIVAS. Esse complexo cenário, que neste texto apenas esboçamos, coloca para a nova geração de praticantes e, de resto, para os dirigentes de grupos, academias e gestores públicos, uma série de ques-tões fundamentais para o desenvolvimento da capoeira. Se as gerações anteriores precisaram lidar com um possível desaparecimento da capoeira – uma vez que isso, de fato, ocorreu com outras manifestações brasileiras de danças de combate ou lutas viris, como o batuque, a pernada carioca e a tiririca – os dilemas que se apresentam no cenário atual são de ordem completamente diferente. A capoeira está presente no dia-a-dia dos brasileiros e difundiu-se como um dos principais símbolos da cultura brasileira no exterior. Nessa trajetória de massifi cação e expansão internacional – às vezes como desporto, outras vezes como manifestação predominantemente cultural – constroem-se e reforçam-se diversos estereótipos. Como em qualquer outro proces-so relacionado à dinâmica cultural, há ganhos e perdas.

Por desafi os contemporâneos entendemos os temas que, em nossa opinião, precisam fi gurar na agenda de discussões sobre a capoeira nos tempos atuais, seja no debate sobre a atuação dos capoeiristas no exterior, seja em termos do plane-jamento da atuação governamental envolvendo os diversos aspectos relacionados à prática, ensino e à divulgação da arte.

Uma das questões que identifi camos como fundamen-tais no debate contemporâneo diz respeito à transmissão das tradições e dos conhecimentos ancestrais da capoeira. Essa temática materializa-se na discussão sobre quais são as condições exigíveis para que um praticante da arte se torne professor ou mestre. Afi nal, a noção tradicional de mestre – indivíduo reconhecido pela comunidade e portador de saberes ancestrais, transmitidos por oralidade e pela convi-vência cotidiana e prolongada com o discípulo – vem sendo substituída pelo capoeirista cuja condição de mestre passa a ser outorgada por determinado grupo, federação ou alguma entidade de caráter mais ou menos ofi cial. A comunidade

Nessa trajetória de massifi cação e expansão internacional – às vezes como desporto, outras vezes como manifestação predominantemente cultural – constroem-se e reforçam-se diversos estereótipos. Como em qualquer outro processo relacionado à dinâmica cultural, há ganhos e perdas.

Foto: Lilia Menezes

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da capoeira está muito longe de um consenso a respeito do assunto. Embora as principais escolas ou grupos de capoeira obtenham sucesso na intenção de legitimar os mestres (te-mos, portanto, o mestre que se fi rma em virtude do peso da entidade que representa, além de suas qualidades e saberes individuais), há todo um universo de prática da capoeira que se encontra à margem desses espaços de convívio da arte, onde não há referências claras no que concerne à formação de um professor de capoeira.

Esse tema se torna ainda mais complexo quando trata-mos da expansão internacional da capoeira. Afi nal, há uma tendência natural das entidades e indivíduos que acolhem o capoeirista brasileiro no exterior no sentido de querer co-nhecer suas referências no Brasil. Não há solução simples para a questão. Algumas alternativas propostas e bastante discutidas no âmbito da capoeiragem apresentam mais problemas do que soluções, como, por exemplo, autori-zar determinada federação ou entidade governamental a implementar um cadastro “ofi cial” de mestres ou pessoas autorizadas a ensinar a arte. O tema precisa ser aprofun-dado, e caminhos precisam ser defi nidos, ainda que não seja viável defi nir critérios aplicáveis a todos os estilos para a obtenção do grau de professor ou mestre. Os mestres pioneiros na expansão da capoeira pelo exterior sempre manifestaram preocupação com a chegada de capoeiris-tas, muitas vezes desconhecidos no Brasil e sem qualquer experiência de ensino, que estabelecem trabalhos e, muitas vezes, se auto-intitulam mestres. Esse fenômeno, da uti-lização indevida dos títulos de professores ou mestres, já foi uma preocupação no Brasil, mas, atualmente, a difusão da capoeira e a formação de um mercado próprio, com o esclarecimento da população, coibiu signifi cativamente a atuação de professores sem a devida qualifi cação. O mes-mo, entretanto, ainda não ocorre no exterior.

À falta de uma discussão aprofundada sobre a questão, formou-se um cenário complexo, em que alguns atores se

destacaram.5 É importante lembrar a intensa discussão ini-ciada no fi nal da década de 90 e, com menor ênfase, ainda em curso, sobre a atuação do professor de educação física no ensino da capoeira. A lei federal nº 9.696, editada em 1998, regulamentou a atuação do profi ssional de educação física e criou os respectivos conselho federal e conselhos regionais. Ocorre que, em virtude de um entendimento am-pliado – e conforme se verifi cou posteriormente, equivoca-do – do conceito de “atividade física”, procurou o Conselho Federal disseminar a concepção de que, a partir da edição da lei, a capoeira estaria entre as atividades cujo ensino se-ria de exclusividade do professor de educação física.

Chega-se, assim, a outro tema que, em nossa avaliação, confi gura um importante dilema da capoeira nos tempos atuais, concernente à preservação da diversidade cultural da arte. Ora, por mais que possamos considerar a capoei-ra uma linguagem corporal fundamentada em elementos universais, há diferentes formas de compor seus elemen-tos, produzindo “sotaques” diferentes. E não estamos nos referindo aqui apenas à distinção angola-regional. Estamos remetendo a diferenças internas nessas grandes escolas da capoeira, que vão das características técnicas do jogo às concepções sobre rituais e padrões éticos que orientam o capoeirista. O desenvolvimento dos grandes grupos de capoeira, com sua organização empresarial e sua estraté-gia agressiva de expansão para o interior do Brasil e para outros países, chegou a causar apreensão nos estudiosos quanto à possibilidade do desaparecimento das ricas ma-nifestações da capoeiragem nas comunidades do interior do Brasil e nas periferias das grandes cidades. Dessa for-ma, a ação das entidades ligadas à difusão da cultura e, principalmente, dos órgãos governamentais que atuam na área, precisa pautar-se pelo princípio de que não há uma capoeira apenas, mas capoeiras, no plural. Preservar essa diversidade e difundir uma cultura de tolerância é preservar um cenário em que cada manifestação particular da capo-eira encontra seu lugar.

Em muitos casos, preservar a diversidade da capoeira envolve assegurar aos capoeiristas condições para que possam viver de seu ofício. E isso se torna, no Brasil atual, particularmente complexo no caso de mestres idosos que vivem nos tradicionais centros da capoeira nacional (cida-des como Salvador, Rio de Janeiro e Recife) e também em pequenas localidades do interior, onde sobrevivem mani-festações tradicionais da capoeira. Consideramos esse um dos importantes desafi os a serem enfrentados na imple-

(5) É importante observar que, pela legislação em vigor no Brasil, não há exclusividade assegurada às entidades de organização esportiva como federações ou confederações. Não se pode, portanto, considerar tais entidades “ofi ciais”, no sentido de terem maior respaldo do poder público do que quaisquer outras no que concerne à organização e representação dos praticantes de uma determinada modalidade. Pode haver para uma mesma modalidade esportiva – e, de fato, em muitos casos há – mais de uma federação por Estado ou mais de uma confederação de âmbito nacional. Isso sem falar nas ligas e outros tipos de associações, que, em relação ao tema aqui abordado, têm as mesmas prerrogativas na representação dos praticantes que federações. No caso da capoeira, alguns grupos constituíram suas próprias federações, confederações ou ligas.

Foto: Alexandre Gomes

CapoeiraOs Desafi os Contemporâneos da Capoeira

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Os Desafi os Contemporâneos da Capoeira

mentação de uma política pública de valorização da capo-eira como patrimônio cultural brasileiro.

Nesse sentido, cumpre registrar a importância do pro-jeto Capoeira Viva, do Ministério da Cultura (MinC), lançado 2006, no Rio de Janeiro, com o objetivo de promover a ca-poeira e lançar as bases de uma iniciativa governamental consistente para o setor.6 O projeto consiste basicamente no apoio, mediante regras publicadas em edital de ampla divulgação, a projetos relacionados à capoeira em diversas áreas, da organização de acervos documentais a ações relacionadas ao ensino da arte em comunidades pobres. Outras ações do governo federal foram lançadas anterior-mente, e algumas remontam aos anos 1980. Entretanto, o que peculiariza o projeto Capoeira Viva, em nossa avalia-ção, é o esforço no sentido de assegurar a transparência na defi nição de critérios para a seleção de projetos a serem fi nanciados e a ampla divulgação de seus resultados. Dessa forma, tem-se, no início do século XXI, uma primeira ação governamental, de caráter sistêmico, relacionada ao desen-volvimento da capoeira.

Em relação ao importante movimento de resgate das tradições ancestrais da capoeira, gostariamos de salientar o caráter restrito da apropriação da memória histórica e de diversos outros saberes relacionados à capoeira. Infelizmen-te, o esforço na direção do aprofundamento das pesquisas sobre a capoeira não tem encontrado correspondência em ações de divulgação desses saberes para a comunidade de praticantes e para a sociedade em geral. Ou seja, a pes-quisa, que tem nos antigos capoeiras e nas comunidades algumas de suas principais fontes, acaba promovendo um deslocamento desses saberes, fomentando a produção de uma elite de grupos e de capoeiristas com formação aca-dêmica elevada, mas com pouca consciência acerca da im-portância da existência de mecanismos de democratização desses conhecimentos. Identifi camos aí mais uma frente de atuação do Estado como promotor da cultura popular e da cidadania, não somente no sentido de viabilizar a pes-quisa, mas de, junto com ela, criar as condições para que se fortaleça o ambiente em que ela se produz como expres-são da vida das comunidades.

Finalmente, é necessário discutir as possibilidades de apoio aos mestres e professores de capoeira no exterior. O Departamento Cultural do Ministério das Relações Exte-riores (MRE), por meio de suas embaixadas e consulados, tem assegurado apoio aos capoeiristas que atuam fora do Brasil. As embaixadas poderiam, entretanto, fortalecer seu papel de pontos de referência da cultura brasileira, pro-porcionando, bibliotecas e videotecas para os mestres e professores e demais interessados. Gostaríamos de sugerir, ainda, a criação de conselhos informais de capoeira, apoia-dos pelas respectivas embaixadas, nos países onde ela já alcançou expressão signifi cativa. Caberia a esses conselhos

(6) O sítio eletrônico do projeto se encontra no endereço: www.capoeiraviva.org.br

O Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores (MRE), por meio de suas embaixadas e consulados, tem assegurado apoio aos capoeiristas que atuam fora do Brasil, mas entendemos que esse suporte pode ser mais sistemático.

Ministério das Relações ExterioresRevista Textos do Brasil

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opinar na hora de assegurar registro dos profi ssionais de ensino – sempre preservando a pluralidade dos estilos – ou contribuir para a transparência nas decisões e patrocínios que concernem à capoeira. Como já foi apontado no caso do Capoeira Viva, é necessário que o crescente fl uxo de fi -nanciamentos para a capoeira através das diferentes leis de incentivos culturais sejam submetidos ao controle social, garantindo o acesso aos editais e a fi scalização dos resulta-dos. Acreditamos que a capoeira e as políticas públicas que a apóiam podem, inclusive, servir de exemplo para a globa-lização de outras manifestações culturais brasileiras, o que já está ocorrendo de forma incipiente com as batucadas de samba e os maracatus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS. O processo de globalização da capoeira constitui-se em um momento privilegiado para a refl exão sobre a expansão da cultura brasileira pelo mun-do. Entendemos que, em um mundo marcado pela circu-lação da informação pela Internet em velocidade instantâ-nea, com recursos como os sítios de compartilhamento de vídeos (ferramenta amplamente utilizada pelos capoeiras de todo o mundo), não se pode pensar no papel do Brasil a partir de uma ótica essencialista. Ou seja, afi rmar a brasilida-de da nossa arte pode ser importante, mas não é mais sufi -ciente para garantir ao Brasil papel de destaque no mundo contemporâneo da capoeira.

O protagonismo do Brasil no universo atual da capoeira só pode se justifi car a partir de um conjunto de ações que, de fato, valorizem a cultura da capoeira como tradição e como fazer cotidiano, incorporado às diversas instâncias da socie-dade brasileira. Apenas assim, para além de ter o privilégio de sediar os mitos de origem e de ser o cenário em que ocor-reram os feitos dos grandes capoeiras do passado, o Brasil seguirá sendo reconhecido, em todo o mundo, como a fonte da memória histórica e de novas experiências relacionadas ao jogo, à musicalidade e ao ensino da capoeira.

Luiz Renato Vieira. Doutor em Sociologia da Cultura. Consultor Legislativo do Senado Federal na área de assistên-cia social e minorias. Mestre de Capoeira do Grupo Beriba-zu e coordenador do Projeto Capoeira Comunitária da UnB. Membro do Conselho de Mestres do Projeto Capoeira Viva (MinC). Autor do livro “O Jogo da Capoeira: Corpo e Cultura Popular no Brasil” (Rio de Janeiro: Sprint, 1998). E-mail: [email protected]

Matthias Röhrig Assunção. Doutor em História. Profes-sor do Departamento de História da Universidade de Essex (Inglaterra) e professor visitante no Mestrado em História da Universidade Federal Fluminense. Bolsista da CAPES. Autor do livro “Capoeira. The History of an Afro-Brazilian Martial Art” (London:Routledge, 2005) E-mail: [email protected]

Foto: Alexandre Gomes

CapoeiraOs Desafi os Contemporâneos da Capoeira

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma história da

capoeira

O PRESENTE ARTIGO DEDICA-SE A UMA RECONSTITUIÇÃO DA TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA CA-

POEIRA E PROCURA IDENTIFICAR MOMENTOS DECISIVOS A PARTIR DOS QUAIS A CAPOEIRA E O

CAPOEIRA ASSUMEM DISTINTOS PAPÉIS NA REALIDADE E NO IMAGINÁRIO SOCIAL. COMO PON-

TO DE PARTIDA, A INVESTIGAÇÃO REQUER A FIXAÇÃO DO CONCEITO DE CAPOEIRA, OU SEJA,

DEVE-SE CARACTERIZAR O QUE VEM A SER A PRÁTICA QUE É HOJE CONHECIDA COMO “JOGO DA

CAPOEIRA”. CONSISTE NUMA ATIVIDADE PRATICADA EM CLUBES, “ACADEMIAS” OU NA RUA, QUE

ENVOLVE TREINAMENTO FÍSICO COM VISTAS AO JOGO NA “RODA DE CAPOEIRA”. ESSE JOGO NÃO

TEM REGRAS FIXAS; OBEDECE, CONTUDO, A UM PROTOCOLO CARACTERÍSTICO, COM MÚSICA

PRÓPRIA, NO QUAL O INSTRUMENTO MUSICAL QUE COMANDA O DESENVOLVIMENTO DO JOGO

E DA RODA É O BERIMBAU. SE, POR UM LADO, A MÚSICA PÕE EM EVIDÊNCIA SEU CARÁTER LÚ-

DICO – TALVEZ O ASPECTO MAIS PERMANENTE ATRAVÉS DA HISTÓRIA – , POR OUTRO, EXPRIME

UM FORTE COMPONENTE DE DANÇA, QUE, NO ENTANTO, ENCONTRA-SE SUBORDINADO AO PA-

PEL DE ELUDIR E ENVOLVER O OPONENTE/PARCEIRO. ESSA FUNÇÃO, POR SUA VEZ, EVIDENCIA

O COMPONENTE DE LUTA, QUE IMPLICA CONTATO CORPORAL, MAS NÃO NECESSARIAMENTE

VENCEDOR E VENCIDO. ASSIM, INCORPORANDO ELEMENTOS DESPORTIVOS, MUSICAIS, DE DAN-

ÇA, DE ARTE MARCIAL E DE DIVERTIMENTO ENTRE AMIGOS, A CAPOEIRA CONSTITUI UMA DAS

MAIS RICAS MANIFESTAÇÕES DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA.

Guilherme Frazão Conduru

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma história da capoeira

Deve-se reconhecer, entretanto, que a defi nição acima é historicamente defi nida. Sua aplicação indiscriminada – como, por exemplo, ao jogo de capoeira tal como praticado nos tempos da Independência ou nos tempos do Segundo Reinado – constituiria exemplo de anacronismo. A identifi -cação das metamorfoses da capoeira e das transformações na forma de sua inserção na sociedade constitui o tema que, a seguir, se explora.

1. AS PRIMEIRAS REFERÊNCIAS (C. 1770-1830). Há quem fale na prática da capoeira desde os tempos do Quilombo dos Palmares.1 A associação da capoei-ra com a história da resistência negra à escravidão é, com efeito, instigante: seria ela não só um folguedo, por meio do qual os escravos se esqueciam momenta-neamente das agruras de sua condição, mas também um instrumento de luta para a conquista da liberda-de. O estádio atual da pesquisa histórica, todavia, não permite identificar a prática do jogo da capoeira entre quilombolas.2 Pode-se, no máximo, encontrar referên-cias que remontam à segunda metade do século XVIII, e num ambiente urbano.

O memorialista Luis Edmundo descreve o capoeira dos tempos do Vice-Reinado no Rio de Janeiro como uma fi gu-ra soturna, aventureira e astuciosa, que, no entanto, não deixava de reverenciar as imagens sacras dos oratórios públicos, então muito presentes na paisagem urbana da capital da colônia.3

Na obra de Elísio de Araújo sobre a história da polícia na antiga capital4, encontra-se testemunho distinto – menos literário e mais convincente. Citando o ilustrado Dr. J. M. Ma-cedo, sem, contudo, mencionar a obra, discorre:

Já no tempo do Marquês de Lavradio, em 1770, existia na pessoa de um ofi cial de milícias, o Tenen-te João Moreira, por alcunha “o amotinado”, que, dotado de prodigiosa força, de ânimo infl amado, talvez fosse o mais antigo capoeira do Rio de Ja-neiro, porque, jogando perfeitamente a espada, a faca e o pau, dava preferência à cabeçada e aos golpes com os pés.

Esta informação sugere que “o amotinado” teria sido um antecessor do célebre major Vidigal, homem de con-fiança do primeiro intendente de Polícia do Brasil, Con-selheiro Paulo Fernandes Viana, que fora nomeado pelo Príncipe Regente Dom João. Vidigal ficou imortalizado

(1) Ver, por exemplo, a entrevista do Mestre Almir das Areias ao jornal Movimento em 13.09.1976, citada por Roberto Freire em Soma, uma terapia anarquista, vol. 2/Prática da Soma e capoeira, p.160-168, Editora Guanabara-Koogan, Rio de Janeiro, 1991. Da mesma forma, no fi lme Quilombo (1983), do diretor Cacá Diegues, aparecem cenas que sugerem a utilização de golpes de capoeira.

(2) Cf. Memorial de Palmares, de Ivan Alves Filho, Xénon Editores, Rio de Janeiro, 1988.(3) Cf. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, Athena Editora, Rio de Janeiro, s/d. (4) Cf. Estudo histórico sobre a Polícia da Capital Federal de 1808 a 1831, Primeira parte, Imprensa

Nacional, Rio de Janeiro, 1898, p. 56.

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A interpretação da obra dos cronistas viajantes estrangeiros – que passaram a nos visitar com maior freqüência a partir da chegada da família real portuguesa em 1808 – muito tem contribuído para a reconstituição dos costumes e da sociedade brasileira do período. Nesse sentido, parece ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) a primeira descrição da capoeira (1835).

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São SalvadorJ. M. Rugendas, 1802 - 1858

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como personagem das Memórias de um Sargento de Milícias que impunha às ruas do Rio de Janeiro sua dis-cricionária “inquisição policial”.5 A fama do major Vidigal teve origem no seu infatigável combate aos quilombos, candomblés e capoeiras. Teria sido o criador da temida sessão de tortura conhecida como “ceia dos camarões”6 reservada aos capoeiras e vagabundos que infernizavam a vida carioca.

Apesar de a primeira codifi cação criminal brasileira – o Código Criminal do Império do Brasil, de 1830 – não especi-fi car os capoeiras, eles estariam enquadrados na categoria de “vadios e mendigos”, da qual trata o Artigo 295 do Ca-pítulo IV.7 De fato, o praticante da capoeira era identifi cado como integrante de grupos de bandidos, sem ocupação defi nida, verdadeiros marginais. Resta, contudo, averiguar de que forma esse estigma social de marginalidade se con-ciliaria com a idéia de um “inocente” folguedo de escravos e de negros.

A interpretação da obra dos cronistas viajantes estran-geiros – que passaram a nos visitar com maior freqüência a partir da chegada da família real portuguesa em 1808 – muito tem contribuído para a reconstituição dos costumes e da sociedade brasileira do período. Nesse sentido, pare-ce ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) a primeira descrição da capoeira (1835):

(...) Os negros têm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a capoeira: dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do ad-versário que desejam derrubar. Evita-se o ata-que com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas, lançando-se um contra o outro, mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro dege-nere em briga e que as facas entrem em jogo ensangüentando-as.8

Além dessa descrição, o artista alemão deixou duas gra-vuras que retratam a prática da capoeira e que constituem, com razoável probabilidade, os mais antigos documentos iconográfi cos sobre o assunto. Na primeira delas, intitulada São Salvador, a capital soteropolitana - vista de algum pon-

(5) Cf. Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro, 1963, prefácio de Marques Rebêlo, p. 28.

(6) Cf. Almeida, op. cit.; Waldeloir Rego, Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfi co, Editora Itapuã, Salvador, 1968, p. 295; e Raimundo Magalhães Júnior, Deodoro: a espada contra o Império, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1940, vol. 2, p. 183.

(7) Cf. Rego, op. cit., p. 291(8) Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, Livraria Martins, São Paulo, 1940,

p. 197.

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma história da capoeira

to próximo à Igreja de Nosso Senhor do Bonfi m – ocupa o fundo enquanto no primeiro plano um pequeno grupo de três negros e quatro negras assiste à contenda de dois ou-tros negros. Apesar da ausência de qualquer instrumento musical visível, sente-se o pulsar de um ritmo pelas posi-ções dos contendores e da platéia. É de notar não só a presença de mulheres, como também o assédio de um dos assistentes sobre uma delas.

Em outra gravura, denominada Jogo da Capoeira, vê-se um grupo de dez negros e negras, dispostos em semicírcu-lo, que se entretêm assistindo ao embate entre dois negros. Aqui está representado o atabaque e um dos assistentes bate palmas. À exceção de uma negra, que serve algo de comer para um ancião, todos parecem hipnotizados pelo ritmo e pelos movimentos dos capoeiristas, inclusive uma que traz à cabeça um cesto de abacaxi. Esse último detalhe permite inferir que o cenário é urbano.

Vale a pena frisar que em nenhuma destas gravuras apa-rece o berimbau – o que permite a formulação da hipótese de que esse instrumento não estava, naquele momento, associado à capoeiragem.9 Um detalhe de cunho técnico, do ponto de vista da luta, merece, ainda, ser observado: os punhos cerrados dos capoeiras na segunda gravura.

A obra de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), apesar de não conter de referências explícitas à capoeira, fornece por meio de duas aquarelas, e de suas respectivas explicações, subsídios importantes para a reconstituição histórica da ca-poeira. Na descrição da prancha intitulada Enterro do fi lho de um rei negro o artista francês escreve:

A procissão é aberta pelo mestre-de-cerimônias. Este sai da casa do defunto fazendo recuar a grandes bengaladas a multidão negra que obs-trui a passagem; erguem-se o negro foguetei-ro, soltando bombas e rojões e três ou quatro negros volteadores, dando saltos mortais ou fa-zendo mil cabriolas para animar a cena.10

(9) Cf. O berimbau-de-barriga e seus toques, Kay Shaffer, MEC/FUNARTE/INF, Monografi as folclóricas, 1981.

Vale a pena frisar que em nenhuma destas gravuras aparece o berimbau – o que permite a formulação da hipótese de que esse instrumento não estava, naquele momento, associado à capoeiragem.9 Um detalhe de cunho técnico, do ponto de vista da luta, merece, ainda, ser observado: os punhos cerrados dos capoeiras na segunda gravura.

Enterro do fi lho de um rei negroJ. B. Debret, 1768-1848

Detalhe Jogo de Capoeira, J.M Rugendas

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É interessante constatar a presença num cortejo fú-nebre desses “negros volteadores”, cujos movimentos acrobáticos serão incorporados, no século XX, ao jogo da capoeira, seja como “fl oreios”, para eludir o oponente, seja como intimidações, ou, ainda, como demonstrações de ha-bilidade e destreza físicas de apelo turístico.

Na aquarela O negro trovador, Debret representa um ancião cego que toca o urucungo ou berimbau.

Esses trovadores africanos, cuja facúndia é fértil em histórias de amor, terminam sempre suas in-gênuas estrofes com algumas palavras lascivas acompanhadas de gestos análogos, meio infalível para fazer gritar de alegria todo o auditório ne-gro, a cujos aplausos se ajuntam assobios, gritos agudos, contorções e pulos, mas cuja explosão é felizmente momentânea, pois logo fogem para outros lados a fi m de evitar a repressão dos solda-dos da polícia que os perseguem a pauladas.10

Corroborando a hipótese formulada acima, a partir das gravuras de Rugendas, pode-se concluir, de forma provisó-ria, que capoeira e berimbau não estavam associados, pelo menos, até a terceira década do século XIX. Fato surpreen-dente uma vez considerada a visceral relação que prevale-ce entre os dois, desde, pelo menos, a década de 1930.

Nesse período aproximado de 1770 a 1830, pode-se conceber a capoeira sob, pelo menos, duas perspectivas. Sob uma ótica, por assim dizer, etnográfi ca, como um diver-timento de negros (portanto, de origem africana), praticado a céu aberto, a ponto de possibilitar a sua reprodução por viajantes estrangeiros. Sob um prisma sociológico, não se pode ignorar ter sido a capoeira objeto de forte persegui-ção policial, uma vez que seus praticantes, em geral escra-vos ou negros libertos, eram identifi cados como assaltantes e baderneiros, que faziam uso da capoeira para perpetrar crimes e atentar contra a ordem pública.

2. AS MALTAS: “PROFISSIONALISMO” E SERVIÇOS POLÍTICOS (C. 1830-1890). Apesar de toda perseguição que sofreu, a capoeira conseguiu sobreviver e, ao longo da Regência e do Segundo Reinado, chegou a expandir-se so-cialmente. De alguma maneira e em algum momento dei-xou de ser coisa exclusivamente de negro ou de escravo. É claro que são negros e mulatos os que compõem a maior parte da galeria de capoeiristas famosos do século passado. Não eram, contudo, os únicos conhecedores da arte.

De fato, a incapacidade da repressão para acabar com a capoeira (e com outras manifestações da cultura negra,

(10) Cf. Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo, 1989, tomo II, p. 164-165.

O negro trovadorJ. B Debret, 1768 - 1848

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(11) Lima Campos, “A Capoeira”, artigo publicado na revista Kosmos, Rio de Janeiro, 1906, apud Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, Rio de Janeiro em prosa e verso, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1965, p. 191-194.

(12) Sobre a expansão urbana do Rio de Janeiro nos meados do século XIX, cf. de Maurício de Abreu, Evolução urbana do Rio de Janeiro, IPLANRIO/ Zahar, Rio de Janeiro, 1988.

(13) Cf. Festas e tradições populares do Brasil, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo, 1979, p. 257-263, apud Rego, op.cit., p. 280.

como o candomblé) permitiu sua difusão para outras cama-das da população, ainda durante o Império. No centro des-se contraditório processo de criminalização e alastramento encontra-se a formação das maltas de capoeira. Não foi por acaso que cronistas como Lima Campos e Coelho Neto se referiram ao tempo de Dom Pedro II como o da fase de apogeu da capoeira: “Durante o Segundo Império, a capoei-ra chegou ao auge, foi verdadeiramente, aquela época, a do seu pleno domínio e máximo desenvolvimento”.11

Por um lado, o fl orescimento das maltas se relaciona com o crescimento urbano do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, que foi acompanhado de um forte incremento demográfi co provocado pela imigração, princi-palmente nas camadas mais pobres da população livre.12 Por outro lado, o que explica, em grande parte, a organização das maltas, apesar da perseguição, é o seu aproveitamento político para fi ns eleitorais. Sobre esse aspecto, o seguinte comentário de Melo Morais Filho é bastante eloqüente: “(...) Ao seu ombro tisnado escorou-se, até há pouco, o senado e a câmara, para onde, à luz da navalha, muitos dos que nos governam, subiram”.13

A julgar pelas informações de Lima Campos e de Melo Morais Filho, as maltas do Rio de Janeiro possuíam uma es-trutura disciplinar interna que não dispensava uma rígida hierarquia e uma espécie de “progressão funcional”. Esses agrupamentos tanto podiam ser formados a partir de bair-ros (Glória, Lapa, Largo do Moura, Santa Luzia etc.) como a partir de ocupações (Carpinteiros de São José, Conceição da Marinha).

Em um determinado momento, segundo Lima Campos, ocorre a fusão destas diferentes maltas em duas grandes “nações”: os “guaiamus” e os “nagôs”. O interesse político na preservação das maltas consistia na sua utilização para “serviços eleitorais”; daí, a constante e audaciosa presença dos capoeiras, que gozavam de relativa impunidade em ra-zão da conivência das autoridades. Cada uma das “nações” se associara a um dos partidos da monarquia: os liberais e os conservadores. Entre os serviços possíveis incluíam-se a dissolução de comícios, o roubo ou falsifi cação de urnas elei-torais e a coação de eleitores, além de vinganças pessoais contra políticos do partido rival. Assim, num esquema político de eleições fraudulentas, os serviços das maltas organizadas podiam ser considerados “profi ssionais”: o ingresso em uma delas representava alternativa de sustento para os membros da numerosa classe de homens livres e pobres. Era, portan-to, na ampla camada de desocupados, vadios e biscateiros onde se iam buscar, de uma maneira geral, os contingentes de capoeiras que integravam as maltas.

Assim, num esquema político de eleições fraudulentas, os serviços das maltas organizadas podiam ser considerados “profi ssionais”: o ingresso em uma delas representava alternativa de sustento para os membros da numerosa classe de homens livres e pobres. Era, portanto, na ampla camada de desocupados, vadios e biscateiros onde se iam buscar, de uma maneira geral, os contingentes de capoeiras que integravam as maltas.

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(14) Coelho Neto cita Juca Paranhos, o futuro Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores de 1902 a 1912, e patrono da diplomacia brasileira, “que, na mocidade, foi ‘bonzão’ e disso se orgulhava nas palestras íntimas em que era tão picaresco”, apud Magalhães Júnior, op.cit., p. 185.

(15) Cf. Rego, op.cit., p. 313-315; Magalhães Júnior, op.cit., vol. 1, p. 326-327, 341-342, 373-376; vol. 2, 63-64, 183, 228.

(16) Cf. Escravos Brasileiros do século XIX na fotografi a de Christiano Jr., Paulo Cesar de Azevedo e Maurício Lissovsky (orgs.), Editora Ex Libris, São Paulo, 1987, fi gura 71.

(17) Machado de Assis, Crônicas (1878-1888), W. M. Jackson Inc. Editores, 1938, vol. IV, p. 227-228, apud Rego, op.cit., p.280-281.

Não eram eles, contudo, os únicos praticantes de capo-eira. Filhos de boa família se tornaram valentes brigões gra-ças ao conhecimento adquirido no convívio com capoeiras. Coelho Neto, confesso admirador da capoeiragem, men-ciona “vultos eminentes na política, no professorado, no Exército, na Marinha” que teriam aprendido os segredos da capoeira ao se associarem, de alguma forma, às maltas.14

A conivência das autoridades com as atividades das maltas de capoeira atinge o paroxismo com a criação da Guarda Negra, que era uma espécie de associação secre-ta, cujo objetivo declarado era a defesa da Princesa Isa-

bel. Chegou a contar com verbas da polícia do Governo de João Alfredo e atuou como força paramilitar contrária às mobilizações do ascendente movimento republicano. Aproveitando-se dos sentimentos de simpatia provocados pelo fi m da escravidão, a Guarda Negra arregimentou seus membros junto aos capoeiras – cujo elevado nível de or-ganização e mobilização devia-se à estrutura interna das maltas – e na variada camada de delinqüentes e malandros, que transitavam socialmente entre a criminalidade e a or-dem. A Guarda Negra – que teve como um dos seus idea-lizadores José do Patrocínio – foi, assim, a responsável pela dissolução de vários comícios e reuniões dos republicanos e representava uma alternativa desesperada do governo para salvar a Monarquia. Durante os acontecimentos que culminaram com a proclamação da República, a denúncia de que o quartel do Primeiro Regimento de Cavalaria se-ria atacado pela Guarda Negra teria servido como pretexto para o início da insubordinação militar.15

Ao tratar da capoeira durante o Império, não se pode deixar de fazer uma referência especial a uma fotografi a de Christiano Júnior, tirada entre 1864 e 1866, que re-produz em estúdio o que seria uma lição particular de capoeira.16 Um jovem negro inicia um menino negro na capoeira, ensinando-lhe o que parece ser os rudimentos da “ginga”. A foto sugere a idéia de que a transmissão da técnica da capoeira envolvia, já naquele tempo, alguma espécie de metodologia e uma relação do tipo mestre/discípulo. A existência de uma rígida hierarquia no interior das maltas, caso confi rmada, poderia contribuir para fun-damentar essa hipótese.

Por fim, deve-se mencionar que os capoeiras ocupa-vam um lugar ambíguo no imaginário social da época: ao mesmo tempo em que aterrorizavam a população com as badernas e pancadarias que promoviam, eram admirados pelas façanhas realizadas contra os represen-tantes da ordem e do poder estabelecido. Sobre esta discussão, vale a pena reproduzir trecho de uma crônica de Machado de Assis:

(...) que estou em desacordo com os meus con-temporâneos, relativamente ao motivo que leva o capoeira a plantar facadas nas nossas barrigas. Diz-se que é o gosto de fazer mal, de mostrar agilidade e valor, opinião unânime e respeitada como dogma. Ninguém vê que é simplesmente absurda.17

Lição particular de capoeiraChristiano Júnior

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma história da capoeira

(18) Cf. Coelho Neto, crônica “O nosso jogo”, in Bazar, Livraria Chandron, de Lello e Irmãos Ltda., Porto, 1928, apud Magalhães Júnior, op.cit., p. 136-138.

(19) Código Penal Brasileiro, pelo Doutor Manuel Clementino de Oliveira Escorel, Tipografi a da Cia. Ind. de São Paulo, 1893, apud Luiz Renato Vieira, Da vadiação à capoeira regional, tese de Mestrado para o Departamento de Sociologia da UnB, 1991.

Coelho Neto, por sua vez, idealizava o capoeira, com nostalgia e romantismo, ao atribuir-lhe elevada dignidade moral uma vez que não usava navalha (sic), não batia em homem caído e, caso defendesse causas nobres, como o abolicionismo, o fazia por idealismo e não como mercená-rio (sic). Exaltando a valentia dos capoeiras, Coelho Neto relata o terror que produziam na própria polícia.18

3. ANOS DE REPRESSÃO E ESQUECIMENTO (C. 1890-1930). A constante freqüência dos capoeiras na crônica policial das últimas décadas do Império levou a que recebessem um tratamento diferenciado por parte da le-gislação penal brasileira. Com efeito, o Código Penal da Re-pública dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, estabelecia em seu Capítulo XIII:

Dos Vadios e Capoeiras / Artigo 402: Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denomina-ção de capoeiragem; andar em correrias com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou de-sordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: / Pena: de prisão celular de dois a seis meses. / Parágrafo único: é considerada circunstância agravante pertencer a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeças se imporá a pena em dobro (...).19

Tem-se, assim, juridicamente tipifi cada, a criminalização da capoeira – uma capoeira intimamente ligada à margina-lidade e que estava caracterizada tanto como uma técnica de luta corporal quanto pelo manuseio de armas como na-valhas, facas e porretes.

Ainda antes da entrada em vigor, por decreto, do Có-digo Penal, a capoeira seria alvo de ferrenha perseguição ofi cial. Na atmosfera de instabilidade política que marcava os primeiros momentos da República, o Marechal Deodo-ro da Fonseca nomeou para a chefi a de Polícia o Doutor Sampaio Ferraz, que exercera o cargo de promotor públi-co e fora, como jornalista, violento opositor da Monarquia. Ao entregar-lhe o cargo, o Presidente conferiu-lhe amplos poderes para erradicar da capital todos os desordeiros, a começar pelos bandos de capoeiras.

Assim, Sampaio Ferraz deu início a formidável campa-nha contra as maltas de capoeira. Para que a cidade efeti-vamente se livrasse daqueles bandos, a pena aplicada foi a da deportação. Segundo José Murilo de Carvalho, esta prá-tica fora iniciada no fi nal do Império, com a deportação de

A constante freqüência dos capoeiras na crônica policial das últimas décadas do Império levou a que recebessem um tratamento diferenciado por parte da legislação penal brasileira.

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(20) Cf. José Murilo de Carvalho, Os bestializados/ O Rio de Janeiro e a República que não foi, Cia. das Letras, São Paulo, 1987, p. 179, nota 25 e p. 155.

(21) Carvalho, op.cit., p. 156-160.

capoeiras para o Mato Grosso. Sampaio Ferraz teria pren-dido e desterrado para Fernando de Noronha, sem proces-so, cerca de 600 capoeiras. O mesmo autor observa que “havia muitos brancos e até mesmo estrangeiros” entre os capoeiras: das 28 pessoas presas, em abril de 1890, sob a acusação de capoeiragem, cinco eram pretas, dez bran-cas, das quais sete estrangeiras. “Era comum aparecerem portugueses e italianos entre os presos por capoeiragem. E não só brancos pobres se envolviam”.20

De fato, naquele mês de abril de 1890 uma crise minis-terial foi quase desencadeada a partir da prisão do famoso capoeira e baderneiro Juca Reis, rapaz de rica família por-tuguesa, proprietária do jornal O Paiz, que fora dirigido por Quintino Bocayuva, então Ministro das Relações Exteriores. Diante da prisão e da iminente deportação do burguês “va-lentão”, Quintino ameaçou demitir-se: ou libertavam o fi lho de seu ex-patrão, o que implicava na demissão de Sampaio Ferraz, ou ele se retiraria do Governo. Chegou-se, enfi m, a uma solução de compromisso pela qual ao capoeira da elite seria facultado o embarque para o exterior tão logo chegasse a Fernando de Noronha.

O episódio demonstra o grau de difusão social alcança-do pela capoeira. Na capoeiragem, com efeito, era possível o convívio entre classes sociais distintas. Carvalho argu-

menta que esta possibilidade de mistura social presente na capoeira ocorria tradicionalmente nas irmandades religio-sas e nas organizações assistencialistas de auxílio mútuo. Eram “ocasiões de auto-reconhecimento” da população do Rio de Janeiro, que vivia a transição de um espaço ur-bano típico de uma cidade colonial e escravista para o de uma moderna metrópole capitalista. Como exemplos de movimentos que simbolizam a construção de espaços de confraternização, cita a popularização da festa da Penha, a participação de políticos conhecidos nos centros de can-domblé, a gradual ascensão social do samba e a difusão do futebol entre as classes mais pobres. No plano político, en-tretanto, a ausência de cidadania engendrava a indiferença e o cinismo e, além disso, a tendência para a carnavalização do poder e das relações sociais.21

Estas considerações ajudam a problematizar o tema da tardia aceitação social da capoeira. A repressão empreen-dida por Sampaio Ferraz pode ser considerada um sucesso na medida em que provocou o virtual desaparecimento da capoeira. Segundo um viajante francês, que residiu na capital por alguns meses, em 1883, as estatísticas policiais

Jogo de CapoeiraJ. M. Rugendas (1802 – 1858)

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As metamorfoses da capoeira:contribuição para uma história da capoeira

computariam aproximadamente 20.000 capoeiristas entre a população carioca. Cerca de vinte anos depois, no prefá-cio ao livro Educação Física Japonesa, o Capitão-Tenente Santos Porto afi rmava: “Entre nós, em tempos que já vão longe, os exercícios de agilidade conhecidos por capoeira-gem fl oresceram mesmo entre os fi lhos das mais distintas famílias”. O já citado Lima Campos lamentava, em 1906, a perda de um suposto espírito autêntico da capoeira ao afi rmar que os capoeiristas daquela época “não fazem [do jogo] verdadeiramente uma arte, uma profi ssão, uma insti-tuição. (...) são mais, a bem dizer, mazorqueiros, navalhistas, faquistas, enfi m, estriladeiros avulsos, que própria, exclusiva, profi ssional e arregimentadamente capoeiras”.22 Carvalho menciona a versão do chefe de Polícia em 1904 sobre a prisão de vagabundos em seguida à Revolta da Vacina: das mais de 2.000 pessoas detidas por vadiagem, apenas 73 o foram por capoeiragem. À gritaria e ao alarido exaltado das maltas seguiu-se um silêncio quase total acerca da capoei-ra. É, no entanto, necessário aprofundar a pesquisa no sen-tido de comprovar a idéia segundo a qual a capoeira quase desapareceu a partir da última década do século passado.

Na Bahia a perseguição alcança a década de 1920, quando fi caram famosas as incursões do delegado Pedro de Azevedo Gordilho, o Pedrito, contra os candomblés e os capoeiras. É preciso assinalar que a estratifi cação social em Salvador era mais radicalmente marcada pela oposição se-nhor/escravo (ou branco/negro) do que no Rio de Janeiro. De qualquer forma, maiores estudos deverão ser condu-zidos para se determinar o nível de penetração social da capoeira ao longo do século XIX na Bahia. Até o momento não foi possível detectar a presença de maltas na Bahia do século passado. Rego fala no capoeira-capanga assalariado por potentados, provavelmente se referindo aos integran-tes das maltas cariocas.23 Wetherell, Vice-cônsul britânico na Bahia de 1842 a 1857, descreve uma luta comum na Cidade Baixa na qual “(...) [os negros] são todo movimento, saltando e mexendo braços e pernas sem parar, iguais a macacos quando brigam (...)”.24

4. “ESCOLARIZAÇÃO”, ACEITAÇÃO SOCIAL E UM NOVO PROFISSIONALISMO (C. 1930–). A partir dos anos 1930, tem início longo processo cujo sentido será o de gradual desvinculação da capoeira da criminalidade e do mundo do crime. Trata-se da lenta ascensão e aceitação sociais da capoeira. No decorrer dessa terceira metamor-fose, a capoeira se exibirá em recepções ofi ciais, será reco-nhecida como autêntica manifestação da cultura popular nacional, e, sobretudo, começará a ser ensinada em esco-las especializadas, as “academias”.

(22) Cf. Santos Porto, prefácio ao livro Educação física japonesa, Cia. Topográfi ca Brasileira, Rio de Janeiro, 1905; Lima Campos, apud Drummond e Bandeira, op.cit., p.193.

(23) Cf. Rego, op.cit., p. 315.(24) Cf. James Wetherell, Brasil: apontamentos sobre a Bahia 1842-1857, Ed. do Banco da Bahia. O

tradutor identifi ca a capoeira nesta descrição

A partir dos anos 1930, tem início longo processo cujo sentido será o de gradual desvinculação da capoeira da criminalidade e do mundo do crime. Trata-se da lenta ascensão e aceitação sociais da capoeira.

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O desenvolvimento de uma capoeira “acadêmica” a par-tir da introdução de uma metodologia de ensino teve como pressuposto uma conjuntura político-ideológica na qual a questão da identifi cação e da construção de uma cultura nacional encontrava-se no centro do debate intelectual. De fato, nas décadas de 1920 e 1930, intelectuais seguidores de diferentes tendências estéticas e políticas preocupavam-se com a construção de uma “brasilidade” ideal, de um refe-rencial de valores culturais “autenticamente” nacionais. No fulcro desta discussão estava a busca de conciliação entre a necessidade de modernização e, ao mesmo tempo, de pre-servar as tradições. Foi, portanto, no bojo das transformações sociais e políticas relacionadas com o processo de industriali-zação que se plasmaram as condições para o surgimento de uma capoeira renovada.

Assim, a Revolução de 1930 assinala o estabelecimento de novas relações entre o Estado e as classes sociais. Com discurso e práticas populistas, a nova elite detentora do poder político procura legitimar a tutela do Estado sobre a socieda-de e forja uma “ideologia estatal”, com a participação de in-telectuais modernistas, engajados no projeto de construção simbólica da nacionalidade. As Forças Armadas, imbuídas da crença na sua missão de “purifi cadoras” da política, passam a identifi car na educação instrumento de mobilização social, imprescindível para a (re)construção da nacionalidade. Inten-tam, desta forma, conciliar educação de massa e os princí-pios militares de disciplina e hierarquia. Assim, promovem, a institucionalização da Educação Física como disciplina escolar. Nesse sentido, o Estado, como agente e promotor da cultura, apropria-se de manifestações da cultura popular. É bastante signifi cativa a inclusão da capoeira no programa curricular da Polícia Especial, criada em 1932, servindo a dois objetivos pragmáticos: como técnica de luta, considerada como necessária para a formação profi ssional do policial, e como valor cultural, afi rmador da nacionalidade.25

Nesse contexto surge uma nova forma de capoeira, que tem como base programática a noção de efi cácia, cujo marco inicial pode ser simbolizado pela criação, por Mestre Bimba, da primeira academia em 1932, denomina-da Centro de Cultura Física e Capoeira Regional da Bahia. É importante assinalar que até então – e a despeito das considerações suscitadas pela fotografi a de Christiano Jú-nior – a capoeira era aprendida na rua; a roda se fazia em espaço público e o aprendizado técnico excluía a idéia de treinamento formal. Ou seja, aprendia–se jogando, e não treinando, como hoje. Ao fundar seu novo “estilo” no cri-tério de efi cácia da luta, Bimba implicitamente considerava a capoeira existente como fraca do ponto de vista marcial. Partindo desta perspectiva, elabora um método de ensino que, ao priorizar a formação do capoeirista como lutador, tende a menosprezar o componente lúdico da arte. Tem início, desta maneira, um processo de “escolarização” da capoeira, com o declínio do seu aspecto de “vadiação” e o gradual desaparecimento das rodas de rua.

Além de supervalorizar a capoeira na sua dimensão marcial, privilegiando a técnica e até introduzindo movi-mentos originários de outras lutas, Bimba buscava des-vinculá-la do estigma da marginalidade. Como observa Vieira, para ingressar na academia regional, o “aluno” (daí “escolarização”) deveria ser estudante ou trabalhador, ex-cluindo-se os vagabundos (ou desempregados?). Ao lado desta segregação, Bimba assimilou aspectos formais pró-prios da cultura erudita e, portanto, alheios ao ambiente da cultura popular: exame de admissão, curso básico, ceri-mônia de formatura e curso de especialização. Procurava, por esta via, a legitimação da sua capoeira como atividade educativa e incorporava os princípios militares de hierar-quia e disciplina.

A participação de Bimba e de seus alunos no desfi le ofi cial do Dois de Julho de 1936, a autorização legal para o funcionamento de sua academia em 1937 (na prática, descriminalizando a capoeira), a sua atuação como pro-fessor no Centro de Formação de Ofi ciais da Reserva do Exército, de Salvador, entre 1939 e 1942, e a exibição para Getúlio Vargas, em 1953, constituem fatos emblemáticos da aceitação e da ascensão social da capoeira. Com efeito, houve um contato do mestre com grupos de universitários interessados em aprender a capoeira, e, além disso, muitos de seus alunos eram membros da elite social de Salvador. Por conseguinte, parece não ser destituída de verdade a afi rmação de que a regional teria sido orientada para as classes mais privilegiadas da sociedade..26

Uma das conseqüências do aparecimento da chamada “capoeira regional” foi a falsa distinção entre dois “estilos”: a “angola”, tida como mais antiga e tradicional, e a “regional”, considerada, pelos puristas, como uma descaracterização. Na verdade, o conceito de “capoeira angola” surge como resposta ao advento da regional de Bimba, a partir da ini-ciativa de Mestre Pastinha (Vicente Ferreira) de criar seu Centro Esportivo de Capoeira Angola, em 1941, na Bahia. Ocorre, com freqüência, a confusão entre o “toque” de berimbau conhecido como “toque de Angola” (isto é, um determinado ritmo que implica determinado tipo de jogo) e um suposto “estilo angola” de jogo. Deve-se esclarecer, antes de tudo, que existem diferentes toques que determi-nam diferentes formas de jogo, sem que essa variedade de ritmos implique, necessariamente, a cristalização de dife-rentes “estilos” ou “escolas” de capoeira.

Um dos efeitos da disseminação das academias foi, por um lado, o defi nitivo rompimento do elo que associava a prática da capoeira à marginalidade. Assim, o estigma de “coisa de vagabundo” ou “de marginal” foi sendo gradual-mente desfeito pela realidade daqueles que compõem o mundo da capoeira nos dias de hoje. Por outro lado, a difu-são social provocada pelas academias teve sua contrapar-

(25) Cf. Vieira, op.cit., capítulo II.(26) Cf. Vieira, op.cit., p. 175.

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tida tanto na proliferação desenfreada de “mestres” quanto na conseqüente vulgarização, muitas vezes deturpada, do sentido original desta categoria. De qualquer modo, a ca-poeira tornou-se um meio de vida: com as academias, a profi ssionalização dos mestres (ou dos professores/instru-tores) tornou-se uma realidade.

A utilização, repetida ao longo dos anos, de métodos de ensino teve também conseqüências ambíguas. A sistemati-zação do treinamento, baseada na repetição de movimen-tos, e o contínuo intercâmbio entre os diversos grupos no Brasil e no exterior permitiram, de fato, um aprimoramento técnico e atlético inimaginável. A ênfase na repetição, no entanto, produziu certa “mecanização” ou “automatização” dos movimentos, tendente à padronização das formas de jogo e dos estilos pessoais.

Outro aspecto relevante da capoeira nos dias atuais diz respeito a sua difusão pelo mundo. A participação de Mestre Pastinha e de seu grupo no Festival de Arte Negra realizado em Dacar, Senegal, em 1966, pode ter sido a pri-meira demonstração, ofi cial, de capoeira no exterior. Desde os anos 1970 e, principalmente, desde os anos 1980, um número cada dia maior de capoeiristas têm viajado para a Europa ou para os EUA, ministrando cursos e até se fi xando e desenvolvendo trabalhos de longo prazo no exterior27.

A participação de Mestre Pastinha e de seu grupo no Festival de Arte Negra realizado em Dacar, Senegal, em 1966, pode ter sido a primeira demonstração, ofi cial, de capoeira no exterior. Desde os anos 1970 e, principalmente, desde os anos 1980, um número cada dia maior de capoeiristas têm viajado para a Europa ou para os EUA, ministrando cursos e até se fi xando e desenvolvendo trabalhos de longo prazo no exterior .

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Foto: Lilia Menezes

(27) É o caso, por exemplo, de Mestre Acordeon, baiano, discípulo de Mestre Bimba, que se estabeleceu em São Francisco, Califórnia, e de lá trouxe, em 1983, grupo signifi cativo de alunos norte-americanos para conhecer a capoeira no Brasil. Inúmeros e cada vez mais freqüentes exemplos poderiam ser citados.

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Em suma, a capoeira conheceu diferentes formas histó-ricas e sobreviveu a preconceitos e perseguições. No mun-do globalizado do início do século XXI, poderá soar estranho que há cerca de um século, em plena belle époque, na era clássica do imperialismo, tenha corrido riscos de desapare-cimento. Hoje, a capoeira prospera mundo afora. A tradição e a especifi cidade próprias da capoeira, contudo, devem ser respeitadas e, nesse sentido, deve-se dar especial atenção à preservação dos vários toques tradicionais de berimbau, que, em última análise, constituem o mais forte vínculo com a tradição dos tempos posteriores às maltas.

Guilherme Frazão Conduru. Diplomata de carreira e capoeirista, foi aluno, no Rio de Janeiro, dos Mestres Sorriso e Garrincha, ambos do Grupo Senzala, criado em 1966, no Rio de Janeiro.

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A repressão à capoeira

NÃO SE SABE PRECISAR AO CERTO QUANDO COMEÇOU ESSA HISTÓRIA DE REPRESSÃO À CAPOEI-

RA. NESTE ARTIGO, PARA ABORDAR O ASSUNTO, VAMOS COMEÇAR PELO SÉCULO XIX, MAIS PRECI-

SAMENTE A PARTIR DO SEU INÍCIO, QUANDO SE INTENSIFICA NO BRASIL O CONTROLE SOBRE OS

BATUQUES NEGROS, NO MOMENTO EM QUE A SOCIEDADE ESCRAVOCRATA SOBRE ELES SE TOR-

NOU MAIS VIGILANTE.

Frederico José de Abreu

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A repressão à capoeira

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Nessa época, batuque era um termo genérico, com o qual se denominavam indistintamente manifestações ne-gras que se expressavam, quase sempre, mediante a união da percussão com a dança. O canto também entrava nessa combinação, fossem manifestações de natureza sagrada ou profana, as quais podiam acontecer em separado, uma de cada vez, ou em conjunto. Dessa forma, samba, candomblé, capoeira e outras danças e folguedos negros, apesar de dis-tintos entre si, podiam ser todos denominados batuque.

Parte signifi cativa das observações históricas que obti-vemos sobre o Brasil oitocentista deve-se aos olhares e às impressões dos visitantes estrangeiros, os quais produziram documentos essenciais para identifi car características con-cernentes aos usos e costumes dos negros, fossem eles escravos, livres ou libertos, africanos ou crioulos (negros nas-cidos no Brasil). Assemelhar o Brasil à África era uma consta-tação muito comum entre os estrangeiros, principalmente quando seus olhares recaíam sobre o cenário de cidades como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, pertencentes, pela ordem, às províncias da Bahia, Pernambuco e Rio de Janei-ro. À época, três cidades portuárias, de vida movimentada, e incrementadas pelo tráfi co de escravos, até a completa extinção deste em 1871. Nelas, predominava a população negra, indispensável para o funcionamento da dinâmica da vida urbana e principal responsável pelos movimentos das ruas. Por essas condições, essas cidades se transformaram em campos férteis para os batuques.

Salvador, Recife e Rio de Janeiro – até onde as pesquisas his-tóricas alcançaram – principais núcleos de formação e difusão da capoeira, foram responsáveis pela migração dessa manifes-tação para outros locais do Brasil, do século XIX até meados do XX. Fenômeno que pode ter ocorrido pela via do tráfi co interpro-vincial e pelo processo migratório interno. Nessas cidades, a ca-poeira – incrustrada nos atos cotidianos – identifi cava-se como uso e costume dos negros, presente mais constantemente nos mundos do trabalho, da desordem social (caso de polícia) e da festa negra. Tais notícias, encontradas nos relatos dos estrangei-ros, provêm também de fontes como: a oralidade, os jornais da época, a crônica policial e a documentação judicial, dentre ou-tras. A partir desses relatos, pode-se perceber que a repressão à sua prática foi uma das maiores adversidades enfrentadas pela capoeira em sua história.

Na primeira metade do século XIX, o Brasil vivenciou um contexto sociopolítico agitado e permeado por movimen-tos, confl itos e guerras pela independência, os quais culmi-naram na libertação da nação brasileira do jugo de Portugal, em 1822. Na seqüência, aconteceram revoltas populares, tais como a Sabinada (1831-1833), na província da Bahia, a Caba-nagem (1835-1840), na província do Grão-Pará e a Balaiada (1838-1841), na província do Maranhão. Revoltas cronologica-mente antecedidas pela Conspiração dos Alfaiates (1798), movi-mento rebelde defl agrado em Salvador, que incorporou anseios de liberdade de uma classe popular e socialmente subalterna (os escravos), atraída para dela participar com aspirações de ex-

Fenômeno que pode ter ocorrido pela via do tráfi co interprovincial e pelo processo migratório interno. Nessas cidades, a capoeira – incrustrada nos atos cotidianos – identifi cava-se como uso e costume dos negros, presente mais constantemente nos mundos do trabalho, da desordem social (caso de polícia) e da festa negra.

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tinção da escravatura. Para agravar esse quadro de instabilidade política, contribuíram os muitos levantes e insurreições escravas que aconteceram na primeira metade do século XIX, tanto nas zonas rurais como nas áreas urbanas do País, principalmente em Salvador, entre 1807 e 1835. A exigüidade do tempo e a contigüidade geográfi ca desses acontecimentos na capital baiana e adjacências sugeriam a existência, nessa província, de um vigoroso cotidiano de rebeldia escrava.

A vigência de um clima de conspiração negra – evidente-mente – pôs em alerta as autoridades e a população de Sal-vador, receosa da animosidade reinante, quase sempre de-fi nida de forma clara ou subjacente em termos raciais. Para combater as rebeliões escravas, desencadeou-se um esforço no sentido de identifi car suas causas; dentre elas estavam os batuques negros. Proibir as manifestações que compunham os batuques não era uma questão de fácil resolução, como comprovava a renitente desobediência por parte dos negros em usarem atabaques e também marimbas dentro dos mu-ros e praias da cidade. Esses instrumentos foram proibidos por posturas municipais, datadas de 1716, que, por força de lei, pretenderam disciplinar a vida do negro nas ruas da ci-dade. Os atabaques e marimbas eram instrumentos percus-

sivos provocadores de sons e atos para os batuques. Uma situação limite colocava-se perante a sociedade escravocra-ta, dependente do escravo para sobreviver: como poderia tal sociedade proibir os escravos de praticarem manifestações para eles indispensáveis, que impulsionavam seu viver e que a essa sociedade provocava tantos incômodos e temores?

Que incômodos e temores eram esses? Poderiam ser captados nas queixas da população em jornais da épo-ca: “multidões de negros de um e outro sexo, das diversas nações africanas, falavam, dançavam e cantavam canções gentílicas ao toque de muitos horrorosos atabaques”; “diver-timentos estrondosos”; “sons e vozes dissonantes”; “bárba-ros costumes”; “convulsão inebriante e confusão”; “brigas”; “cenas indecentes e imorais”; ou “danças horrorosas”… As queixas não se limitavam a desqualifi car as manifestações culturais dos negros do ponto de vista da civilização. Acusa-vam, ainda, inversões da ordem social: ao ter lugar a prática dos batuques “onde e quando os escravos queriam”, esses negros exerciam – mesmo que precária e momentanea-mente – autonomia sobre os espaços ao tempo em que es-ses batuques aconteciam. Como era de costume e quando permitido, as manifestações negras, mesmo às margens do

BatuqueJ.M. Rugendas (1802 – 1858)

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centro dos acontecimentos, faziam-se presentes nas festas de rua do calendário católico. De acordo com as queixas, nessas ocasiões “os toques e cantos dos negros predomina-vam não se escutando nenhum outro”.

Nos meandros dessas queixas podia-se perceber a impor-tância visceral do batuque para a vida dos escravos e a altivez que essa manifestação lhes proporcionava. Isso os viajantes estrangeiros observaram e noticiaram. Cronistas que eram, admiravam-se com a animação e a disposição com que os escravos aos batuques se entregavam, após uma pesada jor-nada de trabalho forçado. Não acreditavam que estivessem diante de escravos. De acordo com os seus relatos, pela dispo-sição dos negros para os batuques, esses podiam ser interpre-tados como fontes de prazer, completando-se como função regeneradora do corpo, maltratado pela dureza da jornada do trabalho escravo. Diante dessa circunstância, Rugendas, um desses cronistas viajantes, admirou-se e sentenciou: “não con-seguimos nos persuadir de que são escravos que temos dian-te dos olhos”. A partir desse ponto de vista, pode-se afi rmar que o batuque (capoeira, samba, candomblé e outros folgue-dos negros) proporcionava ocasiões para o escravo recuperar sua humanidade brutalizada pela escravidão.

Havia, contudo, na elite, quem defendesse os batuques. Havia quem os interpretasse como “folguedos honestos e inocentes”, a exemplo de alguns eclesiásticos que argumen-tavam serem os escravos também fi lhos de Deus e, por as-sim ser, também teriam direito à folga e ao gozo. Até mesmo alguns senhores viam nos batuques uma oportunidade para os escravos esquecerem-se, por alguns momentos, da sua triste condição: o prazer para esconder a dor.

Aquela situação limite a que se fez referência esboçava-se como um dilema pertinente a toda a sociedade: grave, consi-derando o contexto histórico da época. Pela existência de um cotidiano de rebeldia negra, o sistema escravocrata em vigor tentava evitar todas as atividades que pudessem provocar ajuntamentos de negros e que acontecessem fora da órbita e da vigilância dos senhores e da polícia. Nesse caso, enqua-dravam-se os batuques, pois, para se realizarem, provocavam ajuntamentos de negros, vistos pelas autoridades como sus-peitos de manobras conspiratórias e fontes alimentadoras das revoltas escravas que estavam tendo lugar na Bahia à época.

Opiniões sobre o batuque emitiam as autoridades go-vernamentais, eclesiásticas, policiais, senhores de escravos, parlamentares e pessoas do povo. Pensar, opinar e infl uir na decisão de reprimir ou permitir a sua prática todos podiam. Porém, a decisão de fazer isso, considerando a gravidade da situação exposta nas queixas e ao se associar os batuques ao cotidiano da rebeldia negra, cabia ao Governo. Até porque, desde a criação do Calabouço, em 1767, local público de castigos dos escravos, os senhores não eram mais estimu-lados a castigar os seus escravos privadamente e o controle dos negros na rua não era mais da alçada dos seus proprietá-rios, e, sim, do poder público, do Estado e do aparelho policial a ele subordinado.

Havia, contudo, na elite, quem defendesse os batuques. Havia quem os interpretasse como “folguedos honestos e inocentes”, a exemplo de alguns eclesiásticos que argumentavam serem os escravos também fi lhos de Deus e, por assim ser, também teriam direito à folga e ao gozo.

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No plano do poder municipal, responsável pelas posturas municipais (leis que procuravam disciplinar as pessoas e as ati-vidades exercidas nas ruas), não se conseguia interromper a ação dos batuques nem bloquear a iniciativa dos negros em realizá-los. Na verdade, com os recursos de controle vigentes, as autoridades não tinham mais domínio sobre a situação. Proi-bir a prática daquelas manifestações ou prender os batuqueiros (seus participantes) não era mais sufi ciente, não cessava a cau-sa. Era necessário articular uma nova política de repressão, que afastasse os temores da população, norteasse as ações policiais e efetivasse posturas municipais específi cas de repressão.

Colocado nesses termos, o primeiro a enfrentar a situa-ção foi o Conde da Ponte, governador da Bahia entre 1804 e 1808. Sua opção foi por uma política de combate sem tréguas aos batuques, recomendando, inclusive, ações vio-lentas por parte da polícia. A fi nalidade era radical: extinguir os batuques. Essa era a única forma, segundo ele, de sanar a questão: subjugar os batuqueiros e evitar oportunidades que favorecessem ações conspiratórias dos escravos. Medidas tomadas em vão, pois os batuques prosseguiram como se fossem incontroláveis, assim como inevitáveis continuaram sendo as perplexidades e reclamações dos que se achavam por eles perturbados. As rebeliões escravas prosseguiram enquanto o Conde da Ponte governou a Bahia.

Em seguida, de 1808 a 1818, a Bahia foi governada pelo Conde dos Arcos, que procurou colocar em ação uma polí-

tica mais branda em comparação com a do seu antecessor, recomendando à polícia maior moderação na repressão. Sua política oscilava entre o permitir e o reprimir os batuques, na medida em que tentava conciliar duas razões inversas: reprimi-los, em função do conteúdo das queixas advindas dos estratos socialmente mais infl uentes da população; ou permiti-los, con-siderando as recomendações dos eclesiásticos e de alguns senhores de escravos. Os termos dessa conciliação se expli-citam nas medidas tomadas pelo governador no sentido de controlar aquela prática dos negros, determinando os locais e as oportunidades para acontecerem. Não mais poderiam ser realizadas a qualquer hora e lugar, como alegavam as velhas queixas. Em compensação, também estariam assegurados os momentos de lazer e festa tão necessários aos escravos, como a qualquer ser humano, de acordo com as solicitações de religiosos e senhores. Tudo, porém, de forma controlada.

Quanto ao alerta à condição do batuque como fonte alimentadora das revoltas escravas, o Conde procurava ate-nuar esse receio, enfatizando serem os ajuntamentos dos negros oportunidades muito mais favoráveis para a geração de desentendimentos entre eles, movidos por diferenças ét-nicas – remontáveis à África e às rusgas provocadas pelas di-fi culdades existenciais dos negros no Brasil escravocrata. Na verdade, a política do Conde dos Arcos, quanto aos efeitos, igualou-se à do Conde da Ponte: os batuques continuaram perturbando o conforto físico e a paz de espírito da socie-

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Negros lutandoAugustus Earle, (1793 – 1838)

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dade escravocrata baiana. Naquele tempo, como o sistema escravocrata só podia funcionar dependente da exploração de trabalho do negro, para este, por sobrevivência, os ba-tuques continuaram indispensáveis. Prosseguiram como se fossem incontroláveis, assim como inevitáveis, as perplexi-dades e reclamações dos que se achavam por eles pertur-bados. Nem as reclamações dos jornais, nem as proibições impostas pelas posturas municipais, nem os estragos que as perseguições policiais lhes infl igiram, conseguiram interrom-per o curso da sua história embalada pela incrível força que têm as coisas quando elas precisam acontecer, como diria o compositor e cantor brasileiro Caetano Veloso.

Voltando à lista das queixas, vamos encontrar no meio delas o conceito de barbaridade atribuído aos batuques, pre-conceito amplamente absorvido e difundido pelas elites do-minantes durante todo o século XIX e boa parte do século XX, e que, na verdade, ainda não morreu de vez. Capoeira, samba, candomblé, para as elites, comprometiam o modelo civilizador que desejavam, por não estarem concernentes aos costumes e procedimentos públicos dos países por elas considerados mais civilizados (os europeus). Vale dizer que, em nome desse preconceito, forjaram-se argumentos tanto para afastar das zonas nobres da cidade a prática dessas manifestações, como para proibi-las de acontecer. Ficavam no desejo, sustentado por uma retórica vazia e alguma mentalidade progressista, pois o modelo civilizador das elites não se concretizava satisfatoria-mente, impedido por profundas causas socioeconômicas. Na verdade, pode-se afi rmar que o desenvolvimento econômico, a modernização e transformação urbana que se registravam nas principais cidades do Brasil, alinhavam-se com o que se tinha de mais atrasado para a época em termos do trabalho e sua organização: a escravidão, condição humana considerada, àquela altura do tempo (século XIX), uma barbaridade para um estrangeiro, a quem se pretendia bem impressionar, oferecen-do-lhe um modelo europeizado. A escravidão era sufi ciente para reverter essa expectativa.

Nessa exposição generalizada de combate ao batuque, feita até aqui, podem-se identifi car os elementos que norte-aram as ações repressivas às manifestações negras. Neces-sário, contudo, é dizer que cada uma dessas manifestações enfrentou contextos específi cos, como também particulares foram as ações de resistência vivenciadas pelos praticantes de cada uma delas. Isso fez com que cada qual, apesar do signifi cativo número dos elementos comuns que possuíam, tivesse uma história própria à semelhança da capoeira. So-bre essa manifestação encontram-se, desde antes do século XIX, notícias da sua presença no Brasil. Desde então, tem-se também notícias sobre a repressão aos capoeiras, fator tão implícito à antigüidade da capoeira que a história desse tem-po, para ser pesquisada, estudada e contada, tem entre suas principais fontes a crônica e a documentação policial.

Essas fontes devem ser analisadas com cuidado para delas se eliminar o jargão policial, os preconceitos contidos na narrativa, a abordagem viciada, que podem contaminar a

A repressão à capoeira teve diversas fases, desde a simples proibição, passando pela aplicação dos açoites até ser tratada como uma questão de Estado pelo regime republicano, que a enquadrou como crime no Código Penal da República em 1890.

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visão histórica sobre os capoeiras de antigamente. Tomadas essas precauções, pode-se, por meio desses documentos, perceber dos capoeiras os anseios, os ritos, os modos de comportamento social e hábitos, as maneiras como se tra-tavam, as gírias, a geografi a urbana por eles permeada, as ar-mas utilizadas, dados biográfi cos, dados sobre a cor, a etnia, o vestuário, a ocupação, a profi ssão, os rituais de confl itos entre eles e entre eles e a polícia, e as táticas e os momentos oportunos para expressarem sua arte.

A repressão à capoeira teve diversas fases, desde a sim-ples proibição, passando pela aplicação dos açoites até ser tratada como uma questão de Estado pelo regime republica-no, que a enquadrou como crime no Código Penal da Repú-blica em 1890. Antes de chegar a esse ponto, antecederam-se muitos confl itos entre os capoeiristas e a polícia. Confl itos agravados de tal ordem que poderemos defi nir esse período (compreendido entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte) como tumultuoso, tendo como cenário principalmente as cidades do Rio de Janeiro, Recife e Salvador, pelas razões já explicadas.

As tradições da capoeira nessas cidades eram muito pa-recidas não só na forma de se expressarem, mas também na equivalência do comportamento social dos seus praticantes. Os capoeiras dessas cidades, geralmente, eram trabalhadores de rua (carregadores, carroceiros, vendedores ambulantes, fei-rantes, serviçais de limpeza) ou ligados à zona portuária (esti-vadores, trapicheiros e remadores). Cabe salientar que, dentre as ocupações desses capoeiras, se incluíam algumas conside-radas como próprias de vadios e vagabundos, como pescado-res, meninos de recado e biscateiros, dentre outras. Sabe-se também da predileção dedicada aos ambientes festivos. Con-traditoriamente, até para muitos daqueles que tinham receio da presença dos capoeiras nas festas populares, seu compa-recimento era considerado essencial para a animação da par-te profana das festas, juntamente com o pessoal do samba, como acontecia na Bahia e no Rio de Janeiro. Mesmo quando eram acusados pelos tumultos provocados nessas festas.

Comum a todas essas cidades foi o processo repressivo, muito embora tivesse variado em grau de um para outro lo-cal, tendo sido mais veemente no Rio de Janeiro. A repressão se deu por meio da proibição da prática da capoeira, por pos-turas municipais, por perseguições e prisões, muitas delas ar-bitrárias, pelo abuso dos castigos corporais e pelos trabalhos forçados e deportações. Fez parte da repressão, ainda, o re-crutamento forçado para o Exército e a Marinha, práticas re-montáveis aos tempos coloniais brasileiros quando ainda não havia forças armadas profi ssionalizadas e o recrutamento se dava na ruas e tinha como foco os considerados malandros, vadios e criminosos. Além do mais, nesse período, o Exérci-to e a Marinha confi guraram-se como casas de correção de menores, abastecidas pelo recrutamento inclusive de negros escravos fugidos que, com outros nomes, poderiam, então, ingressar nas Forças Armadas. É indispensável registrar que a campanha governamental visava à formação do contingen-

te de “Voluntários da Pátria”, do qual fi zeram parte capoeiras em defesa do Brasil na Guerra do Paraguai (1864-1870).

É necessário dizer que a política e as ações de repressão à capoeira se sustentavam num estereótipo formulado pela po-lícia, que considerava os capoeiras como desordeiros, valen-tões, vadios e malandros. Tipifi cação essa na qual certamente não se enquadravam todos os capoeiras e que não era exten-siva aos praticantes não negros, dentre esses aristocratas, poli-ciais, membros da elite, estudantes etc. Nesse bloco devem-se incluir jovens que se rebelaram contra algum autoritarismo fa-miliar e educacional. Eles escolhiam a rua como ambiente de liberdade e se entregavam à prática da capoeira como forma de divertimento e um recurso de luta que lhes serviam para se situarem e se afi rmarem no espaço da rua.

Deve-se dizer que no seio da elite em que se encontra-vam praticantes de capoeira surgiu e tomou corpo a idéia de que a capoeira era uma ginástica saudável e uma luta efi ciente e que os elementos perniciosos que lhe eram im-putados seriam provenientes dos seus praticantes marginali-zados (negros, malandros, vagabundos, proletários etc.).

No Rio de Janeiro, em Recife e em Salvador, como reação à repressão, os capoeiristas agiram colocando em ação táticas de resistência, delineadas à base de despistes e simulações para enganar a polícia. Procuravam praticar a capoeira em lu-gares periféricos, ou nos principais bairros da cidade, quando e onde a vigilância policial era menos assídua. Essas táticas eram bem ao uso dos capoeiras baianos de antigamente, que também incluíram entre suas iniciativas de resistência a ne-gociação com a polícia, conseguindo licença para a vadiação (sinônimo de capoeira). No plano da resistência, certamente não faltaram confl itos entre os capoeiristas e as forças policiais, cujos combates às vezes se decidiam em favor dos primeiros, que tinham como trunfo maior conhecimento da geografi a das ruas e superioridade nos combates corpo-a-corpo. A his-tória da repressão também enriqueceu o imaginário popular com narrativas e lendas que atribuíam aos capoeiras poderes sobrenaturais, como seres humanos capazes de se transfor-marem em paus, plantas e animais quando perseguidos.

Os tempos tumultuosos da capoeira, como revelam os dados históricos, foram mais freqüentes e intensos na cidade do Rio de Janeiro, cidade na qual os capoeiras, tiveram mais infl uência e participação na vida cotidiana do que em qual-quer outro local no século XIX. O noticiário dos jornais da épo-ca dão conta disso ao narrarem as ações das maltas (grupos de capoeira adversários entre si) em confl ito com elas próprias e a policia, para demarcarem geografi camente parte da cida-de, com o fi m de exercerem o domínio e o poder paralelo. As notícias desses jornais acusam a veemente participação dos capoeiras do Rio em outros aspectos da vida da cidade, como na vida política, com sérios envolvimentos em eventos como a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da Repú-blica (1889). Foi muito por conta do comportamento social dos capoeiras no Rio de Janeiro que se justifi cou a inclusão da capoeira como crime no Código Penal da República.

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Ao enquadramento da capoeira com crime no Código Penal, seguiram-se outras medidas de ordem policial concre-tizadas na prisão dos principais capoeiras do Rio e sua ime-diata deportação para a ilha de Fernando de Noronha, que funcionava como uma colônia penal. Essas ações repressivas foram determinantes para que a tradição da capoeira cario-ca perdesse força de continuidade e praticamente desapa-recesse. Alguns membros que escaparam da repressão en-contraram sobrevida no meio da malandragem boêmia – no samba e no carnaval. Em Pernambuco, por razões ainda não bem estudadas, a capoeira no mesmo período entra em de-cadência e, como manifestação, encontra salvaguarda, mol-dando os passos vigorosos do frevo, manifestação cultural pernambucana.

Enquanto isso, a tradição baiana ganha maior vitalida-de, mesmo tendo experimentado, ao longo do século XIX, momentos de repressão e sendo ações dos seus capoeiras interpretadas como equivalentes às do Rio de Janeiro. Mas, historicamente, os capoeiras baianos surpreenderam com outras ações diretamente dirigidas para a preservação e con-tinuação da capoeira como uma manifestação artística, um divertimento, uma oportunidade para vadiar (folgar, brincar, divertir-se), mesmo sem eliminar suas possibilidades como defesa pessoal. Assim, eles desenvolveram relações de afe-tividade e procuraram afi rmá-la socialmente, usando como um dos instrumentos para isso fazê-la presente no calen-dário das festas populares da Bahia e transformando-a num divertimento ao agrado do povo baiano.

A responsabilidade por essas ações pertence a uma ge-ração de mestres que, apesar de ter permanecido pratica-mente anônima, foi responsável pela formação, a partir dos anos 30, de mestres na arte de civilizar. Eles vão modifi car os modos e maneiras de comportamento dos capoeiras: refi nar sua forma de jogar; acentuar os aspectos socializadores da prática, historicamente inerentes a essa manifestação, man-tidos mesmo quando vigoraram os momentos conturbados; atribuir-lhe valores e efeitos socioeducativos; e fazer com que a capoeira se destacasse como um símbolo de identidade nacional. Dessa forma, estavam estabelecidas as bases para transformar a criminalização da capoeira numa incongruên-cia do Código Penal. Um nome é destacado como ícone nes-se processo de virada histórica da capoeira, Mestre Bimba, o primeiro a exercê-la como um ofício. Aquele que garantiu pela via ofi cial o direito de ensiná-la, um precursor das lições que fariam com que a “vingança histórica” da capoeira se realizasse: ser hoje solicitada para solucionar mazelas sociais das quais no passado era tida como causadora.

Frederico José de Abreu. Economista. É membro-funda-dor da Academia de João Pequeno de Pastinha, da Fundação Mestre Bimba e Instituto Jair Moura. É autor dos livros “Bimba é Bamba: a capoeira no ringue”; “O Barracão do Mestre Wal-demar”; “Capoeiras: Bahia século XIX.”

Um nome é destacado como ícone nesse processo de virada histórica da capoeira, Mestre Bimba, o primeiro a exercê-la como um ofício. Aquele que garantiu pela via ofi cial o direito de ensiná-la, um precursor das lições que fariam com que a “vingança histórica” da capoeira se realizasse: ser hoje solicitada para solucionar mazelas sociais das quais no passado era tida como causadora.

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O CAPOEIRA(Oswald de Andrade, 1890-1954)

– Qué apanhá sordado?– O quê?– Qué apanhá?Pernas e cabeças na calçada

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O CAPOEIRA(Oswald de Andrade, 1890-1954)

– Qué apanhá sordado?– O quê?– Qué apanhá?Pernas e cabeças na calçada

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A Guarda Negra:a capoeira no palco da política

UM DOS FENÔMENOS MAIS COMENTADOS – E MENOS ESTUDADOS – DA HISTÓRIA DA ABOLIÇÃO

DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL, AO FINAL DO SÉCULO XIX, FOI A CHAMADA GUARDA NEGRA. A IMAGEM

POPULAR QUE SOBREVIVEU DESSE EPISÓDIO É A DE GRUPOS DE EX-ESCRAVOS QUE, AGRADECIDOS

PELO DECRETO QUE PÔS FIM À ESCRAVIDÃO NO IMPÉRIO DO BRASIL, ASSINADO PELA REGENTE DO

TRONO, A PRINCESA ISABEL, SE MOBILIZARAM CONTRA OS ADVERSÁRIOS DO REGIME MONÁRQUI-

CO, IMPUTANDO A ESTES A VONTADE DE DERRUBAR A COROA, COMO REFLEXO DO INCONFORMIS-

MO COM A LEI ÁUREA.

Carlos Eugênio Líbano Soares

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A Guarda Negra:a capoeira no palco da política

Esses negros estariam movidos por sentimentos de sub-serviência, introjetados durante séculos de escravidão, por isso não tinham capacidade de perceber que a oposição à Monar-quia era bem anterior à Lei Áurea e que o republicanismo fora alimentado por longos anos também pela perpetuação do re-gime do cativeiro, obra da Monarquia em toda sua história.

Dominados por sentimentos ultrapassados, pré-mo-dernos, primitivos (na linguagem da época), esses negros estavam condenados pela modernidade. Seu mundo de-sapareceria quando o regime monárquico fosse extinto, no caso após o 15 de novembro de 1889, quando a Monar-quia caiu como um castelo de cartas. Esse era o sentimen-to de grande parte da intelectualidade brasileira da virada do século XX.

Outra visão emana dos artigos do jornal Cidade do Rio, dirigido pelo jornalista negro José do Patrocínio. Entusiasta da Abolição, via a Guarda Negra, nos seus primeiros meses, como a encarnação da vontade política da gente negra re-cém-arrancada do cativeiro. Após séculos de servidão, essa população podia, pela primeira vez, expressar-se politica-mente em praça pública, e, logicamente, sua mensagem era de apoio à medida que a tinha tirado das senzalas, mesmo que manifesta no calor da hora do radicalismo político do contexto da Abolição, à sombra do ressentimento de cente-nas de fazendeiros, antigos pilares do Império, que perderam suas propriedades e não foram indenizados, e de republica-nos irados pela súbita popularidade alcançada pela monar-quia, na construção da imagem de “Isabel a Redentora”.3

Essas visões polarizadas foram tragadas pela avalanche política do Quinze de Novembro. A República colocou-se como uma pá de cal nesse aceso debate, que foi visto como parte de um passado já extinto, que tinha de ser jogado nos museus da memória, substituído pelas novas questões que o regime recém-implantado colocava na ordem do dia: cidada-nia, modernização política, emigração, federalismo...

A nova historiografi a brasileira, que veio à luz nos cente-nários da Abolição e da República, ao fi m da década de 1980, trouxe novas temáticas e novas evidências que a história ofi -cial não suspeitava. E por caminhos também inesperados.

A Guarda Negra foi um dos alvos dessa revisão da his-tória brasileira, que ainda não acabou. Antes que um fenô-meno apertado na estreita margem entre o 13 de maio de 1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda deita raízes mais profundas em outra manifestação da cultura brasileira, que, somente há poucos anos, começou a ter sua história retirada das sombras: a capoeira.

(1) A Lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888, extinguindo a escravidão no Brasil. (2) Para um retrato do sentimento anti-Guarda Negra latente na elite branca da época, ver os

artigos de Rui Barbosa escritos no jornal Diário de Notícias em 1889. BARBOSA, Rui. Campanhas Jornalísticas. Império (1869-1889. Obras Seletas, v. 6, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1956 (principalmente o artigo intitulado “A arvore da desordem” publicado em 18 de agosto de 1889), pp. 189-192.

(3) Para a construção da imagem da “Loura mãe dos brasileiros” ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira” in GOMES, Flávio dos Santos & CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase-cidadão: história e antropologias da pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.

Antes que um fenômeno apertado na estreita margem entre o 13 de maio de 1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda deita raízes mais profundas em outra manifestação da cultura brasileira, que, somente há poucos anos, começou a ter sua história retirada das sombras: a capoeira.

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Vista por décadas como manifestação trazida da África, desenvolvida pelos escravos nas senzalas dos primórdios da colônia e transplantada para o Quilombo dos Palmares até alçar vôo como marca da cultura negra, a capoeira lentamente passa a ser relida como criação da cultura escrava no Brasil, criada por africanos e crioulos (pretos nascidos no Brasil) no ambiente urbano, e que teve seu espaço de atuação nas vilas e cidades do último século da colonização portuguesa. De forma de resistência aos senhores e ao Estado escravista, passa a ser vista como instrumento de dissuasão dos confl itos internos dentro da própria camada escrava urbana. De brincadeira gerada em oposição ao trabalho servil e degradante (vadiagem), passa a ser vista como elemento indispensável no contro-le por escravos e negros libertos do ambiente de rua, um verdadeiro poder paralelo, em que vendedores ambulan-tes e negros de ganho (escravos que vendiam mercadoria ou serviços no espaço público) controlavam o comércio informal da cidade colonial.

Assim, a capoeira como tema histórico passou nos últi-mos anos por uma verdadeira metamorfose de signifi cados (se bem que não consensuais dentro da comunidade de pesquisadores). E a política foi uma das dimensões novas que se abriram nos últimos tempos.

Em meu trabalho4 esforço-me em mostrar o peso que a Guerra do Paraguai teve na transformação cultural operada na capoeira no fi nal do século XIX. Maior confl ito bélico do Brasil no século retrasado, com duração de cinco longos anos, essa guerra abriu caminho para transformações que acabaram levando ao colapso da ordem monárquica.

No fragor do combate, ela teve um impacto no imagi-nário da sociedade brasileira que perduraria por décadas. Para os pretos e pardos pobres, livres e escravos da cida-de do Rio de Janeiro, principais praticantes da capoeira na época, ela se corporifi cou nos batalhões recrutadores, que

(4) SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890, Rio de Janeiro: Ed. Access, 1994.

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vigiavam as ruas e invadiam as moradias coletivas em bus-ca de “voluntários” da pátria. Presos, enjaulados, amarrados, os negros capoeiras eram levados aos magotes a envergar as fardas do exército imperial nos campos do sul.

No combate corpo a corpo, os fuzis de pederneira, car-regados pela boca a cada tiro, eram de pouca valia após a primeira descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos nas ruas da distante cidade do Rio de Janeiro, eram a arma de que se valia o soldado negro ou mulato brasileiro, não ape-nas do Rio, mas também de Recife e Salvador. Nos campos da peleja, os capoeiras forjaram sua lenda.

A volta para casa foi recebida em triunfo. Saídos como marginais, obrigados a assentar praça nas fi leiras de um de-sacreditado exército, eles retornaram como heróis. Alguns cobertos de medalhas, muitos libertos da escravidão pelo “tributo de sangue” ao servir nas forças armadas (escravos eram alforriados antes de ingressarem no serviço militar). Desmobilizados, estavam de novo nas ruas, alguns querendo reaver os “territórios” perdidos após a remessa para o front.

Mas a elite política tinha outros planos. Impressionados pela agilidade dos capoeiras no combate, os antigos ofi ciais comissionados, agora membros da elite política da cidade do Rio de Janeiro, pleitearam nas sombras transformar os ex-combatentes em aliados políticos, capangas à disposi-ção das novas refregas do tempo de paz.

Assim, a capoeira entra no palco da política. Não a micropolítica dos escravos, como se viu nos cinqüenta anos do século XIX, mas a política dos salões, dos parti-dos Liberal e Conservador, das ante-salas do Parlamento, das eleições concorridas, dos votos cabalados, do regime parlamentarista.

Era a época da Flor da Gente, grupo de capoeira que dominava o bairro da Glória. Arregimentada por um impor-tante membro do Partido Conservador – Duque-Estrada Teixeira, de tradicional família política – ela entra nos em-bates da alta política na eleição de 1872. A golpes de na-valha, rasteira, rabos de arraia e cabeçadas, os capoeiras da Flor da Gente – veteranos de combates militares no Rio

Paraguai – varreram os eleitores liberais das urnas, e os candidatos opositores dos palanques.

A vitória de Duque-Estrada para a Câmara de Deputa-dos lançou um novo jargão na imprensa política da épo-

ca: a Flor da Gente. O apelido nasceu quando Duque-Estrada foi interpelado no Parlamento sobre de quem era a gente que recebeu ordem para atacar nas ruas candidatos e eleitores de oposição. Ele respondeu: “Da minha gente, da fl or da minha gente.” Esse apelido per-correria vinte anos da vida política da cidade do Rio.

Esses capoeiras não agiam somente a soldo, como denunciava a imprensa liberal da época. Eles eram

também mobilizados pela crise da escravi-dão, que era mundial. Nos Estados Unidos,

uma guerra civil tinha irrompido quando o presidente eleito Lincoln deixou claro

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seus planos emancipacionistas. A derrota dos confedera-dos deixou a elite brasileira sozinha no continente como mantenedora do regime do cativeiro nas Américas.

A vitória no Parlamento da Lei do Ventre Livre (1871), apoiada pelo Governo e pelo Partido Conservador, teve for-te impacto no imaginário da época. Essa lei decretava serem livres os fi lhos de escravos e, por essa razão, foi combatida por liberais e por facções conservadores temerosas do futuro da mão-de-obra escrava nas fazendas. O Imperador Pedro II, sua fi lha – a regente que assinou o decreto, pois o titular do trono estava enfermo – e a liderança do Partido Conservador passaram a gozar de alto prestígio junto à população negra do Rio de Janeiro.

Os capoeiras sorviam esse clima político, passando a agir como monarquistas empedernidos, açulados por políticos por suborno, cumplicidade e impunidade frente aos desmandos da justiça e da polícia dos brancos. Assim, forjou-se essa estra-nha aliança: nos dias ordinários, os capoeiras dominavam as ruas, intimidando rivais, achacando vendedores, protegendo escravos fugitivos, fazendo pequenos furtos, desafi ando a or-dem policial com suas maltas (quadrilhas), gozando de prote-ção de seus patronos políticos, para garantir sua escapada das celas em caso de algum policial desavisado tê-los prendido.

Nos dias de eleição eles se juntavam nas redondezas dos locais de voto – na época, invariavelmente igrejas – e ataca-vam eleitores de oposição (o voto era aberto) ou fraudavam as urnas fi ngindo ser eleitores ausentes (os populares fósforos), o que costumava romper em grossa pancadaria. Também com-pravam voto e atacavam urnas em que a vitória dos oposito-res era certa.

Essa fama política logo se alastrou para outros campos. O eixo da economia do café, por volta de 1870, tinha clara-mente se deslocado para São Paulo, deixando para a província fl uminense campos devastados e terra esgotada. Esses “no-vos ricos” estavam marginalizados do jogo político imperial, amplamente dominado pelas elites tradicionais do Sudeste e do Nordeste. As políticas emancipacionistas ameaçavam suas fazendas escravistas, alimentadas pelo tráfi co de escravos do Nordeste e do Norte.

Eles eram a alma do Partido Republicano. Fundado em 1870, era uma agremiação insignifi cante, mas que reunia membros renomados da elite intelectual. Seu jornal A Re-pública fazia constantes ataques ao governo conservador. É nesse contexto que temos que entender o primeiro confl ito envolvendo capoeiras e republicanos: a tentativa de “empas-telamento” do A República.

Em 28 de fevereiro de 1873, logo após a vitória de Duque-Estrada e de sua Flor, e após candentes denúncias da “promis-cuidade” entre políticos e capoeiras, o jornal é vítima de pe-dras, gritos, tentativa de arrombamento. Um “moleque” sobe na tabuleta do jornal e a pinta de preto. O Governo é acusado de cumplicidade.

Por quase toda a década de 1870, o condomínio entre políticos monarquistas e negros capoeiras deu as cartas na

Corte Imperial do Rio de Janeiro. Em 1878, a chegada ao poder dos liberais – depois de uma década de ostracismo – trouxe a primeira campanha policial contra os “capoeiras políticos”, como era denunciado na imprensa. Campanha que não deu em nada.

Então, o clima político que propiciou a Guarda Negra es-tava presente 15 anos antes. Dom Pedro II e sua herdeira do trono, Isabel, eram vistos como simpatizantes de causas abo-licionistas. Os políticos paulistas, que dominavam o Partido Republicano, eram conhecidos como irados senhores de es-cravos, que arrancavam crioulos de suas famílias no Nordes-te para serem castigados nas senzalas do Vale do Paraíba.

Essa visão não aparecia na época da Guarda por causa de conveniências políticas: para os defensores, era cons-trangedor fi liar-se a movimentos tidos pela imprensa po-lítica como autoritários e criminosos, como eram vistos os capoeiras da Flor da Gente da década de 1870. Para os que atacavam, lembrar-se dessa fase recente era escapar do contexto da Lei Áurea, que podia trazer sombrias lembran-ças do passado escravista de alguns políticos “liberais”.

Assim, ambos os formadores de opinião pública da época eram incapazes de compreender a raiz mais pro-funda que dera origem à Guarda Negra. O primeiro embate envolvendo-a foi o ataque ao comício de Silva Jardim, na Sociedade Francesa de Ginástica, na Rua da Travessa da Barreira, em 31 de dezembro de 1888. Silva Jardim percor-ria o País, fi nanciado pelos republicanos, aproveitando-se da súbita impopularidade da monarquia frente às classes proprietárias, revoltadas com a perda de seus investimen-tos “semoventes”.

Naquela noite, os membros da Guarda tentaram entrar à força no recinto onde Silva Jardim discursava. A seleta pla-téia de assistentes prontamente colocou-se para enfrentar

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A Guarda Negra:a capoeira no palco da política

a “corja de assassinos”. Cercados, eles sabiam que a saída seria uma autêntica pancadaria. E realmente foi. A polícia – cuja chefi a fi cava a alguns metros – foi totalmente omissa. Havia sérias suspeitas de que a cilada fora armada com co-nhecimento de altos funcionários do Governo. Mas o que poucos sabiam é que o rastilho de pólvora tinha sido aceso meses antes.

Em 12 de julho de 1888, um fato raro desponta nos anais da história da polícia carioca. Uma malta inteira de capoeiras foi presa de uma única vez. E não era uma malta qualquer. Era o grupo que dominava o Campo de Santana, grande área aberta no coração da cidade. Esse grupo era conhecido como Cadeira da Senhora, remetendo à ima-gem de Santa Ana, avó de Cristo, que aparecia no frontis-pício da Igreja de Santana, antes de ser derrubada para a construção da estação central da Estrada de Ferro Dom Pedro II (atual Central do Brasil).

Era raro nos informes de polícia a prisão de toda uma malta, até por conta da impunidade de que gozavam graças à ligação com políticos importantes da Corte. Eles foram fi -chados e os informes de jornais indicavam que seriam recru-tados para o Exército – como seus antecessores da década de 1860. Mas, estranhamente, foram todos soltos no dia se-guinte. Seus nomes aparecem nas fi chas de entrada da Casa de Detenção da Corte, o grande presídio da cidade.

Esses mesmos nomes aparecerão, em primeiro de janeiro de 1889, na imprensa – infelizmente as fi chas da Casa de Detenção dessa data foram perdidas para sempre – como asseclas do bando que cercou a Sociedade Fran-cesa no fatídico 31 de dezembro. Fica claro que os dois eventos estão relacionados, assim como a campanha de recrutamento da Guerra do Paraguai tem relação com a politização da capoeira na década de 1870.

O que une os dois eventos é o que a imprensa do período chamou de Partido Capoeira: uma forma de atu-ação política – antes que um grupo específi co – centra-da na aliança entre políticos conservadores e capoeiras egressos da Guerra do Paraguai que juntaram forças por canais subterrâneos, embora povoassem a imprensa do País por quase vinte anos. Esse Partido Capoeira expres-sava interesses imediatos de grupos urbanos margina-lizados e trabalhadores, o repúdio aos políticos mais aferrados ao sistema escravagista e, também, uma clara identidade racial.

Essa é outra dimensão da Guarda Negra, ainda não trabalhada pelos estudiosos modernos: ela é a primeira instituição que utiliza o termo negro no sentido positivo e político da palavra, e autono-meado. Em outras palavras, negro durante séculos foi palavra fortemente pejorativa, que remetia a escravo, fraqueza, incapa-cidade de luta, submissão. Africanos e crioulos ofendiam-se mutuamente no Brasil, chamando-se de negros. Esse

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uso tem relação com o sentido nefasto de “nigger” nos Es-tados Unidos, até pouco tempo um palavrão no seio do movimento negro (sic) americano.

A palavra passa a ter um sentido político, não por coin-cidência no momento histórico em que os crioulos se tor-nam maioria absoluta na comunidade escrava e de negros livres do País, fenômeno apontado desde o fi m do tráfi co atlântico de africanos em 1850. Esses crioulos criam novos sentidos políticos – diferentes dos sentidos étnicos impri-midos pelos africanos –, sentidos estes que se cristalizam na noção de raça negra.

Assim, os crioulos da Guarda Negra jogam frente à ra-cista sociedade brasileira da época um sentido novo para a palavra negro, que se expressa nos artigos do jornal Cidade do Rio, principalmente naqueles assinados por Clarindo de Almeida, o misterioso chefe da Guarda. Esses signifi cados escapavam aos autores da época e devem ser dimensiona-dos pelos estudiosos atuais como sinais diacríticos de uma nova linguagem política, racial, abrangente, que foi subita-mente calada.

O segundo confl ito entre Guarda Negra e republica-nos no Rio foi no dia 14 de julho de 1889, centenário da Tomada da Bastilha, data magna do republicanismo. Ao

anoitecer, um comício de republicanos desce a Rua do Ouvidor. No meio do caminho, um grupo da

Guarda Negra os espera. Como era previsível, tudo termina em grossa pancadaria. Mas, dessa vez, a polícia acudiu e os registros da Casa de Detenção foram preservados.

Alfredo Emygidio Prestello, português, 18 anos, marceneiro, morador na Rua

do Monte; Albino Loureiro de Carvalho, também português de Vila Real, 21

anos, morador na Travessa do Costa Velho; e Luiz Pinto Pereira, 21 anos, escrevente, de Minas Gerais, resi-dindo na Rua da Gamboa, todos brancos, estavam do lado dos re-publicanos. José Carlos Vieira, 22 anos, carpinteiro, de cor parda, morador da Rua Pedro de Alcân-tara e José Antônio, de cor preta, 20 anos, baiano, sem ocupação, eram exemplos dos que forma-

vam o outro lado.5

O confl ito ocupou todas as manchetes dos jornais da Corte. Estava fi cando claro para os setores médios da sociedade carioca o clima insuportável. Militares tam-

bém se inquietavam com a inação do Governo e o fracasso

da polícia em estabelecer ordem

na cidade. Tudo indicava que o gabinete João Alfredo era cúmplice em parte, daquela situação, e os republicanos, de algozes do regime, se tornaram vítimas de uma cons-piração urdida pelos poderosos. A Guarda Negra, de grupo simpático para alguns intelectuais, que ocupava espaço na imprensa representando essa parte normalmente excluída da sociedade (algo inédito para o Brasil naquele tempo) ga-nhava o estigma de grupo de baderneiros, desordeiros pa-gos pelo regime, “a canalha das ruas” que viviam em busca de violência e brigas. As mesmas acusações dos capoeiras da Flor da Gente em outros tempos.

Esse clima reforçava os pesados estereótipos raciais que circulavam contra a “raça negra”. Despreparados para o regime de plena liberdade política, inaugurado em 13 de maio de 1888, deveriam ser dirimidos pelas forças da or-dem policial ou reconduzidos ao trabalho no campo, sob vigilância do Estado. Os “13 de maio”, como eram chama-dos os libertos da Lei Áurea, muito pouco tempo depois da liberdade, já começavam a sentir o peso das novas limita-ções impostas pela sociedade “liberal” burguesa.

O clima de guerra racial instaurado na época da Guar-da Negra deve ter sido elemento importante no imagi-nário da alta ofi cialidade brasileira às vésperas do levante que pôs um fi m ao regime monárquico. Mas o colapso da Guarda começa antes. Em julho de 1889, no mesmo mês do confl ito da Rua do Ouvidor, o gabinete João Alfredo caía. Subia ao poder o Partido Liberal, na pessoa do Vis-conde de Ouro Preto.

O que parecia um novo começo arrastou a Monarquia ainda mais para seu melancólico fi m. O Visconde tinha uma péssima reputação. Em 1880, era ministro da Fazenda, e foi dele a péssima idéia de criar um novo imposto sobre as passagens de bonde. A taxação diminuiria ainda mais os parcos ganhos da população pobre urbana. O resultado foi a Revolta do Vintém, um movimento espontâneo da popu-lação, que derrubou bondes, ergueu barricadas na cidade, enfrentou tropas do Exército. Os jornalistas da oposição – republicanos e abolicionistas – entraram em êxtase com o movimento. Depois de muitos mortos e feridos, o Ministro pediu demissão e o imposto foi cancelado. A Revolta do Vintém foi o pano de fundo para as campanhas de rua abo-licionista e republicana.

Dias após a proclamação, o generalíssimo Deodoro convocava o advogado Sampaio Ferraz para assumir a che-fi a de polícia do Distrito Federal. Ele imediatamente colocou seus planos em ação.

Há tempos Sampaio acompanhava como promotor público a ação dos capoeiras. Sabia que o fim do regi-me e a instalação de um governo provisório ditatorial era o ambiente ideal para dar um fim às maltas – e, no processo, eliminar os últimos vestígios da Guarda Negra.

(5) Todas essas fi chas estão no Livro de Matrículas da Casa de Detenção nº 4321, 15/07/1889, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

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CapoeiraA guarda negra: a capoeira no palco da política

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A Guarda Negra:a capoeira no palco da política

Em poucos meses, centenas de capoeiras, em atividade ou “aposentados” (muito velhos para entrarem em ação), foram presos da forma mais arbitrária. Encerrados na prisão de San-ta Cruz, foram jogados em um vapor e mandados para Fer-nando de Noronha, a ilha prisão do governo federal.

Em menos de um ano, Sampaio tinha dado cabo dos úl-timos vestígios do Partido Capoeira e, de sobra, da Guarda Negra. Em outubro, era publicado o novo código criminal da República, tornando a capoeira crime. A maioria dos capo-eiras apodrecia no meio do Atlântico. O destino fi nal desses homens é um mistério. A Guarda Negra ainda passou cerca de um século esquecida pela historiografi a. Teorias que ar-gumentavam a “anomia social” dos negros como fi adores da sua incapacidade de enfrentarem a “nova” ordem burguesa não estimulavam estudos históricos. Precisamos esperar o fi m do regime militar de 1964 para revermos alguns fatos da historiografi a ofi cial e do tema da Guarda Negra.

Referências Bibliográfi cas

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Carlos Eugênio Líbano Soares. Bacharel e licenciado em História pela UFRJ. Mestre em História pela UNICAMP. Doutor em História pela UNICAMP. Professor Adjunto de História da UFBA

A Guarda Negra ainda passou cerca de um século esquecida pela historiografi a. Teorias que argumentavam a “anomia social” dos negros como fi adores da sua incapacidade de enfrentarem a “nova” ordem burguesa não estimulavam estudos históricos.

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Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

QUEM PASSAR POR CERTAS PRAÇAS PÚBLICAS DO BRASIL POSSIVELMENTE PODERÁ SE

DEPARAR COM UMA EXPRESSÃO CULTURAL DENOMINADA “CAPOEIRA”. TRATA-SE DE UM

FOLGUEDO GUERREIRO PRATICADO POR HOMENS E MULHERES DE TODAS AS IDADES E

PROPAGADA PELO MUNDO INTEIRO. A PRÁTICA RITUAL ACONTECE EM FORMA DE CÍRCULO

OU SEMICÍRCULO, NA CHAMADA “RODA DA CAPOEIRA”, ONDE DOIS PRATICANTES ENTRAM

EM COMBATE E REALIZAM MOVIMENTOS DE AGILIDADE DE RARA BELEZA. A LUTA É ACOMPANHADA

POR MÚSICA PRODUZIDA POR INSTRUMENTOS DE PERCUSSÃO COMO O BERIMBAU, ATABAQUE,

RECO-RECO, PANDEIROS, CAXIXIS, APITOS, TAMBORES E MALIMBAS. OS CANTOS ENTOADOS RE-

CEBEM O NOME DE TOADAS, QUADRAS, CORRIDOS E LADAINHAS. OS TOQUES DOS BERIMBAUS

SÃO VARIADOS E COMANDAM O RITMO DA RODA DA CAPOEIRA. SEUS PRATICANTES PODEM SER

ENCONTRADOS VESTINDO VARIADAS INDUMENTÁRIAS –FITAS, LENÇOS OU CORDÉIS – PARA DE-

MARCAR SEUS NÍVEIS DE DESENVOLVIMENTO NO JOGO DA CAPOEIRA. HÁ SEMPRE A PRESENÇA

DOS MESTRES QUE ENSINAM E ORIENTAM O ANDAMENTO DOS JOGOS.

Antonio Liberac Cardoso Simões Pires

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Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

Tratar a capoeira de uma forma geral é sempre difícil, pela diversidade histórica das formas de praticá-la e por ser cul-tuada por pessoas oriundas de variados grupos sociais. Em princípio, ela teria sido uma prática dos escravos africanos no Brasil, fruto das conexões culturais realizadas pelos represen-tantes das diversas etnias africanas que foram trazidas para cá, após capturas e escravização. Na documentação policial, datada dos anos 1820, relativa às prisões de escravos por praticarem capoeira na cidade do Rio de Janeiro, encontra-mos um grande número de etnias, como, por exemplo: An-gola, Congo, Moçambique, Cassange, entre outras.

No século XIX, a capoeira é praticada de forma siste-mática e massiva apenas no Rio de Janeiro, mas é reprimi-da pelas instituições policiais. Relatos sobre os capoeiras remontam ao fi nal do século XVIII, época do “major Vidi-gal”, um policial que fi cou famoso por usar a capoeira em suas contendas com escravos fugidos, feiticeiros e com os próprios capoeiras. Mas foi após a fundação da polícia civil e militar, que encontramos, com maior constância, registros dos capoeiras em fontes históricas. No início do século XIX, os capoeiras já eram bastante conhecidos, na cidade do Rio de Janeiro. No período de 1810 a 1821, en-tre as 4853 prisões efetivadas pela polícia nessa cidade, 438 (9%) foram por acusação de prática da capoeira. Nes-se período, os capoeiras formaram grupos e interferiram na relações de poder no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro, assim como nas relações entre escravos e se-nhores e entre os próprios escravos.

Os praticantes de capoeira desse período estavam or-ganizados por grupos, chamados de “maltas de capoeiras”, que tinham como referência os bairros da cidade. Esse modelo de organização foi relativamente hegemônico por todo o Brasil. Além da navalha eles utilizavam sovelões, ma-rimbas e paus como armas em suas contendas de grupo. Sua práticas não se limitaram aos procedimentos da luta, eles inventaram uma tradição em torno da capoeira que incluiu nomes e gritos de guerra de cada grupo.

Plácido de Abreu, um dos maiores praticantes amadores da época, explica que, na segunda metade do século XIX, os capoeiras estavam divididos em dois grandes grupos denomi-nados nações: “nagoa” e “guaiamu”. Na verdade, cada nação era formada por diversos grupos de capoeiras que se organi-zavam geralmente por bairros, ou seja, uma nação signifi cava a aliança entre um conjunto de grupos, representando certo domínio sobre áreas específi cas da cidade. A historiografi a ain-da não chegou a uma defi nição categórica dos termos que denominavam essas duas grandes nações. As informações de Plácido de Abreu apontam, entretanto, para diversas caracte-rísticas desses grupos e possuem uma importância singular, pois revelam a linguagem interna. A partir daí, temos um olhar de dentro, de um indivíduo que participou ativamente dessas organizações, tendo sido um “amador”.

(1) Amador era a denominação do praticante da capoeira que não pertencia a nenhuma malta.

Tratar a capoeira de uma forma geral é sempre difícil, pela diversidade histórica das formas de praticá-la e por ser cultuada por pessoas oriundas de variados grupos sociais.

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O autor deixou, sem dúvida, o relato mais fascinante sobre os capoeiras do século XIX. Escreveu, por exem-plo, que os nagoas e guaiamus estavam divididos em diversos “partidos”. Ele esclarece, ainda, que guaiamu é o capoeira que pertence aos partidos de São Francisco, situado no grande centro da cidade do Rio de Janeiro, Santa Rita, Marinha, Ouro Preto, São Domingos de Gus-mão, além de outros grupos menores. Os nagoas per-tenciam aos partidos de Santa Luzia, São José da Lapa, Santana, Moura, Bolinha de Prata, além de outros. Esses grupos, denominados de “partidos” por Plácido de Abreu, estavam divididos por freguesias e áreas específicas no interior das freguesias da cidade. Esses partidos também estavam demarcados a partir de símbolos, principalmen-te os que faziam referências às cores: o vermelho dos guaiamus e o branco dos nagoas. Segundo Plácido de Abreu, eles emitiam “gritos” de guerra: “É a Lapa. É a Es-pada. Quando é daquela província. É a senhora de cadei-ra. Quando é de Sant’ana. É velho carpinteiro. Quando é de São José. E assim por diante”.

Eles possuíam rituais públicos de confl ito entre os gru-pos “Quando, por exemplo, a banda de música saía do centro da cidade, isto é, a terra dos guaiamus, e dirige-se para os lados da Lapa, ou Cidade Nova, os capoeiras que pertencem àqueles partidos acompanham o batalhão, pre-venidos para o encontro com os nagoas, visto irem em terra alheia”.

Havia lugares próprios para treinamentos: “Os ensaios faziam-se regularmente nos domingos de manhã e consta-vam de exercícios de cabeça, pé e golpe de navalha e faca. Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores àqueles que começavam. A princípio os golpes eram ensaiados com armas de madeira e por fi m serviam-se de próprios ferros , acontecendo muitas vezes fi car ensangüentado o lugar dos exercícios”.

Foto: Acervo MRE

CapoeiraCapoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

As cantigas eram chamadas de toadas e fi zeram parte do jogo como elemento lúdico e de desafi o:

Os guaiamus cantavam:

Terezinha de JesusAbre a porta apaga luzQuero ver morrer nagoaA porta do Bom JesusOs nagoas respondiam:O castelo içou bandeiraSão Francisco repicouGuaiamu está reclamandoManoel preto já chegou.

Concomitantemente à repressão desencadeada pelo go-verno provisório republicano, surgiu um movimento valoriza-dor da capoeira que alcançou diversos grupos sociais. Alguns parlamentares se lançaram em defesa da capoeira, como o deputado Coelho Neto, que chegou a organizar um movimen-to de ofi cialização do ensino nas Forças Armadas. Isso ocorreu no mesmo momento em que centenas de capoeiras estavam sendo presos e processados pelo artigo 402. Nessa fala está o projeto de uma capoeira modelada pelas lutas marciais e a idéia de um esporte “genuinamente brasileiro”.

Como afi rmou Annibal Burlamaqui, conhecido por “Zuma”, um exímio capoeira da década de 20 do século XX:

No Brasil já se praticam, pode-se dizer, todos os sports: temos campeonato de remo, natação, foot-ball, basket-ball, boxe, luta romana, tênis atletismo em geral, etc. Atualmente até o pólo e golfe já são disputados em nossa terra. No entanto, é de lamentar que, até hoje, nada se tenha em prol do esporte nacional. Cogita-se de uma arte nacional, brasileira, da música brasilei-ra. Até mesmo da política brasileira.

Zuma foi um importante inventor dessa nova capoeira carioca e afi rmou que vários golpes foram retirados dos “batuques” e “sambas”, como no caso do “baú”. Trata-se de um golpe dado no adversário com a barriga, sendo próximo aos movimentos do “samba de umbigada”. O “baú” também era usado nos “batuques lisos”, segundo Zuma, os mais delicados. Já o “rapa” teria sido um golpe utilizado nos “batuques pesados”. Ele ainda explica que haviam os golpes de “tapeação”, que serviam apenas para enganar o adversário.

Zuma também apontou para algumas regras, exercícios e treinos para o ensino da capoeiragem: “Primeiramente idealizei um campo de luta onde, com espaço sufi ciente, se pudesse realizar a gimnastica brasileira”.

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Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

Um traço comum aos praticantes da capoeira no Brasil foi adquirir um apelido, costume que perdura até os dias de hoje.Ao mesmo tempo em que os praticantes no Rio de Janeiro projetavam uma capoeira vinculada às artes marciais, os praticantes baianos, que não obtiveram grande visibilidade histórica no século XIX, despontaram com dois projetos de capoeira distintos: a capoeira angola e a capoeira regional. Mestre Pastinha e Mestre Bimba foram os dois mais importantes praticantes desses estilos ou modelos de capoeira.

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O campo de luta, idealizado por Zuma, era composto de um círculo, desenhado em seu interior a letra “Z”. Para as competições, haveria um juiz para controlar o tempo de jogo e os movimentos dos jogadores. O tempo de luta seria de no máximo uma hora, dividida em confrontos de 3 minutos, com descansos de 2 minutos. A cada intervalo deveria haver a apresentação dos lutadores no meio do círculo, como uma forma de controle do jogo por parte do juiz. Em caso de empate, haveria ainda mais meia hora de tempo com intervalos maiores para descanso. Caso o jogo continuasse empatado, o juiz passaria para a etapa da “morte”, quando os jogadores lutariam até cair (nocau-te), sem intervalo para descanso. Os embates dar-se-iam em campos de futebol.

Apesar da forte repressão sobre os capoeiras desde os iní-cios do século XIX até sua criminalização em 1890, a resistên-cia foi maior e sua prática foi reinventada a partir dos anos 20 do século XX. Seus praticantes a colocaram em um patamar de símbolo nacional, construindo identidades vinculadas ao esporte, à dança, á música e às artes marciais, principalmente.

A prática da capoeira na Bahia do século XIX não so-freu uma forte repressão, como no Rio de Janeiro. A po-lícia baiana não processou ninguém pelo artigo 402 do código penal de 1890. Entretanto, houve várias prisões de capoeiras baianos no início do século XX. Os motivos dos processos eram por agressões físicas (artigo 303 do código penal de 1890). Os capoeiras baianos também seguiram o modelo de organização das maltas cariocas, ou seja, organização tendo como referência principal os bairros da cidade soteropolitana.

Os capoeiras baianos fi caram famosos e permanece-ram na memória coletiva dos praticantes da atualidade com maior ênfase do que os praticantes cariocas. Aqui citamos apenas alguns dos principais nomes da época: Pedro Mineiro, Antônio Boca de Porco, Bemenol, Chico Três Pedaços, Feliciano Bigode de Sêda e Besouro Man-gangá, este último o mais famoso entre eles. Um traço comum aos praticantes da capoeira no Brasil foi adquirir um apelido, costume que perdura até os dias de hoje.

Ao mesmo tempo em que os praticantes no Rio de Janei-ro projetavam uma capoeira vinculada às artes marciais, os praticantes baianos, que não obtiveram grande visibilidade histórica no século XIX, despontaram com dois projetos de capoeira distintos: a capoeira angola e a capoeira regional. Mestre Pastinha e Mestre Bimba foram os dois mais impor-tantes praticantes desses estilos ou modelos de capoeira. A capoeira regional e a capoeira angola apresentam a mesma estrutura, sendo semelhantes desde o treinamento em série até a utilização de indumentárias. Suas diferenças funda-mentais estão no estilo do jogo e na musicalidade.

A capoeira angola aparece na Bahia nos anos 20, principalmente com o grupo de Querido de Deus, um capoeira estivador no Cais de Ouro da velha Bahia. Mas foi Mestre Pastinha quem sistematizou a capoeira ango-

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Antonio Liberac Cardoso Simões Pires. Doutor em História Social pela Unicamp. Prof. Dr. Adjunto da Universi-dade Federal do Recôncavo da Bahia.Obras publicadas: “Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá, Três Personagens da Capoeira Baiana”. Tocantins/Goaiania, UFT/Grafset, 2001. “A capoeira na Bahia de Todos os San-tos”. Tocantins, UFT/Grafset, 2004. (org). “Sociabilidades Ne-gras”, Belo Horizonte, Ministério da Educação, Daliana, 2006.

Este artigo está baseado na obra do autor intitulada: Movi-mentos da cultura afro-brasileira, Campinas, tese de douto-rado, Departamento de História, Unicamp, 2001.

Foto: Acervo MRE

CapoeiraCapoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem

la em suas regras rituais, toques e ritmos de várias bele-zas e uniformizou os praticantes, dando um caráter tam-bém esportivo à prática cultural. Para Mestre Pastinha, a capoeira angola era parte da cultura nacional brasileira. Houve uma grande diversidade de praticantes da capo-eira angola, como o Mestre Valdemar da Paixão, Mestre Noronha, Mestre Tibúrcio, Mestre Canjiquinha, Mestre Caiçara, Mestre João Pequeno e Mestre João Grande, entre muitos outros. Mestre Bimba, por outro lado, am-pliou os golpes e ritmos, dando ênfase aos cantos e ao regramento dos instrumentos musicais em apenas dois pandeiros e um berimbau. Invenções que se tornaram hegemônicas em todo o Brasil.

A capoeira regional, por meio de seus praticantes baia-nos, rapidamente migrou para todo o Brasil. É raro encon-trarmos um município do Brasil onde não exista praticante da capoeira, a não ser em áreas rurais extremamente dis-tantes. Os praticantes da capoeira angola acompanharam

esse mesmo movimento de expansão da capoeira regional algumas décadas depois. Mas, quando o fi zeram, trouxeram novo impulso ao processo de cristalização da capoeira como cultura global. Atualmente, a capoeira é praticada em todos os continentes e, cada vez mais, torna-se importante prática cultural e símbolo de nacionalidade.

Com efeito, os olhares discriminatórios da sociedade e de suas instituições policiais sobre a capoeira perdem intensidade com o passar dos tempos. Em 1937, a capo-eira foi liberada, pois já se encontrava em outro degrau dos valores sociais. A cultura negra ganhava importância no processo de transformação dos símbolos étnicos em símbolos nacionais e o Brasil apresentava a capoeira ao mundo com um de seus tesouros mais raros e como fruto de um processo de sincretismo no qual os aportes das diversas etnias africanas, européias e indígenas se trans-formam em uma mesma coisa, ou seja, na capoeira, uma peculiaridade brasileira.

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A performance ritual da roda de capoeira angola

JOGO-DE-LUTA-DANÇADA, ARTE, RELIGIOSIDADE, TERAPIA, CULTURA, DIVERSÃO, ATO RITUAL, ENFIM,

“UMA MANEIRA DE SER”, SÃO ALGUMAS DAS VÁRIAS DEFINIÇÕES/QUALIDADES ATRIBUÍDAS À CA-

POEIRA. ESSA PRÁTICA CORPORAL VEM SE DISSEMINANDO, CADA VEZ MAIS, PELO MUNDO TODO E,

NESSE PROCESSO, TRANSMITE VALORES DIFERENTES A DEPENDER DO ESTILO DE CAPOEIRA QUE

SE ADOTA: CAPOEIRA ANGOLA, CAPOEIRA REGIONAL OU CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA.

Rosa Maria Araújo Simões

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A performance ritual da roda de capoeira angola

A capoeira originou-se no Brasil nos tempos da escra-vidão e, de diferentes formas, ela vem acompanhando o desenvolvimento de nossa sociedade. De acordo com Lima (1991: 10-12) há, basicamente, quatro etapas que caracterizam seu desenvolvimento histórico no País. No Império, antes da abolição dos escravos, o principal objeti-vo da capoeira era a defesa. Na República, além de defesa, a capoeira servia de canal aberto à manifestação cultural do povo negro; aqui, ela era denominada capoeira ango-la.1 Já no governo nacionalista de Getúlio Vargas, em me-ados de 1930, a capoeira começa a ser organizada como ginástica e, em 1972, ela passa a ser considerada esporte pelo Conselho Nacional de Desporto. Na década de 30 foi criado por Manuel dos Reis Machado (Mestre Bimba) um novo estilo de se jogar capoeira, a luta regional baiana, ou simplesmente nas palavras de hoje, capoeira regional. Na atualidade, devido a algumas inovações que Mestre Camisa do “ABADÁ Capoeira”2 fez na capoeira regional, cria-se a denominação “capoeira contemporânea” para classifi car o estilo de capoeira que a maioria dos capoeiristas está prati-cando. Levando em conta a existência de estilos diferentes de capoeira temos, conseqüentemente, diferentes tipos de roda3 e diferentes valores a serem transmitidos.

Neste artigo não pretendemos abordar tais diferenças, o que demandaria outra pesquisa. O objetivo aqui é ilus-trar o rigor subjacente à performance4 ritual e, para tanto, debruçaremo-nos especifi camente no estilo denominado capoeira angola, fazendo uma descrição da roda a partir do Centro Esportivo de Capoeira Angola – Academia de João Pequeno de Pastinha (CECA – AJPP)5, o qual é uma refe-rência da tradição da capoeira. Vale destacar que Mestre João Pequeno de Pastinha (nascido em 27 de dezembro de 1917), com seus 89 anos, é a própria “história viva” da capoeira; sua escola vem se disseminando pelo mundo a partir de alguns de seus discípulos, sendo o principal deles, nesse processo de disseminação, Mestre Pé de Chumbo.

Nos discursos dos mestres de angola, observamos, de uma maneira geral, a preocupação com a preservação da tradição e dos fundamentos da capoeira angola (dentre os quais podemos destacar, como exemplo, o respeito, a justiça, a humildade e a paciência). O auge desse esforço é expresso na organização do ritual (a roda de capoeira),

(1) Vale destacar que em 1922 foi fundado, pela nata da capoeiragem baiana o Centro de Capoeira Angola Conceição da Praia (Mestre Bola Sete, 2001: 29).

(2) Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte – Capoeira. (3) A roda é a forma pela qual a capoeira se expressa, é sua performance ritual. (4) Para Turner (1982: 13), “a antropologia da performance é uma parte essencial da antropologia

da experiência” e, neste sentido, “todo tipo de performance cultural, incluindo ritual, cerimônia, carnaval, teatro, é explanação e explicação da vida em si, como Dilthey freqüentemente argumentou”. E, a expressão, por sua vez, é por si só, “um processo pelo qual se compele a uma expressão que a completa”. Para melhor exemplifi car tal afi rmação, o autor recorre à etimologia da palavra performance que, segundo ele, “não tem nada a ver com “forma”, e sim, deriva do velho francês parfournir, “completar” ou “realizar, cumprir minuciosamente/rigorosamente/totalmente”. A performance é, portanto, a própria fi nalidade de uma experiência” [traduções minhas]. Para um maior aprofundamento teórico-metodológico vide a tese “Da inversão à re-inversão do olhar: ritual e performance na capoeira angola” (SIMÕES, 2006).

(5) A sede é localizada no Forte da Capoeira em Salvador (BA), mas há núcleos em São Paulo (Indaiatuba, Campinas, São Carlos, Presidente Prudente, Bauru, Sorocaba, Capital); Minas Gerais e em outros países, tais como México, Suécia, Portugal, Espanha, Dinamarca, Estados Unidos etc.

O auge desse esforço é expresso na organização do ritual (a roda de capoeira), no qual há um conjunto de conhecimento e de linguagens específi cas que caracterizam o trabalho de capoeira angola levado sério. Entremos na roda...

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no qual há um conjunto de conhecimento e de linguagens específi cas que caracterizam o trabalho de capoeira angola levado sério. Entremos na roda...

CONTEXTUALIZAÇÃO DA DESCRIÇÃO DA PERFOR-MANCE RITUAL NA CAPOEIRA ANGOLA.

(...) quase todo objeto usado, todo gesto realiza-do, todo canto ou prece, toda unidade de espa-ço e tempo representa, por convicção, alguma coisa diferente de si mesmo. É mais do que pa-rece ser e, freqüentemente, muito mais. (Turner, 1974: 29)

Uma das características da performance ritual é a polisse-mia/multivocalidade. Assim, tanto a decoração da academia – o que inclui espaço destinado para pendurar os berimbaus, pintura do arco-íris nas paredes (logotipo do CECA – AJPP), quadros com fotos de renomados mestres (os quais valori-zam a linhagem, contando, conseqüentemente, a história e a tradição da capoeira angola) – bem como o uso do uniforme, a movimentação corporal a musicalidade constituem as di-versas linguagens na capoeira angola.

Para preparar o espaço ritual, os alunos chegam um pouco antes do horário previsto para o início da roda, pro-videnciando a limpeza do chão e arrumação dos bancos, enquanto outros afi nam os instrumentos musicais; armam

os três berimbaus que vão ser usados durante a roda e também os de reserva, pois caso o arame de aço (a corda que é presa de uma extremidade à outra da verga6 dele) estoure durante a roda, o berimbau deverá ser imediata-mente substituído, sem interrupção do jogo.

A performance ritual da capoeira angola consiste na roda, que representa, por sua vez, “o mundo velho de Deus” (o universo). Para descrevê-la é necessário que seja feita uma abordagem que contemple desde a questão da musicalidade, passando pela questão da corporeidade, hie-rarquia, valores morais, entre outras. Considerando sempre os inúmeros pares de oposição expressos, tais como, mo-vimento de resistência versus movimento de submissão, jogo em cima e jogo embaixo, jogo de dentro e jogo de fora, alegria e dor (tristeza), luta e diversão, luta e opressão, lealdade e falsidade, mão versus pé7 etc, a roda apresenta um panorama do universo simbólico da capoeira.

Mestre Bola Sete afi rma que muitos mestres acreditam que a capoeira, uma criação dos africanos no Brasil, seja originária de antigos rituais africanos.

Câmara Cascudo (1967: 183) também relaciona a ca-poeira às danças africanas ao apontar o N´Golo (Dança da

(6) Verga é toda madeira que “dá o arco” para fazer berimbau. Exemplo de pau para fazer berimbau é a biriba, inclusive, cantada em versos: “Biriba é pau, é pau/Oi biriba é pau para fazer berimbau...” (domínio público).

(7) Num corrido de domínio público o puxador (o mestre geralmente, ou outros membros de posições hierárquicas próximas a ele) canta: “É a mão pelo pé” e o coro responde “O pé pela mão”; depois o puxador canta “É o pé pela mão” e o coro responde “A mão pelo pé”. Esses versos são várias vezes repetidos continuamente.

Foto

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Poloca na rodaNzinga Capoeira Angola

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A performance ritual da roda de capoeira angola

(8) Num depoimento de Mestre Pastinha, ele afi rmara: Deixo dois mestres de verdade e não professores de improviso, fazendo referência a Mestre João Pequeno e a Mestre João Grande (este último mora em Nova Iorque – E. U. A).

Zebra) como dança guerreira que faz parte de um rito de passagem, marcando a entrada da puberdade em que os garotos dançam/lutam como exibição às garotas.

Antes da década de 30, a capoeira não era praticada em recintos fechados (em academias), o que, provavelmente, indicaria a existência de ritual diferente ao que existe na atualidade, ou seja, ela existia em forma de luta pela liberda-de e sobrevivência e, quando tinha um caráter recreativo, era praticada nos engenhos, na beira do cais, nas ruas, em frente aos bares, feiras, nos morros e nos largos dos bairros. Quando observamos fotos desse período, vemos diferença no número de berimbaus, na disposição da bateria, na in-dumentária etc.

As academias de capoeira angola localizadas na cidade de Salvador (Bahia) são as que procuram manter a tradição que se tinha na década de 30, as quais seguem a linhagem de Mestre Pastinha. Os grupos de capoeira angola que se disseminaram pelo mundo afora também procuram seguir a linhagem de Mestre Pastinha, por isso o relato sobre a performance ritual é baseado no CECA – AJPP, uma vez que Mestre João Pequeno é considerado o principal discípulo de Mestre Pastinha incumbido pela transmissão dessa arte8.

A RODA DE CAPOEIRA ANGOLA.

(...) uma coisa é observar as pessoas executando gestos estilizados e cantando canções enigmá-ticas que fazem parte da prática dos rituais, e outra é tentar alcançar a adequada compreen-são do que os movimentos e as palavras signifi -cam para elas. (Turner, 1974: 20)

Na roda, as pessoas sentam-se, geralmente, dispostas em círculo, mas há também rodas em formato quadrangu-lar/retangular. Cada grupo, no espaço de sua academia, cos-tuma realizá-la, uma vez por semana, durante todo o ano. Há também um evento de capoeira angola, que congrega os diferentes grupos, a exemplo dos encontros nacionais e internacionais. No evento, que costumeiramente é patroci-nado e/ou organizado por um grupo específi co de capoeira angola, participam da roda diversos mestres e seus respecti-vos grupos/discípulos.

Na roda são estabelecidas comunicações entre os instru-mentos musicais que compõem a bateria, o canto (expres-so em forma de ladainha, quadras e corridos) e, sobretudo, entre os jogadores que, com seus corpos estabelecem uma comunicação não-verbal.

Na roda são estabelecidas comunicações entre os instrumentos musicais que compõem a bateria, o canto (expresso em forma de ladainha, quadras e corridos) e, sobretudo, entre os jogadores que, com seus corpos estabelecem uma comunicação não-verbal.

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(9) Quando os dois capoeiristas estão agachados (de cócoras) de frente para os três berimbaus.(10) Gunga também é sinônimo de berimbau.

INSTRUMENTOS MUSICAIS E A HIERARQUIA NA CAPOEIRA. Numa roda de capoeira angola o principal instrumento é o berimbau. Ele está no ápice da hierarquia. É no “pé-do-berimbau”9 que se delineia o jogo que acon-tecerá. Há três berimbaus: o berra-boi (alguns o chamam de gunga10), que tem o som mais grave e é considerado o mestre da roda - geralmente quem o toca é o mestre ou al-guém mais próximo do mestre, levando em consideração a hierarquia (com o sentido de mais experiência e sabedoria) na capoeira; o médio que tem o som médio e o viola com o som mais agudo.

Cada berimbau tem seu toque específi co a ser feito. O resultado desse conjunto sonoro resultará em cenas de movimentos corporais predominantemente lentos, mas os movimentos rápidos e com maior amplitude articular acontecerão nos devidos momentos, a depender do rit-mo ditado pelos berimbaus. O conjunto dos instrumentos utilizados na capoeira é denominado bateria e dela fazem parte, na seguinte ordem: os três berimbaus (gunga, médio, viola), dois pandeiros (às vezes apenas um), um agogô, um reco-reco e um atabaque.

Segue exemplo de disposição dos instrumentos na bateria:

Mestre João Pequeno com seu companheiro de jogo no pé do berimbau. Neste momento, Mestre João Peque-no estava cantando a ladainha de sua composição “Quan-do eu aqui cheguei” (que será transcrita mais à frente). A situação de cantar ladainha no “pé do berimbau” ge-ralmente se dá quando o próprio mestre será o jogador. Assim, a ladainha não foi cantada a partir da posição do mestre no gunga. Observar que estão tocando somente os três berimbaus e o pandeiro. A obediência à hierarquia

na bateria é mais rigorosa, geralmente, em relação a tais instrumentos que são tocados no momento da ladainha, tanto é que no gunga está o Mestre Moraes; no médio, Mestre Ciro; no viola Mestre Pé de Chumbo e, no pandei-ro, o Professor Topete, todos personalidades signifi cativas para o universo da capoeira.

Foto: Rosa Simões

CapoeiraA performance ritual da roda de capoeira Angola

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A performance ritual da roda de capoeira angola

O CANTO NA CAPOEIRA. Antes de se iniciar um primei-ro jogo, o mestre ou quem estiver no gunga, ou, ainda, um dos jogadores que estiver no pé-do-berimbau, canta uma ladainha. Para ilustrar como a roda é iniciada por Mestre João Pequeno de Pastinha, segue a transcrição da ladainha “Quando eu aqui cheguei” de sua composição.

Quando eu aqui cheguei

Iê11

01 - Quando eu aqui cheguei02- Quando eu aqui cheguei03 - a todos eu vim louvá,04 - vim louvá a Deus primero05 - e os moradô desse lugá06 - Agora eu tô cantando07 - cantando canto em louvô08 - Tô louvando a Jesus Cristo09 - Tô louvando a Jesus Cristo 10 - porque nos abençoô 11 - Tô louvando e tô rogando12 - ao pai que nos criou 13 - Abençoe esta cidade 14 - Abençoe esta cidade 15 - com todos seus moradores 16 - e na roda de capoeira 17 - abençoe os jogadores, camaradinho 18 - É mandinguêro (P)12

19 - Iê é mandinguêro, camará (C)13

20 - Oi io io é mandingá (P) 21 - Iê é mandingá, camará (C) 22 - Oi io io sabe joga (P) 23 - Iê sabe jogá, camará (C) 24 - Oi io io joga daqui prá lá (P) 25 - Iê jogue prá lá, camará (C) 26 - Oi io io joga aqui prá cá (P) 27 - Iê jogue prá cá, camará (C) 28 - Oi volta que mundo deu (P) 29 - Iê que o mundo deu,camará (C) 30 - Oi io io que o mundo dá (P) 31 - Iê, que o mundo dá, camará (C)

(11) “Iê” é cantado tanto para dar início à roda, quanto para dar início ao jogo entre mestres e/ou para reiniciar jogos interrompidos, geralmente, devido a condutas não aprovadas durante o jogo.

(12) Puxador (solista)(13) Coro.(14) Para dar suporte à análise, antecedendo cada verso, há um número correspondente a ele. E,

a partir da “chula”, há no fi nal de cada verso a letra (P) que signifi ca puxador e a letra (C), que signifi ca coro.

(15) Mestre João Pequeno viajou e viaja pelo mundo todo ensinando capoeira angola(16) Ou “Iê dá volta ao mundo”..

A ladainha (versos 1 ao 17)14 é um tipo de cantiga na qual tanto pode se contar uma história, como fazer uma oração, uma louvação, um desabafo, uma provocação, ou dar um aviso etc. Ela é cantada solo, ou seja, puxada pelo mestre.

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A ladainha (versos 1 ao 17)14 é um tipo de cantiga na qual tanto pode se contar uma história, como fazer uma oração, uma louvação, um desabafo, uma provocação, ou dar um aviso etc. Ela é cantada solo, ou seja, puxada pelo mestre. Na ladainha de Mestre João Pequeno são feitas, simultaneamente, uma oração e uma louvação que indicam Deus numa posição superior em relação aos “moradores” (sejam os da cidade onde ele mora ou das diversas cidades pelas quais ele passa)15.

Assim, ele louva a Deus primeiro, como uma maneira de pedir proteção dos perigos da vida e, depois, louva os capo-eiristas presentes na roda, como uma maneira de agradar o público e, conseqüentemente, criar um ambiente pacífi co, controlando, assim, a impetuosidade exarcebada. Nesse momento, os dois jogadores estão agachados ao pé do be-rimbau, ouvindo atentamente a mensagem (não há jogo). Os instrumentos que acompanham o canto são apenas os três berimbaus e o (s) pandeiro (s).

Logo em seguida à ladainha (geralmente após a palavra “camaradinha (o)” como consta no verso 17), vem a chu-la (versos 18 ao 31). Nela o “cantador” ou “puxador” (geral-mente o mestre) canta um verso e os presentes na roda respondem em coro, repetindo o verso puxado (cantado). Os jogadores também respondem ao coro e se apontam, reciprocamente, elevando ambas as mãos, enfatizando com tal gesto a afi rmação “é mandingueiro”, “sabe joga” etc.

Quando é cantado Oi volta que mundo deu16, os joga-dores estão autorizados para começar o jogo. Eles se ben-zem, fazendo o sinal da cruz e, depois, cumprimentam-se, pegando um na mão do outro.

A partir daí, começam a cantar os corridos, nos quais também há resposta de coro, mas, diferentemente da chu-la, os versos respondidos em forma de coro são constantes e específi cos a cada corrido. Nesse momento, geralmente os jogadores realizam, um de frente para o outro, uma que-da de rim, ambos na direção dos berimbaus, como uma maneira de cumprimentar os berimbaus, expressando o respeito às normas do jogo que serão ditadas a partir da bateria. Exemplo de corrido:

Tem dendê

1 - Tem dendê, tem dendê (P)2 - O jogo de angola tem dendê (P)3 - Tem dendê, tem dendê (C)4 - Jogo de baixo tem dendê (P)5 - Tem dendê, tem dendê (C)

Levando em conta que o azeite de dendê é um impor-tante tempero da culinária baiana, esse corrido é cantado quando o jogo está “gostoso”, está bonito, bem elaborado, em um momento que os jogadores estão, elegantemente, conversando por meio de seus corpos. Para dar início ao corrido, os dois primeiros versos são puxados pelo mestre (ou outro tocador e/ou cantador que esteja assumindo a

sua posição na bateria) e, a partir do 4o. verso, o coro res-ponde alternadamente a cada verso puxado (o qual pode ser repetido inúmeras vezes até o jogo “pedir” outro tipo de canto ou a bateria querer outro tipo de jogo).

Outro corrido que pode ser cantado como forma de refor-çar o diálogo corporal (apontando os contrários como parte deste) e/ou chamar a atenção para que haja perguntas e res-postas no jogo, caso estejam ocorrendo “golpes em vão” é o:

Oi sim, sim, sim, oi, não, não, não

Oi sim, sim, sim (P)Oi não, não, não (P)Oi sim, sim, sim (C)Oi não, não, não (C)Oi sim, sim, sim, sim (P)Oi não, não, não, não (P)Oi sim, sim, sim (C)Oi não, não, não (C)Oi sim, sim, sim, sim, sim (P)Oi não, não, não, não, não (P)Oi sim, sim, sim (C)Oi não, não, não (C)(domínio público)

Foto: Rita Barreto

Foto: Acervo do MRE

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A performance ritual da roda de capoeira angola

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O JOGO DE CA-POEIRA. Fazem parte da roda, portanto, os mestres, os discípulos e, até mesmo, a platéia, no caso de uma roda aberta. Quem não estiver jogando ou tocando qualquer instrumento presta atenção no jogo e responde ao coro, pois o jogo de capoeira angola é um jogo consciente no qual o (a) capoeirista ataca para se defender, procurando sempre saber o que fazer durante o jogo (o que se estende para o cotidiano da vida pós roda). É necessário observar o outro, analisar seu jeito de agir, para, fi nalmente, saber com quem se está jogando, ou seja, se relacionando. A atenção deve ser dirigida não só ao jogo, mas também no que está sendo cantado. É por meio do canto que o ensinamento da capoeira é dado, já que ele direciona a comunicação não-verbal (corporal) dos jogadores.

Assim, os movimentos corporais de ataque e de defesa, tais como gingas, negativas, rabos-de-arraia, chapas, rastei-ras, quedas e tantos outros que fazem parte do jogo de capoeira angola são realizados de forma que possibilite um diálogo não-verbal entre os dois jogadores. A principal pre-ocupação que se tem não é a de atacar, mas, sim, de saber se defender, portanto o respeito, a paciência, a humildade e a busca pelo equilíbrio e, conseqüentemente, pela justiça, são os principais valores buscados pelo adepto da capoeira angola. O sentido de equilíbrio, por exemplo, é tomado de uma maneira mais ampla, ou seja, extrapola-se a questão do equilíbrio para a vida em si, quando o “angoleiro” (adep-to da capoeira angola) procura ser uma pessoa equilibrada, não apenas na execução dos movimentos corporais espe-cífi cos da capoeira, mas também na relação com o outro no cotidiano.

A partir daí, pode-se falar que, num jogo de capoeira angola, é exercitado o controle da violência, pois tudo deve ser feito com educação, diversão (“vadiagem”) e respeito. O “outro”, o adversário, é o camarada (companheiro de jogo) com o qual é possível aprender cada vez mais.

Os capoeiras jogam por tempo indeterminado. A du-ração de cada jogo pode ser de cinco minutos, de dez mi-nutos, meia hora, mas, quando o berimbau “chamar” com um toque específi co e/ou com sua inclinação para a frente, é avisado o término do jogo; os jogadores deverão voltar para perto dos berimbaus (e aqui novamente temos uma situação em que o jogador vai para o pé do berimbau), os dois se cumprimentam, como todo bom camaradinha e, aí, entram outros dois capoeiras.

Enfi m, os movimentos corporais no jogo de capoeira angola são realizados com muita astúcia. Cada atitude do capoeira, na roda propriamente dita ou na roda da vida, é sempre um ato de desafi o e de luta pela justiça social uma vez que, se atentarmos para a sua performance ritual, nota-remos que não se privilegia nem a direita nem a esquerda, nem o baixo nem o alto, mas, sim, a relação equilibrada en-tre os opostos, entre os diversos num constante exercício de humildade e paciência.

Cada atitude do capoeira, na roda propriamente dita ou na roda da vida, é sempre um ato de desafi o e de luta pela justiça social uma vez que, se atentarmos para a sua performance ritual, notaremos que não se privilegia nem a direita nem a esquerda, nem o baixo nem o alto, mas, sim, a relação equilibrada entre os opostos, entre os diversos num constante exercício de humildade e paciência.

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CapoeiraA performance ritual da roda de capoeira Angola

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A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos

A CAPOEIRA, UMA DAS MAIS IMPORTANTES E SIGNIFICATIVAS MANIFESTAÇÕES DA CULTU-

RA AFRO-BRASILEIRA, CARACTERIZA-SE PELO SEU ASPECTO PLURAL E MULTIFACETADO QUE

TANTO PODE SER ENTENDIDA COMO LUTA OU DANÇA, COMO PODE SER CONSIDERADA JOGO

OU BRINCADEIRA. HÁ AQUELES QUE A CONSIDERAM ARTE E, OUTROS, ESPORTE. COMO PO-

DERÍAMOS, ENTÃO, DEFINI-LA ?

Pedro Rodolpho Jungers Abib

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A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos

Como dizia o saudoso Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha, que viveu na Bahia e faleceu em 1980), “a capo-eira é tudo que a boca come e tudo que o corpo dá!”. Essa frase dita por um dos maiores guardiões dessa manifesta-ção demonstra o caráter múltiplo e dinâmico da capoeira, que se transmuta e se adapta, que se rebela e se acomoda, que cria e reproduz, que já serviu para se defender e até matar, e que hoje serve para educar, mas que sempre foi um grito de liberdade e de reafi rmação de uma cultura e de um povo oprimido, refl exo da triste história de quatro séculos de escravidão no Brasil.

Dentre os vários aspectos expressados pela capoeira, o componente mítico-religioso foi sempre um dos que mais suscitou curiosidades, debates, opiniões e muitas histórias contadas e recontadas por meio da tradição oral presente na cultura popular, uma das formas mais importantes de transmissão dos saberes e conhecimentos.

No imaginário da capoeiragem e dos capoeiras, não existe fi gura mais expressiva e representativa do que Besou-ro Mangangá, Manoel Henrique Pereira por batismo. Ainda hoje muitos duvidam de sua existência. Houve quem afi r-masse categoricamente, como o falecido Mestre Cobrinha Verde (Rafael França), ter convivido e aprendido capoeira com Besouro. Apenas recentemente foi encontrada uma prova de sua existência: seu registro de óbito, localizado na Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro da Purifi cação.

Na memória dos mais antigos moradores do Recônca-vo Baiano, a fi gura de Besouro vive e protagoniza inúmeras histórias e “causos” envolvendo suas peripécias e astúcias no enfrentamento com a polícia, sua valentia ao brigar e ao bater em vários oponentes ao mesmo tempo, e, principal-mente, sua fama de ter o “corpo fechado” por obra de sua iniciação nas artes da magia africana que o permitia “virar e desvirar coisa, toco ou bicho, e até mesmo de sair voando em caso de precisão”.

Mestre Pastinha

Dentre os vários aspectos expressados pela capoeira, o componente mítico-religioso foi sempre um dos que mais suscitou curiosidades, debates, opiniões e muitas histórias contadas e recontadas por meio da tradição oral presente na cultura popular, uma das formas mais importantes de transmissão dos saberes e conhecimentos.

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(1) Bimba, Pastinha e Besouro Mangangá. Antonio Liberac Pires. Tocantins: NEAB, 2002(2) Cantiga de domínio público(3) Feijoada no paraíso: a saga de Besouro, o capoeira. Marco Carvalho. Rio de Janeiro: Record,

2002.(4) Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfi co. Waldeloir Rego. Salvador: Itapuã, 1968(5) O jogo da capoeira: cultura popular no Brasil. Luiz Renato Vieira. Rio de Janeiro: Sprint, 1998.

Besouro Mangangá, ou Besouro Preto, ou ainda Besou-ro Cordão de Ouro, como o chamavam seus companheiros de vadiagem, é o elo com a capoeira do século XIX, afi rma o pesquisador Antonio Liberac Pires1, tradição dos escravos e das lutas pela liberdade, tempo de confl ito entre maltas, disputas a navalha, capangas eleitorais. Passado lendário de vadiação, de façanhas memoráveis nas brigas com a polí-cia. Besouro é cantado, ainda hoje, nas rodas de capoeira, em prosa e verso. Sua valentia e perspicácia foram e conti-nuam sendo referência para os capoeiras desde há muito tempo. Pela fama que alcançou, inclusive pelas qualidades adquiridas de ter o “corpo fechado”, Besouro tornou-se uma lenda ainda em vida.

Zum, zum, zum, Besouro MangangáBatendo nos soldados da polícia militarZum, zum, zum, Besouro MangangáQuem num pode com mandinganão carrega patuá......2

O Mestre João Pequeno de Pastinha (João Pereira dos Santos), discípulo mais importante de Mestre Pastinha, ain-da em atividade e prestes a completar noventa anos, afi rma que Besouro era primo de seu pai, e que, desde menino, ouvia falar de suas proezas e, por isso, queria aprender ca-poeira para ser valentão como Besouro. Segundo seu pai contava, Besouro se escondia de uma pessoa em qualquer lugar, passava por ela e a pessoa não o via. João assegura que seu pai também era “preparado” de oração e tinha cer-tas qualidades, inclusive, como Besouro, a de desaparecer: “Ele andando assim, num caminho e quando avistava uma pessoa que ele não queria que visse ele, a pessoa não via mesmo não”.

Adentrando pelo campo da literatura, o personagem Besouro, que narra suas histórias no belo livro “Feijoada no Paraíso”, de Marco Carvalho3, conta como aprendeu capo-eira com Tio Alípio, “...que já era velho quando conheci, mas parecia ter sido assim desde sempre. Andava leve, pisando macio no chão feito bicho gato”. Tio Alípio era um ex-es-cravo que, quando moço, despertou paixões na sinhá do engenho, causando a ira do patrão, que mandou matá-lo, o que só não ocorreu, “porque o moço era já feito na crença das linhagens de fé do povo iorubá”. Continua o persona-gem Besouro, revivido por Carvalho:

Tio Alípio me ensinou de tudo um muito. Com a calma do parteiro dos anos que a eternidade é que engendra. Ele era um negro, daqueles uns que olharam bem fundo no olho da maldade e viram a única forma de sair vivo de lá. A capoeira é a arte do dono do corpo e de outros tantos. Pois se não. O que come primeiro, o ardiloso, é o que não é nem nunca foi aquele o pé redondo, o redemunho, o não falado, o tristonho, não. Ca-

poeira é de Deus. Mundo e gentes muitas têm mandinga, corpo tem poesia, pássaro tem bico. Capoeira tem axé. Meu pai e meu mestre me ensinou. E isto não é pouca coisa. Mas mel não conhece fl or nem reconhece abelha. O que me ensinou capoeira conhecia.

O jogo da capoeira - Acervo do Instituto Jair Moura

O aspecto mágico e misterioso, conhecido no universo

da capoeiragem como mandinga, é elemento fundamental para compreensão mais aprofundada sobre essa manifes-tação. O substantivo “mandinga”, segundo o pesquisador Waldeloir Rego4, refere-se possivelmente à região Mandin-ga, na África ocidental, banhada pelos rios Níger, Senegal e Gâmbia, uma vez que entre os africanos trazidos para o Brasil havia a crença de que nessa região habitavam muitos feiticeiros. Assim, no tocante ao envolvimento do capoeira com a magia, constituíram-se mitos ainda fortes na memó-ria coletiva da capoeira.

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O grande Mestre Valdemar da Liberdade, outro também que já não está mais por aqui, disse uma vez ao pesquisa-dor Luiz Renato Vieira5 que os mestres de antigamente “...tinham muita mandinga, viravam folha, viravam bicho. Aqui-lo era próprio para barulho. Besouro era um grande capoei-rista, mas tudo debaixo de oração”.

Mestre João Pequeno dá uma das versões da morte de Besouro, segundo a qual sua mandinga foi quebrada:

A mandinga existe na capoeira, também um patuá que se usava no pescoço. Dentro do pa-tuá, tinha orações, rezas que preparava o corpo, rezas que faca não fura. Mas pessoas de corpo sujo que tem relações sexuais estão despre-parados e com o corpo aberto. Foi assim que aproveitaram para matar Besouro. Ele dormiu na casa de uma mulher e no outro dia quando vi-nha voltando, passou por debaixo de uma cerca de arame, e o arame feriu suas costas, então ele viu que aquele dia ele tava fraco (...) Foi nesse dia que mataram Besouro, com uma faca preparada de tucum, que é uma palmeira que dá no mato.

João Pequeno também conta que quem lhe deu o pri-meiro treino de capoeira foi um negro chamado Juvêncio, que trabalhava de ferreiro, isso quando ainda morava em Mata de São João, interior da Bahia. Segundo ele, Juvêncio era amigo de Besouro, com quem conviveu muito tempo, e, por essa razão, tinha muitas histórias para contar.

O Mestre Cobrinha Verde era um dos que mais valori-zava as “artes da mandinga”, atribuídas aos ensinamentos que recebeu de Besouro e de outros conhecedores desses “ofícios” em Santo Amaro da Purifi cação, no Recôncavo Baiano. Conta ele que esses ensinamentos o ajudaram a se livrar de inúmeras situações de perigo enfrentadas durante suas aventuras pelos vários lugares por onde passou, inclu-sive referentes à sua participação em bandos armados que percorriam o interior do Nordeste brasileiro:

O breve que eu usava tinha oração de Santa Inês, de Santo André, de Sete Capelas, tinha Sete folhas. Depois que eu usava, botava ele em cima da mesa num prato virgem. Ele fi ca-va pulando, porque era vivo. Mas houve algum problema, pois ele fugiu e desapareceu de mim. Foi algum erro que eu cometi e ele foi embora e me deixou. Quando entrei no bando de Horácio de Matos com dezessete anos, eu já tinha esse breve. Foi ele que me livrou de muitas coisas. Quem me deu esse breve foi um africano que até hoje, quando eu falo nele, meus olhos fi cam cheios d’água. Ele se chamava tio Pascoal.6

O Mestre Cobrinha Verde era um dos que mais valorizava as “artes da mandinga”, atribuídas aos ensinamentos que recebeu de Besouro e de outros conhecedores desses “ofícios” em Santo Amaro da Purifi cação, no Recôncavo Baiano.

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(6) Capoeiras e Mandingas. Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991

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(7) Capoeiras e Mandingas. Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991

Cobrinha Verde dizia-se católico, mas não deixava de recorrer também às tradições religiosas africanas para o “fechamento de seu corpo” com o intuito de se proteger dos inimigos “desse mundo e do outro”. Uma das orações que usava é aqui descrita:

Valei-me meu São SilvestreE os anjos 27 pela sua camisa que vesteAssim como abrandasteOs corações dos três leõesEm cima do morro cravado de pé e mãoAbrandai eles debaixo do meu pé esquecidosMais mansos do que a cera brancaSe olhos tragam, não me enxergarãoSe boca tragam, não me falarãoSe pagam pra mim, não me alcançarãoSe faca tragam pra mim,É de se enrolar como Nossa Senhora enrolou o arco celesteCacete pra mim é de ser quebrado,Assim como N.Senhora quebrou os gravetos pra ferver o leiteDo seu Bendito FilhoArma de fogo para mim apontada,É de correr água pelo cano, sangue pelo gati-lho, Assim como N.SenhoraChorou lágrimas pelo seu Bendito Filho.Amém.7

Os depoimentos dos capoeiras mais antigos evidenciam a mandinga como componente fundamental da capoeira. No contexto da capoeira, o termo mandinga designa tan-to a malícia do capoeirista durante o jogo, fazendo “fi ntas”, fi ngindo golpes e iludindo o adversário, quanto uma certa dimensão sagrada, um vínculo do jogador da capoeira com o mistério das religiões afro-brasileiras.

A mandinga é um dos elementos que diferenciam as características da capoeira angola e da regional, segundo a visão de alguns mestres. A capoeira regional, segundo eles, tem se distanciado cada vez mais dos elementos mítico-religiosos presentes na tradição africana, salvo algumas ex-ceções. Isso acaba determinando uma estética de jogo e um sistema simbólico próprios, os quais privilegiam muito mais a objetividade do que a subjetividade, a técnica do que a malícia, o confronto direto do que a dissimulação, características estas que, diferentemente das primeiras, se aproximam mais da mandinga da capoeira angola. Isso não quer dizer que não existam alguns desses elementos entre os praticantes da capoeira regional, porém apresentam-se em menor escala.

Mestre Eletricista (Edílson Manoel de Jesus) diz que “a mandinga não se ensina...mandinga você aprende”, referin-do-se ao percurso individual que cada capoeira tem que

percorrer para desenvolver as “artes da mandinga”, proces-so quase religioso de iniciação, porém sempre tendo como referência os “antepassados que passaram isso pra gente”, conclui Eletricista.

Ao pé do berimbau, os dois capoeiras agacham-se, prontos para iniciar o jogo. Esse é um momento muito especial, pois na roda de capoeira angola, segundo a tra-dição do Mestre Pastinha, o jogo inicia e termina com os mesmos jogadores. Existe o tempo para que cada jogador estude seu parceiro, procure decifrar o seu jogo, prepare com cuidado o seu “bote”, que é dado no momento certo. Um capoeira considerado mandingueiro é aquele que vai “cevando” o outro, ou seja, vai aguardando, sem pressa, um descuido para, então, aplicar seu golpe certeiro.

Por isso, o pé do berimbau, local de entrada e saída do jogo na capoeira angola, é um lugar sagrado onde se jun-tam o início e o fi m, o passado e o presente, o céu e a ter-ra, o bem e o mal, a vida e a morte. A morte é sempre uma possibilidade latente. Todo capoeira sente sua presença ao agachar-se ao pé do berimbau. O coração bate mais forte, a respiração altera-se e os olhos fi xam-se nos do seu parceiro de jogo, que pode vir a se tornar seu algoz. Por isso, ao pé do berimbau, alguns capoeiras se benzem. A mandinga aí se expressa: seja pelo sinal da cruz, sejam pelos “traçados” que o capoeira faz com as mãos tocando o chão, hábito que se perde no tempo entre os velhos “angoleiros”. Seja ainda pela proteção que pede aos orixás ou aos santos, por meio de gestos próprios, com as mãos e com o corpo, ou mesmo durante o cantar de uma ladai-nha. O berimbau ecoa sons ancestrais e pede a proteção aos antepassados. O berimbau era usado na África para

João Pequeno e João Grande prontos para iniciarem um jogo (1968) – Foto: Jair Moura

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A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos

conversar com os mortos. Só então os dois apertam-se as mãos, e o jogo pode iniciar-se.

Outra situação muito característica da capoeira angola que traz elementos da mandinga é a “chamada de angola”. A chamada é um momento de quebra e interrupção no anda-mento do jogo. É um parêntesis na sucessão de movimentos de ataque e de defesa, incluindo também a ginga, quando um jogador promove a ruptura dessa dinâmica, “chamando” o outro e assumindo uma posição estática e de observação. O parceiro, então, aproxima-se lenta e cuidadosamente, pois pode ser surpreendido com um ataque inesperado, até con-seguir um contato corporal com o jogador que o “chamou”. Inicia-se, então, um “bailado” entre os dois, que se deslocam alguns passos para frente e para trás, sem que seus corpos se “descolem” um do outro. A tensão entre ambos é visí-vel, pois, a qualquer instante, um deles pode tentar alguma “mardade” contra o outro. A chamada é interrompida no momento em que aquele que “chamou” toma a iniciativa de recomeçar o jogo, convidando seu parceiro por meio de gestos característicos. E o jogo se reinicia.

Nessa simulação, representada pela chamada de angola, a mandinga mostra-se na forma como cada jogador lida com essa situação, demonstrando sua malícia, sua sagacidade e sua habilidade de expressar-se dissimuladamente, difi cul-tando para o parceiro a interpretação de suas verdadeiras intenções, quando um certo clima de apreensão paira sobre os dois capoeiras. A chamada é um momento que sempre guarda um certo mistério durante uma roda de capoeira angola. Numa chamada tudo pode acontecer. Os dois ca-

A “chamada de angola” sendo executada Foto: Acervo do Instituto Jair Moura

O berimbau ecoa sons ancestrais e pede a proteção aos antepassados. O berimbau era usado na África para conversar com os mortos. Só então os dois apertam-se as mãos, e o jogo pode iniciar-se.

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(8) Maior é a capoeira, pequeno sou eu. José Umberto. Revista da Bahia, nº 33 – Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999

(9) O ABC da capoeira angola: manuscritos do mestre Noronha. Frederico Abreu. Brasília. DEFER, 1993 (foi mantida a grafi a utilizada no manuscrito).

(10) Mestre Bimba: corpo de mandinga. Muniz Sodré Rio de Janeiro: Manati, 2002 (p.36)

poeiras têm que estar atentos e preparados para possíveis surpresas, que não raro acontecem nessas situações.

Urgente urgentíssimo fi car prevenido, estar de alerta em qualquer ocasião, na tocaia das vastas atalaias, já que toda atenção é pouca. Assim re-zam os preceitos da mandinga, uma vez que ma-caco velho jamais mete a mão em cumbuca. (...) O segredo da artimanha está dentro de si mesmo, no íntimo do seu mistério, verdadeiro e único. Já que o martírio existe dentro das sete chagas de Cristo, então camaradinho conserve a fé no que você possui e desconfi e até da sombra...com sim-patia, disciplina e iluminação na alma.8

Analisar a mandinga na capoeira signifi ca mais do que identifi car alguns aspectos do ritual presentes na roda, da malícia, do gestual ou do discurso dos capoeiras. Signifi ca buscar um entendimento mais aprofundado sobre determi-nados comportamentos que certos “angoleiros” apresen-tam, os quais podem ser considerados como aprendizados que se iniciam na roda de capoeira, e, como diz o Mestre Moraes (Pedro Moraes), expandem-se, posteriormente, para o cotidiano desses sujeitos, expressando-se nas suas formas de se relacionarem com o mundo.

Certos procedimentos, crenças, superstições e hábitos observados, principalmente entre os praticantes da capo-eira angola, moradores de Salvador e arredores, que se es-tendem até o Recôncavo Baiano, são características muito peculiares de um certo tipo de sujeito social que se difere justamente por ter adquirido, a partir da vivência na capoeira angola, um comportamento baseado em outra lógica, que escapa de uma racionalidade predominante nas sociedades modernas e que se expressa pela forma como se relaciona com a realidade em que vive. Normalmente são pessoas que desenvolvem uma atenção, uma sagacidade, uma presença de espírito, um sexto sentido mesmo, características estas um tanto diferenciadas de um comportamento considerado padrão nas sociedades urbanas contemporâneas.

Essa “outra lógica” relaciona-se com características mí-tico-religiosas oriundas da cultura afro-brasileira, que, por meio da capoeira, se expressa de várias formas, desde tem-pos imemoriais.

O famoso Mestre Noronha (Daniel Coutinho), que viveu as primeiras décadas do século XX em meio à malandragem da capoeira baiana, deixou um legado valioso: seus manuscritos, os quais retratam muitos aspectos da capoeiragem daquela época, referência importantíssima para historiadores que bus-cam reconstruir esse período de valentia e desordens. Em um dos trechos, transcrito fi elmente dos originais, ele diz:

Eu e meus colega da mesma arte, de capoeira, porque hoje em dia está nos meios social e no mundo enteiro porque é uma defeiza pessoal de

grande valor que é suas mandinga tracueira para vencer todas parada que apareiza sendo a hora sufi ciente si causo não for dezista para outra oca-zião porque eziste outro encontro porque quem apanha nunca cisquece e quem dá não se lem-bra esta é a malícia do capoeirista (p.18).9

A mandinga de Besouro Mangangá - que segundo Mes-tre Bimba (Manoel dos Reis Machado), criador da capoeira regional, “era capaiz di sartá di costa i caí de vórta dentru dus chinélu”10 -, e também de Mestre Noronha, Pastinha, Cobri-nha Verde e de tantos outros capoeiras antigos, considera-dos “mandingueiros”, que povoam o imaginário popular de Salvador e do Recôncavo, parece exercer sobre o capoeira de hoje em dia uma infl uência que vai além daquela referen-te às “qualidades” de desordeiros e valentões.

Esse componente de magia que reveste o universo da capoeira, embora proveniente desse imaginário popular, expressa o vasto campo de signifi cados dessa manifesta-ção afro-brasileira e de suas ligações com o “sagrado”, as-sim como muitas das manifestações e tradições presentes no universo da cultura popular no Brasil. A dimensão do sagrado tem para o povo simples de nosso país um senti-do muito especial e profundo, que determina suas crenças, seus modos de vida, seus sonhos, suas lutas, suas vitórias e suas derrotas.

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O capoeirista da atualidade, consciente ou inconsciente-mente, é herdeiro dessa carga ancestral que a capoeira traz consigo e não pode fi car imune aos sentidos e signifi cados implicados no processo de identifi cação cultural pelo qual passa um iniciado da capoeira, que acaba adquirindo outras atitudes, acaba desenvolvendo outras formas de se relacio-nar com o mundo, com o perigo, com a adversidade, com o desconhecido, com o inesperado.

A prática da capoeira, nos últimos anos, tem se transfor-mado em mera mercadoria de consumo, servindo para atrair e deslumbrar turistas por meio de saltos mortais e de um jogo cada vez mais “espetacularizado”, afastando-se de suas características mais tradicionais, da ritualidade, da ancestrali-dade, da mandinga.

Porém, esse processo não se dá sem resistências e oposições. Ao mesmo tempo, vão sucedendo-se impor-tantes experiências no mundo todo que se caracterizam pela afi rmação do legado histórico da capoeira, a reve-rência aos seus antepassados e às formas tradicionais de sua prática, valorizando e dando dignidade à essa mani-festação surgida da criatividade, da crença, da alegria e do sofrimento de um povo.

Pedro Rodolpho Jungers Abib. Professor Adjunto da Fa-culdade de Educação da Universidade Federal da BahiaAutor do livro: “Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda” (Edufba/CMU-Unicamp,2005).Capoeirista formado pelo Mestre João Pequeno de Pastinha

A dimensão do sagrado tem para o povo simples de nosso País um sentido muito especial e profundo, que determina suas crenças, seus modos de vida, seus sonhos, suas lutas, suas vitórias e suas derrotas.

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Capoeira: metáforas em movimento

...PRA GANHAR SEU AMOR FIZ MANDINGA

FUI A GINGA DE UM BOM CAPOEIRA

DEI RASTEIRA NA SUA EMOÇÃO

COM O SEU CORAÇÃO FIZ ZUEIRA...

(VERDADE: NELSON RUFINO E CARLINHOS SANTANA)

GINGA E RASTEIRA SÃO PRATICAMENTE SINÔNIMOS DE CAPOEIRA. ELES SÃO O MOVIMENTO E O

GOLPE MAIS CONHECIDOS E DIFUNDIDOS DESSE JOGO, APARECENDO INCLUSIVE EM CANÇÕES

COMO VERDADE, QUE FEZ SUCESSO NA VOZ DO CANTOR ZECA PAGODINHO. GINGA É A MOVIMEN-

TAÇÃO CORPORAL QUE O CAPOEIRISTA REALIZA DURANTE O JOGO, DA QUAL SE ORIGINAM OS MO-

VIMENTOS DE ATAQUE E DEFESA. JÁ A RASTEIRA É UM MOVIMENTO DESEQUILIBRANTE, APLICADO

NO BAIXO PLANO, QUE VISA ARRASTAR A PERNA DE QUEM A SOFRE.

Eliane Dantas dos Anjos

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Capoeira: metáforas em movimento

No entanto, a capoeira reserva um repertório muito mais extenso, variado e criativo. Aú, bênção, rabo-de-arraia, meia-lua, sapinho, vôo do morcego, resistência, negaça são alguns exemplos de movimentos e golpes. A quantidade de nomes é inumerável, já que cresce de acordo com as ha-bilidades e a criatividade dos capoeiristas. Estes, ao desen-volverem novos movimentos ou variações, criam também novas denominações. É justamente nesse processo que a metáfora tem lugar de destaque.

Para compreender o sistema denominativo, ou seja, a terminologia da capoeira, é importante conhecer suas ori-gens e trajetória. Até o início do século XIX, não havia re-gistros escritos ou iconográfi cos da capoeira, um jogo que teria se desenvolvido entre os negros escravos que a utili-zariam para se defender e lutar pela liberdade. O desenhista francês Jean-Baptiste Debret, que veio em missão ao Brasil a pedido de D. João VI, em 1816, faz referência aos “negros volteadores dando saltos mortais ou fazendo mil outras ca-briolas para animar a cena”. O pintor e desenhista alemão Johann Rugendas, que esteve no Brasil em 1821, escreveu uma das primeiras defi nições de capoeira, descrevendo-a como um “folguedo guerreiro” dos negros, no qual se pro-curava atingir o peito do adversário com a cabeça e se de-fender com saltos de lado e paradas. O desenhista compara os competidores a bodes, devido aos choques de cabeça que aconteciam durante o jogo.

Plácido de Abreu, no livro Os Capoeiras, apresenta ter-mos como topete a cheirar e chifrada, ambas variações de cabeçadas. Essas palavras integravam o vocabulário dos capoeiras, que eram perseguidos principalmente no fi nal do século XIX. Após a prática ter sido considerada crime (1890), subsistiu nos quartéis, onde foram escritos os pri-meiros manuais de capoeira, considerada um “sport” nacio-nal. Em 1907, foi publicado o Guia do Capoeira ou Gymnas-tica Brasileira, cujo autor é um militar não-identifi cado, e em 1928, Gymnastica Nacional (Capoeiragem) Methodizada e Regrada, de Annibal Burlamaqui, que defi niu os movimen-tos e as regras do jogo da capoeira.

A Bahia foi, no século XX, um verdadeiro celeiro de prati-cantes desse jogo, que se tornou conhecido no Brasil e no mundo pela determinação e espírito de liderança de dois homens: Manuel dos Reis Machado, Mestre Bimba, e Vicen-te Ferreira Pastinha, Mestre Pastinha.

Aos 18 anos, Bimba começou a ensinar a arte da capo-eiragem e formou o Clube União em Apuros, situado no En-genho Velho de Brotas, um bairro de Salvador. Nessa época, a capoeira era uma só, não havendo distinção entre regio-nal e angola, mesmo porque Bimba foi o responsável pelo desenvolvimento da modalidade de capoeira denominada regional. Segundo depoimentos de Mestre Bimba, a regional teria sido criada em 1928, resultado da inclusão de golpes do batuque (dança masculina de origem africana), do desenvol-vimento de novos golpes e do aperfeiçoamento daqueles já existentes. A infl uência da luta livre, por exemplo, aparece em

Para compreender o sistema denominativo, ou seja, a terminologia da capoeira, é importante conhecer suas origens e trajetória. Até o início do século XIX, não havia registros escritos ou iconográfi cos da capoeira, um jogo que teria se desenvolvido entre os negros escravos que a utilizariam para se defender e lutar pela liberdade.

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golpes como a gravata e na seqüência da cintura despreza-da, uma série de movimentos de projeção.

Os contatos dos alunos de Mestre Bimba com autori-dades baianas contribuíram para que a capoeira fosse le-gitimada e excluída do Código Penal, na década de 1940. Com o reconhecimento da luta regional baiana de Bimba, a capoeira tradicional, que passou a ser referida como capo-eira angola, também se fortaleceu, tendo como expoente Mestre Pastinha.

O sistema denominativo de golpes da capoeira foi cria-do, então, a partir do desenvolvimento da capoeira regional e angola, bem como dos focos de resistência da capoeira carioca. Atualmente, com a expansão da capoeira no Bra-sil e no exterior, foram criadas variações dos movimentos básicos e incluídos novos movimentos, o que se refl ete no conjunto de termos. Essa divisão da capoeira também se repercute nos movimentos, que podem ter execuções bastante variáveis. O rabo-de-arraia da angola, por exemplo, corresponde à meia-lua de compasso da regional, um gol-pe giratório, com apoio das mãos no chão, em que uma das pernas visa acertar o oponente no plano horizontal; já na regional é a meia-lua de compasso executada sem o apoio das mãos no chão; na capoeira carioca é um movimento semelhante, mas executado no plano vertical.

Com base em materiais escritos sobre capoeira publi-cados a partir de 1960, pelos mestres Bimba e Pastinha, por seus discípulos e com apoio também de livros sobre capoeira de circulação nacional ou com grande divulgação, foi organizado por Eliane Anjos, em 2003, um repertório de termos que constituiu o Glossário Terminológico Ilustrado de Movimentos e Golpes da Capoeira. Esse estudo mostrou a predominância da metáfora (transferência de nome por semelhança de sentido) e da metonímia (transferência de nome por contigüidade de sentido) entre os recursos de formação de termos desse jogo.

Entre as metáforas dos termos da capoeira, destacam-se algumas regularidades associativas com animais, armas (instrumentos perfuro-cortantes ou traumatizantes), formas circulares, representações gráfi cas e objetos do dia-a-dia.

As associações com animais são especialmente recor-rentes, entre as quais: coice, rabo-de-arraia, sapinho, pulo do macaco e vôo-do-morcego. O termo galopante, que se refere a um soco dado com os dedos unidos na região dos ouvidos do oponente, também está relacionado a uma ca-racterística de movimento de animal, os passos do cavalo, o seu galope. A capoeira, cuja etimologia indígena remete à mata, ka’a puera, mata extinta, tem em sua origem entre os negros escravos uma relação forte com a natureza, por isso utiliza tanto a denominação de animais para nomear novos conceitos. O movimento é a essência da capoeira, como de qualquer luta ou expressão corporal, e a observação de ani-mais é uma fonte de criação tanto de movimentos como de denominações.

A relação movimento-animal torna o sistema denomi-nativo mais vivaz e concreto, facilitando a memorização, pois ao associar-se a denominação ao conceito no mundo visível, ao ouvirmos o nome do animal ou de um movimen-to que a ele se relaciona, visualizamos as características que tornam o golpe ou o movimento semelhantes a ele. Em sua descrição da capoeira, Rugendas compara os capoeiristas a bodes, em virtude da grande quantidade de cabeçadas. Tanto é assim, que o termo marrada, cabeçada de bodes e carneiros, foi utilizado por Mestre Bimba em um depoimen-to gravado no CD Curso de Capoeira Regional. No entanto, o termo acabou sendo substituído por cabeçada.

Instrumentos que podem ser utilizados como arma também são denominações muito freqüentes na capo-eira. O açoite, o arpão, a chibata, a cutilada, a forquilha, o martelo e a tesoura demonstram que a capoeira pode ser entendida como uma arma corporal e que seus mo-vimentos, à semelhança desses citados anteriormente, podem causar lesão. Movimentos como açoite e chibata remetem-nos aos instrumentos de punição e tortura, prá-ticas aplicadas aos negros escravos. A relação movimen-to/arma representa, então, um campo associativo, uma grande metáfora, mostrando a capoeira como a própria arma, que um dia foi luta e que atualmente é considerada um jogo, um esporte.

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Outro tipo de associação é a de movimentos com letras do alfabeto como aú, cuja etimologia – mesmo controver-sa, já que no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1999) a expressão é considerada um africanismo – reme-te-nos à comparação entre traçado das letras do alfabe-to e a posição corporal, com pernas voltadas para baixo, representando A, e voltadas para cima, o U. O s dobrado também é um referente que exprime, iconografi camente, o “desenho” do movimento. As curvas nele contidas, assim como na meia-lua de frente, na meia-lua de compasso, no compasso e no rolê refl etem a circularidade dos movimen-tos que representam.

Os termos chapéu-de-couro, gravata e leque, acessó-

rios de vestimenta, são oriundos de associações comuns do dia-a-dia, assim como balão, chapa, cruz, telefone, pois o homem tende a relacionar aquilo que cria com algo que conhece, tomando alguma característica comum, no caso a forma ou a função.

Entre as metáforas dos termos da capoeira, destacam-se algumas regularidades associativas com animais, armas (instrumentos perfuro-cortantes ou traumatizantes), formas circulares, representações gráfi cas e objetos do dia-a-dia.

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Tesoura de frente

S dobrado

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A bênção é um termo irônico que subverte o signifi ca-do de proteção religiosa e a ironiza, pois, na verdade, dife-rentemente do movimento realizado pelo padre ao levar as mãos ao fi el, a bênção da capoeira é um empurrão com o pé, um movimento ofensivo. Esse caráter irônico e debo-chado também aparece nos termos bochecho e suicídio, relacionando-se o ato de bochechar ao efeito do golpe e o ato de suicidar-se ao risco assumido pelo capoeirista quando executa o movimento.

A maioria das metáforas ocorre pela semelhança de forma entre o movimento e o objeto, o animal ou a letra a ele as-sociada. Há, ainda, semelhança por função em termos como açoite, balão, bênção, bochecho, chibatada e martelo, relacio-nados à ação do movimento e não a uma semelhança física. As metonímias referem-se aos efeitos dos movimentos que lhes servem de denominação como asfi xiante, quebra-mão e quebra-pescoço. Nesse tipo de metonímia, a associação com o movimento é mais clara, pois se relaciona o efeito que provoca com o nome do movimento.

Outro tipo de associação metonímica recorrente é a par-te pelo todo. Apresenta termos como banda, que relaciona o nome ao tipo de entrada realizada no movimento (entrada lateral), cintura desprezada, para referir-se a um movimento cuja cintura é uma das partes do corpo envolvidas, boca-de-calça, região onde se aplica o golpe. Os termos palma e pon-teira demonstram as partes do corpo que têm participação principal no movimento e, muitas vezes, o ponto em que atinge o adversário.

Termos como negativa, vingativa e resistência, que deno-minam o golpe por meio de uma referência abstrata, subje-tiva, mostram a intenção do capoeirista, o caráter combativo do jogo, a negação, ou seja, a resistência à escravidão e a vingança da opressão que subjazem aos nomes dos movi-mentos.

O caráter irônico, humorístico e de resistência são carac-terísticas do próprio estilo de vida do praticante da capoeira, notadamente, quando esse jogo era ainda uma manifesta-ção perseguida. Outro exemplo de ironia é o termo godeme, que se tornou sinônimo de soco desferido pelos ingleses, que por repetirem com freqüência a expressão “God damn it!” (Deus amaldiçoe!), eram assim identifi cados pelos traba-lhadores nordestinos de construção.

Segundo a antropóloga Letícia Reis (1993), em sua pes-quisa Negros e brancos no jogo da capoeira: reinvenção da tradição, a capoeira constrói o mundo invertido tanto com seus movimentos de baixo para cima, realizados no baixo plano, quase no chão, como pela subversão, pelo riso, pela inversão de signifi cado da bênção, pelo caráter de resistência dessa cultura. A autora destaca que a capoeira resiste e passa uma mensagem pela gramática corporal, pelos movimentos inversos, manhosos e também por suas denominações.

Quanto à possibilidade de infl uência de línguas africanas na terminologia da capoeira, com exceção das etimologias controversas dos termos aú e gingar, termo ao qual Nei Lo-

pes atribui ao quimbundo jangala, bambolear, no Dicionário Banto do Brasil (1995), não há qualquer evidência de que as raízes africanas desse jogo possam ter deixado heranças lingüísticas. Essa tendência reforça a idéia de que a capoeira tenha se desenvolvido no Brasil e não supõe a importação de uma luta preexistente na África.

Assim, o sistema denominativo da capoeira refl ete suas características de luta, de resistência à opressão da escravi-dão e do preconceito, da circularidade do jogo, da comu-nhão do homem com a natureza e, acima de tudo, de uma manifestação cultural brasileira.

Referências Bibliográfi cas

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Ilustrações: Reinaldo Uezima.

Eliane Dantas dos Anjos. Mestre em Letras (Filologia e Língua Portuguesa) pela Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

CapoeiraCapoeira: metáforas em movimento

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A música na capoeira angola da Bahia

A CAPOEIRA É NÃO APENAS UM ESPORTE NO QUAL A MÚSICA É INDISPENSÁVEL, MAS TAMBÉM UMA

FILOSOFIA DE VIDA, CUJOS FUNDAMENTOS VERSAM SOBRE LUTA POR LIBERDADE E AUTOCONHECI-

MENTO. NA CAPOEIRA, O JOGADOR TAMBÉM É MÚSICO, POIS CANTA E TOCA BERIMBAU, CAXIXI, PAN-

DEIRO, AGOGÔ, ATABAQUE, RECO-RECO. MELODIAS VERSADAS EM PROSA, CANTOS CÍCLICOS OU

NÃO, SAMBA-DE-RODA, CORRIDO, LADAINHA, CHULA, ORAÇÕES, BENDIÇÕES SÃO ALGUMAS DAS

DESIGNAÇÕES PARA AS MÚSICAS QUE ACOMPANHAM O NEGACEAR1 DE CORPOS TAMBÉM PELO

CORO, CONJUNTO DOS PARTICIPANTES NAS RODAS DE CAPOEIRA.

Ricardo Pamfi lio de Sousa

(1) Negacear é o resultado do diálogo de corpos no jogo da capoeira, quando um entra, o outro sai, um ataca e o outro defende contra-atacando. “Capoeira é defesa, ataque, é ginga no corpo, é malandragem” .

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A música na capoeira angola da Bahia

(2) As partes sublinhadas nas letras das cantigas referem-se à parte do coro que responde ao solista.

Os diversos timbres da bateria (é assim chamado o grupo instrumental) apresentam-se em colorido diversifi -cado, juntando instrumentos com variadas características: cordofônico –berimbau; membranofônicos – pandeiro e atabaque; idiofônicos – agogô, reco-reco e caxixi. Em al-gumas academias ou associações, é utilizado o apito, que é um aerofônico.

A música é executada especifi camente para a rea-lização da roda de capoeira. Com a função de ensinar e conduzir os jogadores, obedece a uma ordem criada entre os capoeiristas. Além das variações rítmicas e melódicas, temos, ainda, os textos das canções. A ladainha, que é o canto inicial, pode ser épico ou não. Nunca se joga durante a ladainha. Os angoleiros, acocorados ao pé do berimbau, aguardam a chula, ou canto de entrada, quando o coro en-tra em diálogo com o solista, com perguntas e respostas. Os jogadores se cumprimentam quando se inicia um corri-do ou uma quadra. Toca-se uma música que alterna parte A e parte B, coro e solista. Durante as cantigas de capoeira, os angoleiros dançam, dialogam, geralmente em duplas. Existe uma prática pré-estabelecida, um treinamento, mas sempre há lugar para improvisação nos movimentos. A mú-sica também deixa lugar para criações inspiradas no jogo. Na letra das músicas, muitas vezes expressam-se os funda-mentos da arte da capoeira.

O berimbau geralmente assume a posição de “mestre”. O tocador chama o jogador para o pé do berimbau, onde são passadas instruções, fundamentos dessa arte. Existem muitas músicas criadas ou recriadas recentemente, mas sempre se cantam as tradicionais também, apresentadas por mestres como Pastinha, Noronha, Bimba. É o berimbau o instrumento que mais se destaca na bateria da capoeira. Geralmente são três: gunga, médio e viola, também conhe-cidos como berra boi, contra-gunga e viola, entre outras denominações. O fascinante é como esses instrumentos se harmonizam rítmica e melodicamente, alternando e diver-sifi cando os sons, assim como os golpes no jogo.

Durante o jogo, podem ser cantados vários corridos, de acordo com a habilidade do puxador ou cantador. Di-versos corridos têm um signifi cado específi co para a rea-lização do jogo. Por exemplo, alguns têm a fi nalidade de intensifi car o andamento do jogo, como Ai ai ai ai, São Bento me chama.2 Outros são usados para aumentar o números de golpes como: Oi ’tá cum medo Toma coragê, ou O a o aí eu vô batê quero vê caí. As músicas podem provocar a diminuição do andamento do movimento dos jogadores, como: Devagâ, devagâ, devagâ devagarinho, ou pedir para jogar em baixo, O Bujão, o Bujão, o Bujão Ca-poeira de Angola é rolada no chão o Bujão, para jogar bo-nito, Ai ai aidê, joga bonito que eu quero vê, entre outros usos. Lembramos que os corridos são as únicas cantigas

A música é executada especifi camente para a realização da roda de capoeira. Com a função de ensinar e conduzir os jogadores, obedece a uma ordem criada entre os capoeiristas. Além das variações rítmicas e melódicas, temos, ainda, os textos das canções.

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(3) Na capoeira angola, dar volta ao mundo é quando o jogador caminha em círculo dentro da roda, aparentemente estão dando um simples passeio pela roda, os jogadores podem se dar as mãos, o que pode ser arriscado, pois, com a proximidade dos corpos fi ca mais fácil de se acertar qualquer golpe, além do risco de um puxão pela mão.

usadas durante os movimentos dos jogadores de capoei-ra angola, pois não se joga durante uma ladainha, muito menos na parte da chula. A dança/luta desenrola-se en-tre ataques e contra-ataques: o jogador esquiva-se de um golpe, lançando outro.

Existe também a chamada de um jogador para ou-tro, que demonstra conhecimento, fundamento, ou para se livrar de uma jogada com resolução muito difícil, ou, ainda, para um instante de descanso. O angoleiro que foi chamado deve ir ao local onde se inicia o jogo (pé do berimbau) e, então, realizar movimentos em dire-ção a quem o chamou. Nessa chamada, os angoleiros “dançam” à maneira de uma caminhada, quase um movimento de tango, às vezes meio saltitado, meio en-costado. Quem chamou finaliza a chamada com algum gesto que convide o companheiro a voltar ao combate. Cada um tem sua performance individual e os limites são estabelecidos durante o jogo. Há também a “volta ao mundo”3 para demonstrar malícia, conhecimento, algum fundamento ou também para um pequeno relaxamento, descanso. O angoleiro usa malícia, sagacidade e traição para golpear o camarada distraído.

Durante uma roda, a música tocada pelos berimbaus chega quase ao máximo de andamento acelerado, é a par-te mais rápida; reduz um pouco e torna a aumentar ainda

mais para acabar. No fi nal do jogo, o conteúdo das letras nas cantigas prepara o fi m da roda ou indicam que alguém vai sair. O próprio tocador de berimbau, por exemplo, pode assim comunicar sua retirada. Ouve-se também, do mestre ou de um aluno avançado, o grito Iêh, no início de uma ladainha e várias vezes durante a chula, algumas vezes nos corridos e também para interromper ou fi nalizar o jogo.

Adeus Corina dam dam Dam daram daramDam dam É meia hora só É meia hora Iaiá vamo dá Uma volta só

Vou-me emboravou-me emboravou-me embora para Angola Eu já vou belezaEu já vou emboraEu já vou belezaQue chegou a hora

Adeus adeus Boa viagem

Foto: Acervo Luiz Renato

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A música na capoeira angola da Bahia

(4) O 4º às vezes pode vir em 3º, ou mesmo nem existir.(5) A mandinga nesse caso é expressa pelos gestos do angoleiro, como tocar no berimbau, fazer o

sinal da cruz, a estrela de Salomão, entre outros.

Os praticantes de capoeira, até hoje, são, em sua maio-ria, meninos e homens, embora não haja restrições, por parte dos angoleiros, às mulheres que, ao contrário, são até muito citadas nos texto das cantigas:

A duração de uma roda de capoeira geralmente varia

entre uma a duas horas. Na maioria das vezes, existe uma seqüência de acontecimentos nas realizações da roda que pode ser resumida da seguinte forma:

1º - Os berimbaus são armados e afi nados, todos os instrumentos musicais são colocados no local onde fi carão os músicos e a bateria.

2º - A roda começa a ser formada, os que vão jogar primeiro fi cam nas extremidades da bateria, os últimos fi cam do lado oposto da bateria, frente a frente.

3º - Neste momento (geralmente quando não se tra-ta de uma apresentação pública), dá-se a trans-missão de alguns dos fundamentos da capoeira.

4º - Teste para conferir afi nação e harmonia entre os músicos.4

5º - Início da música. Geralmente, o gunga começa tocando Angola, seguido pelo médio com São Bento Grande e o viola com Angola ou São Bento Grande (esses são alguns nomes dos toques tra-dicionais no jogo de capoeira angola).

6º - Entram os pandeiros.7º - Dois angoleiros, com mandinga, caminham para

o pé do berimbau.5

8º - Inicia-se o canto da ladainha.9º - Passa-se para a chula, com resposta do coro, en-

tram o atabaque, o agogô e o reco-reco.

Capoeira é pra homem menino e mulher

É, é, é pra homem e mulher Nhêco, nhêco Salomé

Todo mundo te acompanhaque seu nome é Salomé Salomé, Salomé Dona Maria do Cambuotá Chega na venda ela manda botá Dona Maria do Cambuotá Entra na roda e começa a joga

Eh ê ê SaloméOlha homem também apanha de mulé Adão, Adão, Cadê Salomé AdãoCadê Salomé AdãoFoi pra ilha passear

Vai você vai vocêDona Maria como vai vocêComo é que passou como vai vosmecê

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10º - Inicia-se o canto de entrada e, depois, o primeiro corrido. É o sinal para o início do jogo propria-mente dito. O viola passa a dobrar (fazer varia-ções), repicando mais do que mantendo o toque. Quem mantém o toque é geralmente o gunga; o médio normalmente inverte uma parte do toque do gunga ou reproduz o mesmo toque. Ambos podem dobrar os toques durante o jogo.

11º - Os dois jogadores, ao pé do berimbau, dão-se as mãos, cada qual no seu canto, e fazem o primei-ro movimento do jogo, “queda de rim”. Partem, então, para o combate corpo-a-corpo, sem se tocarem, usando geralmente “negativas” e “rabo-de-arraia,” ou outros movimentos.

12º - Desde o início da roda, os alunos estarão sob os olhos do mestre. A correção de qualquer proble-ma de conduta é feita por meio do conteúdo da letra de uma música ou pela chamada do berim-bau, destinada a aproximar o jogador para ser orientado pelo tocador de berimbau.

13º - Os jogadores alternam-se quando o mestre usa a chamada ou quando um deles resolva parar o jogo. Dão-se as mãos ao pé do berimbau e retor-nam para a roda, voltando a fazer parte do coro de vozes ou participando da bateria.

14º - Durante a roda, há sempre outras ladainhas, geral-mente duas, no mínimo, e seis, no máximo.

15º - Para terminar cantam: Adeus, adeus, boa viagem. Os músicos levantam-se, continuam a cantar, viram-se para a direita e caminham dando uma volta até o lugar onde estavam (a volta ao mun-do), em sentido anti-horário.

16º - Depois de, no mínimo, dois minutos cantando a cantiga Adeus, adeus, boa viagem, a qualquer momento pode-se ouvir o grito Iêh da boca do mestre ou de um dos tocadores de berimbau, en-cerrando a roda da capoeira angola. Geralmente, o jogo é “comprado”, ou seja, quando algum ca-poeirista da roda entra entre os dois jogadores e inicia um novo jogo com um deles.

Foto: Antonio Carlos Canhada

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A música na capoeira angola da Bahia

O artista plástico Carybé, também capoeirista ativo, descreve a música da capoeira da Bahia, em 1951, da se-guinte forma:

A Bahia muito contribuiu, na parte musical, in-troduzindo o pandeiro, o caxixi e o reco-reco, em substituição das palmas; e o berimbau de barriga com corda de aço, com voz mais sonora e muito mais recursos que o de bôca. Inventou cantigas e deu regras ao jogo que começa com as chulas de fundamento tiradas pelo mestre: Sinhazinha que vende aí?/ Vendo arroz do Ma-ranhão./ Meu Sinhô mandô vendê./ Na terra de Salomão./ O coro responde: ê, ê Aruandê Ca-marado/ Galo cantô/ ê, ê galo cantô Camara-do/ Cocôrocô/ ê, ê cocôrocô Camarado/ Goma de engomá/ ê, ê goma de engomá Camarado/ Ferro de matá/ ê, ê ferro de matá Camarado/ É faca de ponta/ ê, ê faca de ponta Camarado/ Vamos embora/ ê, ê vamos embora Camarado/ Pro mundo afóra/ ê, ê pro mundo afora Cama-rado/ Dá volta ao mundo/ ê, ê dá volta ao mun-do Camarado. Os que vão lutar, escutam as can-tigas de cócoras, defronte dos berimbaus, talvez rezando suas “rezas fortes” para livrar de bala, de emboscada ou faca; chegam ao centro da roda virando o corpo sobre as mãos e começam o gingado que é ao mesmo tempo uma guarda e um passo da dança.

No fi nal do jogo, o conteúdo das letras nas cantigas prepara o fi m da roda ou indicam que alguém vai sair. O próprio tocador de berimbau, por exemplo, pode assim comunicar sua retirada.

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O que Carybé designa no texto como “chula de funda-mento”, na capoeira angola denomina-se, predominante-mente, “ladainha”. Na capoeira regional, assim como para alguns angoleiros, o mesmo texto é considerado “quadra”. O trecho que segue uma chula propriamente dita é carac-terizado pela resposta do coro, ou seja, o canto de entrada. No texto de Carybé, não é apresentada a pergunta do solis-ta, o coro entra direto com a resposta. A palavra “camara-do”, grafada na citação, refere-se, provavelmente, mais ao sentido do que à maneira como se falava: “câmara”. Porém, esse texto não menciona os corridos. Existem outras fontes que citam os repertórios com as suas respectivas defi ni-ções e acepções.

A capoeira regional, técnica criada pelo Mestre Bimba, tem, principalmente nesta época, muito mais proximidade do que distanciamento com a capoeira angola, como pode ser observado na seguinte reportagem da década de 40, realizada por Ramagem Badaró (1980: 47-50):

Qual é o toque? - São Bento Grande Repicado, Santa Maria, Ave Maria, Banguela, Cavalaria, Ca-lambolô, Tira-de-lá-bota-cá, Idalina ou Concei-ção da Praia? - Bimba pensou rapidamente e disse: - Toque Amazonas e depois Banguela. Os berimbaus começaram a tocar. O crioulo apro-ximou-se e Mestre Bimba apertou-lhe a mão. E o povo começou a acompanhar o tin-tin-tin dos berimbaus, batendo palmas. Bimba balanceou o corpo e cantou: “No dia que eu amanheço, Dentro de Itabaianinha, Homem não monta ca-valo, Nem mulher deita galinha, As freiras que estão rezando, Se esquecem da ladainha”. Mas o crioulo não fi cou atrás e cantou, negaceando o corpo no compasso dos berimbaus. “A iúna é mandingueira, Quando está no bebedor, Foi sabida e é ligeira, Mas capoeira matou”. Palmas festejaram o repente do crioulo. Porém, Bimba não deu tréguas à vitória do outro. E respondeu: “Oração de braço forte, Oração de São Mateus, P’ro Cemitério vão os ossos, Os seus ossos não os meus”. Novamente o Povo aplaudiu e can-tou o estribilho da capoeira: “Zum, zum, zum, zum, Capoeira mata um, Zum, zum, zum, zum, No terreiro fi ca um”. O crioulo, entretanto, não deixou cair a quadra de Mestre Bimba e replicou: “E eu nasci no sábado, No domingo me criei, E na segunda-feira, A capoeira joguei”. A multidão deu vivas e bateu palmas para os dois lutado-res no centro do círculo. Uma preta comentou: - Bom menino! Se é bom na briga como é no canto, boa parada para Bimba. […] Tinha venci-do a luta. O povo invadiu o terreiro aplaudindo o rei da capoeira. Bimba abraçou o adversário. E o crioulo mostrou que era homem mesmo. Cantou: “Santo Antônio pequenino, Amansador de burro brabo, Amansai-me em capoeira, Com setenta mil diabos”. Bimba gostou do elogio e retribuiu, cantando: “Eu conheci um camarada, Que quando nós andarmos juntos, Não vai ha-ver cemitérios, Pra caber tantos defuntos”.

Esses “duelos musicais”, como expressão de uma “eti-queta ou até ética capoeirista”, com “adversários cantantes”, embora cada dia mais raros na capoeira, aproximam essa arte de outras manifestações da cultura popular brasileira, como contendas musicais, desafi os de cantadores e cururus.

Os grupos de capoeira angola, por via de regra, dizem obedecer aos ensinamentos da escola de Mestre Pastinha, chamando o conjunto de instrumentos da capoeira de ba-teria. Como já se disse, os três berimbaus começam a tocar, um de cada vez, seguidos pelo pandeiro e juntando-se os demais instrumentos, reco-reco, agogô e atabaque, no fi nal da ladainha.

Foto: Delfi m Martins/Pulsar Imagens

CapoeiraA música na capoeira Angola da Bahia

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A música na capoeira angola da Bahia

A capoeira, geralmente, é jogada com o acompanha-mento do berimbau. Os padrões rítmico-melódicos produ-zidos por esse instrumento são chamados pelos capoei-ristas de toques. Esses toques consistem basicamente em combinações rítmicas e variações de timbre nos três sons distintos do instrumento: 1 - o mais agudo, executado pela percussão da vareta na corda do berimbau tencionada pelo dobrão; 2 - menos agudo, no qual o dobrão fi ca sobre a corda, sem tencioná-la; 3 - o mais grave, executado com a percussão da vareta na corda solta do berimbau.

No berimbau, combinam-se os três sons básicos do ins-trumento às variações do volume e do timbre, os quais são regulados pelo controle da posição e do distanciamento da abertura da cabaça em relação à região abdominal do instrumentista e da intensidade da percussão da vareta.

Todos os ensinamentos da capoeira angola são trans-mitidos oralmente e captados pela observação, ensaio e erro, correções e repetidas demonstrações dos mestres para os aprendizes. Todo aluno é respeitado no seu desen-volvimento individual, mas é muito comum o mestre insistir com todos os aprendizes, expressando-se principalmente pelas cantigas ao “improvisar,” durante as partes do solista, frases como: O atabaque atravessou (saiu do tempo, por acelerar ou retardar). Quero ouvir o reco-reco (ou outro nome de instrumento que esteja sendo tocado com pou-ca atenção, ou pouco intenso, volume baixo). Quero ouvir vocês cantar (direcionado para todos os membros do coro da capoeira).

Durante a roda, geralmente é o mestre quem delibera quais as pessoas que sentarão nos bancos da bateria e que instrumentos elas tocarão. Podem ocorrer substituições voluntárias, com a ausência do mestre ou a convite des-te, conforme o desempenho do instrumentista, que pode passar ou não de um instrumento para outro, considerado mais fácil ou mais difícil.

Geralmente, começa-se o aprendizado dos instru-mentos tocando-se reco-reco, depois agogô, pandeiro ou atabaque e, por fi m, o berimbau. Existem aprendizes que só tocam reco-reco e agogô. Outros tocam até berimbau, mas não atabaque. Há quem toque o atabaque e os de-mais instrumentos da bateria, mas raramente o berimbau. Quando o angoleiro já conhece todos os instrumentos, ele mesmo é quem escolhe qual tocará e não lhe será exigido que toque mais de um. Aparentemente, isso ocorre tanto na capoeira angola quanto na regional. Muitos capoeiristas só tocam berimbau. Carybé, por exemplo, só tocava pan-deiro. O que mais ajuda no processo de aprendizagem do angoleiro é a observação.

Devo ressaltar que, na capoeira, todos aprendem a jo-gar, a tocar todos os instrumentos e a cantar, mesmo que depois sejam desenvolvidas capacidades específi cas na escolha preferencial dos instrumentos, além do reconheci-mento daqueles que têm dom para a criação e apresenta-ção das ladainhas no começo da rodas.

No berimbau, combinam-se os três sons básicos do instrumento às variações do volume e do timbre, os quais são regulados pelo controle da posição e do distanciamento da abertura da cabaça em relação à região abdominal do instrumentista e da intensidade da percussão da vareta.

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O repertório musical da capoeira transita entre o sam-ba-de-roda e alguns cantos que se aproximam de cantos de trabalho. Existem também o uso do repertório tradicio-nal do candomblé de caboclo e, alguns casos, até música de candomblé de orixás.

Atualmente, a capoeira, principalmente sua música, aju-da a difusão da língua portuguesa, especifi camente a falada na Bahia. Além disso, essa expressão cultural catalisadora e estimulante dos movimentos corporais dos jogadores é holística na sua visão de integração, mas é brasileira, mos-trando, na música, sua principal força criativa.

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Ricardo Pamfi lio de Sousa. Mestre em Etnomusicolo-gia pela UFBA, 1997 “A música na capoeira angola.” Mem-bro da Fundação Pierre Verger, responsável pela cultura digital no projeto Ponto de Cultura Pierre Verger no Centro da Cultura Afro-brasileira.

CapoeiraA música na capoeira Angola da Bahia

Foto

: Rita

Bar

reto

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A mulher na capoeiraLilia Benvenuti de Menezes

Algumas das grandes referências femininas de força, garra, coragem e segurança retratadas na história remetem-nos à década de 1940, quando se destacaram as famosas “Maria 12 Homens”, “Calça Rala”, “Satanás”, “Nega Didi” e “Maria Pára o Bonde”, mulheres que se fi zeram passar por ho-mens para poderem conviver no meio da malandragem das rodas da capoeira. Personagens len-dárias como Rosa Palmeirão, a capoeirista que serviu de inspiração para Jorge Amado no romance Mar Morto, é também um desses exemplos. Respeitada e temida como a mulher mais “arretada” que sacudiu o cenário dominado pelas fi guras masculinas, era Maria 12 Homens, uma capoeirista, assídua freqüentadora das rodas do Cais Dourado e da rampa do Mercado Modelo. O sobrenome de Maria, não está registrado na memória de Salvador, mas o apelido, segundo a lenda, foi pelo fato de ter conseguido levar 12 marmanjos a nocaute. Acima de tudo, essas mulheres fi zeram o nome na história e buscaram seu espaço com muita astúcia e malícia. Em busca de liberdade, consegui-ram sair vitoriosas, deixando seu registro para a posteridade.

Há vários mitos em torno de mulheres que fi zeram de sua honra uma batalha de vida, tornan-do-se modelos de coragem e de determinação. Conta-se, por exemplo, que Aqualtune, fi lha do rei do Congo, comandou um grande exército de dez mil homens quando os Jagas invadiram seu território. Após tentar defender o reinado, acabou sendo derrotada elevada para um navio negreiro como escrava reprodutora. Foi obri-gada a ter relações sexuais com um escravo, desembarcando em Recife grávida. No fi m de sua gravidez, organizou uma fuga com outros escravos para Palmares.

Atualmente, as mulheres, símbolo de vitória e orgu-lho, vêm alcançando, cada vez mais, posições de desta-que na política e no mercado, com melhores funções e diversos cargos importantes. Também no esporte, a mu-lher tem conquistado muitas medalhas, troféus e títulos. Na capoeira, como não poderia deixar de ser, a participação feminina tem sido cada vez mais freqüente, ajudando a fortale-cer a modalidade. Ela toca, canta, joga, ministra aulas e participa de debates com muitos dos renomados mestres da arte. Maria 12 Homens, Calça Rala, Satanás, Nega Didi, Maria Pára o Bonde e Rosa Palmeirão, onde quer que estejam, têm muitos motivos parase ufanarem.

Lilia Benvenuti de Menezes. Professora de Educação Física, professora do Grupo Muzenza e bicampeã mundial pela Super Liga Brasileira de Capoeira. Autora do livro “Benefícios Psicofi -siológicos da Capoeira”.

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Fotos: Marc Ferrez

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EntrevistaSenhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja)

TB: A capoeira é apontada por muitos especialistas como uma das mais autênticas manifestações culturais brasi-leiras. Em sua opinião, quais características da capoeira são reveladoras da idiossincrasia brasileira?

Janja: Gostaria, inicialmente, de tratar a capoeira como uma manifestação cultural afro-brasileira. Isso é muito importante para mim, uma vez que considero fundamental não prosse-guirmos pensando o Brasil sem as suas “africanidades”. A partir daqui, entendo que a capoeira é uma arte reveladora do jeito de ser do brasileiro, desenvolvendo formas criativas de ser relacionar com realidades muitas vezes violentas.É assim que o “gingar”, mais que um movimento específi co da capoeira, se converteu numa habilidade de vivenciar e en-frentar as adversidades, mimetizando luta e dança, e trans-formando estereótipos negativos em alegrias comunitárias.

TB: A senhora possui uma trajetória de mais de vin-te anos dedicados ao mundo da capoeira. Nesse período, quais foram as principais transformações que a senhora notou em relação à capoeira?

Janja: Sim, estou na capoeiragem há cerca de vinte e cin-co anos e, felizmente, em condições de conhecer alguns dos seus desdobramentos em vários estados brasileiros e também em vários países. O que mais me impressiona é a mudança que caracteriza as novas formas de convivências entre os grupos e, principalmente, entre os mestres. A possibilidade de realizarem atividades conjuntas, dialogando com diferentes públicos ou mesmo com os poderes públicos, ainda que não elimine antigas desconfi anças, estabelece diferentes modelos de convivência. A crescente presença da mulher é também um importante fenômeno a ser apresentado e discutido.

TB: Em diversos setores da vida civil, as mulheres con-seguiram conquistar signifi cativo espaço que lhes era cerceado até meados do século XX. Quais são os progressos que a senhora destacaria no que se refere à participação da mulher nas rodas de capoeira?

Janja: Começo afi rmando que, antes de chegar às rodas de capoeira, a mulher enfrenta caminhos diferenciados para se tornar e se fazer reconhecer capoeirista. Não é novidade para ninguém que a capoeira deixou de ser algo específi co de homens, se é quem algum dia o foi. Hoje há organizações de capoeira fundadas e lideradas por mu-lheres, ou mesmo grupos, sobretudo no exterior, em que as mulheres constituem a maioria dos praticantes. Entretanto, ainda lidamos com um grande desequilíbrio de representa-tividade quando pensamos no reduzido número de mulhe-res que são promovidas pelo sistema de graduação. Temos visto grupos, com base em certas “tradições” por eles cria-das, dizerem que as mulheres não podem tocar o gunga ou “puxar” uma ladainha, mesmo que esse conhecimento lhes seja exigido no dia-a-dia dos treinamentos e demais aprendizados da capoeira.

Rosângela Costa Araújo, a Mestra Janja, é uma das personagens mais conhecidas no mundo da capo-eiragem. Formada em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), dedicou mais de vinte anos de sua vida à capoeira, seja em sua vertente acadêmica, seja na prática do quotidiano. Nesta entrevista concedida à revista “Textos do Brasil”, Mestra Janja emite suas opiniões a respeito da inserção da mulher no mundo da capoeira, das transformações ocorridas nessa área nos últimos anos e dos desafi os e perspectivas que a capoeira terá pela frente.

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Sendo a roda de capoeira o espaço de apresentação da identidade, força e competência dos grupos, ao con-trário do exercício da autonomia, as mulheres vivenciam situações diver-sas de opressão e violência, concreta e simbólica, levando-as à formação de vários coletivos, em diferentes pa-íses, que atuam estimulando debates e constituindo redes de aprendizado e de solidariedades distintas. Nesse sentido, temos que entender a capo-eira em permanente diálogo com a sociedade a seu redor, como sendo a “pequena roda” inserida na “grande roda”, e que as lutas das mulheres na sociedade como um todo também são refeitas na capoeiragem.

TB: Quais são os obstáculos que ainda devem ser vencidos pelas mulheres na capoeira?

Janja: Talvez seja este um bom momen-to para invertermos o prisma desta ques-tão, perguntando: quais são os obstáculos que precisam ser vencidos pela capoeira para integrar de maneira respeitosa e qualifi cada a presença da mulher?Assim, podemos levar em considera-ção dois temas relevantes: a diversida-de e a construção do direito à eqüida-de. Esse é um desafi o que a capoeira deve assumir, levando em conta que a presença feminina vai desde o de-

senvolvimento dos conhecimentos que defi nem as exigências específi cas, como movimentos, toques, cantos, história e fi losofi a da capoeira, etc., até a sua inquestionável capacidade de organizar e conduzir grupos, conside-rados sob o aspecto de organizações culturais, educacionais e políticas, tan-to no interior da capoeiragem quanto nos debates com os movimentos so-ciais mais amplos.Entretanto, para avançarmos, é neces-sário entender que a capoeira precisa incorporar novos olhares sobre sua diversidade estética. Da mesma forma que entre os grupos tradicionalmente conduzidos por homens existe uma diversidade estética muito acentuada, para defi nir e indicar a identidade de cada grupo, de cada mestre, também é assim que as mulheres buscam ser valorizadas, compondo um novo ce-nário, e não necessariamente reprodu-zir conceitos (inclusive corporais) que não representam códigos femininos.

TB: É comum escutar que a for-mação do aluno de capoeira deve ser global, isto é, abranger não apenas seus elementos técnicos e físicos, mas também sua for-mação moral e ética. Quais são os valores que a capoeira pode de-senvolver em seus praticantes?

Janja: Primeiro a capoeira deve ser apresentada à pessoa que busca ser iniciada na sua prática. Isso porque sen-do a capoeira uma prática comunitária (estou falando da capoeira angola), seus aspectos históricos e fi losófi cos são ne-cessários na formação da identidade do grupo. Os seja, um bom começo é situar tanto o grupo como a pessoa na sua rede de pertencimento.A partir daí, valores como hierarquia, ancestralidade, cooperação, respeito às diferenças, etc. passam a ser enca-rados como valores que situa a pessoa na própria comunidade. Aqui, é impor-tante reafi rmar o caráter formador da capoeira, fazendo do ser capoeirista algo que reúne, além de habilidades corporais, musicais, uma conduta que atesta os conhecimentos orientados em seu grupo.

TB: A capoeira tem sido utiliza-da exitosamente como meio de inclusão e coesão social. Quais são as características da ca-poeira que lhe permitem essa utilização? Quais as principais iniciativas nesse sentido que a senhora destacaria como mais signifi cativas?

Janja: Sim, a capoeira tem cumprido um importante papel na formação de comunidades culturais, sobretudo en-tre crianças e jovens residentes nas periferias dos centros urbanos. Além de produzir variados níveis de atração e envolvimento, trata-se de uma atividade que tem contado com a dedicação e ini-ciativa de pessoas envolvidas com a sua preservação e difusão. Felizmente, vivemos hoje uma reali-dade em que o poder público, a partir de iniciativas do governo federal, tem reconhecido a importância social da capoeira por meio de programas, edi-tais e registros, fazendo com que gru-pos e associações situados em lugares mais distantes dos eixos de dominân-cia cultural tenham os seus trabalhos divulgados entre a comunidade de capoeiristas mais ampla. Entre essas iniciativas podemos destacar o regis-tro, em curso, de reconhecimento da capoeira como patrimônio imaterial, orientado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; os programas Cultura Viva, Pontos de Cultura, Capoeira Viva, entre outros se-diados no Ministério da Cultura – MinC; e a construção de políticas públicas em algumas prefeituras brasileiras. No ex-terior, podemos citar, além da proposta do Programa Mundial de Capoeira do MinC, ações de mestres e grupos que, em diversos países, vão estreitando vínculos com os sistemas de ensino e vários espaços culturais.

TB: Do seu ponto de vista, quais são as virtudes que um bom ca-poeirista deve possuir?

Janja: Ginga, capacidade de ser fl exí-vel também na “grande roda”. Aber-tura para se manter em formação. Responsabilidade na escolha dos ensi-

Mestre Janja

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namentos, visando à sua formação in-tegral como capoeirista. Exercício per-manente da tolerância e acolhimento. Respeito às diferenças.

TB: A senhora defendeu, em 2004, sua tese de doutoramento a res-peito da capoeira. Não obstante, até pouco tempo, muitos capo-eiristas viam com desconfi ança as pesquisas do meio acadêmi-co, pois acreditavam que valores distintos regiam o universo da capoeira e o da academia. Como está essa relação atualmente?

Janja: Não creio que esta desconfi ança seja uma especifi cidade dos capoeiris-tas. Também aqueles que são iniciados em outras tradições de matrizes africa-nas, como o candomblé, só se abrem para aceitar muitos dos estudos acadê-micos após fazerem parte desse meio. Assim, é possível encontrarmos, hoje, em muitos grupos de capoeira, no Bra-sil e no exterior, a presença de pesqui-sadores, acadêmicos ou não, realizando pesquisas e publicações importantíssi-mas para a capoeira. Aqui, gostaria de destacar, também, a existência de gru-pos formados por pesquisadores da ca-poeira que mesclam esse perfi l: o Gru-po de Estudos da Capoeira – GECA, de abrangência nacional, que reúne uma grande maioria de capoeiristas, sendo alguns inseridos em programas de pós-graduação e outros que são docentes de instituições universitárias; e o Grupo de Estudos Mestre Noronha, projeto do Instituto Jair Moura, em Salvador.

TB: Existem diversas vertentes no universo da capoeira. A se-nhora acredita que essa diversi-dade pode ser considerada como um fator revelador da complexi-dade cultural da capoeira e, logo, da cultura brasileira?

Janja: Sim, sem dúvida, e talvez seja esta também a sua maior riqueza na atualidade. É necessária a compo-sição de distintos quadros de refe-rências para se dar conta das muitas possibilidades de abordagens que a capoeira atua.

Entretanto, devemo-nos manter pre-ocupados com certos hibridismos que descaracterizam a capoeira. Em lugar de preocuparmo-nos em fi car inventando nomes para novas mar-cas e seus subseqüentes patentea-mentos, deveríamos empenhar-nos em revelar, nas complexidades da própria capoeira, as suas inúmeras possibilidades de atuação e de cola-boração com áreas afi ns (artes, saú-de, educação, direito, etc.).

TB: A capoeira tem se tornado uma atividade muito popular em todos os continentes. Em sua opi-nião, a que se deve esse sucesso? Como a senhora avalia essa inter-nacionalização da capoeira?

Janja: Acho que a capoeira mantém atualizada a alma pela juventude. Ela produz campos individuais e co-letivos de expressão que são muito atraentes por sua plasticidade, mu-sicalidade e demais aspectos de formação grupal. Isso tem sido evi-denciado na medida em que crian-ças, jovens e adultos de diferentes origens, culturas, classes sociais se entregam aos seus ensinamentos, buscando reconhecer suas redes de pertencimento, cujas matrizes se encontram no Brasil, e criando um fantástico mosaico humano capaz de reunir pessoas que muitas vezes estariam separadas pelas desigual-dades e conflitos com que várias dessas diferenças são tratadas no contexto político mundial.Por outro lado, é importante que esses novos capoeiristas reflitam e reconheçam o sentido históri-co e político da capoeira para que ela não ganhe novos contornos de folclorização ou seja entendida por processos de simplificação esporti-va. Afinal, não é a maioria dos capo-eiristas que querem ver a capoeira convertida num esporte olímpico. Da mesma forma, a capoeira deve-se manter atrelada ao seu passado como forma de garantir a sua per-manência no quadro das lutas dos povos negros no Brasil, pela con-quista da liberdade.

TB: Quais os estereótipos que a capoeira e os capoeiristas ainda enfrentam atualmente?

Janja: Acho que tem estereótipos que devem ser encarados tanto pela sociedade quanto pelos poderes pú-blicos. A sociedade brasileira precisa reconhecer e nomear suas africanida-des como sendo um aspecto central na construção da sua identidade na-cional, e os poderes públicos devem assegurar procedimentos necessários a esse reconhecimento, seja por meio de revisões nos conteúdos de livros di-dáticos e demais produções literárias, seja incentivando, inclusive, iniciativas que desenvolvam trabalhos qualifi ca-dos para essas novas formações.

TB: Quais os desafi os que a práti-ca da capoeira enfrenta no mun-do contemporâneo?

Janja: Desarmar-se de nacionalismos, culturalismos e demais formas de in-tolerância que alimentam racismos, sexismos e xenofobias. Impedir que sejam transferidas para dentro da ca-poeiragem as violências políticas que buscamos eliminar na “grande roda”. Manter-se promovendo a construção da liberdade e da eqüidade e, à des-peito da sua inserção mundial, refl etir seus processos de massifi cação.

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As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

TAL QUAL NA RODA DE CAPOEIRA, ONDE O PÚBLICO OBSERVA AS JOGADAS, AS BRINCADEIRAS, RE-

PRESENTAÇÕES E TENSÕES INERENTES AO JOGO, NESTE TEXTO PROCUREI OBSERVAR E APONTAR

ALGUNS ELEMENTOS APREENDIDOS NAS VOLTAS DO MUNDO1 DADAS ENTRE A MANIFESTAÇÃO

CULTURAL CAPOEIRA E A EDUCAÇÃO FÍSICA2, NO DECORRER DO SÉCULO XX, A PARTIR DO OLHAR

DE PESQUISADORA/CAPOEIRISTA.

Paula Cristina da Costa Silva

(1) Volta do mundo é parte de um verso cantado na ladainha, de abertura de um jogo de capoeira. Esse termo pode ser traduzido como uma senha para o início da movimentação corporal do jogo e signifi ca também, no mundo capoeirístico, as diversas possibilidades de jogadas a serem desenroladas durante a roda de capoeira. Alguns autores, como Letícia V. S. Reis (1997), traçam um paralelo da roda de capoeira aos acontecimentos da vida cotidiana, daí a expressão voltas do mundo também signifi car tudo o que é produzido pelos seres humanos no decorrer de suas histórias.

(2) Neste texto utilizarei o termo Educação Física com as iniciais maiúsculas para designar a área de conhecimento e educação física com as iniciais minúsculas para tratar da disciplina pedagógica responsável pela pedagogização dos temas da cultura corporal.

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As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

(3) Compreendo como mundo capoeirístico tudo o que é produzido pelos mestres, professores e praticantes da capoeira fora do âmbito acadêmico.

(4) A implantação da educação física no Brasil é diretamente ligada aos métodos ginásticos europeus que ganharam força no País a partir do início do século XX. A fi nalidade desses, assim como em seus países de origem, era disciplinar os corpos, objetivando o fortalecimento da população para a produção nas fábricas e desenvolver um plano higienista, sem a preocupação com o desenvolvimento de políticas sociais de saneamento básico e atendimento médico. Para se obter mais informações sobre os métodos ginásticos no Brasil consultem as obras Educação Física: raízes européias e Brasil, de Carmem Lúcia Soares, 1994 e Educação Física no Brasil: a história que não se conta, de Lino Castellani Filho, 2000.

As inter-relações entre a capoeira e a Educação Física iniciaram-se no começo do século XX, quando não só autores da Educação Física, mas também da Educação e das Forças Armadas buscaram mecanismos para incorporar a capoeira ao esporte, em plena ascensão no período, e adaptá-la aos métodos ginásticos.

Esta análise foi construída a partir do meu trabalho de mestrado, no campo da Educação Física, orientada pelo Prof. Dr. Lino Castellani Filho, no qual me propus compre-ender como os estudiosos dessa área de conhecimento se apropriaram da prática social capoeira e dos estudos deri-vados desse tema. A partir deste ponto principal, surgiram outros três questionamentos que complementaram a aná-lise, foram eles: qual a história da prática social capoeira; se seu percurso histórico corre paralelamente ao da Educação Física, se se intercruzam em algum lugar e em qual mo-mento; e qual é o entendimento que o segmento vinculado ao espaço de confi guração da regulamentação da profi ssão de Educação Física possui, tanto da própria Educação Física quanto da capoeira, para justifi car a subordinação da ação profi ssional no âmbito da capoeira aos Conselhos Federal e Regionais de Educação Física.

Na busca de respostas a essas indagações, foi realiza-do um estudo bibliográfi co referente à capoeira nas áreas de Educação Física, História, Antropologia e Sociologia, e também daquelas pertencentes ao mundo capoeirístico3. Procurou-se complementar o material analisado com da-dos de fontes bibliográfi cas originárias de revistas publica-das nos últimos 20 anos que tratam desse tema.

Pude apreender que a história da prática social capoeira permeou todos os debates desenvolvidos, uma vez que ela serviu de pano de fundo para a compreensão do desen-volvimento dessa manifestação cultural na sociedade bra-sileira. E foi a partir da retomada de seu percurso histórico que pude traçar os paralelos existentes entre a capoeira e a Educação Física.

Primeiramente, é importante mencionar que a capoeira tem sua origem ligada aos negros escravos que foram tra-zidos ao Brasil e que forjaram, a partir do século XVI, várias manifestações em solo brasileiro: o candomblé, o samba, a congada, o maracatu, entre outras. A capoeira destaca-se das demais devido à sua grande expansão nos últimos anos, alcançando países nos cinco continentes do mundo. Essa manifestação pode ser considerada como um misto de luta, dança, brincadeira, teatralização, jogo, esporte.

Conforme pude constatar, as inter-relações entre a capoeira e a Educação Física iniciaram-se no começo do século XX, quando não só autores da Educação Física, mas também da Educação e das Forças Armadas buscaram me-canismos para incorporar a capoeira ao esporte, em plena ascensão no período, e adaptá-la aos métodos ginásticos4 A idéia principal desenvolvida por esses autores, inclusive

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(5) O termo negro e popular refere-se ao modo pelo qual a capoeira é pensada e praticada a partir de sua concepção como uma manifestação ambígua originária das tradições africanas no Brasil. Já o termo branco e erudito é usado para designá-la a partir de uma concepção ligada ao seu enquadramento como método ginástico brasileiro, luta de defesa nacional ou esporte legitimamente brasileiro. Estes termos foram forjados e discutidos com maior profundidade por Letícia V. S. Reis, em seu livro O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil, de 1997.

sendo alguns deles praticantes da capoeira, era a de torná-la uma modalidade esportiva ou uma luta de defesa pesso-al que representasse a nação brasileira, daí a exaltação de sua brasilidade.

Dessa forma, pautados em um discurso nacionalista e aderindo à política higienista, em voga no início do século XX, propuseram sua prática destituída dos valores herda-dos de suas origens negra e popular5. No entanto, nota-se uma oportunidade de aproximação de duas camadas dís-pares da sociedade, a classe abastada, representada pelos autores citados, e a classe pobre, representada pelos ex-escravos e trabalhadores. Isso porque o discurso de “disci-plinarização” da capoeira passa a servir, em certa medida, para a sua revalorização pela camada dominada, uma vez que sua prática em locais públicos havia sido proibida pelo Código Penal de 1890.

Nesse sentido surgem ações, requerendo para ambas as partes a legitimidade da capoeira como uma prática na-cional, porém divergindo completamente na forma como propunham sua manifestação. De um lado, tínhamos a or-denação da capoeira com o Método Zuma, que sugeria sua prática baseada no esporte – principalmente, nos moldes do boxe – e que era apoiada pela classe abastada. E, do outro lado, a manutenção de sua prática no interior da ca-mada subalterna por meio das manifestações oriundas da população negra, como as festas de fundo de quintal e de

largo. Mas, até esse momento, a inter-relação entre a edu-cação física e a capoeira não se manifestava de forma clara e contundente.

Foi em 1945, com o professor Inezil Penna Marinho, que se concretizaram, de forma mais evidente, os primei-ros passos em direção à apropriação e a busca de um novo signifi cado para a capoeira por meio da educação física, vi-sando desenvolver uma metodologia para o treinamento da capoeiragem baseada no Método Zuma. É interessante apontar que esse processo ocorreu paralelamente ao da legalização dessa manifestação cultural no período do Es-tado Novo, década de 1930, demonstrando, novamente, a luta dos representantes de classes sociais divergentes pela apropriação da capoeira. No entanto, o resultado dessa luta foi favorável à proposta advinda dos mestres e praticantes da capoeira, pautados em sua origem negra e popular, no-tadamente os representantes da classe subalterna de Sal-vador (Bahia), em detrimento daquela do professor Inezil. Mas, apesar disso, é inegável a infl uência da educação física e esporte na confi guração da capoeira adotada, hegemoni-

Foto: Ricardo Azoury/Pulsar Imagens

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(7) ABREU, Frederico José de. Bimba é bamba: a capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair Moura, 1999.

(8) PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da cultura afro-brasileira: a formação histórica da capoeira contemporânea (1890 – 1950). 2001. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais (IFCH), Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

(9) Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, e Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, foram ícones da capoeira baiana e obtiveram êxito na luta para a retirada da capoeira do rol de atividades incluídas como contravenção penal, em 1890, conseguindo seu reconhecimento pela sociedade brasileira, a partir da década de 1930.

(10) FILHO, 1997 apud PIRES, 2001, op. cit., p. 282 (11) ABREU, 1999, op. cit., p. 30.(12) Conforme cantava Mestre Pastinha e outros mestres contemporâneos a ele: “Capoeira é pra

homem, menino e muié. Só não joga quem não qué”.(13) Termo sugerido por Letícia Vidor de Souza Reis (1997) para designar as diferenças entre

uma pedagogia gerada pelos mestres de capoeira denominada popular e outra denominada erudita emanada da área de Educação Física e infl uenciada pelo sistema social hegemônico da época.

Portanto, considera-se que a primeira inter-relação concreta entre a Capoeira e a Educação Física se deu no sentido dos praticantes de capoeira apropriarem-se do prestígio da Educação Física da época para fi rmarem suas idéias referentes a essa manifestação cultural.

camente, a partir das idéias dos mestres baianos. De acor-do com as análises das obras de Frederico José de Abreu7 e de Antônio Liberac C. S. Pires8, pode-se constatar que foi a partir da estrutura esportiva que os mestres e praticantes da capoeira primeiro demonstraram a possibilidade dessa ma-nifestação integrar o rol de modalidades esportivas – partici-pação da capoeira nas lutas de ringue – e, depois, passaram a organizar os treinamentos e aulas, servindo-se do prestígio da educação física, na década de 1930, para posteriormente apontar a capoeira como a Educação Física do Brasil.

Portanto, considera-se que a primeira inter-relação concreta entre a Capoeira e a Educação Física se deu no sentido dos praticantes de capoeira apropriarem-se do prestígio da Educação Física da época para fi rmarem suas idéias referentes a essa manifestação cultural. É interessan-te mencionar que os mestres soteropolitanos realizaram in-terpretações próprias sobre a Educação Física e o esporte, relacionando-os com a prática da capoeira, como podemos notar nas palavras de mestre Pastinha9: “[...] com franqueza, já é tempo de zelar pelo esporte. O propósito meu não era fazer-me melhor que os camaradas, sim valorizar o espor-te”10. Ou nas explicações de mestre Bimba, para legitimar seu método de ensino: “Tenho na parede uma autorização da Secretaria de Educação. Sou professor de cultura físi-ca. Ninguém pode mexer comigo”11. Assim, jogando com os interesses governamentais e defendendo a prática da capoeira de forma democrática12, vemos vingar, a partir da década de 1930, a pedagogia popular13 para o ensino des-sa manifestação cultural.

Ao mesmo tempo em que os mestres se utilizaram da cultura erudita – representada, nesse caso, pelo es-porte e pela educação física –, eles a remodelaram de acordo com seus interesses. Dessa maneira, eles reinven-taram sua tradição e consolidaram o discurso da capoeira como legítima contribuição da Bahia e do negro baiano na cultura nacional. Percebemos que, com a supremacia desse discurso, ocorreu a valorização da capoeira como uma manifestação cultural ampla, sem a negação de sua origem africana e sem sua restrição a uma modalidade esportiva ou luta de defesa pessoal. Notamos que os mes-tres baianos potencializaram o caráter ambíguo da capo-eira e, conseqüentemente, de sua prática, pois não recu-

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(9) Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, e Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, foram ícones da capoeira baiana e obtiveram êxito na luta para a retirada da capoeira do rol de atividades incluídas como contravenção penal, em 1890, conseguindo seu reconhecimento pela sociedade brasileira, a partir da década de 1930.

(10) FILHO, 1997 apud PIRES, 2001, op. cit., p. 282 (11) ABREU, 1999, op. cit., p. 30.(12) Conforme cantava Mestre Pastinha e outros mestres contemporâneos a ele: “Capoeira é pra

homem, menino e muié. Só não joga quem não qué”(13) Termo sugerido por Letícia Vidor de Souza Reis (1997) para designar as diferenças entre

uma pedagogia gerada pelos mestres de capoeira denominada popular e outra denominada erudita emanada da área de Educação Física e infl uenciada pelo sistema social hegemônico da época.

(14) Apesar de Mestre Pastinha e Mestre Bimba terem lutado para tirarem a capoeira do rol de atividades incluídas como contravenção penal, cada qual formulou uma proposta diferenciada para sua prática. A proposta de Mestre Bimba consistia numa proposta regional baseada na adaptação de diferentes manifestações culturais como o batuque, e a capoeira até então praticada, com a mistura de modalidades esportivas e de lutas. A proposta de Mestre Pastinha, a capoeira angola, tinha como parâmetro a etnicidade baseada na prática da capoeira até aquele momento histórico, com poucas alterações.

saram sua confi guração esportiva e reforçaram, em seu discurso, sua ambigüidade, defi nindo-a como luta, dança, música, defesa pessoal, fi losofi a de vida, etc.

Entretanto, apesar de termos como vencedora a pedago-gia popular para o ensino da capoeira nesse primeiro jogo en-tre a capoeira e a Educação Física, não tardou muito para que novas propostas emergissem, pleiteando sua inserção no rol de modalidades esportivas ou de lutas de defesa pessoal.

Uma dessas propostas surgiu da parceria entre a edu-cação física e as Forças Armadas – parceria por sinal muito recorrente ao longo do século XX. Na década de 1960, o Primeiro-Tenente Lamartine Pereira da Costa foi a segunda pessoa ligada à Educação Física a propor a incorporação da capoeira como um método de defesa pessoal, tendo sido Fernando de Azevedo, em sua obra Da Educação Físi-ca: o que ela é, o que tem sido e o que deveria ser (segui-do de Antinoüs), o primeiro estudioso a fazer isso. Em sua proposta, Lamartine Pereira da Costa sugeria a incorpora-ção da capoeira no treinamento dos soldados da Marinha, como uma forma de preparação para possíveis lutas. Dessa sua iniciativa nasceu o livro Capoeira sem mestre, de sua autoria, no qual se nota claramente o desejo de colocar em xeque a competência dos velhos mestres de capoeira. Entretanto, essas idéias não se concretizaram, sendo que, mais uma vez, não passou de uma tentativa frustrada da educação física de se apropriar da capoeira.

No entanto, ocorreram mudanças na sociedade bra-sileira, nas décadas de 1960 e 1970, com a chegada dos militares ao poder, com o golpe de Estado de 1964. Dentre os vários acontecimentos desencadeados naquela épo-ca, houve a utilização da educação física como válvula de escape para possíveis “transgressões” no âmbito político por meio, principalmente, da valorização dos movimentos esportivos, processo discutido por Lino Castellani Filho, na obra Educação Física no Brasil: a história que não se con-ta. Nesse caso, foi constatada nova inter-relação entre a educação física e a capoeira a partir do fortalecimento do

fenômeno da esportivização no interior da capoeira, acom-panhando as mudanças que ocorriam na educação física.

Foi a partir da década de 1970 que houve a ocorrência mais nítida do movimento de esportivização da capoeira, com a sua incorporação como modalidade esportiva na Confederação Brasileira de Pugilismo e da organização dos capoeiristas em grupos. O mestre de capoeira ainda per-manecia como a fi gura central na hierarquia organizacional dos grupos, mas, nesse momento, há a entrada no jogo de novas regras para a capoeira, muito próximas a de outras modalidades esportivas.

Pode-se dizer, portanto, que, naquele momento histó-rico, prevaleceu a infl uência esportiva na capoeira e, con-seqüentemente, as infl uências da educação física, que se encontrava estreitamente ligada ao fenômeno esportivo. Mas essa primeira vitória da educação física no jogo não se mostrou de forma defi nitiva e plena. Ao contrário, os vários grupos organizados de capoeira não acolheram homoge-neamente a idéia de torná-la uma modalidade esportiva vinculada à Confederação Brasileira de Pugilismo. Os capo-eiristas divergiram em vários âmbitos com relação à trans-formação da capoeira em manifestação única, confi gurada por meio de uma modalidade esportiva. Assim, considera-se esse fato como um momento chave para se compreender os desdobramentos ocorridos nessa manifestação cultural, pois das divergências existentes entre os diferentes grupos é que foi possível o surgimento de propostas inovadoras que infl uenciaram, anos depois, vários estudiosos de dife-rentes áreas para o repensar da capoeira em nossa socie-dade. Um exemplo disso foi o movimento de contestação da Capoeira Esporte, que fez ressurgir com força as idéias de mestre Pastinha e a sua proposta da capoeira angola14.

Assim, o movimento desencadeado pelos grupos de capoeira, organizados de diferentes formas, transgredindo abertamente as regras estabelecidas pela Confederação Brasileira de Pugilismo, trouxe ao cenário do jogo a pos-sibilidade de se estabelecer uma inter-relação diferencia-da entre a educação física e a capoeira. Mas não se pode esquecer que, apesar disso, as relações apresentavam-se, no decorrer dos anos, muito mais complexas, porque ao mesmo tempo em que havia essa nova perspectiva, tam-

Foto: Paula Cristina

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As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

(15) Posso citar as obras de FALCÃO, José Luiz. A escolarização da capoeira. Brasília: ASEFE Royal Court, 1996; REIS, André Luiz Teixeira. Brincando de Capoeira: recreação e lazer na escola. Brasília: Valcy, 1997 e de ROCHA, Maria Angélica. Capoeira uma proposta para a educação física escolar. 1990. Monografi a (Especialização em Educação Física Escolar) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas.

Cabe apontar que a capoeira, como manifestação cultural brasileira, também passou a ser valorizada na Educação Física. Isso devido ao desenvolvimento, a partir de 1980, de novos paradigmas relacionados à área de Educação Física.

bém existiam grupos de capoeira que apoiavam as idéias referentes à normalização dessa prática como modalidade esportiva. Além disso, para acrescentar mais divergências, na década de 1980 retomaram-se as antigas idéias ligadas à incorporação da capoeira pela educação física, pautadas nas propostas dos métodos ginásticos.

Nesse contexto, percebe-se variadas situações, uma de-las advinda do já conhecido professor Inezil Penna Marinho (1982), que propunha a retomada do plano da capoeira como a ginástica brasileira. Uma outra que, emanada dos favoráveis pela permanência da capoeira nos moldes esportivos, de-fendia a capoeira-esporte. Ainda nesse período, houve uma movimentação ligada à Educação Física e encabeçada por alguns de seus intelectuais, que visavam repensar o papel so-cial dessa área. Se não bastasse todo esse panorama, repleto de caminhos díspares, ainda houve alguns grupos de capoeira que defendiam esta prática no rol das manifestações culturais desvinculadas das normatizações das instituições legais.

Esse quadro complexo teve seu desenlace em alguns sen-tidos, permanecendo inalterado em outros aspectos. No que concerne à incorporação da capoeira no rol de manifestações culturais, sem vínculos com os órgãos governamentais, ainda existem setores ligados às organizações de capoeiristas que apóiam esta idéia, mas são minoria. Isso porque não há clare-za nos discursos dos seus defensores, por ser, inclusive, óbvia a difi culdade em manter viva essa manifestação, sem apoio institucional, seja representada por órgãos esportivos, setores ligados à arte, escola, etc. Além disso, as manifestações cul-turais que fazem parte da formação do povo brasileiro têm a proteção legal adquirida com a atual Constituição Brasileira. Dessa forma, a capoeira já possui um amparo institucional, se encarada como manifestação cultural.

Cabe apontar que a capoeira, como manifestação cul-tural brasileira, também passou a ser valorizada na Edu-cação Física. Isso devido ao desenvolvimento, a partir de 1980, de novos paradigmas relacionados à área de Educa-ção Física. Nesse movimento, é possível apreender novas perspectivas, entre elas aquela que sugere à educação fí-sica escolar a abordagem da “Cultura Corporal Brasileira”, de acordo com a obra Metodologia do ensino da educação física, de 1993. Essa proposta parece ser a mais coerente entre as existentes na Educação Física porque compreen-de a capoeira dentro de seus aspectos históricos e sociais, valorizando sua prática e seu estudo.

Diante desse novo enfoque da capoeira no âmbito da educação física, é possível denominar de progressista os professores de educação física partidários da ampliação de seu trato na área. Em algumas obras da década de 199015, percebe-se o fortalecimento das inter-relações pautadas

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no convívio mútuo de situações em que, de um lado ocor-re a valorização do mestre de capoeira como detentor do conhecimento dessa manifestação, e, de outro, o respeito pelo professor de educação física que deseja trabalhar a capoeira como conteúdo de suas aulas. No entanto, essa forma de ação não é recorrente entre ambas as partes, restringindo-se a poucos profi ssionais que procuram se-guir por esse caminho. Apesar disso, essa pode ser uma das formas mais ricas e compensadoras para se trabalhar a capoeira nas aulas de educação física.

Por fi m, é importante apontar que a inter-relação mais rica em termos de produção cultural tanto para a capoeira como para a área de Educação Física é o ensino de uma prática consciente, tendo sido construída a partir da histó-ria de um povo que foi trazido escravo para o Brasil e teve a dignidade de, por meio de sua resistência cultural, deixar-nos como legado a arte de lutar sorrindo, dançar lutando, cantar narrando seu passado e relembrar seus antepassa-dos em um jogo corporal chamado capoeira.

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Paula Cristina da Costa Silva. Doutoranda da Facul-dade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp/SP, capoeirista da Escola de Capoeira “Saci Pere-rê” e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Física Escolar (GEPEFE) e do Grupo de Estudos de Capoeira (GECA).

CapoeiraAs relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX

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Benefícios da Capoeira

Filosófi co: o despertar dos membros do grupo para os fundamentos da capoeira.

Social: conscientização do grupo como tal, com respon-sabilidade, deveres e direitos dos associados.

Físico: aprendizagem dos movimentos corporais da capo-eira dentro de limites físicos e mentais, compatíveis com a experiência e idade.

Artístico: aspectos estéticos referentes à música da capoeira, às cantigas e aos toques de berimbau, ataba-que, pandeiro e agogô, além da dança e da encenação do jogo.

Benefícios EducacionaisRicardo Pamfílio de Souza

Não existe um modelo educacional da capoeira, mas sim diversos modelos que são individualizados pelos mestres, sendo autônomos nas suas academias ou nos seus grupos, embora vinculados à tradição recebida pelos seus respec-tivos mestres. Todo o trabalho realizado, envolvendo pro-cessos cognitivos e afetivos na aprendizagem da capoeira, caracteriza a sistemática de uma prática de ensino na qual todos aprendem. Um dos exemplos dessa aprendizagem evidencia-se durante as rodas, quando novos movimentos corporais são criados pelos aprendizes ou novas cantigas são improvisadas em cima de um fundo comum compa-tível com o inconsciente coletivo da capoeira. Trata-se de um ensino não ligado a uma instituição educacional formal, mas a uma cultura, a cultura da capoeira angola.

Ricardo Pamfílio de Souza. Mestre em Etnomusicologia pela UFBA, 1997.

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A capoeira é uma atividade física que se utiliza de exercícios dinâmicos, pois há deslocamentos do corpo, envolvendo vários grupos de músculos de maneira contínua e rítmica. No que diz respeito ao tipo de contração muscular, os exercícios são isotô-nicos e isométricos, além disso necessitam de esforço intenso.

Como qualquer atividade física, a capoeira apresenta efeitos fi siológicos – cardiovasculares, pulmonares e mus-culares. Há que se levar em conta que, além da idade e do sexo, muitos outros fatores infl uenciam as respostas aos exercícios, tais como a postura, a massa total de músculos envolvidos no esforço, o ambiente, o estado de hidratação e o treino físico do indivíduo.

As qualidades físicas desenvolvidas pela capoeira são a fl exibilidade, a força, a resistência, a velocidade, o equilíbrio, a agilidade e a coordenação.

Considera-se a prática da capoeira um ótimo meio para adquirir fl exibilidade, pelo fato de que os esforços extras dos músculos e das articulações exigidos para se ter um

Benefícios Físicos e PsicológicosLilia Benvenuti de Menezes

desempenho efi caz, ou seja, executar movimentos com amplitudes máximas, acabam por oferecer ao capoeirista a elegância do movimento.

A capoeira é também um método satisfatório para se atingir força muscular, tendo em vista que em muitos mo-mentos usa o peso corpóreo como resistência, como nas posições de equilíbrio sobre pescoço e membros. Além dis-so, por ser uma luta, utiliza-se de golpes de ataque e contra-ataque, saltos e esquivas, nesse caso empregando-se a resis-tência contra o adversário. Pode-se obter força, também, ao se praticar saltos, saltitos, paradas de mão e pela movimenta-ção constante entre o jogo de chão e o jogo alto.

Há duas formas de se desenvolver a resistência na ca-poeira: uma na roda e outra nos treinamentos. Nos treinos, utiliza-se a chamada resistência específi ca, ou seja, a capa-cidade de executar as habilidades técnicas, com movimen-tos intensos durante a prática esportiva. Na roda, exige-se do praticante também a resistência geral, a qual considera o nível de condicionamento físico e de coordenação. A re-sistência é uma qualidade essencial para o capoeirista, pois é por meio dela que poderá demonstrar suas habilidades na roda, devido à sua constante movimentação.

Na capoeira exige-se, em muitos momentos, certa velo-cidade dos movimentos, seja para se deslocar, para mover braços ou pernas rapidamente (golpes, ataques), ou para re-agir a estímulos externos (contra-ataques, defesa, esquiva), aprimorando-se os refl exos com agilidade e malícia. Esses movimentos são acíclicos e caracterizados por não serem uniformes e manterem acelerações diferenciadas.

Outra qualidade física adquirida com a prática dessa mo-dalidade é o equilíbrio. Durante o jogo de capoeira, muitas vezes o praticante precisa equilibrar-se em um dos pés, em ambos ou até em uma das mãos, com os pés suspensos ou não, durante certo espaço de tempo. O equilíbrio é in-tensamente desenvolvido em movimentos, como o aú1 e a bananeira2, para fi car em dois exemplos; ou em golpes como o martelo3, a benção4 e a ponteira5.

(1) Floreio em que o capoeirista, apoiando as duas mãos no chão, forma uma fi gura semelhante à letra “A” e, posteriormente, erguendo as pernas, forma uma fi gura semelhante à letra “U” para, em seguida, retornar ao chão, num movimento semelhante ao da estrela.

(2) Floreio em que o capoeirista apóia as mãos no chão e fi ca parado, verticalmente, de cabeça para baixo.

(3) Golpe traumático em que o capoeirista, com o dorso do pé, atinge seu adversário no rosto ou no tronco.

(4) Golpe traumatizante e desequilibrante em que o capoeirista levanta uma perna e a impulsiona à frente com violência, a fi m de atingir o adversário no tronco com a sola do pé.

(5) Golpe traumatizante aplicado com o extremo da planta do pé.

Foto: Lília Menezes

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Uma qualidade física estreitamente ligada à capoeira é a agilidade. Como na luta o praticante tem de levar em conta a imprevisibilidade dos golpes, é necessário ser ágil para se defender, atacar, esquivar, fi ntar e gingar, com destreza e velocidade. A destreza, nesse caso, facilita a aplicação dos golpes nos momentos oportunos e auxilia o praticante a escapar em tempo hábil dos golpes dos adversários. Com relação à velocidade, o jogo rápido, de-terminado pelo toque do berimbau, exige dos capoeiristas movimentos combinados e sucessivos, executados em várias direções e em alta velocidade, evidenciando alto grau de coordenação e desenvolvendo, ao mesmo tem-po, agilidade, destreza e velocidade.

Por último, mas nem por isso com menor mérito, o de-senvolvimento da coordenação é também muito importan-te para o praticante da capoeira. Caracterizada pelo estilo, leveza, soltura, naturalidade e performance, a coordenação pode ser melhorada e desenvolvida no jogo, tendo em vista que os praticantes utilizam a destreza e a criatividade sem uma seqüência predeterminada, o que exige o aprimora-mento dos refl exos e a coordenação dos movimentos.

A capoeira e o desenvolvimento psicológico. São de conhecimento geral os benefícios psicológicos e emo-cionais da atividade física, pois produz relaxamento e esti-mulação psíquicos, colabora para a melhoria do humor e

da auto-estima, ajuda a aliviar a ansiedade e a tensão, re-duzindo também os riscos de aparecimento de depressões e do estresse.

Não tão conhecida pelos leigos, por outro lado, é a psi-cofi siologia da capoeira.

Em termos gerais, a psicologia pode ser entendida como a ciência que estuda os comportamentos e emoções, e a fi siologia como a ciência que se dedica a estudar como o músculo executa cada movimento. A psicofi siologia, por-tanto, estuda o efeito emocional e comportamental que o indivíduo experimenta ao executar uma atividade. O foco dessa ciência está na interação entre a atividade motora e as emoções.

Esses conceitos podem ser levados para o universo da capoeira, usando como exemplo a ginga. Nesse movimen-to em que se alternam as pernas cadencialmente, o prati-cante sente-se mais solto e fl exível, sensações positivas que o levarão a aperfeiçoar seu comportamento em situações do seu dia-a-dia: no relacionamento com os amigos, em to-madas de decisões no trabalho, no estudo, etc. A atividade faz com que a pessoa lide com as limitações de seu corpo, passando a conhecer melhor não só essa “vestimenta” fí-sica, mas também a si mesmo, tornando-se, conseqüente-mente, mais capaz de realizações.

Nesse sentido, pode-se compreender porque não só a capoeira, mas a prática de qualquer atividade física, pode ser a causa da melhoria de qualidade de vida ou a cura para determinadas doenças como pressão alta, diabete tipo 2, fi bromialgia, estresse e outros, pois a energia empregada ao executar o movimento faz com que o cérebro libere no organismo neutrotransmissores (substâncias químicas), tais como a endorfi na, adrenalina e noradrenalina que dão a sensação de bem-estar ao praticante.

A capoeira, como outras lutas, além de fortalecer a musculatura do praticante, faz com que a pessoa se sinta mais forte, não só emocionalmente, mas também psiquica-mente. Um dos fatos que diferencia a capoeira das demais lutas é possuir movimentos que se assemelham à dança, incluindo o ritmo e a música, o que leva o indivíduo a se sentir mais seguro e livre, já que não executa movimentos rígidos e sim movimentos amplos, alguns inclusive com ca-racterística lúdica, contribuindo para que a pessoa trabalhe aspectos pessoais negativos que a incomodam e, ao mes-mo tempo, reforce os positivos, percebendo que pode se aperfeiçoar cada dia mais.

Lilia Benvenuti de Menezes. Professora de Educação Física, professora do Grupo Muzenza e bicampeã mundial pela Super Liga Brasileira de Capoeira. Autora do livro “Be-nefícios Psicofi siológicos da Capoeira”.

Foto: Lília Menezes

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Capoeira e Inclusão Social

A CAPOEIRA NASCEU DA LUTA DE UM POVO OPRIMIDO EM BUSCA DE LIBERDADE. A QUESTÃO DA

INCLUSÃO ESTÁ NA ESSÊNCIA DA CAPOEIRA, JÁ QUE ELA FOI CONCEBIDA POR GRUPOS SOCIAIS

EXCLUÍDOS. AO LONGO DE SUA HISTÓRIA, SEMPRE ESTEVE ASSOCIADA ÀQUELES QUE VIVERAM

À MARGEM DA SOCIEDADE, MAS QUE SEMPRE LUTARAM PELA AFIRMAÇÃO DE SUA IDENTIDADE,

DIREITOS E VALORES CULTURAIS. POR ISSO, A CAPOEIRA TEM GRANDE VOCAÇÃO PARA INCLUIR

E AGREGAR PESSOAS. NA RODA DE CAPOEIRA, PARTICIPAM HOMENS E MULHERES DE TODAS AS

ORIGENS, IDADES, CREDOS RELIGIOSOS, CONDIÇÕES ECONÔMICAS E GRAUS DE INSTRUÇÃO. AO

SOM DO BERIMBAU, TODOS SÃO CIDADÃOS DO MUNDO, EM BUSCA DE QUALIDADE DE VIDA E DE

JUSTIÇA SOCIAL.

Gladson de Oliveira SilvaVinicius Heine

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A capoeira desempenha um papel fundamental para promover inclusão, igualdade e cidadania. As diferenças e contradições sociais estão em todas as partes: nas condi-ções de vida, nas oportunidades de estudo e de trabalho, no acesso aos serviços fundamentais de habitação, saúde, segurança, transporte, esporte, lazer e cultura. Tudo isso vem reafi rmando historicamente as desigualdades.

A capoeira, como produto da cultura popular, pode e deve contribuir para reverter esse quadro e favorecer a aproximação das pessoas, valorizando-as pelo que são, em essência, e não pelas suas condições materiais. Contri-bui, também, para a construção de espaços democráticos, onde todos tenham direitos e oportunidades iguais; para a compreensão das relações entre passado, presente e futuro; e, sobretudo, para despertar a consciência política e a capacidade de afi rmação da cidadania e dos direitos humanos fundamentais.

O PAPEL DO MESTRE. Professores e mestres são os principais agentes da capoeira. São eles que promovem e transmitem os fundamentos às gerações mais novas, que determinam os princípios, as normas, os valores e a fi losofi a que nortearão o seu trabalho e que infl uenciarão o compor-tamento e a formação dos seus alunos. Os alunos refl etem, em grande medida, o exemplo e o modelo apresentado pelo mestre. Por isso, a responsabilidade desses agentes sociais, que trabalham diretamente na formação integral dos seus alunos. O modelo de educação da capoeira é diferenciado do modelo de educação tradicional de uma escola, já que a relação entre mestre e discípulo transcende a sala de aula e integra diferentes aspectos da vida do educando.

Um grande mestre não educa apenas para a roda de capoeira. Educa para a vida em suas diferentes dimensões. É preciso conhecer e cuidar de cada aluno o mais profun-damente possível, assim como conhecer sua realidade fa-

Capoeira e Inclusão Social

Clínica de Capoeira CEPEUSP: integração entre grupos

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Um grande mestre não educa apenas para a roda de capoeira.

Ministério das Relações ExterioresRevista Textos do Brasil

Page 102: Revista Brasil nº 14

miliar, escolar e comunitária. Saber ouvir é fundamental, do mesmo modo que compartilhar, trocar e estabelecer par-ceria com os alunos e incentivá-los, apoiá-los, oferecer-lhes suporte emocional e intelectual, sabendo, é claro, que nem sempre é possível resolver todos os problemas do aluno. E essa não deve ser efetivamente a intenção. Trata-se de oferecer uma orientação que o ajude a encontrar o melhor caminho. Ser mestre é, em muitos momentos, ser pai, ser amigo, ser irmão.

FILOSOFIA INCLUSIVA. Inclusão social é uma fi losofi a de trabalho e, para que ela exista, é preciso ter comprome-timento com a causa das minorias, dos menos favorecidos e dos que se sentem excluídos.

Nesse sentido, a inclusão social deve ser entendida como um processo, uma construção coletiva, que busca a superação da discriminação, do preconceito, da intole-rância, das desigualdades e dos conceitos estereotipados. Cada um de nós carrega em si uma difi culdade, um limite que se manifesta no encontro com o outro. Nesse proces-so de negociação, é preciso enxergar os pontos de vista pessoais, alheios e coletivos, encontrando respostas equili-bradas, que promovam unidade, cooperação e camarada-gem. Cada situação do dia a dia oferece-nos oportunidades de trabalhar em prol da inclusão. Na família, na escola, no bairro, no trabalho... é preciso gingar sempre no jogo da inclusão social.

PEDAGOGIA DA INCLUSÃO. A capoeira que se propõe ser inclusiva deve ser cuidadosa em seus métodos e em suas bases pedagógicas. Deve promover a refl exão e o exer-cício diário dos valores. Deve ter como base a afetividade e o estabelecimento de vínculos saudáveis e construtivos que contribuam para a formação da identidade dos seus

praticantes. Em todo o Brasil, têm proliferado os trabalhos do terceiro setor em diversos projetos junto às comunida-des. A capoeira vem ocupando espaço de destaque nesse contexto e oferecendo contribuições signifi cativas para a inclusão social.

A fi m de que a capoeira se consolide como espaço de in-clusão, é necessário que prevaleça a construção do conheci-mento, o diálogo e o intercâmbio. É preciso estimular a comu-nicação, a interação e a participação dos alunos nas ações que envolvem a capoeira como elemento vivo da sua comunidade. É preciso entendê-la a partir dos referenciais históricos, sociais e culturais sobre os quais foi construída. Desde seus primór-dios até os dias atuais, a capoeira construiu sua identidade por meio da luta e da resistência social contra as desigualdades e injustiças. É essencial respeitar o aluno e tudo o que ele traz consigo na sua bagagem de vida. Considerar as particularida-des de cada aluno é dialogar com a sua identidade, sua história de vida e sua visão de mundo. Aceitação, tolerância e respeito às diferenças são pilares essenciais para a construção de uma cultura de paz para o nosso planeta. É preciso estimular a in-tegração, incentivar potenciais e capacidades. Para ser capo-eira é preciso ter vontade de aprender, assimilar as regras e a dinâmica do jogo e acreditar em si mesmo. A capoeira aceita todos. Cada um com sua contribuição, cada um com o seu toque, cada um com a sua ginga e sua presença.

Na capoeira é necessário que prevaleça o princípio da cooperação acima do da competição. Cooperar signifi -ca apoiar, sustentar, compartilhar, somar. Signifi ca que há sempre espaço e recursos para todos. Pode-se trabalhar, construir e ganhar em conjunto. Acima de tudo, é preciso que prevaleça o “jogar com” e não o “jogar contra” para que

Evento Projete Liberdade Capoeira: Confraternização Projeto Porta Aberta: Capoeira e Cidadania

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CapoeiraCapoeira e Inclusão Social

Page 103: Revista Brasil nº 14

a capoeira realmente cumpra seu papel de incluir pessoas com diferentes condições sociais.

Um trabalho com essas características tem como um dos seus objetivos principais a construção e o desenvol-vimento de cidadãos conscientes, verdadeiros líderes co-munitários, capazes de promover transformação do seu entorno imediato e do seu país como um todo. Cidadãos com capacidade de tomar decisões que promovam o bem estar e a justiça para a sociedade em que vivem.

“Capoeira é para homem, menino e mulher”

Gradativamente, a capoeira vem promovendo inclusão de pessoas que, até bem pouco tempo, estavam distantes e separadas da sua prática. A presença das mulheres, por exem-plo, era um acontecimento raro. Havia muito poucas. As que se arriscavam a entrar na roda ganhavam notoriedade. Aos olhos do preconceito, capoeira sempre foi coisa para homens, “como é possível uma mulher pensar em misturar-se neste ambiente?”. Nos últimos anos, essa realidade vem sendo mo-difi cada radicalmente e, em alguns grupos, as mulheres che-gam a ser maioria nas aulas e nas rodas. São realizados en-contros femininos de capoeira, nos quais são discutidos temas relacionados com a afi rmação e a valorização da mulher na e por meio da capoeira. Na capoeira não existe distinção entre roda feminina e masculina. São iguais as possibilidades para mulheres e homens, que jogam, cantam e tocam de igual para igual. Existem respeito e integração de gênero.

CAPOEIRA DOS OITO AOS OITENTA. Crianças a partir de dois anos de idade tem iniciado sua prática em esco-las no Brasil e no mundo. Em muitos centros educacionais,

Capoeira e Inclusão Social

Evento CEPEUSP: Dinâmica com os pais

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Gradativamente, a capoeira vem promovendo inclusão de pessoas que, até bem pouco tempo, estavam distantes e separadas da sua prática.

Ministério das Relações ExterioresRevista Textos do Brasil

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tem sido reconhecido todo o potencial da capoeira como instrumento de desenvolvimento integral do ser humano. Mais recentemente, importantes trabalhos foram realizados com pessoas idosas, que têm demonstrado ser a modalida-de uma excelente aliada na promoção da sua qualidade de vida. Cada um joga dentro de suas capacidades, dos seus li-mites e muitas vezes esses limites são mais amplos do que se imagina. E mesmo quem acreditava não ser capaz, pode se surpreender com as possibilidades que a capoeira ofere-ce em termos de movimentos e de convivência social.

Além do jogo em si, com seus movimentos de ataque, defesa e acrobacias, o que mais atrai os idosos à prática da capoeira é o seu lado lúdico, artístico e sociável. O movi-mento espontâneo, alegre e prazeroso é essencial. Perten-cer a um grupo, estar entre amigos, relacionar-se e interagir com o outro são aspectos fundamentais para a saúde inte-gral do ser humano em todas as idades e, especialmente, na terceira idade.

CAPOEIRA ESPECIAL. Quando falamos em inclusão não podemos deixar de falar dos portadores de necessi-dades especiais, entre essas o que é mais importante: a capacidade de acreditar na vida e de superar limites, dar a volta por cima, desenvolver o seu potencial e alcançar seus objetivos. Também para essas pessoas, a capoeira tem representado um grande instrumento de desenvolvimento biológico, psíquico e social. Os portadores de necessidades especiais conseguem aderir à prática da capoeira, seja re-alizando movimentos, tocando ou cantando. Muitas novas metodologias têm sido desenvolvidas para o ensino da ca-poeira para essa população. Cada vez mais, vemos a capa-cidade de inclusão da capoeira ser ampliada. Há grupos de trabalhos constituídos exclusivamente por portadores de necessidades especiais e há grupos heterogêneos compar-tilhando o mesmo espaço, o que tem trazido resultados surpreendentes. Pessoas são especiais por diversos moti-vos, mas principalmente por terem um nível de sensibili-dade diferenciado. O que em um primeiro momento pode gerar uma limitação, na verdade passa a ser um desafi o, que, quando superado, traz felicidade e realização pessoal.

CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL. Outro elemento es-sencial dentro do processo de inclusão por meio da capo-eira é a necessidade de capacitar os seus agentes (mestres, contramestres, professores e monitores) e de oferecer co-nhecimentos e metodologias que aumentem a capacida-de de trabalho desses profi ssionais. Entre os capoeiristas, existem pessoas muito criativas, inventivas e com grande força de vontade e capacidade realizadora, que, apesar dos poucos recursos materiais, desenvolvem trabalhos extraor-dinários, dignos de aplausos, reconhecimento e, principal-mente, maior incentivo.

No Brasil, o Governo vem reconhecendo cada vez mais o potencial da capoeira em promover cidadania e vem ofe-recendo recursos para programas que envolvem a moda-lidade. No entanto, dada a dimensão e o potencial da ca-poeira, as ações ainda têm muito a crescer. É preciso atuar de forma mais consistente, produzindo conhecimento e promovendo ações sistemáticas, planejadas e continuadas de capacitação e educação dos seus educadores. O que se vê são iniciativas isoladas, dentro de alguns grupos. Existe pouca articulação e troca de informações. Muito do que se faz é produto da criatividade e da iniciativa individual de al-guns mestres e professores de capoeira. Ações integradas entre Governo, universidades e a comunidade da capoeira devem ser priorizadas.

CAPOEIRA EM FAMÍLIA. No processo de educação e in-clusão por meio da capoeira, a presença e a participação da família são de grande importância. Pais, irmãos, tios, avós, primos e fi lhos são o núcleo de referência mais próximo ao aluno. É na família que o aluno tem suas primeiras experi-ências de vida. Em grande parte, o que ele vive no seio da família infl uenciará muito o seu caráter, os seus sentimen-tos, comportamentos e atitudes.

Infelizmente, sabemos que a realidade de muitas fa-mílias, hoje em dia, é de desestruturação e confl ito. Em especial, os confl itos entre os pais afetam fortemente as crianças, que podem desenvolver comportamentos inade-quados e inabilidades sociais em função desses eventos. Agressividade, difi culdade de concentração, défi cit cogniti-vo, revolta, difi culdade de integrar-se em grupos, de aceitar regras, baixa auto-estima, hostilidade com pessoas mais ve-

Evento CEPEUSP: a Ludicidade na Capoeira

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CapoeiraCapoeira e Inclusão Social

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lhas podem ser reações observáveis em crianças que cres-cem em lares com carência de afetividade e harmonia.

No entanto, o fato de terem enfrentado difi culdades dentro de casa não deve signifi car problemas para as crian-ças. Ao encontrar e conviver com outro ambiente, onde exista amor, respeito, diálogo, disciplina e compreensão, a criança desperta em si mesma o amor próprio e a auto-estima, desenvolvendo comportamentos pessoais e sociais adequados. Passa a agir com ética e com equilíbrio tanto nas suas relações em família quanto na comunidade.

É exatamente neste ponto que a capoeira pode cumprir um papel decisivo na vida de crianças e jovens, contribuindo para a sua inclusão social ao representar esse espaço de re-estruturação em suas vidas. Para tanto, é preciso que haja di-álogo e confi ança do mestre para com os alunos, dos alunos para com o mestre e dos alunos para com os seus pares.

INCLUSÃO MUNDIAL. A capoeira tem alcançado di-mensões internacionais. Nos quatro cantos do mundo, em centenas de países, o som do berimbau se faz presente. Rússia, Japão, Alemanha, África do Sul, Peru e EUA há mui-to tempo entram na roda para jogar. Também no Brasil a capoeira demonstra uma ampla capacidade de incluir. Os intercâmbios entre capoeiristas de diferentes nacionalida-des são uma constante. A cada ano, pessoas no mundo inteiro viajam para outros países com o propósito de trocar experiências a respeito da capoeira. Especialmente o Brasil recebe um grande contingente de adeptos, em busca de novos conhecimentos e de muita sabedoria.

UM BEM-SUCEDIDO EXEMPLO: PROJETO “PORTA ABERTA”. Em janeiro de 2001, teve inicio no distrito do Capão Redondo, periferia da zona sul de São Paulo o projeto “Porta Aberta”, que tem como atividade principal a capoeira. O projeto surgiu de uma parceria entre a Secre-taria de Saúde do Município de São Paulo, a Associação Palas Athena do Brasil e a Projete Liberdade Capoeira, com objetivo de elevar a auto-estima de crianças e jovens e re-duzir os índices de violência na comunidade do Capão. O “Porta Aberta” é um exemplo dos muitos projetos sociais que se proliferam atualmente no Brasil, demonstrando a vocação da nossa sociedade para oferecer soluções para os seus problemas sociais. A luta da capoeira vem inspi-rando milhares de brasileiros a lutarem pela vida, por si mesmos e por suas comunidades. O objetivo principal do projeto é a transformação por meio da prática de mani-festações culturais. É a formação de cidadãos honestos, sensíveis e participativos.

O distrito do Capão Redondo é um grande exemplo do poder da mobilização da sociedade civil. Ao longo dos últimos anos, os índices de violência e criminalidade vêm caindo constantemente, dando lugar à vida, ao respeito e

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A luta da capoeira vem inspirando milhares de brasileiros a lutarem pela vida, por si mesmos e por suas comunidades. O objetivo principal do projeto é a transformação por meio da prática de manifestações culturais. É a formação de cidadãos honestos, sensíveis e participativos.

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a paz. O “Porta Aberta” é uma gota no oceano que, com certeza, faz muita diferença, pois, se ao menos um dos jo-vens que participam do projeto tiverem seus corações to-cados e suas consciências sensibilizadas em prol do bem e da dignidade, a missão terá sido realizada. Ao longo dos seus sete anos de existência, o projeto passou por diversos momentos e algumas reestruturações. Muitos exemplos de transformação pessoal positiva têm sido observados na vida dos alunos.

A sociedade civil desempenha um papel fundamental na transformação da realidade do Brasil. Os grupos de ca-poeira são instituições civis organizadas e têm um grande poder de atuação frente às pessoas que deles participam. Mestres de capoeira são líderes e formadores de opinião e podem contribuir positivamente para despertar uma socie-dade mais consciente, tolerante e fraterna. O processo de transformação já começou e deve continuar, promovendo cada vez mais inclusão, justiça e fraternidade entre os ho-mens e entre as nações. Iê volta do mundo camará!Projeto Porta Aberta: Capoeira e Inclusão Social

Gladson de Oliveira Silva. Professor de Educação Físi-ca e mestre de capoeira do Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (CEPEUSP) e do Conjunto Desportivo Baby Barioni da Secretaria de Esporte Lazer e Turismo do Estado de São Paulo.Professor Coordenador do Projeto Porta Aberta – que tra-balha com crianças e adolescentes carentes e portadores de necessidades especiais no distrito do Capão Redondo, em São Paulo.Diretor da Projete Liberdade Capoeira – Escola de Capoeira com núcleos de trabalho em São Paulo, Rio Grande do Sul, Argentina, Peru e Espanha.Ministrou cursos em diversos estados do Brasil e em outros países, em universidades e centros educacionais.

Vinicius Heine. Professor de Educação Física e de Capo-eira do Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (CEPEUSP).Professor coordenador do Projeto Porta Aberta.Ministrou diversos cursos e palestras sobre a capoeira em diversos estados do Brasil e em outros países.Coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas da Capo-eira (CEPECAP).

CapoeiraCapoeira e Inclusão Social

Referências Bibliográfi cas

SILVA, Gladson de Oliveira. Capoeira: do Engenho à Univer-sidade. 3ª ed. São Paulo, 2003._______________________. Revista de Capoeira. Editora Três. São Paulo, 1983.

SILVA, Gladson de Oliveira & Heine Vinicius. Capoeira um Instrumento Psicomotor para a Cidadania. São Paulo, 2007 (no prelo).

LAMA, Dalai. O Caminho da Tranqüilidade. São Paulo: Sex-tant, 2000.

Todas as fotos são de propriedade dos autores e estão na página www.projeteliberdadecapoeira.com.br

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A internacionalização da capoeira

SE NO INÍCIO DO SÉCULO XX A CAPOEIRA SE CONFIGURAVA COMO UMA PRÁTICA DE NEGROS RE-

CÉM-LIBERTOS DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL, ATUALMENTE, NO DESPERTAR DO SÉCULO XXI, ELA É

PRATICADA POR PESSOAS DE DIFERENTES ETNIAS E CLASSES SOCIAIS EM MAIS DE CENTO E TRINTA

PAÍSES DO MUNDO.

José Luiz Cirqueira Falcão

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A internacionalização da capoeira

(1) Para designar os (as) agentes da capoeira (praticantes, mestres (as), professores (as), militantes etc.), utilizaremos o termo capoeira em vez de capoeirista, por entendermos que o primeiro tem, na cultura, o seu campo privilegiado de ação, enquanto que capoeirista nos sugere uma intervenção mais específi ca, mais especializada.

(2) Em alusão a uma cantiga do Mestre Toni Vargas.(3) De acordo com Rego (1968), a capoeira foi tratada durante muito tempo como caso de polícia,

“que dormia e acordava no calcanhar dos capoeiras” (p. 43). Alguns dos mais consistentes estudos sobre a história da capoeira foram realizados a partir da documentação existente nos arquivos da polícia brasileira. Ver Pires (1996) e Soares (1994 e 2001).

(4) Mestre Pastinha (1889-1981) - principal guardião da Capoeira Angola, fundou em 1941 o Centro Cultural e Esportivo de Capoeira Angola, em Salvador. Faleceu cego e esquecido. Mestre Bimba (1899 – 1974) fundou a primeira academia de capoeira do Brasil e foi o criador da Capoeira Regional, um estilo de capoeira mundialmente conhecido. Faleceu pobre, lutando por melhores condições de vida, em Goiânia-GO. Mestre Waldemar da Liberdade conduziu nas décadas de 40 e 50, aos domingos, a roda de capoeira que se tornou o mais importante ponto de encontro dos capoeiras de Salvador, onde o escritor Jorge Amado e o fotógrafo Pierre Verger “se alimentavam culturalmente” (ABREU, 2003, p. 43). Morreu, em 1990, na pobreza, como tantos outros capoeiras célebres.

Nos últimos anos, muitos capoeiras1 saíram do Brasil em busca de melhores condições de vida e de reconhecimento. Nesse movimento, além de contribuírem, efetivamente, com o processo de expansão de sua arte pelo mundo, colaboram com a divulgação da cultura brasileira no exterior por meio de discursos que realçam a capoeira à condição de prática “exótica”, “tropical”, “brasileiríssima”.

Nos últimos anos, muitos capoeiras1 saíram do Brasil em busca de melhores condições de vida e de reconhecimen-to. Nesse movimento, além de contribuírem, efetivamente, com o processo de expansão de sua arte pelo mundo, co-laboram com a divulgação da cultura brasileira no exterior por meio de discursos que realçam a capoeira à condição de prática “exótica”, “tropical”, “brasileiríssima”.

Se à época da escravidão no Brasil o sangue jorrava da caneta do feitor2 em sistemáticas investidas contra a ca-poeira3, nos últimos anos, ela passou a receber do poder público um tratamento bem diferente, materializado por algumas iniciativas de reconhecimento e valorização desse importante símbolo da cultura brasileira.

Em comparação com os dias atuais, os capoeiras de ou-trora tinham uma relação bem diferente com sua prática. Porém, assim como hoje, não constituíam um bloco único e não a cultivavam com a mesma fi nalidade. Se no Rio de Janeiro ela teve uma vinculação forte com as maltas, as bri-gas de rua e a política do Segundo Reinado, em Salvador, ela tinha uma relação amistosa com os botecos, com as quitandas, que, por sua vez, se benefi ciavam de suas artísti-cas manobras para atrair fregueses.

Antigamente, os trapicheiros, carroceiros, estivadores, carregadores, vendedores ambulantes e também desem-pregados reuniam-se próximo aos botecos, praças e largos para tagarelar, beber e jogar, utilizando a capoeira como atividade de lazer ou de disputa de espaço. Hoje, é comum ver profi ssionais de diferentes áreas utilizando a capoeira como atividade de lazer. Muitos utilizam-na como trabalho, como uma opção profi ssional, como um modo de sobre-viver. Somado a esse contingente, encontra-se expressivo segmento de jovens que vislumbra, na capoeira, um campo de emprego nem sempre possível nas instituições e em-presas convencionais.

Mesmo de forma precária, mas com grandes pitadas de criatividade, esses profi ssionais utilizam-se dessa manifes-tação cultural como meio de obterem recursos. Buscam as mais inusitadas possibilidades para escapar da sina da-queles que, considerados pela maioria como os grandes mestres da capoeira, morreram em situação de miséria absoluta. Mestres como Pastinha, Bimba, Valdemar da Li-

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berdade e outros,4 que “experimentaram a encruzilhada da fome com a fama” (ABREU, 2003, p. 14), apesar de se torna-rem os grandes referenciais da capoeiragem no século XX, são, para as novas gerações de capoeiras, produtos de uma condição de exploração da qual estas tentam se esquivar.

A internacionalização da capoeira: de símbolo de brasilidade a patrimônio cultural da humanidade. Quando muitos capoeiras brasileiros começaram a sair do País, a partir do início da década de 1970, para “ganhar o mundo” e trabalhar em grupos folclóricos no exterior, em busca de apoio e reconhecimento, não tinham idéia da mag-nitude que esse fenômeno viria a ter três décadas mais tarde. No início, tudo era muito difícil e a rua era, freqüentemente, o único espaço que eles encontravam para expressar sua arte ou para manter contatos com outros artistas do cotidiano, como palhaços e malabaristas das mais diversas origens. Nas grandes cidades dos Estados Unidos e da Europa, eles começaram a dar visibilidade a essa “arte tropical”, infl uen-ciando outros movimentos da cultura de rua, como o break, por exemplo, que surgiu nos Estados Unidos, na década de 1980 e, logo depois, espalhou-se pelo mundo. Certamente, nessa dança de passos interrompidos e acrobacias descon-certantes existem muitos movimentos herdados da capoei-ra, como o giro de ponta-cabeça (o pião de cabeça).

Em Nova York, os capoeiras brasileiros costumam reu-nir-se em praças e avenidas e, freqüentemente, são vistos em documentários de televisão e espetáculos culturais. Em 1989, o Jornal do Brasil, em matéria intitulada “Capoeira para americano jogar”, já revelava os primeiros sintomas desse processo.

Transplantada para os EUA pelos brasileiros, a ca-poeira está crescendo em popularidade e pode ser vista em casas noturnas, exibições, compe-tições, escolas, e até em fi lmes (...) A capoeira é como o jazz americano em seu início (...) é um beat, um swing, uma pulsação, um movimento. E a maneira como as pessoas se movimentam, pensam e se comportam na capoeira é a manei-ra como se movimentam, pensam e se compor-tam em suas vidas (WEELOCK, 1989, p. 8).

Uma questão importante se coloca neste aspecto. Quais as principais características e contribuições desse movimento de internacionalização para o desenvolvimen-to e valorização da capoeira?

O principal motivo da saída de uma avalanche de mes-tres, professores e iniciados em capoeira para o exterior é determinado por fatores econômicos e está relacionado com a busca de reconhecimento e prestígio. Se no Brasil a mensalidade para se fazer aulas de capoeira é relativa-mente baixo, nas principais cidades americanas e européias esse valor é signifi cativamente mais alto.

Esse movimento de expansão traz conseqüências inu-sitadas para a capoeira e é visto por muitos como algo se-dutor, embora venha causando inquietações por parte de alguns preocupados com a “manutenção” das suas tradi-ções. Se, por um lado, muitos alegam que a expansão leva a certo distanciamento dos princípios e valores que delega-ram à capoeira um emblema de “luta de resistência” contra a exploração, por outro, muitos consideram que esse pro-cesso está contribuindo para a valorização das referências culturais africanas e para despertar um interesse maior pelo Brasil e pela cultura brasileira.

Muitos autores afi rmam que, nos EUA, a capoeira aju-da, também, a revitalizar o elo entre os negros americanos e a África, cuja relação foi abalada pelo violento processo de segregação desencadeado em séculos passados. Nesse sentido, muitos americanos vêm para o Brasil com o ob-jetivo de “beber na fonte” e procuram conhecer os mes-tres mais representativos dessa arte-luta. Muitos espaços da cidade de Salvador, considerada a “Meca da Capoeira”, transformaram-se em verdadeiros templos de peregrina-ção dos capoeiras de todo o mundo, como a Academia de João Pequeno5, no Forte Santo Antônio, ou a Fundação Mestre Bimba, no Pelourinho.

Infl uenciadas por outras perspectivas, expressivas levas de capoeiras estrangeiros desembarcam nos aeroportos

Foto: Laura Campos

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(5) O Mestre João Pequeno é o professor de capoeira mais antigo do Brasil em atividade, atualmente (2007), está com 89 anos. No dia 18 de dezembro de 2003, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Uberlândia-MG.

(6) Grandes grupos de capoeira realizam, atualmente, encontros internacionais, com a presença de mestres e discípulos de vários países, como é o caso da Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte Capoeira (Abada-Capoeira), que é uma entidade que congrega mais de 30 mil capoeiras em 26 países.

Infl uenciadas por outras perspectivas, expressivas levas de capoeiras estrangeiros desembarcam nos aeroportos brasileiros para competir nos diversos campeonatos organizados por grupos com sede no Brasil e que possuem fi liais em outros países6. A despeito das freqüentes críticas a essa forma de tratamento, esses campeonatos têm contribuído bastante para a divulgação da capoeira no exterior.

brasileiros para competir nos diversos campeonatos orga-nizados por grupos com sede no Brasil e que possuem fi liais em outros países6. A despeito das freqüentes críticas a essa forma de tratamento, esses campeonatos têm contribuído bastante para a divulgação da capoeira no exterior.

Convém destacar que o grande interesse dos es-trangeiros pela capoeira se desdobra imediatamente em dois desejos: conhecer o Brasil e falar o português. Mui-tos mestres e professores que ministram aulas no exte-rior, em busca de um apelo ao mais “tradicional”, fazem questão de se expressarem no idioma português. Na luta por uma identidade baseada na tradição afro-brasileira, muitos professores chegam a proibir nos seus trabalhos que se façam traduções de nomes de golpes, de movi-mentos, de cantigas e de instrumentos de capoeira. Falar português nas aulas de capoeira é um requisito que opera como uma espécie de “selo de qualidade” e vem contri-buindo para abrir campos de trabalhos antes impensáveis. O Hunter College, uma das mais tradicionais faculdades de Nova York, já oferece cursos regulares de português, em decorrência da demanda provocada pela capoeira (NUNES, 2001, p. 3).

Entretanto, ao mesmo tempo em que o ex-frentista de posto de gasolina, o brasileiro Mestre João Grande, ra-dicado em Nova York há mais de dez anos e ganhador do título de Doutor Honoris Causa do Upsala College, de Nova Jersey, em 1996, ministra aulas em sua Academia no West Village, num autêntico português da Bahia, por ou-tro lado, muitos workshops são traduzidos para outras lín-guas (inglês principalmente), aqui mesmo no Brasil, como é o caso do “Capoeirando”, evento organizado por reno-mados mestres e realizado durante o verão em pontos turísticos estratégicos do território brasileiro, para onde se dirige expressiva massa de estrangeiros em busca da “autêntica” capoeira.

Nesse complexo movimento de internacionalização, a capoeira vem conquistando espaço nos mais diversos rin-cões do planeta. Além da internet, os fi lmes também têm contribuído para esse processo, sendo o primeiro deles, o brasileiro “O Pagador de Promessas”, que ganhou prêmios internacionais. Entretanto, foram as produções norte-ame-ricanas, Only the Strong Survive (no Brasil recebeu o título agressivo de “Esporte Sangrento”) e Roof Tops, que conse-guiram emplacar maior difusão da arte-luta.

O movimento de difusão da capoeira no contexto mundial é mais visível e intenso em direção aos Estados Unidos e à Europa. Com raras exceções comprometidas em desenvolver trabalhos de “retorno” dessa arte-luta à

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África, a maioria das iniciativas destina-se aos chamados países desenvolvidos.

O fato é que a capoeira ganhou o mundo e se trans-formou num dos veículos mais signifi cativos de inserção da cultura brasileira no exterior, uma exuberante propa-ganda do Brasil. Em 2003, já existiam escolas de capoei-ra em todos os 50 estados norte-americanos. Somente em Nova York eram 15 escolas. O surpreendente é que a demanda por aulas de capoeira naquele país está con-centrada, principalmente, nas escolas públicas. Essa prá-tica tem sido bem cotada como atividade capaz de atuar na recuperação da auto-estima e da confi ança de jovens com problemas de aprendizado e de relacionamento, constituindo-se, assim, numa “porta de salvação” para jo-vens vítimas de violência ou envolvidos com drogas ou álcool (NUNES, 2001). O fi lme Only the Strong Survive ex-plora essa problemática.

Entretanto, não é somente por meio das escolas públi-cas que a capoeira vem conquistando os norte-americanos. Ela vem sendo usada também para “treinar” atores e atrizes de fi lmes de ação, como é o caso de Halle Berry, atriz prin-cipal do fi lme Catwoman. Para o diretor do fi lme, a capoeira contém movimentos vigorosos, mas com suingue. “Para os americanos, a capoeira tem um atrativo forte, além do fato de funcionar como [...] defesa pessoal e fazer bem à saúde. Ela é exótica, o que confere um certo charme a quem a pratica” (BERGAMO, 2004, p. 58). Outros fi lmes produzidos em Hollywood também divulgam a capoeira a partir de al-gumas cenas como, por exemplo, Meet the Fockers (2004), Ocean’s Twelve (2004), The Rundown, The Quest, Harry Potter and the Goblet of Fire e Batman.

Videogames como Tekken 3, 4 e 5, Eternal Champions, Dark Resurrection, Street Fighter III, Fatal Fury, Rage of the Dragons, World of Warcraft, Bust a Groove, Pokémon Hit-montop, The Matrix, WWE Smack Down! e Here Comes the Pain também contribuem para a disseminação da capoeira nos quatro cantos do mundo.

Como conseqüência desse processo, algumas “bandei-ras” cultivadas e defendidas por seus precursores, como a oralidade, o improviso, a “mandinga”, a resistência cultural, são preteridas, para darem lugar a outras categorias mais “sintonizadas” com o momento atual, tais como: “merca-doria étnica”, “folia de espírito”, “malhação” e “espetaculari-zação” etc. (VASSALLO, 2003b).

Exemplos de experiências signifi cativas com ca-poeira no exterior. Importantes instituições de ensino e pesquisa, em especial faculdades de Educação Física, con-templam a capoeira como atividade extracurricular. Em al-gumas delas, existem trabalhos sistematizados de capoeira que funcionam como projetos de extensão em que profes-sores brasileiros são contratados por tempo determinado para ministrarem atividades aos que se interessarem, como é o caso dos projetos do Estádio Universitário da Universi-

dade de Lisboa, da Universidade de Varsóvia, da Universi-dade de Oslo, da Universidade de Bristol e da Universidade Técnica de Lisboa.

Importantes eventos de capoeira de âmbito internacio-nal acontecem em várias partes do mundo. Esses eventos permitem um intercâmbio signifi cativo entre as diversas propostas de trato com essa manifestação.

Embora alguns capoeiras brasileiros tenham realizado apresentações pela Europa desde 1951, o primeiro traba-lho de ensino sistematizado de capoeira no Velho Conti-nente foi empreendido pelo reconhecido Mestre Nestor Capoeira7, em 1971, na London School of Contemporary Dance, Londres, Inglaterra.

Ao longo dos últimos trinta anos, o movimento da ca-poeira na Europa intensifi cou-se signifi cativamente, fazen-do com que ela adquirisse expressiva densidade, mas, no começo, tudo era difícil pela falta de informação sobre o que realmente signifi cava esse misto de dança-luta-jogo.

Mestre Umoi, o qual há treze anos reside em Portugal, destacou que, no início, teve de dar aula na rua para con-vencer as crianças a fazerem capoeira. Dizia que iria ensi-ná-las a “dar pernadas”. Segundo ele, precisou utilizar essa artimanha para levar os “miúdos” a se interessarem pelas “pernadas do Brasil”.

Quando eu cheguei aqui, em agosto de 1990, pelo menos na região da Grande Lisboa, onde eu me instalei, não tinha capoeira. Ninguém tinha conhecimento do que era capoeira e, claro, eu vim pra cá na tentativa mesmo de ensinar a capoeira. Comecei a procurar as aca-demias aqui e a primeira reação dos donos das

Ofi cina de capoeira em Oslo na Noruega – 16/08/03 (J. L. C. Falcão)

(7) Nestor Capoeira foi iniciado por Mestre Leopoldina e graduou-se corda vermelha pelo Grupo Senzala em 1969. É autor de vários livros e artigos de capoeira. É mestre e doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi ator principal do fi lme “Cordão de Ouro”, produzido pela Embrafi lme (hoje disponível em vídeo pela Globovídeo), sob a direção de A. C. Fontoura, em 1978.

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(8) Esse e outros depoimentos presentes nesse artigo foram tomados por ocasião de Estágio de Doutoramento realizado pelo autor entre abril e agosto de 2003, na Europa, e serviram como fonte para a elaboração do quarto capítulo da tese de Doutorado intitulada: O Jogo da Capoeira em Jogo e a Construção da Práxis Capoeirana (FALCÃO, 2004).

É verdade que a capoeira, com esse “carimbo” de Brasil embutido em suas cantigas e comportamentos, ramifi cou-se e expandiu-se signifi cativamente e tem servido, atualmente, como veículo de agregação de povos de vários cantos do mundo, adquirindo, assim, uma identidade supranacional.

academias geralmente era que não queriam nada com galinheiros aqui em Portugal, porque capoeira aqui em Portugal signifi ca galinheiro. Então isso difi cultou muito o início do trabalho aqui (Mestre Umoi, comunicação pessoal, 27 de junho de 2003)8.

A dedicação de muitos mestres e professores deu con-tinuidade à iniciativa implementada por Nestor Capoeira e contribuiu para que essa manifestação adquirisse densida-de, diversidade, visibilidade e prestígio social.

Na Europa, essa densidade expressa-se pelo rico acer-vo cultural embutido nos seus gestos, cantos e história, os quais extrapolam as referências de sua baianidade e edifi -cam uma brasilidade, embora idealizada, à medida que não leva em consideração as evidentes diferenças culturais (e econômicas) presentes no Brasil. O fato é que essa mobili-dade, expressada pela saída de capoeiras de diferentes cida-des brasileiras em direção ao Velho Mundo e à América do Norte, contribui para ampliar as referências culturais dessa manifestação e ornamentar esse carimbo de brasilidade. Um professor norueguês afi rma que: “hoje em dia, as pessoas já conhecem bem o que é a capoeira e querem a capoeira (...). Quem procura a capoeira já tem uma idéia que é uma coisa brasileira e querem isso!” (Professor Torcha, comunicação pessoal, Oslo, Noruega, 18 de agosto de 2003).

É verdade que a capoeira, com esse “carimbo” de Brasil embutido em suas cantigas e comportamentos, ramifi cou-se e expandiu-se signifi cativamente e tem servido, atual-mente, como veículo de agregação de povos de vários cantos do mundo, adquirindo, assim, uma identidade su-pranacional. O Mestre Umoi, já citado, afi rma:

A capoeira está quebrando a barreira do oceano que divide o Brasil, a África, a Europa, a América do Norte. A capoeira é do capoeirista. E a gente já tem muitos bons capoeiristas aqui na Europa. Você vê muito angoleiro alemão jogando uma Angola tão boa e até melhor do que muito ca-poeirista que nunca saiu de Salvador, que nunca saiu do Brasil. Aí você fala. Ah! é porque é ale-mão? Não, é porque é capoeirista (Mestre Umoi, comunicação pessoal, Amsterdã, 18 de agosto de 2003).

A experiência de professores de capoeira brasi-leiros na Europa. A maioria dos mestres e professores de capoeira que atua na Europa é proveniente do Nor-deste Brasileiro, em especial das cidades de Recife e Sal-vador, mas existem professores de praticamente todos os

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estados brasileiros trabalhando com esta manifestação no Velho Continente.

Desde o início da década de 1970, Paris vem receben-do muitos capoeiras de diversos grupos brasileiros. A pro-fessora Úrsula, radicada na França há mais de doze anos, argumenta que quando lá chegou poucas pessoas conhe-ciam a capoeira. Atualmente, apesar de alguns desprepa-rados que se dizem mestres, sem nunca terem passado por uma academia, a capoeira já é bastante difundida e, freqüentemente, “as mulheres são maioria nas aulas” (CAR-VALHO, 2002, p. 17).

Essa condição laboral, por vezes clandestina, em que se inserem os brasileiros responsáveis pela disseminação da capoeira no exterior, diferencia-se, frontalmente, das car-reiras previsíveis, de rotinas estáveis que, até pouco tempo, caracterizavam os postos convencionais de trabalho.

No entanto, são essas as possibilidades concretas que se apresentam e elas são agarradas com “unhas e dentes”, na forma de verdadeiras aventuras pelos jovens “profi s-sionais da capoeira”. Por mais precárias que possam se apresentar, essas opções concretizam-se efetivamente e terminam por garantir a manutenção da vida da maio-ria desses “profi ssionais” que vivem distantes de sua terra natal, contribuindo, direta ou indiretamente, para substan-cializar a capoeira com fortes doses de aleatoriedade e de improvisação.

A luta pela sobrevivência e o desejo de reconhecimen-to a partir de novas experiências são os principais motivos que levam tantos professores de capoeira a deixar o Brasil e a se “jogar” em promessas incertas de “vida boa” no exte-rior. Entretanto, o que eles freqüentemente encontram são opções de trabalhos dispersos, desregularizados e fl uídos. Geralmente atuam como free lancers, como alternativa para “ganhar a vida”.

A chegada dos professores de capoeira na Europa ge-ralmente é controvertida. O depoimento do Mestre Matias, mineiro, que se mudou para a Suíça em 1989 e, atualmen-te, desenvolve trabalhos em várias cidades daquele país, faz coro com muitas outras experiências de mestres e profes-sores que buscaram melhores horizontes.

Foi muito dura a chegada na Suíça, ralei muito, toquei berimbau na neve, nas estações de trem, entendeu, porque os capoeiristas que tinham lá não faziam roda de rua. Eu ia para a rua sozi-nho, às vezes tocava o meu berimbau, tentava saltar, às vezes fazia coisas malucas e também era um modo de me libertar. O berimbau era o meu companheiro. Era o modo de eu me livrar daquela angústia, daquela saudade, daquela vontade de estar no Brasil, no meio dos alunos, dos colegas. Aquele país frio, você chega e toma aquele choque, não conhece ninguém, porque a língua é outra. Então foi uma barra enorme

que eu enfrentei, mas, graças a Deus, eu supe-rei tudo isso e hoje eu não vou dizer que falo perfeito o alemão, mas falo bem (Mestre Matias, comunicação pessoal, Madrid – Espanha, 29 de junho de 2003).

O fato é que, a despeito de freqüentes desesperos e até deportações, muitos professores de capoeira vislum-bram a possibilidade de conquistar no exterior o status e o reconhecimento que difi cilmente conseguiriam no Brasil. “Eu sou um pássaro”, “ninguém me segura”, “já me sinto lá”, eram frases prontas, freqüentemente proferidas por um dinâmico professor recifense em terras lusitanas, que vem levando a vida como uma grande aventura mesclada de fl utuações e incertezas nebulosas, mas com muita arte e alegria contagiante.

As difi culdades para encontrar emprego com estabili-dade garantida por benefícios assistenciais fazem com que os professores de capoeira na Europa, rotulados pela, nem sempre confortável, condição de imigrante, se “desenras-quem” recorrendo a expedientes e trabalhos precários e terminem por arranjar dinheiro nos limites do legal, do le-gítimo, do formal e, com isso, vão construindo trajetórias não-lineares e imprevisíveis em busca de ascensão e pres-tígio social.

Misturando sonhos e desejos com inquietações e temo-res, esses professores vêm tecendo novos horizontes para o campo conhecido como educação não-formal, que está ganhando espaço na sociedade em geral, principalmente em relação às camadas sociais com menor poder aquisiti-vo. A experiência do Mestre Umoi ratifi ca essa afi rmação.

A idéia do trabalho social é uma idéia que me apaixona. Meu trabalho sempre foi vinculado com a periferia de Sobradinho, em Brasília, e aqui não foi diferente. (...) eu entrei como estagi-

Roda de capoeira numa praça de Oslo – Noruega 17/08/03 (J. L. C. Falcão)

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“Você vê muito angoleiro alemão jogando uma Angola tão boa e até melhor do que muito capoeirista que nunca saiu de Salvador, que nunca saiu do Brasil. Aí você fala. Ah! é porque é alemão? Não, é porque é capoeirista.” (Mestre Umoi, comunicação pessoal, Amsterdã, 18 de agosto de 2003).

A internacionalização da capoeira

ário nesse reformatório em Caxias, na Linha de Cascais, que é um centro de correção. É como se fosse um presídio de menores. Tinha lá uma grande problemática, com muito aluno africano, com muito aluno português, mas tinha até riva-lidades raciais mesmo. Eu apresentei lá o projeto como estagiário. Felizmente a diretora já tinha passado vinte anos no Brasil. Conseqüentemen-te, conhecia capoeira e quando leu meu projeto, não associou a galinheiro, a galinha, nem nada, e isso foi uma coisa muito boa. Ela me aceitou como estagiário. De estagiário me contratou e no fi nal do meu curso eu já fui contratado pelo Ministério da Justiça, onde estou até hoje lá (Mestre Umoi, comunicação pessoal, Lisboa – Portugal, 27 de junho de 2003).

É importante destacar que os professores de capoeira

que saíram do Brasil para trabalhar na Europa se encon-tram numa condição menos desconfortável em relação aos demais imigrantes, uma vez que não disputam com os “nativos” um posto de trabalho. Terminam gozando de reconhecido prestígio, à medida que são possuidores de uma habilidade, de uma especialidade made in Brazil que funciona como um selo de qualidade muito requisitado pe-los jovens europeus, em geral. São portadores, portanto, de saberes “exóticos” e “culturais” que, de certa forma, desa-fi am os modos tradicionais de entrada no campo produtivo e terminam redefi nindo o sentido do trabalho, atualmente caracterizado por turbulência e instabilidade.

Na luta pela sobrevivência, inventam formas atípicas de ganhar dinheiro e terminam demonstrando uma notável ca-pacidade de improvisação. Muitos articulam-se em intrinca-das redes de solidariedade, por meio de densa convivência que se materializa em eventos, W, festas, ou simples visitas aos “trabalhos” dos seus conterrâneos irmanados pela dupla condição de capoeira-imigrante. Muitos grupos considera-

Comércio de indumentárias e instrumentos de capoeira – Evento em Madri – Espanha. Junho 2003 (J. L. C. Falcão)

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dos rivais no Brasil, ao se instalarem na Europa, terminam por minimizar e relativizar essa rivalidade para enfrentar os dissa-bores que a condição de imigrante freqüentemente impõe a todos os portadores do passaporte verde, indistintamente.

Essas múltiplas alternativas de trabalho com capoeira materializam-se na forma de shows em casas de espetácu-los, de ofi cinas em instituições educacionais, de orientação de jovens em situação de risco social. Freqüentemente, o trabalho do profi ssional de capoeira na Europa apresenta-se de forma eventual e temporária. O comércio de ape-trechos e adereços de capoeira serve para incrementar o orçamento desses aventureiros abnegados, isso quando não constitui atividade principal de muitos.

Ainda assim, a grande maioria dos professores brasi-leiros sente-se valorizada em trabalhar com capoeira em terras estrangeiras. Afi nal, esses aventureiros destemidos consideram-se portadores legítimos de uma cultura “exóti-ca”, pela qual o estrangeiro sempre se mostrou fascinado.

Muitos professores conquistam certa segurança, a par-tir de contratos com instituições públicas e privadas sólidas. Um mestre que trabalha em Portugal relatou, durante um evento na Noruega, que se sente muito valorizado como “professor de capoeira” de uma instituição pública.

Outro aspecto a destacar, a partir das experiências dos capoeiras brasileiros na Europa, diz respeito ao fato dessa manifestação cultural aglutinar, por intermédio dos concorri-dos eventos, pessoas oriundas de diferentes camadas sociais em um mesmo espaço de convívio. Em geral, um mestre ou professor alterna trabalhos em espaços nobres com os cha-mados “trabalhos sociais”. Em regra, nos fi nais de semana, ou nos eventos, os integrantes desses diferentes “espaços” en-contram-se e confraternizam-se em movimentadas rodas.

O Mestre Barão transita, com suas aulas de capoeira, em universos aparentemente inconciliáveis da Cidade do Porto, no norte de Portugal.

Eu dou aula no bairro Lagarteiro, um bairro bem complicado. É um bairro social que o pessoal chama aquilo lá de inferno. Dou aula também para ciganos num outro bairro também compli-cado do Porto. Eu estou lá fazendo um trabalho social com eles. Saio desse bairro social e vou para um ginásio que treina só ricos, que é só empresários (Mestre Barão, Comunicação pes-soal, 8 de junho de 2003).

Essa arte de viver e, em muitos casos, de sobreviver com e para a capoeira na condição de imigrante nem sem-pre é bem sucedida, entretanto, chama a atenção para ex-periências pedagógicas produtivas no campo da educação não-formal, que se intersecionam e, muitas vezes, comple-mentam o processo de educação formal.

Nesse movimento de internacionalização, a capoeira, com todas as implicações que uma manifestação cultu-

ral engendra, afi rma-se como manifestação de expressiva densidade à medida que mestres e professores “ensinam” os seus “fundamentos” para pessoas provenientes das mais diferentes origens e culturas e, com isso, vêm contribuindo para a quebra de tabus e estereótipos construídos no inte-rior do seu próprio movimento histórico. Se a capoeira “é brasileira”, se “está no nosso sangue”, como ela pode ser ensinada a pessoas que não têm o sangue brasileiro nas veias? Travassos (1999, p. 266) questiona: “Como se pode-ria ensinar algo que está inscrito no sangue, nos corpos e nas mentes de uns e não de outros?”

Muitos praticantes europeus de capoeira, além de se dedicarem exaustivamente a essa prática, interessam-se por outras manifestações que fazem parte do “acervo cultural” brasileiro, como é o caso do frevo, do samba, do maculelê e do maracatu. Com isso, terminam se apaixonando pelo Bra-sil. Isso pode ser ratifi cado pelo depoimento de um professor que ministra aulas em Lisboa, quando diz: “muitos europeus vivem a capoeira mais que muitos brasileiros e têm, realmen-te, o Brasil no coração” (Professor Marco Antônio, comunica-ção pessoal, Lisboa – Portugal, 13 de agosto de 2003).

Com a formação de inúmeros professores de naciona-lidade não-brasileira, a capoeira certamente passa a lidar e incorporar novos elementos nos seus “fundamentos”. Nes-se movimento, esses fundamentos são reelaborados a par-tir de embates permanentes, cujos aspectos de natureza econômica, cultural e subjetiva se intersecionam.

Em entrevista concedida pelo Mestre Borracha, que está na Europa desde 1985, fomos informados sobre a existência do primeiro mestre de capoeira europeu. Trata-se do Mestre Coruja, italiano, com mais de vinte anos de dedicação a essa arte, formado pelo Mestre Canela, do Gru-po Mangagá, do Rio de Janeiro. Esse dado aponta para a ne-cessidade de investigações sobre essa nova realidade que, certamente, trará enormes contribuições para pensarmos o fenômeno capoeira a partir de uma visão mais ampliada e complexa.

Ofi cina de Capoeira na Universidade de Varsóvia – Polônia, maio 2003 (J. L. C. Falcão)

CapoeiraA internacionalização da capoeira

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A capoeira pode até ser “coisa do Brasil”, mas também é de todo o mundo, à medida que para ser ensinada, praticada, transmitida, construída, ela precisa ser compartilhada, dividida, multiplicada.

A internacionalização da capoeira

É certo que existe uma cobrança prévia por parte dos mestres e professores brasileiros e até mesmo dos discípulos em relação aos professores não-brasileiros que, de uma for-ma ou de outra, se sentem com mais responsabilidade em dominar os fundamentos da capoeira. O depoimento de um professor, que ministra aulas na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, ilustra esses dilemas:

Eu acho que, pelo fato de não ser brasileiro, eu te-nho sempre algo mais a provar. Antes de verem-me jogar ou de me verem cantar, pensam que eu vou cantar ora pois, pois...Que eu vou jogar uma capoeira sem qualidade. Eu já andei em alguns sítios que nem sequer me dignaram apresentar como professor, apenas como Arroz Doce, de Portugal. Mas penso que o que diz respeito a mim em relação às outras pessoas, mal começa a roda, esquecem tudo isso. São brasileiros, são europeus. Capoeira é capoeira. Uma roda é uma roda. Eu vibro isso, se calhar, mais que muitos brasileiros. Isso tem uma importância muito grande na minha vida (Professor Arroz Doce, comunicação pessoal, Florianópolis-SC, 26 de novembro de 2003).

Da análise desse intrincado e rico movimento de inter-

nacionalização da capoeira, é possível formular três consi-derações fundamentais: a) a capoeira adquiriu, nos últimos dez anos, grande densidade, visibilidade e poder simbólico, e transformou-se em um dos principais cartões postais do Brasil no exterior; b) o signifi cado que os sujeitos apreen-dem de suas práticas, emocionalmente compartilhadas, está vinculado com a intensidade das interações e com a plenitude da experiência. Nessas práticas intersecionam as dimensões ético-políticas, históricas, culturais e econômi-cas da vida em sociedade, e c) a capoeira está sujeita a estratifi cação social própria de uma sociedade dividida em classes, expressando-se em possibilidades diversifi cadas de acordo com as classes sociais onde está inclusa.

Roda de Rua – Carmingnando de Brenta, Itália, julho de 2003 (J. L. C. Falcão)

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Considerações fi nais. A realidade de algumas experiên-cias sistemáticas de capoeira no exterior serve como fonte de inspiração para refl etirmos sobre as possibilidades desse símbolo de brasilidade que vem encantando um número cada vez mais expressivo de estrangeiros. Desta análise, é possível depreender que a capoeira consolidou-se como manifestação interétnica e o seu processo de internaciona-lização, verifi cado a partir da década de 1970, não aniquilou a participação de sujeitos políticos no campo cultural, mas, sim, criou para eles novos desafi os.

Algumas experiências com a capoeira colocadas em prática no exterior vêm confi rmando e ampliando os traços de trans-nacionalidade que contribuíram para o seu desenvolvimento, desafi ando a fragilidade dos discursos que, ingenuamente, a tra-tam como uma prática apropriada a determinadas camadas da população e vinculada a grupos étnicos específi cos.

A complexidade e a dinamicidade da capoeira eviden-ciam-se na intensifi cação do seu processo de internacio-nalização, cuja mobilidade se expressa horizontalmente, pelos trânsitos e fl uxos dos capoeiras em todo o mundo, e verticalmente, pela possibilidade concreta de ascensão na estratifi cada sociedade. Apesar de constatarmos uma sistemática reafi rmação de que ela é “coisa nossa”, o que, em tese, conferiria a todos os brasileiros o direito de exclu-sividade sobre a sua “mandinga”, as experiências analisadas demonstraram que esse discurso se constrói sob a égide do confl ito e da ambigüidade. A capoeira pode até ser “coi-sa do Brasil”, mas também é de todo o mundo, à medida que para ser ensinada, praticada, transmitida, construída, ela precisa ser compartilhada, dividida, multiplicada.

A capoeira pode ser interpretada de acordo com valores e regras sociais. Como construção social e como manifesta-ção cultural que permanentemente se constrói, a capoeira é infl uenciada pelo tempo histórico em que se situa, mas tam-bém edifi cada a partir dos interesses e das ações dos sujeitos que, por meio dela, atuam e disputam poder na sociedade.

Embora parcela signifi cativa de capoeiras a trate como símbolo étnico (capoeira é brasileira! é africana! é afro-brasilei-ra!), seu movimento de internacionalização leva-nos a pensá-la como uma manifestação com status de patrimônio cultural da humanidade. Nessa perspectiva ela não teria pátria, embora carregaria símbolos de sua inquestionável brasilidade.

Referências bibliográfi cas

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FALCAO, J. L. C. O jogo da capoeira em jogo e a construção da práxis capoeirana. Tese (Doutorado em Educação). Salvador-BA. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, 2004.

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SOARES, C. E. L. A capoeira escrava e outras tradições rebel-des no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2001.

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VASSALLO, S. P. A transnacionalização da capoeira: etnicida-de, tradição e poder para brasileiros e franceses em Paris. In: Anais da Quinta Reunião de Antropologia do Mercosul. Flo-rianópolis-SC, 30 de novembro a 03 de dezembro de 2003.

WEELOCK, Julie. Capoeira para americano jogar. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 Jan. 1989, p. 8, Caderno B.

José Luiz Cirqueira Falcão. Professor do Centro de Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina. Dou-tor em Educação pela Universidade Federal da Bahia.

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Carybé

Hector Julio Páride Bernabó, ou Carybé, nasceu em La-nús (Argentina) em 07 de fevereiro de 1911 e faleceu em Salvador, em 02 de outubro de 1997. Destacou-se pela arte fi gurativa brasileira, sobretudo a baiana, com motivos de mu-latas lavadeiras, pescadores, e capoeiristas, por meio de es-tilo que se aproxima da abstração. Apesar de ter nascido na Argentina e vivido sua infância na Itália, foi no Brasil que teve sua formação artística e morada defi nitiva. Mudou-se para o Brasil em 1919, e freqüentou a Escola Nacional de Belas Artes entre 1927 e 1929.

Seu primeiro contato com a Bahia foi em 1938, quando foi enviado pelo jornal Prégon para fazer uma reportagem sobre o célebre personagem Lampião. Com a falência do periódico, estendeu sua jornada pelo litoral norte do Brasil, que lhe inspirou desenhos para sua primeira exposição cole-tiva, em Buenos Aires, em 1939. Sua relação com o Brasil se aprofunda na década de 1940, quando verteu Macunaíma, de Mário de Andrade, para o espanhol. Na década de 1950, a convite do Secretário da Educação Anísio Teixeira, Carybé muda-se defi nitivamente para Bahia, onde auxilia a promover

a renovação das artes plásticas. Em 1955 foi eleito o melhor desenhista da III Bienal de São Paulo, e em 1961 recebeu o mérito de expor em sala exclusiva. Em 1957 naturalizou-se brasileiro, fato que legitimou sua condição de ícone da Bahia. Com efeito, suas obras visam, sobretudo, a retratar a riqueza da cultura popular baiana.

Carybé realizou mais de cinco mil trabalhos, entre pin-turas, desenhos, esculturas e esboços, incluindo ilustrações para obras de autores consagrados como Jorge Amado, Ru-bem Braga, Mário de Andrade e Gabriel Garcia Marquez. Pos-sui murais nas cidades de Salvador, Londres e Nova York, em que se nota infl uência de Picasso e Rivera. Entre suas obras impressas, destacam-se a Iconografi a dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia, resultado de 30 anos de pesqui-sa, As Sete Portas da Bahia, coletânea de desenhos sobre a cultura baiana, e Olha o Boi e Bahia, Boa Terra Bahia, ambos em parceria com Jorge Amado. O escritor baiano, seu gran-de amigo, em um de seus versos integrantes da Cantiga de capoeira para Carybé, traça bela descrição da relação de Ca-rybé com a cultura baiana:

“[...] A paisagem, a poesiae o mistério da Bahia,ê, ê camarado,e de quem é?

É de Carybé, camarado,Ê camarado, ê. [...]”

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Pierre Verger

Pierre Verger nasceu em Paris, no dia quatro de novem-bro de 1902. Desfrutando de boa situação fi nanceira, ele levou uma vida convencional para as pessoas de sua classe social até a idade de 30 anos, ainda que discordasse dos valores que vigoravam nesse ambiente. O ano de 1932 foi decisivo em sua vida: aprendeu um ofício - a fotografi a - e descobriu uma paixão - as viagens. De dezembro de 1932 até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de viagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamen-te da fotografi a. Verger negociava suas fotos com jornais, agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas e até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-se uma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas liga-dos a Prévert e os antropólogos do Museu do Trocadero - e fazia contatos para novas viagens. Trabalhou para as me-lhores publicações da época, mas como nunca almejou a fama, estava sempre de partida: “A sensação de que existia um vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir vê-lo me levava em direção a outros horizontes”.

As coisas começaram a mudar no dia em que Verger desembarcou na Bahia. Em 1946, enquanto a Europa vi-via o pós-guerra, em Salvador, tudo era tranqüilidade. Foi logo seduzido pela hospitalidade e riqueza cultural que en-controu na cidade e acabou fi cando. Como fazia em todos os lugares onde esteve, preferia a companhia do povo, os lugares mais simples. Os negros monopolizavam a cidade e também a sua atenção. Além de personagens das suas fotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foi bus-cando conhecer com detalhe. Quando descobriu o can-domblé, acreditou ter encontrado a fonte da vitalidade do povo baiano e se tornou um estudioso do culto aos orixás.

Esse interesse pela religiosidade de origem africana lhe rendeu uma bolsa para estudar rituais na África, para onde partiu em 1948. Além da iniciação religiosa, Verger começou nessa mesma época um novo ofício, o de pesquisador. A his-tória, costumes e principalmente a religião praticada pelos povos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e na Bahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisas e sua obra.. Como colaborador e pesquisador visitante de várias universidades, conseguiu ir transformando suas pes-quisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comprou a casa da Vila América. No fi nal dos anos 70, ele parou de fotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África.

Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de Verger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um nú-mero maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acer-vo. Na década de 80, a Editora Corrupio cuidou das primeiras publicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação Pier-re Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente, assumindo assim a transformação da sua própria casa num

centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, dei-xando à FPV a tarefa de prosseguir com o seu trabalho.

“A criação da Fundação Pierre Verger foi a conseqüên-cia de dois de meus amores: o que sinto pela Bahia e aquele que tenho pela região da África, situada no Golfo de Benin. Ela se propõe, através de seus objetivos e suas atividades, a realçar esta herança comum, oferecendo à Bahia o que ela conhece sobre o Benin e a Nigéria e informar esses países sobre suas infl uências culturais na Bahia”, afi rmou Verger no primeiro boletim informativo da FPV. Ele doou à Fundação todo o seu acervo pessoal, reunido em décadas de viagens e pesquisas. São dezenas de artigos, livros, 62 mil negativos fotográfi cos, gravações sonoras, fi lmes em película e vídeo, além de uma coleção preciosa de documentos, fi chas, cor-respondências, manuscritos e objetos.

Criada legalmente em 1988, a Fundação é uma pessoa jurídica de direito privado, sem fi ns lucrativos, com autono-mia administrativa e fi nanceira, que funciona até hoje na mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, na Ladeira da Vila América, em Salvador. Gerida por um grupo de amigos, colaboradores e admiradores de Verger, a Fun-dação cuida da preservação e divulgação de sua obra. En-

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tre funcionários, diretores e curadores estão algumas das pessoas que conviveram com Verger mais de perto nos últimos anos de sua vida.

Principais objetivos da Fundação:• preservar, divulgar e pesquisar a obra do instituidor Pierre

Edouard Leopold Verger; • estudar e preparar publicações relacionadas com as in-fl uências recíprocas entre o Brasil e a África em geral e, principalmente, entre a Bahia e o Golfo do Benin;

• proporcionar oportunidades de cooperação interdiscipli-nar em áreas como artes, antropologia, botânica, música e história;

• servir como centro de informações e pesquisa; • estabelecer e manter relações com organizações cultu-

rais internacionais interessadas na cultura africana e nos problemas da diáspora dos africanos no Novo Mundo.

Serviços:• liberação de direitos autorais e venda das fotografi as de

Pierre Verger; e• disponibilização do acervo a pesquisadores.

Fonte: Fundação Pierre Vergerhttp://www.pierreverger.org/br/index.htm

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Pierre Verger

Pierre Verger nasceu em Paris, no dia quatro de novem-bro de 1902. Desfrutando de boa situação fi nanceira, ele levou uma vida convencional para as pessoas de sua classe social até a idade de 30 anos, ainda que discordasse dos valores que vigoravam nesse ambiente. O ano de 1932 foi decisivo em sua vida: aprendeu um ofício - a fotografi a - e descobriu uma paixão - as viagens. De dezembro de 1932 até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de viagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamen-te da fotografi a. Verger negociava suas fotos com jornais, agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas e até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-se uma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas liga-dos a Prévert e os antropólogos do Museu do Trocadero - e fazia contatos para novas viagens. Trabalhou para as me-lhores publicações da época, mas como nunca almejou a fama, estava sempre de partida: “A sensação de que existia um vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir vê-lo me levava em direção a outros horizontes”.

As coisas começaram a mudar no dia em que Verger desembarcou na Bahia. Em 1946, enquanto a Europa vi-via o pós-guerra, em Salvador, tudo era tranqüilidade. Foi logo seduzido pela hospitalidade e riqueza cultural que en-controu na cidade e acabou fi cando. Como fazia em todos os lugares onde esteve, preferia a companhia do povo, os lugares mais simples. Os negros monopolizavam a cidade e também a sua atenção. Além de personagens das suas fotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foi bus-cando conhecer com detalhe. Quando descobriu o can-domblé, acreditou ter encontrado a fonte da vitalidade do povo baiano e se tornou um estudioso do culto aos orixás.

Esse interesse pela religiosidade de origem africana lhe rendeu uma bolsa para estudar rituais na África, para onde partiu em 1948. Além da iniciação religiosa, Verger começou nessa mesma época um novo ofício, o de pesquisador. A his-tória, costumes e principalmente a religião praticada pelos povos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e na Bahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisas e sua obra.. Como colaborador e pesquisador visitante de várias universidades, conseguiu ir transformando suas pes-quisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comprou a casa da Vila América. No fi nal dos anos 70, ele parou de fotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África.

Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de Verger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um nú-mero maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acer-vo. Na década de 80, a Editora Corrupio cuidou das primeiras publicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação Pier-re Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente, assumindo assim a transformação da sua própria casa num

centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, dei-xando à FPV a tarefa de prosseguir com o seu trabalho.

“A criação da Fundação Pierre Verger foi a conseqüên-cia de dois de meus amores: o que sinto pela Bahia e aquele que tenho pela região da África, situada no Golfo de Benin. Ela se propõe, através de seus objetivos e suas atividades, a realçar esta herança comum, oferecendo à Bahia o que ela conhece sobre o Benin e a Nigéria e informar esses países sobre suas infl uências culturais na Bahia”, afi rmou Verger no primeiro boletim informativo da FPV. Ele doou à Fundação todo o seu acervo pessoal, reunido em décadas de viagens e pesquisas. São dezenas de artigos, livros, 62 mil negativos fotográfi cos, gravações sonoras, fi lmes em película e vídeo, além de uma coleção preciosa de documentos, fi chas, cor-respondências, manuscritos e objetos.

Criada legalmente em 1988, a Fundação é uma pessoa jurídica de direito privado, sem fi ns lucrativos, com autono-mia administrativa e fi nanceira, que funciona até hoje na mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, na Ladeira da Vila América, em Salvador. Gerida por um grupo de amigos, colaboradores e admiradores de Verger, a Fun-dação cuida da preservação e divulgação de sua obra. En-

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tre funcionários, diretores e curadores estão algumas das pessoas que conviveram com Verger mais de perto nos últimos anos de sua vida.

Principais objetivos da Fundação:• preservar, divulgar e pesquisar a obra do instituidor Pierre

Edouard Leopold Verger; • estudar e preparar publicações relacionadas com as in-fl uências recíprocas entre o Brasil e a África em geral e, principalmente, entre a Bahia e o Golfo do Benin;

• proporcionar oportunidades de cooperação interdiscipli-nar em áreas como artes, antropologia, botânica, música e história;

• servir como centro de informações e pesquisa; • estabelecer e manter relações com organizações cultu-

rais internacionais interessadas na cultura africana e nos problemas da diáspora dos africanos no Novo Mundo.

Serviços:• liberação de direitos autorais e venda das fotografi as de

Pierre Verger; e• disponibilização do acervo a pesquisadores.

Fonte: Fundação Pierre Vergerhttp://www.pierreverger.org/br/index.htm