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ano3|número2|set-out-nov2013 distribuiçãogratuita|vendaproibida

Revista Segunda Pessoa #2

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ano 3 número 2 set-out-nov 2013 Colaboradores: Agda Aquino, Almandrade, Paulo Rossi, Raul Córdula, Valquíria Farias Artista homenageado (foto de capa): Rodolfo Athayde

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ano�3�|�número�2�|�set-out-nov�2013

distribuição�gratuita�|�venda�proibida

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Rodolfo�Athayde,�Barcelona,�1984

RODOLFO�ATHAYDE�

O�artista�plástico,�fotógrafo,�videomaker�e�médico,�Rodolfo�Athayde,�responsável�pela�fotografia�que�ilustra�a�capa�(e�outras�páginas�nesta�edição)�da�Segunda�Pessoa,�nasceu�em�João�Pessoa-PB�(1952),�e,�enquanto�cursava�seu�doutorado�em�Angiologia,�em�Barcelona,�no�início�dos�anos�1980,�passou�a�se�interessar�por�artes�plásticas,�momento�que�começou�a�frequentar�aulas�com�os�artistas�Père�Cara�e�César�Lopez�Ozornio.�

Ao�voltar�ao�Brasil,�em�1984,�rendeu-se�definitivamente�à�atividade�artística�dividindo�seu�tempo�entre�o�ateliê,�o�consultório�e�as�aulas�na�Universidade�Federal�da�Paraíba�(no�curso�de�Medicina).�Um�dos�principais�representantes�nordestinos�da�Geração�80,�participou�dos�principais�salões�de�arte�do�país,�entre�os�anos�1980-90,�quando�abocanhou�mais�de�dez�prêmios�(na�categoria�Pintura),�a�passou�ter�obras�em�acervos�de�museus�como�o�Museu�de�Arte�de�Belo�Horizonte,�Museu�de�Arte�Contemporânea�do�Paraná,�Museu�Nacional�de�Belas�Artes�(Rio�de�Janeiro),�e�Museu�de�Arte�Moderna�da�Bahia.�Também,�foi�convidado�para�workshops�(Berlin-in-São�Paulo,�MAC/SP�e�Funesc/João�Pessoa)�e�realizou�exposições�no�exterior�(Staatliche�Kunsthalle�Berlin,�Alemanha,�1988;�Tour�du�Roi�René,�Marselha,�França,�1992;�Cumplicidades,�Tondela,�Portugal,�1994;�Arte�Contemporânea�do�Nordeste,�Liberty�Street�Gallery,�Nova�York,�EUA,�1996).�

Além�disso,�nos�poucos�intervalos�de�sua�atividade�médica,�produziu�imensos�murais�em�cerâmica,�porcelanato�e�pintura�para�o�Hospital�Unimed�João�Pessoa,�e�para�as�sedes�da�Unimed�Paraíba�e�do�Conselho�Regional�de�Medicina.�Sem�dúvida,�estas�são�obras�de�referência�no�ainda�hoje�acanhado�acervo�de�arte�pública�de�João�Pessoa.�

Em�2001,�com�patrocínio�da�Energisa�Paraíba,�via�Ministério�da�Cultura�(Lei�Rouanet),�lançou�o�livro�30x40�-�Artistas�mascarados�com�fotografias�de�34�artistas�plásticos�paraibanos�que,�inusitado,�todos�aparecem�sob�máscaras.�Em�2010,�lançou�o�projeto�Artistas�Xifóides,�um�conjunto�de�vídeosdocumentários�sobre�artistas�paraibanos,�com�o�patrocínio�do�Programa�Banco�do�Nordeste�de�Cultura.�Recentemente,�em�2012,�realizou�a�mostra�de�fotografia,�Se�oriente,�na�Estação�das�Artes,�João�Pessoa,�com�25�imagens�(174x115cm),�capturadas�em�suas�viagens�pela�Turquia�e�Emirados�Árabes.�“Eu�gosto�do�outro.�Da�possibilidade�de�olhar�o�outro,�tão�distante�e�tão�diferente�de�nós,�e�encontrar�semelhanças.�É�um�discurso�aberto,�onde�há�várias�interpretações�da�mesma�imagem”,�contou�Rodolfo.

www.rodolfoathayde.com�

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Há�naturalmente�um�ar�de�surpresa�em�muitas�das�pessoas�que�folheiam�a�revista�Segunda�Pessoa�pela�primeira�vez.�“Que�projeto�gráfico�interessante.�Tão�simples!“,�dizem�uns.�“Que�bom�que�agora�temos�um�veículo�para�conhecer�melhor�nossos�artistas,�nossa�arte.“,�dizem�outros.�Mas,�a�afirmação�mais�comum�é:�“Que�legal.�Espero�que�tenha�vida�longa...“.

De�fato.�Talvez�seja�isso�‒�a�falta�de�continuidade�‒�o�maior�gargalo�que�há�na�publicação�de�periódicos�(em�todas�as�áreas)�no�país,�principalmente�se�não�for�uma�revista�acadêmica,�produzida�pelas/nas�universidades.�Mais�uma�vez,�graças�ao�Edital�Procultura�de�Estímulo�às�Artes�Visuais�2010,�da�Funarte/�Ministério�da�Cultura�‒�que�contemplou�a�Segunda�Pessoa�pelos�próximos�dois�anos�‒,�poderemos�continuar�a�causar�surpresa�às�tantas�pessoas,�artistas,�professores�e�estudantes.

A�ideia�é�atingir�o�maior�número�de�leitores,�atrair�novos�colaboradores,�discutir/difundir�suas�pesquisas,�falar�da�produção�de�nossa�arte�contemporânea,�do�Nordeste�e�de�todas�as�regiões.�E�também�abrirmos�o�leque�a�outros�segmentos�artísticos�proporcionando�que,�além�das�artes�visuais,�possamos�contemplar�a�moda,�o�design,�a�arquitetura,�o�artesanato...�

Nesta�edição,�falamos�de�“passado”�ao�resgatar�uma�obra,�o�painel�Tropicália,�do�artista�Chico�Pereira,�realizado�em�1969�como�um�lampejo�de�pioneirismo�do�Grafite�e�do�Pop.�E�do�“presente“�há�dois�artigos�que�comentam�a�recente�produção�de�arte�contemporânea�nordestina:�a�Mostra�Nordeste�de�Artes�Visuais�e�a�Arte�Visual�Periférica�na�Paraíba,�por�Raul�Córdula�e�Valquíria�Farias.�

Dois�outros�textos�‒�de�Agda�Aquino�e�Almandrade�‒�abordam�o�hibridismo�entre�fotografia-moda�e�artes�visuais-moda,�com�direito�também�a�refletir�sobre�a�fotografia�autoral�na�Paraíba�(caso�semelhante�a�outros�Estados�do�país?),�em�um�texto�do�paulistaibano,�o�fotógrafo�e�professor�Paulo�Rossi.�

Boa�leitura�e�visite�nosso�site:�www.segundapessoa.com.br.

editorial

Índice

� � � � �Mostra�Nordeste�de�Artes�Visuaispor�Raul�Córdula� � � � � ����������4A�fotografia�autoral�na�Paraíba�contemporâneapor�Paulo�Rossi� � � ����������� � ��������10Fotografia�de�moda�e�cidade�como�expressões�decultura,�por�Agda�Aquino� � � � ��������14Arte�contemporânea�na�Paraíba:�visualidades������������������periféricas,�por�Valquíria�Farias� � ����������� ��������19O�painel�PopTropicalista�de�Chico�Pereirapor�Dyógenes�Chaves�������������������������������������������������������������������������������������21A�linguagem�e�a�transgressão�da�veste�por�Almandrade���������������������������������������������������������������������������������28�

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010

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tecnologia�se�encontravam�mais�ou�menos�na�atualidade,�mas�a�arte�estava�na�Idade�Média.�Para�o�seminário�foram�convidados�Antonio�Dias�e�Paulo�Sérgio�Duarte,�vindos�da�Europa,�e�a�equipe�local�formada�por�Francisco�Pereira�da�Silva�Júnior,�Silvino�Espínola,�Breno�Mattos,�e�por�mim.�O�resultado�do�seminário�foi�a�criação�do�NAC�que�coordenei�até�1984,�e�neste�período�produzimos�em�João�Pessoa�exposições�de�artistas�como�Tunga,�Paulo�Roberto�Leal,�Cildo�Meireles,�Anna�Maria�Maiolino,�Miguel�Rio�Branco,�Gustavo�Moura,�Rubens�Gerchman,�Vera�Chaves�Barcellos,�entre�outros.��

É�importante�informar�que�desde�o�Império�a�Paraíba�é�terra�de�artistas,�Pedro�Américo�e�seu�irmão�Aurélio�de�Figueiredo�afirmam�isto,�mas�na�modernidade�também�reconhecemos�o�brilho�da�obra�do�pintor,�ilustrador�e�cenógrafo�Tomás�Santa�Rosa�‒�o�revolucionário�cenógrafo�da�primeira�versão�de�Vestido�de�Noiva,�de�Nélson�Rodrigues.�

No�Recife,�foi�criado�em�1997�o�Instituto�de�Arte�Contemporânea�da�Universidade�Federal�de�Pernambuco�‒�IAC.�Anteciparam-se�à�UFPE�o�Museu�de�Arte�Aloísio�Magalhães�‒�MAMAM�quando�da�atuação�de�seu�diretor,�o�curador�carioca�Marcos�Lontra,�e�dos�coletivos�de�artistas�que�nasceram�na�década�de�1980,�como�a�Quarta�Zona�de�Arte,�o�Carasparanabuco�e�o�Grupo�Camelo,�para�citar�apenas�os�pioneiros.�

Nos�anos�de�1990�a�Fundação�Joaquim�Nabuco,�por�meio�de�sua�Superintendência�de�Cultura�administrada�por�Silvana�Meirelles,�dirigiu�a�atividade�das�artes�desenvolvidas�nas�visuais�para�a�arte�contemporânea,�e�esta�atitude�foi�responsável�pelo�surgimento�de�curadores�como�Moacir�dos�Anjos�e�Cristiana�Tejo,�relacionados�com�a�Fundaj�e�o�MAMAM,�e�realizando�uma�série�de�seminários�sobre�o�tema�que�contou�com�a�assistência�dos�artistas�contemporâneos�consagrados�hoje�no�Recife.�

Voltando�à�década�de�1980,�o�trabalho�desenvolvido�no�NAC/�UFPB�teve�eco�em�Natal�RN,�com�a�realização�do�seminário�“Semiótica�e�Arte”�realizada�na�UFRN�onde�a�equipe�do�NAC/�UFPB�participou�ativamente�ao�lado�de�convidados�como�Décio�Pignatari,�Mirian�Schneiderman,�Maria�Lúcia�Santaella�Braga,�o�arquiteto�paulista�Ari�Rocha�e�os�artistas�de�Natal�ligados�ao�Poema�Processo,�Jota�Medeiros,�Falves�Silva,�Anchieta�Fernandes�e�Moacir�Cirne.

Tocado�pela�excelência�da�produção�de�artes�visuais�na�Paraíba,�que�espelha�a�arte�contemporânea�do�Nordeste,�o�compositor�e�cantor�Chico�César,�atualmente�Secretário�de�Cultura�do�Estado�da�Paraíba,�propôs�à�Representação�do�MinC�e�da�Funarte�para�o�Nordeste,�a�realização�de�um�Panorama�das�Artes�Visuais�do�Nordeste.�Naldinho�Freire�atual�representante�da�Funarte�NE�aceitou�de�cara�o�desafio,�e�para�fazer�a�curadoria�foi�convidado�o�importante�artista�paraibano�José�Rufino.�O�panorama�se�realizou�em�forma�de�exposição�que�pretende�ser�uma�síntese�da�arte�e�do�pensamento�da�contemporaneidade�artística�tanto�no�sentido�coetâneo,�isto�é,�da�produção�de�artistas�que�trabalham�no�mesmo�tempo,�quanto�no�sentido�de�atualidade�que�as�vanguardas�e�as�novas�experiências�com�a�linguagem�abrangendo�o�espaço�e�a�materialidade�da�arte,�assumiram�nas�últimas�cinco�décadas.�

Esta�exposição�itinerante,�que�estreou�no�Museu�Murilo�La�Greca,�em�Recife,�entre�11�de�junho�e�04�de�agosto�de�2013,�pretende�percorrer�todas�as�capitais�nordestinas.

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Costuma-se�“datar”�a�arte�contemporânea�a�partir�da�Pop�Art,�quando�os�cânones�estéticos�do�sistema�da�arte�inaugurado�no�Renascimento�exauriram-se,�apartaram-se�de�suas�capacidades�inventivas.�A�arte�contemporânea,�portanto,�segundo�os�teóricos�mais�puros,�seria�a�atividade�artística�carregada�do�tesouro�linguístico�adquirido�nos�cinco�séculos�posteriores�ao�Renascimento,�período�que�entrou�em�sua�reta�final�com�a�revolução�industrial,�e�culminou�na�pós-modernidade�com�a�Pop�Art.�Com�a�globalização�a�arte�contemporânea�vive�em�plenitude�‒�hoje�se�diz�que�a�grande�arte�pé�a�arte�internacional�‒�quando�adquire�suporte�teórico,�crítico�e�sociológico�para�atingir�a�grande�massa.�

O�Nordeste�brasileiro�não�foi�exceção,�a�arte�contemporânea�adaptou-se�ao�ambiente�artístico�regional�através�da�atuação�de�artistas�e�instituições�como�em�todos�os�lugares.�A�primeira�organização�a�caucionar�o�advento�da�arte�contemporânea�no�Nordeste�foi�o�Núcleo�de�Arte�Contemporânea�da�Universidade�Federal�da�Paraíba�‒�NAC,�fundado�em�1978�a�partir�do�resultado�de�um�seminário�organizado�pela�UFPB�em�Campina�Grande�a�pedido�do�Reitor�Lynaldo�Cavalcanti�que�expressou�a�ideia�de�que,�a�Universidade�paraibana,�o�ensino�e�a�pesquisa�de�ciência�e�

Mostra�Nordeste�deArtes�Visuais

Raul�Córdula���������������������������������������������������������������������������[email protected]

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Além�disso,�no�Nordeste,�o�NAC�realizou�exposições�das�coleções�de�arte�postal�de�Daniel�Santiago�e�Paulo�Bruscky.�

É�visível�o�desempenho�dos�artistas�dos�estados�onde�existiu�a�ação�pública�no�setor�das�artes�visuais,�mas�observamos�que�essas�instituições�‒�NAC,�MAMAM,�MAM-Bahia,�Dragão�do�Mar�etc.�‒�nasceram,�e�de�alguma�forma�são�continuidade�de�atuações�de�grupos�de�artistas�que�independentemente�provocaram�a�atenção�dos�poderes�públicos�e,�sendo�atendidos,�protagonizaram�a�evolução�que�se�percebe�hoje.�

Com�esta�síntese�pode-se�ter�uma�ideia�da�pequena�história�da�arte�contemporânea�no�Nordeste�brasileiro�através�dos�artistas�selecionados�pelo�curador�José�Rufino,�ele�mesmo�testemunho�do�que�aconteceu�na�Paraíba�da�década�de�80.�

Devido�à�escassez�do�tempo�e�à�limitação�do�espaço�Rufino�precisou�ser�econômico,�quase�espartano,�tendo�de�selecionar�apenas�dois�artistas�de�cada�Estado.�Em�situação�ideal�uma�tarefa�como�esta�seria�mais�abrangente�em�sua�constituição,�pois�o�acontecimento�da�arte�contemporânea�no�Nordeste�é�fato�consumado.�

Adotando�um�partido�curatorial�de�coerência�e�sincronia�entre�as�tendências�regionais�‒�não�regionalistas�‒�Rufino�traçou�esta�pequena,�porém�importante,�Mostra�Nordeste�de�Artes�Visuais.�

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Tomemos�como�ponto�de�partida�a�instalação�de�Jeanine�Toledo,�uma�sequência�de�fotografias�de�diversas�imagens�e�também�de�uma�mão�que�gesticula�‒�uma�foto,�um�gesto�‒�de�onde�sai�um�fio�de�seda�vermelha�que�interliga�continuamente�as�mãos�às�imagens,�levando�o�leitor�a�pensar�o�movimento�fragmentado�percorrendo�o�caminho�que�o�fio�traça.�Temos�aí�uma�narrativa�através�de�imagens�que�nos�leva�a�meditar�sobre�a�comunicação�no�seu�registro�primário,�o�toque�físico�da�mão,�mas�nos�leva�também�ao�labirinto�e�o�fio�de�Ariadne�que�além�de�salvar�o�herói�o�reintegra�ao�convívio�humano.

Jeanine�está�na�exposição�como�artista�alagoana�que�é,�mas�sua�carreira�se�consolidou�na�sua�convivência�com�os�artistas�do�Recife�no�período�em�que�ela�trabalhou�na�

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Superintendência�de�Cultura�da�Fundação�Joaquim�Nabuco,�chegando�a�coordenar�o�setor�das�artes�visuais.�É�importante�lembrar�que�Maceió�é�uma�cidade�que,�a�exemplo�de�João�Pessoa,�tornou-se�um�polo�de�arte�contemporânea.�Desde�a�modernidade�que�Pierre�Chalita�fomentou�a�partir�dos�anos�de�1960,�que�hoje�sua�viúva,�a�pintora�e�crítica�de�arte�Solange�Chalita�mantem�como�acervo�e�memorial,�passando�o�surgimento�de�uma�geração�pós-moderna�da�qual�quero�citar�Maria�Amélia�Vieira,�Dalton�Costa�e�Rogério�Gomes,�e�na�atualidade�artistas�como�Delson�Uchôa�e�Ulisses�Lociks,�que�participa�da�Mostra.�

Quando�Jeanine�atuou�na�Fundação�Joaquim�Nabuco�ela�assistiu�à�implantação�de�um�setor�curatorial�de�excelência,�com�a�participação�dos�curadores�Moacir�dos�Anjos�e�Cristiana�Tejo.�Mas�a�posição�do�Recife�como�polo�de�artes�visuais�vem�de�muito�antes,�vem�de�Cícero�Dias,�Vicente�do�Rêgo�Monteiro,�Lula�Cardoso�Ayres,�Francisco�Brennand�e�João�Câmara.�Vicente�participou�da�Semana�de�Arte�Moderna�de�1922;�Cícero�é�autor�de�uma�obra�seminal�da�modernidade�brasileira,�o�desenho�“Eu�Vi�o�Mundo,�Ele�começava�no�Recife”;�Lula�pronunciou�uma�arte�de�base�regionalista,�quando�de�resto�Vicente,�Cícero�e�Brennand�o�fizeram�eventualmente,�mas�em�Lula�isto�extrapola�a�mera�função�e�leva�a�excelência�a�tendência�pernambucana�à�arte�do�mural;�Brennand,�pintor,�escultor�e�muralista�de�grande�porte�não�só�na�dimensão�da�obra�mas�principalmente�na�sua�universalidade,�marca�uma�posição�singularíssima�na�arte�brasileira;�João�Câmara,�por�sua�vez,�nas�décadas�de�1970/80�coloca�em�discussão�nossa�realidade�política�através�de�obras�como�“Cenas�da�Vida�Brasileira”;�finalmente�temos�a�obra�de�Tereza�Costa�Rêgo�que�nas�últimas�três�décadas�tornou-se�também�muralista,�passando�a�comentar�de�forma�poética�nossa�história�política.��

Esta�bagagem�não�pode�ser�ignorada.�Por�exemplo,�um�dos�pontos�máximos�desta�mostra�é�a�instalação�“Diário�de�Bandeja�1/4”�da�pernambucana�Juliana�Notari�que�tem�a�dimensão�espacial�muralista�e�a�dimensão�estética�grandiosa.�A�instalação�constitui-se�de�um�aglomerado�de�bandejas�de�diversas�dimensões,�pintadas�de�negro�com�textos�escritos�com�lápis�branco,�colocadas�na�parede�ao�gosto�das�porcelanas�usadas�nos�lares�tradicionais.�A�narrativa�imagística�alia-se�ao�texto,�e�o�contexto�muda.�É�uma�obra�que�já�foi�apresentada�anteriormente�no�Recife�

Obra�de�Ulisses�Lociks,�2008

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na�Galeria�Amparo�60,�e�em�São�Paulo�no�SESC�Pompeia.�O�amplo�trabalho�desta�notável�artista�foi�recentemente�editado�no�livro�“Dez�Dedos�‒�Juliana�Notari”,�organizado�por�ela�e�pela�curadora�pernambucana�Clarissa�Diniz�(atualmente�Diretora�de�Conteúdo�do�Museu�de�Arte�do�Rio�de�Janeiro�‒�MAR).�O�livro�é�o�registro�de�uma�década�de�trabalho�onde�Clarissa�enfoca�o�conteúdo�intimista�de�quem�se�entrega�na�obra�à�autoanálise.�Escreve�Clarissa:�“Ao�ofertar�suas�intimidades�em�bandejas�de�luto,�Juliana�nos�impulsiona�a�dela�servirmo-nos�e,�então,�antropofagicamente,�passamos�a�possuir�suas�mazelas.�Dessa�forma,�sua�série�Diário�de�Bandeja�apresenta-se�‒�apesar�de�facilmente�adaptável�aos�enquadramentos�autobiográficos�e�relacionais�da�produção�de�arte�contemporânea�‒�como�mais�um�ato�sutilmente�perverso�de�sua�obra.“�

Seguindo�o�mote�da�acumulação�e�da�narrativa,�vemos�a�surpreendente�obra�de�Iris�Helena,�jovem�artista�de�João�Pessoa.�Trata-se�de�uma�fotografia�de�uma�cena�de�rua�de�sua�cidade�fragmentada�em�588�quadrados,�e�remontados�como�num�quebra-cabeças.�Um�trabalho�que�demonstra�o�bom�uso�dos�meios�eletrônicos,�mas�mesmo�assim�de�difícil�elaboração,�missão�que�ela�enfrenta�exemplarmente.�O�resultado�é�uma�surpreendente�imagem,�uma�fotografia�ampliada�acima�dos�seus�limites�onde�a�retícula�resultante�disso�parece�ser�a�deformação�dos�pixels,�mas�imediatamente�se�percebe�a�riqueza�imagética�que�os�detalhes�nos�apresentam.�Dominando�a�linguagem�virtual�ela�afirma�o�instrumento�digital�com�rara�competência.

Ainda�sobre�acúmulos�temos�a�instalação�da�artista�baiana�Ieda�Oliveira.�O�interesse�desta�obra�está�no�ajuntamento�de�um�mesmo�objeto�de�uso�comum,�cintos�femininos,�montados�um�ao�lado�do�outro�como�que�numa�mobília�de�loja�tomando�todo�o�espaço�da�parede.�Fez-me�pensar�na�obra�de�José�Patrício�que�acumula,�porém�em�composições�harmônicas,�milhares�de�objetos�como�pedra�de�dominós,�dados�ou�botões�em�quadros�e�instalações�de�grande�interesse,�mas�vem-me�á�cabeça,�mais�pela�cumulação�e�menos�pelo�significado,�a�obra�de�Jac�Leirner.�

Ieda�também�reflete�a�história�recente�de�Salvador�que�tem�como�referência�moderna�a�obra�de�Mário�Cravo�Filho�e�Neto,�de�Rubem�Valentim�e�de�Sante�Scaldaferri,�por�exemplo.�Mas�os�artistas�de�Salvador�mergulharam�na�contemporaneidade�nos�anos�de�1990,�com�a�criação�do�Salão�MAM-Bahia�de�Artes�Plásticas�e�da�Bienal�do�Recôncavo�que�se�tornaram�instrumentos�de�atualização�estética�para�os�artistas�locais.�Consequência�disto�passou-se�a�se�ver�nas�obras�de�Marepe,�Caetano�Dias,�Paulo�Pereira,�Vauluizo�Bezerra,�entre�tantos.�

Na�mesma�vertente�está�a�obra�de�Ulisses�Lociks,�também�de�Alagoas:�uma�malha�de�traços�pretos�de�grande�dimensão�traçada�a�bico�de�pincel�em�suporte�colado�na�parede.�Além�do�emaranhado�gráfico�dos�traços,�que�seguem�direções�diferentes,�o�conjunto�das�folhas�coladas�forma�também�um�desenho�externo�que�se�configura�independentemente�do�conteúdo�gráfico.�A�obra�de�Ulisses�nos�encaminha�para�outro�caminho�seguido�aqui:�a�presença,�e�porque�não�dizer�a�permanência,�do�desenho.�

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Obra�de�Iris�Helena,�2011

Obra�de�Marcelo�Ghandi,�2011

Obra�de�Bruno�Vilela,�2013

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É�curioso,�pois�o�desenho,�assim�como�a�pintura,�são�as�mais�básicas,�para�não�dizer�tradicionais,�das�práticas�artísticas�visuais,�porém�permanecem�na�obra�de�artistas�da�atualidade,�o�que�nos�faz�pensar�que�a�arte,�como�é�vista�pelos�teóricos�que�propõem�o�rompimento�da�arte�contemporânea�com�a�arte�tradicionalmente�realizada,�especialmente�no�que�se�refere�ao�conceito�de�desmaterialização,�de�certa�forma�permanece.�

Além�da�grafitagem�de�Ulisses,�quatro�outros�artistas�mostram�desenhos,�ou�desenhos�relacionados�à�pintura:�Yuri�Firmeza�e�Waléria�Américo,�do�Ceará,�Marcelo�Gandhi,�do�Rio�Grande�do�Norte�e�Bruno�Vilela,�do�Recife.�Diferente�de�Ulisses�e�de�Bruno�Vilela,�artista�muito�atuante�no�Recife�que�apresenta�dois�grandes�retratos�pintados�sobre�papel,�um�com�tinta�verde�e�outro�magenta,�os�outros�apresentam�pequenos�desenhos,�mesmo�que,�como�é�o�caso�de�Gandhi,�alguns�desenhos�estejam�aglomerados�em�telas�de�grande�formato.�A�obra�de�Yuri�Firmeza�é�uma�sequência�montada�em�molduras�diferentes�onde�se�vê�uma�casinha�que�se�derrete�de�desenho�em�desenho�formando�uma�narrativa,�de�novo,�que�nos�leva�aos�comics�que�parecem�ser�uma�das�fontes�do�desenhista�atual,�ao�lado�do�grafite�de�rua.�

Em�Natal,�embora�o�meio�artístico�seja�menor�do�que,�por�exemplo,�João�Pessoa,�destaca-se�um�grupo�que�nos�anos�de�1980�fizeram�uma�parte�da�vanguarda�possível,�os�já�citados�Jota�Medeiros,�Dailor�Varela,�Falves�Silva,�Anchieta�Fernandes�e�Moacir�Cirne.�Marcelo�Gandhi�aglomerou�numa�grande�tela�vários�desenhos�que�se�assemelham�aos�pequenos�desenhos�feitos�a�traços�soltos�de�nanquim�que�dão�sequência�na�parede.�Na�tela�também�se�encontram�fragmentos�de�grafites,�de�sua�autoria�ou�não,�espalhados�aleatoriamente,�sem�nenhuma�preocupação�composicional.�

Os�cearenses�Yuri�Firmeza�e�Waléria�Américo�trazem�mini�desenhos.�Yuri�conta�a�história�de�uma�casinha�vermelha�que�se�derrete�de�quadro�em�quadro�ao�jeito�das�narrativas�das�HQ.�Waléria�mostra�um�vídeo�e�desenhos�pequeninos.�Na�Mostra,�este�desvio�para�o�pequeno,�o�mínimo�‒�não�minimal�art�‒�não�se�limita�ao�desenho,�o�baiano�Gaio�Matos�traz�um�conjunto�de�três�fotografias�de�maquetes�das�mínimas�casinhas�dos�conjuntos�residenciais�da�população�pobre�pousadas�na�palma�de�uma�mão.�Fortaleza�é�uma�cidade�pioneira�da�modernidade�na�arte�nordestina,�nos�anos�de�1950�lá�estavam�o�pintor�abstracionista�informal�Antonio�Bandeira,�o�abstracionista�geométrico�Sérvulo�� �

Esmeraldo�e�o�desenhista�que�mudou�o�desenho�brasileiro,�Aldemir�Martins.�Hoje�a�obra�de�José�Leonilson�e�Eduardo�Frota�é�mostrada�nacionalmente�em�grandes�eventos�da�arte�contemporânea.�

O�importante�artista�maranhense�Thiago�Martins�de�Melo,�que�fez�parte�da�exposição�Zona�Tórrida�apresentada�no�Santander�Cultural�do�Recife�com�curadoria�de�Paulo�Herkenhoff�e�Clarissa�Diniz.�O�texto�curatorial�o�coloca�ao�lado�de�grandes�pintores�da�geração�de�1960.�A�pintura�de�Martins�de�Melo,�como�a�obra�de�Antonio�Dias�e�Tunga,�é�campo�da�fantasmática.�Incorpora�a�carnalidade�como�o�corpo�sexualizado�do�pintor�transferido�à�pintura.�Com�esta�colocação�de�dois�importantes�curadores�chega-se�a�pensar�como�em�São�Luiz,�cidade�tradicional�fora�dos�circuitos�da�arte�brasileira,�com�pouca�citação�na�nossa�pequena�história�da�arte,�como�surge�um�pintor�desta�qualidade!�

Dois�artistas�apresentam�obras�de�fotografia:�Sofia�Porto�Bauchwitz,�de�Natal,�e�Christus�Nóbrega,�de�João�Pessoa.�Sofia�fotografou�relações�eróticas�através�de�detalhes�que�somente�sugerem�o�ato.�Já�Christus�tem�algo�mais�formal�que�busca�a�invenção,�embora�com�algum�atraso:�retratos�montados�em�cartão�e�emoldurados�com�vidro,�onde�as�fotografias�são�vazadas�por�recortes�de�círculos�e�outras�formas�geométricas,�e�se�superpõem�a�outras�que�aparecem�através�do�vazado.�Um�truque�estético�que�trabalha�a�noção�de�espaço,�profundidade�e�bordeja�o�objeto.�

Temos�dois�trabalhos�do�Piauí:�uma�instalação�de�autoria�de�um�grupo�teatral�composto�por�Jacob�Alves,�Bebel�Frota�e�César�Costa,�e�as�impressões�de�Edilson�Pacheco.�O�grupo�de�teatro�utiliza�as�artes�visuais�nas�performances�em�cena.�É�útil�recordar�que�os�artistas�nordestinos�introjetaram�tardiamente�a�instalação�como�categoria�de�arte,�e�a�performance,�hoje�relacionada�com�o�happening�dos�anos�60,�muitas�vezes�é�confundida�com�a�arte�cênica.�A�instalação�apresentada�é�composta�por�um�manequim�vestido�com�trajes�do�dia-a-dia,�com�a�cabeça�coberta�e�uma�câmera�que�filma�quem�o�observa�a�cena.�

Já�obra�de�Edilson�Pacheco�é�um�conjunto�de�fotografias�de�fezes�humanas�trabalhadas�em�um�programa�tipo�photoshop�e�impressas�em�papéis�diferentes.�Não�há�como�não�me�referir�ao�trabalho�de�Piero�Manzoni�realizado�há�meio�século�(1961)�intitulado�Merde�dʼartista�(Merda�de�7

Fotografia�de�Sofia�Bauchwitz,�2013

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artista),�onde�ele�embalou�seus�próprios�excrementos�em�90�latas�numeradas�e�etiquetadas.�Toda�série�foi�adquirida�por�colecionadores�da�época,�pois�se�tratava�de�manifestação�da�vanguarda�italiana.�

De�Aracaju�temos�apenas�a�participação�de�Elias�Santos�com�uma�pequena�instalação�composta�de�objetos�como�caixas�compostas�no�chão�onde�se�encontram�cruzes�judiciosamente�compostas.�Aracaju�é�uma�cidade�onde�vários�artistas�se�reúnem�sob�a�liderança�de�Antonio�Cruz�e�a�égide�da�ONG�Sociedade�Semear,�mesmo�que�vigore�a�tradição�da�pintura�de�Jenner�Augusto�que�esteve�alinhado�aos�artistas�que�orbitavam�Jorge�Amado.�

É�bom�lembrar,�embora�isto�não�represente�um�núcleo�de�influência�para�os�novos�artistas,�que�Artur�Bispo�do�Rosário�é�sergipano.�As�experiências�recentes�da�arte�contemporânea�sergipana�nos�leva,�além�de�Elias�Santos,�a�jovens�e�atuantes�artistas�como�Alan�Adi,�Ana�Carolina,�Bené�Santana,�Fábio�Sampaio,�Jamson�Madureira,�João�Valdênio�e�Marcos�Vieira,�todos�eles�alinhados�com�a�linguagem�de�agora.�

Eis�o�elenco�de�artistas�visuais�deste�panorama.�Além�dos�excelentes�destaques�aqui�comentados,�ele�fornece�a�possibilidade�de�intercâmbio�entre�os�artistas�e�seus�públicos�em�todas�as�capitais�do�Nordeste.�Trata-se�de�um�trabalho�que�pode�crescer�muito�com�o�passar�do�tempo,�anseio�de�artistas�e�ativistas�da�causa�das�artes�visuais�como�fator�de�integração�da�cultura�“contemporânea”�no�Nordeste.

Raul�Córdula�é�artista�visual�e�crítico�de�arte�(ABCA/AICA).�Vice-presidente�para�o�Nordeste�da�Associação�Brasileira�de�Críticos�de�Arte-ABCA.�Criador�e�dirigente�de�instituições�culturais:�NAC/UFPB�(João�Pessoa);�Museu�de�Arte�Assis�Chateaubriand-MAAC�(Campina�Grande-PB);�Casa�da�Cultura�(Recife);�Fundação�Espaço�Cultural�da�Paraíba-Funesc�(João�Pessoa);�Oficina�Guaianases�de�Gravura�(Olinda).�Foi�representante�do�Brasil�na�Conferência�Mundial�de�Artesanato,�México.�Representa�no�Brasil�a�Association�Culturelle�Le�Hors-Là,�de�Marselha�(França).�Publicou�os�livros�Anos�60�(Funarte,�UFPB),�Memórias�do�Olhar�(edições�Linha�DʼÁgua),�Fragmentos�(edições�Funesc)�e�Utopia�do�Olhar�(Funcultura,�Fundarpe,�Governo�de�Pernambuco).

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Pela�integração�do�artista�nordestino¹Depoimento�de�Raul�Córdula�a�Sérgio�de�Castro�PintoJornal�A�União,�domingo,�06�de�setembro�de�1981,�João�Pessoa-PB

Mais�de�200�artistas�plásticos�nordestinos�‒�da�Paraíba,�Pernambuco,�Ceará,�Alagoas�e�Bahia�‒�estiveram�reunidos�em�Salvador,�no�1º�Encontro�Nordestino�de�Artistas�Plásticos,�promovido�pela�Fundação�Cultural�do�Estado�da�Bahia�através�do�Museu�de�Arte�Moderna�da�Bahia�(Museu�do�Unhão).�O�encontro�teve�também�o�apoio�das�Delegacias�Regionais�do�MEC�e�da�Funarte.�A�ideia�do�Encontro�foi�do�artista�Chico�Liberato,�Diretor�do�Museu�do�Unhão,�quando�de�sua�visita�à�Funarte�para�articular�a�recepção�das�obras�dos�artistas�nordestinos�que�participarão�do�IV�Salão�Nacional�de�Artes�Plásticas.�Este�ano�a�seleção�deste�Salão�está�sendo�feita,�além�de�no�Rio�de�Janeiro,�em�Salvador,�Brasília,�São�Luís�e�Florianópolis.�Os�artistas,�reunidos,�elegeram�o�artista�plástico�baiano,�residente�em�Brasília,�Rubem�Valentim,�presidente�de�honra�do�encontro;�Raul�Córdula,�artista�paraibano�Coordenador�do�NAC,�vice-presidente;�Fernando�Guerra,�da�Associação�de�Artistas�Plásticos�de�Pernambuco,�secretário,�e�Romélio�Aquino,�professor�de�arte�e�presidente�da�ADUF/BA,�relator.�Os�grupos�de�trabalhos�foram�formados�sobre�três�temas:�A�questão�da�circulação�das�artes�plásticas,�da�organização�do�artista�plástico�e�do�ensino�de�arte�no�Nordeste.�Estes�temas�foram�discutidos�durante�dois�dias�de�trabalho�e,�na�última�reunião�plenária,�foram�lidos�os�documentos�finais�de�cada�grupo�e,�após�as�emendas�e�a�aprovação,�seguiram-se�as�moções�e�o�encerramento�com�um�discurso�de�Rubem�Valentim.

Qual�a�importância�deste�Primeiro�Encontro�de�Artistas�Plásticos�Nordestinos�para�o�Nordeste�e�a�Paraíba?

Antes�quero�dizer�que�este�parece�ser�realmente�o�primeiro�encontro�de�artistas�plásticos�do�Nordeste.�A�ocasião�da�montagem�da�exposição�dos�artistas�concorrentes�ao�IV�Salão�Nacional�de�Artes�Plásticas�não�poderia�ser�melhor�porque�isto�propiciou�uma�mostra�significativa�da�nossa�produção�recente�montada�no�Museu�de�Arte�Moderna�da�Bahia,�local�do�Encontro�para�o�júri�de�seleção�do�deste�Salão.�Num�gesto�inteligente�de�Francisco�Liberato,�atual�Diretor�do�MAM-Bahia,�a�mostra�foi�entregue�ao�público�no�dia�da�abertura�do�Encontro.�Esta�atitude�fez�com�que�o�público�baiano�tivesse�contato�com�a�produção�nordestina�através�de�uma�mostra�de�alto�nível,�e�os�artistas�presentes�pudessem�ter�uma�visão�panorâmica�de�nossa�expressão�atual�que�serviu�como�subsídio�para�os�debates�desenvolvidos�lá.�Outro�fato�importante�foi�a�presença�de�mais�de�duzentos�artistas�de�vários�Estados�e�de�tendências�diversas.�A�ausência�de�Maranhão�e�do�Piauí�justifica-se�pelo�fato�de�haver�outra�movimentação�em�São�Luiz,�outro�núcleo�de�recepção�das�obras�para�seleção�deste�Salão�Nacional�(a�seleção�ocorre�este�ano�no�Rio,�em�Brasília,�Salvador,�Florianópolis�e�São�Luiz).�Importantíssima�foi�a�presença�do�artista�plástico�baiano�Rubem�Valentim,�que�reside�atualmente�em�Brasília,�e�que�é�uma�das�vozes�mais�atuantes�na�formação�de�uma�arte�brasileira�coerente�com�nossas�raízes�culturais.

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E�o�resultado�de�tudo�isso?

Primeiramente�os�temas�discutidos�nos�grupos�de�trabalhos�‒�a�circulação�das�artes�visuais�no�Nordeste,�a�organização�dos�artistas�plásticos�e�o�ensino�de�arte�na�região�‒�foram�esclarecedoras�pois�estes�temas�nos�levaram�a�discutir�o�relacionamento�entre�a�produção�artística�e�as�instituições�culturais.�Ora,�o�Salão�Nacional�é�uma�instituição�cultural�que�merece�todo�respeito,�mas�este�respeito�está�na�relação�direta�ao�respeito�que�a�instituição�tem�pelo�artista,�obviamente.�Convivemos�com�a�incômoda�realidade�da�hegemonia�da�informação�gerada�no�eixo�Rio-São�Paulo.�Mas�o�que�não�pode�deixar�de�ser�levado�em�conta�é�a�importância�do�Nordeste�como�região�geradora,�em�quantidade�e�qualidade,�de�valores�fundamentais�para�a�formação�de�nossa�cultura.�Além�do�mais�já�é�patente�a�capacidade�que�temos�de�administrar�nossos�bens�culturais�com�políticas�próprias�que�não�somente�tendem�a�preservar�o�olhar�tradicional�mas�também�a�propor�novas�visualidades.�

É�importante�notar�que,�apesar�de�administrações�exógenas,�nossa�cultura�resiste.�Então�eu�creio�que�a�melhor�proposta�gerada�neste�encontro�foi�a�criação�de�um�Circuito�Nordestino�de�Artes�Plásticas�que�já�está�sendo�projetado�e�pretende�atingir�o�artista,�as�instituições�públicas�e�privadas�e�também�os�espaços�alternativos�como�as�ruas,�os�muros,�os�locais�não�tradicionalmente�ocupados�pela�arte.�Fiquei�muito�honrado,�mas�também�muito�preocupado,�quando�fui�eleito�pelo�plenário�na�última�assembleia�geral�do�encontro,�para�coordenar�este�circuito.�Tenho�disposição�para�isso,�mas�nada�poderei�fazer�sem�o�apoio�dos�artistas�e�das�instituições.�Começo�a�projetar�o�Circuito�tomando�como�base�as�novas�vanguardas�como�a�arte�correio�e�a�grafitagem�dos�muros,�por�exemplo.�É�preciso�mostrar�a�nossa�arte�em�nossa�terra,�isto�não�é�fácil�porque�a�produção�de�qualquer�exposição�é�cara.�Além�disso,�não�temos�curadores�de�arte�e�monitores�de�exposições�suficientes�para�empreender�esta�tarefa.�O�NAC,�por�exemplo,�faz�um�trabalho�de�monitoria�competente,�mas�só�atinge�pequena�parcela�do�alunado�de�1º�e�2º�graus�de�João�Pessoa,�imagine-se�o�Nordeste�como�um�todo,�será�preciso�muito,�muito�mais.�Acredito�que�somente�com�um�trabalho�de�aproximação�da�juventude,�do�estudante,�com�a�arte,�se�poderá�ter�uma�verdadeira�mediação�da�produção�cultural�e�a�formação�do�público,�coisa�que,�com�muito�esforço�e�competência,�levará�pelo�menos�uma�geração.�Mas�a�utopia�

é�própria�dos�artistas,�então�imaginemos�o�Nordeste�como�suas�profundas�diferenças�socio-econômicas�e�etnográficas,�sua�produção�artística�diversificada,�tudo�isso�para�se�manifestar�e�informar�dentro�deste�circuito�desejado�pelos�artistas.�

O�que�mais�de�importante�aconteceu�no�Encontro?

Antes�de�tudo�a�constatação�de�que�temos�capacidade�de�nos�orientar.�As�discussões�dos�nossos�problemas�mostraram�que�eles�são�comuns,�partem�de�situações�impostas,�e�que�estamos�acostumados�a�conviver�com�elas,�mas�já�é�hora�de�nos�libertar.�Serviu�para�refletir�sobre�a�situação�de�colonizados�pelo�sul�do�País,�sobre�a�situação�do�mercado�nem�sempre�sadio,�sobre�a�convivência�com�as�instituições�culturais�que�têm�o�papel�de�mediar�nossa�produção�com�o�povo,�mas�que,�em�alguns�casos,�são�dirigidas�pela�ideologia�do�mercado�promovendo�produção�do�que�parece�com�a�arte�em�detrimento�do�que�é�verdadeiramente�arte.

Nota�do�editor1�O�autor�sugeriu�incluir�este�depoimento,�publicado�em�jornal�da�Paraíba�(1981),�em�seguida�ao�seu�artigo�“para�se�mostrar�que�lutamos�por�isto�há�mais�de�trinta�anos,�esta�Mostra�Nordeste�de�Artes�Visuais�pode�ser�uma�retomada�desta�luta,�mesmo�que�vivamos�no�tempo�da�ʻestética�da�indiferençaʼ“,�afirma�Raul�Córdula.

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O�presente�artigo�propõe�uma�breve�reflexão�sobre�o�atual�momento�vivido�pela�fotografia�autoral�na�Paraíba.�Há�dois�movimentos�possíveis�de�notar,�um�no�âmbito�da�mobilização�e�das�ações�de�alguns�de�seus�agentes,�e�outro�no�plano�da�produção�das�obras�no�qual�se�verificam�novas�posturas�dos�autores�diante�das�possibilidades�de�experimentação�de�diversas�formas�estéticas.�A�respeito�do�primeiro�ponto,�o�recorte�temporal�é�do�ano�de�2010�em�diante,�período�em�que�ocorreu�uma�série�de�atividades�em�prol�da�fotografia�autoral�no�Estado.�Há�pouco�material�publicado�disponível�para�se�fazer�uma�análise�aprofundada�do�período�proposto,�o�que�se�tem�de�mais�consistente�é�o�texto�de�Bertrand�Lira�“Fiando�o�tempo�com�a�luz”,�publicado�recentemente�no�Fotografia�Paraibana�Revista�(2013).�Sobre�o�segundo�tipo�de�movimento,�proponho�uma�reflexão�a�partir�da�experiência�do�projeto�Novíssimos:�talentos�da�fotografia�autoral�na�Paraíba,�coordenado�por�mim.

Fotografia�paraibana:�atuante,�mas�dispersa

À�exceção�de�alguns�centros�nacionais�(exemplo�das�cidades�de�São�Paulo,�Rio�de�Janeiro,�Belém,�Porto�Alegre,�Fortaleza,�Brasília�e�mais�recentemente�Recife),�nas�demais�regiões�do�Brasil�a�fotografia�de�autor�ainda�é�pouco�apreciada�pelo�público�em�geral�e�pelas�instituições�locais�responsáveis�pela�produção�cultural.

Porém�esta�situação�vem�sendo�alterada�paulatinamente�com�as�políticas�de�fomento�à�cultura�e�com�ações�locais�de�iniciativa�de�indivíduos,�grupos,�instituições�públicas�e�também�privadas.�Na�Paraíba,�a�partir�de�2010,�a�fotografia�autoral�vem�cavando�internamente�seu�espaço�nas�artes�visuais�com�importantes�atividades�de�fomento�à�prática�e�ao�pensamento�a�respeito�da�fotografia�de�autor�produzida�no�estado�paraibano:�o�projeto�Lambe-lambe�da�Agência�Ensaio;�os�encontros�Papo�de�Fotógrafo�organizados�pela�parceria�Agência�Ensaio�e�Associação�Paraibana�de�Arte�e�Cultura-APAC�em�2010�[criada�e�extinta�no�mesmo�ano];�as�duas�edições�do�Setembro�Fotográfico�(2011�e�2012)�promovidas�pela�Fundação�Cultural�de�João�Pessoa-Funjope;�o�surgimento�da�Casa�das�Artes�Visuais-CAV�(2011),�uma�galeria�e�escola�voltada�para�a�fotografia�que�em�um�prazo�de�dois�anos�organizou�importantes�exposições�fotográficas,�e�também�promoveu�mesas-redondas¹�a�respeito�da�fotografia;�o�relevante�projeto�Fotografia�Paraibana�Revista�(2013),�de�Gustavo�Moura,�

financiado�pelo�Prêmio�Marc�Ferrez�de�Fotografia,�da�Funarte;�e�o�projeto�Novíssimos:�talentos�da�fotografia�autoral�na�Paraíba�(2013),�de�minha�responsabilidade,�patrocinado�pelo�FIC�-�Fundo�de�Incentivo�à�Cultura�“Augusto�dos�Anjos”,�da�Secretaria�de�Cultura�do�Estado�da�Paraíba.

Olhando�por�este�viés,�a�fotografia�autoral�na�Paraíba�contemporânea�está,�sim,�em�movimento.�Um�movimento²�de�mobilização�dos�agentes�da�fotografia�que�vem�buscando�seu�espaço�nas�Artes�Visuais�com�o�objetivo�de�fomentar�a�prática�e�o�pensamento�a�respeito�da�fotografia�como�forma�de�expressão�pessoal.�Por�outro�lado,�apesar�dos�recentes�esforços,�as�ações�empreendidas�continuam�concentradas�na�capital,�e�têm�reduzido�alcance�de�público�geral�e�mesmo�especializado.�Há�pouco�espaço�e�pouco�estímulo�para�o�surgimento�de�novos�fotógrafos�que�pensam�a�fotografia�como�expressão�artística.�O�público�que�aprecia�a�fotografia�como�arte�é�muito�reduzido.No�entanto,�a�movimentação�em�prol�da�fotografia�não�é�uma�novidade�na�Paraíba,�um�bom�exemplo�disso�foi�a�experiência�dos�Traficantes�de�Imagem,�que,�em�1994�organizou�a�I�Semana�Paraibana�de�Fotografia.�Segundo�Bertrand�Lira,�este�evento

foi�um�marco�na�tomada�de�consciência�e�no�contato�do�público�local�com�o�mundo�da�fotografia�brasileira�e�do�próprio�estado.�Uma�semente�plantada�e�que�só�viria�a�brotar�quase�duas�décadas�depois�no�Setembro�Fotográfico�de�2011�e�2012�(LIRA,�apud�MOURA,�2013,�p.74).�

Parece,�assim,�ter�havido�um�hiato�de�quase�duas�décadas�entre�o�frutífero�movimento�dos�anos�90�e�a�movimentação�que�se�nota�a�partir�dos�quatro�últimos�anos.�É�possível�que�este�vácuo�explique,�ao�menos�em�parte,�a�reduzidíssima�expansão�da�fotografia�autoral�produzida�na�Paraíba�nos�quase�20�anos�que�se�passaram,�e�seu�isolamento�dentro�e�fora�do�Estado:�poucos�fotógrafos�radicados�na�Paraíba�estão�inseridos�no�cenário�da�arte�fotográfica�local,�regional�e�nacional.�Estes�dois�problemas,�porém,�tendem�a�ser�em�parte�superados�se�mantida�a�frequencia�com�que�os�eventos�em�prol�da�fotografia�autoral�vem�acontecendo,�especialmente�aqueles�que�propiciam�espaços�para�a�reflexão�(mesa-redonda,�palestras,�oficinas)�e�difusão�de�obras�fotográficas�por�meio�de�exposições�e�publicações�de�catálogos.�O�pontapé�inicial�para�se�superar�o�quadro�de�

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A�fotografia�autoral�na�Paraíba�contemporânea

Paulo�Rossi������������������������������������������������������������[email protected]

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isolamento�interno�e�externo�da�fotografia�autoral�paraibana�foi�dado�pelas�duas�edições�do�Setembro�Fotográfico:�no�âmbito�local,�suas�atividades�propiciaram�o�contato�entre�os�fotógrafos�e�os�demais�interessados�na�arte�fotográfica.�No�plano�nacional,�os�dois�eventos�promoveram�importantes�momentos�de�troca�com�fotógrafos�e�curadores�de�outras�regiões�do�país.�No�plano�regional,�a�troca�com�alguns�fotógrafos�do�Rio�Grande�do�Norte�presentes�no�evento,�em�particular�Pablo�Pinheiro³,�engendrou�não�apenas�um�contato�mais�estreito�entre�fotógrafos�paraibanos�e�potiguares,�como�também�fez�ver�que�a�realidade�da�fotografia�autoral�em�ambos�os�Estados�é�bastante�similar.�Assim�como�na�Paraíba,�agentes�da�fotografia�potiguar�também�estão�procurando�dar�conta�de�

4sua�própria�produção .

Experimentando�a�liberdade�de�experimentar

Simultaneamente�a�toda�esta�movimentação,�outro�tipo�de�movimento�vem�acontecendo�na�Paraíba:�várias�formas�estilísticas�tem�se�manifestado,�ainda�que�timidamente,�no�quadro�da�fotografia�autoral.�A�experiência�do�projeto�

5Novíssimos �me�proporcionou�uma�visão�mais�ampla�da�produção�da�fotografia�de�autor�no�estado�paraibano.�Dos�

6123�inscritos �no�processo�seletivo,�vinte�foram�pré-selecionados�para�entrevistas�presenciais�e�mostrar�seus�de�

7portfólios.�Destes,�apenas�seis �foram�selecionados�para�participar�da�exposição�Novíssimos:�talentos�da�fotografia�autoral�na�Paraíba�e�ter�suas�obras�publicadas�num�catálogo�impresso.�Cabe�dizer�que�o�número�de�selecionados�poderia�ter�sido�maior,�no�entanto,�os�limites�financeiros�do�projeto�só�permitiam�seis�fotógrafos.�

Embora�conhecedor�de�sua�diversidade,�a�produção�local�mostrou-se�mais�diversa�do�que�eu�poderia�imaginar:�uma�produção�surpreendente�que�vai�do�documental�e�da�clássica�fotografia�de�rua,�a�séries�de�retratos�ensaísticos�e�à�diversidade�da�fotografia�experimental;�do�fotógrafo�que�se�expressa�sobre�o�mundo�exterior,�ao�que�abarca�o�universo�interior;�do�que�procura�representar�o�outro,�ao�que�procura�representar�o�eu.

Há�dois�aspectos�a�meu�ver�relevantes�que�ajudam�a�compreender�esta�diversidade.�O�primeiro�diz�respeito�ao�peso�da�formação�de�novos�fotógrafos�promovida�por�cursos�livres�de�fotografia�e�especialmente�pelos�cursos�universitários.�Dos�vinte�pré-selecionados,�onze�têm�

formação�acadêmica�em�cursos�nas�áreas�de�comunicação�social,�artes�visuais�e�arquitetura,�e�três�são�formados�em�

8cursos�livres�de�fotografia .�Dos�seis�selecionados,�um�é�formado�em�cursos�livres,�e�os�outros�cinco�têm�formação�acadêmica.�Alessandra�Soares,�por�exemplo,�autora�do�ensaio�Desmedidas,�é�mestranda�no�Programa�de�Pós-graduação�de�Arquitetura�e�Urbanismo�da�UFPB,�e�realiza�dentro�do�universo�acadêmico�pesquisas�e�projetos�fotográficos�que�abordam�temas�relativos�às�cidades�e�culturas�contemporâneas�cujo�foco�é�explorar�imageticamente�as�práticas�cotidianas.

É�inegável�que�o�fomento�à�pesquisa,�o�contato�com�a�história�da�arte,�os�estudos�da�imagem,�o�aprendizado�técnico�e�os�espaços�de�interlocução�que�tais�cursos�promovem,�provocam�e�estimulam�as�nova�gerações�a�produzir�e,�sobretudo,�a�experimentar�diversas�possibilidades�técnicas�e�estéticas,�a�explorar�uma�

9�tendência�espiritual típica�de�nossa�época:�nos�dias�de�hoje,�na�era�da�fotografia�digital,�das�novas�mídias�e�das�ferramentas�de�edição�e�tratamento�de�imagem,�não�apenas�ampliou-se�significativamente�o�acesso�ao�aparato�técnico�e�à�quantidade�de�imagens�produzidas,�como�também�ampliaram-se�as�possibilidades�de�produção,�de�criação,�de�exibição�e�de�interação�entre�artista�e�obra,�obra�e�público.�Um�quadro�que�se�aproxima�do�modo�como�Ronaldo�Entler�(2011)�define�a�fotografia�contemporânea:

Tudo�pode�ser�feito�em�termos�de�técnicas,�de�procedimentos,�de�linguagem.�Apenas�um�dado�é�irrevogável:�a�consciência�desse�tempo�presente,�e�de�algumas�de�suas�conquistas.�Não�é�mais�cabível�mistificar�o�meio,�desconhecer�seu�sentido�cultural,�seu�modo�de�funcionamento.�Uma�fotografia�pode�voltar�a�ser�documental,�pode�abordar�a�realidade�e�a�memória,�mas�deve�estar�ciente�da�intervenção�gerada�pelo�dispositivo.�Entenda-se�como�dispositivo�não�apenas�o�aparelho,�mas�os�comportamentos�e�os�rituais�que�ele�gera,�as�dinâmicas�de�seu�mercado,�as�formas�de�diálogo�com�outras�linguagens,�seus�meios�de�difusão,�suas�formas�de�recepção.�Portanto,�a�fotografia�contemporânea�não�é�um�tipo�de�imagem,�mas�uma�postura�que�se�pode�ter�diante�de�qualquer�imagem.�[grifo�meu]

O�segundo�aspecto�que�nos�ajuda�a�compreender�a�diversidade�da�fotografia�autoral�produzida�na�Paraíba,�que�extraio�da�experiência�do�projeto�Novíssimos,�se�baseia�11

Objeto�geladeira,�da�obra�Alucinose,�em�processo�de�ressignificação,�de�Luciana�Urtiga.�(Fotos:�Luca�Fiorin,�2013)

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nesta�consciência�do�tempo�presente�e�nesta�nova�postura�diante�da�fotografia.�Durante�todo�o�tempo�de�preparação�da�exposição�‒�pouco�mais�de�um�mês�‒�curador�e�fotógrafos�selecionados�vivenciaram�um�processo�criativo�colaborativo�no�qual�se�experimentou�a�“liberdade�de�experimentar”�(ENTLER,�2011).�A�imagem�em�si�não�poderia�representar�o�limite�da�obra,�dialogando�com�o�passado�ou�com�a�era�das�novas�tecnologias,�era�preciso�focar�um�conjunto�de�elementos�técnicos,�estéticos,�epistemológicos,�conceituais�que�deriva�de�um�potencial�criativo�e�que�portanto�transcende�a�imagem�dando�a�devida�liberdade�para�o�desenvolvimento�processo�criativo.�A�seguir�relato�dois�casos�que�exemplificam�bem�esta�experiência.

Por�favor,�bata�na�porta!,�de�Dayse�Euzébio,�é�um�belíssimo�ensaio�de�cunho�documental�cujas�imagens�foram�tomadas�em�2011�no�interior�de�ocupação�de�um�prédio�abandonado�na�cidade�de�João�Pessoa.�A�autora�já�possuía�o�ensaio�pronto,�mas�durante�o�processo�posto�em�marcha,�trabalhamos�sobre�uma�nova�concepção�do�tema,�tratando�de�transcender�o�conjunto�de�imagens.�A�proposta�foi�partir�de�uma�das�fotos�‒�precisamente�a�que�apresenta�um�retrato�do�ocupante�da�casa�e�da�disposição�de�seus�objetos�‒�e�dela�extrair�a�concepção�do�sentido�do�“por�favor,�bata�na�porta!”.�Ou�seja,�tratando-se�ou�não�de�uma�ocupação,�o�que�se�vê�é�um�lar�provido�de�sua�organização�interna,�como�todo�e�qualquer�lar.�Esta�concepção,�somada�aos�diferentes�tamanhos�das�fotos,�da�sua�disposição�nas�paredes�da�galeria,�da�escolha�das�molduras,�conforma�a�essência�do�ensaio�de�Dayse�Euzébio,�muito�mais�do�que�um�conjunto�de�imagens�sobre�um�tema��qualquer.

Outro�caso�bastante�elucidativo�foi�a�transformação�do�ensaio�Alucinose,�de�Luciana�Urtiga:�um�conjunto�de�fotomontagens�‒�que�articulam�autorretratos�e�outros�objetos�como�a�lua,�a�raiz�de�uma�árvore�etc.�‒�transformou-se�em�uma�instalação�na�qual�foi�incorporada�uma�geladeira�velha,�agora�ressignificada.�Ao�longo�do�processo�o�objeto�geladeira�foi�experimentado�de�várias�formas,�sua�função�e�seu�significado�dentro�da�obra�foram�pensados�e�repensados�muitas�vezes,�com�o�cuidado�para�que�o�ensaio�fotográfico�não�ficasse�em�segundo�plano:�fotografias�e�objeto�ressignificado�tornam-se�um�novo�objeto�fotográfico�capaz�de�provocar�um�tipo�de�interação�com�o�espectador�diferente�do�que�se�as�fotografias�estivessem�expostas�na�parede.

Os�selecionados�para�o�Novíssimos�‒�Adriano�Franco,�Alessandra�Soares,�Dayse�Euzébio,�Everton�David,�Igor�Suassuna�e�Luciana�Urtiga�‒�são�uma�pequena,�mas�representativa�mostra�da�potente�diversidade�da�fotografia�autoral�produzida�na�Paraíba,�que�aos�poucos�abandona�o�estado�latente�no�qual�se�encontra�para�configurar�um�novo�panorama�no�quadro�das�artes�visuais�paraibana�e,�por�que�não,�nacional.

Paulo�Rossi�é�fotógrafo�há�mais�de�20�anos.�Formado�em�Sociologia�e�Política�pela�Escola�de�Sociologia�e�Política�de�SP,�e�em�Estudos�Sociais�na�Université�Catholique�de�Lyon.�É�mestre�em�Sociologia�pela�USP�cuja�dissertação�discutiu�a�vida�e�a�obra�do�fotógrafo�August�Sander.�Foi�professor�no�curso�de�Bacharelado�em�Fotografia�do�SENAC-SP�onde�ministrou�disciplinas�técnicas�e�teóricas�dentre�as�quais�Sociologia,�História�da�Fotografia�na�América�Latina�e�Movimentos�Estéticos�da�Fotografia.�

Notas1�Além�de�atividades�organizadas�por�sua�própria�iniciativa,�a�CAV�realizou�atividades�em�parceria�com�o�poder�público�e�com�dois�outros�projetos�financiados�também�pelo�poder�público.�Em�2012�recebeu�em�sua�sede�algumas�atividades�do�Setembro�Fotográfico�(organizado�pela�Funjope):�uma�mesa-redonda�com�o�fotógrafo�mineiro�Pedro�David,�um�workshop�de�caráter�técnico�ministrado�por�mim,�uma�palestra�com�o�coletivo�paulistano�Cia�de�Foto,�e�a�exposição�do�diretor�de�fotografia�paraibano�João�Beltrão.�Em�2013,�na�sua�galeria,�foi�realizado�o�lançamento�do�Fotografia�Paraibana�Revista�e,�pelo�mesmo�projeto,�a�exposição�“Além�da�bicicleta”,�de�Alberto�Ferreira.�Também�em�2013�foi�palco�da�exposição�Novíssimos:�talentos�da�fotografia�autoral�na�Paraíba,�e�da�mesa-redonda�“A�fotografia�autoral�na�Paraíba�contemporânea”.2�Merece�ser�pontuado�o�assento�da�fotografia�no�Conselho�Municipal�de�Política�Cultural�(CMPC)�de�João�Pessoa,�uma�conquista�que�remonta�à�criação�Fórum�da�Fotografia�Paraibana�em�2009�(http://forumdafotografiaparaibana.blogspot.com.br).�Neste�mesmo�ano,�o�Fórum�conseguiu�ter�uma�atuação�efetiva�na�mobilização�de�seus�agentes,�culminando�com�a�participação�de�alguns�deles�na�II�Conferência�Municipal�de�Cultura�de�João�Pessoa.�De�2010�em�diante�Fórum�se�desmobilizou,�mas�conseguiu�em�2012�eleger�um�conselheiro�e�um�suplente�para�a�vaga�no�CMPC.�No�início�de�2013�houve�uma�retomada�de�suas�atividades,�ainda�que�muito�tímida�e�com�reduzida�participação,�em�conjunto�com�o�Fórum�de�Artes�Visuais.3�Pablo�Pinheiro�é�fotógrafo,�membro�do�Coletivo�Potiguar�e�do�Foto�RN�-�Fórum�Permanente�de�Fotografia�do�Rio�Grande�do�Norte.�É�representante�do�Nordeste�do�Fórum�Nacional�Setorial�de�Artes�Visuais,�e�diretor�regional�da�Rede�de�Produtores�Culturais�da�Fotografia�no�Brasil�‒�RPCFB.4�Em�2009�o�Coletivo�Potiguar�realiza�a�exposição�Coletivo�Potiguar:�fotografia�contemporânea�‒�Imagens�da�Esquina�do�Brasil,�com�curadoria�do�fotógrafo�Ricardo�Junqueira,�e�publica�um�catálogo�com�aproximadamente�70�páginas.�Foi�um�projeto�de�pesquisa�e�análise�crítica�sobre�a�produção�fotográfica�no�Estado�a�partir�do�ano�2000.�Em�2012�surge�o�FOTO�RN�(Fórum�Permanente�de�Fotografia�do�Rio�Grande�do�Norte),�que�no�ano�seguinte,�patrocinado�pelo�Sebrae-RN,�realizou�no�importante�Foto�Rio,�na�cidade�do�Rio�de�Janeiro,�a�exposição�A�transição:�do�tradicional�ao�contemporâneo�‒�produção�fotográfica�do�Rio�Grande�do�Norte.�Este�projeto,�coordenado�pelos�fotógrafos�Pablo�Pinheiro�e�Sônia�Figueiredo,�e�com�curadoria�de�Erik�van�der�Weijde,�apresentou�um�panorama�da�produção�fotográfica�autoral��potiguar�e�gerou�um�catálogo�impresso.5�Novíssimos�foi�um�projeto�de�cunho�artístico�e�cultural�que�teve�por�objetivo�selecionar�e�apresentar�seis�novos�talentos�da�fotografia�autoral�na�Paraíba,�e�promover�uma�mesa-redonda,�12

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Da�série�Por�favor,�bata�na�porta!,�de�Dayse�Euzébio,�2011

Da�série�Chuva�dourada,�de�Igor�Suassuna,�2012-2013Da�série�Desmedidas,�de�Alessandra�Soares,�2013

Da�série�Alma�da�rua,�de�Adriano�Franco,�s.d.

�Da�série�Memórias�da�loucura:�um�sonho�quase�surreal,�de�Everton�David,�2013

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O�que�hoje�são�consideradas�as�primeiras�fotografias�de�moda�da�história�não�eram�chamadas�assim�na�época�em�que�foram�produzidas.�Em�meados�do�século�XIX,�com�a�popularização�da�fotografia,�esta�aos�poucos�substituiu�a�pintura�no�ato�de�registrar�imagens�de�damas�da�sociedade,�atrizes�e�debutantes�que,�de�corpo�inteiro,�exibiam�e�registravam�seus�melhores�trajes.�No�início�do�século�XX�as�imagens�fotográficas�de�moda�começam�a�substituir�as�ilustrações�nas�publicações�da�área�em�países�como�França�e�Estados�Unidos.�“Nas�fotos�editoriais�e�de�propaganda,�a�fotografia�de�moda�se�inspirou�na�cultura�da�época�e�foi�moldada�por�ela,�deixando�um�registro�cativante�das�mudanças�drásticas�no�papel�da�mulher�entre�1900�e�1945.”�(HACKING,�2012,�p.�260).

Nos�anos�1930,�impulsionados�pelo�avanço�tecnológico�dos�equipamentos�fotográficos,�as�imagens�de�moda�começaram�a�ganhar�mais�naturalidade�e�saíram�dos�estúdios.�Foi�quando�as�cidades�e�as�paisagens�urbanas�passaram�a�compor�a�fotografia�de�moda�e�o�ideal�de�beleza,�inserindo-a�em�cenas�mais�reais�e�cotidianas.�“Câmeras�portáteis�como�a�Leica�possibilitaram�aos�fotógrafos�trabalharem�com�realismo�fotojornalístico�fora�dos�limites�do�estúdio.”�(HACKING,�2012,�p.�263).�Durante�a�Segunda�Guerra�Mundial,�o�registro�da�imagem�de�moda�passou�a�ser�mais�documental�e�direto,�seguindo�o�clima�de�recessão�do�período.�Passada�a�Segunda�Grande�Guerra,�a�alta-costura�entrou�em�decadência�e�o�eixo�central�do�mundo�da�moda�mudou�para�Londres,�que�se�tornou�o�centro�criativo�de�jovens�estilistas�e�fotógrafos�que�fundaram�um�movimento�batizado�de�“youthquake”�em�1963,�por�Vreeland,�então�editora-chefe�da�Vogue�(HACKING,�2012).�As�décadas�seguintes�são�marcadas�por�mais�liberdade�nos�temas�das�fotografias�de�moda,�marcadas�muitas�vezes�pelo�erotismo�e�pela�crítica�ao�consumo.�“A�fotografia�de�moda�do�fim�da�década�de�1970�e�início�da�de�1980�muitas�vezes�apresentava�fantasias�de�luxúria�e�consumo,�e�as�mais�controversas�dessas�imagens�eram�publicadas�em�revistas�europeias.”�(HACKING,�2012,�p.�488).

Nos�anos�1990�o�gênero�foi�marcado�pelo�neorrealismo,�também�chamado�de�antimoda.�Fotografias�com�forte�interesse�pelo�cotidiano�e�por�pessoas�e�situações�comuns�passam�a�aparecer�de�forma�mais�constante�nas�diversas�revistas�de�moda:�se�aproximam�das�expressões�de�cultura�das�ruas.�Algumas�mais�conceituais,�como�a�Dazed�&�Confused,�aparecem�e�se�destacam�com�fotos�de�conotação�

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Fotografia�de�moda�e�cidade�como�expressões�de�cultura

Agda�Aquino���������������������������������������������[email protected]

aberta�ao�público,�para�discutir�a�produção�da�fotografia�autoral�na�Paraíba�contemporânea�‒�para�esta�última�atividade�foram�convidados�o�fotógrafo�documental�Gustavo�Moura�e�o�artista�multimídia�Chico�Dantas,�que�atua�no�campo�da�fotografia�experimental.6�Dentre�os�123�inscritos,�23�eram�do�interior�do�Estado,�cinco�dos�quais�foram�pré-selecionados�para�as�entrevistas�presenciais,�um�deles,�Everton�David,�natural�da�cidade�de�Arara�localizada�no�agreste�paraibano,�residente�em�Campina�Grande,�compôs�o�quadro�dos�selecionados�finais.7�Selecionados:�Adriano�Franco�(ensaio�Alma�da�rua);�Alessandra�Soares�(ensaio�Desmedidas);�Dayse�Euzébio�(ensaio�Por�favor,�bata�na�porta!);�Everton�David�(ensaio�Memórias�da�loucura:�um�sonho�quase�surreal);�Igor�Suassuna�(ensaio�Chuva�dourada);�Luciana�Urtiga�(ensaio�Alucinose).��8�Desde�2009�a�ofertas�de�cursos�livres�de�fotografia�em�João�Pessoa�têm�sido�mais�frequentes�(Setor�privado).�Isso�indica�que�a�demanda�por�cursos�dessa�natureza,�ainda�que�lentamente,�está�aumentando.�Ou�seja,�parece�estar�crescendo�o�número�de�pessoas�interessadas�em�estudar�a�fotografia�na�teoria�e�na�prática.�Instituições�públicas�que�oferecem�algum�tipo�de�formação�livre�em�fotografia:�Centro�Cultural�Banco�do�Nordeste�‒�Sousa�(cursos�temporários);�Centro�Estadual�de�Arte-Cenated.�Instituições�privadas�que�oferecem�algum�tipo�de�formação�livre�em�fotografia:�Casa�das�Artes�Visuais�(oferece�cursos�de�formação�continuada�em�fotografia);�Zarinha�Centro�de�Cultura;�Curso�de�Fotografia�Cácio�Murilo;�Curso�de�Fotografia�Rizemberg;�Ricardo�Peixoto/�Agência�Ensaio�Brasil.9�Franz�Roh�(1890-1965),�artista�e�historiador�da�arte�alemão,�propôs�que�“Três�fatores�devem�convergir�logo�que�um�dispositivo�técnico�permite�ampliar�neste�ponto�a�história�dos�homens:�o�acesso�a�este�dispositivo�deve�ser�relativamente�barato,�seu�uso�deve�ser�tecnicamente�fácil,�e�a�tendência�espiritual�da�época�deve�estar�orientada�na�direção�dos�mesmos�prazeres�[visuais].”�(apud�HAUS;�FRIZOT,�1995,�p.459;�tradução�livre).

ReferênciasENTLER,�Ronaldo.�Sentimentos�em�torno�da�fotografia�contemporânea.�Icônica.�São�Paulo:�28�de�junho�de�2011.�Disponível�em�http://iconica.com.br/blog/?p=2088.�Acesso�em�21/10/2013.HAUS,�Andreas�;�FRIZOT,�Michel.�Figures�de�style:�Nouvelle�Vision,�Nouvelle�Photographie.�In�FRIZOT,�Michel�(org.).�Nouvelle�histoire�de�la�Photographie.�Paris:�Bordas�/�Adam�Biro,�1995.LIRA,�Bertrand.�Fiando�o�tempo�com�a�luz.�In�MOURA,�Gustavo�(coord.).�Fotografia�Paraibana�Revista.�João�Pessoa,�PB:�FUNARTE,�2013.

Sites�para�consulta:Fórum�da�Fotografia�Paraibana:�http://forumdafotografiaparaibana.blogspot.com.brProjeto�Novíssimos:�http://projetonovissimos.wordpress.com

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Para�Easterby�(2010)�o�trabalho�dos�fotógrafos�de�moda�é�importante�não�apenas�como�registro�imagético�de�venda�de�produtos,�eles�são�registros�históricos�e�culturais�de�um�povo�e�de�um�tempo.�O�autor�afirma�que�é�necessário�ter�sintonia�com�a�identidade�cultural�da�população�a�quem�se�destina�a�fotografia�de�moda�para�que�o�resultado�obtenha�o�alcance�desejado.�“As�imagens�criadas�pelos�fotógrafos�de�moda�têm�uma�conexão�tão�forte�com�o�público�que�contribuem�para�mudar�as�tendências�que�sustentam�a�sociedade.”�(Idem,�p.�30).

Quem�também�sustenta�esse�pensamento�é�Marra�(2008),�para�quem�a�moda�é�algo�mais�articulado�do�que�simplesmente�a�roupa:�se�trata�de�um�fenômeno�maior,�que�relaciona�o�indivíduo�com�o�seu�papel�no�mundo;�e�a�fotografia�de�moda�o�símbolo�máximo�dessa�mensagem.�“[a�moda]�é�um�fenômeno�complexo�que�concerne�e�relaciona�entre�si�comportamentos,�modos�de�ser,�formas�de�linguagem�e�qualquer�outra�escolha�graças�à�qual�estruturamos�o�nosso�ser�no�mundo.�A�moda�é�então�também�fotografia,�aliás,�o�fotografar,�o�ato�e�a�prática�de�fotografar,�entendidos�como�desejo�não�só�de�criar,�mas�de�desdobrar�a�nossa�vida�em�imagem.”�(MARRA,�2008,�p.�15).

O�autor�reflete�sobre�o�grau�de�abstração�que�os�indivíduos�vivenciam�quando�em�contato�com�as�fotografias�de�moda.�Para�além�de�ver�a�roupa,�ele�afirma�que�diante�de�uma�boa�imagem�de�moda�as�pessoas�entram�em�contato�com�um�universo�mais�sugestivo�do�que�a�pura�informação�sobre�o�produto.�“Diante�da�fotografia�de�moda�nós�substancialmente�experimentamos�uma�possibilidade�de�comportamento,�ou�pelo�menos�a�imaginamos,�a�desejamos,�porque�a�imagem�propõe-nos�uma�espécie�de�protótipo�de�vida,�uma�experiência�de�estilos�e�de�modos�de�ser.”�(MARRA,�2008,�p.�16).

A�identificação�do�observador�da�imagem�com�aquilo�que�está�representado�nela�se�torna,�então,�algo�crucial�na�conjuntura�que�compõe�essa�fotografia,�composta�não�apenas�pelas�vestimentas�nela�utilizadas,�como�também�por�cores,�luzes,�maquiagens,�cabelos�e�cenários,�formando�a�complexidade�da�imagem�de�moda.�“[...]�a�questão�que�mais�caracteriza�toda�a�fotografia�de�moda�é�o�grau�de�credibilidade�e�de�identificação�que�nos�é�proposto�pela�imagem.�Dito�de�forma�banal,�a�moda�nos�propõe�um�signo,�um�imaginário�no�qual�acreditar�e�com�o�qual�se�identificar,�é,�portanto,�evidente�que�o�mecanismo�de�

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sexual.�O�que�também�se�fez�presente�foi�o�estilo�documental�de�rua�característico�da�revista�i-D,�os�straight�up,�que�defendiam�uma�fotografia�mais�pura.�“Punks,�jovens�adeptos�do�estilo�New�Wave�e�outros�passantes�vestidos�de�forma�estilosa�eram�parados�na�rua�e�clicados�em�frente�a�um�muro,�de�corpo�inteiro,�com�as�próprias�roupas.”�(HACKING,�2012,�p.�489).�

Desde�o�fim�dos�anos�1990�a�manipulação�(ou�pós-produção�a�partir�de�softwares)�tornou-se�parte�fundamental�do�trabalho�dos�fotógrafos�e�a�internet�um�espaço�de�grande�expansão,�referência�e�divulgação�para�os�produtores�de�imagens�de�moda.�Além�disso,�essas�imagens�ganham�cada�vez�mais�características�artísticas�e�libertárias,�além�de�permitirem�aos�fotógrafos�criarem�seus�próprios�estilos,�independente�da�publicação�a�qual�as�fotos�se�destinam.�

A�jornalista�e�crítica�de�fotografia,�Simonetta�Persichetti,�defende�a�ideia�que�a�fotografia�de�moda�hoje�é�a�expressão�mais�livre�dentro�da�história�da�fotografia,�já�que�nela�tudo�é�permitido�e�que�sua�função�é�nos�trazer�um�sonho,�uma�ideia,�um�conceito.�Para�Marra�(2008,�p.�15-16),�a�fotografia�de�moda�obviamente�serve�para�fazer�com�se�veja�a�roupa,�porém�não�apenas�isso:�é�um�simulacro�da�realidade,�embebida�em�uma�áurea�mágica�própria�dos�movimentos�artísticos.�Ele�diz�também�que�“É�igualmente�verdadeiro�que�diante�de�uma�boa�imagem�de�moda�nós�entramos�em�contato�com�algo�mais,�algo�mais�sugestivo�que�a�pura�informação�sobre�o�produto.�Diante�da�fotografia�de�moda�nós�substancialmente�experimentamos�uma�possibilidade�de�comportamento,�ou�pelo�menos�a�imaginamos,�a�desejamos,�porque�a�imagem�propõe-nos�uma�espécie�de�protótipo�de�vida,�uma�experiência�de�estilos�e�de�modos�de�ser.”

Existem�hoje�basicamente�dois�tipos�de�editorial�de�moda�para�revistas:�os�publieditoriais�e�os�editoriais�de�cunho�informacional.�O�primeiro�tem�vinculações�econômicas�que�pautam�como�a�imagem�deve�ser�produzida�e�o�que�deve�conter�nela,�já�o�segundo�é�livre�de�intervenções�comerciais�e�pode�ser�mais�conceitual�na�criação�das�imagens�de�moda,�pode�beber�em�todas�as�fontes�da�vida�cultural.�“Um�editorial�é�uma�reportagem�fotográfica�sobre�moda�ou�beleza�planejada�e�realizada�de�modo�a�expressar�a�opinião�e�as�atitudes�do�editor�de�moda�da�revista.”�(SIEGEL,�2012,�p.�16).�

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produtos,�mas�vender�um�conceito.�[...]�DaModa,�uma�publicação�conceitual,�inspirada�na�liberdade�de�expressão�e�sedenta�pelo�novo.”

A�publicação�começou�a�ser�produzida�em�setembro�de�2012�e�é�disponibilizada�gratuitamente�ao�público�através�do�site�Issu.com¹,�voltado�para�publicações�digitais.�Alguns�dos�conteúdos�mais�importantes�produzidos�pela�revista�são�os�editoriais�de�moda,�que�estão�presentes�em�todas�as�edições,�muitas�vezes�mais�de�um�por�edição.�Numa�primeira�observação�é�importante�ressaltar�que,�por�não�ter�vinculação�comercial�nem�obrigação�de�publicar�anúncios�publicitários�ou�peças�de�anunciantes,�os�produtores�e�fotógrafos�da�equipe�dispõem�de�certa�liberdade�na�hora�de�escolher�os�temas�dos�editoriais,�as�peças�utilizadas�e�as�locações�para�as�fotos.�Por�outro�lado,�dada�a�sua�vinculação�à�Prefeitura�da�cidade,�parece�se�fazer�necessário�mostrar�os�espaços�urbanos,�reconhecidos�como�turísticos�ou�não,�sempre�de�forma�bela,�excluindo�possíveis�situações�de�abandono,�sujeira,�pobreza,�depreciação�etc.�Uma�cidade�idealizada.

A�título�de�ilustração�trazemos�aqui,�de�maneira�resumida,�o�exemplo�do�editorial�publicado�na�primeira�edição�da�revista�sobre�o�Mercado�Central�de�João�Pessoa,�com�fotos�

2de�José�Neto .�A�cartela�de�cores�é�vasta,�tanto�na�paisagem�(já�que�se�trata�de�uma�feira�onde�há�a�presença�de�uma�grande�variedade�de�produtos�alimentícios�ou�peças�utilitárias)�quanto�nos�figurinos.�As�peças�utilizadas�no�editorial�foram�fruto�da�oficina�“Célula�de�Criação”�e�teve�como�referência�o�mesmo�local�das�fotos.�Explica�o�texto�que�acompanha�o�editorial:�“Inspirado�no�Mercado�Central�de�João�Pessoa,�o�grupo�consegue�sair�do�óbvio�e�mostra�uma�coleção�cheia�de�movimento,�detalhes,�riqueza�e�aspectos�culturais�do�local.”

O�Mercado�Central�de�João�Pessoa,�construção�dos�anos�1950�recuperada�entre�2010�e�2011,�faz�parte�da�paisagem�urbana�da�cidade�de�forma�marcante.�Ao�contrário�de�outros�espalhados�pela�capital�paraibana,�este�fica�em�uma�área�de�muito�fluxo�da�população�da�cidade,�por�onde�passam�várias�linhas�de�ônibus�e�próximo�a�grandes�empresas�de�comunicação.�A�coleção�tentou�refletir�o�efeito�desordenado�e�multicolorido�da�estrutura�urbana�da�feira�nas�peças,�recorrendo�a�modelagens�inusitadas,�como�no�primeiro�figurino�onde�as�tiras�de�tecido�são�inspiradas�na�visão�que�o�feirante�tem�da�rua�estando�dentro�da�barraca.16

verdade�introduzido�pela�fotografia�desenvolve�um�papel�de�primeiríssimo�plano�na�definição�teórica�do�fenômeno.”�(MARRA,�2008,�p.�39).�

A�cidade�na�fotografia�de�moda

A�identidade�(ou�as�diversas�identidades)�de�um�povo�e/ou�grupo�social�se�dá�de�forma�complexa,�e�as�referências�de�cidade�ou�de�urbanidade�presentes�em�seus�cotidianos�fazem�parte�do�conjunto�de�informações�que�ajudam�a�moldá-la.�Hall�(2001)�explica�que�uma�nação�pode�ser�entendida�como�um�sistema�e�representação�cultural�que�extrapola�a�noção�de�legitimidade�do�ser�social,�pois�as�pessoas�não�são�apenas�cidadãs,�já�que�partilham�uma�série�de�significados�(narrativas,�estratégias�discursivas,�mitos).�Deste�modo,�os�diferentes�membros�das�diversas�culturas�(nacionais,�regionais�ou�locais),�independente�de�sua�etnia,�classe�e�gênero,�seriam�unificados�numa�única�identidade�cultural.�

O�autor�explica�também�que�uma�das�consequências�sobre�as�atuais�identidades�culturais�é�a�homogeneização�cultural�pós-moderna,�que�tende�a�ocidentalizar�as�representações�de�cultura,�tendo�nos�meios�de�comunicação�de�massa�suas�principais�ferramentas�para�isso.�Mas�há�também�as�manifestações�de�resistência�à�globalização�por�identidades�nacionais�e�locais.�“Em�vez�de�pensar�o�global�como�substituto�do�local,�melhor�pensar�numa�nova�articulação�entre�o�global�e�o�local.”�(HALL,�2001,�p.�77).�

A�revista�DaModa�nos�ajuda�a�exemplificar�e�compreender,�até�certo�ponto,�a�resistência�a�essa�homogeinização�da�globalização�a�partir�do�momento�em�que�reforça�as�características�locais�na�imagem�de�moda,�se�articulando�com�referências�globais,�representadas�principalmente�por�elementos�urbanos�da�capital�paraibana.�Para�entender�melhor�essa�caracterização�da�identidade�local�é�necessário�compreender�a�cultura�como�um�processo�complexo�e�permanente�de�trocas�simbólicas,�e�o�fortalecimento�dessa�cultura�local�pode�ser�compreendido�como�uma�reação�a�essa�interação.

Essa�resistência,�ou�diálogo,�como�afirma�Hall�(2001),�pode�ser�exercida�de�diversas�formas.�Na�revista�eletrônica�DaModa,�publicação�conceitual�sem�caráter�comercial�financiada�pela�Prefeitura�Municipal�de�João�Pessoa,�ela�está�presente�em�todo�o�conteúdo�produzido�e�se�caracteriza�visualmente�principalmente�pelos�editoriais:�tanto�na�escolha�das�peças�quanto�da�locação�para�as�fotos.�As�imagens�veiculadas�pela�publicação�optam,�na�sua�maioria,�por�expor�a�capital�paraibana�embebida�numa�áurea�mágica,�aquela�que�é�característica�dos�editoriais�de�moda,�que�nos�remete�a�uma�esfera�de�sonhos,�desejos�e�ideais.�

A�revista�DaModa�faz�parte�desse�projeto�de�promover�a�cultura�de�moda�em�João�Pessoa,�e�para�isso�se�utiliza�de�ícones�e�símbolos�da�capital�da�Paraíba�no�intuito�de�resgatar�a�identidade�do�pessoense�na�imagem�de�moda�e,�assim,�reforçá-la.�Comandada�pela�jornalista�Larissa�Claro,�editora-chefe�da�publicação,�e�pelo�estilista,�produtor�e�diretor�da�Estação�da�Moda,�Romero�Sousa,�tem�na�sua�linha�editorial�a�seguinte�proposta:�“A�ideia�não�é�vender�

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nordestino,�algo�muito�presente�no�cidadão�pessoense.�Segundo�Flusser�(2005,�p.�9),�“as�imagens�são�mediações�entre�o�homem�e�o�mundo”.�Apresentam-se�assim�como�“superfícies�que�pretendem�representar�algo.�Na�maioria�dos�casos,�algo�que�está�lá�fora�no�espaço�e�no�tempo”.�Portanto,�podemos�considerar�que�o�observador�da�imagem�acessa�referenciais�nostálgicos�ao�observar�esse�tipo�de�fotografia.�

Trazemos�ainda�algumas�considerações�sobre�o�editorial�4publicado�na�quarta�edição�da�revista�online ,�com�fotos�de�

Dayse�Euzébio�e�uma�locação�incomum�para�a�tradição�da�fotografia�de�moda�local:�o�Rio�Sanhauá.�A�cidade�de�João�Pessoa,�diferente�de�outras�capitais�do�litoral�brasileiro,�nasceu�no�mangue,�no�rio�que�banha�a�cidade�e�desemboca�no�Rio�Paraíba.�Só�a�partir�dos�anos�1950�ela�cresce�para�a�praia�e�dá�as�costas�para�o�rio�que�a�viu�nascer.�Hoje�sem�praticamente�nenhuma�referência�histórica�do�antigo�Porto�do�Capim,�o�leito�do�rio�é�tomado�por�habitações�irregulares�ocupadas�principalmente�por�pescadores�que�tiram�do�rio�seu�sustento.�A�região�é�poluída�e�as�águas�são�impróprias�para�banho.

As�peças�trazem�um�contraste�entre�a�pobreza�do�lugar�e�a�riqueza�esmerada�da�principal�e�mais�cara�renda�produzida�na�Paraíba:�a�Renascença.�A�renda�Renascença�surge�na�Europa�no�século�XV�e�ganha�espaço�em�países�como�a�França�e�a�Itália.�Ela�chega�à�Paraíba�no�final�do�século�XVII�trazida�por�freiras�carmelitas�que�vêm�para�a�região�e�acabam�ensinando�o�ofício�a�algumas�moradoras�como�forma�de�geração�de�renda�(NÓBREGA,�2005).�Hoje�a�produção�de�renda�é�passada�de�geração�em�geração�e�é�cada�vez�menor�o�número�de�pessoas�que�dominam�a�técnica,�encarecendo�gradativamente�o�produto,�que�hoje�é�sinônimo�de�riqueza�e�sofisticação,�vendida�a�altos�preços�nas�feiras�e�mercados�da�região.�

No�editorial,�as�cores�fortes�dos�barcos,�das�construções�à�beira�do�rio�e�da�natureza�se�contrastam�com�os�tons�suaves�da�renda.�A�revista�explica�em�uma�das�fotos�“A�delicadeza�da�renda�Renascença,�artesanato�típico�do�Cariri�paraibano,�entrelaça�a�cultura�da�nossa�região�com�apelo�sofisticado�em�que�rompe�fronteiras”,�destacando�que�hoje�essa�é�uma�renda�de�alto�custo�e�desejada�em�várias�regiões�do�país�e�do�mundo.�

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“Vestir,�na�história�da�indumentária,�pode�ter�o�sentido�de�instalar�no�corpo�humano�um�cenário,�no�qual�o�mesmo�tem�o�papel�de�agir�e�interagir�como�se�fosse�um�palco�de�representação�de�temas�apocalípticos.”�(DUARTE;�BARROS,�2006,�p.�212).

Já�a�chita�foi�quem�ganhou�espaço�de�destaque�na�segunda�3edição�da�revista �em�coleção�criada�pelo�estilista�paraibano�

Romero�Sousa,�com�fotos�de�Dayze�Euzébio.�Cheia�de�cores�e�estampas�florais�bem�características,�o�tecido�que�tradicionalmente�decorava�as�casas�pobres�do�interior�do�Estado�virou�matéria�prima�para�peças�atuais�e�foi�parar�nas�areias�das�praias�de�João�Pessoa.�

A�praia�é�elemento�pulsante�na�vida�do�pessoense.�Caracterizada�por�uma�topografia�que�permite�que�casas�e�restaurantes�sejam�livremente�acessados�pela�praia,�o�cidadão�da�capital�paraibana�tem�o�hábito�de�frequentar�diariamente�a�orla�da�cidade,�seja�para�a�prática�de�atividades�físicas,�passeios�em�família�ou�mesmo�para�aproveitar�a�areia�ou�o�mar�durante�o�dia�ou�noite.�É�a�área�mais�nobre�da�cidade,�com�os�metros�quadrados�mais�caros,�compostos�por�cinco�bairros,�mas�que�recebe�diariamente�moradores�de�várias�regiões�da�cidade.�A�chita,�por�sua�vez,�vem�aos�poucos�ocupando�espaço�nobre�em�coleções�de�estilistas�brasileiros.�O�tecido,�que�já�vestiu�escravos,�camponeses,�tropicalistas,�personagens�de�literatura,�teatro,�novela�e�cinema,�não�perdeu�o�seu�ar�de�inocência�e�rusticidade�ao�longo�do�tempo,�continua�remetendo�ao�universo�ingênuo.�(MELLAO,�2005).�

Originária�da�Índia�e�com�passagem�por�diversos�países�europeus,�a�chita�chega�a�Portugal�no�século�XV�e�vem�ao�Brasil�no�final�do�século�XVIII.�Por�aqui,�as�cores�discretas�lusitanas�ganham�estampas�graúdas�de�tons�vibrantes,�tingidas�com�os�corantes�vegetais�disponíveis�na�flora�da�região�(GARCIA,�2007).�No�Nordeste�ela�se�torna�produto�barato�por�sua�grande�produção�e�por�ser�um�produto�originalmente�de�baixa�qualidade�e�acaba�se�popularizando�entre�as�famílias�pobres�da�região.�Na�moda,�ela�hoje�é�retomada�como�símbolo�de�um�resgate�cultural�brasileiro,�vivido�intensamente�nos�últimos�anos.�

No�editorial,�o�contraste�entre�o�bege�da�areia�e�a�explosão�de�cores�das�roupas�faz�as�peças�se�destacarem�ainda�mais.�A�chita�cumpre�aí�também�uma�função�saudosista,�a�partir�do�momento�em�que�se�refere�aos�antepassados�do�povo�

Capas�da�revista�online�DaModa,�2012�e�2013

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A�moda�vem�desempenhando�ao�longo�de�toda�a�sua�existência�o�status�de�seus�usuários�sendo,�ainda,�considerada�fator�de�construção�da�identidade�dos�sujeitos,�muitas�vezes�demonstrando�sua�filiação�a�valores�específicos�de�um�determinado�grupo�ou�sociedade�e�a�determinadas�expressões�culturais.�E�a�imagem�de�moda�propagada�pelos�meios�de�comunicação�cumpre�um�papel�fundamental�nesse�processo�de�identificação.�

Agda�Aquino�é�jornalista,�professora�da�Universidade�Estadual�da�Paraíba,�pesquisadora�de�moda,�fotografia�e�comunicação.�

Notas1�Disponível�em:�http://www.issuu.com/damoda.�Acesso�em�maio�de�2013.2�Disponível�em:�http://www.issuu.com/damoda/docs/1edicao.�Acesso�em�maio�de�2013.�3�Disponível�em:�http://www.issuu.com/damoda/docs/da_moda�_02.�Acesso�em�maio�de�2013.4�Disponível�em:�http://issuu.com/damoda/docs/4edicao Acesso�.�em�maio�de�2013.

ReferênciasDUARTE,�Jorge;�BARROS,�Antônio�(Orgs.).�Métodos�e�técnicas�de�pesquisa�em�comunicação.�São�Paulo:�Atlas,�2006.EASTERBY,�John.�150�lições�para�aprender�a�fotografar:�técnicas�básicas,�exercícios�e�lições�para�fotógrafos�iniciantes.�São�Paulo:�Editora�Europa,�2010.FLUSSER,�Villem.�Filosofia�da�caixa�preta:�ensaios�para�uma�futura�filosofia�da�fotografia.�Rio�de�Janeiro:�Relume�Dumará,�2005.GARCIA,�Carol.�Chita,�chitinha,�chitão:�notas�sobre�imagens�e�andanças.�In:�3º�Colóquio�de�Moda,�2007.�Belo�Horizonte,�MG.�Anais.�Disponível�em:�http://www.coloquiomoda.com.br/anais/�anais/3-Coloquio-de-Moda_2007/3_07.pdfHACKING,�Juliet.�Tudo�sobre�fotografia.�Rio�de�Janeiro:�Sextante,�2012.�HALL,�Stuart.�A�identidade�cultural�na�pós-modernidade.�Rio�de�Janeiro:�DP&A,�2001.JOLY,�Martine.�Introdução�à�análise�da�imagem.�Campinas,�SP:�Papirus,�1996.MARRA,�Claudio.�Nas�sombras�de�um�sonho:�história�e�linguagens�da�fotografia�de�moda.�São�Paulo:�Editora�Senac�São�Paulo,�2008.MELLAO,�Renata�(Org.).�Que�chita�bacana.�São�Paulo:�A�casa,�2005NÓBREGA,�Christus.�Renda�Renascença:�uma�memória�de�ofício�paraibana.�João�Pessoa:�SEBRAE/PB,�2005.SIEGEL,�Eliot.�Curso�de�fotografia�de�moda.�Barcelona/ES:�Editorial�Gustavo�Gili,�2012.

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É�importante�ressaltar�que�essa�localidade,�bem�como�a�do�Mercado�Central�citada�anteriormente,�não�são�considerados�pontos�turísticos�da�cidade�e�sim�referenciais�imagéticos�bem�particulares�daqueles�que�moram�na�região,�trazendo�assim�esse�referencial�de�identidade�não�necessariamente�vinculado�a�um�visitante�ou�turista,�e�sim�pertencente�ao�cidadão�pessoense.�

Observar�esses�editoriais�colabora�com�o�entendimento�de�que�a�fotografia�de�moda�pode�ser�usada�para�fortalecer�ou�perpetuar�identidades�culturais,�bem�como�a�própria�moda�em�si,�funcionando�nesse�contexto�como�uma�espécie�de�metalinguagem.�A�identidade�local,�num�diálogo�com�as�identidades�globalizadas,�se�fazem�presentes�na�proposta�da�revista�eletrônica�DaModa.�Eles�são�uma�forma�de�representar�o�mundo�e�as�pessoas�da�cidade.�“Instrumento�de�comunicação,�divindade,�a�imagem�assemelha-se�ou�confunde-se�com�aquilo�que�ela�representa.”�(JOLY,�1996,�p.19).

Em�comum�a�todos�os�ensaios�analisados,�percebemos�o�tema�da�cidade�de�forma�constante,�de�maneira�mais�ou�menos�óbvia�e�sempre�envolta�numa�áurea�de�luxo�e�de�ideal�de�beleza�característicos�dos�editoriais�de�moda�em�todo�o�mundo�(SIEGEL,�2012).�É�possível�identificar�ainda,�numa�visão�mais�técnica�da�fotografia,�que�todos�os�ensaios�privilegiam�a�figura�humana,�numa�referência�clássica�ao�gênero�“retrato”�na�fotografia,�algo�também�inerente�aos�ensaios�fotográficos�das�revistas�de�moda�(EASTERBY,�2010).�Porém,�nos�exemplos�mostrados�aqui,�também�é�possível�perceber�de�forma�mais�marcante�a�presença�do�cenário�como�elemento�crucial�para�reforçar�a�mensagem�da�revista:�a�cidade�como�referência�de�moda.�“A�categoria�da�imagem�reúne�então�os�ícones�que�mantêm�uma�relação�de�analogia�qualitativa�entre�o�significante�e�o�referente.”�(JOLY,�1996,�p.�40).�A�revista�mostra�a�cidade�não�apenas�como�um�cenário�qualquer�ou�simples,�mas�como�algo�pensado,�planejado,�com�objetivos�claros,�entre�eles:�mostrar�a�urbanidade�de�forma�bela�e�lúdica;�reforçar�que�é�possível�se�inspirar�nos�elementos�locais�para�produzir�moda,�tanto�nas�peças�quanto�nas�imagens�de�moda;�colaborar�com�a�criação�e�o�fortalecimento�de�uma�identidade�local�que�se�reconhece�nesses�elementos�urbanos�e�os�valoriza.�Assim,�a�publicação�faz�um�recorte�da�cidade,�mostrando�uma�urbanidade�idealizada,�um�signo,�um�imaginário�capaz�de�transmitir�o�luxo�que�alguns�setores�da�moda�almejam.

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Brasil/Brasis,�artigo�de�autoria�do�crítico�de�arte�e�curador�brasileiro�Paulo�Herkenhoff,�talvez�seja�a�mais�esclarecedora�análise�crítica�sobre�a�realidade�da�arte�brasileira�no�século�20.�Sua�diversidade;�seus�artistas;�a�multiplicidade�de�caminhos;�linguagens�e�materiais;�como�era�produzida�e�sob�quais�condições/dificuldades�políticas,�econômicas�e�sociais�são�aspectos�abordados�por�Herkenhoff�em�poucas�linhas,�quase�como�uma�literatura;�na�verdade,�é�uma�iniciativa�inteligente�e�feliz�para�explicar�ao�leitor�que�os�nossos�artistas�vivem/sobrevivem�múltiplos�territórios,�“brasis”,�e�fazem�arte�com�um�“doce�suor�amargo”.

O�artigo�foi�escrito�no�final�da�década�de�1990.�É�atualíssimo.�Já�que�quase�nada�parece�ter�mudado�no�cenário�artístico�brasileiro�neste�novo�século.�Daí�a�razão�de�mencioná-lo�logo�no�início�do�presente�texto,�que�trata�da�exposição�Arte�Visual�Periférica�na�Paraíba,�coletiva�composta�de�24�obras�produzidas�por�12�artistas�visuais,�jovens�em�sua�maioria,�residentes�e�atuantes�neste�estado.

Esta�exposição�no�Museu�Assis�Chateaubriand,�da�Universidade�Estadual�da�Paraíba,�em�Campina�Grande,�mais�do�que�apresentar�um�conjunto�significativo�de�obras�que�reflete�bem�a�produção�de�arte�contemporânea�na�Paraíba,�propõe�um�desafio�ousado�e�muito�importante:�lançar�novos�questionamentos�e�acender�o�debate�acerca�da�realidade�ainda�frágil�e�precária�do�circuito�de�artes�visuais�paraibano.�Isto�em�relação�a�outros�circuitos�de�arte�no�País,�mais�organizados�em�termos�de�políticas�culturais,�distribuição�de�recursos�públicos�e�privados.

O�entendimento�do�que�vem�a�ser�“arte�visual�periférica”�por�parte�dos�próprios�artistas�‒�que�são�ao�mesmo�tempo�autores�e�curadores�desta�exposição,�é�importante�frisar�‒�expressa�não�somente�a�constatação�dessa�difícil�realidade�local�em�que�vivem�e�produzem�arte.�Exprime�também�a�vontade�de�todos�de�discuti-la�coletivamente,�com�outros�agentes�culturais,�instituições,�galerias�e�com�a�sociedade,�a�fim�de�tentar�superá-la.

Ou�seja,�existe�uma�ação�estratégica�dos�artistas�periféricos,�como�eles�mesmos�se�definem�enquanto�coletivo,�de,�com�esta�mostra,�mobilizar,�chamar�ao�diálogo�a�classe�artística�local�e�reivindicar�dos�representantes�públicos�melhorias�para�as�instituições,�os�museus�e�os�acervos.�Além�disso,�junta-se�também�a�necessidade�de�discutir�o�mercado�de�

arte�brasileiro�em�relação�ao�incipiente�mercado�de�arte�local�e,�assim,�buscar�alternativas�de�acesso�e�circulação.

Para�Paulo�Herkenhoff,�o�sistema�de�arte�no�Brasil�é�equidistante�porque�segue�a�lógica�colonialista�das�relações��internacionais�de�poder.�Ele�diz�que�“A�mesma�distância�política�que�separa�os�grandes�centros�brasileiros�de�arte�dos�centros�hegemônicos�europeus�e�norte-americanos�parece�separar�os�centros�regionais�e�periféricos�brasileiros�dos�centros�hegemônicos�do�país�[...]”,�exemplificando�que�“Uma�concentração�de�artistas�e�de�instituições�de�arte�corresponde�a�uma�concentração�de�renda�interna�num�quadro�de�graves�desequilíbrios�regionais�estruturais”.

Neste�contexto,�compreende-se�que�a�condição�de�ser�um�artista�periférico�na�Paraíba�guarda�diversas�razões�relacionadas�à�realidade�do�local�que�escolheram�para�viver�como�cidadãos�e�artistas�à�realidade�brasileira,�ou�realidades�brasileiras.�Razões�estas�transformadas�nalgum�aspecto�em�seus�trabalhos,�pois�são�resultantes�de�vivências�práticas�e�reflexivas�a�partir�de�seus�entornos.

O�que�querem�os�“artistas�periféricos”�não�é�nada�de�novo,�mas�é�algo�fundamental�e�que�nunca�havia�sido�colocado�como�pauta�de�debates�por�gerações�anteriores�de�artistas�paraibanos.�Não�desta�forma�compromissada�e�organizada.

Discutir�o�meio�cultural�local�também�faz�parte�da�vida�do�artista.�Basta�apenas�começar�e�compreender�a�importância�política�de�ser�um�artista-cidadão.�Como�diz�novamente�Herkenhoff�em�seu�artigo:�“Na�experiência�brasileira,�o�artista�não�apenas�fez�arte,�mas�também�teve�de�construir,�muitas�vezes,�o�espaço�social�e�armar�a�possibilidade�política�de�seu�discurso”.

Nesta�exposição,�não�é�intenção�dos�artistas�o�estabelecimento�de�aproximações�estéticas�e�conceituais�de�qualquer�ordem�(linguagens,�materiais,�suportes,�técnicas�etc.)�entre�os�seus�trabalhos.�Todos�são�realizações�individuais,�não�pautados�por�uma�abordagem�curatorial�mais�complexa.�Embora�haja�mesmo�a�necessidade�de�mostrar�que�existe�uma�produção�emergente�no�Estado�e�que�essa�produção�não�é�assimilada�pelo�público�porque,�muitas�vezes,�as�instituições�culturais�não�lhe�dão�a�visibilidade�devida,�associada�a�um�processo�formativo,�de�conhecimento.

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Arte�contemporânea�na�Paraíba:�visualidades�periféricas

Valquíria�Farias���������������������������������������[email protected]

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Porém,�uma�aproximação�das�suas�ideias�a�respeito�do�que�vem�a�ser�a�“arte�periférica”�que�produzem�pode�ser�possível�neste�texto.

A�questão�das�convenções,�dos�tratados�e�das�regras�de�conduta�criadas�pelo�homem,�na�vida�e�na�arte,�é�discutida,�de�formas�distintas,�nos�desenhos�em�nanquim�de�Américo�Gomes,�nos�retratos�em�pastel�de�Carlos�Nunes,�nas�performances�de�Sandoval�Fagundes�e�nos�grafites�de�Cybele�Dantas.�Em�Américo,�há�a�certeza�de�lidar�diariamente�com�os�esquemas�de�controle,�forjando-os.�Em�Carlos�Nunes,�o�desejo�de�vestir-se�também�do�“outro�eu”,�numa�reação�afetiva,�explosiva�e�temporal.�Em�Sandoval�Fagundes,�no�gesto�performático/irônico�de�escapar�de�amarras�de�toda�sorte,�definições�em�arte,�do�lugar-comum.�“Desenhar�como�quem�faz�pipoca”�seria�o�mesmo�que�desenhar�como�uma�criança�que�risca�uma�parede?�Nunca�se�saberá�ao�certo.�As�fotografias�recortadas�de�Cybele�Dantas�são�exemplares�perfeitos�da�mistura�de�linguagens:�a�fotografia�e�o�grafite,�em�um�suporte�convencional,�a�tela.�Sua�proposta�é�experimentar�possibilidades�de�realizar�Grafitti�e,�ao�mesmo�tempo,�desfazer�preconceitos�em�relação�à�pintura�tradicional�invadindo�seus�espaços�de�circulação.

As�geografias�dos�espaços�urbano/rural�e�da�natureza�estão�narradas�nas�poéticas�desenvolvidas�por�Antônio�Filho,�Serge�Huot�e�Luiz�Barroso.�Para�Antônio�Filho,�o�espaço�urbano�é�aquele�por�onde�seu�corpo�transita�cotidianamente.�Ele�constrói,�por�exemplo,�mapas�pessoais�de�lugares�da�cidade�interligados�por�artérias�de�um�coração,�representado�como�se�fosse�uma�memorialística�do�corpo�trafegado,�subjetividades�experimentadas�partindo�de�elementos�concretos�arquiteturais.�Serge�Huot�é�artista�francês�cuja�condição�de�estar�atuando�em�um�território�periférico�brasileiro,�vivendo�em�constante�contato�com�a�natureza�local,�o�coloca�numa�posição�historicamente�privilegiada�em�relação�aos�demais�artistas�do�grupo.�Huot�cria�esculturas�com�materiais�jogados�na�praia,�restos�de�poliestireno,�como�se�desejasse�construir�uma�arquitetura�da�paisagem�“outrora�natural”,�aquela�que�somente�o�olhar�estrangeiro�pode�enxergar.�Não�deixa�de�ser�uma�forma�de�denúncia�da�ação�do�homem�sobre�o�meio�ambiente.�Já�Luiz�Barroso�percorre�os�caminhos�dos�signos�rupestres�incrustados�na�paisagem�rural�paraibana,�símbolos�de�nossa�formação�mais�rudimentar,�para�

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Obra�de�Antônio�Filho�(Fotografia:�Wênio�Pinheiro)

Obra�de�Potira�Maia�(Fotografia:�Wênio�Pinheiro)

Obra�de�Antônio�Lima�(Fotografia:�Wênio�Pinheiro)

Obra�de�Wênio�Pinheiro�(Foto:�Wênio�Pinheiro)

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Numa�recente�visita�à�Campina�Grande�‒�segunda�cidade�da�Paraíba�e�outrora�maior�entreposto�de�peles,�algodão�e�gêneros�alimentícios�da�região�que,�por�sua�privilegiada�localização,�interligava�todo�o�Estado�no�sentido�leste-oeste,�sul-norte�‒,�fomos�ao�encontro�do�painel�Tropicália,�de�Chico�Pereira,�pintado�sobre�parede�com�tinta�acrílica,�esmalte�e�spray,�medindo�220x600cm,�de�1969,�que�adorna�o�antigo�restaurante�universitário�da�Universidade�Regional�do�Nordeste�(URNe),�hoje�UEPB.�A�obra,�recentemente�restaurada�(finais�de�2013),�permanece�atual�e�é�importante�referência�da�arte�paraibana.�Para�sua�execução�o�artista�se�utilizou�de�elementos�visuais,�materiais�e�técnicos�do�movimento�Pop�Art,�o�que�sugere�também�incluir�a�obra�na�seara�do�Grafite�(com�o�uso�de�spray�e�estêncil,�já�naquela�época)�e�do�Muralismo�na�região.

É�importante�situar�o�uso�pioneiro�destes�recursos�do�Grafite�por�Chico�Pereira,�já�que,�somente�a�partir�de�1978�é�que�se�tem�notícia�semelhante�protagonizada�pelo�artista�etíope-brasileiro,�Alex�Vallauri¹.�

Mesmo�tratando-se�de�obra�localizada�em�ambiente�interno�‒�o�restaurante�da�URNe�‒,�o�que�contribuiu�para�mantê-la�quase�intacta,�a�obra�de�Chico�Pereira�recebe�até�hoje�imenso�fluxo�de�estudantes,�professores�e�funcionários�ao�longo�destes�mais�de�43�anos.

Com�a�intenção�de�analisar�melhor�a�obra�e�dar-lhe�visibilidade�e�reconhecimento,�optamos�por�fazer�uma�viagem�no�tempo�revendo�os�principais�momentos�vividos�pelo�artista,�afora�outros�acontecimentos�sócio-culturais�na�cidade�que�justificam�o�pioneirismo�deste�mural.

Estamos�no�ano�de�1967.�Anacleto�Elói,�estudante�de�Belas�Artes�em�Recife,�mas�também�atuante�em�Campina�Grande,�sua�terra�natal�e�onde�faz�parte�do�primeiro�coletivo�de�artistas�da�cidade�‒�o�Equipe�3�‒,�ao�lado�de�Chico�Pereira�e�Eládio�Barbosa,�é�um�dos�poucos�artistas�paraibanos�a�participar�da�I�Bienal�Nacional�de�Artes�Plásticas�da�Bahia,�em�Salvador.�Numa�matéria�publicada�no�jornal�Diário�da�Borborema�(Campina�Grande,�29�de�junho),�seu�depoimento�ao�jornalista�(e�cineasta)�Machado�Bitencourt�aponta�para�algumas�das�preocupações�da�arte�local�na�época.�A�dúvida�que�permanece�é�se,�hoje,�sua�análise�continua�atual�ou�apenas�foi�puro�arroubo�idealista�de�todo�jovem�artista.�Vejamos:

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construir�com�papel�maché�uma�metalinguagem�compromissada�com�a�cultura�do�homem�no�Nordeste�do�Brasil.

Antônio�Lima,�Potira�Maia�e�Tony�Neto�conduzem�suas�poéticas�numa�relação�de�alteridade�com�o�lugar�do�sujeito�e�seus�objetos�cotidianos.�Antônio�Lima�produz�objetos�e�instalações�ressignificados�de�sua�iconografia�e�paisagem,�utilizando-se�de�conceitos�antropológicos,�filosóficos�e�científicos�para�refletir�sobre�a�transitoriedade�da�vida�humana.�Potira�Maia�registra�em�fotografias�os�processos�de�destruição�da�memória�de�personagens�desconhecidos�da�cidade,�transeuntes,�nos�inúmeros�sapatos�achados�“perdidos”�ou�“abandonados”�nas�ruas�de�João�Pessoa.�Tony�Neto�“se�refaz”�em�cenas�precisas�de�melancólicos�rituais�de�morte,�projetando-se�numa�imagem�potencial�do�suicida�anônimo.�Seus�vídeos�aludem�às�estranhas�mortes�por�suicídio�de�moradores�da�região�do�Vale�do�Piancó,�interior�paraibano.

Raquel�Stanick�e�Wênio�Pinheiro�recorrem�à�literatura�para�produzir�suas�obras�a�partir�da�apropriação�de�temas�como�feminino,�intimidade,�fantasia,�amor,�sexo,�corpo�e�erotismo.�Raquel�Stanick�se�utiliza�ainda�das�novas�mídias�para�colocar�em�jogo�texto�poético�versus�imagem�real�e,�assim,�discutir�a�formação�dos�clichês�nas�relações�interpessoais.�Para�Wênio�Pinheiro,�interessa�o�desenho�de�traço�agressivo�e�nervoso�do�corpo�humano,�despudorado�nas�suas�mais�variadas�posições�e�situações�íntimas,�à�maneira�de�Egon�Schiele,�como�depositário�da�mensagem�que�deseja�exprimir�ao�leitor.

Afinal,�para�que�serve�a�arte?�Acredita-se�que�uma�das�prerrogativas�mais�contundentes�da�arte,�no�plano�político�e�crítico,�seja�a�de�criar�vias�de�acesso�tanto�a�si�própria�como�ao�seu�entorno.�Assim,�é�provável�que,�se�o�ideal�por�mudanças�no�cenário�da�arte�paraibana�for�mesmo�levado�a�cabo�em�outras�ações�futuras�do�Coletivo�Periféricos,�com�resultados�sendo�alcançados,�não�poderemos�negar�a�importância�que�terá�esta�exposição�daqui�para�frente.

Valquíria�Farias�é�crítica�de�arte�e�curadora,�vinculada�atualmente�à�Fundação�Cultural�de�João�Pessoa-Funjope.

O�painel�PopTropicalista�de�Chico�Pereira

Dyógenes�Chaves������������������������������[email protected]

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Como�depõe�Chico�Pereira:�“Esse�acontecimento�foi�marcante�na�vinculação�dos�artistas�de�Campina�Grande,�notadamente�do�Equipe�3,�a�outros�centros�artísticos,�mais�efetivamente�à�Capital�João�Pessoa.�Passamos�então�a�frequentar�nos�finais�de�semana�os�ambientes�artísticos�e�intelectuais�da�Capital,�ampliando�as�informações�e�abrindo�o�intercâmbio.�O�Museu,�de�certa�forma�contribuía�para�animar�o�panorama�que,�ajudado�pela�efervescência�de�criação�noutras�áreas,�formava�ao�seu�lado�o�conjunto�de�atividades�que�marcaram�profundamente�a�cultura�paraibana�daí�por�diante.�Em�João�Pessoa,�sob�a�liderança�de�Raul�Córdula,�que�mais�uma�vez�deixara�Campina�Grande,�Breno�Mattos,�Guy�Joseph,�Mardem�Rolim,�Cleófas�Leonan,�Unhandeijara�Lisboa,�Pontes�da�Silva,�Régis�Cavalcanti,�José�Lucena,�Flávio�Tavares�(jovem�artista�que�se�revelava)�e�Miguel�dos�Santos,�formavam�o�grupo�dos�principais�artistas�jovens.�Juntavam-se�aos�mesmos�os�poetas�e�compositores�do�Grupo�Sanhauá:�Marcus�Vinícius,�Anco�Márcio,�Severino�Marcos,�Sérgio�de�Castro�Pinto,�Carlos�Aranha�e�Marcos�dos�Anjos.�As�visitas�a�exposições�e�ateliês�terminavam�sempre�em�noitadas�poéticas�e�tinham�como�ponto�de�partida�obrigatório�a�Churrascaria�Bambu,�na�Lagoa,�onde�geralmente,�à�mesa�do�escritor�Virgínius�da�Gama�e�Melo,�se�reunia�esta�geração�de�jovens�e�outros�intelectuais�da�terra�para�discussões�intermináveis�de�estética�e�política.�Às�vezes,�o�Equipe�3,�por�intermédio�de�Anacleto,�que�estudava�em�Recife,�se�deslocava�para�encontros�desta�natureza�em�Pernambuco,�quase�sempre�com�Jomard�Muniz�de�Britto�e�outros�intelectuais�e�artistas�que�atuavam�entre�Recife-Olinda.”

Se�voltarmos�ao�ano�de�1957,�vamos�encontrar�o�ainda�menino�Chico�Pereira�como�aluno�de�pintura�e�desenho�da�Escola�de�Arte�de�Campina�Grande,�dos�professores�Jorge�Miranda,�Pedro�Corrêa�e�Nourival�Gonzaga.�Era�algo�raro�‒�o�ensino�de�arte�‒�numa�cidade�que�não�tinha�qualquer�referência�ou�tradição�nas�artes�plásticas�‒�como�abordara�Anacleto�Elói�em�seu�desabafo�publicado�no�Diário�da�Borborema�‒�exceto�a�pintura�do�forro�da�Catedral�de�Nossa�Senhora�da�Conceição,�executada�por�Miguel�Guilherme,�pintor�nascido�em�Sumé,�no�Cariri�paraibano.�Essa�obra,�que�viria�a�ser�demolida�em�1963�por�razões�inexplicáveis,�era�para�Chico�Pereira�motivo�de�deleite�quando�frequentava�com�seu�pai�as�missas�de�domingo.�A�obra�de�Miguel�Guilherme�era�um�belo�conjunto�de�paineis�distribuídos�na�nave�da�igreja�e�nas�suas�laterais�e,�curiosamente,�em�meio�às�cenas�bíblicas�estavam�várias�figuras�da�sociedade�local�retratadas�pelo�autor�num�estilo�quase�ingênuo.22

“José�Anacleto�tem�ideias�próprias�sobre�as�causas�originárias�do�atraso�cultural�de�Campina�Grande�no�que�se�refere�às�artes�plásticas.�Segundo�os�termos�de�sua�análise,�os�motivos�fundamentais�desse�atraso�são�as�ausências�das�influências�históricas.�Campina�Grande�foi�uma�cidade�que�durante�muitos�anos�interpretou�a�arte�como�o�agradável�ou�o�bonitinho,�e�que�aplaudiu�espetáculos�medíocres,�contribuindo�dessa�maneira�para�manter�um�estágio�de�gritante�alienação.�ʻAgora,�quando�Campina�Grande�já�toma�consciência�cultural,�implantando�e�mantendo�uma�universidade,�o�problema�tende�a�desaparecer�(não�a�curto�prazo!)�inicialmente�com�o�preenchimento�das�lacunas�existentes.ʼ,�afirma�o�artista.”

Alguns�meses�depois,�em�20�de�outubro�de�1967,�era�inaugurado�em�Campina�Grande�o�Museu�de�Arte�Assis�Chateaubriand,�numa�grande�festa�pública�com�a�presença�de�personalidades�do�mundo�político,�empresarial�e�cultural�de�todas�as�regiões�do�país.�“Entre�os�convidados,�estavam�os�críticos�Mário�Pedrosa�e�Mário�Barata�e�os�artistas�Rubens�Gerchman,�Alexandre�Filho,�Anna�Maria�Maolino,�o�grego�Gaitis,�Emeric�Mercier�e�Antonio�Dias,�que�retornava�à�sua�terra�natal�depois�de�quase�10�anos.�O�Museu,�por�força�do�acordo�estabelecido�entre�a�Campanha�dos�Museus�Regionais�(leia-se�Assis�Chateaubriand)�e�a�Prefeitura�de�Campina�Grande,�seria�gerido�pela�Fundação�Universidade�Regional�do�Nordeste�(FURNe)�com�a�condição�de�preservá-lo�e�dinamizá-lo�como�instituição�universitária,�e�também�ficou�acertado�anexar�ao�mesmo�uma�galeria�de�arte�para�exposições�periódicas,�voltada�principalmente�para�a�arte�local.”,�afirma�o�artista�e�ex-diretor�do�Museu,�Chico�Pereira.

Nesse�mesmo�local,�simultaneamente�à�recepção�pública�do�Acervo,�foi�inaugurada�uma�exposição�coletiva�com�os�artistas�mais�representativos�da�arte�campinense:�Raul�Córdula,�Eládio�Barbosa,�Anacleto�Elói�e�Chico�Pereira.�

A�inauguração�do�Museu,�além�de�ser�uma�grande�conquista�para�a�cidade,�oferecia�a�possibilidade�de�se�enxergar�além�dos�horizontes�locais.�Foi,�de�fato,�o�primeiro�contato�com�a�arte�brasileira�dos�últimos�cem�anos�e�o�despertar�‒�pelo�acervo�estrangeiro�‒�das�questões�estéticas�contemporâneas,�permitindo�a�partir�daí,�uma�reflexão�mais�aprofundada�do�processo�criativo�e�apontava�sobre�o�que�fazer�para�uma�atualização�adaptada�às�condições�culturais�da�região.

O�pintor�Miguel�Guilherme�(Foto:�Machado�Bitencourt) Capa�do�livro�Os�Anos�60,�1979

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Ao�longo�dos�primeiros�anos�da�década�de�60,�é�importante�pontuar�alguns�poucos�eventos�de�artes�plásticas�em�Campina.�Apesar�de�poucos,�eles�foram�marcantes�para�a�juventude�que�almejava�alguma�atuação�na�área�artística,�incluindo�aí�os�jovens�artistas�do�Equipe�3.�Vejamos:�logo�em�1960,�novembro,�acontece�a�exposição�com�artistas�de�João�Pessoa�‒�Archidy�Picado,�Raul�Córdula,�Pontes�da�Silva,�Leonardo�Leal�e�Ivan�Freitas�‒�mais�o�campinense,�Flávio�Bezerra�de�Carvalho,�na�Fundação�para�o�Desenvolvimento�da�Arte,�Ciência�e�da�Técnica�(Fundact).�A�mostra�tinha�por�objetivo�difundir�uma�arte�mais�“contemporânea”�e�aproximar�os�artistas�das�duas�maiores�cidades�do�Estado,�notadamente�trazer�obras�mais�instigantes�visto�que�vingava�em�Campina�Grande�uma�produção�ainda�acadêmica.�E,�no�ano�seguinte,�ocorre�uma�exposição�promovida�pelo�Diretório�Acadêmico,�da�Escola�de�Economia,�durante�a�I�Semana�de�Cultura�Universitária�de�Campina�Grande,�com�a�participação�de�artistas�locais,�de�todas�as�linguagens�e�técnicas.�Eládio,�Flávio�Bezerra�e�Chico�Pereira�receberam�premiação�neste�evento.

Vale�aqui�lembrar�da�criação�da�Associação�Campinense�Pró-Arte,�entidade�que�durante�quase�quatro�anos�movimentou�o�panorama�cultural�da�cidade,�mais�efetivamente�na�área�da�música�erudita.�A�Pró-Arte�promoveu�diversos�concertos�e�recitais�e�também�o�ensino�da�música.�Foi�de�fato�a�primeira�entidade�voltada�especificamente�para�a�cultura�com�todos�os�aspectos�legais�para�funcionar,�inclusive�com�registro�no�Mec.�A�Pró-Arte�ampliou�suas�atividades�com�cursos�de�dança,�por�exemplo,�e�mesmo�assim,�com�todo�o�esforço�dos�seus�dirigentes,�não�conseguiu�sobreviver�pelo�mesmo�motivo�da�Escola�de�Arte:�falta�de�apoio�oficial.�O�ano�de�1964�trouxe�diversos�acontecimentos�que�modificaram�profundamente�a�vida�da�cidade.�As�mudanças�políticas�ocorridas�a�partir�do�“31�de�Março”�abalaram�as�relações�de�sua�economia�que�praticamente�se�sustentava�no�comércio.�A�restrição�de�crédito,�a�severa�vigilância�do�sistema�de�desconto�bancário�e�a�ausência�de�moeda�corrente,�somando-se�à�cassação�dos�direitos�políticos�de�alguns�“líderes�comunistas”�provocou�grande�rebuliço,�exatamente�no�ano�do�primeiro�centenário�da�cidade.�

“Foi�no�meio�dessa�conturbação�e�da�falta�de�horizontes�mais�largos�para�a�cuItura�que�se�criou,�tendo�em�vista�os�festejos�dos�100�anos,�a�Comissão�Cultural�do�Centenário,�constituída�por�intelectuais�e�pessoas�de�notoriedade,�com�a�finalidade�de�coordenar�as�atividades�artístico-culturais,�objetivamente�a�edição�de�documentos�e�livros,�exposições�de�arte,�atividades�musicais,�as�artes�cênicas�e,�principalmente,�a�descoberta�de�valores�locais.�Essa�Comissão�foi�mais�tarde�transformada�em�Comissão�Cultural�do�Município�e�se�responsabilizou�por�diversas�edições�históricas�e�literárias,�entre�elas�o�Jornal�de�Arte,�coletânea�de�crônicas�e�críticas�de�arte�de�Rubem�Navarra²,�pseudônimo�de�Rubem�Agra�Saldanha,�numa�homenagem�a�esse�campinense�que�junto�a�Mário�Pedrosa�e�Antonio�Bento,�também�paraibanos�(sic),�formam�o�grande�pensamento�da�crítica�das�artes�plásticas�brasileiras.”,�escreve�Chico�Pereira�em�artigo�publicado�no�livro�Os�anos�60�‒�Revisão�das�artes�plásticas�na�Paraíba�(Mec/Funarte,�UFPB,�1979).� 23

Desde�1963,�estava�em�fase�final�de�construção�o�Teatro�Municipal.�Antes�mesmo�da�sua�conclusão,�foi�oficialmente�inaugurado,�considerando�que�isto�coincidia�com�a�posse�do�novo�prefeito.�O�teatro,�a�partir�daí,�mesmo�precariamente,�transformou-se�no�principal�local�para�as�manifestações�culturais�da�cidade.�Em�outubro,�mês�de�aniversário�de�Campina�Grande,�realizou-se�durante�a�programação�oficial,�a�Exposição�de�Arte�do�Centenário,�reunindo�obras�de�alunos�e�professores�da�Escola�de�Arte�e�artistas�de�João�Pessoa;�entre�estes�a�jovem�Celene�Sitônio,�na�sede�da�Fundact.�Neste�período�três�acontecimentos�irão�marcar�definitivamente�a�vida�cultural�da�cidade:�o�Cinema�de�Arte�do�Cine�Capitólio,�criação�dos�jovens�Luis�Carlos�Virgolino�e�Hamilton�Freire,�que,�com�a�exibição�de�clássicos�“da�hora”�‒�como�as�obras�de�Glauber,�Pasolini,�Bergman,�John�Ford,�Fellini,�Lattuada�entre�outros�‒�propõe�um�programa�de�interesse�crítico�que�uniu�intelectuais�e�aficionados�pela�sétima�arte,�nos�moldes�de�um�cineclube,�chegando�a�provocar�deliciosos�debates�sobre�estética�e�vanguarda.�Outro�evento�foi�o�I�Salão�de�Fotografia,�no�hall�do�recém�inaugurado�Teatro�Municipal,�sob�a�coordenação�de�Machado�Bitencourt�e�José�Clementino.�E�esta�foi�a�primeira�vez�na�cidade�que�se�mostrou�fotografia�que�não�fosse�apenas�“retrato�e�pôr�do�sol”.�Também�foi�criado�o�Teatro�Universitário�Campinense,�sob�a�orientação�de�Wilson�Maux,�motivado�pela�existência�do�novo�Teatro.�

Foi�nesse�ano�‒�1965�‒�e�novamente�no�hall�do�Teatro�que�Chico�Pereira�inaugurou�sua�primeira�mostra�individual,�Arte�das�coisas,�com�grande�sucesso�de�público�e�de�venda.�Uma�semana�depois,�o�jovem�crítico�pernambucano,�Jomard�Muniz�de�Britto,�apresentava�o�espetáculo�Festival�Bossa�I,�sob�a�coordenação�de�Anacleto�Elói,�já�estudante�de�Belas�Artes�em�Recife.�O�evento�serviu�de�ligação�definitiva�entre�os�artistas�de�Campina�e�Recife-Olinda,�culminando�com�a�presença�dos�paraibanos�no�lançamento�do�Manifesto�Tropicalista�de�1967,�que�teve�a�presença�de�Gilberto�Gil�e�Caetano�Veloso�em�Recife.

Em�1966,�foi�criada�a�Universidade�Regional�do�Nordeste,�mais�um�espaço�para�a�discussão�cultural�na�cidade�e,�ao�mesmo�tempo,�somando-se�à�UFPB,�tornava�Campina�Grande�um�pólo�de�educação�superior�no�Nordeste.�Neste�mesmo�ano,�aconteceu�a�segunda�edição�do�Salão�de�Fotografia,�desta�vez�no�hall�do�Edifício�Jabre,�que�prestava�homenagem�aos�criadores�do�Cinema�de�Arte,�Virgolino�e�Hamilton.�Nas�comemorações,�numa�fazenda�próxima�à�

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cidade,�faleceu,�por�afogamento,�o�jovem�homenageado,�Luis�Carlos�Virgolino.�A�tragédia�abalou�os�jovens�artistas�e�intelectuais�e�levou-os�a�criar,�dias�após�e�em�sua�homenagem,�uma�fundação�cultural�(com�seu�nome)�que�passou�a�promover�várias�atividades�nas�áreas�do�teatro,�cinema,�artes�plásticas,�música,�literatura�etc.�

Transcrevo�aqui�o�depoimento�de�Chico�Pereira�sobre�as�“aventuras”�do�Equipe�3,�publicado�no�livro�Os�anos�60.

“O�ano�de�1967�foi�gratificante�para�nós�do�Equipe�3.�Já�vínhamos�acumulando�individualmente�experiências�em�participar�de�exposições�oficiais�em�várias�partes�do�Brasil,�comprovando�a�nós�mesmos�a�possibilidade�de�extrapolarmos�a�condição�de�artista�provinciano.�Nossa�preocupação�se�revestia�no�desejo�intimo�em�fazer�explodir�toda�a�energia�acumulada�pelas�experiências�práticas�e�informações�obtidas�nos�catálogos,�revistas�especializadas�e�nas�leituras�que�nos�aprofundava�nas�questões�da�linguagem�contemporânea�que�chegavam�no�intercâmbio�que�se�abria�no�Museu�e�nos�contatos�com�outros�centros�de�criação.

Tal�entusiasmo�nos�levou�no�final�desse�ano�a�empreender�uma�viagem�de�caráter�artístico-cultural�que�possibilitaria�uma�melhor�compreensão�da�arte�brasileira�e�internacional.�Fixamos�um�roteiro�estratégico�que�nos�ligasse�ao�que�pretendíamos�saber.�Visitamos�a�Bienal�Nacional�[de�Artes�Plásticas]�em�Salvador,�o�Salão�de�Belas�Artes�da�Prefeitura�de�Belo�Horizonte,�as�cidades�coloniais�de�Ouro�Preto,�Congonhas�e�Sabará;�em�Brasília,�o�Salão�Nacional�de�Arte�Moderna;�no�Rio�de�Janeiro,�o�Salão�de�Arte�Moderna�do�Mec�e�quase�todas�as�galerias�de�arte;�em�São�Paulo,�finalmente,�visitamos�o�principal�objetivo:�a�IX�Bienal�Internacional,�onde�Eládio�fora�classificado�na�área�de�Desenho.�Nas�cidades�históricas�de�Minas�vimos�detalhadamente�a�criatividade�do�Barroco�e�do�colonial�brasileiro�e,�em�Brasília,�com�sua�engenharia�urbana�e�a�sua�arquitetura�contemporânea,�relacionamos�o�Brasil�do�passado�e�do�presente;�em�São�Paulo,�o�contato�com�a�arte�internacional�completou�nossa�visão�para�o�entendimento�daquilo�que�vivíamos�e�necessitávamos�compreender.

De�volta�da�viagem�já�era�1968.�Em�março,�mais�uma�vez,�o�Equipe�3�montou�uma�exposição�conjunta�de�trabalhos�individuais�e�do�grupo,�na�galeria�do�Museu,�denominada�Expressão�Coletiva.�Foi�aberta�no�dia�4�pelo�Senador�João�

Calmon.�O�[jornal]�Correio�da�Paraíba�em�reportagem�sobre�o�acontecimento�batizou-a�de�“exposição�CHE�ou�Não�CHE”�em�alusão�à�presença�da�imagem�do�guerrilheiro�Guevara�entre�tubos�de�katchup�derramado,�num�dos�trabalhos.�O�principal�objeto�da�exposição�era�um�grande�tríptico�representando�uma�nave�espacial,�a�mais�nova�pesquisa�do�Equipe�3,�experiência�realizada�a�partir�de�uma�planta�em�escala�reduzida�que,�dividida�em�três,�uma�parte�para�cada�artista,�foi�ampliada�cada�pedaço�nos�painéis,�tendo�cada�artista�realizado�individualmente�uma�parte,�simultaneamente�passando�de�mão�em�mão.�Era�um�trabalho�inédito�pelo�menos�não�encontrado�em�nenhum�dos�salões�ou�galerias�que�visitamos.�

Nesse�período�juntou-se�a�nós�um�jovem�artista�que�trabalhava�com�objetos�montados�com�peças�de�automóveis�e�formava�com�esses�elementos�representações�de�órgãos�do�corpo�humano.�Era�Amaro�Muniz�que,�por�nosso�intermédio,�passou�a�fazer�parte�do�movimento�da�jovem�arte�paraibana.�Para�definir�nossa�posição�diante�do�público,�lançamos�na�exposição�um�manifesto�que�representava�sinteticamente�nossas�ideias.�Machado�Bitencourt,�que�naquela�época�atuava�na�imprensa,�escreveu�um�artigo�que�explicava�nosso�trabalho�e�que�transcrevemos�aqui�como�ilustração.�

Em�manifesto�de�abril�de�1967,�este�grupo�de�artistas�plásticos�assim�fazia�a�apresentação�de�seu�primeiro�Triálogo:

Desde�então�outras�obras�foram�realizadas,�mas�aquelas�ideias�permaneceram�como�elemento�comum�a�todo�o�processo�criativo�subsequente.�Seus�autores�sentem,�a�cada�dia�que�passa,�o�quanto�o�seu�trabalho�é�para�eles�viável�e�oportuno,�que�estas�imagens�criadas�a�seis�mãos�correspondem�a�uma�real�necessidade�de�pesquisa�de�cada�um,�a�uma�curiosidade�e�sobretudo,�a�uma�vontade�de�fazer�jogo�livre�mais�do�que�propriamente�fazer�Arte.�

O�curioso�é�que�as�realizações�destes�três�artistas�em�nada�se�assemelham.�Nas�ocasiões�em�que�expõem�seus�trabalhos�individuais�(I�Bienal�Nacional�de�Salvador,�III�Salão�Nacional�de�Arte�Moderna�do�Distrito�Federal,�IX�Bienal�de�São�Paulo,�Salão�Esso�de�Artistas�Jovens,�Museu�de�Arte�de�Campina�Grande)�fica�patente�as�divergências�nas�concepções�e�nos�resultados�obtidos.

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Obra�Triálogo,�do�Equipe�3,�1967�(Foto:�Machado�Bitencourt)

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Atualmente,�mais�do�que�nunca,�essas�diferenças�se�fazem�sentir:�Anacleto�compõe�quebra-cabeças�e�jogos�de�peças�para�montar;�os�desenhos�de�Chico�são�um�amontoado�aparentemente�caótico�de�figuras�e�objetos,�gravatas,�batmans,�peças�íntimas�do�vestuário,�chapéus,�guevaras,�bengalas,�bandeiras�e�rótulos.�E�as�palavras�que�Eládio�usa�para�definir�o�que�ele�faz�serve�talvez�como�uma�apresentação�da�obra�dos�três�no�pouco�que�ela�tem�em�comum:�ʻSe�eu�faço�esses�desenhos�é�por�que�quero�criar�imagens.�Fazer�Arte�‒�pelo�menos�no�sentido�que�a�palavra�teve�até�agora�‒�não�é�minha�principal�preocupação.�Uso�um�de�seus�processos,�o�desenho,�de�uma�maneira�mais�ou�menos�ortodoxa�simplesmente�pelo�fato�de�que�tal�processo�tornou-se�mais�familiar�do�que�qualquer�outro,�apresentando�portanto�maiores�facilidades�na�fabricação�de�minhas�imagensʼ”.

Voltando�ao�Museu�de�Arte�Assis�Chateaubriand�que,�sob�a�coordenação�interina�de�Miriam�Asfora,�promoveu�a�I�Feira�de�Arte�Popular�do�Nordeste�com�o�objetivo�de�romper�o�aspecto�elitista�que�vinha�tomando�aquela�instituição�artística.�Durante�mais�de�uma�semana,�artesãos,�artistas�populares,�poetas�e�repentistas,�se�misturaram�com�as�obras�dos�famosos�artistas�clássicos�e�contemporâneos�e�às�conferências�e�palestras�sobre�folclore�que�ali�se�realizaram.�O�Museu�rompia�assim�a�tradicional�ilusão�de�“templo�de�arte”�e�se�integrou�definitivamente�na�comunidade.�Outras�manifestações�se�sucederam�durante�todo�ano�entre�elas�uma�exposição�de�Arte�Sacra.�A�Escola�de�Arte�que�vivia�seus�últimos�dias�sob�a�direção�do�Prof.�Miranda,�inaugurou�na�galeria�do�Museu�uma�exposição�com�seus�poucos�alunos.�Logo�depois�a�Universidade�Regional�adquiriu�o�patrimônio�móvel�daquela�Escola�‒�cavaletes,�mesas�de�desenho,�modelos�de�gesso�e�sua�biblioteca.�Foi�um�fim�melancólico�para�uma�das�instituições�pioneiras�do�ensino�artístico�na�Paraíba.�Na�verdade,�era�pretensão�da�Universidade�utilizar�esse�acervo�para�fazer�funcionar�no�Museu�um�setor�de�ensino�de�arte�e�por�isso�foi�incluído�na�“negociação”�a�incorporação�do�próprio�professor�Miranda�ao�quadro�de�pessoal�do�Museu�na�função�de�conservador.

Outro�evento,�que�antecedeu�há�poucos�dias�da�inauguração�do�Museu�e�que�merece�registro�especial,�foi�a�abertura�oficial�(16/09/1967)�da�galeria�Faxeiro�Objetos�de�Arte,�de�Francisco�Duarte,�com�obras�do�Equipe�3�e�as�presenças�de�Antonio�Dias,�Rubens�Gerchman,�Solange�Escosteguy�e�Mário�Pedrosa.�Apesar�de�considerada�atitude� 25

do�deslumbramento�que�vivia�a�arte�local,�isso�bem�demonstra�a�sua�capacidade�de�compreensão�do�que�se�passava�na�arte�brasileira.

Nesta�época,�anos�60-70,�a�arte�contemporânea�no�país�põe�contra�a�parede�as�ideias�e�status�quo�do�Modernismo,�abrindo-se�a�experiências�culturais�as�mais�diferentes.�Daí,�instalações,�happenings�e�performances�são�amplamente�realizados,�apontando�para�novas�orientações�da�arte�como�“linkar”�a�criação�artística�às�coisas�do�mundo,�à�natureza�e�à�realidade�urbana.�Aí�as�obras�se�articulam�e�se�interligam�em�todas�as�modalidades:�dança,�música,�pintura,�teatro,�escultura,�literatura�etc.,�pondo�em�cheque�as�classificações�habituais�e�a�própria�definição�de�arte.�Arte�e�vida�cotidiana,�assim�como�o�rompimento�das�barreiras�entre�arte�e�não-arte�são�as�principais�preocupações�do�momento,�atentando�para�ações�e�categorias�como�a�performance,�happening,�arte�ambiente,�arte�pública,�arte�processual,�arte�conceitual,�land�art�etc.,�que�remontam�às�experiências�realizadas�pelos�surrealistas�e�sobretudo�pelos�dadaístas.

Muitos�outros�acontecimentos�‒�exposições,�happenings�etc.�‒�se�seguiram�a�partir�da�atuação�dos�artistas�do�Equipe�3�em�Campina�Grande,�sempre�carregadas�de�novidades�estéticas�e�políticas.�E,�finalmente,�em�1969,�é�que�entra�a�encomenda�do�reitor�da�URNe,�Edvaldo�do�Ó,�para�Chico�Pereira�realizar�o�painel�Tropicália,�objeto�deste�artigo.�Mesmo�com�o�afastamento�do�reitor�no�andamento�da�execução�do�painel,�houve�continuidade�da�obra�e,�ao�mesmo�tempo�em�que�o�artista�era�elevado�à�função�de�novo�diretor�do�Museu�de�Arte�Assis�Chateaubriand.�O�que�aqui�torna-se�relevante�destacar�é�o�caráter�conceitual�da�obra,�sugerido�por�Edvaldo�do�Ó�ao�encomendá-la�a�Chico�Pereira�onde,�ele�próprio,�afirma,�em�1979,�no�livro�Os�anos�60:�“O�painel�deveria�ser�uma�obra�de�referência�da�arte�dos�anos�60,�um�documento�visual�que�registrasse�para�a�posteridade�as�novas�linguagens�estéticas�que�surgiam�e�a�década�que�ia�começar.�Por�influência�do�movimento�Tropicalista,�a�obra�recebeu�uma�forte�dosagem�pictórica�de�colorismo�intenso�e�dos�quadrinhos,�na�época�despontando�sob�a�crítica�de�uma�revisão,�participação�de�seus�heróis�maculados�pelas�situações�criadas�na�composição”.

Realmente,�vemos�na�obra,�inaugurada�em�1969,�as�alegorias,�símbolos�e�signos�da�Pop�Art�‒�como�os�heróis�das�HQʼs:�Super-Homem,�Fantasma,�Batman�e�Mandrake�‒�além�das�imagens�de�um�astronauta�no�espaço�(ligado�a�um�

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cilindro�de�ar�comprimido�segurado�pelo�Super-Homem),�outro�astronauta�com�garfo�e�faca�em�suas�mãos,�um�videocassete,�vários�sinais�de�trânsito�e�símbolos�gregos,�fotogramas�de�uma�escova�de�dentes�e�uma�vista�da�Terra�a�partir�da�Lua.�Também,�uma�estrada�asfaltada�no�alto�da�obra,�uma�mulher�“tropicalista”,�flores�e�frutas�estilizados�(com�o�uso�do�estêncil),�a�cabeça�de�uma�águia�(os�Estados�Unidos?)�e�um�autorretrato�em�negativo�(essa�foi�a�“assinatura”�do�artista�na�obra).�No�canto�esquerdo�uma�placa�com�os�dizeres�“Quem�anda�com�atenção,�evita�acidentes”...�Tudo�sob�um�céu�azul�típico�de�Campina�Grande.�

Pelo�que�fui�informado,�o�cineasta�Rômulo�Azevedo�está�produzindo�um�vídeo-documentário�sobre�a�obra�que�continua�aberta�à�visitação�do�público�neste�mesmo�prédio�‒�construído�no�governo�de�Plínio�Lemos,�em�1957�‒,�onde�também�funcionava�a�já�citada�Escola�de�Arte�de�Campina�Grande�(do�Prof.�Miranda),�abrigou�outros�cursos�universitários�e�hoje�o�funciona�o�Centro�Artístico�Cultural�da�UEPB,�que�oferece�à�comunidade�cursos�de�dança�de�salão,�teatro,�música,�sanfona,�pintura,�desenho,�ballet�etc.,�na�rua�Getúlio�Vargas,�por�trás�dos�Correios,�centro�de�Campina�Grande.�

Enquanto�o�vídeo�não�fica�pronto,�vale�uma�visita�a�esta�obra�que�deveria�ser�imediatamente�tombada�pelo�Instituto�do�Patrimônio�Histórico�e�Artístico�do�Estado�da�Paraíba�(IPHAEP).�Fica�o�registro!

Dyógenes�Chaves�é�artista�visual,�designer�têxtil�e�membro�da�ABCA/AICA�e�do�Colegiado�Setorial�de�Moda/SEC/Ministério�da�Cultura.�É�professor�do�curso�superior�de�Moda/Unipê.�Autor�do�livro�2005-2010:�ensaios�sobre�artes�visuais�na�Paraíba�(Programa�Banco�do�Nordeste�de�Cultura,�2ou4�Editora,�2013)�e�do�Dicionário�das�Artes�Visuais�na�Paraíba�(FMC,�Edições�Linha�DʼÁgua,�2010).�Organizou�o�livro�Núcleo�de�Arte�Contemporânea�da�Paraíba-NAC�(Coleção�Fala�de�Artista/Edições�Funarte,�Rio�de�Janeiro,�2004)�.�Editor�geral�da�Segunda�Pessoa.

Notas1�Após�viver�em�Nova�York,�onde�cursa�artes�gráficas�no�Pratt�Institute,�entre�1982�e�1983,�Alex�Vallauri�(1949-1987),�considerado�artista�pioneiro�do�Grafite�no�Brasil,�em�1985,�apresenta�a�série�A�Rainha�do�frango�assado�na�Bienal�Internacional�de�São�Paulo.2�A�obra�de�Rubem�Navarra�sobre�o�Barroco�mineiro�e�o�Modernismo�(além�de�crônicas,�algumas�ainda�inéditas),�compõe�um�apanhado�da�maior�importância�para�o�estudo�e�a�compreensão�da�arte�brasileira.�Infelizmente,�é�pouquíssimo�conhecido�até�em�sua�terra�natal,�Campina�Grande.�

Fontes�primáriasEntrevista�com�Francisco�(Chico)�Pereira�da�Silva�Júnior,�João�Pessoa,�em�outubro�de�2013.

ReferênciasCÓRDULA,�Raul.�SILVA�JÚNIOR,�Francisco�Pereira�da.�Os�Anos�60:�revisão�das�artes�plásticas�da�Paraíba.�João�Pessoa:�Funarte/UFPB,�1979.SILVA�JÚNIOR,�Francisco�Pereira�da.�Memórias�e�anotações.�João�Pessoa:�Grafset,�2012.SILVA�JÚNIOR,�Francisco�Pereira�da.�Paraíba�-�Memória�Cultural.�João�Pessoa:�Grafset,�2011. 26

Manifesto�do�Equipe�3

Partimos�do�princípio�de�que�a�Arte�é�uma�expressão�em�totalidade,�particularmente�em�nosso�século,�das�diversas�tendências�e�manifestações�de�caráter�estético�de�uma�comunidade.�Situamo-nos�numa�região�onde�os�contatos�com�os�maiores�centros�do�país�são�de�acesso�difícil,�quando�não�algumas�vezes�impossível,�e�este�nosso�trabalho�é�caracterizado�por�uma�resposta�ao�nosso�meio�ambiente�no�que�ele�nos�agride�em�sua�estrutura�carcomida�pelo�subdesenvolvimento.�A�nossa�experiência,�individualmente,�assemelha-se�e�foi�motivadora�para�este�trabalho�que�resume�as�nossas�aspirações,�como�o�tema,�e�as�nossas�técnicas,�como�diversidade.�Cada�“unidade”�do�tríptico�foi�trabalhada�pelos�três�artistas�de�uma�maneira�quase�simultânea.�Sendo�por�sua�própria�natureza�um�trabalho�que�não�deixa�margem�a�virtuosismos,�foi�permitida�a�cada�artista�uma�total�liberdade�na�escolha�das�técnicas�a�serem�empregadas.�Ficou,�apenas,�como�ponto�de�referência,�o�intuito�de�se�obter�uma�forma�de�expressão�coletiva,�a�exemplo�do�que�já�havia�sido�tentado�nos�jogos�automáticos�de�palavras�dos�dadaístas�e�primeiros�surrealistas.�Como�pesquisa,�este�trabalho�seria�vazio�se�não�mostrasse�um�caminho�a�ser�trilhado:�o�da�expressão/comunidade,�arte/multidão.�É�nosso�pensamento�que,�sem�ferir�seus�fundamentais�objetivos�e�princípios,�o�campo�das�artes�plásticas�seria�enriquecido�pelo�trabalho�em�conjunto�de�artistas�de�uma�coletividade.�Iniciamos�com�três,�mas�esperamos�resultados�idênticos�com�quatro,�cinco,�dez�ou�muito�mais�indivíduos�trabalhando�a�fim�de�obterem�novas�perspectivas�nestes�domínios�da�expressão�artística.�

Campina�Grande,�18�de�abril�de�1967.�Eládio�de�Almeida�Barbosa�Francisco�Pereira�da�Silva�Jr.�José�Anacleto�Elói�de�Almeida�

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Alípio�e�Antonio�Dias,�Francisco�Duarte,�Mário�Pedrosa�e�Gerchman,�inauguração�da�galeria�Faxeiro,�1967�(Foto:�Machado�Bitencourt)

Painel�Tropicália�(restaurado),�Restaurante�da�FURNe�(hoje�UEPB),�Campina�Grande,�1969(Foto:�Chico�Pereira,�2013)

Chico�Pereira,�Parque�do�Ibirapuera,�São�Paulo,�1967�(Foto:�Eládio�Barbosa)Painel�Tropicália,�detalhes�da�obra�e�da�restauração,�2013�(Fotos:�Rafael�Soares�e�Chico�Pereira)

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���� “O�traje�veste�a�história”�������������������Luiz�XIV

A�roupa�desde�sua�origem�foi�determinada�pela�necessidade�de�abrigo�e�aparência�para�o�corpo�como�a�arquitetura,�desde�os�tempos�da�caverna�que�o�homem�criou�hábitos�de�pintar�o�corpo�ou�fazer�uso�de�indumentárias�confeccionadas�com�peles�de�animais�para�expressar�seu�desejo�de�poder�e�exibição.�A�veste�e�seus�acessórios�são�meios�de�comunicação�que�espelham�o�modelo�social.�A�moda�é�uma�linguagem�simbólica�que�ultrapassa�a�sua�função�de�proteção�para�significar�o�indivíduo�na�sociedade,�é�uma�espécie�de�identidade�que�fala�de�sua�condição�e/ou�opções�social,�profissional�e�sexual.�Em�todas�as�épocas�a�roupa,�além�de�sua�função,�explicitou�significados,�como�uma�embalagem�que�protege,�embeleza,�decora�e�identifica�o�produto.�Com�suas�cores�e�estilos,�a�vestimenta�é�um�signo�e�um�dispositivo�da�condição�social�e�cultural�através�do�qual�o�homem�atende�suas�necessidades�de�comunicação�e�expressão.

As�obras�de�arte�do�passado�são�o�principal�meio�de�informação�do�corpo�e�suas�indumentárias.�Grandes�retratistas,�como�Velásquez,�na�Espanha�de�Felipe�IV,�registraram�nas�suas�pinturas�a�moda�de�seu�tempo,�quando�retrataram�os�nobres�e�sua�corte.�Em�Velásquez�podemos�perceber�como�o�preto�era�a�cor�predominante�para�ambos�os�sexos,�veludos�com�ornamentos�de�prata�e�ouro.�O�vermelho�também�uma�cor�favorita�e�o�branco�era�usado�em�raras�ocasiões.�No�ocidente,�surge�durante�o�Renascimento�o�conceito�de�moda,�quando�o�interesse�pelo�traje�deixa�de�ser�uma�necessidade�puramente�funcional�para�afirmar�posições�hierárquicas�de�poder.��

Roland�Barthes�e�sua�semiologia�da�moda,�fala�da�existência�de�uma�língua�do�vestuário,�postulada�em�escritores�como�Balzac,�Proust�ou�Michelet.�Para�Barthes:�“A�moda�é�uma�combinatória�que�tem�uma�reserva�infinita�de�elementos�e�de�regras�de�transformação.”�Uma�língua�falada�por�todos�e�ao�mesmo�tempo�desconhecida�de�todos.�A�roupa�não�só�protege�(função),�informa,�embeleza,�contesta�(significa),�na�condição�de�um�fenômeno�semiótico�fala�de�seu�usuário.

A�leitura�da�vestimenta�mostra�a�multiplicidade,�diferenças�e�contradições�da�sociedade.�Valores�culturais�e�condições�econômicas�determinam�as�opções�do�figurino.�Existem�sistemas�de�codificação,�tais�como:�a�cor,�o�tipo�de�tecido�ou�

A�linguagem�e�a�transgressão�da�veste

Almandrade��������������������������������������[email protected]��

o�estilo�do�uniforme�associados�às�profissões,�crenças,�identificação�de�classe,�estações�do�ano.�Podem�informar�o�destino�do�usuário,�a�cada�lugar�um�código�ou�um�estilo.�

A�roupa�além�de�ser�“uma�extensão�da�pele”�(McLuhan)�é�também�uma�necessidade�de�consumo�criada�pela�publicidade�da�etiqueta.�Waldemir�Dias-Pino,�um�dos�criadores�da�poesia�concreta,�faz�relações�entre�os�modelos�da�roupa�e�as�formas�da�arquitetura:�o�homem�moderno�de�calça�e�paletó�com�o�arranha-céu,�a�tanga�do�índio�e�a�palha�que�cobre�a�taba,�o�árabe�se�veste�com�a�forma�de�uma�tenda,�a�japonesa�carrega�nas�mangas�do�vestido�as�formas�dos�beirais�de�seus�telhados.

A�moda�do�vestuário�aproximou-se�da�vanguarda,�no�processo�das�revoluções�nas�linguagens�artísticas,�cada�época�tem�as�suas�vestes�e�elas�integram�o�indivíduo�ao�meio�ambiente�social,�cultural,�tecnológico�e�ao�grupo�social.�A�moda�pode�acentuar�também�a�divisão�de�classes,�ou�ao�contrario,�participar�das�contestações�sociais.�Com�osBeatles,�o�Tropicalismo�e�os�hippies�com�um�estilo�naturalista�descontraído,�nos�finais�da�década�de�1960,�a�roupa�tinha�um�sentido�crítico,�em�aparente�contradição�com�a�moda�corrente,�imposta�pela�indústria�da�moda,�produto�da�revolução�industrial.�

A�partir�da�modernidade�designers�e�artistas�interessam-se�em�desenhar�roupas�e�objetos�utilitários�que�atendam�à�funcionalidade�do�mundo�moderno.�Artistas�transformam�a�roupa�ou�o�ato�de�vestir�em�objeto�de�sua�experiência�artística.�Os�construtivistas�russos�criaram�a�roupa�do�trabalhador,�cuja�principal�preocupação,�era�a�funcionalidade.�O�professor�da�Bauhaus,�Johannes�Ittens,�desenhou�uma�roupa�para�ser�usada�pelos�seguidores�de�uma�doutrina�de�vida,�criada�por�ele,�que�tinha�como�objetivo�a�perfeição.�Os�futuristas�italianos�pregavam�a�necessidade�de�uma�roupa�confortável,�prática,�agressiva,�ágil�e�alegre,�decorada�eventualmente�por�lâmpadas�elétricas.

Os�surrealistas�e�dadaístas�posicionaram�ironicamente,�apropriaram-se��da�roupa�como�um�instrumento�de�transformação�da�linguagem�da�arte.�Marcel�Duchamp�que�já�havia�posado�como�Rrose�Sélavy�em�1921�numa�prática�de�“ready-made”.�Em�1938,�numa�exposição�em�Paris�vestiu�um�manequim�feminino�com�chapéu,�paletó,�colete,�gravata�e�sapatos�masculino.

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No�Brasil,�algumas�experiências�são�pioneiras,�principalmente�na�obra�de�dois�artistas:�Flávio�de�Carvalho�e�Hélio�Oiticica.�Em�uma�movimentada�rua�do�centro�de�São�Paulo,�em�1956,�o�arquiteto�e�artista�plástico�Flávio�de�Carvalho,�autor�da�coluna�do�Diário�de�São�Paulo�“A�Moda�e�o�Novo�Homem”,�desfilou�com�sua�“indumentária�do�futuro”,�por�ele�denominada�“New�Look”.��Vestindo�com�meias�rendadas�de�bailarina,�saiote,�blusa�de�nylon�com�aberturas�laterais,�o�artista�lançou�o�novo�traje�para�o�verão�dos�trópicos,�provocou�pânico�e�escândalo�na�população.�Artista,�arquiteto,�engenheiro�e�escritor,�Flávio,�um�personagem�excêntrico�na�história�da�arte�brasileira,�apelidado�de�“divino�louco”,�não�teve�ainda�o�reconhecimento�à�altura�do�seu�talento�por�nosso�meio�cultural.

Na�década�de�1960,�as�experiências�de�Hélio�Oiticica�e�seu�envolvimento�com�o�samba�resultaram�em�capas�denominadas�“Parangolés”.�Propostas�para�o�espectador/participante�em�lugar�de�simplesmente�contemplar�a�cor,�vestir-se�nela.�Uma�estética�da�existência�e�não�do�objeto/arte,�o�corpo�não�é�o�suporte�da�obra.��“O�objetivo�é�dar�ao�público�a�chance�de�deixar�de�ser�público�espectador,�de�fora,�para�participante�na�atividade�criadora“.�(Oiticica)

Lygia�Clark�e�suas�“máscaras�sensoriais”,�que�integram�a�fase�sensorial�de�seu�trabalho,�a�exemplo�da�obra�que�consiste�num�macacão�para�ser�vestido�por�um�homem,�contendo�um�zíper�que�ao�ser�aberto,�ele�retira�uma�“barriga�grávida“,�feita�de�borracha�cor-de-rosa�e�de�dentro�dessa�barriga,�retira�uma�espuma�de�borracha.�Ao�praticar�essa�operação�“cesariana“,�as�pessoas�experimentam�reações�mais�inesperadas.�

Até�os�heróis�das�histórias�em�quadrinhos�têm�suas�identidades�garantidas�pela�veste.�Essa�embalagem�que�envolve�o�corpo�ocupa�um�lugar�no�sistema�da�linguagem�e�sua�leitura�é�uma�necessidade�do�mundo�contemporâneo.�Como�forma�de�comunicação�é�abordada�por�várias�teorias�como:�a�antropologia,�a�semiologia,�a�sociologia�e�a�teoria�da�informação.�

Almandrade�é�arquiteto�e�artista�visual.�

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Desenho�de�Flávio�de�Carvalho�para�o�seu�traje�de�verão,�New�Look,�1956

Experiência�nº�3,�de�Flávio�de�Carvalho.�Foto�publicada�em�O�Cruzeiro,�1956

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Lisboa,�2012�(Foto�da�capa)

rodolfo athayde

Barcelona,�década�de�1980

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Segunda�Pessoa���������������������������������������������������������������������������������������������Revista�de�Artes�Visuais���������������������������������������������������������������������������������������Ano�3,�Número�2�‒�Set-Out-Nov�de�2013

Editor-geral�|�Dyógenes�Chaves�Gomes�(ABCA/AICA)�Jornalista�responsável�|�William�Pereira�da�Costa�DRT-PB�792�Conselho�editorial�|�Dyógenes�Chaves�Gomes�|�Francisco�Pereira�da�Silva�Júnior�|�Gabriela�Maroja�Jales�de�Sales�|�Madalena�Zaccara�|�Maria�Cristina�de�Freitas�Gomes�|�Paulo�Rossi�|�Paulo�Sérgio�Duarte�|�Rodolfo�Augusto�de�Athayde�Neto�|�Valquíria�Farias�|�William�Pereira�da�CostaProjeto�gráfico�|�Dyógenes�Chaves�|�2ou4Fotografia�|�Arquivo�Chico�Pereira�|�Arquivo�revista�O�Cruzeiro�|�Chico�Pereira�|�Machado�Bitencourt�|�Rafael�Soares�Pereira�|�Rodolfo�Athayde�|�Wênio�PinheiroColaboradores�|�Agda�Aquino�|�Almandrade�|�Paulo�Rossi�|�Raul�Córdula�|�Valquíria�FariasImpressão�|�UniGráfica

Contatos�para�envio�de�artigos�e�colaborações:e-mail:�[email protected]�Editora/�Revista�Segunda�Pessoa����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������Rua�Protásio�Pontes�Visgueiro,�111,�Jardim�13�de�Maio������������������������������������������������������������João�Pessoa-PB�‒�58025-680�����������������������������������������������������������������������Telefones:�(83)�3042.7979�/�8808.7877www.segundapessoa.com.br

Os�artigos�publicados�são�de�total�responsabilidade�de�seus�autores.�Os�interessados�em�publicar�na�Segunda�Pessoa:�devem�observar�as�normas�de�publicação�no�site�da�revista.

Esta�edição�de�Segunda�Pessoa�(ISSN�2237.8081)�foi�impressa�em�dezembro�de�2013,�na�UniGráfica,�utilizando�os�tipos�da�família�Kozuka�Gothic�e�Caslon,�em�papel�pólen�(90g/cm²),�com�uma�tiragem�de�10.000�exemplares,�sob�a�responsabilidade�da�2ou4�Editora.�

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010

expedienteInstituto�dos�Arquitetos,�ladeira�do�Hotel�Globo,�João�Pessoa,�1997�(antes�da�restauração)

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ISSN A2A2A3A7A-A8A0A8A1A

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010