Revista Educação em Questão

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v. 34, n. 20, jan./abr. 2009

Revista Educao em QuestoDepartamento e Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRNISSN | 0102-7735

Natal | RN, v. 34, n. 20, jan./abr. 2009

Revista Educao em QuestoPublicao Quadrimestral do Departamento de Educao e do Programa de Ps-Graduao em Educao Universidade Federal do Rio Grande do NorteReitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Jos Ivonildo do Rgo

Diretora do Centro de Cincias Sociais Aplicadas

Ana Lcia Assuno Arago

Marcos Antonio de Carvalho LopesCoordenadora do Programa de Ps-Graduao em Educao

Chefe do Departamento de Educao

Marlcia Menezes de Paiva

Comit Cientfico Ana Maria Iorio Dias | UFC Ana Maria Magalhes Teixeira de Seixas | Univ. de Coimbra Antnio Cabral Neto | UFRN Arden Zylbersztajn | UFSC Betnia Leite Ramalho | UFRN Carlos Monarcha | UNESP | Araraquara Clermont Gauthier | Laval | Quebec Elizeu Clementino de Souza | UNEB Joo Maria Valena de Andrade | UFRN Louis Marmoz | Caen | Frana Lucdio Bianchetti | UFSC Maria Arisnete Cmara de Morais | UFRN Maria da Conceio Ferrer Botelho Sgadari Passegi | UFRN Maria Piedade Pessoa de Vaz Rabelo | Univ. de Coimbra Mariluce Bittar | UCDB Marly Amarilha | UFRN Nelson de Luca Pretto | UFBA Natlia Ramos | Univ. Aberta de Lisboa Telma Ferraz Leal | UFPE Conselho Editorial Marta Maria de Arajo | Editora Responsvel Arnon Alberto Mascarenhas de Andrade Antnio Cabral Neto Claudianny Amorim Noronha Tatyana Mabel Nobre Barbosa Bolsistas da Revista Aline Vanessa da Silva Alves Fernanda Mayara Sales de Aquino Capa Vicente Vitoriano Marques Carvalho

Colaborador Grfico Antnio Pereira da Silva Jnior Reviso de Linguagem Magda Silva Neri Affonso Henriques da Silva Real Nunes Editorao Eletrnica Marcus Vincius Devito Martines Indexadores Bibliografia Brasileira de Educao | BBE | CIBEC | MEC | INEP EDUBASE | Universidade Estadual de Campinas Fundao Carlos Chagas | www.fcc.org.br WebQualis | www.qualis.capes.gov.br GeoDados | geodados.pg.utfpr.edu.br Indce de Revistas de Educacin Superior e Investigacin Educativa | IRESIE | Mxico D.F Sistema Regional de Informacin en Lnea para Revistas Cientficas da Amrica Latina, el Caribe, Espaa y Portugal | LATINDEX

Poltica EditorialA Revista Educao em Questo um peridico quadrimestral do Departamento e Programa de PsGraduao em Educao da UFRN, com contribuies de autores do Brasil e do exterior. Publica trabalhos de Educao sobre a forma de artigo, relato de pesquisa, resenha de livro e documento histrico.Diviso de Servios Tcnicos Catalogao da Publicao na Fonte | UFRN Biblioteca Central Zila Mamede | CCSA Revista Educao em Questo, v. 1, n. 1 (jan./jun. 1987) Natal, RN: EDUFRN Editora da UFRN, 1987. Descrio baseada em: v. 34, n. 20, jan./abr. 2009. Periodicidade quadrimestral ISSN 0102-7 735 1. Educao Peridico. I. Departamento de Educao. II. Programa de Ps-Graduao em Educao. CDD 370 CDU 37 (05)

Revista Educao em QuestoUniversidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Cincias Sociais Aplicadas Campus Universitrio | Lagoa Nova | Natal | RN CEP | 59078-970 | Fone | Fax (084) 3211-9220 E-mail | [email protected] Site | www.revistaeduquestao.educ.ufrn.br Financiamento | MEC | CAPES | PROESP Tiragem | 500 exemplares

RN | UF | BCZM

2009/12

Sumrio

SumrioSummary

Editorial Artigos Diversidade cultural, educao e comunicao intercultural polticas e estratgias de promoo do dilogo intercultural Natlia Ramos Os estudos culturais e a questo da diferena na educao Anna Luiza Arajo Ramos Martins de Oliveira Os desafios da incluso no ensino regular: criana com autismo e caractersticas de hiperlexia Dbora Regina de Paula Nunes Jane Pinheiro de Lemos Favorecendo o desenvolvimento da conscincia fonolgica em alunos com deficincia com os recursos da informtica Leila Regina dOliveira de Paula Nunes

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Editorial Articles Cultural diversity, education and intercultural communication politics and strategies towards the promotion of intercultural dialogue Natlia Ramos Cultural studies and the question of difference in education Anna Luiza Arajo Ramos Martins de Oliveira Challenges of inclusion in regular classroom settings: child with autism and characteristics of hyperlexia Dbora Regina de Paula Nunes Jane Pinheiro de Lemos Favoring the development of phonological awareness in students with disabilities using computerized resources Leila Regina dOliveira de Paula Nunes

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Interao do aluno com paralisia Interaction of a cerebral palsy student without cerebral sem oralidade frente speech before different interlocutors a diferentes interlocutores 102 Dbora Deliberato Dbora Deliberato Vanessa Aparecida Alves Santos Vanessa Aparecida Alves Santos

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Sumrio

Os limites para a incluso de pessoas The limits for the inclusion of people with com deficincia intelectual na escola intellectual disabilities in regular school regular: entre o que falam as mes 127 the discourses of mothers and teachers e o que falam as professoras Dulciana de Carvalho Lopes Dantas Dulciana de Carvalho Lopes Dantas Lcia de Arajo Ramos Martins Lcia de Arajo Ramos Martins O ensino de procedimentos de Teaching procedures of cognitiveautocontrole cognitivo-comportamental behavioral self-control as a strategy como estratgia para incluso 151 for social/educational inclusion of social/educacional de alunos students involved in indiscipline acts envolvidos em atos de indisciplina Francisco de Paula Nunes Sobrinho Francisco de Paula Nunes Sobrinho The deaf student in regular classroom: O aluno surdo em classe regular: teachers principles and practices concepes e prticas de professores 170 Francileide Batista de Almeida Vieira Francileide Batista de Almeida Vieira Lcia de Arajo Ramos Martins Lcia de Arajo Ramos Martins Representaes sobre o Eu e o Representation on the Self and the Outro em ambiente hospitalar Other in the hospital setting 194 Kssya Christinna Oliveira da Silva Kssya Christinna Oliveira da Silva Ivanilde Apoluceno de Oliveira Ivanilde Apoluceno de Oliveira Leitura nos livros didticos: a Reading in textbooks: the identificao de pontos de vista em identification of points of view in textos escritos como objeto de ensino written texts as a teaching object 220 Telma Ferraz Leal Telma Ferraz Leal Ana Carolina Perrusi Brando Ana Carolina Perrusi Brando Mirela Rejane Pereira Torres Mirela Rejane Pereira Torres Documento Paper

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Decreto-Lei n.8.529 de 2 de janeiro de Decree-Law n. 8.529 of january, 2th, 1946 244 1946. Lei Orgnica do Ensino Primrio Organic Law of the Elementary Education Normas gerais para publicao na General rules for publications in the 256 Revista Educao em Questo Education in Question Magazine

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Editorial

EditorialEditorial

O ensino superior, na primeira dcada do sculo XXI, foi objeto de dois importantes eventos: um de carter regional; outro, internacional. O primeiro foi a Conferncia Regional de Educao Superior na Amrica Latina e no Caribe (CRES), realizada de 4 a 6 de junho de 2008, na cidade de Cartagena de ndias, Colmbia, com o apoio do Instituto Internacional da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) para a Educao Superior na Amrica Latina e no Caribe (IESALCUNESCO) e do Ministrio de Educao Nacional da Colmbia, com a colaborao dos governos do Brasil, Espanha, Mxico e da Repblica Bolivariana da Venezuela. Nessa Conferncia, procurou-se delinear as principais demandas da Amrica Latina e do Caribe para a educao superior, objetivando a preparao para Conferncia Mundial de Educao Superior, a ser realizada no ano 2009, em Paris. O debate ocorrido nessa Conferncia realou a necessidade de consolidao, da expanso e da crescente qualidade e pertinncia da Educao Superior na regio. Nesse evento, foi firmado o entendimento de que a Educao Superior um bem pblico social, um direito humano e universal e um dever do Estado, posicionamento esse contestado pelos representantes do capital privado na educao, presentes na sobredita Conferncia. No documento resultante da referida Conferncia Regional de Educao Superior encontra-se um apelo dirigido s autoridades e aos membros das comunidades educativas de seus pases para que considerem, na formulao e na implementao das polticas educacionais, as demandas e as linhas de ao formuladas por esse frum, sobre as prioridades que a Educao Superior deve assumir no mbito da regio. O outro evento a Segunda Conferncia Mundial sobre a Educao Superior, organizada pela UNESCO e que acontecer, em Paris, no perodo compreendido entre 6 a 8 de julho de 2009, tendo como tema a nova dinmica da educao superior. Os organizadores da conferncia pretendem realizar um balano das

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Editorial

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mudanas ocorridas na educao superior e na pesquisa cientfica desde a ltima edio do encontro, ocorrida, em 1998, e, com base nesse balano, formular uma plataforma global de pensamento inovador para esse nvel educacional. Propem, tambm, examinar a dinmica que configura o desenvolvimento da educao superior e determinar quais as aes para facilitar o alcance dos objetivos nacionais em matria de desenvolvimento e satisfazer as aspiraes individuais das pessoas. preciso ficar atento porque nesse evento certamente o setor privado recolocar na agenda o debate sobre o posicionamento assumido na conferncia da Colmbia em que demarca que a educao superior um bem pblico social, um direito humano e universal e um dever do Estado. Ademais, nesse evento ser debatida a possibilidade de a educao superior ser ou no considerada como servio passvel de comercializao no mbito global na Organizao Mundial do Comrcio (OMC), rgo que governa as relaes comerciais entre as naes. necessrio firmar posio de que a educao deve ser um bem pblico e no um servio a ser regulado pelo mercado como defendem, desde a dcada de 1990, pases como Estados Unidos, Nova Zelndia e Austrlia. Essas conferncias recolocam o tema relativo educao superior na agenda do debate e reafirmam a necessidade de se conceberem polticas capazes de adequar esse nvel de ensino s novas demandas contextuais incluindo, dentre outras caractersticas, uma reorganizao da produo com desdobramentos na organizao do trabalho e na atividade profissional, a intensificao do processo de globalizao e o reordenamento do papel do Estado. Esse processo de reestruturao da produo em escala mundial, em novas bases, passa a condicionar a educao em todos os seus nveis, porm observa-se uma maior ateno no que concerne ao ensino superior, em decorrncia do papel que este pode desempenhar nesse novo cenrio de uma economia globalizada. Exige-se, desse modo, a necessidade de graus mais elevados de qualificao e de flexibilizao da formao do trabalhador em todos os nveis de atuao. Argumenta-se, desse modo, que os pases necessitam educar uma maior proporo de seus jovens em nveis mais altos uma vez que, na atualidade, possuir um grau universitrio requisito bsico para muitos trabalhos especializados. Porm, estudos tm evidenciado que a baixa qualidade dos conhecimentos transmitidos pelas instituies de ensino superior vem se constituindo em graves dificuldades emRevista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 5-8, jan./abr. 2009

Editorial

relao competitividade entre os pases, fato que constitui um problema para as naes em desenvolvimento. A necessidade de os estados nacionais empreenderem aes para democratizarem o acesso da populao a esse nvel de ensino apresenta-se, portanto, como uma necessidade imperativa, particularmente nos pases da Amrica Latina que tm uma dvida histrica com a formao graduada de seus jovens. Segundo dados da UNESCO (2008), nessa regio, somente 24% da populao com idade para frequentar uma instituio de ensino superior est efetivamente inscrita porcentagem que alcana 68% na sia e 87% na Europa. No Brasil, esse percentual de apenas 13%. O estudo revelou, tambm, que a porcentagem do Produto Interno Bruto investido na educao insuficiente, considerando o papel-chave da educao superior no desenvolvimento nacional. Evidenciou, tambm, o estudo que, na regio latino-americana, h cerca de 9.000 centros de ensino superior, mas somente 13,8% das universidades utilizam um sistema de avaliao que garante a qualidade de seu ensino. Tal realidade recoloca a centralidade do papel do poder pblico na definio de polticas de estado no que concerne democratizao do acesso de setores cada vez mais amplos da populao ao ensino superior e na formulao de marcos regulatrios para disciplinar a qualidade da educao ofertada, seja por entes pblicos ou privados. Essa defesa est assentada na compreenso de que a democratizao da educao superior deve considerar, pelo menos, trs dimenses relevantes, sem as quais no se pode falar em democratizao desse nvel de ensino: universalizao do acesso, construo de padres competitivos de qualidade cientfica e humana e relevncia social. No Brasil, essas trs dimenses da democratizao tm enfrentado problemas visto que o Estado brasileiro, historicamente, no foi capaz de desenvolver polticas mais consistentes para equacionar o acesso dos jovens ao ensino superior. Isso resultou em uma situao em que, atualmente, apenas uma pequena quantidade de jovens, na faixa de 18 a 24 anos de idade (13%), frequente esse nvel de ensino e, o mais grave, que a grande maioria (79%) desse contingente est matriculada em instituies privadas, demarcando, desse modo, uma ausncia de polticas pblicas para atender a essa camada da populao. Embora, nos ltimos anos, tenham-se verificado, no pas, algumas aes para redimensionar esse quadro (REUNI, por exemplo), h consenso de que elas no sero capazes deRevista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 5-8, jan./abr. 2009

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Editorial

produzir resultados suficientes para alterar, significativamente, esse quadro visto que no se constituem polticas de estado e esto pautadas em uma lgica produtivista que esgara o verdadeiro papel das instituies de ensino superior. Espera-se, pois, que os debates e os encaminhamentos que sero delineados, como resultados da Conferncia Mundial sobre a Educao Superior, reafirmem a centralidade do poder pblico na oferta desse nvel de educao e possam influir na formulao de polticas consistentes em nvel dos Estados nacionais, notadamente em pases como o Brasil que necessita fazer investimentos mais robustos para construir um novo patamar de poltica voltada para a educao superior. Esse um debate necessrio e deve ser enfrentado por todos os setores sociais e, particularmente, pela academia que tem uma responsabilidade de produzir anlises pertinentes para embasar alternativas de polticas pblicas no campo da educao. E, nesse sentido, cabe demarcar a importncia da Revista Educao em Questo que vem h dcadas contribuindo com o debate e com o acmulo de conhecimentos em todos os ramos da rea de educao.

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Antnio Cabral NetoConselho Editorial da Revista Educao em Questo

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Artigo

Diversidade cultural, educao e comunicao intercultural polticas e estratgias de promoo do dilogo interculturalCultural diversity, education and intercultural communication politics and strategies towards the promotion of intercultural dialogue

Natlia Ramos Universidade Aberta | Lisboa

ResumoAs problemticas da diversidade cultural e da interculturalidade so da maior actualidade no contexto do mundo globalizado, estando no centro das preocupaes dos Estados, dos profissionais e da populao, em geral. Elas implicam um novo reposicionamento metodolgico e epistemolgico em nvel da pesquisa, interveno e formao, colocando novos desafios s sociedades e polticas do sculo XXI, no que diz respeito gesto da diversidade cultural, das identidades, dos conflitos, da educao e da comunicao interculturais, s interaces entre o eu e o outro, entre o universal e o singular. So apresentados e analisados alguns princpios, estratgias e polticas de: acolhimento e promoo da diversidade cultural; aquisio de competncias pedaggicas, comunicacionais, interculturais e de promoo de valores democrticos; gesto das identidades mltiplas e da diversidade cultural; reforo da cidadania, da interculturalidade e da participao de grupos subrepresentados ou em excluso na sociedade; criao de espaos de dilogo intercultural nos diferentes setores da sociedade; promoo da comunicao e dilogo intercultural nas relaes individuais, intergrupais e interculturais. Palavras-chave: Diversidade cultural. Interculturalidade. Educao e comunicao intercultural.

AbstractThe themes of cultural diversity and interculturality are a great deal nowadays in the context of a global world, being among the central concerns of the States, the professionals and the population, in general. These themes imply a new methodological and epistemological repositioning, in terms of research, intervention and training, which create new challenges to societies and politics of the 21st century. Such challenges are associated to the need to manage cultural diversity, identities, conflicts, and intercultural education and communication. They also involve the interaction between the Self and the others, and between the universal and the singular. Some principles, strategies and politics are presented in this article related to: the acceptance and promotion of cultural diversity; the acquisition of pedagogical, communicational, and intercultural competences; the acquisition of competences to promote democratic values; the management of multiple identities and cultural diversity; the reinforcement of citizenship, interculturality, and participation of underrepresented or excluded groups in society; the creation of contexts of intercultural dialogue in the different sectors of society; the promotion of communication and intercultural dialogue in individual, inter-group and intercultural relations. Keywords: Cultural diversity. Interculturality. Education and intercultural communication.

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Artigo

IntroduoO aumento da globalizao, dos fluxos migratrios e da multiculturalidade faz com que os Estados e as diferentes instncias sociais sejam confrontadas com uma grande heterogeneidade lingustica e cultural dos seus utentes, profissionais e cidados, o que exige destas a adoo de prticas, de estratgias e de polticas adequadas para atender a essa nova realidade social, cultural, educacional, comunicacional e poltica. No mundo contemporneo, as sociedades so confrontadas por um nmero crescente de populaes estrangeiras, originrias de diferentes culturas e portadoras de outros costumes e lnguas, que afluem, sobretudo s cidades e que partilham espaos, atividades e o quotidiano. Na atualidade, segundo dados das Naes Unidas, uma, em cada trinta e cinco pessoas, migrante internacional, constatando-se que, perto de 200 milhes de pessoas, vivem, hoje, fora dos seus pases de origem, migrando essencialmente para as cidades. Com efeito, tanto a globalizao e a mobilidade das populaes, como a urbanizao, aumentaram sem precedentes os contactos entre as culturas e a coabitao entre diferentes grupos tnico-culturais e modos de vida contribuindo, assim, para a multi/interculturalidade das sociedades, particularmente das cidades, para a interdependncia social e econmica, vindo colocar srios desafios gesto da diversidade cultural, comunicao intercultural e coabitao das vrias culturas.(LAVALLEE; OUELLET; LAROSE, 1991; LABAT & VERMES, 1994; WIEVIORKA, 1996). Nas sociedades atuais, a crescente complexidade e diversidade tem repercusses sobre as polticas e estratgias dos diferentes sectores e agentes para dar resposta aos problemas do planeamento e governabilidade das cidades e s necessidades e aspiraes dos seus cidados. A cidade, onde reside actualmente mais de metade da populao mundial (65%), e ser cada vez mais espao de pluralismo cultural e [...] tem de promover e respeitar as esperanas e os medos dos seus cidados. (RYKWERT, 1988, p. 3). A cidade congrega unidade e diversidade; lugar de convergncia e divergncia; espao de refgio, de proteco, de libertao, de bem-estar, de unio, de dilogo sendo, igualmente, espao de conflito, de ameaa, de violncia, de opresso, de discriminao e de doena.

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Artigo

A gesto da diversidade cultural, nas zonas urbanas, constitui uma das grandes preocupaes do Conselho da Europa e da Comisso Europeia, os quais projectaram para 2008 o programa designado Cidades Intercultural, de modo a fazerem da cidade um espao aberto e plural, um lugar privilegiado de dilogo intercultural e de cidadania, de concretizao de sonhos e esperanas, indo ao encontro de Levi-Strauss quando afirma: A cidade natureza e cultura, indivduo e grupo, vivida e sonhada: ela constitui o facto humano por excelncia. (LEVI-STRAUSS, 1973, p. 15). Essas novas realidades sociais, culturais e urbanas exigem novos modelos conceptuais e novas polticas e estratgias de interveno, baseados numa perspectiva global e multi/interdisciplinar centrada nos indivduos, nas relaes sociais e nos processos ambientais, culturais e polticos, capazes de gerir a diversidade cultural e de promover e harmonizar os direitos humanos e culturais, com as necessidades, qualidade de vida e bem-estar psicolgico e social dos indivduos, das famlias e dos grupos, maioritrios ou minoritrios, nacionais ou migrantes. Como estipula a Conferncia das Naes Unidas do Cairo sobre Populao e Desenvolvimento, no seu artigo 12: Os pases devero garantir a todos os migrantes os direitos humanos fundamentais integrados na Declarao Universal dos Direitos Humanos. (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1994, p. 6). O pluralismo cultural e as relaes interculturais fazem actualmente parte e integraro cada vez mais, o contexto social, econmico, poltico, religioso, educativo, meditico e sanitrio. A diversidade cultural integra e integrar, cada vez mais, todos os contextos da esfera pblica e essa diversidade cultural dever ser considerada como destaca a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO, 2001, p. 23), na Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural, artigo 3: [] uma das fontes de desenvolvimento, entendido no s como crescimento econmico, mas tambm como meio de acesso a uma existncia intelectual, afectiva, moral e espiritual satisfatria. A crescente diversidade cultural e interculturalidade, nas sociedades actuais, faz com que as mulheres e os homens do sculo XXI mantenham mltiplas pertenas e redes transnacionais, desenvolvam novas formas de relaes sociais e interculturais e novas prticas de cidadania, tenham conquistado

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novos direitos, mas conheam, igualmente, novos conflitos, novos problemas identitrios e de comunicao e novas formas de discriminao e de excluso.

A diversidade cultural ao nvel mundial e urbanoO crescente desfasamento entre nveis de desenvolvimento e entre estruturas demogrficas de pases ricos e pases pobres, os conflitos armados e polticos, tm originado um nmero cada vez maior de migrantes e de refugiados que afluem essencialmente s cidades. Actualmente, aproximadamente duas centenas de milhes de homens e mulheres so imigrantes legais ou ilegais e refugiados, crescendo esses fluxos a um ritmo mais rpido do que o crescimento da populao mundial. Os fluxos migratrios tm vindo a aumentar atingindo todos os continentes e os diferentes setores da vida pblica, prevendo-se que, em 2050, as migraes internacionais atinjam os 230 milhes. O nmero de migrantes internacionais quase triplicou desde 1970. Em relao Unio Europeia (UE), o nmero de migrantes provenientes de pases extra europeus aumentou 75% desde 1980. vlido assinalar que, perto de 9% de migrantes do mundo, so refugiados 16 milhes de pessoas. (PNUD, 2004). S em 2005, os fluxos migratrios nos pases da OCDE, aumentaram 11% relativamente a 2004. Nesses pases, os fluxos de estudantes estrangeiros tambm aumentaram mais de 40% desde 2000, assim como os fluxos de trabalhadores qualificados. (OCDE, 2007). No que diz respeito a Portugal, pas tradicional de emigrao (estimando-se que o nmero de portugueses e de descendentes no estrangeiro perto de 5 milhes) este, tem vindo, igualmente, a reforar o seu carcter de pas de imigrao.(RAMOS, 2004). A partir sobretudo dos anos 70, Portugal viu-se confrontado com o fenmeno da imigrao, a populao imigrante em Portugal representando em 2007 perto de 5% da populao residente (435.000 estrangeiros), (SEF, 2007), concentrada nas principais cidades: Lisboa, Faro, Setbal, Porto, Aveiro, Coimbra e Braga. A comunidade estrangeira mais numerosa em Portugal a brasileira (66.354) seguida das seguintes comunidades: cabo-verdiana (63.925); ucraniana (39.480); angolana (32.728); guineense (23.733); do Reino Unido (23.608) romena (19.155); espanhola (18.030); moldava (14.053).Revista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 9-32, jan./abr. 2009

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Dados do Ministrio da Educao salientam que, em Portugal, no ano letivo de 2003/2004, estavam inscritas nas escolas portuguesas, 81.470 crianas de origem estrangeira; a grande maioria desses alunos imigrantes concentrava-se essencialmente em nvel do ensino bsico. Tambm em Portugal os dados do Observatrio Portugus da Cincia e do Ensino Superior (OCES), revelam que 17.594 estrangeiros estavam inscritos no ensino superior pblico e privado portugus no ano lectivo 2004/2005, sendo a maioria de Angola (4.258), Cabo Verde (3.835) e Brasil (1.796). De acordo com o OCES, o nmero de estudantes estrangeiros inscritos no ensino superior tem aumentado em Portugal nos ltimos anos, registrando um crescimento de 65,7%, entre os anos letivos de 1999/2000 e 2004/2005. vlido destacar, que no mundo, perto de 300 milhes de pessoas, distribudas por mais de 70 pases, pertencem a grupos indgenas, representando cerca de 4.000 lnguas. Na Amrica Latina, por exemplo, os 50 milhes de indgenas constituem 11% da populao da regio. Igualmente, 152 pases do mundo tm minorias tnicas ou grupos religiosos significativos. (PNUD, 2004). Tambm a Unio Europeia, projecto poltico envolvendo 27 pases e 500 milhes de habitantes com histria e lngua diferentes (26 lnguas) e identidades sociais e culturais fortes, constitui um grande desafio poltico, cultural, educacional, comunicacional e, em particular, um desafio diversidade cultural e ao dilogo intercultural. A diversidade intercultural e a gesto da intercultualidade, nomeadamente nas cidades, esto no centro das preocupaes nacionais e internacionais. A preocupao pelo que se passa nas cidades est presente em vrios organismos internacionais, tais como a UNESCO, o Conselho da Europa, a Comisso Europeia e a Organizao Mundial de Sade (OMS). Mais de metade da populao mundial habita, hoje, em zonas urbanas e sub-urbanas. Sete (7) cidades do mundo alojam mais de vinte (20) milhes de indivduos; vinte e cinco (25) cidades constituem espao de habitao para mais de dez (10) milhes de cidados; perto de quatrocentos e setenta (470) cidades abrigam mais de um (1) milho de habitantes. Prev-se que, em 2030, as cidades do mundo em desenvolvimento acolham 80% do total da populao urbana.

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O Conselho da Europa e a Comisso Europeia insistem em que necessrio promover a Cidade Aberta e Intercultural. Outros autores insistem na necessidade de promover a diversidade cultural nas cidades ditas globais, de modo a responder s novas dinmicas e necessidades das sociedades actuais. (SASSEN, 2001). O atual aumento da diversidade cultural e populacional das cidades deve-se, grandemente, ao nmero crescente de populaes migrantes que afluem s cidades. As cidades ao nvel planetrio acolhem cada vez mais indivduos migrantes, oriundos de diversos espaos geogrficos e universos culturais. Por exemplo, na cidade de Miami, 59% da populao nasceu no estrangeiro; quase metade da populao das cidades de Toronto (44%), de Los Angeles (41%), de Vancouver (37%) e de Nova Iorque (36%) tambm de origem estrangeira; um quarto da populao das cidades de Singapura (33%), Sydnei (31%) e Londres (28%) imigrante. (PNUD, 2004). A sociedade, em particular as cidades, so hoje e sero, cada vez mais, espaos multiculturais, por excelncia, em que diferentes grupos populacionais desenvolvem as suas actividades e relaes, exprimem os seus traos culturais e modos de vida e reinventam as suas identidades. Essa multiculturalidade alarga e diversifica o mbito de aco do pluralismo na esfera do planeamento e gesto aos diferentes nveis, sectores e polticas. O acolhimento e a integrao das populaes estrangeiras nas sociedades receptoras, em particular na cidade, onde se concentram ao nvel residencial e laboral, esto relacionados com um conjunto complexo e variado de factores, onde se destacam factores psicolgicos, socioeconmicos, culturais e polticos, que reenviam ao prprio estatuto social, econmico e jurdico do indivduo de origem estrangeira na sociedade de acolhimento, s suas redes sociais e de suporte e s atitudes e polticas da sociedade de acolhimento. (RAMOS, 2004, 2008). A migrao implica, assim, a adaptao mas tambm a incorporao pelo indivduo de uma cultura, lngua, regras culturais e sociais diferentes, tendo o imigrante de desenvolver estratgias de adaptao que lhe permitem resolver as dificuldades relacionadas com a condio de imigrante e de aculturao, ou seja, com as relaes culturais entre a sociedade de acolhimento e a sua cultura de origem.

Revista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 9-32, jan./abr. 2009

Artigo

Como destaca Giddens (1991, p. 24) [...] a diferena coloca aos indivduos uma complexidade de escolhas. A aculturao implica a aprendizagem de uma nova cultura, assim como escolhas por vezes difceis entre o que o imigrante gostaria de manter e o que tem de abandonar dos hbitos e da cultura de origem. Esse conflito devido coexistncia de dois cdigos culturais, por vezes, contraditrios e incompreensveis e impossibilidade em estabelecer mediaes entre dois universos diferentes, assim como, incapacidade em lidar com as exigncias do ambiente podero ter efeitos desorganizadores no comportamento e estarem na origem de distrbios psicopatolgicos, dificuldades de adaptao e stresse de aculturao. (RAMOS, 2004, 2006, 2008). Entre as comunidades de imigrantes e de minorias tnicas, certos traos culturais, tais como, o grau de coeso familiar e do grupo, o apoio/ suporte social, as redes de solidariedade grupal, o sentimento de pertena identitria e os valores religiosos e espirituais, so elementos protectores contra o isolamento, a doena mental e o stresse. Se importante ter em conta o nvel de integrao e as reaces de adaptao dos migrantes s novas condies espaciais e socioculturais, torna-se igualmente importante analisar as caractersticas da sociedade de acolhimento, nomeadamente, as condies sociais, econmicas e polticas dominantes e factores como a xenofobia, a discriminao e o preconceito, os quais contribuem para o desencadear e manuteno da excluso e do stresse psicolgico e social. (BURKE, 1984). A crescente multiculturalidade que se verifica nos diferentes pases, espaos, sobretudo urbanos e sectores da vida pblica tem conduzido a esforos na reformulao de estratgias e polticas com o objectivo de melhorar a educao, a integrao social, a qualidade de vida, o acesso aos servios pblicos e as relaes interculturais entre os diferentes grupos que coabitam no mesmo espao. (WIEVIORKA, 1996; KYMLICKA, 2001; WOLTON, 2003).

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Perspectivas da diversidade cultural e da interculturalidadeA UNESCO tem-se preocupado em reconhecer a igualdade de todas as culturas e em definir a diversidade cultural, tendo esta se constitudo uma questo poltica e um conceito institucionalizado de poltica internacional.Revista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 9-32, jan./abr. 2009

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A diversidade cultural reconhecida pela UNESCO (2001, 2005, 2007) como uma caracterstica inerente humanidade, um patrimnio comum e uma fonte de um mundo mais rico e diversificado que alarga a possibilidade de escolhas e fortalece as capacidades e os valores humanos. A adoo pela UNESCO (2005, 2007) da Conveno para a Proteco e Promoo da Diversidade das Expresses Culturais representa uma etapa fundamental para a emergncia do direito cultural internacional e para o reconhecimento da diversidade cultural como fonte de justia, de igualdade e de paz. Essa Conveno constitui um instrumento jurdico internacional, j que [...] pela primeira vez na histria do direito internacional, a cultura encontra o seu lugar na agenda poltica, com o objectivo de humanizar a globalizao. (UNESCO, 2007, p. 6). Essa Conveno visa criar condies que permitam s culturas desenvolverem-se e interagirem abertamente de modo a um enriquecimento mtuo, pertencendo aos Estados, em colaborao com a sociedade civil, de intervirem atravs de aces concretas a diferentes nveis: em nvel nacional (atravs dos governos); em nvel internacional (atravs do controlo colectivo dos Estados signatrios); em nvel nacional e transnacional (atravs da sociedade civil. (UNESCO, 2007). A experincia da diversidade, da alteridade e da complexidade esto no cerne da interculturalidade, implicando um novo paradigma e abordagem. O paradigma intercultural no mbito da diversidade cultural vem desafiar os paradigmas tradicionais em nvel educacional, social e sanitrio e colocar novos desafios tericos e metodolgicos em nvel da pesquisa, da interveno e da formao. A abordagem intercultural implica vrias constataes e perspectivas das quais, em sntese, destacamos algumas, nomeadamente: uma constatao de ordem sociolgica, tendo em conta que a maioria das nossas sociedades so e sero cada vez mais multiculturais; uma opo de ordem ideolgica, j que a multi/interculturalidade , potencialmente, uma riqueza para o conjunto da sociedade;

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uma viso estratgica, pois, para passar do multiculturalismo ao interculturalismo, torna-se necessrio promover a relao entre as culturas, no entanto sem anular a identidade de cada uma delas; uma perspectiva muiti/interdisciplinar, na medida em que os objectos do domnio intercultural so objectos complexos, plurais, heterogneos e pluridimensionais, que no podem ser reduzidos a uma nica abordagem disciplinar; uma perspectiva sistmica e multidimensional, necessria a uma viso global, dinmica e interaccionista da complexidade e da diversidade e construo de um pluralismo comum, implicando o reconhecimento ao mesmo tempo, dos indivduos e das culturas e a integrao das representaes e das prticas educacionais nos contextos ecolgicos, familiares, socioeconmicos, culturais e polticos em que esto inseridas; um processo dinmico e dialctico, onde o intercultural implica a tomada de conscincia da alteridade e da diversidade, do universal e do particular, das identidades individuais e colectivas, das interaces entre os indivduos e os grupos e ainda das relaes entre o eu e o outro; um novo paradigma conceptual e epistemolgico, comum s diferentes reas disciplinares que tratam a complexidade e a pluralidade; uma perspectiva psicossocial e pedaggica, visto que as problemticas interculturais implicam o desenvolvimento de competncias culturais, sociais, pedaggicas, comunicacionais, de competncias individuais e de cidadania de todos os grupos, que permitam interaces sociais harmoniosas entre os indivduos e as culturas e que promovam a consciencializao cultural, a comunicao e o dilogo intercultural e o funcionamento democrtico das sociedades; uma perspectiva sociopoltica, dado que o interculturalimo no , somente, um objectivo em si mas , tambm, um instrumento para promover a coeso social, o exerccio da cidadania, a igualdade

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de oportunidades e uma integrao adequada de todos, grupos minoritrios e maioritrios. Como salienta Clanet:A interculturalidade o conjunto dos processos psquicos, relacionais, grupais, institucionais [] originados pelas interaces das culturas, numa relao de trocas recprocas e numa perspectiva de salvaguarda de uma relativa identidade cultural dos parceiros em relao. (CLANET, 1993, p. 21).

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A noo de interculturalidade implica conceber a cultura numa perspectiva antropolgica, como universo de significaes particulares a um grupo, sendo importante conceber [...] a cultura como relao particular ao mundo de um determinado grupo, o que inclui um conjunto de normas, de valores, de modos de vida, de ritos, assim como uma lngua que o grupo transmite, elementos que so constitutivos da sua identidade cultural. (CLANET, 1993, p. 108). A cultura assegura uma funo simblica que se transmite atravs de mitos, de ritos e de crenas (MAUSS, 1950) e constitui [...] um conjunto de sistemas simblicos, em primeiro lugar dos quais se situam a linguagem, as regras matrimoniais, as relaes econmicas, a arte, a cincia e a religio.(LVISTRAUSS, 1950, p. 265). Os indivduos e os grupos partilham com os outros a sua herana cultural, herana que transmitida de gerao em gerao e aprendida atravs de experincias formais e informais ao longo do ciclo de vida. Para alm da necessidade de compreenso da cultura dos vrios grupos, importante compreender a cultura em si, a noo de cultura humana que, para Devereux, dever ser considerada [...] como uma experincia vivida, ou seja, a maneira como cada indivduo vive e aprende a sua cultura tanto em estado de sade mental, como em estado de desordem. (DEVEREUX, 1977, p. 81). O intercultural implica relao, dilogo e comunicao entre as diferentes culturas, atravs dos indivduos e grupos portadores dessas culturas, em situaes interculturais diversas, ou seja, em situaes, na qual se encontram e interagem indivduos, grupos e instituies originrios de universos culturais diferentes. Implica, igualmente, uma perspectiva de relativismo cultural, no sentido de que todo o julgamento de valor relativo ao contexto cultural no seio

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do qual produzido. Contudo, se o relativismo cultural permite reduzir os efeitos do etnocentrismo, ou seja, a tendncia para emitir juzos sobre as outras culturas tendo a nossa cultura como referncia e como superior, o mesmo no poder ser utilizado como justificao de todos os comportamentos atribudos cultura. A apreenso da diversidade cultural, a perspectiva intercultural reenviam aos conceitos de reciprocidade, de complexidade (MORIN, 1990), de complementaridade (DEVEREUX, 1992) e de facto social total. (MAUSS, 1950). A abordagem intercultural exige: um esforo contra o etnocentrismo, os esteretipos e os preconceitos; um trabalho de descentrao e de meta conhecimento da sua prpria identidade cultural e do papel que ela desempenha na construo identitria, obrigando a reflectir sobre a sua cultura, sobre a sua prpria identidade cultural; a promoo de um novo modelo de comunicao, de negociao e de gesto da diversidade cultural; desenvolver processos reflexivos, modelos pedaggicos e competncias que contribuam na construo de sociedades democrticas e equitativas e de cidados e profissionais implicados e responsveis, que permitam fazer face s diferentes e complexas situaes que encontram na sociedade e no mundo do trabalho e que favoream o trabalho em equipe e inter/multidisciplinar e no apenas a aquisio de conhecimentos e a aprendizagem de uma simples profisso; promover a comunicao e a cooperao com os outros nas diferentes actividades humanas; aprender a dialogar com as outras culturas e aprender a conhecer o outro e as suas tradies e culturas; aceitar negociar e propor compromissos de modo a evitar comportamentos de rejeio ou de assimilao;

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aprender a construir projectos e a encontrar solues em conjunto para a resoluo de conflitos e para a compreenso das relaes interculturais e de interdependncia cada vez maiores. As problemticas do domnio intercultural exigem competncias de cariz psicolgico, social, cultural, pedaggico e comunicacional, baseadas na experincia da alteridade e da diversidade, no equilbrio entre o universal e o singular, implicando: o desenvolvimento de competncias individuais que permitam interaces sociais harmoniosas entre os indivduos e as culturas e que promovam uma atitude de descentrao, a qual permitir flexibilizar e relativizar princpios e modelos apresentados como nicos e universais e evitar muitos comportamentos de intolerncia e discriminao; o desenvolvimento de competncias interculturais, sobretudo lingusticas, comuniccionais e pedaggicas, que facilitem por um lado, a comunicao intercultural e a consciencializao cultural e, por outro lado, que promovam uma educao e ensino interculturalmente competentes e educadores e profissionais culturalmente sensveis e implicados; o desenvolvimento de competncias de cidadania, que tornem possvel o funcionamento democrtico das sociedades e das prprias instituies educativas e sociais. (RAMOS, 2001, 2002, 2003, 2007).

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Polticas e estratgias de promoo da comunicao e dilogo intercultural importante saber gerir e explorar as possibilidades oferecidas pela diversidade cultural em nvel urbano, promover o desenvolvimento psicossocial, econmico e habitacional e melhorar a qualidade de vida, atravs de projectos de cooperao e de troca de boas prticas relativamente gesto e planeamento, s actividades de mediao, s polticas sociais, educacionais e culturais e aos media.Revista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 9-32, jan./abr. 2009

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O contexto da globalizao e do multiculturalismo coloca desafios s relaes entre ns e os outros (TODOROV, 1988) e proporciona a abertura ao longnquo, diferena e a uma multiplicidade de escolhas. No que diz respeito aos media, estes constituem agentes centrais desse pluralismo de escolhas, permitindo o acesso a um universo muito variado de informaes e de meios, a partir dos quais so definidas e redifinidas identidades individuais. (GIDDENS, 1991). As autoridades pblicas e os actores sociais devero promover o dilogo intercultural nos espaos fsicos, na organizao da vida cvica e dos espaos urbanos, de forma a impedir o desenvolvimento de ghettos religiosos e tnico-culturais e a criar espaos onde os indivduos se possam encontrar e partilhar costumes culturais e religiosos. importante um paradigma de abordagem da diversidade cultural e dos grupos minoritrios, no como um problema, mas como um recurso de capacitao e revalorizao de identidades culturais, uma oportunidade de desenvolvimento individual, social e cultural e um processo de resilincia, fortalecendo as competncias dos indivduos e dos grupos para se consciencializarem dos seus direitos e deveres e para enfrentarem a mudana e o seu prprio desenvolvimento, integrao e destino de uma forma positiva e participativa. indispensvel desenvolver estratgias e intervenes psico-scio-educativas, para que os profissionais e os cidados possam situar-se e enfrentar, de uma forma competente, responsvel e reflectida, as diversidades individuais e culturais que encontram no seio da sociedade e das instituies, assim como os desafios e problemas que colocam a educao e a comunicao com indivduos com referncias lingusticas e culturais diferentes, desenvolvendo em todos, grupos maioritrios ou minoritrios: uma melhor compreenso da sua prpria cultura e das outras culturas; uma maior capacidade de comunicao com os membros da sua cultura ou pertencentes a outros grupos e culturas. Uma pedagogia da relao intercultural baseada na compreenso e na tolerncia, no reconhecimento do outro e da diversidade, dever ajudar cada um a determinar as suas prprias representaes, preconceitos e modelosRevista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 9-32, jan./abr. 2009

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do seu sistema de valores, assim como a identificar as representaes, preconceitos e sistemas de valores dos outros indivduos e grupos, constituindo um meio de aprendizagem do outro, de compreenso intercultural, de luta contra o etnocentrismo e a xenofobia. Os valores culturais so valores partilhados por um grupo cultural, constituindo matrizes cognitivas que orientam as opes, as aces e comportamentos. Os esteretipos, os preconceitos e o etnocentrismo constituem barreiras, filtros culturais comunicao intercultural (SAMOVAR & PORTER, 1988; LADMIRAL & LIPIANSKY, 1992; COHEN-MERIQUE, 1993) e esto na origem de conflitos e incompreenso entre grupos minoritrios e maioritrios. Para desenvolver a competncia na comunicao e nas relaes interculturais, importante a tomada de conscincia do grau de determinismo cultural dos nossos comportamentos, necessrio desenvolver a consciencializao cultural, a qual constitui um processo de aprendizagem cultural, que visa desenvolver a capacidade de analisar o mundo do ponto de vista de uma outra cultura e as competncias para reconhecer as diferenas e a pluralidade. (HOOPES, 1980). Esse autor identifica cinco domnios, em que uma conscincia insuficiente das diferenas culturais pode introduzir bloqueamentos e problemas na comunicao: Os esquemas perceptivos Cada indivduo interpreta o mundo diferentemente e os membros de um dado grupo cultural desenvolvem esquemas de percepo que diferem dos de outros grupos culturais, diferenas que podem originar dificuldades na comunicao. Considerando que a interiorizao dos esquemas perceptivos um processo que se elabora de uma forma inconsciente, somente quando somos confrontados com esquemas de percepo diferentes, na interaco com pessoas de outras culturas ou em situaes de aprendizagem intercultural, que possvel objectivar, consciencializar esse processo; Os princpios e valores culturais Subjacentes aos comportamentos dos membros de um grupo cultural esto os princpios e valores que so partilhados pelos membros de um grupo. Nesse sentido, temos tendncia a introduzir na comunicao os significados e interpretaes que correspondem aos nossos prprios esquemas de valores;

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Os modelos cognitivos Esses modelos diferem segundo os grupos culturais e eles influenciam a comunicao; Os comportamentos rotineiros A cultura conduz a rotinas, a hbitos comportamentais diferentes e influencia a maneira de nos comportarmos no espao e no tempo, em relao s crianas, aos adultos, aos pais, ao passado, ao presente e ao futuro; Os estilos de comunicao Cada cultura desenvolve o seu prprio estilo de comunicao. Em algumas culturas predominam as interaces verbais, enquanto que outras privilegiam o contacto e as interaces corporais. Tambm as lnguas reflectem e/ou adaptam-se ao estilo de comunicao e ao contexto. importante ter em conta as dimenses ocultas da comunicao e da cultura e as suas relaes ao contexto, ao tempo e ao espao, as quais tm influncia na comunicao intercultural. (HALL, 1971a, 1984). Para desenvolver as aptides de comunicao intercultural e facilitar o dilogo intercultural e a compreenso recproca entre indivduos, grupos e culturas, necessrio: desenvolver a compreenso da cultura, a compreenso dos processos e do funcionamento da cultura considerada, em si mesma, indiferentemente desta ou daquela cultura particular; reconhecer a parte de arbitrrio e de relatividade de toda a cultura e desenvolver os instrumentos e as atitudes para compreender e aceitar outras formas de culturas e outros grupos tnico-culturais; aprender a conhecer-se a si mesmo. importante aprender a identificar os seus sentimentos e atitudes. necessrio ter conscincia dos seus preconceitos e atitudes etnocntricas e egocntricas, do seu prprio estilo de comunicao, assim como ter conscincia de que no comunicamos somente atravs de actos conscientes e deliberados, mas tambm inconscientes e por toda a nossa forma de interagir com o meio envolvente; aprender a descobrir e a compreender o sentido de normas e valores, os quadros de referncia dos outros, aprender a conhecer os cdigos culturais respectivos, o que permitir estabelecer rela-

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es mais abertas e mais flexveis, podendo conduzir a contactos interculturais e a comunicaes mais diversificadas, enriquecedoras e satisfatrias; evitar julgamentos rpidos e superficiais, esteretipos e atitudes etnocntricas, o que permitir escutar e colocar-se no lugar do outro, de forma a tentar compreender as coisas do seu ponto de vista, o que permitir a descentrao. (PIAGET, 1970). A atitude e a prtica da descentrao do-nos a capacidade de relativizar e de visualizar uma situao atravs de vrias perspectivas e outros quadros de referncia, ajudando cada um a adoptar uma certa distncia em relao a si mesmo e conduz autorreflexo constituindo uma das atitudes que todos os profissionais, particularmente os educadores tm de trabalhar em permanncia; desenvolver a empatia, as capacidades empticas, o que implica a capacidade de se colocar no lugar do outro e o reconhecimento do Homem na sua individualidade e singularidade;

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dispor de tempo para comunicar, para compreender uma situao, estar atento s mensagens silenciosas da comunicao no-verbal, assim como aprender a respeitar os ritmos e os estilos de comunicao prprios a cada indivduo e a cada cultura; desenvolver estratgias e intervenes educativas interculturais, incluindo uma formao centrada sobre a informao, nomeadamente sobre a histria e a cultura dos diferentes grupos ou comunidades presentes no mesmo espao social. promover estratgias e intervenes educativo/pedaggicas interculturais, que conduzam descentrao, ao respeito e ao reconhecimento do Outro, das identidades, das diversidades, numa sociedade e educao cada vez mais plurais, heterogneas e globais. (ABDALHAH-PRETCEILLE, 1986; LYNCH, 1986, 1991; OUELLET, 1991; DASEN; PERREGEUX, 2002, OGBU, 1992; BANKS, 1993, 1997); implementar uma formao adequada dos profissionais, particularmente dos educadores e uma reviso dos programas e dos materiais didcticos;Revista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 9-32, jan./abr. 2009

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trabalhar os curricula e os materiais de aprendizagem, inclusive os que apresentam mensagens discriminatrias e racistas, utilizando-os como instrumentos de consciencializao intercultural; utilizar adequadamente os meios de comunicao social, em particular, os media audiovisuais; promover a aprendizagem de lnguas estrangeiras, respeitar a diversidade lingustica e as lnguas maternas. (OUANA, 1995). Em nvel da formao dos profissionais, o desenvolvimento de certos conhecimentos e competncias podero contribuir para melhor intervir no mbito multi/intercultural e na mediao das relaes humanas e interculturais, sendo importante: o desenvolvimento de competncias interculturais adaptadas aos diferentes contextos de interveno multicultural e variedade de grupos culturais; uma formao que explique e contribua na compreenso da diversidade cultural e dos preconceitos e esteretipos socialmente construdos em relao s minorias e s diferenas religiosas, geracionais, sociais, tnico/culturais e de gnero, de modo a combater os esteretipos e os preconceitos e a favorecer expectativas positivas em relao s minorias; o desenvolvimento de competncias lingusticas, relacionais e de comunicao com os alunos, os utentes, as famlias e as comunidades; um melhor autoconhecimento dos profissionais, sobretudo em nvel das suas prprias identidades culturais, dos seus preconceitos e esteretipos e das suas atitudes discriminatrias; os conhecimentos psicossociais e culturais sobre os diferentes grupos culturais e sobre as representaes e estilos de aprendizagem e de comunicao; uma melhor compreenso dos mecanismos psicossociais e factores sociopolticos susceptveis de originar a intolerncia, a rejeio e o racismo. (RAMOS, 2001, 2002, 2003).Revista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 9-32, jan./abr. 2009

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Consideraes finaisA pluralidade e a heterogeneidade dos mundos contemporneos exigem aprender a viver a multiplicidade de pertenas e de referncias no sobre a forma de dicotomias, de exclusividade e de excluso mas sim, sobre um modo plural, contnuo e complementar. Para uma abertura ao mundo e diversidade, necessrio enraizar a educao num modo de pensamento e de saber que seja capaz de contextualizar o singular, o particular e o local, de colocar o global em relao com o particular e as partes, de articular a unidade e a pluralidade e de integrar o conhecimento da diversidade cultural e condio humana como necessidade de toda a cultura humanista. A educao para formar os cidados do sculo XXI dever promover o conhecimento e respeito da diversidade cultural, o acesso na equidade, a aprendizagem ao longo da vida, a solidariedade nacional e internacional, a formao de cidados no s nacionais mas tambm do mundo e, ainda, uma cultura humanista que inscreva os homens e as mulheres no mundo e na tomada de conscincia do destino comum a todos os homens. indispensvel integrar a problemtica da diversidade intercultural e da interculturalidade nas suas vrias vertentes, na formao dos diversos agentes sociais, sanitrios, educativos, judicirios e polticos, seja dos que trabalham nas sociedades industrializadas, confrontadas com um crescente aumento de famlias, crianas e jovens provenientes de outras culturas e de minorias, seja dos que trabalham em pases em vias de desenvolvimento ou, ainda, os que trabalham em nvel da cooperao internacional, em aces humanitrias ou diplomticas. O paradigma intercultural vem introduzir a diversidade, a pluralidade, a heterogeneidade, a complexidade, a interdisciplinaridade na pesquisa e na interveno; permite apreender as situaes e os problemas em termos de dinmicas, de processos, de relaes e de estratgias; implica uma atitude de descentrao e uma tica da relao humana e da relao pedaggica; implica o desenvolvimento de competncias individuais, interculturais e de cidadania. A cultura e a diversidade devero estar no centro do processo educativo e do desenvolvimento humano e social, sendo importante que se faa daRevista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 9-32, jan./abr. 2009

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diversidade, da cultura e da mobilidade uma oportunidade de enriquecimento e aprendizagem ao ritmo de um mundo global e de uma sociedade plural, partilhando tradies culturais, competncias e saberes. (ABDALHAH-PRETCEILLE, 1986; OUELLET, 1991; BRUNER, 1991, 1996; OGBU, 1992). Como acentua Wolton: Aprender a gerir a diversidade cultural constitui a verdadeira riqueza das sociedades futuras. (WOLTON, 2003, p. 205). A perspectiva intercultural e a diversidade devero ser integradas numa perspectiva mais ampla de construo da sociedade. Os Estados tm de desenvolver activamente polticas pblicas e os cidados e profissionais tm de promover boas prticas para evitar a excluso e a discriminao nos domnios social, econmico, cultural, religioso, educativo e lingustico dos migrantes e minorias, para integrar a diversidade cultural e favorecer o dilogo intercultural. Uma sociedade multicultural e um mundo globalmente interdependente necessitam de uma nova abordagem educacional, poltica e de cidadania, que incorpore a dinmica da diversidade cultural e da mudana e os princpios fundamentais dos direitos humanos, em estratgias e polticas que promovam o desenvolvimento humano, a igualdade de oportunidades, a consciencializao cultural e as competncias comunicacionais e interculturais. Esses objectivos constituem prioridades polticas da Comisso Europeia, a qual designou 2007, como o Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos e 2008 como o Ano Europeu do Dilogo Intercultural e fazem parte de esforos concertados que visam encorajar o debate junto aos poderes pblicos, do sector privado, da sociedade civil e de cada cidado sobre as formas de aumentar a participao de todos os grupos na sociedade, acolher e promover a diversidade e a gesto cultural, a comunicao intercultural e a construo de uma sociedade mais democrtica e solidria, atravs de medidas, nomeadamente: do desenvolvimento da participao democrtica da diversidade cultural; do reforo da cidadania e da participao; da aquisio e ensino de competncias interculturais; da criao de espaos de dilogo intercultural; da promoo do dilogo intercultural nas relaes nacionais e internacionais. Esses objectivos constituem, tambm, preocupao da UNESCO (2001) quando afirma na Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural, art. 2:

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Em sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensvel garantir uma interaco harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais plurais, variadas e dinmicas, assim como, a sua vontade de conviver. As polticas que favoream a incluso e a participao de todos os cidados, garantem a coeso social, a vitalidade da sociedade civil e a paz. (UNESCO, 2001, p. 4).

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Profa. Dra. Natlia Ramos Universidade Aberta | Lisboa Departamento de Cincias Sociais e de Gesto Investigadora do Centro de Estudos das Migraes e das Relaes Interculturais E-mail | [email protected]

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Recebido 29 dez. 2008 Aceito 5 maio 2009

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Os estudos culturais e a questo da diferena na educaoCultural studies and the question of difference in education

Anna Luiza Arajo Ramos Martins de Oliveira Universidade Federal de Pernambuco

ResumoEste artigo discute as contribuies do campo conhecido como Estudos Culturais para a educao. Chama ateno para o fato de a escola, historicamente, ter organizado seu currculo e suas prticas pedaggicas com base em valores e padres das culturas hegemnicas e defende o desenvolvimento de teorias e prticas educacionais mais sensveis s culturas, atentas relao entre poderes/saberes/identidades, contingncia e pluralidade do contexto social. Prope que a escola reconhea e valorize as diferenas e o hibridismo, que incorpore as diversas tradies culturais dos grupos que fazem parte da sociedade, inclusive daqueles que, historicamente, vivem em condio de subordinao mulheres, negros e negras, homossexuais, pessoas com necessidades especiais, trabalhadores rurais, entre outros. Palavras-chave: Estudos culturais. Educao. Diferena.

AbstractThis article discusses the contributions of Cultural Studies for education. Addresses the fact that school has historically structured its curriculum and teaching practices on behalf of values and social standards of hegemonic cultures, and supports the development of educational theories and teaching practices more sensitive to cultural difference, that take more seriously the relationship between power/knowledge/identity, just as the contingency and plurality of social contexts. Proposes that school can recognizes and values the differences and the hybridism, that incorporates the various social groups cultural traditions, including of those who historically live in conditions of subordination like women, African-descendants, homosexuals, people with special needs, rural workers, among others. Keywords: Cultural studies. Education. Difference.

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1. IntroduoMuito se tem discutido sobre a importncia de reconhecer e valorizar conhecimentos e prticas culturais de grupos que historicamente tm sido excludos dos contextos escolares. A partir de diferentes enfoques tericos e metodolgicos, debate-se essa questo relacionada aos currculos escolares, s polticas educacionais, formao inicial e continuada de professores e s prticas pedaggicas. Desde a publicao do Relatrio para a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) da Comisso Internacional sobre Educao para o sculo XXI (DELORS, 2002), educadores, rgos pblicos e instituies de ensino e pesquisa desenvolvem seminrios, projetos e cursos sobre os quatro pilares da educao: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver juntos. Livros e materiais audiovisuais foram publicados por diferentes instituies sobre educao e cultura para paz. Vrias organizaes no-governamentais (ONGs), universidades e centros de estudos tentam mostrar que a escola precisa contribuir para a promoo do conhecimento mtuo entre pessoas de diferentes etnias, identidades, idades, caractersticas fsicas e mentais, classes sociais. No entanto, se olharmos atentamente, percebemos que a escola continua selecionando alguns saberes, valores e prticas e rejeitando outros com base em diferentes tipos de relaes de dominao econmicas, polticas, tnicas, de gnero, de orientao sexual, de religio. essencial continuarmos refletindo sobre os processos de criao e preservao de diferenas e desigualdades na esfera educacional e desenvolvermos estratgias que possibilitem o acesso de alunos e de professores s diversas verses dos fatos histricos e desnaturalizao dos saberes. Neste artigo, apresentamos as contribuies dos Estudos Culturais para tal reflexo. Inicialmente, fazemos uma breve contextualizao histrica desta rea, em seguida, apresentamos seus diferentes eixos de pesquisa na educao e suas contribuies para pensarmos a questo da diferena.

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2. Educao e culturaA relao entre educao e cultura, segundo Veiga-Neto (2003a), vem sendo discutida h, pelo menos, dois sculos. Na modernidade, a cultura (Kultur) foi tomada como o conjunto de tudo que a humanidade havia produzido de melhor em diferentes campos artes, filosofia, literatura, cincia. Essa concepo de carter elitista gerou a diferenciao entre a baixa e a alta cultura, sendo a ltima tomada como privilgio de um grupo restrito. A educao era vista como o principal meio para elevao cultural:[...] o principal objeto dos debates era saber quais os marcadores culturais que definiriam em cada grupo e a cada momento o que seria relevante para ser colocado na pauta das avaliaes e que serviriam para demarcar a verdadeira cultura, a alta cultura. As discusses nada tinham de radicais, uma vez que muito raramente se questionou o arbitrrio contido no prprio conceito de Kultur. (VEIGA-NETO, 2003a, p. 8).

Outra posio comum, principalmente na Antropologia, era a que reconhecia a pluralidade de culturas e caracterizava cada uma como um modo de vida. No entanto, de acordo com Santos (2003), essa viso resultava ou em um posicionamento relativista que via cada cultura como diferente e incomensurvel ou classificatrio que qualificava as diferentes culturas a partir de escalas evolutivas da elementar (primitiva) complexa (civilizada). Essa classificao tinha sempre a cultura ocidental europeia como padro de cultura civilizada. A partir de meados do sculo XX e, principalmente, com a crise da modernidade, surgem tenses em torno destes pontos de vista. A antropologia, a lingustica, a filosofia, a sociologia e mais tarde a educao, comeam a questionar a epistemologia monocultural e caminhar em direo construo de uma epistemologia multicultural que se consolida, de acordo com VeigaNeto (2003), sob a influncia da virada lingustica e dos Estudos Culturais. A virada lingustica foi um movimento filosfico associado, principalmente, obra do segundo Wittgenstein (1979). De acordo com ele, a linguagem no pode ser vista como instrumento que representa uma realidade externa, mas sim, como local de produo de sentidos. Utilizamos a linguagem na medida em que precisamos dela para dar sentido s coisas. Esse sentidoRevista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 33-62, jan./abr. 2009

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no preexistente ao seu uso, construdo no contexto de seu exerccio. Para Silva (1999), com a virada lingustica, os elementos da vida social, entre eles a cultura, passam a ser vistos como discursivamente construdos e como contingentes. Os tericos que adotam essa concepo,[...] abdicam da busca de qualquer critrio metalingustico ou metacultural, de qualquer essncia translingustica ou transcultural. Eles despedem-se de uma metafsica da linguagem e trazem a linguagem para o mundo cotidiano; ela no est fundada num outro lugar. Igualmente no h outro mundo a sustentar aquilo que chamamos de cultura. (VEIGA-NETO, 2003, p. 12).

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No existe uma linguagem e uma cultura ideal, elas so contingentes. No existe a Cultura (Kultur), existem culturas. Sendo assim, a educao no pode dizer o que o mundo, como ele funciona e se encarregar de transformar os sujeitos em indivduos cultos. [...] o que no mximo ela pode fazer mostrar como o mundo constitudo nos jogos de poder/saber por aqueles que falam nele e dele, e como se pode criar outras formas de estar nele. (VEIGANETO, 2003, p. 13). A emergncia e consolidao dos Estudos Culturais tm fundamental importncia para o aprofundamento da viso de cultura e do papel da educao. A partir das reflexes desenvolvidas por essa rea, o conceito de cultura se expande e passa a ser central para o mbito das cincias humanas e sociais, inclusive da educao.

3. O campo dos estudos culturais: contextualizao histricaOs Estudos Culturais constituem um campo de teorizao e investigao que, segundo Escosteguy (2006), emerge na Inglaterra com a publicao de trs livros: 1) As utilizaes da cultura, de Richard Hoggart, em 1957; 2) Cultura e sociedade, de Raymond Williams, em 1958, e 3) A formao da classe operria inglesa, de E. P. Thompson, em 1963. Essas obras representam marcos de rupturas com algumas tradies de pensamento e, de acordo com a autora, caracterizam trs eixos de pesquisa que estabeleceram as bases dos estudos culturais no final dos anos 1950: 1) o eixo autobiogrfico da histria cultural do meio do sculo XX; 2) o eixo histrico do conceito de cultura; 3) o eixo histrico da sociedade inglesa.Revista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 33-62, jan./abr. 2009

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O conceito de cultura apresentado de maneira diferente por cada um desses autores1, porm, para analistas dessa rea (HALL, 2003; JOHNSON, 2006; SILVA, 1999), a concepo apresentada por Williams, por ter um enfoque antropolgico, possibilitou maior oposio idia de cultura como o conjunto das melhores obras literrias e artsticas. Costa; Silveira; Sommer (2003) chamam a ateno para dois determinantes histricos do surgimento dos Estudos Culturais: a crise no Imprio Britnico e o surgimento de novas formas culturais como a TV, as bandas de Rock, a publicidade, os jornais e revistas de grande tiragem em funo do crescimento do capitalismo. Era um contexto de grandes mudanas sociais, polticas e econmicas e o campo dos Estudos Culturais, desde o seu incio, marcado pelo envolvimento poltico de seus membros com diversos movimentos sociais, inclusive o da Nova Esquerda britnica. importante salientar que alguns de seus intelectuais como Stuart Hall, Homi Bhabha e Edward Said, entre outros so provenientes de antigas colnias da Inglaterra Jamaica, ndia, Palestina e esse aspecto tambm contribuiu para o posicionamento crtico do grupo em relao s concepes de classe, cultura e poder. Em 1964, foi fundado o Centro de Estudos Culturais Contemporneos, na Universidade de Birmingham, Inglaterra. Os pesquisadores do Centro, inicialmente, adotaram referenciais tericos de marxistas contemporneos como Althusser e Gramsci. A aproximao com essas obras, especialmente a de Gramsci, segundo Hall (2003) era uma tentativa de superar os limites do pensamento marxista tradicional:Em nenhum momento os estudos culturais e o marxismo se encaixaram perfeitamente, em termos tericos. Desde o incio [...] pairava no ar a sempre pertinente questo das grandes insuficincias, terica e polticas, dos silncios retumbantes, das grandes evases do marxismo as coisas de que Marx nem falava nem parecia compreender, que eram o nosso objeto privilegiado de estudo: cultura, ideologia, linguagem, o simblico. Pelo contrrio, os elementos que aprisionavam o marxismo como forma de pensamento, como atividade prtica crtica, encontravam-se, j e desde sempre, presentes a ortodoxia, o carter doutrinrio, o determinismo, o reducionismo, a imutvel lei, a histria, o seu estatuto como metanarrativa. Isto , o encontro entre os estudos culturais britnicos e o marxismo tem primeiro que ser compreendido como o envolvimento com um problema no com uma teoria, nem mesmo com uma problemtica. (HALL, 2003, p. 203).Revista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 33-62, jan./abr. 2009

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A trajetria do campo marcada por vrias rupturas e incorporaes tericas. Para o autor, a metfora da luta com os anjos a que melhor define o percurso terico dos Estudos Culturais. Ele ressalta o papel que os estudos feministas desempenharam no amadurecimento do campo, na reflexo sobre o carter sexuado do poder, suas relaes com a cultura, com os processos de significao e de construo de identidades. Muito enfaticamente, Hall diz que a mulher entrou no campo dos estudos culturais [...] como um ladro noite, invadiu; interrompeu, fez um barulho inconveniente, aproveitou o momento [...]. (HALL, 2003, p. 209). Relata que no foi apenas uma experincia de discusses tericas calorosas, mas de desinstalao do poder patriarcal presente num grupo composto, na sua maioria, por homens. Tambm chama a ateno para a questo tnica e as mudanas que os estudos sobre poltica racial provocaram no Centro e no seu prprio trabalho. No entanto, a sua maior nfase recai na influncia que o estruturalismo e ps-estruturalismo tiveram nos progressos tericos do campo:[...] a reconfigurao da teoria, que resultou em ter de se pensar questes da cultura atravs de metforas da linguagem e da textualidade, representa um ponto para alm do qual os estudos culturais tm agora que necessariamente se localizar. A metfora do discurso, da textualidade, representa um adiamento necessrio, um deslocamento, que acredito estar sempre implcito no conceito de cultura. Se vocs pesquisam sobre cultura, ou se tentaram fazer pesquisa em outras reas verdadeiramente importantes e, no obstante, se encontram reconduzidos cultura, se acontecer que a cultura lhes arrebate a alma, tm de reconhecer que iro sempre trabalhar numa rea de deslocamento. H sempre algo descentrado no meio cultural [the medium of culture], na linguagem, na textualidade, na significao; h algo que constantemente escapa e foge tentativa de ligao, direta e imediata, com outras estruturas. E ainda, simultaneamente, a sombra, a estampa, o vestgio daquelas outras formaes, da intertextualidade dos textos em suas posies institucionais, dos textos como fonte de poder, da textualidade como local de representao e de resistncia, nenhuma destas questes poder jamais ser apagada dos estudos culturais. (HALL, 2003, p. 211-212, grifos do autor).

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Os crticos dessa rea so unnimes em afirmar que os Estudos Culturais no so um conjunto de trabalhos unificados, nem querem ser. Uma de suas principais caractersticas a pluralidade e instabilidade em relaoRevista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 33-62, jan./abr. 2009

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aos temas de pesquisa, posicionamentos tericos e metodolgicos. Alguns afirmam que um campo interdisciplinar, porm, para Nelson; Treichler; Grossberg (1995) eles so, algumas vezes, antidisciplinares, no querem ser identificados apenas por metas acadmicas, mas tambm, pelo seu compromisso poltico, pela sua anlise do poder e pelo seu engajamento social.[...] o que tem os caracterizado serem um conjunto de abordagens, problematizaes e reflexes situadas na confluncia de vrios campos j estabelecidos, buscarem inspirao em diferentes teorias, romperem certas lgicas cristalizadas e hibridizarem concepes consagradas. (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 23).

Temas como o papel da mdia na sociedade, etnicidade, gnero, sexualidade, globalizao, subjetividade, identidade, identidade nacional so objetos de estudo desse campo. Sua metodologia, ambgua desde o incio, pode ser mais bem entendida como uma bricolage, isto , sua escolha da prtica pragmtica, estratgica e autorreflexiva. (NELSON; TREICHLER; GROSSBERG, 1995, p. 9). Para esse campo, as ferramentas metodolgicas dependem das questes da pesquisa. Dessa forma, a anlise do discurso, a entrevista, a anlise do contedo, a desconstruo, a etnografia podem ser caminhos possveis de investigao, desde que sejam relevantes e coerentes com os objetivos do estudo em questo. Apesar de toda a sua heterogeneidade, necessrio definir os pontos em que os Estudos Culturais se identificam e se distinguem de outras reas e ter o cuidado para no reduzi-lo ao que Hall (2003) denominou de pluralismo simplista. Comecemos, portanto, da concepo de cultura:De forma talvez mais importante, os Estudos Culturais concebem a cultura como campo de luta em torno da significao social. A cultura um campo de produo de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posies diferenciais de poder, lutam pela imposio de seus significados sociedade mais ampla. A cultura , nessa concepo, um campo contestado de significao [...] um campo onde se define no apenas a forma que o mundo deve ter, mas tambm a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura um jogo de poder. (SILVA, 1999, p. 133-134).

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A cultura desempenha papel constitutivo na vida social. As prticas sociais no so apenas influenciadas pela cultura, so atravessadas por ela, por um campo de produo e negociao de significados. Isso exige das cincias humanas e sociais uma reviso de seus mtodos de pesquisa, outros olhares e posturas em relao aos seus objetos de estudo e ao papel do (a) pesquisador (a), uma vez que esse (a), ao mesmo tempo que toma a cultura como seu objeto de estudo, est inserido (a) na prpria cultura, portanto, seu trabalho precisa responder aos desafios colocados pela histria, pela sociedade. Esses aspectos contemplam trs caractersticas em comum dos trabalhos no campo dos Estudos Culturais: 1. suas pesquisas procuram compreender a complexidade da cultura a partir de seus contextos polticos e sociais; 2. a cultura tomada como objeto de estudo e local de interveno; 3. partem sempre do pressuposto de que o trabalho intelectual tem um compromisso poltico. (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003; NELSON; TREICHLER; GROSSBERG, 1995). Do seu surgimento e fundao na Inglaterra at os dias atuais, o campo dos Estudos Culturais ganhou fora e influncia no mundo acadmico. Da dcada de 1980 em diante, o movimento rapidamente se expandiu para os Estados Unidos e para Amrica Latina. Nos Estados Unidos, ele se associou, principalmente, aos estudos feministas, tnicos, gays e lsbicos. A dcada de 1990 considerada a poca de exploso dos Estudos Culturais na Amrica Latina. Nstor Garca Canclini, Jess Martn-Barbero, Beatriz Sarlo, Richard Miskolci e Renato Ortiz so considerados seus principais representantes.As hibridaes o importante conceito proposto por Canclini para a anlise das culturas latino-americanas, as identidades e sua fragmentao, as redes de dependncia, as relaes entre tradio e modernidade, as transformaes das culturas populares, os consumos culturais so alguns dos ncleos temticos mais poderosos que deram e do flego ao pensamento latino-americano nomeado como EC [Estudos Culturais] ou lindeiro a esses. (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 47, grifo nosso).

Essa exploso tambm ocorreu no espao da educao, expandindo-se rapidamente pelos Estados Unidos e pela Amrica Latina, sucedendo

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ou renovando como alguns autores preferem dizer a teoria e a pedagogia crtica.

4. Os estudos culturais na educaoDe acordo com Costa; Silveira; Sommer (2003), a relao entre educao e estudos culturais tem sido discutida com frequncia no meio acadmico, inclusive nas Conferncias Internacionais4 dessa rea. Observa-se um crescente nmero de estudos culturais nos crculos educacionais relacionados a temas diversos: relaes de poder no currculo e na escola; pedagogias culturais na ps-modernidade; relaes sociais na escola; colonizao de saberes; infncia; cidadania; efeitos da globalizao e do neoliberalismo na educao; a questo da diferena, raa, etnia e gnero na escola. Para esses (as) autores (as) os estudos culturais em educao so [...] uma forma de abordagem do campo pedaggico em que questes como cultura, identidade, discurso e representao passam a ocupar, de forma articulada, o primeiro plano da cena pedaggica. (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 54). Essa forma de olhar a educao e o universo escolar resultou da anlise de algumas limitaes da teoria crtica como a sua excessiva descrio das realidades escolares e a nfase na dominao da ideologia burguesa sem o desenvolvimento de propostas que integrassem as questes de poder, de poltica e de possibilidade da escola contribuir para mudanas na esfera social e, tambm, das transformaes socioculturais que ocorreram nas ltimas dcadas o avano tecnolgico, o surgimento da internet, a globalizao, as mudanas econmicas, as lutas e conquistas de diversos movimentos sociais que geraram mudanas no conceito de educao e no prprio contexto escolar. De acordo com Veiga-Neto (2003a), a educao escolar uma inveno da modernidade e como tal se desenvolveu em conexo com as prticas sociais, com as questes desse perodo histrico. Porm, a modernidade entrou em crise e ns estamos num contexto social com outras demandas5, portanto necessrio [...] examinar as condies de possibilidade em que a escola moderna se gestou e tentar compar-las s condies de possibilidade que hoje esto a. Como dizem os genealogistas, preciso estar sempre fazendo a histria do presente. (VEIGA-NETO, 2003a, p. 123).Revista Educao em Questo, Natal, v. 34, n. 20, p. 33-62, jan./abr. 2009

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Uma das demandas do mundo atual a centralidade da cultura em diferentes instncias poltica, econmica, miditica, artstica. Provavelmente, um dos maiores desafios da contemporaneidade e, portanto, da educao e da escola saber lidar [...] com as tenses entre a diferena e a igualdade, entre a exigncia de reconhecimento da diferena e a redistribuio que permita a realizao da igualdade. (SANTOS, 2003, p. 25). A educao e a escola so constantemente desafiadas a reconhecer e dialogar com as diferentes culturas que cruzam o seu espao, com a alteridade. No caso do Brasil e outros pases da Amrica Latina esse aspecto ainda mais evidente por causa de sua hibridizao cultural. Neste contexto, vrios pesquisadores, apoiados em leituras dos Estudos Culturais, defendem a idia de uma educao multicultural.Uma educao multicultural deve por a nfase na vinculao entre os programas escolares e a aprendizagem informal produzida dentro e fora da escola; deve impedir que as identidades sejam essencializadas ou reduzidas a uma verso identitria estereotipada; deve favorecer o desenvolvimento de competncias e a interao de pessoas em uma nova cultura e, portanto, se ope a ambientes escolares homogenizadores; promove que os indivduos aprendam competncias em mltiplas culturas e, por ltimo, [deve] favorecer nos estudantes a conscincia da multiplicidade cultural que os rodeia e na qual ingressam. (MARTNEZ, 2005, p. 129).

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Dentre os (as) autores (as) brasileiros (as) que tm desenvolvido trabalhos nessa vertente devemos destacar Tomaz Tadeu da Silva, que dedicou boa parte de suas publicaes a esse tema, especialmente no que diz respeito ao campo do currculo, Alm de Antnio Flvio Moreira, Vera Cadau, Mariza Vorraber Costa, Ana Canen e Alfredo Veiga-Neto. De forma geral, a proposta de uma educao multicultural se passa pela defesa de currculos, polticas e prticas pedaggicas inclusivas, que incorporem as tradies culturais dos diversos grupos que fazem parte da sociedade, principalmente daqueles que historicamente vivem em condio de subordinao mulheres, negros e negras, homossexuais, pessoas com necessidades especiais, trabalhadores rurais, entre outros. No entanto, o termo multicultural polissmico e torna-se necessrio pontuarmos em que direo usamos tal conceito.

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Vrios autores (SANTOS, 2003; McLAREN, 1997, 2000; BANKS, 1999; FORQUIN, 2000; HALL, 2003) tm discutido os usos e sentidos do termo multiculturalismo. Hall (2003) inicia sua discusso chamando ateno que multicultural um adjetivo e como tal descreve caractersticas de algum ou alguma coisa. Pode se referir, por exemplo, sociedade. Uma sociedade dita multicultural aquela na qual diferentes comunidades culturais convivem. No nosso caso, uma educao multicultural seria aquela em que diversas culturas se cruzam, interagem. J a palavra multiculturalismo um substantivo e refere-se a estratgias adotadas para lidar com a questo da diversidade proveniente das sociedades multiculturais. No entanto, da mesma forma que h diversas sociedades multiculturais, existem vrios tipos de multiculturalismos.O multiculturalismo conservador segue Hume [...] ao insistir na assimilao da diferena s tradies e costumes da maioria. O multiculturalismo liberal busca integrar os diferentes grupos culturais o mais rpido possvel ao mainstream, ou sociedade majoritria, baseado em uma cidadania individual universal, tolerando certas prticas culturais particularistas apenas no domnio privado. O multiculturalismo pluralista, por sua vez, avaliza diferenas grupais em termos culturais e concede direitos de grupos distintos a diferentes comunidades dentro de uma ord