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Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco CBHSF | Nº 07 | DEZ 2015 ISSN 2316-7661 MUITA SEDE AO POTE DIFERENTES INTERESSES AMEAÇAM O AQUÍFERO URUCUIA, UM DOS RESPONSÁVEIS PELA PERENIDADE DO VELHO CHICO

Revista Chico - nº 07

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Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do

Rio São FranciscoCBHSF | Nº 07 | DEZ 2015

ISSN 2316-7661

MUITA SEDE AO

POTEDIFERENTES

INTERESSES AMEAÇAM O AQUÍFERO URUCUIA, UM DOS RESPONSÁVEIS PELA PERENIDADE DO

VELHO CHICO

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Em meio à Caatinga presente no oeste baiano, flores de diferentes espécies embelezam a região e trazem vida a uma área extremamente castigada pela seca.

Foto: André Frutuoso

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Revista ChicoPublicação semestral do Comitê da

Bacia Hidrográfica do Rio São FranciscoNº 07 | DEZ 2015

ISSN 2316-7661

Comitê da Bacia Hidrográfica do

Rio São FranciscoPresidente

Anivaldo de Miranda Pinto

Vice-PresidenteWagner Soares Costa

SecretárioJosé Maciel Nunes de Oliveira

Coordenador da CCR do AltoMárcio Tadeu Pedrosa

Coordenador da CCR do MédioCláudio Pereira da Silva

Coordenador da CCR do SubmédioManoel Uilton dos Santos (Tuxá)

Coordenador da CCR do Baixo Melchior Carlos do Nascimento

Produzido pela Yayá Comunicação

Integrada

Coordenação geralMalu Follador

Coordenação editorial e edição de texto

José Antônio Moreno

ReportagemAndré SantanaDelane Barros

José Antônio MorenoRicardo Follador

Wilton Mercês

ArtigosAnivaldo Miranda

George OlavoLincoln Muniz

IlustraçãoHiram Gama

Elena Landinez

FotografiaAndré Frutuoso

João ZinclairLeonardo ArielTiago Sampaio

Ricardo FolladorWilton Mercês

RevisãoRita Canário

Projeto gráfico e Editoração

Jorge Martins

Foto da CapaShutterstock.com

ImpressãoGráfica Santa Bárbara

O que seria do Velho Chico sem o aquí-fero Urucuia? A revista Chico chega à sua sétima edição ressaltando a im-portância desse grande manancial

de águas subterrâneas para a sobrevivência do rio São Francisco, especialmente no período de estiagem. Além de mostrar a contribuição eco-nômica do aquífero para o desenvolvimento do setor agrícola no oeste baiano, a revista discu-te a necessidade de uma boa gestão das águas subterrâneas, ameaçadas, sobretudo nesse território, por sua retirada desordenada para manutenção de projetos do agronegócio.A revista destaca ainda os resultados parciais do processo de atualização do Plano de Bacia do São Francisco, que deverá ser concluído em 2016 pela Nemus Consultoria. Dados apurados até agora revelam parâmetros atualizados dos diversos aspectos da bacia, apontando novas e diferentes perspectivas – nem sempre positivas – que irão nortear o trabalho de gestão do Comi-tê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco nos próximos dez anos.Gestão que ganha estímulo e ressonância em práticas positivas de desenvolvimento das comu-nidades ribeirinhas: nesta edição, o destaque é para o modelo produtivo com base no coopera-tivismo, implantado por apicultores dos municí-pios baianos de Ibotirama e Morpará, para a pro-dução do mel Velho Chico, reconhecido como “o melhor mel da Bahia” em recente concurso es-tadual e que vem conquistando mercado dentro e fora do Brasil. Uma alternativa de renda para comunidades que já não encontravam viabilidade econômica na agricultura, seriamente prejudica-da pela dura estiagem em uma das regiões baia-nas mais castigadas pela seca.Finalmente, a Chico entrevista uma das figuras mais emblemáticas da bacia, o pescador Antô-nio Gomes dos Santos, o Toinho Pescador, como também é conhecido o alagoano de Penedo, 84 anos, defensor contumaz do Velho Chico e poeta que usa seus versos para denunciar as agres-sões ao rio e, principalmente, disseminar a ideia de que é possível, sim, acreditar em um futuro melhor para o São Francisco.

A força que vem da terra

Agencia de Bacia AGB PEIXE VIVO

Diretora-geral Célia Maria Brandão Fróes

Diretora de Integração Ana Cristina da Silveira

Diretor Técnico Alberto Simon Schvartzman

Diretora de Administração e Finanças

Berenice Coutinho Malheiros dos Santos

Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBHSF Contrato nº 07/2012 - Contrato de Gestão nº

014/ANA/2010 - Ato Convocatório nº 043/2011.Direitos reservados. Permitido o uso das informações,

desde que citando a fonte.

CÂMARA CONSULTIVA REGIONALBAIXO SÃO FRANCISCO

CÂMARA CONSULTIVA REGIONALALTO SÃO FRANCISCO

CÂMARA CONSULTIVA REGIONALMÉDIO SÃO FRANCISCO

CÂMARA CONSULTIVA REGIONALSUBMÉDIO SÃO FRANCISCO

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Sumário

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VIDA QUE BROTA DEBAIXO DO BARRO DO CHÃO

ENTREVISTA: TOINHO PESCADOR

ARTIGO: OS EXTREMOS CLIMÁTICOS E AS PERSPECTIVAS FUTURAS NO CONTEXTO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO

HAVERÁ ÁGUA PARA TODOS?

OPINIÃO: UM NOVO TEMPO PARA OS COMITÊS DE BACIA

A MISTERIOSA MANCHA DO RIO

ALMANAQUE: PENEDO

NA ROTA

VELHO CHICO EM CAPÍTULOS

SERES DO SÃO FRANCISCO: LOBO-GUARÁ

DOCE REVOLUÇÃO NO OESTE BAIANO

EXPERIÊNCIAS EXITOSAS

ENSAIO: VIDA ÀS CARRANCAS

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A questão é que esse reservatório natu-ral carece de atenção, pois sua área de maior contribuição está localizada no oeste da Bahia, que registra gran-

des conflitos pelo uso das águas, envolvendo investimentos agrícolas de porte, usinas de produção de energia hidroelétrica e a própria população ribeirinha. Organizações ambientais criticam o descumprimento dos termos de ou-torgas e a pouca eficiência da fiscalização do governo estadual, principal responsável pela gestão das águas subterrâneas. As incertezas em relação ao futuro do Urucuia se agravam pela insuficiência de informações sobre seu volume e transformações sofridas nos últimos anos, especialmente após a grande concen-tração populacional e de projetos irrigados em cidades como Barreiras, São Desidério e Luís Eduardo Magalhães (essa última com território totalmente sobre o aquífero). O São Francisco somente é um rio perene e mantém a vazão de suas águas nos períodos críticos de falta de chuva graças à existência de um imenso reser-vatório subterrâneo, que abrange boa parte da sua bacia hidrográfica e contribui significativa-mente para a região do Médio São Francisco (oeste da Bahia).  Trata-se do aquífero Urucuia, um dos mais importantes do País, responsável por mais de 80% da vazão das águas que che-gam à barragem de Sobradinho (BA) nos perío-dos de estiagem.Mesmo com toda essa importância para a ba-cia, ainda são poucas as informações sobre o Urucuia, especialmente quanto ao uso de suas águas, por se tratar de uma região de grande demanda devido às atividades agrícolas. “É pre-

ciso mudar o paradigma que concebe o oeste da Bahia apenas como um grande fornecedor de grãos. Antes disso, é um grande fornecedor de água para todo o rio São Francisco e, con-sequentemente, para o Nordeste. Não precisa-mos deixar de produzir grãos, mas a questão da água é fundamental”, alerta Martin Meyer, coor-denador executivo da Agência 10envolvimento, organização não governamental que atua na ci-dade de Barreiras, principal centro articulador dos negócios agrícolas da região. A ONG lista uma série de problemas que colocam em risco o manancial localizado nessa área de importan-tes rios afluentes do rio São Francisco, como o Grande, o Corrente e o Carinhanha.“O desmatamento do Cerrado para a ocupa-ção de outras culturas, compactando o solo e impedindo a infiltração de água que vai nu-trir o aquífero, o represamento dos rios pela construção de barragens que favorecem a evaporação das águas e a retirada despropor-cional de água por imensos poços irregulares são algumas das ações que, articuladas, com-prometem o futuro do Urucuia”, elenca Meyer. Para ele, a omissão por parte dos poderes públi-cos coloca em risco os recursos hídricos. “Não podemos esperar do agronegócio uma atitude de preservação, porque o que eles buscam são estratégias de aumento da lucratividade. O que exigimos dos poderes públicos é uma atitude mais rigorosa na fiscalização”, cobra. O presidente do Comitê da Bacia Hidrográ-fica do Rio São Francisco (CBHSF), Anivaldo Miranda, concorda: “Não dá pra falar seria-mente em gestão de recursos hídricos, se não tivermos sistemas confiáveis de outorga

de água, se não resolvermos questões rela-cionadas à dominialidade das águas ou se a exploração dos recursos hídricos continuar a ser feita com índices elevados de irregu-laridade ou clandestinidade e, ainda, se não implantarmos a cobrança pelo uso da água e os planos de bacia com a velocidade que os novos tempos requerem”. Miranda desaprova que a gestão hídrica seja feita apenas duran-te a escassez, “desaparecendo” no período de abundância. “A água deixou de ser aque-le bem infinito, que podia ser usado de modo descuidado. Por outro lado, a fiscalização, porém, não deve ser feita apenas pelo poder público, que não têm ‘musculatura’ suficiente para isso. Com a implantação da gestão hídri-ca de qualidade, essa fiscalização poderá ser descentralizada, até mesmo para algumas associações de usuários, uma vez que eles, em muitos casos, podem se fiscalizar mutu-amente”, orienta.“O Urucuia é a grande caixa d´água do se-miárido. O São Francisco só não é um rio in-termitente por conta da articulação entre os aquíferos Bambuí e Urucuia, com forte predo-minância desse último”, destaca o engenheiro civil Rodolpho Ramina. Doutor em Meio Am-biente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná, Ramina prestou consul-toria para o CBHSF, quando alertou sobre a situação hídrica da bacia, com ênfase nos problemas da região do Médio e do Alto São Francisco, onde se concentram os dois prin-cipais reservatórios (o Bambuí é um aquífero cárstico que abastece mais de 200 municípios do Centro e Norte de Minas Gerais). “É pre-ciso que os governos tenham maior controle das licenças para retirada de água. Além dis-so, é necessário rever os critérios de operação das hidroelétricas, que são inadequados para a situação de disponibilidade hídrica”, alerta o especialista, destacando ainda que, além da bacia do São Francisco, o Urucuia abastece a bacia do rio Tocantins, sendo fundamental para os estados de Goiás e Tocantins. “O des-cuido com o Urucuia afeta todos os usuários dessas bacias”, observa.

A CRISE HÍDRICA QUE O RIO SÃO FRANCISCO TEM ENFRENTADO NOS ÚLTIMOS ANOS JÁ É ENORME, MAS PODERIA SER PIOR SE A BACIA NÃO DISPUSESSE DE UM IMENSO RESERVATÓRIO SUBTERRÂNEO PARA MANTER A VAZÃO NOS PIORES PERÍODOS DE ESTIAGEM. ESSE PAPEL É DESEMPENHADO PELO AQUÍFERO URUCUIA, QUE TEM MAIS DE 140 QUILÔMETROS DE EXTENSÃO E CAPACIDADE DE ATÉ 600 METROS CÚBICOS POR HORA DE VAZÃO. EM OUTRAS PALAVRAS, O URUCUIA PRATICAMENTE MANTÉM O SÃO FRANCISCO NO PERÍODO DE SECA.

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Vida que brota debaixo do barro do chãoTEXTO: ANDRÉ SANTANA

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O AQUÍFERO URUCUIA

URUCUIA EM NÚMEROSÁrea: mais de 142 quilômetros quadradosEquivalente a 429 vezes a área da cidade de Belo Horizonte-MG,

maior metrópole da bacia do São Francisco

Largura máxima: 200 kmComprimento: 1.100 kmProfundidade máxima: 500 m

Vazão máxima: 600m3/h

Abrangência: estados da Bahia,

Tocantins, Minas Gerais, Piauí, Maranhão e Goiás

Regiões fisiográficas

na bacia: Alto e Médio

São Francisco

= área da cidade de Belo Horizonte

ÁREA DO AQUÍFERO URUCUIA

PRINCIPAIS INIMIGOS A vocação natural do Urucuia é armazenar as águas que se infiltram em suas rochas. No entan-to, outros fatores e usos acabam comprometendo esse objetivo, funcionando como verdadeiros “ini-migos” do reservatório. Os principais são:

• Compactação do solo por conta do desmatamento do Cerrado para a ocupação de lavouras • Retirada desproporcional de água para projetos irrigados

UTILIZAÇÃO DAS ÁGUAS• Norte de Minas Gerais e oeste da Bahia: irrigação e abastecimento• Barragem de Sobradinho (BA) : geração de energia • Goiás e Tocantins: abastecimento (contribui para a bacia hidrográfica do rio Tocantins)

7AQUÍFERO URUCUIA FLUXO DE ÁGUA DO AQUÍFERO PARA O RIO

ZONA NÃO SATURADA

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ESTUDO DA ANAA hidrogeóloga e especialista em Recursos Hí-dricos da Agência Nacional das Águas (ANA), Márcia Tereza Pantoja Gaspar, coordena des-de 2011 uma grande pesquisa da ANA sobre o Urucuia, que será divulgada em breve. O estudo teve como base dados das estações fluviomé-tricas, de 1975 a 2005, nas vazões das bacias hidrográficas dos rios Grande, Corrente e Ca-rinhanha, revelando a grande contribuição à vazão do Velho Chico. “A contribuição média no período de estiagem é de 80%, tendo como re-ferência a barragem de Sobradinho. Há estudos que chegam a 90%. O Sistema Urucuia pratica-mente mantém o São Francisco no período de estiagem”, confirma a especialista.Márcia Gaspar explica que todos os estudos e o levantamento de dados já foram realizados, mas que a pesquisa ainda não foi publicada, pois está em processo de construção de um Plano de Gestão Integrado e Compartilhado. Isto porque a Constituição de 1988 dá a domi-nialidade das águas subterrâneas aos governos estaduais. São eles que possuem a prerrogativa e o poder de fazer a gestão, incluindo a conces-são de licença para retirada de água. “No caso do Urucuia, seis estados brasileiros estão en-volvidos. Então, é necessário haver um diálogo. Tem de haver uma articulação entre os estados e a União, a fim de garantir o uso sustentável e uma gestão integrada”, afirma a estudiosa, que complementa: “O ciclo hidrológico já é na-turalmente integrado. A chuva infiltra no solo, que alimenta o aquífero, que lentamente libera a água que abastece os rios estaduais, que, por sua vez, alimentarão o São Francisco”.Para o estudo, a ANA selecionou um consórcio com duas empresas paulistas, responsáveis por reunir uma equipe multidisciplinar formada de geólogos, biólogos, químicos e profissionais da área de gestão ambiental, resultando em um rico banco de dados. Além da equipe multidis-ciplinar, houve o acompanhamento dos técnicos da ANA e de uma Comissão Técnica de Acom-

panhamento e Fiscalização (CTAF) formada por representantes dos estados (o Piauí foi o único estado envolvido que não designou represen-tante governamental). As discussões sobre do-minialidade e gestão integrada das águas sub-terrâneas também fazem parte do trabalho do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, por meio de duas esferas: Câmara Técnica de As-suntos Legais e Institucionais (CTIL) e Câmara Técnica de Águas Subterrâneas (CTAS).Os estudos realizados pela ANA mostram que a partir da década de 1980 houve diminuição do volume de água, por um conjunto de fatores relacionados. Entre os principais, destacam-se três: diminuição das chuvas, crescimento da ocupação e aumento da retirada de água, por meio de poços, para irrigação. Esses impac-tos foram observados especialmente no oeste baiano. “Como as chuvas têm diminuído, a pro-cura pelas águas subterrâneas tem aumentado na região, principalmente por agricultores que não estão próximos ao rio e fazem a retirada por meio de poços”, observa Márcia Gaspar. É neste sentido que, segundo ela, precisa haver maior controle por parte dos estados em relação às outorgas. “Há poços no Urucuia que chegam a 500, 600 metros cúbicos, ou seja, 600 mil litros por hora. Há fazendas com dois, três e até qua-tro poços desses, com diâmetros de 14 metros, quando normalmente deveriam ter de seis a oito metros”, destaca. “Só preservamos o que conhecemos. As in-formações sobre a disponibilidade das águas subterrâneas são essenciais para melhor gerir o sistema”, confirma Maricene Paixão, do  Ins-tituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e representante do estado de Minas Gerais no acompanhamento da pesquisa sobre o Urucuia. “Algo que já sabemos é que o número de poços é maior do que o que temos no sistema de ca-dastramento”, informa.Em Minas Gerais, há uma grande contribuição do Aquífero Bambuí, que possui formação ge-ológica diferente do Urucuia, já que se trata de

rochas carbonáticas. “O Bambuí não é contínuo como o Urucuia. A resposta dele é muito rápida. Quando chove, infiltra mais rápido”, detalha Le-onardo de Almeida, especialista em Recursos Hídricos da ANA. Ele informa que, apesar de possuir área menor, o Bambuí abastece uma re-gião onde chove muito pouco, daí sua importân-cia. “Há rios, como o Verde Grande, e cidades mineiras, como Sete Lagoas, que dependem 100% de suas águas”, ressalta.

OUTORGAS E QUALIDADE DAS ÁGUAS“Há um déficit muito grande de conhecimento sobre as águas subterrâneas e de monitora-mento de sua evolução ao longo do tempo. Por exemplo, se houve aumento de volume ou perda de qualidade. São questões fundamentais para se pensar a gestão desses recursos”, ressalta o geólogo Pedro Bettencourt, diretor-geral da Nemus Consultoria, empresa que está realizan-do a atualização do Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco.Pela experiência acumulada como coordena-dor de planos de bacias em países da Europa, Bettencourt considera que uma das principais preocupações em relação às águas subterrâne-as está relacionada às outorgas e à qualidade das águas. “É necessário saber a quantidade de água que é retirada e a situação de contami-nação dos aquíferos, principalmente em áreas de irrigação agrícola”, alerta, lembrado que, geralmente, onde há forte presença da agricul-tura há riscos de contaminação das águas. “O impacto pode ser grande ou pequeno, a depen-der da estrutura do aquífero. Mas os problemas ocasionados pelo agronegócio podem se tornar visíveis somente depois de muitos anos”, avalia. Para o especialista em Gestão de Recursos Hídricos da Secretaria de Meio Ambiente da Bahia, Zoltan Romero, que também acompanha os estudos da ANA, não há nenhuma ameaça às águas do Urucuia em termos de quantidade e nem risco de contaminação. Mesmo assim, ele

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considera importante que sejam adotadas práticas prevencionistas. Ro-mero destaca a iniciativa da Associação de Irrigantes do Oeste da Bahia (Aiba), ao estabelecer metas de procedimentos que garantam maior in-filtração de água no aquífero. “A ideia é generalizar para todos os agri-cultores”, diz. De acordo com o especialista, uma maior infiltração de água no solo agi-ria diante do uso de produtos químicos na agricultura. “Os fertilizantes são inevitáveis. Uma produção totalmente orgânica é utopia, seria o caos para o setor agrícola. Não dá para resolver tudo de uma vez. O que tem que ser reduzido é a erosão, aumentando a infiltração, evitando a perda de água e o vazamento de nutrientes. Isso demandaria menos fertilizantes na produção”, explica.“Quem mais está interessado na preservação dessa água são os produtores, que dependem dela. Não seriam eles a prejudicar ou destruir o rio”, pondera José Cisino, diretor de Irrigação e Água da Aiba. Ele chama a atenção para um estudo que está sendo realizado pela entidade sobre a situação hídri-ca da região, já que os irrigantes não têm ainda a dimensão do volume de água que consomem. “Estamos pesquisando uma área de 1 milhão e 700 mil hectares na bacia do rio Grande, com 700 amostras de solo, envolvendo pesquisadores de três universidades da região”, detalha, fazendo referência à Universidade Federal do Oeste da Bahia, Universidade do Estado da Bahia e Faculdade do São Francisco.

Dentre as estratégias do setor produtivo para diminuir o impacto da irriga-ção, encontra-se o plantio direto, que vem dando resultados positivos em relação à infiltração. “Temos observado que, com o desmatamento, o Sis-tema de Plantio Direto (SPD) e a incorporação de material orgânico ao solo proporcionaram taxas de infiltração de água no solo superiores às das espé-cies nativas”, afirma Cisino, que completa: “Ainda estamos realizando o se-questro de carbono e, por meio da fotossíntese dessas vegetações, liberando oxigênio para a natureza”.

CRESCIMENTO X DESENVOLVIMENTOA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), subsidiária do governo federal, vem desenvolvendo pesquisa com o Sistema de Plantio Di-reto, que seria responsável por várias alterações de ordem física, química e biológica que culminam na proteção do solo, no sequestro de carbono e na redução dos gases de efeito estufa. Mas não há unanimidade acerca dos benefícios desse sistema. “Estamos dando um tom de modernidade ao nosso primeiro modelo de agri-cultura, já defasado, com uso excessivo de adubos químicos, assoreamen-to dos rios e monocultura intensiva e predatória”, denuncia a geógrafa Ana Anália Miranda, ex-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Gran-de. Conhecedora dos problemas do oeste, ela faz uma distinção sobre o que vem ocorrendo na região. “Tem havido crescimento e não desenvolvimento. E nenhum lugar tem condições sociais e ambientais de crescer sem pensar na preservação de suas reservas naturais”. Para a geógrafa, essa mentalidade tem tirado da região baiana uma das principais virtudes, “que é absorver água da chuva e armazenar em seu solo. São águas que levam anos para percorrer enormes distâncias abaixo, purificando-se, livrando-se das contaminações. São águas que ainda rolam, criando rios de onda, que se oxigenam ainda mais”, define.

CONFLITOS INTENSOSDe acordo com a Comissão Pastoral da Terra (BBC, 2013), o conflito por água no Brasil bateu recorde desde 2013. A região Nordeste foi a mais con-flitante, com 37 casos registrados, sendo a Bahia, no ano passado, o estado que mais viveu disputas desse tipo (21 casos). Segundo Martin Mayer, da ONG 10senvolvimento, o oeste baiano é um dos locais com maior intensi-dade de conflitos. “As retiradas de águas da região são desproporcionais à capacidade e disponibilidade dos rios”. Ele exemplifica, revelando os conflitos de uso até entre agricultura e geração de energia. Segundo o ativista, há usinas elétricas na região que possuem cinco ou seis turbinas, mas só conseguem co-locar em funcionamento duas ou três porque as águas já estão comprometidas, mesmo a montante, por enormes projetos de irrigação. “Imaginem a situação do pequeno agricultor que está à jusante”, alerta, lembrando que os governos estaduais são os responsáveis pelo controle da perfuração de poços e pelo vo-lume retirado dos aquíferos, por meio da regularização dos usuários.“As pessoas devem entender que a água tem um valor econômico, ela é um dos insumos mais importantes de que dispomos. Precisamos tratar a água com muito respeito”, disse o presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, para quem implementar a cobrança é fundamental no processo de gestão. “Não existe gestão de recursos hídricos sem cobrança pelo uso da água. A cobrança, inclu-sive, é pedagógica e deve contribuir para o enfrentamento da crise, que não é somente de seca de água, mas também de gestão”, defende.O diretor de Águas do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), Bruno Jardim, destaca os esforços do governo baia-no para iniciar a cobrança pelos comitês estaduais, informando que os processos mais adiantados se referem às bacias dos rios Grande e Cor-rente, que estão na reta final da construção dos seus planos de recursos hídricos. “A cobrança é um importante instrumento de gestão”, concorda Jardim. “Mas é preciso que a função social e a função econômica sejam pensadas e levadas em consideração”.

Para algumas organizações ambientais, uma das

ameaças ao manacial são as retiradas irregulares de

água para manter atividades agrícolas

ESTUDOS TNC AVALIAM SITUAÇÃO HÍDRICA DO OESTE BAIANOA The Nature Conservancy (TNC), organização ambiental global que atua nos cinco principais biomas do Brasil e que desde 2008 desenvolve iniciativas de conservação de trechos do Cerrado baiano, está finalizando um estudo para avaliar as condições de segurança hídrica no oeste da Bahia. A revis-ta Chico obteve em primeira mão algumas das conclusões mais importantes dessa pesquisa, que foi coordenada pela especialista em recursos hídricos Eile-en Acosta. Em uma iniciativa apoiada pela Bunge, a especialista reuniu e anali-sou informações de uma série histórica de 30 anos, com dados pluviométricos e hidrológicos de afluentes do São Francisco na região de Barreiras (BA). Uma das tendências identificadas foi uma redução da vazão hidrológica, da ordem de 6% a 24%, sendo os rios Formoso e São Desidério (afluente do rio das Fêmeas) os que apresentaram maiores reduções. “A série histórica mostra que de fato tem havido redução do volume de água em todos os rios analisados”, diz Eileen, que possui mestrado em Geoprocessamento Espacial com Ênfase em Recursos Hídricos e mestrado em Engenharia de Recursos Hídricos pela Universidade Federal do Paraná. Na pesquisa, foram incluídos os rios Preto, de Janeiro, de Ondas, São Desidério, Guará, Correntina, Formoso e Itaquari.A pesquisadora lembra, porém, que fatores como desmatamento, tempera-tura, evapotranspiração, intensidade das chuvas e irrigação afetam a dispo-nibilidade dos recursos hídricos e, por isso, precisam ser analisados parale-lamente, a fim de reforçar essa percepção de que há menos água na região. Ela também avaliou dados de distribuição das chuvas ao longo do tempo e notou mudanças. “Em Luís Eduardo Magalhães, por exemplo, choveu mais de 1200 milímetros por ano, entre 1984 e 1998. Já entre 1999 e 2013, o índice variou de 1090 a 1142 milímetros anuais”, compara. De acordo com Eileen Acosta, embora não seja possível apontar as causas dessa diminuição sem realizar estudos científicos específicos, nota-se que, no mesmo período, houve expansão significativa da agricultura e das pasta-gens sobre áreas de recarga do aquífero. “É importante que o oeste da Bahia invista em práticas sustentáveis de uso dos recursos, especialmente na agri-cultura e na pecuária, porque só com planejamento territorial e consciência ambiental será possível manter a produtividade e a geração de renda na re-gião. Conservar os recursos hídricos pode fazer a diferença, em um futuro não tão distante, entre prosperidade ou decadência econômica”, finaliza. 

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O VENTO SECO VEM ENTRANHADO DE BAFOS

DE QUENTURA. O SOLO ÁRIDO DA REGIÃO MAIS POBRE DO PAÍS REVELA

O QUE JÁ É POSSÍVEL OBSERVAR A OLHO NU:

ESTA É A PIOR SECA EM 100 ANOS. A ONZE MESES DA ENTREGA DAS OBRAS DA

TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO, UMA PERGUNTA

IMPERA FRENTE À EXPECTATIVA DOS QUATRO

ESTADOS NORDESTINOS QUE RECEBERÃO AS ÁGUAS DESSE QUE É

CARINHOSAMENTE CHAMADO DE VELHO CHICO: HAVERÁ ÁGUA PARA SUPRIR

TODA A DEMANDA?

Haverá água para todos?

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Perspectivas técnicas questionam a eficá-cia do mais antigo projeto de infraestru-tura hídrica do País, fundamentando-se em pontos que alertam quanto à sobrevi-

vência do maior rio genuinamente brasileiro, hoje debilitado pela forte degradação ambiental que o assola há mais de 500 anos.Marcada por polêmicas, a obra chega a 77,8% de sua execução tendo o compromisso de sanar, a partir de 2016 – após quatro anos de atraso na entrega da obra e um orçamento que saltou de R$ 4,7 bilhões para R$ 8,2 bilhões –, uma seca crônica que castiga 12 milhões de brasileiros, distribuídos por estados como Rio Grande do Norte, Ceará, Pa-raíba e Pernambuco.Na perspectiva do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), o problema não é mais a sua conclusão, mas, sim, se haverá oferta hídri-ca suficiente no rio São Francisco para atender a todas as expectativas da população das bacias receptoras. “O São Francisco, hoje, é semelhante a um paciente na UTI”, lamenta o presidente da entidade, Anivaldo Miranda. A preocupação do ambientalista – levada inclusive à última reunião do Conselho Gestor do Projeto da Transposição, realizada no mês de setembro, no Ministério da Integração, em Brasília – se legitima no momento em que situações antes nunca ocor-ridas se tornam realidade na bacia, a exemplo da inédita seca na nascente principal do São Francis-co, do fechamento da única empresa que realizava o transporte hidroviário pelo leito do Velho Chico (devi-do ao alto grau de assoreamento no rio) ou mesmo da mancha de cianobactérias identificadas no leito do rio e que comprometeu, em decorrência da prá-tica das vazões reduzidas, a captação de água para o abastecimento da população alagoana da bacia. ”O rio sofre forte degradação, somada a questões maio-res, como o aquecimento global, que interfere na sua

sobrevivência”, destaca Miranda.São adversidades como essas que fazem o Comitê se preocupar ainda mais com a intensa disputa pe-las águas são-franciscanas, para atendimento não só da transposição, mas também de grandes obras complementares de segurança hídrica que vêm sen-do construídas nos estados das bacias receptoras e servirão de elo para recebimento e canalização das águas que escoarão pelos dois eixos previstos no projeto do governo federal, o norte e o leste.Segundo informações do Ministério da Integração Nacional (MI), responsável pela execução da trans-posição, todas essas obras terão como condicionan-tes os 26,4 m³/s da vazão mínima outorgada – termo técnico para o volume de água que será permitido pela Agência Nacional de Águas (ANA) ao projeto. “Há muitas perguntas que precisam ser respondi-das. Qual será o custo final da água e da operação dessas obras? Como será a gestão compartilhada desses canais? Como se fará uso dessas águas? E a cobrança sobre elas?... Enfim, são inúmeras ques-tões em aberto que nós, do Comitê, esperamos ver respondidas pela União. Só então poderemos avaliar qual será, de fato, o desempenho desse projeto”, co-menta Anivaldo Miranda.O CBHSF norteia seus questionamentos quanto ao sucesso da obra partindo do princípio de que ela prevê a segurança hídrica de 390 municípios do nordeste setentrional, espalhados por grandes centros urbanos da região (Fortaleza, Juazeiro do Norte, Crato, Mossoró, Campina Grande, Caruaru) e centenas de pequenas e médias cidades inseri-das no semiárido, além de áreas do interior.“É preciso pensar o impacto da transposição, pois há inúmeros projetos sendo planejados nas bacias receptoras, que vão depender das águas do São Francisco, somados a iniciativas estruturais em andamento na bacia do Velho Chico e à própria di-nâmica de usos múltiplos já existentes. Mas have-

TEXTO: RICARDO FOLLADOR

FOTO: DIVULGAÇÃO/MI

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GARANTIA DE ÁGUA GERA DÚVIDAS“A conclusão da transposição será a realização de um sonho secular”. Pelo menos esta é a frase de efeito do senador Garibaldi Alves Filho (PMDB--RN) ao ressaltar a importância da obra para o Rio Grande do Norte. Na ótica do parlamentar, mesmo com toda a escassez que vive a bacia do São Fran-cisco, o reservatório de Sobradinho garantirá água para atender às bacias receptoras. “Quando Sobradinho apresentar abundância de água, essa vazão pode ser substancialmente maior, possibilitando a transferência, para reser-vatórios locais, de volumes capazes de potencia-lizar o crescimento sustentável da economia da região”, diz, demonstrando desconhecer que a represa conta com apenas 1,52% do seu volume útil – que vem sendo reduzido a cada dia –, cor-rendo o risco de perder a capacidade de geração de energia, caso não chova nos próximos meses. “Se o projeto de transposição não for finalizado até dezembro, o Brasil poderá assistir a uma situação caótica no sertão nordestino”, reforça o político.O secretário de Recursos Hídricos e Energéticos de Pernambuco, José Almir Cirilo, admite ser utopia acreditar que a transposição por si só irá resolver o problema da água para os nordestinos. Ele revela que é preciso investir em outros dis-positivos para suprir o abastecimento de todos os habitantes. “É necessário aplicar recursos em cisternas, poços e dessalinizadores, uma vez que a população difusa, distante dos sistemas de ca-nais e adutoras, não tem como ser contemplada

pela transposição”, declara. Em outro momento, porém, Cirilo admite que “as águas da transpo-sição trarão garantia ao estado na ampliação da agricultura irrigada, assim como o abastecimen-to das cidades do sertão e agreste pernambuca-no”, assegura.O gestor da pasta no Ceará, Francisco Teixeira, re-lembra que 70% da oferta hídrica do Nordeste está alocada no rio São Francisco. “Consequentemente, do ponto de vista da igualdade, por conta de Ce-ará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte serem os estados nordestinos mais pobres em recursos hídricos, as águas do rio São Francisco são de fundamental importância para aumentar o abastecimento dos estados situados fora da bacia”, justifica.Teixeira explica ainda que a transposição será es-sencial para o desconcentramento econômico. “No nosso estado, por exemplo, mais de 60% do PIB gira em torno de Fortaleza. O projeto garantirá o desenvolvimento da economia do semiárido, crian-do novos polos econômicos”, revela.Já o secretário dos Recursos Hídricos da Paraíba, João Azevêdo Lins Filho, enxerga o projeto como o fio condutor de esperança para a segurança hídri-ca permanente desses quatro estados. Entretanto, ele reforça a cobrança de mais recursos para fina-lizar as obras complementares, hoje em ritmo lento. “A diminuição do repasse do governo fede-ral este ano foi de 60%. O que vai acontecer é que algumas cidades serão abastecidas de imediato e outras só quando as obras complementares terminarem, ou seja, sem previsão”, explica.

rá água para suprir toda essa demanda?”, indaga Miranda, em alusão ao abastecimento de infraes-truturas como a Adutora do Agreste, em Pernam-buco; os Ramais Apodi-Mossoró e Piranhas-Açu, no Rio Grande do Norte; o Cinturão das Águas, no Ceará; e o Canal Acauã-Araçagi, na Paraíba, além de todas as inúmeras demandas de grandes pro-jetos nos estados da bacia doadora. CONFLITO À VISTAGrande crítico do projeto de transposição, o pro-fessor de Hidrologia e Irrigação da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN), João Abner, observa que um conflito será gerado com o setor energético da bacia do São Francisco, decorrente desse embate em torno dos (cada vez mais escas-sos) recursos hídricos do Velho Chico.De acordo com o professor, as estruturas hídricas suplementares que estão sendo construídas não têm como base para funcionamento a vazão de 26,4 m³/s, mas, sim, a vazão máxima de 127 m³/s, indo no sentido contrário ao da atual situação de penúria hídrica que vive a bacia do São Francisco. “Até dezembro de 2016, data de entrega do projeto, não haverá água para atender a toda essa deman-da esperada. O que os estados dirão é que o único excedente de água no rio vem de correntes do setor elétrico, que detêm 80% para o consumo da geração de energia na bacia do São Francisco. Eles (estados) tentarão ampliar a outorga, alegando que há muito desperdício de água ao longo do São Francisco. En-tão, a pressão daqui pra frente será em cima desses 80%. Será que a geração de energia está disposta a ceder essa parcela? Creio que não”, opina, em refe-rência ao fato de o setor elétrico deixar de lucrar por conta da possível medida.A outorga das águas para a transposição prevê que somente quando o reservatório de Sobradi-nho (BA), que atua como uma espécie de pulmão do sistema, estiver com 94% de sua capacidade preenchida é que poderá ser utilizada a vazão má-xima de 127 m³/s dos canais.

OUTORGA PRECISA SER FISCALIZADAO secretário dos Recursos Hídricos, do Meio Am-biente e da Ciência e Tecnologia do Estado da Paraíba, João Azevêdo Lins Filho, discorda da opinião dos técnicos, justificando que os estados estão considerando apenas a vazão mínima do São Francisco, uma vez que a atual problemática da seca não garante acesso aos 127 m³/s. “De for-ma nenhuma estão sendo considerados os valores da vazão máxima. No nosso estado, por exemplo, o Canal Acauã-Araçagi leva em conta a vazão de ponta que vem do eixo leste, de 4,2m³/, podendo chegar a 10 m³/s. Só podemos contar com a vazão mínima, que é a garantida pela ANA, ou seja, a de 26,4m³/s”, defende. O professor João Abner alerta que será papel do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Fran-cisco fiscalizar a outorga concebida pela agên-cia reguladora federal à transposição. “Terá que exigir cumprimento desses 26,4 m³/, caso contrário, o destino do rio São Francisco estará selado”, finaliza.

TRANSPOSIÇÃOUm dos mais ambiciosos projetos do governo federal, a obra da transposição do rio São Francisco chega a 81% de sua execução marcada por polêmicas e tendo o compromisso de sanar, a partir de 2016, a seca crônica que vitima o Nordeste setentrional do País.

ORÇAMENTO INICIAL

390 Municípios

BENEFICIADOS

ORÇAMENTO FINAL

12 milhões de brasileiros

CERN

PEPB

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Como se já não bastasse a vazão reduzi-da do rio São Francisco, uma mancha misteriosa surgiu em abril deste ano, sem explicações, na região do cânion,

próximo ao município alagoano de Delmiro Gouveia, Alto Sertão do estado. O problema as-sustou a todos, inicialmente, por não se conhe-cer a causa e também devido à sua extensão: cerca de 28 quilômetros, conforme verificação aérea. Uma vez identificada a situação, o Comi-tê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) procurou cumprir a sua parte diante daquilo que indicava ser sinal de desequilíbrio ecológico ou, pior, contaminação.Imediatamente, o secretário executivo do Co-mitê, Maciel Oliveira, buscou reunir todos os órgãos envolvidos no problema e organizou três reuniões em Maceió, com a participação de secretarias e institutos de Meio Ambiente de Alagoas e Sergipe, companhias de abas-tecimento dos estados de Alagoas e Sergipe, Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Re-cursos Naturais Renováveis (Ibama), Ministé-rio Público (federal e estaduais), entre outros. Enquanto os envolvidos na questão tentavam descobrir as possíveis causas do desequilí-brio ambiental, a Diretoria Colegiada do Co-mitê (Direc) aprovou e emitiu nota pública, redigida pelo presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, cobrando providências dos órgãos

ambientais e da Agência Nacional de Águas (ANA), a fim de esclarecer o caso.No texto, encaminhado à imprensa e aos ór-gãos oficiais, o Colegiado afirma que “aguar-da a conclusão das investigações, mas, diante da magnitude do evento, solicita que todo o potencial técnico à disposição dos referidos órgãos seja direcionado para diagnosticar o problema com a brevidade e o rigor que o caso requer, identificando-se os responsá-veis, para que esses arquem com a repara-ção dos danos ambientais e socioeconômicos causados. Paralelamente a tais providências, o CBHSF conclama a união de esforços do po-der público, da iniciativa privada e da socie-dade civil, a fim de que as ações de limpeza e recuperação do corpo hídrico tenham início o mais breve possível”.O primeiro órgão a se mobilizar e emitir um parecer técnico foi o Instituto do Meio Am-biente (IMA) de Alagoas. Naquele momento, o estudo apontou para a presença de algas do tipo Ceratium. A constatação provocou uma vi-sita do presidente da ANA, Vicente Andreu, e do governador alagoano, Renan Filho (PMDB), ao local. A maior preocupação era com o abasteci-mento humano e os impactos na economia, visto que a região é explorada pelo setor turístico.Por mais de 30 dias, a atividade turística ficou suspensa na região, impedindo que os visitan-

A misteriosa mancha do rio

EM ABRIL DESTE ANO, UMA MANCHA MISTERIOSA

CAUSOU PREOCUPAÇÃO AOS MORADORES DO BAIXO

SÃO FRANCISCO, MAIS EXATAMENTE NA REGIÃO DO CÂNION, PRÓXIMO AO

MUNICÍPIO ALAGOANO DE DELMIRO GOUVEIA. A

SOLUÇÃO DO PROBLEMA, QUE IMEDIATAMENTE GANHOU A ATENÇÃO DA MÍDIA, TORNOU-SE

PRIORIDADE PARA O COMITÊ DO SÃO FRANCISCO, QUE ACOMPANHOU O CASO E COBROU PROVIDÊNCIAS IMEDIATAS DOS ÓRGÃOS

AMBIENTAIS E DA AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA).

IM

PA

CT

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TEXTO: DELANE BARROS

FOTO: IMA-AL/DIVULGAÇÃO

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tes conhecessem as belezas naturais do cânion do São Francisco, consi-derado o quarto maior do mundo. Vale lembrar que na alta estação mais de 300 pessoas visitam a região semanalmente, para passeios de cata-marã com duração aproximada de duas horas.

ORIGEM CONTROVERSAO motivo da mancha, de acordo com o Instituto do Meio Ambiente de Ala-goas (IMA), teria sido a liberação de sedimentos de um dos reservató-rios da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), o Belvede-re, feito com autorização do Ibama. Segundo informações da própria companhia, esses sedimentos contavam 30 anos de armazenamento. Diante da constatação, o IMA emitiu auto de infração contra a Chesf e aplicou multa de R$ 650 mil.O problema, porém, não parou. A mancha se expandiu e, de acordo com coletas feitas pelas empresas responsáveis pelo abastecimento de água de Alagoas (Casal) e Sergipe (Deso), o impacto agora era de uma mancha com 30 quilômetros de extensão e sete metros de profundidade. O re-sultado da análise apontou para mais um agravante: as algas haviam se modificado e agora a presença no ambiente era do filo Cyanobacteria, um grupo de bactérias que obtém energia por fotossíntese, conforme expli-cam publicações especializadas. A grande dificuldade dos especialistas e órgãos ambientais que dispensaram atenção ao problema está na grande extensão da área em que o caso foi identificado no São Francisco.Em 2011, também foi identificada a presença de Cyanobacteria na bacia do rio Doce, em Minas Gerais, um dos afluentes do São Francisco. Na oportunidade, foi apontado o descarte de poluentes industriais, urbanos e da agropecuária como a causa do problema. Através de seu grupo téc-nico especializado, a ANA elaborou um relatório recomendando medidas a serem adotadas pelos usuários e pelo poder público, especialmente no tratamento de esgotos.O engenheiro em recursos hídricos e também consultor Pedro Mo-linas lembra o caso de contaminação por Cyanobacteria no municí-pio de Caruaru (PE), para exemplificar em quais circunstâncias tem sido mais comum encontrar o micro-organismo. Durante o Carna-val de 1996, após passarem por procedimento de hemodiálise, 126 pacientes do Instituto de Doenças Renais (IDR) foram contamina-dos pelo organismo. Desses, 80 morreram. “Normalmente, é mais fácil encontrar esse micro-organismo em pequenos reservatórios”, disse ele. A investigação do Ministério da Saúde apontou que a água utilizada pelo Instituto não era potável. A água usada pela clínica para a hemodiálise era retirada da barragem do rio Tabocas, em Caruaru, transportada em carros-pipa e despejada quase que sem tratamento nos tanques da Instituição.Ainda de acordo com a literatura especializada, caso um ser humano consuma um copo de água contaminada pelo micro-organismo, terá apenas uma diarreia. Mas o contato em grande quantidade poderá ser fatal, como aconteceu com os pacientes renais pernambucanos. Por se tratar de um micro-organismo de difícil identificação, foi mais sim-ples encontrar a presença de Cyanobacteria nos cadáveres das víti-mas – especialmente no fígado – do que na própria água.De acordo com explicações de Molinas, é mais comum a infestação por Cyanobacteria aparecer em pequenos reservatórios, como aconteceu no município pernambucano, ainda hoje considerado o caso mais grave registrado no País. Devido à extensão e às variações de temperatura do reservatório Xingó, os micro-organismos se acomodaram, como observa Molinas. “Não significa dizer que foram embora, desaparece-ram. Continuam lá e podem voltar no futuro”, explica ele.Isso acontece porque a diferença nos graus de temperatura favo-rece a reprodução desordenada da Cyanobacteria, a ponto de atingir uma superpopulação e concorrer entre si. Assim, ela própria se esta-biliza. “É um processo complexo”, alerta Molinas. “A temperatura solar, a pouca penetração de calor nas águas, a profundidade do lago de Xingó, de aproximadamente 70 metros, tudo isso apresenta condições favorá-veis à Cyanobacteria”.O engenheiro dá um exemplo da capacidade de resistência desse tipo de micro-organismo. Segundo ele, as Cianobactérias vêm do período

pré-cambriano, há cerca de 4,5 bilhões de anos, quando especialistas arriscam afirmar que a Terra surgiu, sobrevivendo à extinção dos di-nossauros. “Elas podem ficar paradas durante muitos anos, esperan-do apenas a oportunidade para seu desenvolvimento”, esclarece ele. O maior risco do problema apresentado no São Francisco, de acordo com Molinas, é para os peixes. Apesar disso, as companhias responsáveis pelo abastecimento de Ala-goas e Sergipe, respectivamente Casal e Deso, ficaram assustadas. O gerente de Meio Ambiente da subsidiária sergipana, Cláudio Júlio Men-donça Machado Filho, explica que a captação da água é feita numa dis-tância de 37 quilômetros da região em que está a mancha, o que dá certa tranquilidade, desde que não haja deslocamento. Ele explica que tem sido feito o acompanhamento permanente e até com mais atenção. “Não temos visto floração, nem nas análises, nem visualmente. Elas estão hi-bernando, o que nos deixa em estado de alerta, porque a preocupação é com o período de maior aquecimento, que é a partir de agora”, declara.A Casal, que abastece nove municípios alagoanos com as águas do São Francisco, atendendo a aproximadamente 200 mil pessoas, também acompanha permanentemente a qualidade do líquido na região. Tão logo a mancha foi identificada, a empresa suspendeu a captação de água e o abastecimento à população passou a ser feito por carros-pipa. Enquanto não se encontrava outra solução, o presidente da Casal, Clécio Falcão, disse ter gasto cerca de R$ 900 mil.

SEDIMENTOS DE BARRAGENSAssessor técnico de gestão da vice-presidência da companhia alagoa-na, Jorge Brizeno reafirma que todo o processo começou com a libe-ração de sedimentos das barragens da Chesf. Ele recorda que apontou para essa causa desde o primeiro indicativo do problema. “Tudo com-prova que quando o reservatório de Xingó voltou ao normal, a mancha se estabilizou e se afastou completamente dos pontos de captação da Casal. Atualmente, a água bruta apresenta perfeitas condições”, de-fende Brizeno. Para ele, a temperatura ambiente não deverá interferir na sobrevivência do micro-organismo. “Aquela já é uma região sempre quente”, justifica. Apesar disso, a Casal investiu cerca de R$ 30 milhões para mudar seu ponto de captação. Já no próximo ano, a previsão é que a água passe a ser captada no Canal do Sertão, uma obra hídrica conduzida pelo go-verno de Alagoas e já em estágio avançado. De acordo com análise da companhia, a decisão dará maior tranquilidade quanto à qualidade do produto oferecido à população, além de proporcionar maior economia no tratamento da água, antes de ser distribuída à população.O gerente de Monitoramento e Fiscalização do Instituto do Meio Am-biente de Alagoas (IMA/AL), Ermi Ferrari Magalhães Neto, explica que o órgão emitiu os primeiros laudos entre abril e junho. No entanto, como se trata de um rio de jurisdição federal, apenas o Ibama pode se pronunciar a respeito. A representação alagoana do órgão apenas emite seus relató-rios para o laboratório central, que funciona em Brasília (DF).Explicação semelhante é a do Ministério Público de Alagoas (MPE). O promotor de justiça da área de Meio Ambiente do órgão, Alberto Fon-seca, esteve à frente da questão desde as primeiras reuniões promo-vidas pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Segun-do ele, a representação alagoana do Ministério Público Federal (MPF) avocou para si o direito de acompanhar o caso.Fonseca explica que todo o material recebido foi repassado ao MPF. “Nós, do Ministério Público Estadual, atuamos como força automotora natural, mas pelo fato de o rio ter jurisdição federal, todos os rela-tórios que recebemos foram encaminhados pra lá. O papel do MPE é orientar a população, caso ela sofra danos, como em indenizações, mas não temos nenhum material sob nossa posse. Aguardamos, se isso ocorrer, a manifestação de pessoas prejudicadas”, explicou ele.O problema, iniciado em abril deste ano, pelo menos por enquanto, foi superado. Se voltará a acontecer, não se sabe. Alguns apostam que sim, outros que não. O principal pronunciamento, do Ibama, não é de conheci-mento público. Os relatórios produzidos pelo órgão têm apenas o caráter de informação interna para os técnicos.

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Doce revoluçãono oestebaiano QUANDO OS ÍNDIOS TUPIS

QUE HABITAVAM O OESTE DA BAHIA BATIZARAM A CIDADE

DE IBOTIRAMA, CONTRIBUÍRAM PARA TRAÇAR UM DESTINO

PARA O LOCAL. IBOTIRAMA QUER DIZER “FLOR PROMISSORA”. E

É JUSTAMENTE DA FLORAÇÃO DE ESPÉCIES QUE HABITAM AS

MARGENS ALAGADAS DO VELHO CHICO QUE TEM BROTADO

ESPERANÇA PARA A COMUNIDADE. COM AJUDA DO CLIMA QUENTE E

DAS ABELHAS AFRICANIZADAS QUE POVOAM A REGIÃO, A PRODUÇÃO

DE MEL TEM OCUPADO IMPORTANTE ESPAÇO NA GERAÇÃO DE EMPREGO

E RENDA NESSE E EM MAIS 15 MUNICÍPIOS BAIANOS.

TEXTO: ANDRÉ SANTANA

FOTOS: ANDRÉ FRUTUOSO

PR

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ÃO

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Desde muito pequeno, enquanto aju-dava seu pai na lida com o gado, Jo-selito Sodré Queiroz se acostumou a ver a movimentação de apicultores,

circulando com abelhas e colmeias no distri-to de Olhos D’Água, em Ibotirama, oeste da Bahia. Um deles dizia ao jovem: “Larga esses animais e vem nos ajudar aqui. A abelha é que dá dinheiro, rapaz”. Joselito custou a acredi-tar. “Eu pensava: como um bicho tão peque-no, bem menor que um boi, pode dar mais dinheiro?”. A aproximação com a produção de mel acabou se tornando inevitável, por conta do crescente desenvolvimento dessa cultura na região. “Comecei com dez colmeias e logo comprovei que o retorno era muito rápido. Aí peguei gosto”, conta o apicultor, hoje com 19 anos, o mais jovem membro da Cooperativa Regional de Apicultores do Médio São Fran-cisco (Coopamesf). São 97 cooperados, de 16 municípios do oeste baiano, dedicados à pro-dução do mel e da cera, que levam a marca Velho Chico em homenagem ao rio que ofere-ce as condições necessárias para uma produ-ção farta e de qualidade.

A cooperativa ganhou o prêmio de “melhor mel da Bahia”, por ocasião do VI Congresso Baiano de Apicultura e Meliponicultura, rea-lizado em julho deste ano, em Ilhéus, no sul do estado. O congresso foi promovido pelo Go-verno do Estado da Bahia, pela Confederação Brasileira de Apicultura, Federação Baiana de Apicultura e Meliponicultura e Comissão Exe-cutiva Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac).Joselito Sodré fez curso técnico em Agrope-cuária e viu as dez colmeias adquiridas em um programa da Companhia de Desenvolvi-mento dos Vales do São Francisco e do Par-naíba (Codevasf) se transformaram em 33 unidades, gerando uma produção de 200 kg na última safra, algo em torno de R$1.200,00. Nada mal para um jovem apicultor que via os prejuízos com a criação de gado aumentarem ano após ano, por conta da seca. Aliás, comparativamente, as vantagens são muitas: enquanto uma cabeça de gado pre-cisa de aproximadamente 45 litros diários de água, basta meio litro de água por dia para abastecer uma colmeia com 60 mil abelhas. Além de exigir pouca água, a apicultura tam-

bém não carece de grandes áreas. As col-meias de Joselito, por exemplo, estão locali-zadas nas terras de familiares, como o avô, convencido pelo neto a colaborar no trabalho com as abelhas. “A apicultura precisa de pou-ca terra, que pode ser emprestada, pois não causa transtorno. Diferentemente do gado, não exige cerca e nem causa reclamação de vizinhos”, conta, lembrando-se dos tempos em que tinha que resolver problemas gerados pelos bois do pai, que adentravam terrenos de outros proprietários.

FLOR PROMISSORAO nome Ibotirama significa “flor promissora” e foi dado pelos índios tupi em referência ao futuro que vislumbravam nas flores do local. São elas que, geradas por plantas como ju-rema, aroeira, juazeiro e angico, brotam nas margens alagadas do Velho Chico e, associa-das ao clima quente (média acima de 30ºC), favorecem as atividades digestivas da “abelha africanizada”, espécie adequada à região por ser resistente aos períodos de estiagem. A produção é maior no período chuvoso, entre

A produção de mel criou novas oportunidades econômicas para

toda a região, envolvendo 16 municípios do oeste baiano

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Todo o trabalho de beneficiamento é

coordenado pelo presidente da cooperativa,

Balbino Souza, no centro da foto

Apicultores exibem com orgulho o trotéu

de “melhor mel da Bahia”, conferido pelos

especialistas durante o VI Congresso

Baiano de Apicultura e Meliponicultura,

realizado em julho de 2015

novembro e abril, apesar da falta de regulari-dade ultimamente. “A matéria-prima da abelha é a flor, também encontrada em árvores frutíferas comuns no São Francisco, como umbuzeiro, cajazeira e mangueira”, conforme explica o técnico em agropecuária Ronilson Nogueira de Oliveira, atual coordenador da Coopamesf. Ele destaca que a apicultura se associa a outras cultu-ras, quando os fazendeiros alugam suas ter-ras dominadas pela fruticultura na época da florada, permitindo a polinização, vantajosa para ambos, apicultores e fruticultores. “A florada diversificada garante que o mel Velho Chico tenha mais qualidade, mais nu-trientes e um sabor consistente”, defende Balbino Almeida de Souza, presidente da co-operativa. “Essa bacia é muito propícia. Além de água, em suas margens há matas antigas, o que possibilita um mel todo orgânico, sem utilização de defensivos químicos”, destaca. Souza faz questão de ressaltar o baixo im-pacto ambiental da produção de mel. “É uma atividade que garante renda para as famílias, mas de forma sustentável, pois produz sem prejudicar o meio ambiente”, afirma. Agricultor de milho, mandioca e feijão, Balbi-no Souza começou a trabalhar com o mel há 30 anos, quando percebeu a vocação do local para essa cultura. “Quando criamos a Asso-ciação Comunitária de Itapeba éramos menos

de 30 apicultores. A produção foi crescendo, atraindo mais gente, até que sentimos a ne-cessidade de criar uma cooperativa”, diz. Ele destaca que a partir daí foram chegando mais parcerias, captação de recursos e maior orga-nização da cadeia produtiva. Já o coordenador Ronilson Oliveira adquiriu a experiência de interagir diretamente com os apicultores quando atuou como agente comu-nitário de apicultura, entre 2013 e 2014, pres-tando assistência técnica a 350 trabalhadores rurais, muitos desses hoje pertencentes ao quadro da Coopamesf. “Mesmo com a estia-

gem, a produção de mel tem conseguido se sobressair, enfrentando as dificuldades”. De acordo com o coordenador, a cooperativa re-gistrou uma produção de 80 toneladas na úl-tima safra. Desse total, cerca de 42 toneladas são exportadas para países como Alemanha, França e Estados Unidos, através de parceria com a marca Melbras. No ano passado, a ex-portação representou uma venda de R$ 328 mil. Outra parte considerável da produção (cerca de 18 toneladas) é comercializada por meio de iniciativas do governo, como o Pro-grama Nacional da Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos. O res-tante vai para as prateleiras dos supermerca-dos de cidades da região. “Essa é a quantidade que passa pela coopera-tiva, mas sabemos que a região produz mais. Mesmo assim, é pouco, abaixo do que pode-mos produzir”, afirma Oliveira. A expectativa em torno do crescimento da produção foi ge-rada, segundo o coordenador, após inúmeras assistências técnicas e infraestrutura ofere-cidas por programas governamentais. Entre os obstáculos encontrados no caminho dos apicultores estão “a irregularidade das chuvas, que estão custando a cair com intensidade na região, e as dificuldades no manejo, que perma-necem mesmo após as capacitações”, lista.

METAS DE PRODUÇÃO Com características de dois importantes bio-mas brasileiros – a Caatinga e a Chapada –, Ibotirama se destaca no oeste baiano. O mu-nicípio possui cerca de 28 mil habitantes, sendo quase três mil deles dedicados à pes-ca. Outras atividades desenvolvidas na cidade são o comércio, a bovinocultura e a agricul-

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tura de subsistência, mas a apicultura tem tudo para se expandir, como atesta boa parte dos apicultores da região. Eles apontam que o exemplo a ser seguido está logo ao lado, na comunidade de Bandarra, que pertence ao município vizinho de Morpará, também na Bahia, cidade com pouco mais de oito mil ha-bitantes. A produção de mel cresceu tanto no povoado que ultrapassou a localidade de Ita-peba, primeiro grande centro de produção de Ibotirama, onde está localizado o Entreposto da Coopamesf. Para se ter uma ideia, somente os apicul-tores do povoado de Bandarra conseguiram produzir no ano passado algo em torno de 35 toneladas de mel, por meio da Associa-ção Flor de Cactos, que reúne 50 api-cultores, alguns deles pertencentes à Cooperativa do Médio São Francisco. O técnico agrícola Paulo Mariano explica que o diferencial de Bandarra tem sido a dedicação dos envolvidos. “A popula-ção de lá tem a apicultura como prio-ridade, não mais se dividindo em outras ativida-des. Há tam-bém a presença significativa de jo-vens na localidade”. Turma da geração de Joselito, que o jovem apicultor conhece bem. “Já visitei a cidade para ver de perto o trabalho que fazem por lá e apren-der mais. Além disso, tem os cursos ofereci-dos pela Coopamesf. Eu já fiz dois, inclu-sive um específico

Criação da Coopamesf – 2005

Cooperados - 97

Municípios produtores – 16*

Produção na última safra – 80 toneladas

Produção exportada – 42 toneladas

Produção vendida/iniciativas do governo -18 toneladas

Produção vendida /comércio local –10 toneladas

Produção estoque - 10 toneladas

Principais países compradores – 3 (Alemanha, Estados Unidos e França)

Valor médio da tonelada de mel: R$7.800,00

Rendimento anual da exportação - R$328.000,00

A comunidade de Bandarra, em Morpará, é a maior produtora de mel da região

Todo o beneficiamento do mel é feito no distrito de Itapeba, em Ibotirama

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sobre como lidar com a abelha-rainha”, conta. A criação da cooperativa, há dez anos, mudou a realidade dos apiculto-res. Paulo Mariano, por exemplo, que é técnico agrícola, atualmente cumpre o seu primeiro mandato como vereador de Ibotirama. Antes de atuar na política local, ele exerceu a atividade de apicultor e relata como era o processo quando não existia a cooperativa. “Não tínhamos Casa do Mel (Unidades de Beneficiamento do Mel) e nem toda essa rede de proteção, como os equipamentos e vestimentas adequadas. Para nos proteger das abelhas, trabalhávamos apenas à noite, evitan-do ser percebidos por elas, que podiam nos atacar”, recorda. Além de oferecer capacitações e intermediar a comercialização do que é produzido, a cooperativa faz o beneficiamento do produto, que inclui decantar (para a retirada de impurezas), embalar, rotular, ins-pecionar e comercializar o mel em bisnagas e sachês. O envasamento realizado no entreposto de Itapeba ainda é manual e tem capacidade para beneficiar um total de 12 mil kg por mês, em diferentes formatos de embalagens (1kg, 500g, 210g e sachês de 4g).Todo o processo de entreposto é conduzido por Balbino Souza, pre-sidente da cooperativa e que tem metas ambiciosas para a organi-zação de apicultores. “Queremos continuar investindo em equipa-mentos, aumentar o número de Unidades de Beneficiamento de Mel – nosso desejo é ter uma em cada um dos 16 municípios do territó-rio do Velho Chico – e agregar mais cooperados, trazendo mais gente para a atividade, principalmente os jovens”, pontua. Diante disso, a expectativa da cooperativa só poderia ser otimista. “Já se percebe o retorno de pessoas da cidade para o campo, por conta das possibilidades trazidas pelo mel, além de se estar absorvendo pesso-as de outras culturas, destaca o coordenador Ronilson Oliveira. Eles reforçam que a união dos cooperados possibilitou que enfrentassem períodos críticos, sem chuva, ainda que alguns tenham se sentido de-sestimulados, especialmente os jovens. “Os mais novos não esperam, né? Vão para outras cidades, procuram outras atividades. Mas quem ficou percebeu a evolução”, destaca o presidente da cooperativa.

ENTENDENDO O PROCESSOConsiderados insetos alquimistas, as abelhas alteram a química do açúcar retirado das flores. A fabricação do mel começa com a coleta do néctar nas flores. Ele é guardado em uma bolsa, no cor-po da abelha, e levado para a colmeia. Lá, glândulas localizadas na cabeça das abelhas secretam duas enzimas que reagem com o açúcar do néctar. Uma enzima, chamada invertase, transforma o néctar em glicose e frutose. A outra enzima, chamada glicose oxidase, confere acidez ao néctar, impedindo sua fermentação. Ao bater as asas, a abelha seca o excesso de água presente no néctar, finalizando a obtenção do mel, um produto que resiste naturalmente a mofos, fungos e outras bactérias, podendo durar muitos anos sem refrigeração. Todo esse processo é realizado para garantir a alimentação da própria colmeia. O objetivo prin-cipal da produção de mel é manter o suprimento alimentar das abelhas, que se alimentam do próprio mel que produzem. Além disso, elas se alimentam do pólen que geralmente vem preso no processo de captação do néctar. O pólen seria, então, uma importante variação no cardápio alimentar das abelhas.

COMERCIALIZAÇÃOMel é distribuído a partir do próprio entreposto de Itapeba para os mercados externo (a granel) e in-terno (bisnagas e sachês). Também é vendido em loja própria na sede do município.

PRODUÇÃOMel é produzido em 16 Municípios do Médio São Francisco pelos 97 integrantes da Coopamesf

CONFIRA AS TRÊS ESTAPAS QUE MARCAM O PROCESSO PRODUTIVO DA APICULTURA

DA COLMEIA AO CONSUMO

BENEFICIAMENTOCoopamesf faz o beneficiamento do produto no distrito de Itapeba, em Ibotirama. Processo inclui decantação (para a retirada de impurezas), emba-lagem e rotulagem.

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Vida às carrancas FOTOGRAFIAS DO FRANCÊS MARCEL GAUTHEROT DOCUMENTAM

E EXTRAEM TODA A BELEZA DAS CARRANCAS DO RIO SÃO

FRANCISCO, EVIDENCIANDO SUA IMPORTÂNCIA PARA A

CONSOLIDAÇÃO DA ARTE POPULAR BRASILEIRA.

AS FOTOS FORAM PRODUZIDAS NA DÉCADA

DE 1940 E GANHARAM O MUNDO.

RECENTEMENTE, FORAM

MOTIVO DE UMA EXPOSIÇÃO NA

PINACOTECA DE SÃO PAULO,

INTITULADA “A VIAGEM DAS

CARRANCAS”, E DA EDIÇÃO DE UM LIVRO

LANÇADO PELO INSTITUTO

MOREIRA SALLES.

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E ra o ano de 1946 quando o fotógrafo fran-cês Marcel Gautherot, nascido em Paris e radicado no Rio de Janeiro, percorreu o litoral e o interior da Bahia. Um dos des-

tinos foi o rio São Francisco. Com um olhar entre o antropológico e o jornalístico, fixou-se naquelas figuras usadas para proteger os barqueiros dos maus espíritos. Feias, grotescas, mas inquie-tantes e cheias de espírito popular, verdadeiros símbolos do Velho Chico e de sua cultura, as car-rancas viraram então uma marca importante do trabalho desse fotógrafo igualmente singular. As fotos de Gautherot foram publicadas nas re-vistas O Cruzeiro (1947), Sombra (1951) e Módulo (1955) e no livro Brésil (1950), chamando a aten-ção do público e dos pesquisadores. Na realidade, chamam a atenção até hoje: recentemente, parte da série fotográfica de Gautherot chegou à Pina-coteca do Estado de São Paulo/ Museu da Secre-taria da Cultura do Estado de São Paulo, em uma exposição inédita, intitulada “A Viagem das Car-rancas”, assinada pelo curador Lorenzo Mammì.

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Na mostra, além de 42 fotografias pertencentes ao Instituto Moreira Salles, são apresentadas ao público 41 carrancas de coleções públicas e particu-lares, além de pequenas esculturas, um modelo de barco e documentos diversos. Entre os destaques está a figura de proa da lendária “Minas Ge-rais”, a maior embarcação que já navegou o São Francisco, esculpida por Afrânio – primeiro escultor de carrancas conhecido ainda no fim do século XIX. Também integra a exposição a figura esculpida na barca Americana, por Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany (1882-1985), o escultor de car-rancas mais conhecido e respeitado do País. As fotos de Gautherot também ganharam o formato de livro, editado e re-centemente lançado pelo Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro, Edito-ra Martins Fontes e Instituto Moreira Salles. A publicação oferece registros de Pierre Verger (que acompanhou Gautherot em sua viagem pelo Velho Chico), Hans Gunter Flieg e do pesquisador Paulo Pardal, incluindo ainda ensaios de Lorenzo Mammì e Samuel Titan Jr. O valor do trabalho de Gautherot levou Carlos Drummond de Andrade a declará-lo “um dos mais notáveis documentadores da vida nacional”, en-quanto o paciente apuro técnico de suas imagens lhe valeu o título de “o mais artista” dos fotógrafos, dado por Lúcio Costa, um dos criadores de Brasília. Admirador declarado de Henri Cartier-Bresson, Gautherot desen-volveu um estilo próprio e marcante. Para ele, “uma pessoa que não enten-de de arquitetura não é capaz de fazer uma boa foto”.

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DIANTE DA INEFICIÊNCIA DE UM PROJETO NACIONAL DE REVITALIZAÇÃO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO,

RESPONSABILIDADE DO GOVERNO FEDERAL EM CONJUNTO COM OS

GOVERNOS DOS ESTADOS QUE INTEGRAM A BACIA, O CBHSF VEM DANDO A SUA CONTRIBUIÇÃO POR MEIO DE OBRAS

DE RECUPERAÇÃO HIDROAMBIENTAIS EM BACIAS DE RIOS AFLUENTES. AS

OBRAS TÊM IMPACTADO DIRETAMENTE NO COTIDIANO DE POPULAÇÕES QUE

DEPENDEM DO RIO, ALÉM DE GARANTIR UMA ESPERANÇA PARA O EQUILÍBRIO DE

TODO O ECOSSISTEMA.

Experiênciasexitosas

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C om foco no controle da erosão e proteção das nascentes, as principais ações incluem a construção de curvas de nível, pa-liçadas, terraços e barraginhas para a contenção de águas plu-viais; melhorias ecológicas nas estradas vicinais; recomposição

vegetal; cercamento de nascentes, além da mobilização das comunidades em torno de iniciativas de educação ambiental. Nesta matéria, entre as dezenas de projetos já concluídos, foram escolhidos um em cada região fisiográfica da bacia, revelando a satisfação de gestores, pesquisadores e moradores ribeirinhos, principais beneficiados pelas obras. As interven-ções possibilitam o retorno, para a própria bacia, dos recursos oriundos do pagamento pelo uso das águas do Velho Chico. São experiências bem-sucedidas, que demonstram a necessidade real dos investimentos em prol da revitalização do São Francisco.

TEXTO: ANDRÉ SANTANA, DELANE BARROS,

RICARDO FOLLADOR E WILTON MERCÊS

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APOIO DA POPULAÇÃO FOI FUNDAMENTALA adesão dos moradores ao projeto de recupera-ção hidroambiental do rio Salitre foi um dos fato-res determinantes para o sucesso da obra hídrica encabeçada pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. O benefício a 14 povoados ribeirinhos situados no entorno da cidade baiana de Morro do Chapéu, no Submédio São Francisco, tornou a experiência uma das mais exitosas na aplicação dos recursos provenientes da cobran-ça pelo uso da água. A região, conhecida por intensas disputas pela água e por um grande e crônico déficit hídrico, conta hoje com apenas um rio intermitente como elo para o Velho Chico: o Salitre. “Trata-se de um rio que há décadas é demandado por transposi-ções e programas de mineração e energia eóli-ca. Esse projeto do Comitê veio mudar a realida-de. Foi, de fato, uma obra a favor do rio”, revela Almacks Luiz Silva, membro titular do CBHSF e presidente do Comitê da Bacia do Rio Salitre.Almacks explica que foram os serviços am-bientais, concluídos em 2013, que favorece-ram o reaparecimento das duas principais nascentes do rio Salitre, garantindo o abas-tecimento, direto ou indireto, de cerca de 800 famílias. “Primeiramente, houve o cercamento de dois quilômetros de uma área de proteção ambiental. Com as chuvas, essas nascentes afloraram e garantiram água para a nossa produção agrícola”, disse um dos moradores do povoado de Brejões, uma das localidades beneficiadas com a intervenção, que também trouxe reflexos positivos para os povoados de Água Suja, Angico, Icó, Cercado Santo, Laran-jinha, Flores, Lagoa dos Remédios, Mulungu do Jubilino, Várzea Grande, Tamboril, Gaspar, Malva e Os Quatorze.

MOBILIZAÇÃO GERA FRUTOS Os frutos do projeto concluído na região do Sali-tre vêm sendo colhidos na medida em que ações passam a ser replicadas na comunidade ribeirinha do Velho Chico. “Cerquei uma pequena área do meu terreno, que era destinada à alimentação e à dessedentação do gado. Só que disseram que os animais pisoteavam a área e isso comprometia o solo e as matas ciliares. Ai eu retirei....Olha como já mudou a aparência?”, observa Dorgival Oliveira Ferraz, agricultor beneficiado.O projeto também favoreceu a educação ambiental, refletindo nos jovens da região. Na Escola Munici-

pal Santo Antônio, no entorno das obras, mudas frutíferas foram plantadas pelos alunos do ensino básico. “Queremos incentivar esses jovens quanto à importância da conservação ambiental”, diz Ta-mara Mirna Santana, diretora da instituição. Morador da localidade, Samuel dos Santos Silva, viu no projeto uma oportunidade de “ganhar em dobro”. Ele foi um dos contratados pela empresa executora da obra hidroambiental, a Localmaq Ltda., para a construção das 401 paliçadas de ro-cha previstas na segunda etapa do projeto de con-trole da erosão, visando a recuperação de áreas degradadas. “É difícil encontrar serviço por aqui. Quando surge, a gente tem que aproveitar”, com-pleta José Magalhães da Silva, o “Manga”, também contratado para a obra.Uma segunda etapa do projeto hidroambiental na região está em andamento pelo CBHSF, com o ob-jetivo de reforçar o cercamento de 25 quilômetros à margem do Salitre. Para Luiz Dourado, também membro do Comitê e morador de Morro do Cha-péu, dois aspectos ganham notoriedade frente ao objetivo central das obras. “Os projetos dão supor-te à agricultura familiar e contribuem para a des-sedentação dos animais. O propósito inicial não foi apenas esse. O intuito era evitar o assoreamento do rio. Mas outros ganhos acabam vindo, trazidos pelo projeto”, destaca.

Submédio

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Acima, o rio Salitre, cujas nascentes foram

recuperadas. Ao lado, Dorgival Ferraz, um dos

trabalhadores locais aproveitados na obra

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INCENTIVO À PRODUÇÃO DE ORGÂNICOS Estima-se que pelo menos 20 famílias residentes na comunidade de Bonfim, zona rural do município mineiro de Três Marias, no Alto São Francisco, serão direta-mente beneficiadas com as intervenções do projeto hidroambiental do Comitê do São Francisco na região. As obras, que abrangeram também localidades rurais da cidade vizinha, Felixlândia, foram finalizadas no início deste semestre na bacia do rio Ribeirão Extrema Grande, contribuinte do Velho Chico no Cerrado mineiro.  Na esperança de dias menos secos, produtores rurais de Bonfim acreditam que as ações do Comitê já mostram resultados plausíveis.“As barraginhas feitas já são uma ajuda e tanto. Estão colaborando para reduzir os sedimentos que desciam para o rio e para que o adubo orgânico não seja retirado da terra pela chuva, deixando a área mais fértil”, comemora o agricultor Roberto Augusto Pereira, que, com sua esposa, Ana Lucia, trabalha há quase dez anos na produção de hortaliças orgânicas, enfrentando as adversidades de uma região seca e castigada pelo sol. “As ações do Comitê, sem duvida, vão ajudar, a médio e longo prazos, a minimi-zar os impactos da estiagem e do desmatamento na região”, reconhece o prefeito de Três Marias, Vicente Resende. Em Três Marias, foram ainda beneficiadas as comunidades de Pindaíba, Vale e Capão de Barreiro, enquanto em Felixlândia o projeto teve repercussão nas localidades de Brejo e Pedra Preta, além de Gerais, que fica na divisa entre os dois municípios. As intervenções do CBHSF foram possíveis com o investimento de quase R$ 700 mil e consistiram em mais de 14 mil metros de obras de cercamento para prote-ger nascentes e matas ciliares, cerca de 17 mil metros de estradas rurais adequa-das e aproximadamente 160 bacias de captação de água da chuva (barraginhas) para contenção de sedimentos e da velocidade das águas da chuva, além de aju-dar na infiltração da água no solo. As obras foram executadas pela empresa Neo Geo Engenharia.Para Sílvia Freedman, integrante do CBHSF que acompanhou a execução do pro-jeto, o Comitê está cumprindo o seu papel na gestão dos recursos hídricos e os projetos hidroambientais representam parte desse esforço. “O que temos que lembrar é que as intervenções já realizadas precisam de preservação e monitora-

mento; gostaríamos de contar com o apoio do poder público municipal para isso”, adverte. Somente na região do Alto São Francisco, desde 2012 até hoje, o Comitê já reali-zou 12 projetos hidroambientais. O da comunidade de Bonfim foi uma demanda da Associação Comunitária do Bonfim e Adjacências (Asbom), presidida pela agri-cultora Ana Lúcia Pereira, que não vê a hora de retomar a produção de hortaliças e frutas. Este ano, por exemplo, não foi possível colher morangos, um dos produ-tos mais importantes para garantia de renda dos agricultores da região. No lugar do morango, com muito esforço, o casal Roberto e Ana Lucia planta raízes como araruta, matéria-prima para a produção de biscoitos, bolos e sopas.A Asbom, criada em 2007, incentiva a plantação de raízes, hortaliças, frutas (como mangaba e acerola) e outros produtos orgânicos, com rico valor nutricional, di-fundindo técnicas para fertilização e manejo do solo numa área de cerca de dois hectares. Os produtos cultivados são comercializados na região e em áreas ur-banas próximas. É um nicho encontrado pelos agricultores locais para melho-ria da renda. O que se espera é que as obras realizadas pelo CBHSF contribuam decisivamente para fazer dessa opção uma fonte de renda permanente para os agricultores locais.

Acima, Roberto Augusto e Ana Lúcia:

producão de hortaliças orgânicas. Ao lado,

barraginhas e cercamento de nascentes

realizados em Felixlândia

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VENCENDO O DESAFIO DA PRESERVAÇÃOÉ pelas palavras do agricultor Dionísio Procópio dos Santos, morador do povoado Riachão, no municí-pio de Junqueiro (AL), que se pode reconhecer o êxito do trabalho de recuperação hidroam-biental realizado pelo CBHSF no entorno da barragem que abastece a população do muni-cípio. Ele se revela satisfeito com o resultado final, com a plantação de espécies nativas e a preservação ambiental da região.O manancial abastece uma população estimada em 200 mil pessoas, distribuídas entre Junqueiro e a cidade vizinha, São Sebastião. “Estou muito sa-tisfeito porque, com o cercamento e o plantio em minha propriedade, teremos água de melhor qualidade”, avalia Dionísio dos Santos. O bene-fício não se restringe ao agricultor, mas a toda a população do povoado. “A preocupação desse trabalho não foi apenas preservar a barragem, mas também orientar os moradores sobre a criação do gado e como usar a técnica adequa-da no cultivo das diversas árvores frutíferas”, acrescenta.O benefício da recuperação da barragem ganha uma dimensão ainda maior porque os morado-res recordam da imensa dificuldade da compa-nhia de abastecimento de água do estado, a Ca-sal, para assistir a comunidade, como relata o secretário de Agricultura de Junqueiro, João Bosco. “A Casal montou uma estrutura para fornecer água ao município há mais de dez anos. Só que o sistema ficou sobrecarregado porque foi dividido para atender os moradores de São Sebastião e não suportou”, explica. Foi a concessionária que apresentou a proposta para promover a recuperação.Diante da dificuldade, a Casal passou a utilizar os recursos da barragem Riachão. Mas era preciso ven-cer o desafio da preservação. A água jorrava forte, mas, por desinformação, os moradores a poluíam. Era comum, nos fins de semana, a realização de festas no local, com churrascos e banhos. Sem falar nos pe-quenos animais, que também matavam a sede ali. A qualidade da água ficou muito ruim.

MORADORES GANHAM CONSCIÊNCIAA recuperação da barragem resultou na conscien-tização dos moradores. Quem afirma é o presidente da Associação Comunitária dos Moradores do Povo-ado Riachão, João José da Silva. “É uma iniciativa de imensa importância para a preservação de recursos hídricos. Todo mundo tem conhecimento da crise hí-drica e as intervenções feitas nos protegem”, destaca.Homem simples, nascido na região, João José da Silva ressalta a conscientização das pessoas. Segun-

do ele, muitos moradores não sabiam o que significava desmatar e nem as consequências desse ato. Depois das diversas reuniões promovidas pela empresa GOS Florestal, responsável por todo o trabalho, o comporta-mento das pessoas mudou profundamente. “Posso ga-rantir, hoje, que todos os moradores pensam diferente”, resume ele, enquanto defende o permanente reflores-tamento nas nascentes.O município de Junqueiro tem uma área de 254 quilô-metros quadrados e uma população de pouco mais de 25 mil habitantes, de acordo com dados do IBGE. O cli-ma temperado provoca uma temperatura elevada, de até 35 graus, condição suficiente para manter a econo-mia, baseada no cultivo da cana-de-açúcar.A comunidade do Riachão tem característica eminente-mente rural e é composta por pequenos produtores, a maioria com cerca de um hectare de terra para o cultivo de pimenta, frutas, hortaliças, mandioca, dentre outras culturas de subsistência. O excedente é comercializado na região. A produção agrícola, via de regra, recebe o es-tímulo da Associação dos Produtores Rurais, que busca

o fortalecimento da produção de farinha de mandioca e seus derivados.Os moradores da região garantem que o volume de água no riacho Riachão apresenta drástica diminuição nos últimos anos em virtude, principalmente, do des-matamento das matas ciliares nas nascentes e áreas de contribuição para o plantio da cana-de-açúcar.No projeto de recuperação hidroambiental, que durou 20 meses, foram investidos cerca de R$ 413 mil. Entre as ações, houve o plantio de 6.800 mudas, o cercamen-to de mais de 4 mil metros de área e o reflorestamento de 3,4 hectares. A empresa executora promoveu ainda o coroamento de mudas, que consiste na limpeza de área de 80 centímetros no entorno de cada muda nova; o plantio a cada 40 centímetros de distância, no âmbito da nascente do riacho; e o controle de formigas roçadei-ras. Nas palavras do agricultor Antônio Pereira dos San-tos, 42 anos, a conclusão da obra significa o início de um novo tempo para quem vive do plantio na região. “Signi-fica muita coisa boa. Com essa água, consigo plantar de tudo que essa terra pode nos oferecer”, resume.

Baixo

Acima, plantação de espécies nativas em

Junqueiro (AL). Ao lado, o morador João José da

SIlva: “Projeto levou a uma maior conscientização

das pessoas sobre a crise hídrica”

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MédioPROBLEMAS TAMBÉM DURANTE A CHUVANão é só nos períodos de estiagem que a vida dos ribeirinhos, especialmente dos que vivem de produ-ção agrícola, passa por tormento. Quando a chuva cai forte nas áreas já degradadas, provoca uma série de erosões, arrastando sedimentos, criando as chama-das moçorocas e colocando em risco plantações e criações de animais. Além disso, o desequilíbrio am-biental e as nascentes comprometidas ajudavam a ti-rar o sossego das cerca de 50 famílias que habitam a comunidade de Brejão, na zona rural de Santa Maria da Vitória, município do oeste da Bahia.Tudo começou a mudar com o projeto de recupera-ção hidroambiental financiado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. As obras, orçadas em mais de R$510 mil (recursos oriundos da cobran-ça pelo uso das águas da bacia), foram realizadas pela empresa Localmaq, de Minas Gerais, e con-templaram a construção de 51 bacias de captação de água pluviais (barraginhas), 97 lombadas, 30 pa-liçadas de madeira e 92 metros de muro de conten-ção. A nascente do riacho Brejão, antes desprotegida, foi completamente cercada e processos erosivos de grandes proporções, que ameaçavam a permanên-cia das famílias na comunidade, foram contidos com obras geotécnicas. As intervenções trouxeram esperança, por exemplo, para o agricultor João Luís Pereira, 63 anos. Em épo-cas de chuva, a área em frente a sua casa sofria um processo de erosão que chegava a impedir o acesso das pessoas. “A situação estava feia. Quando chovia, ninguém passava. Se não acontecesse nenhuma melhora, eu e minha família teríamos que nos mudar daqui”, lembra o agricultor.Outra família satisfeita com as obras de recuperação hidroambiental é a do casal Hilda Ferreira Barbosa e João José Barbosa. “A chuva vinha e arrastava tudo pela frente, ia quebrando cerca e prejudicando as plantações. Com fé em Deus, não vamos sofrer na próxima chuva, graças a essa obra”, espera Dona Hilda. A agricultora comemora ainda a forma como aconteceu o processo de intervenção na comunidade.“Foram realizadas várias reuniões com os moradores, para explicar o que ia acontecer e ouvir as nossas quei-xas. Eu fui a todas as reuniões e falei o que eu achava que devia ser mais urgente”. Além das reuniões de mobilização, um dos méritos do trabalho foi a contratação de moradores como mão de obra. Assim ocorreu, por exemplo, com Edson Ferreira, de 52 anos. “Além de mim e do meu sobrinho, Nelson, mais 15 moradores trabalharam no serviço das cercas, da construção das contenções, das barraginhas. Isso foi muito bom, pois ainda gerou uma renda para nós”, comemora. A população local também destaca o bom

relacionamento com as equipes técnicas e os operários de fora, que viveram por volta de oito meses na localida-de, período de realização do projeto, incluindo a mobili-zação e as obras propriamente ditas.Brejão fica a uns 10 quilômetros da sede do município. Possui 400 moradores, que vivem do plantio de milho, feijão, abóbora, melancia e cana-de-açúcar, entre outros produtos. A partir da cana, produzem, na própria comu-nidade, rapadura e cachaça, únicos produtos a ganhar o mercado externo. O restante da produção é basicamen-te para a subsistência. Essa atividade agrícola na região de clima quente e seco (temperatura média de 24ºC), em pleno Cerrado, somente é possível graças ao riacho Brejão, cujo curso d’água perene percorre 33 quilôme-tros até desaguar na margem esquerda do rio Corrente, importante afluente do São Francisco.

REIVINDICAÇÃO ANTIGAO presidente da Associação de Trabalhadores Rurais da Comunidade de Brejão, Valdivino Gomes dos San-tos, 26 anos, calcula que o número de beneficiados com as obras deve ultrapassar 250 famílias. “Com o cercamento das nascentes, as intervenções reali-zados vão impactar toda a extensão do Brejão, que percorre as comunidades de Brejo do Espírito Santo, Água Quente e Brejão”, esclarece. Como explica Santos, as obras eram uma reivindi-cação antiga da Associação de Moradores, somen-te atendida pelo Comitê de Bacia. “A satisfação dos

moradores foi tanta que já estamos solicitando uma segunda etapa para contemplar outras áreas da co-munidade, ampliando os benefícios”. A mobilização dos moradores em torno da Associação já conseguiu garantir para a comunidade água e energia elétrica: “Aos poucos, estamos vendo a situação melhorar para nossa comunidade, possibilitando melhor qua-lidade de vida e de trabalho para as famílias”, afirma. “Agora, cabe a nós, moradores, preservar o que foi feito, cuidando do meio ambiente, evitando jogar lixo na rua, para que não se perca o que foi feito”, alerta Valdirene Lima dos Anjos, de 27 anos, que via suas cercas serem derrubadas, com prejuízo da plantação e dos poucos animais que cria. “A chuva pode che-gar que agora está tudo organizado... os caminhos para ela percorrer, as contenções no lugar certo e as barraginhas para armazenar a água”, diz Valdirene, referindo-se ao período chuvoso que começa em no-vembro e segue até o mês de abril, quando os agri-cultores de Brejão podem colher seus alimentos e a matéria-prima da cachaça local, que já faz sucesso nos mercados de Santa Maria da Vitória.“O mais importante é que essa intervenção em Brejão pode marcar um novo pacto entre a comunidade, os ór-gãos ambientais e o Comitê da Bacia do São Francisco, para preservar as obras e garantir a revitalização de um riacho tão importante para a região”, destaca Cláudio Pereira, coordenador da Câmara Consultiva Regional do Médio São Francisco, instância do CBHSF.

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Acima, agricultor João Luiz Pereira destaca

a melhoria no acesso à sua propria casa em

Brejão (BA). O objetivo do projeto foi frear o

desequlíbrio ambiental e revitalizar as nascentes

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O PESCADOR DE VERSOS

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TEXTO: DELANE BARROS

FOTOS: TIAGO SAMPAIO

ANTÔNIO GOMES DOS SANTOS

Prestes a completar 84 anos de idade (“e 61 de casado”, como faz questão de ressaltar), Antônio Gomes dos Santos, o Toinho Pescador, relata

com o olhar e por meio das poesias que regis-tra no papel a tristeza pela realidade atual do rio São Francisco. A comparação com o tempo de sua juventude, quando o rio era bom para pesca e tudo mais, é automática. Nascido em Penedo (AL), em 1931, ele nunca deixou a cida-de e sempre procurou se envolver nas causas em defesa do Velho Chico. Órfão de pai aos 12 anos, Seu Toinho precisou assumir o comando da família e isso fez com que só estudasse até o 4º ano primário. Ele re-lata que num dos momentos de apreensão da mãe, que antevia dificuldades de não ter o que comer, foi taxativo e garantiu que com o São Francisco na porta, ninguém morreria por fal-ta de alimento. “Hoje, não seria mais assim”, lamenta, ao lado da eterna companheira, Luzi-nete Santos, com quem teve sete filhos e ado-tou outros dois.Seu Toinho foi o primeiro pescador do Nor-deste a compor o Conselho de Representan-tes da Confederação Nacional da categoria. É um líder nato, reconhecido nacionalmente pelo seu trabalho em defesa do São Francisco. Por duas oportunidades, foi presidente da Co-lônia de Pescadores de Penedo. Nesse perío-do, concorreu e venceu um concurso nacional de poesia. Usou todo o dinheiro da premiação para adquirir uma linha telefônica para a Ins-tituição.À frente da representação dos pescadores pe-nedenses, Toinho Pescador aproveitava cada reunião com autoridades e viagens diversas para fazer contatos e conseguir seu grande sonho na oportunidade: dotar a Colônia de um barco de alumínio. Conseguiu dois. Percorreu toda a extensão do rio, desde sua nascente, em Minas Gerais, até a foz, em Piaçabuçu. Mais tarde, usou o cargo de presidente da Federa-ção dos Pescadores de Alagoas para defender o rio, inclusive em eventos internacionais.

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Depois de ter vivido tanto tempo junto ao São Francisco, qual o seu sentimento quan-do olha para o rio nos dias de hoje?É doloroso. Estou fazendo um tratamento de saú-de em Maceió e quando chego em Penedo e vejo a situação do rio, eu sempre me revolto. Não com Deus, pois ele nos deu e continua nos ofertando a sabedoria. Minha revolta é com os homens, com a natureza humana, especialmente a dos pode-rosos. Esses, que deveriam oferecer melhores condições, apenas exercem a dominação sobre os pequenos, os fracos.

Quando começou sua atuação em defesa do São Francisco, qual era seu pensamento? O que esperava que pudesse acontecer?Quando eu comecei a luta, representando a mi-nha categoria, os pescadores, eu esperava que, unidos, a gente pudesse mudar a história, ga-rantindo a preservação do rio. Não é o que nós vemos nos dias de hoje. Mas, apesar de tudo, ainda tenho essa esperança. Enquanto eu não morrer, não perderei a fé de mostrar todos os prejuízos e tentar mudar essa realidade. Eu me lembro de um padre de Penedo, há muitos anos, que já profetizava que o rio iria virar mar. E o que é que vemos hoje?

Como o senhor vê os projetos elaborados para o rio?Os projetos que vemos, muitas vezes, têm boas intenções, não vamos negar, mas a realidade é que são feitos em cima do lucro. Não pensam nos prejuízos que podem causar e que, na ver-dade, provocam. É o que a gente vê com a pró-pria Transposição e o projeto das hidrelétricas. Os projetos poderiam ser feitos, mas sem inter-romper o descimento das águas barrentas do rio. Aquelas águas barrentas não são poluição. São águas ricas, apropriadas para a reprodução das espécies nativas. Antigamente, essa era a condição para que os peixes lançassem seus ovos e não fossem comidos pelos predadores. É preciso respeitar a natureza.

Inclusive, o senhor escreveu uma poesia sobre isso...Está no livro, com o título Velho Chico. Diz as-sim: Nosso velho São Francisco é um rio varonil/ Quando tinha a água barrenta era o rio do suru-bim/ Hoje está ficando sem nada, ai que saudade sem fim/ Até mesmo os canoeiros estão achando ruim/ Porque acabou a safra do arroz que tinha aqui/ É preciso viver unidos, para desse abismo sair/ Na cidade de Igreja Nova é a maior reclama-ção/ De 75% da sua população que vivia da água

e da terra/ E não tem mais terra, não/ Porque a Dona Codevasf /que chegou como um leão quando esturrou na serra/ Correm todos para o sertão/ É preciso viver unidos, senão entram na escravidão.Confiamos em Jesus Cristo por-que é nosso irmão/ Desceu do céu à terra para nos dar esta lição/ Onde o povo está unido/ Não existe escravidão.

Fazer poesia é uma forma de protesto, de luta por dias melhores para o rio?É verdade. Eu fui convidado pelo bispo Dom Luiz Cappio pra passar um ano em uma expedição, saindo da Serra da Canastra e indo até a foz. Aí eu fui pra Montes Claros, de onde partiu a expedição, e fiquei com muita vontade de participar, mas não tinha como, porque eu tinha nove filhos e não po-dia passar um ano fora de casa. Falei com ele pra colocar outra pessoa na minha vaga... Mas fiquei trabalhando. Eles foram pra fazer um diagnóstico e passaram um ano todinho. Quando chegaram a Penedo, eu já tinha me preparado pra uma cami-nhada, que teve a participação de umas três mil pessoas. Fomos até a beira do rio, perto da Igreja de Nossa Senhora das Correntes, onde aconteceu uma missa. Então, quando acabou, eu pedi a pa-lavra e disse que queria recitar uma poesia, que foi essa, a segunda poesia de minha autoria a ser premiada. O prêmio foi um rádio. Naquela época, o rádio era um bem muito importante, de grande valor... toda casa tinha um.

AQUI, NÓS TEMOS UM PROBLEMA EM NOSSAS VISTAS E NINGUÉM SE PREOCUPA. A NATUREZA MUDA. O HOMEM QUER SER MAIS QUE DEUS.

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Tem o caso também de um prêmio que che-gou da Alemanha...Foi com a poesia São Francisco, Nosso Pai, que eu também recitei naquela praça de Penedo. Aí, poucos dias depois, quando eu cheguei da pescaria, minha esposa me chamou e disse que tinha chegado um convite. A gente não ti-nha telefone ainda. O rapaz que trouxe foi um sociólogo de Minas Gerais, o Adriano. Ele disse: “Seu Toinho, nós ganhamos o prêmio, mas a gente tem que ir buscar esse prêmio. Eu per-guntei, onde? Ele disse que era na Alemanha. Eu aí me espantei, né? Eu perguntei: E como é que eu vou? Ele disse pra eu não me incomodar, porque ia dar um jeito, porque eu só precisava ficar fora um mês. Eu disse a ele que precisa-va conversar com dona Luzinete. Ela disse: Vá. Aí eu fiquei animado. Disse pra mim assim: Eu vou. Quero conhecer a Alemanha. Aí eu fui. Co-nheci a Alemanha e a Áustria. Vi o rio Danúbio, na Alemanha, e o rio Mur, na Áustria.

Como foi a experiência na Europa?Quando eu cheguei no rio Danúbio, tomei um susto. Um rio maior que o São Francisco mais de 100 quilômetros, totalmente podre, a ponto de ninguém poder colocar o pé na água. Não encontrei um só pescador. Tinha criador, mas pescador, nenhum. Conversei com várias pesso-as e todos diziam que queriam conhecer o traba-lho da gente aqui. Uma das pessoas de lá disse que eles queriam se espelhar na luta da gente aqui pra recuperar o rio Danúbio. E depois dis-so tudo, o nosso rio foi caindo, caindo, caindo até chegar ao ponto que vemos hoje.

Qual o futuro do Velho Chico?Um futuro difícil, por causa do desrespeito à natu-reza. O povo precisa compreender que é possível viver, desde que se respeite a natureza. Aqui, nós temos um problema em nossas vistas e ninguém se preocupa. A natureza muda. O homem quer ser mais que Deus. Certa vez, em uma viagem, eu conversava com uma japonesa. Ela me dizia que jamais iria voltar ao Japão. Eu perguntei por que e ela me disse que era por causa da usina nuclear. Veja. Lá, ela já conhece e sabe que não presta, o perigo que é a energia nuclear. E o que o governo quer implantar aqui? Mesmo com todos os riscos, a gente sabe que é exatamente essa forma de fornecer energia que o governo brasi-leiro quer implantar aqui, e quer usar as águas do São Francisco para isso. Isso é uma agressão sem tamanho.

O senhor acredita que a revitalização seja possível?Se a gente tiver a oportunidade de conversar com a presidente Dilma, eu tenho certeza que ela vai se sensibilizar com a situação do rio. Tem esses problemas todos de hoje, mas a gente tem que

reconhecer quantas casas foram feitas para os pobres, pelo presidente Lula e pela presidente Dilma. Por isso, eu acredito na sensibilidade da Dilma pra revitalizar o nosso São Francisco. A gente deve se lembrar dos projetos de antiga-mente, que tiraram as pessoas das casas em be-nefício do agronegócio. O povo precisa acordar e ver que nem tudo é como pintam. Tem projetos que acabam os mangues com a promessa de em-prego, mas não enxergam que o nosso povo pre-cisa, antes, ser preparado pra enfrentar isso tudo.

Diante do sofrimento intenso do São Francisco, o que é necessário fazer para mantê-lo vivo?As lagoas marginais. Elas são o berçário natural dos peixes, que estão sendo extintos no rio. Tenho uma tristeza muito grande porque a gente tem voz, a gente lança as propostas, mas os burocratas só colocam o que interessa. O Ibama destrói os co-vos (artifício para capturar peixes e camarões) dos pescadores, mas não interferiu para preservar as matas, que acabaram totalmente, e o resultado é a fabricação de covos com plástico, que polui. Antes, isso não acontecia.

Como essas lagoas marginais desapareceram?No momento em que tiraram as matas, a chu-va, quando bate, vem com toda força, e quando bate no solo carrega areia para o rio e aí vem a assoreamento. Quando tinha mata, a chuva batia na árvore, em outra árvore e só carregava folha, grilo e minhoca para o rio, e servia de ali-mento. E aí parou. Acabou a pesca, acabaram as embarcações.

O senhor é muito crítico do agronegócio. Qual sua maior queixa?Estive em Irecê, na Bahia, e lá cortaram a Caatin-ga, devastaram tudo, para favorecer o agronegó-cio, plantando feijão. Isso não podia acontecer. A Caatinga, do jeito como existia, favorecia a sobre-vivência do rio. A Caatinga é um bioma riquíssimo e hoje está totalmente devastada.

Como o senhor compara o São Francisco de hoje com o de ontem?É como eu digo na poesia: Há 25 anos, os pás-saros passavam na vista da gente... era bonito a gente ver, logo no começo do dia, aquela revo-ada, cantando, alegrando o dia... Não tem nem como descrever. É como eu tô dizendo: bonito de se ver. E hoje, não existem mais. Isso é de cortar o coração. E digo, de novo, o que está na poesia: Quem zela pelo Velho Chico, tem Jesus no coração. O amor pelo rio não é da boca pra fora. Não é apenas uma palavra que sai pela boca. É mais do que isso. Tem que sair com sentimento, do coração. É preciso lutar com bravura para garantir a existência do rio. Onde o povo está unido, não existe escravidão.

O AMOR PELO RIO NÃO É DA BOCA PRA FORA. NÃO É APENAS UMA PALAVRA QUE SAI PELA BOCA. É MAIS DO QUE ISSO. TEM QUE SAIR COM SENTIMENTO, DO CORAÇÃO.

SÃO FRANCISCO, NOSSO PAI

Há 25 anos atrás, este rio era assimPassarinhos cantavam alegresNão tinha veneno aquiTambém não existiam barragensEra bom viver assimO rio era festejado com bando de paturis.

Tem um ditado antigoDo poeta pescador:Quando canafístula floresceÉ sinal que o rio repontou.Por isso nascia alegriaPara todos os morador.

Em começo de outubroO rio começa a altearCom suas águas barrentasQue é o adubo naturalProduzindo camarões e peixesPara os pescadores pescar.

Enchendo as grandes várzeasEra lindo se apreciarCupins, formigas, grilos, ratosNas águas começam a boiarTornando-se alimentoPara os peixes engordar.

Neste grande equilíbrioQuem ganhava era a populaçãTanto dos peixes e das avesComo de nós cidadãosPorque não precisava adubosPara fazer a plantação. Covo para pegar peixeTambém para pegar camarãoOutros já faziam redeCom grande satisfaçãoPorque eles tinham certezaDe irem buscar o pão.

Hoje a coisa mudouDo melhor para o ruimQuem são os culpados distoJá deu para refletirQuando por causa do medoDeixamos acontecer assim.

Fecharam quase todas as várzeasBarragens foi por demaisAcabou-se a produção dos peixesJá se foram os animaisAgrotóxicos matam os passarinhosSaúde não existe mais.O rio que era forteHoje está para morrerClamando pelo nosso amorPedindo para viverDepois desta romariaO que nós vamos fazer?Lutar para pôr em prática Esta grande peregrinaçãoDestes valorosos amigosQue nos deram esta lição:Quem zela do “Velho Chico”Tem Jesus no coração.

*A poesia dedicada ao São Francisco é uma das mais conhe-

cidas de Seu Toinho e já foi até premiada.

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LINCOLN MUNIZ ALVES, RITA MÁRCIA DA SILVA PINTO VIEIRA, JOSÉ A. MARENGO*

Eventos de secas e enchentes são fenô-menos que já fazem parte da história da Região Nordeste do Brasil (NEB). Relatos de secas na região podem ser

encontrados desde o século XVII, quando os portugueses chegaram à região (Magalhães et al. 1988). O clima do Nordeste do Brasil, principalmente no semiárido, é caracterizado pela grande va-riabilidade (espacial e temporal) da precipita-ção, bem como de fenômenos físicos locais e remotos que o influenciam. Entre os principais fatores que determinam a distribuição dos ele-mentos climáticos no NEB e sua variação sazo-nal estão sua posição geográfica, seu relevo, a natureza da sua superfície e os sistemas mete-orológicos atuantes na região. Uma alta porcen-tagem da precipitação anual ocorre em apenas três meses do ano: 60% de novembro a janeiro, para o alto e médio São Francisco; mais de 60% de fevereiro a abril, na área que inclui Maranhão, Piauí, Ceará e toda a região semiárida a oeste do Planalto da Borborema até o extremo norte da Bahia; e 50% de maio a julho, na costa leste do NEB. Estudos desenvolvidos pelo NAE (2005), Kayano& Andreoli (2009) e Marengo (2009) discu-tem a vulnerabilidade do semiárido aos extremos de variação do clima e suas mudanças.As características climáticas naturais, soman-do-se as mudanças no uso da terra ao aque-cimento global e aos baixos indicadores socio-econômicos, tornam o NEB uma das regiões brasileiras mais vulneráveis a mudanças do clima. Por essas e outras razões, entender as causas e consequências dos eventos climáticos extremos e como o clima poderá variar no fu-turo, na região, é de fundamental importância.

CLIMA DO PRESENTE E DO FUTUROEstudos mostraram que a precipitação no NEB varia regionalmente, em resposta às diferentes forçantes climáticas. Entretanto, um dos as-pectos mais notáveis em toda a região é a ocor-rência de secas, caracterizadas por um longo período de chuvas abaixo do normal, cuja fre-quência e intensidade indicam um clima cada vez mais quente. Estatisticamente, a cada 100 anos ocorrem de 18 a 20 anos de seca. Na his-tória recente da região, grandes secas têm sido detectadas, entre elas, as de 1982/83, 1997/98, 2001/2002 e, mais recentemente, 2012/2015. Já os anos chuvosos foram registrados em 1985, 1992, 1994 e 2004.

É importante ressaltar que aumentos de tem-peratura associados à mudança de clima de-corrente do aquecimento global, independente-mente do que possa vir a ocorrer com as chuvas, já seriam suficientes para provocar uma maior taxa de evaporação nos açudes e reservatórios, além do aumento da evapotranspiração das plantas. Nos últimos 40 anos, os termômetros registra-ram um aumento de mais de 3°C em cidades como Vitória de Santo Antão (PE), enquanto o resto do planeta esquentou em torno de 0,4 °C, fenômeno que se deve, em parte, às mudanças climáticas decorrentes da emissão de gases de efeito estufa, mas também à urbanização cres-cente da região.Se a esse fato se adicionar a redução do volume das chuvas e dos seus extremos, como suge-rem as projeções dos modelos climáticos glo-bais e regionais do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), até o final do século XXI, isso poderá agravar ainda mais a vulnerabilidade da região. Projeta-se que a água se tornará um bem es-casso e que isso trará sérias consequências para a sustentabilidade do desenvolvimento regional. A redução de chuvas também poderá afetar a geração de energia hidroelétrica na ba-cia do rio São Francisco.Estudos realizados por Lacerda et al. (2009b) na

microrregião do Pajeú, no Sertão de Pernambu-co, mostram haver aumento dos dias secos, do comprimento médio dos veranicos e dos máxi-mos veranicos.Tendências hidrológicas podem ser esperadas como consequência de variações no regime de chuvas. Em seu estudo, Dai et al. (2009) obser-varam redução da ordem de 35% nas vazões do São Francisco, nos últimos 50 anos. Uma va-riação que não está associada a mudanças no volume de chuvas da região, mas, sim, a fatores antrópicos, ao uso das águas para irrigação e à geração de energia elétrica com a construção da Barragem de Sobradinho.Os resultados dos relatórios do IPCC AR4 (IPCC 2007) e AR5 (IPCC 2013) e do Relatório Especial sobre Gestão dos Riscos de Eventos Climáticos e Desastres – SREX na sigla em in-glês (IPCC SREX 2012) sugerem aquecimento nas estações de verão (dezembro-fevereiro) e inverno (junho-agosto), para o final do século XXI (relativo ao clima presente), com alguns modelos climáticos indicando mais aqueci-mento que outros, principalmente durante o inverno. Quanto às mudanças nas chuvas, de modo ge-ral é indicada a redução, o que é confirmado por 80% dos modelos climáticos globais, prin-cipalmente durante o verão. As projeções do modelo regional Eta para o Nordeste mostram reduções de chuva no semiárido e na maior

OS EXTREMOS CLIMÁTICOS E AS PERSPECTIVAS FUTURAS NO CONTEXTO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO

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parte do polígono das secas, reduções essas mais intensas nos meses da pré-estação chu-vosa (outubro-dezembro) até os da quadra chuvosa, de janeiro a abril. As reduções de chuva são mais intensas a partir do período 2041-2070, alcançando maiores intensidades de 2071 a 2100.Projeções para extremos de precipitação mostram aumento na frequência de dias se-cos consecutivos (indicador de veranicos), chegando a aumentar mais de 30 dias/ano em 2041-207 e mais de 60 dias/ano em 2071-2100, sendo o semiárido o mais im-pactado. Em toda a região há uma projeção de aumento, com precipitações muito altas no percentil 95, enquanto a frequência de precipitação total em dias úmidos e a fração de dias com precipitação acima de 10 mm/dia mostram ligeira diminuição.A redução dos extremos e o aumento na exten-são e intensidade dos veranicos, acompanhados de uma redução no total de chuva, sugerem um clima futuro mais seco, com secas mais exten-sas e estação chuvosa muito reduzida ou quase ausente, principalmente no sertão da região.Os cenários da diferença entre precipitação (P) menos evaporação (E), indicadores do balanço

hídrico, mostram deficiência hídrica bastante intensa no semiárido, que varia de 2 a 3 mm/dia (2010-2040) até mais de 6 a 9 mm/dia (2071-2100), especialmente nas áreas das bacias dos rios São Francisco e Parnaíba. As diferenças são maiores nos meses de verão, especialmen-te de janeiro a fevereiro. A combinação de aumento da temperatura do ar, redução das chuvas e redução da umidade atmosférica representa a junção de fatores con-dicionantes para gerar secas (P<E), que podem, de fato, reduzir a umidade armazenada pelo solo e gerar um processo de aridização, poden-do levar, por sua vez, à intensificação da deser-tificação no semiárido, alterar a vegetação na-tural (caatinga), além de reduzir as vazões dos rios e a geração de energia hidroelétrica, como no caso da bacia do São Francisco.

DESERTIFICAÇÃO: UMA PROBLEMÁTICA REGIONALAtualmente, as comunidades científica e política têm se mostrado muito preocupadas em mini-mizar os impactos da humanidade sobre os re-cursos naturais, principalmente os renováveis, como solo, vegetação e água. A grande aten-ção sobre esses recursos se deve ao risco de

ações de degradação ambiental local afetarem sistemas ambientais complexos com seus efei-tos refletidos em escalas regionais e globais. A destruição de afluentes de bacias hidrográficas, por exemplo, pode afetar a distribuição mínima de água para o resto do planeta. Uma das regiões do planeta que mais sente as causas e consequências da degradação são as terras secas (terras áridas, semiáridas e subú-midas secas). Nessas áreas, os efeitos são in-tensificados devido ao fato de recursos naturais como água, solo e vegetação serem utilizados de forma voraz, sem planejamento ambiental adequado, em um quadro com características geoambientais extremamente vulneráveis, au-mentando a susceptibilidade da população à degradação do solo e ao clima. Na América do Sul, existem três grandes áre-as semiáridas: a região Guajira, na Venezuela e na Colômbia; a diagonal seca do Cone Sul, que ocasiona aridez ao longo da Argentina, do Chi-le e do Equador; e o Nordeste seco do Brasil, região fitogeográfica das caatingas, com tem-peraturas constantemente elevadas, baixos ín-dices de umidade, precipitação irregular e so-los problemáticos, tanto do ponto de vista físico quanto do geoquímico (Ab´Sáber, 1999).

Figura 1 – Sumário das mudanças

de clima projetadas pelos modelos

climáticos regionais sobre o Nor-

deste do Brasil, até o final do século

XXI para cenários de altas e baixas

emissões dos gases de efeito estufa

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O semiárido brasileiro é o mais populoso do mundo, com uma população distribuída muito irregularmente, extremamente pobre e fragilizada so-cioeconomicamente. Historicamente, a região foi ocupada pela pecuária e por um sistema diversificado de uso da terra. Aos poucos, esse cenário vem sendo modificado pelos investimentos tecnológicos, com a região se ocupando atualmente da agropecuária moderna, baseada em com-modities, ligada à agroindústria; das atividades não agrícolas, ligadas à moradia, ao lazer e a várias atividades industriais; e das novas atividades agropecuárias, localizadas em nichos especiais de mercado (MIN, 2005). Há também um forte investimento tecnológico nos sistemas de irriga-ção, o que vem proporcionando melhor e maior produtividade de frutas e hortaliças, aumentando a oferta de alimentos para o gado de corte, além das indústrias de laticínios, que se intensificam na região (Vajpey, 2013). Como se pode observar, a população local e o governo estão investindo cada vez mais no desenvolvimento sustentável da região. No entanto, os esforços são limitados, lentos e não acompanham a pressão antrópica, que ocorre com maior intensidade próximo aos leitos dos rios. Nesses locais, o desmatamento vem aumentando, permitindo que os sedimentos dos solos desprotegidos de vegetação cheguem às calhas dos rios, dimi-nuindo o volume de água disponível.Um dos principais rios da região é o São Francisco, que nasce no Parque Nacional da Serra da Canastra, no sudoeste de Minas Gerais. Sua bacia, além de cortar três importantes biomas – Cerrado, Caatinga e Mata Atlân-tica, cobre uma área de drenagem de 7,6% do território nacional, cruzando os sertões da Bahia, de Pernambuco, Alagoas e Sergipe (Barbosa, 1962). A perenidade desse grande rio depende das regiões tropicais mais úmidas situadas nas cabeceiras mineiras e baianas (Ab´Sáber, 1999). Por abrigar um dos rios com maior vazão do mundo, a região merece atenção do ponto de vista ambiental, de manejo e uso sustentável. No en-tanto, em um estudo realizado recentemente por Vieira, 2015, constatou--se o aumento das áreas com alta susceptibilidade à desertificação em direção ao sul do Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, sul da Bahia e nor-te de Minas Gerais. Nessas regiões, o crescimento do agronegócio pode ser um dos principais fatores que estão contribuindo para a alta suscep-tibilidade, principalmente no Piauí e na Bahia, que fazem parte da nova fronteira agrícola brasileira. Nesses estados também foi constatado alta densidade de focos de queimadas, sendo 218 mil quilômetros quadrados de área com média e alta densidade no Ceará e 114 mil na Bahia. A práti-ca do fogo ainda é muito utilizada pelos pequenos produtores na limpeza de pastos e áreas agrícolas, e também pelo agronegócio, na queima da cana-de-açúcar. A autora conclui ainda que as áreas de floresta e agricultura estão sendo substituídas por pastagens e que o cerrado é o bioma que mais vem per-dendo área de vegetação natural, e não somente para a pastagem, mas também para o agronegócio. Somente entre os anos de 2000 e 2010 a

perda foi de 16%, enquanto na Caatinga foi de 5%. A agricultura, que entre os anos de 2000 e 2010 aumentou cerca de 26%, apresenta nos cenários uma diminuição de 52% para 2040, no cenário A, e de 49% no cenário B. A diminuição provavelmente está associada à ten-dência de um clima mais árido entre os anos de 2011-2020 e 2030-2040, segundo previsões climáticas do IPCC.

CONSIDERAÇÕESJuntamente com outras regiões do planeta, o Nordeste do Brasil pode ser classificado como uma região sob grande risco, em virtude das varia-ções e mudanças do clima. O risco não é somente por causa das mudanças climáticas projetadas, mas também pelas interações sinérgicas com outras ameaças existentes, tal como o uso do solo, que, quando manejado de modo inadequado, sob condições geoambientais desfavoráveis, pode levar à de-gradação e/ou desertificação da terra. O processo de desertificação é complexo e exige uma análise integrada dos fatores que a podem estar ocasionando.. Sendo assim, estudos como os realizados com modelagem de mudanças de uso e cobertura da terra (LUCC) são de extrema impor-tância por permitirem a análise de possíveis futuros cenários de mu-dança no uso da terra, juntamente com diversos cenários climáticos que fornecem subsídios para entender causas e efeitos da desertifi-cação, bem como auxiliarem os tomadores de decisão em um planeja-mento mais adequado do uso do solo nos locais mais vulneráveis.Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), AR4 (2007), AR5 (2014), e do Centro de Ciência do Sistema Ter-restre (CCST), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), têm mostrado que nas próximas décadas os impactos associados às condi-ções climáticas futuras terão implicações para a população, a biodiversi-dade e os recursos hídricos. No setor econômico, a pesca, a agricultura e o turismo também tendem a ser afetados, em virtude do aumento na frequência de extremos climáticos. É importante ressaltar que não só as projeções de clima representam risco, mas também a variabilidade climáti-ca; é só lembrar as secas nos últimos quatro anos, que têm afetado signifi-cativamente os recursos hídricos.Apesar das “incertezas” derivadas de qualquer projeção de mudança cli-mática, é importante reconhecer que elas não eliminam sua utilidade. Pelo contrário, as projeções fornecem informações altamente valiosas, se forem comunicadas de maneira eficiente aos usuários, não devendo, portanto, ser negligenciada a ameaça de mudanças climáticas..Nesse contexto, é importante que se adotem ações de curto, médio e longo prazos, considerando as diversas escalas temporais de ocorrên-cia (sazonal, interanual e multidecadal) da variabilidade climática, da mudança climática e dos eventos climáticos extremos, permitindo, as-sim, o exercício da resiliência e uma melhor adaptação aos eventos cli-máticos extremos da região.

REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS

AB’SABER, A. N. (1999). Dossiê Nordeste seco. Estudos avançados, 13(36),

1999.

BARBOSA, R. P. Rios brasileiros com mais de 500 km de extensão. Revista

Brasileira de Geografia 24:126-134, 1962.

MINISTÉRIO DE INTEGRAÇÃO NACIONAL – Plano Estratégico de Desenvolvi-

mento do Semi-Árido. Versão para Discussão. Brasília, 2006. 121 p. VIEIRA, R.

M. S. P. Susceptibilidade à degradação/desertificação no semiárido brasileiro:

tendências atuais e cenários decorrentes das mudanças climáticas e do uso

da terra. Versão: 2015-06-22. Tese (Doutorado em Ciência do Sistema Ter-

restre) – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), São José dos Cam-

pos, 2015. Disponível em: <http://urlib.net/8JMKD3MGP3W34P/3J54785>.

Acesso em: 22 set. 2015.

* LINCOLN MUNIZ ALVES É PESQUISADOR DO CENTRO DE CIÊNCIA DO

SISTEMA TERRESTRE DO INPE E MEMBRO DO CONSELHO DELIBERATIVO

DA SBMET. TEM EXPERIÊNCIA NA ÁREA DE GEOCIÊNCIAS, COM ÊNFASE EM

CLIMATOLOGIA, ATUANDO PRINCIPALMENTE NOS CAMPOS DE MUDANÇAS

CLIMÁTICAS, CLIMATOLOGIA, PREVISÃO CLIMÁTICA, EXTREMOS CLIMÁTICOS

E VULNERABILIDADE. É PARECERISTA DE REVISTAS CIENTÍFICAS E

PARTICIPA DE VÁRIOS PROJETOS DE PESQUISA, COM INSTITUIÇÕES

BRASILEIRAS, INGLESAS, FRANCESAS E AMERICANAS.

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A realização do XVII Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas (Encob) na cidade de Caldas Novas (GO), de 4 a 9 de outubro de 2015,

trouxe boas novidades e algumas inquietações. Dentre as novidades, a principal foi a apresen-tação de duas chapas disputando a direção do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidro-gráficas (FNCBH), além do surpreendente em-pate na hora da eleição. Felizmente, um acor-do firmado entre os concorrentes permitiu que nos próximos dois anos o Fórum seja conduzido por uma direção colegiada composta pelos dois candidatos ao cargo de coordenador e pelos dois candidatos a coordenador adjunto, dentre estes últimos, o autor do presente texto. Quanto às in-quietações, todas giram em torno da funcionali-dade dessa solução, que só dará certo mediante a permanente construção de consensos.O aparecimento de duas chapas reflete a emer-gência contida nos desejos de mudanças real-mente significativas, tanto no Fórum quanto no formato do Encob, algo anteriormente explicita-do pela maioria dos comitês, mas que ainda não foi devidamente absorvido pelas lideranças do colegiado que dirige o evento e a entidade.De agora em diante, porém, esses desejos, transformados em metas, precisam ser mate-rializados em ações concretas, a fim de se evitar que o Fórum sofra um processo de esvaziamen-to e, num sentido propositivo, coloque-se à altu-ra dos grandes desafios que a crise hídrica – que afeta grandes regiões do País – vem apresen-

tando à sociedade, principalmente, àquelas co-munidades compostas de pessoas e instituições (públicas ou privadas) que lidam diretamente com a gestão das águas.Para alcançar os seus propósitos, na atual con-juntura, o Fórum Nacional de Comitês precisa, antes de qualquer outra coisa, ganhar mais au-tonomia e possibilidades logísticas de funciona-mento institucional permanente, com o propó-sito de não se reduzir a um mero organizador anual do Encob. Nesse sentido, adquirir perso-nalidade jurídica e, com isso, recursos para ga-rantir a mobilidade de seus integrantes, o avan-

ço de sua comunicação interna e externa e o financiamento de ações de caráter nacional em defesa dos comitês é premissa essencial para a consolidação de um novo papel na luta pela pre-servação de água de boa qualidade no Brasil.Representando comitês de todo o País, o Fórum deve criar condições para se legitimar, de fato, nessa função, sobretudo interferindo junto ao poder público nos estados, visando cobrar a im-plementação mais rápida e vigorosa dos instru-mentos da gestão de recursos hídricos, dentre os quais a criação e o fortalecimento dos comi-tês de bacias em todo o território nacional.Não há mais justificativas para delongas diante de uma realidade na qual incontáveis comitês de bacias, em diversos estados brasileiros, estão à míngua, abandonados pelos governos de plan-tão e deixando de cumprir o papel que lhes é assi-nalado em lei, de funcionar como base do Sistema Nacional de Recursos Hídricos e primeira instân-cia para a solução dos conflitos em torno do uso das nossas águas. Como é fácil observar, torna-se imperioso, nesse momento, um novo Fórum para uma nova realidade.

ANIVALDO MIRANDA*

Um novo tempo para os comitês de bacias

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“PARA ALCANÇAR OS SEUS PROPÓSITOS, NA ATUAL CONJUNTURA, O FÓRUM NACIONAL DE COMITÊS

PRECISA, ANTES DE QUALQUER OUTRA COISA,

GANHAR MAIS AUTONOMIA E POSSIBILIDADES LOGÍSTICAS

DE FUNCIONAMENTO INSTITUCIONAL

PERMANENTE, COM O PROPÓSITO DE NÃO SE REDUZIR A UM MERO

ORGANIZADOR ANUALDO ENCOB”

(*) ANIVALDO MIRANDA É JORNALISTA, PRESIDENTE DO

CBHSF E MESTRE EM MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO

SUSTENTÁVEL PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS.

Uma das novidades do XVII

Encob foi a existência de

duas chapas disputando a

direção do Fórum Nacional

dos Comitês de Bacias

Hidrográficas

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A grande manifestação popular de destaque é a festa de Bom Jesus dos Navegantes, uma das mais tradicionais do Baixo São Francisco, misturando

alegria popular e religiosidade. A festa acontece sempre no segundo domingo de janeiro e conta 132 anos de tradição e fé. Maior festa popular de Alagoas, movimenta as pequenas cidades do entorno de Penedo

e ressalta a figura do pescador, uma das profissões mais tradicionais da região.Outra festa importante é o Carnaval, ocasião em que a cidade se enfeita, a população sai de casa e se diverte em blocos que circulam nas

principais ruas e vielas. Os mais famosos são Batuqueiros de Penedo, Unidos do Bairro, Legião de Amigos e Raquel (que existe há 70 anos). Na abertura das festividades acontece a tradicional “Lavagem do Beco da

Preguiça”, animada por bandas de frevo. O evento inclui a lavagem das escadarias da Igreja do Rosário dos Pretos.

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PatrimônioCidade monumento, Penedo é repleta de casarões da época do Brasil Colônia. Seu centro histórico foi considerado Patrimônio Histórico Nacional. Sem qualquer esforço, a cidade é tida hoje como o maior centro de arte barroca e neoclássica do estado de Alagoas, com construções ini-ciadas a partir de 1660. Há casarios, igrejas, convento e um Paço Imperial onde atualmente funciona um museu de acervo muito rico, com peças em tapeçaria, móveis, quadros e louças que foram usadas por D. Pedro II e sua comitiva quando visitaram a cidade, no século XIX. O ilustre visitante, segundo conta o imaginário popular, teria dito que “o local é muito bonito, deveria ser a capital da Província”.Outras edificações de destaque são a Igreja e o Convento de Nossa Senhora dos Anjos, do século XVIII, com detalhes barrocos, e a Igreja de São Gonçalo Garcia. Merece também especial atenção a Fundação Casa do Penedo, fundada em 1992, que tem por objetivo a preservação da memória da cidade, especialmente do seu patrimônio artístico e cultural.

Penedo nasceu como um pequeno povoado, fundado por Duarte Coelho Pereira, primeiro donatário da ca-pitania hereditária de Pernambuco, no início do século XVII. Em 1636, o povoado foi elevado à condição de vila e recebeu o nome de Penedo do São Francisco por um motivo óbvio: ficava às margens do rio que se tornaria o seu guardião e principal fator de crescimento.

Verdadeira joia arquitetônica do Baixo São Francisco, a cidade de Penedo, no estado de Alagoas, é conhecida por sua expressiva identidade cultural, aliada à beleza de um casario que mistura o clássico e o barroco, em meio a uma localização privilegiada, à beira do Velho Chico.

Texto: José Antônio MorenoIlustração: elena landinez

Economia Os cultivos do coco e da cana-de-açúcar figuram, ao lado da pesca, como principais atividades econômicas do município, mas o setor de serviços vem ganhando força. Penedo já se destaca como polo de saúde e educação para a região do Baixo São Francisco, especial-mente após a chegada da Universidade Federal de Alagoas e do Instituto Federal de Alagoas. O turismo, pouco a pouco, vem ocupando lugar de destaque como fator de desenvolvimento local. Penedo foi incluída pelo Fórum Mundial de Turismo (2005) como um dos sete destinos turísticos e, por causa disso, beneficia-se de ações continuadas em prol do turismo sustentável e da valorização da cultura e do lazer.

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HistóriaNo começo, toda a área onde hoje se situa o município de Penedo era habitada pelos índios Caetés, que se dedicavam à agricultura e à pesca. Não tardou para que os portugueses chegassem, a fim de colonizar a região. Mais tarde, por força

da sua posição estratégica às margens do Velho Chico, Penedo foi palco da invasão holandesa, que durou quase dez anos. Os holande-

ses só foram expulsos em 1645, depois de uma batalha muito árdua.Penedo é sinônimo de pedra, de rocha, portanto, seu topônimo se

deve ao grande penedo sobre o qual se assenta.Além dos índios, portugueses e holandeses, os finlandeses estão

também associados à história de Penedo. Marcaram a cultura local com alguns costumes, sua dança e culinária. Há, inclusive, um museu dedicado a essa influência (Museu Finlandês da Dona Eva),

inaugurado em 1982, que reúne mais de mil objetos trazidos daquele país no começo do século XX, destacando-se tapetes,

bordados, gravuras, livros e mapas.

CinemaPenedo tem relação muito próxima com o cinema. Já foi locação para diversos filmes

nacionais e promove o Festival de Cinema Universitário, em sua quinta edição atualmen-

te. Além disso, o município reedita o Festival de Cinema de Penedo, de âmbito nacional,

recuperando o seu passado de glória como um dos maiores eventos cinema-

tográficos do Brasil.

EcologiaA Área de Proteção Ambiental (APA) da Marituba do Peixe é considerada por especialistas como “Pantanal Alagoano”, com 18 mil hectares de mata preservada, apresentando uma grande várzea que abriga várias espécies da fauna e da flora. Na APA, o visitante pode comer peixes nativos, camarões e apreciar as artesãs fazendo trabalhos manuais com a palha de ouricuri.

GastronomiaQuem nunca provou o ensopado de jacaré,

não conhece a culinária de Penedo. E o que di-zer do pirão de pitu e do escabeche de surubim,

o peixe mais associado ao rio São Francisco? Um farto cardápio baseado em frutos do rio faz o diferencial da culinária

penedense, uma das mais ricas da região do Baixo São Francisco.

CulturaA Fundação Casa do Penedo, instalada em sede própria, na rua João Pessoa,

126, tem biblioteca e Hemeroteca especializadas, além de um arquivo iconográfico e documental informatizado. Mantém exposição permanente contando a história do

Penedo, divulga e relança obras, incentiva manifestações artísticas e culturais. Uma das curiosidades da casa são os

registros fotográficos e pictóricos das duas passagens de D. Pedro II pela cidade. Outro destaque

cultural da cidade é o belo Teatro Sete de Setembro, inaugurado em 1884 e o primeiro a ser construído no

estado de Alagoas. É sede da Im-perial Sociedade Filarmônica

Sete de Setembro, título concedido pelo

imperador Dom Pedro II

São FranciscoA cidade de Penedo é uma das mais belas

da bacia do São Francisco e isso muito se deve à presença tão próxima do Velho Chico, emoldurando o

cenário de casas, sobrados e palacetes centenários. O nascer e o pôr do sol refletidos nas águas do rio formam um cenário inesquecível, completado pelas canoas que são impulsionadas por velas duplas, lanchas

e balsas que fazem o transporte de pessoas e mercadorias entre as cidades ribeirinhas da região. Isso sem falar na vocação natural de suas

pequenas praias e ilhas de areia fina para o lazer, a exemplo da prática de esportes, pesca, passeio de

barco ou canoa etc.

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Velho Chico

A PRÓXIMA NOVELA GLOBAL DAS 21H, COM PREVISÃO DE ESTREIA PARA MARÇO DE

2016, TERÁ O RIO SÃO FRANCISCO COMO PRINCIPAL PERSONAGEM. A TRAMA ENVOLVE

PODER, RELAÇÕES FAMILIARES E CONFLITO DE GERAÇÕES, MAS TEM COMO FOCO

CENTRAL QUESTÕES HUMANAS E AMBIENTAIS QUE ATORMENTAM O DIA A DIA DAS

POPULAÇÕES RIBEIRINHAS. EM FACE DISSO, OS AUTORES PEDIRAM A COLABORAÇÃO DO COMITÊ DO SÃO FRANCISCO. QUEREM USAR

A FICÇÃO PARA FALAR DA TRISTE REALIDADE DO RIO, SEM ESQUECER, CONTUDO, DE

DESTACAR AS PRÁTICAS POSITIVAS QUE DESENHAM UM CENÁRIO DE ESPERANÇA

PARA A BACIA E APONTAM UM FUTURO MAIS SUSTENTÁVEL.

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em capítulosHá um rio afogando em mim/secando, secando, secando.../tem rompan-tes os mistérios que já vi/ esperando, esperando, esperando... o fim

Os versos de Paulo Araújo, cantor e compositor da cidade ribeirinha de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, equilibra poesia e realidade, suavidade e emoção na canção que ilustra o teaser da novela Velho Chico. O teaser, aliás, é o começo da epopeia que será essa nova produção global das

21h, com estreia prevista para o início de 2016, em substituição a Regra do Jogo, mas já dá o tom do seu engajamento social e de sua preocupação com o futuro do rio São Francisco, apesar de, como qualquer novela, conter ingredientes e tramas que são parte de suas características como gênero dramático popular.A novela Velho Chico está sendo gestada por uma equipe de profissionais dos mais respeitados da televisão brasileira. A supervisão geral é de Benedito Ruy Barbosa, autor de sucessos como Sinhá Moça, Terra Nostra, Cabocla, Renascer, O Rei do Gado e Paraíso, além da icônica Pantanal. O texto é de Edmara Barbo-sa, com assistência de Bruno Barbosa, respectivamente filha e neto de Bene-dito. A direção-geral leva a assinatura de Luiz Fernando Carvalho (Pedra sobre Pedra, Renascer, Hoje é Dia de Maria, Meu Pedacinho de Chão, entre outros) e no elenco estão alguns dos atores mais conhecidos da tevê brasileira, como Antônio Fagundes, Tarcísio Meira, Letícia Sabatella e Eriberto Leão.A fase preparatória do folhetim global já começou e vem cumprindo etapas que tornam o projeto, no mínimo, diferenciado. Para se afastar dos estereóti-pos e buscando refletir a essência atual do Velho Chico, Edmara Barbosa e sua

TEXTO E FOTO: JOSÉ ANTÔNIO MORENO

FOTO: JOÃO ZINCLAIR

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equipe resolveram adentrar a bacia da maneira mais presencial possível: per-correndo cidades e povoados ribeirinhos, conversando com as comunidades de agricultores e pescadores, conhecendo seus problemas e necessidades, ouvindo críticas e narrativas, documentando manifestações culturais. “Querí-amos ter uma visão bem real desse momento do São Francisco”, resume ela. “E acho que conseguimos um material muito rico, carregado de realidade”.O passo seguinte foi buscar a experiência cotidiana do Comitê da Bacia Hi-drográfica do Rio São Francisco na relação mantida com o rio e sua gente. O primeiro encontro nesse sentido aconteceu no mês de maio deste ano, em Bom Jesus da Lapa, na Câmara Consultiva do Médio São Francisco. A segunda reunião, que referendou a parceria com o CBHSF, ocorreu em setembro, no escritório dos autores, em São Paulo, contando com a presença do presidente Anivaldo Miranda, do secretário José Maciel Oliveira e de dois representantes de grupos humanos importantes da bacia: os quilombolas, representados por Claudio Pereira, coordenador da Câmara Consultiva do Médio; e os indígenas, que têm como referência Uilton Tuxá, coordenador da Câmara Consultiva do Submédio.Do Comitê, Edmara Barbosa ouviu algumas sugestões. “Acho que não pode faltar na novela uma questão crucial para o rio, que é a dos múltiplos usos. O rio vem pagando um preço muito alto pelos conflitos existentes, que decorrem principalmente da hegemônica presença do setor elétrico, responsável pelas hidrelétricas”, defendeu Anivaldo Miranda, elogiando a iniciativa dos escrito-res de colocar em pauta a realidade do rio São Francisco.

TRAMAS FAMILIARESComo todo folhetim que se preza, Velho Chico tem suas ações derivadas dos núcleos familiares. “Entendemos que a família é a menor célula de uma sociedade, o que nos permite abordar os problemas de forma que seja mais fácil a identificação por parte do público”, justifica Bruno Barbosa, lembrando que a novela acontece em três fases: nos anos 1970, no final da década de 1980 e nos dias atuais. A história começa com a morte de um velho coronel latifundiário que usa o São Francisco como instrumento de poder perante a comunidade. O que acontece a partir daí, decorre da natu-ral sucessão familiar: a ascendência do filho desse coronel sobre a família e a comunidade e, depois, a chegada do seu neto, fazem vir à tona toda a problemática de exploração perniciosa das águas do Velho Chico, ante a iminência da crise hídrica e da ausência de uma gestão voltada para a sus-tentabilidade do rio.Os novos pensamentos a respeito da esgotabilidade hídrica vêm por meio de um vereador da região, Bento, que pensa seriamente no futuro do rio e de sua população, assim como do neto do velho coronel, Raul, que retorna da cidade grande com idéias consideradas revolucionárias, falando em agricultura orgâ-nica, controle de agrotóxicos e direito de uso. Em meio aos conflitos ambientais provocados pela não adoção de medidas adequadas à preservação, nascem os ingredientes característicos da dramaturgia televisiva, como luta de classes, relações amorosas, ambição e estratégias de poder. Em estágio inicial de produção, a novela já teve a sinopse aprovada pela TV Globo, mas há etapas que ainda serão cumpridas, como definição de elenco (as sugestões feitas pelos autores precisam ser confirmadas com a emissora e os artistas) e mapa das locações. Sabe-se, de antemão, que a história será ambientada num local indefinido da bacia do São Francis-co, embora com características que serão reconhecidas pelo público como naturais das regiões são-franciscanas. A cidade fictícia recebeu o nome de Grotas e é onde a maior parte da história irá se desenrolar.

FICÇÃO X REALIDADEEnquanto o texto caminha a quatro mãos, os capítulos são aprovados pes-soalmente por Benedito Ruy Barbosa, que, como em outras oportunidades e apesar da idade avançada, não descuida de exercer o controle final de suas produções. Numa associação rápida, pode-se encontrar similarida-des entre Velho Chico e Pantanal, que enveredou por uma das regiões mais

singulares do Centro-Oeste brasileiro, ou mesmo com o grande sucesso O Rei do Gado, que discutiu a problemática dos sem-terra. A semelhança está justamente no fato de se construir uma obra ficcional a partir de uma referência absolutamente real. No caso de Velho Chico, o rio São Francisco não será apenas pano de fundo, garantem os autores. “Nossa ideia é colaborar, de alguma forma, com a vida dos povos ribeirinhos, divulgando sua cultura e tradições, valorizando a ideia de preservação ambiental e da busca por valores mais sustentáveis para sobre-vivência do rio”, afirma Edmara Barbosa, que não raramente chega às lágri-mas quando fala da experiência vivida em alguns povoados do São Francisco, presenciando a luta pela falta de água para abastecimento, as dificuldades da navegação e da pesca, o medo da contaminação por agrotóxicos.”O São Fran-cisco, para mim, é o retrato de todos os rios do Brasil”, resume.“Na novela, vamos tentar chamar a atenção para o que ainda pode ser feito a favor do rio”, antecipa Bruno Barbosa, dizendo que se a saga da família de latifundiários se constrói a partir do uso desordenado e abusivo das águas do São Francisco, a redenção e a esperança surgem com a nova geração, “ou seja, queremos mostrar que nem tudo está perdido”, diz.No encontro com os autores, o presidente Anivaldo Miranda mostrou tam-bém a sua visão otimista, mesmo num cenário tão desalentador como o atual. Sugeriu que a novela trate, por exemplo, das novas matrizes energé-ticas, que seriam, a seu ver, uma das soluções para diminuir a carga do São Francisco na geração de energia, liberando o rio para outros usos, como a navegação, a pesca e a agricultura. “Naturalmente, eu sei que uma novela não terá espaço para defender todas as bandeiras que o Velho Chico neces-sita. E quero dizer que considero muito importante o trabalho de vocês. É uma forma de trazer para o grande público, num momento muito oportuno, um pouco da realidade do São Francisco, que é, seguramente, o rio que mais mexe com o imaginário popular em nosso país”, observa.

Bruno Barbosa: “Na novela, vamos tentar

chamar a atenção para o que ainda pode ser

feito a favor do rio”

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MUSEU

CICLISMOMÚSICAPEDALANDO PELO SÃO

FRANCISCOUm grupo de ciclistas de Brasília (DF) resol-veu conhecer de perto a realidade do rio São Francisco percorrendo cerca de quatro mil quilômetros da nascente à foz. A ideia é vi-sitar cada localidade ribeirinha da bacia, da Serra da Canastra, em Minas Gerais, onde o rio nasce, até a divisa dos estados de Alago-as e Sergipe, onde ele desemboca no mar. O desafio foi dividido em duas fases, uma já re-alizada este ano, com um total de 1328 quilô-metros percorridos em 20 dias, e a outra com previsão para 2016, quando será finalizado o trajeto de cerca de 2,6 mil quilômetros. Ao todo, serão 42 dias de pura aventura, atra-vessando várias regiões fisiográficas, com variações de relevo, clima e vegetação, visu-alizando belezas e contrastes do Velho Chico, visitando cidades como São Roque de Minas (MG), Bom Jesus da Lapa e Ibotirama (BA), Canindé do São Francisco (SE) e Penedo (AL). A equipe aventureira é integrada por cinco ci-clistas, um motorista de apoio e um educador para desenvolvimento de atividades socioe-ducativas com crianças e adolescentes em comunidades fixadas ao longo do percurso.

VELHO CHICO É ROQUEIRO!Meu barquinho vai subir o São Francisco/ Como quem sobe os degraus de uma igreja/ Não vou entregar minha cabeça em uma bandeja/ Quero morrer na peleja.Estes versos dos meninos do Vivendo do Ócio, inicialmente, podem até não parecer, mas entram, sim, em total sintonia com a musi-calidade roqueira do grupo baiano, uma das recentes revelações da música brasileira. Os versos pertencem a Carranca, canção que integra o repertório do último disco lançado, uma homenagem ao rio São Francisco e à cultura ribeirinha. O Vivendo do Ócio come-çou sua trajetória num programa de televisão do tipo“caça-talentos” e, por se diferenciar dos demais concorrentes, saiu vencedor, gravando em seguida o primeiro disco, Nem sempre tão normal. Algum tempo depois, pela mesma gravadora (Deck Disc), os músicos Luca, Davide, Diego e Jajá chegaram ao se-gundo disco, O pensamento é um imã, conso-lidando a banda no cenário musical brasilei-ro. No atual terceiro disco, batizado de Selva Mundo, o grupo trilhou um caminho mais independente e produziu o CD com financia-mento coletivo, contando com parcerias ilus-tres, como Fábio Trummer, da banda Eddie, Lirinha (Cordel do Fogo Encantado) e Pepeu Gomes, um fã confesso da banda.

UMA CASA PARA O RIOO município de Penedo, em Alagoas, vai con-tar em breve com um moderno centro de pesquisa, ensino e extensão: o Museu do Rio. Tendo em vista a conservação da diversida-de biológica e cultural do rio São Francisco, que banha o município, o museu vai funcio-nar em um prédio localizado em uma das ruas centrais da cidade (Dâmaso do Monte) e será implantado pela Universidade Federal de Alagoas. O objetivo do novo museu é ser um espaço de sensibilização pública para as ciências, volta-do especialmente para estudantes das redes pública e privada, no intuito de contribuir com a ampliação do intercâmbio entre a universi-dade e a sociedade. O Museu do Rio vai contar com exposições permanentes, transitórias, aquários e coleções científicas. Terá equipa-mentos e atrações interativas, facilitando, as-sim, o acesso aos temas relacionados com a bacia do São Francisco. O local já foi aprovado pela UFAL, em visita feita pela vice-reitora da Instituição, Raquel Rocha, juntamente com uma comissão de representantes da Prefei-tura Municipal de Penedo.

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A BACIA VISTA DO ALTONem enfrentando a pior seca em 100 anos o rio São Francisco deixa de proporcionar aventuras inéditas. Se hoje o alto grau de es-cassez hídrica inviabiliza muitos ribeirinhos de navegar pelas suas águas, restou ao piloto Lu Mariani percorrer de paramotor – espécie de paraquedas com motor - toda a extensão deste que é o maior rio genuinamente brasileiro.Intitulada de Rastreando o Rio São Francisco, a expedição durou 30 dias, e sobrevoou os cinco estados que integram o São Francisco (Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Ser-gipe), registrando belas imagens aéreas das riquezas naturais do Velho Chico, bem como da triste realidade de degradação ambiental que assola a bacia. “A situação é realmente muito séria. O nível do rio está muito baixo. Fiquei impressionado com o volume reduzido das represas e como o problema da seca tem afetado a população ribeirinha. Eles não têm peixe para comer e com a falta da vazante do rio, eles não podem plantar. O descaso am-biental é absurdo. Cheguei a sobrevoar um lixão a céu aberto às margens do rio, e mais de 80% da mata ciliar foi destruída”, comenta Lu Marini.A jornada do aventureiro teve início em São Roque de Minas (MG), município que abriga a nascente principal do rio São Francisco. O destino final foi a sua foz, entre os estados de Alagoas e Sergipe. Informações: www.aven-turafantastica.com.br 

IMAGENS QUE FALAMFotógrafo militante, fascinado pelos movi-mentos sociais das lutas de classe operária e das causas ambientais, o paulista João Zin-clar era especialmente apaixonado pelo Velho Chico. Entre 2005 e 2009, percorreu os esta-dos da bacia para flagrar a cultura ribeirinha com uma sensibilidade incomum. Quando faleceu, em 2013, deixou um legado de fotos de grande beleza plástica e contundentes na sua expressividade. Algumas dessas fotogra-fias integram o livro O Rio São Francisco e as Águas no Sertão, que teve seu primeiro lan-çamento em 2010 e ganhou edição especial em agosto passado. O livro é uma contribui-ção para o debate sobre o uso dos recursos hídricos e a comercialização da água. O es-gotamento da primeira edição permitiu uma nova roupagem, com embalagem especial em caixa de papelão personalizado. Zinclar deixou um acervo de mais de 180 mil fotos, boa parte documentando o rio São Francisco. O compromisso de uma vida dedicada às ca-sas sociais inspirou a criação de um instituto que leva o seu nome, com sede no Museu da Imagem e do Som de Campinas (SP).

VOZES DA RESISTÊNCIAA preservação das comunidades quilombo-las da área urbana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, é tema do documentário Vozes da Resistência – os quilombos urbanos de Belo Horizonte, recém-lançado pela Defensoria Pública da União, na capital mineira. O pro-jeto gira em torno do cotidiano de três comu-nidades mineiras remanescentes de quilom-bolas: Luízes, no bairro Grajaú; Mangueiras, no bairro Novo Aarão Reis, e Manzo Ngunzu Kaiango, em Santa Efigênia. O longa-metra-gem, com cerca de 1 hora e 40 minutos de duração, conta com argumento e direção de conteúdo do defensor público federal Estêvão Ferreira e direção-geral de Zuleide Filgueira. A principal ênfase do filme é retratar a luta dos quilombos urbanos para manutenção de suas terras, culturas e tradições, ameaçadas pela expansão e especulação imobiliária. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a comuni-dade de Luízes, que antes ocupava uma área de cerca de 18 mil metros quadrados, onde viviam duas mil pessoas, e hoje conta com apenas quatro mil metros quadrados e pouco mais de 100 moradores.

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Uma das espécies “bandeira” para a conservação do Cerrado brasileiro, o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) é espécie endêmica da América do Sul e o maior canídeo do Continen-te. Chega a medir mais de um metro de comprimento e até 90

centímetros de altura. Pelagem do corpo longa, vermelho-dourado, cri-na preta delineando a nuca, patas também longas e pretas, cauda bran-ca, grandes orelhas e andar esguio, meio envergonhado, são caracte-rísticas inconfundíveis desse lobo sulamericano, único representante conhecido do gênero Chrysocyon. No século XIX, foi classificado como espécie do gênero Vulpis, por alguma semelhança com as raposas do Hemisfério Norte. Porém, estudos genéticos recentes confirmam que o lobo-guará pertence a uma linhagem evolutiva exclusiva, mais aparen-tada com a linhagem do cachorro-vinagre (Speothos venaticus), grupo irmão dos demais canídeos sul-americanos, como o cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), o cachorro-do-mato-de-orelhas-curtas  (Atelocynus microtis) e as raposas da América do Sul do gênero Lycalopex. O lobo--guará é espécie típica do Cerrado brasileiro, com distribuição conheci-da também nas savanas e campos abertos dos sertões do Brasil até a Bolívia, Paraguai e norte da Argentina, porém raramente encontrado no Uruguai e já considerado extinto no extremo sul do continente sul-ame-ricano. Costuma ser observado buscando alimento em áreas abertas e pode encontrar refúgio para descansar em matas ciliares ou áreas de vegetação mais densa. Esses lobos se alimentam de uma ampla variedade de frutos e peque-nos vertebrados, incluindo aves e roedores. São semeadores, atuando na dispersão de sementes dos frutos do Cerrado, como a lobeira (Solanum lycocarpum), o marmeleiro (Alibertia edulis) e o jerivá (Syagrus romanzoffia-na). São lobos solitários, com territórios amplos divididos entre um macho e uma fêmea, onde o casal se encontra no período fértil da fêmea. Apesar de ser um animal relativamente comum nos zoológicos brasileiros, as po-pulações naturais se encontram ameaçadas, principalmente pela perda do habitat natural do Cerrado, por atropelamento em estradas, caça não con-trolada e propagação de doenças de cães domésticos, devido às tendências de expansão das monoculturas, ao aumento da malha viária e ao proces-so de urbanização crescente. Problemas ambientais muito conhecidos na bacia hidrográfica do rio São Francisco, onde o lobo-guará ainda pode ser visto com alguma frequência, sobretudo na região do alto curso do rio.

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TEXTO: GEORGE OLAVO

ILUSTRAÇÃO: HIRAM GAMA

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