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Revista Tempo Brasileiro - 142

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Ciências Sociais em Tempo Brasileiro

• Crise de Legitimação no CapitalismoTardio l Jürgen Habermas

• Estado e Capitalismo l Winfr ied Vogt,Jürgen Frank e Clauss O ffe

• Política Econômica regional l F u r s t ,Klemer, Zimmermann

• Problemas Estruturais do Estado

Capitalista l Clauss O ffe• Regime Econômico e Política E conômica

l Alfred M uller Armack

• Mundialização: Ásia e América l RevistaTempo Brasileiro, 12 5

• Relações Brasil-China: Impasses e

Perspectivas /Revista Tempo Brasileiro, 13 7

O compromisso básico da Revista

Tempo Brasileiro continua sendo pensar.Pensar, repensando, reconstruindo e in-ventando caminhos.

TEMPO BRASILEIRO

142JULHO - SETEMBRO DE 2000

Diretor: EDUARDO PORTELLA

Conselho Consultivo

B A R B A R A FREITAGCARLOS C H A G A S FILHO

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO

JORGE A M A D OJOSÉPAULO MOREIRA DA FONSECA

NÉLIDA PINONRAFAEL GUTIÈRREZ GIRARDOT

ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRASÉRGIO PAULO ROUANET

Comissão Editorial

CARLOS SEPÚLVEDAEDUARDO COUTINHO

FLÁVIO BENO SIEBENEICHLERGUSTAVO BAYER

MÁRCIO T A V A R E S D'AMARAL

MUNTZ SODRÉPEDRO LYRA

RONALDES DE MELO E SOUZA

A editoração desta Revista, desde onúmero 80, está entregue ao Colégio do

Brasil (ORDECC).

Revis ta Trimestral de Cultura

Os art igos assinados são da inteiraresponsabilidade de seus Autores .

Direitos reservados àsEDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO

LTDA.

FRANCO PORTELLADiretor-Presidente

Redação e AdministraçãoRuãGago Coutinho, 61

22221-ff70 - LaranjeirasRio de Janeiro — RJ — Brasil

Telefax: (021) 205-5949

O LUGAR DO LIVRO HOJE

Os textos aqui publicados sãocomunicações apresentadas noColóquio Internacional "O lugar

do livro: entre a nação e o mun-do" , realizado no Auditór io Ray-mundo Magalhães Júnior, daAcadem ia Brasileira de Letras, de28.08 a 31.08 de 2000.

Foi uma iniciativa conjunta daUNESCO, da Fundação BibliotecaNacional e do Colégio do Brasil.Contou ainda com a cooperação daABL e da Folha Dirigida.

O Colóquio programado peloComitê " Caminhos do Pensamen-to Hoje", da UNESCO , quis pen-sar o livro na encruzilhada dosnossos dias, completamente divi-dido entre o protagonismo amea-çado, a emergência de novosatores culturais, e o for talecimento 'precário e possível, do seu lugarformador.

A reunião contou com a partici-

pação de personalidades nacionaise internacionais, e teve como coor-denador geral Eduardo Portella ecoordenadora executiva FrancêsAlbernaz.

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Ficha Catalográfica elaborada pela Equipede Pesquisa da ORDECC

Revista Tempo Brasileiro, jul.-set. - n° 142 - 2000 - Rio de Janeiro,Tempo Brasileiro, ed.Trimestral

1. Filosofia. 2. Ciências Sociais. 3. História. 4. Literatura.

CDD 100300909

B 869

SUMARIO

EDUARDO PORTELLA/ O livro na encruzilhada 5

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO / O livro da linguagem. 7

RAFAEL ARGULLOL / Cumplicidades 15

GIANNIVATTTMO / Livro - Liberdade 29

GERD BORNHEIM / A propósito da históriade uma vida: o livro 37

FRANCISCO DELICH / Parábola do Livro na Cultura Global 45

MAURICE AYMARD / As metamorfoses do livro e da leitura 51

SÉRGIO PAULO ROUANET / A cultura do fim de tudo: do fimda cultura ao fim do livro 67

ZYGMUNT BAUMAN / Os livros no diálogo global das culturas.... 87

BARBARA FREITAG / Era informacional e Uso do livro 103

GLORIA LÓPEZ MORALES / O lugar do livro entre a naçãoe o mundo 117

MILAGROS DEL CORRAL / O Livro tem futuro? A culturado livro na era da globalização 125

CLAUDIUS B. WADDINGTON / O livro e a invenção damodernidade 135

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Cena Aberta

EDUARDO PORTELLA / Juan Rulfo, a palavra m urmurada 15 7

Créditos dos autores 163

O LIVRO NA ENCRUZILHADA

EDUARDO PORTELLA

Aqui estamos, intelectuais de diferentes ecologias, para saber dascondições de vida, do estado de saúde, para medir a temperatura ou apressão arterial do livro neste começo de milênio. Deixamos de lado ailusão fundamentalista, a crença na relíquia tombada, bem como aantevisão apocalíptica, o diagnóstico do doente terminal. O livro, obje-to-sujeito facilmente identificável, não é nem uma coisa nem outra. É

antes qualifica do agente de transf orm ação da história. Fica difícil acre-ditar que "a civilização do livro", sobre a qual Peter Sloterdijk lançahoje perturbadoras suspeitas, tenha concluído a sua derradeira volta.Mais provável é que a "galáxia de Gutenberg" continue navegando,com a obstinação de sempre. Aprendemos, com os nossos antepassadosportugueses, que "navegar é preciso". Com ou sem a Internet. Ainternetização nem nos assusta nem nos pacifica. Mas de uma coisadevemo s estar razoavel mente certos: a história do livro não pode ser, demodo algum, a crônica de uma morte anunciada.

O livro sabe que vive em uma sociedade simultaneamente complexae simplificadora, cercado de perigos po r todos os lados, sitiado entre a

pressão do mercado e a impressão do m undo. Isto o identifica como umser profundamente humano - demasiado humano. Padece das dorespróprias de sua humanidade. Dentro dele estão guardadas, disponíveise protegidas, as percepções mais entranháveis da peripécia huma na - a

lembrança, a ocorrência, a premunição.

* Palavras de abertura do Colóquio Internacional "O Lugar do Livro: entre a nação e

omundo", pronunciadas por Eduardo Portella, no dia 28 de agosto de 2000.

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O livro vem a ser a entidade conf luente , na medida em que reúne, nomesmo projeto, a cultura e a educação. A cultura enquanto educaçãonão-formal, e a educação enquanto cultura basicamente formal. Tododesempenho pedagógico, toda política pública d e educação, passa oudeve passar pela cultura, inevitavelmente pelo livro. Foi assim nassociedades desinformadas e nas sucessivamente formadas. Será cadave z mais assim nas sociedades informatizadas, destinadas a rezar pelo"evangelho digital", segundo a expressão cunhada por Hans Magnus

Enzensberger. Daí a necessidade da leitura poliglota, a urgência dedesmontar o dispositivo excludente do monolingüismo.

A leitura logo se afi rma como o encontro do alfabeto em dissídio,palavra babelizada, enlace penoso com o cotidiano d e cada um de nós- a nossa esperança militante, dentro da qual coabitam a memória e oesquecimento. A leitura no singular, como se praticava na época daalfabetização à força, nunca se desfez d a herança autoritária que estig-matizou grande parte da nossa história comum. No pólo oposto, ou nacontracorrente, a leitura chega a ser o mais livre regime de parceria,insolitamente regido por contratos abertos. É quando atinge o seu

estágio mais avançado, e faz do leitor co-autor.Tudo isso acontece por iniciativas ou com a cumplicidade de biblio-tecas cidadãs. É indispensável prestar muita atenção. Porque o poderdas bibliotecas é um poder silencioso. As bibliotecas não fa lam alto;quase diria qu e simplesmente murmuram.E nem por isso deixam de se rouvidas. Dentro do seu recinto, dos seus corredores, de suas paredesúmidas, fantasmas convictos e seres perplexos, procuram tenazmentedecif rar a incerta verdade dos homens. Disso sabia muito bem um certodiretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires: aquele inventor delinguagens que nos acompanhará para sempre - Jorge Luis Borges. Omesmo que, naquela biblioteca famosa, diante d o saguão onde havia um

espelho, recusou a constatação predominante da f ini tude. "Eu prefiro -disse ele, e nós repetimos - sonhar que as superfícies polidas repre-sentam e prometem o inf in i to". Borges, ei hacedor, ei memorioso, nosensinava sobre livro, leitura e biblioteca. E sua lição persiste.

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O LIVRO DA LINGUAGEM

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO

Vivemos, nesta última semana do mês, o primeiro centenárioda sobrevivência de Nietzsche na vida do pensamento. No Cre-púsculo dos ídolos, de 1887, Nietzsche nos lembra que, sembiblioteca, os livros morrem e desaparecem e, com e na biblioteca,os livros ressurgem e se transformam em vida, numa Vontade de

Poder. "Um livro, escreve ele, não é livro. O que têm os livros,essas tumbas e mortalhas? Pois o passado é o presente dos livros";e como todo presente, não é apenas a presença, é também aausência do espírito, a vitalidade, princípio de vida! "Mas nesteaqui vive um eterno hoje" !

E que livro é esse em que vive um eterno hoje? O que Nietzschenos quer dizer e fazer pensar deste livro que ultrapassa um hojedeterminado para a eternidade de todo hoje?

O livro eterno é, sem dúvida alguma, o livro da biblioteca. Poisfazer com que os livros deixem de se r tumbas e mortalhas de umpassado morto e sem vida e ressuscitem para um eterno hoje, constituio desafio de toda a biblioteca.

E o que é isso, um eterno hoje?Este hoje, o hoje eterno, que vive no livro de biblioteca, é aconcentração do tempo. Pois todo dia de hoje revela e recolhe em sia força de reunião de passado e futuro. Sem esta vigência semprepresente, o tempo não poderia ser tempo. O hoje eterno torna-sesempre a consagração do instante criador e assim de todos os outrosi n s tan tes com ele abraçados no abraço de um mundo sem fim, porquetemporal. É o in- f ini to do tempo, i. é, justamente por ter sempre um

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f i m , o tempo nun ca termina de passar. É a conjugação do tempo vigenteem todo verbo de realização da realidade, na s palavras con jugad as dapoes ia de T. S. Elliot: "O t empo presente e o t empo passado es tãoambos talvez vigentes no tempo futuro e o tempo futuro contido notempo passado. Se, pois, todo temp o está assim eterna mente vigente,todo tempo não pode ser red imido" . Pois bem, este tempo impossívelde remissão é o livro de biblioteca. Pois se u tempo nunca deixa depassar, denunciando sempre toda pretensão da total idade e desmas-

carando qualquer i lusão de s imul tane idade . Cada vez se faz suaprimeira vez, tornando-se a invenção de uma temporal idade c in t i lan-te mas pontual, sem fim mas fini ta, co m memória produtiva, amemória das musas, mas sem desejo de imortal idade, o desejo detodo animado insatisfeito com sua animalidade, movido pela preten-são de elevar-se acima da vida e da m orte.

O l ivro de biblioteca já n ão sonha como vencer ou dom ar a morte,ao contrário, evoca continuamente, com sua própria presença, e arecebe, como p ressuposto de uma constante inovação da vida. Trata-se de uma transtemporalidade, i. é, de uma temporalidade sem ne-

nhum a pressuposição de imortal idade , seja retrospectiva seja pros-pectiva. O livro de biblioteca celebra, assim, se m cessar, a aliança dohoje com o sempre, na conjuração conjugada do tempo. É que nãoconserva apenas o já produzido, provoca o apelo de criar, evoca anecessidade de uma transformação in interrupta e convoca as di feren-ça s para um encontro de complementar idade .E, então, um outro dizerrompe os l imites do discurso e prorrompe num dizer se m discurso.U ma outra fala se desenha: um a fala se m definição, um a proposiçãoqu e só propõe o que já se impõe. É nesta direção, é para este endereçoque o e terno hoje consti tui o desafio e perfaz a provocação do l ivrode biblioteca.

E por que biblioteca, Livro de Biblioteca?Biblioteca é uma palavra form ada de dois ét imos, recolhidos numa

dinâmica de concentração e acolhimento: p ú p Ao ç e 6r|'Kr|.Bú p Ao ç é o nome que os gregos davam ao porto da Fenícia , donde

importavam a entrecasca de um arbusto, o Cypressus papyrii , um aespécie de c ipreste. Era um arbusto muito comum no delta do Nilo.Por isso, antes de significar livro, púpAoç t inha o sentido apenas deentrecasca. Pois da entrecasca deste cipreste se fazia o papiro, o papel

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de toda a A ntigüidad e. A idéia básica, que transmite o radical , tomadoaumal íngua desconhecida do Mediterrâneo Oriental , éa idéiade colhere recolher, para acolher e escolher: da casca se colhia o miolo, aentrecasca, qu e era, então, recolhida ao e no papiro para se acolher aescrita e se escolher a escritura na leitura.

São estes três verbos, recolher, acolher, escolher, todos derivadosde colher, que definem tamb ém as funções do relacionamen to criadocom os livros. Originariamente, ler, como A é y o ) , em grego, legere,

em lat im e lesen, em germânico, diz, tanto na palavra como na ação,reunir, conservar, proteger. Mas, então, que é que, ao ler um livro, aleitura escolhe para reunir, conservar e proteger?

E v i d e n t e m e n t e , o que foi ac o l h i d o na e sc r i t u r a p e l a e sc r i t a .E o que a escrita acolhe na esc r i tura e o l e i tor colhe na l e i tu ra?- A e s t a p e r g u n t a r e sp o n d e 0r|'Kr|, o se g u n d o é t i m o da p a l av r a ,B i b l i o - t ec a .

0 T Í K T ] se deriva de T Í G r ^ i , sem a reduplicação. É um dosverbos i rregulares em \i\, como t'v|ai, f a r r u a i , ô íôü) |a i , ô É K v u f i i .Trata-se em -rí6r\\ii de um verbo que nos fala d e estabelecer einstituir, no sent ido de guardar e cuidar , d e promover e expandi r .Para in tegrar , numa dinâmica d e pleni tude, as funções d e colher,a saber, recolher, acolher, escolher, o l ivro necess i ta d e cuidadoe promoção, ex ige e requer um lugar ins taurador de v i t a l i d ad e ,um lugar , i . é, que não apenas guarde e pro te ja , mas , sobre tudo ,que acione todas as suas potenc ia l idades d e gerar t ransformações ,d e i n d u z i r m u d an ç as d e es t ru tura . É i sto o que nos d iz o segundoé t imo e que def ine a função v i ta l de toda bibl io teca: um l ivro sóé livro em movimento d e vida, quando mobil iza a tarefa de umdesaf io d e c resc imento .

E que d e sa f i o é este em que consi s te su a t a re fa?

É o d e sa f i o da L i n g u ag e m e a t a re fa de cul t ivá- la e preservá- laem toda l íngua!De certa fei ta, o mesmo Nie tzsche do Crepúsculo do s ídolos,

disse num afor i smo de 1888 que o f i lósofo vive "nas geleiras dasaltas montanhas" , tendo po r companhia o monte d o vizinho, ondemora o poeta .

Será mesmo que geleiras tê m algo a ver com a viz inhança d ef i l osof ia e poes ia? O q u e poderá ser?

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Sem dúvida , a l imentando de vida uma e out ra , tanto a poes iacomo a f i losof ia , a Linguagem m antém viz inhos poetas e f i lósofos.Poesia e f i losofia são dois modos, embora diferentes , de ser e estarna Linguagem.

Sem dúvida , a s mui tas f i lo so f ias não são apenas manei rasd i ferentes de se responder às mesmas perguntas legadas pelatradição d o pens a m en to , e sim nívei s d i ferentes de se pe rgun ta r ea pro f und a r a s respos tas dadas pe l a expe r i ê nc i a d o p e n s a m e n t o

e preservadas pe l as d iversas l ínguas d a L i n g u a g e m .Sem dúvida , "os l imi tes da Linguagem são os l imi tes do mun-

do" , na formulação pregnante d e W i t tgens t e i n . Enqua n to v i ve r-mos, pensarmos e agirmos nesta Terra, só faz sentido mesmo oque pudermos fa la r uns com os outros, o que puder receber um asignif icação na e da Linguagem . Não há verdade no s ingular, fora detoda envergadura de integração e convivência. A verdade nos é dada,por exis ti rmos sempre na Linguagem do plural, num a correnteza quenos arrasta para a conjugação das e com as diferenças.

Sem dúvida, já se tornou um desafio do e para o pensamento a

seqüência lapidar da Carta sobre o Humanismo: "A Linguagem é acasa do Ser. No casa-mento de Ser e Linguagem, mora o hom em . O spoetas e pensadores sã o vigias e sentinelas deste casa-mento ".

Mas que tem a ver geleira com Ling uagem?É que ambas, tan to as geleiras como sobretudo a L inguagem , têm

o poder ou melhor são os poderes de preservação radicais da vida,depondo o passado e dispondo o futuro para o presente. A s geleirasconservam. Conservaram os mam utes da Sibéria e o Homem d a Nevedos Alpes. E a Linguagem? A Linguagem preserva. Preservou no sétimos das línguas as criações do passado e as entrega continu amen teàs gerações presentes para as criações futuras. Deste fluir e refluir da

Linguagem vive toda a tradição e toda a his tória hum ana, recolhendoem suas correntes culturais Tcrr 'èóvTa - o que é - T(rr'â55ò| i£va -o queserá - TÒTTpóVéÓTa - o que foi antes. É o saber de integraçãoe acolhimento que, no dizer de Hesíodo (Teog. 27) , Mnemosine, opensamento criador, passou, em n ove noites de amor, para as Musas:

"Pastores rudes , más l ínguas , somente vent res ,Sabemos recolher mu i to s mistér ios ao seio d as raízes;

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S abemos t am b é m , quando dispostas , desvendar a ve rd ad e emf o rm ad e m i t os ! "

U m dos mistérios da Lingu agem para toda a cultura e civi lizaçãoOcidenta l se tem concentrado na d inâmica de expansão e no poderde transformação do livro de Biblioteca. Na raiz de todo é ou nãoé , de todo é e não é age a força do livro, a força de gerar e induzi rtensões e confli tos . Na s viciss i tudes e peripécias de realização d e

se u verbo, vive alvissareiro o poder criador e destruidor da Lingua-ge m de gerar posições e compor oposições.Das constelações d a b ib l ioteca poderemos então colher qua t ro

coordenadas para a es t rutura d e encaminhamento d a Li ngua gemna poes ia e n o pens a m en to .

1° A Linguagem vive em toda força de reunião, como a conjunturade todo ordenam ento das diversas ordens. Trata-se de uma conjugaçãoontológica que, de alguma m aneira, perpassa e resguarda tudo que é ese realiza;

2° Pertence à Linguagem coesão e consistência de estruturação da sdiferenças e suas tensões;

3° Linguagem d iz a realidade, como verbo e mov ime nto de realiza-ção, que rege a totalidade do real e impulsiona o unive rso das realiza-ções;

4° A Linguagem é a operação matricial na s línguas e nos discursosde uma vinculação matinal que instaura mundo no imundo e faznascer ordem da desordem.

É prec i so mui ta exper iênc ia nas peripécias d o Pensamento, -T T O X A Ò U aropaç - d iz Herácli to, para se perceber que pensar é sempret raduzir da Linguag em para as línguas. É o convite que faz o livro debiblioteca, uma aprendizagem de tradução. Traduzir não é, então,

encontrar correspondências biunívocas entre vocábulos de duas oumais l ínguas. Nenhuma tradução pode se r literal, para se r criadora.U m tradutor literal não sabe o que faz. É impossível uma traduçãoeletrônica. Pois traduzir não está em trocar traços, traduzir é respon-der aos novos apelos, múltiplos e diversos, que, diferenciadamente,nos chegam n as palavras da Linguagem. L inguagem não é língua. Alinguagem é a l íngua materna de todas as l ínguas e somente porsermos e estarmos sempre em sua maternagem é que, na poesia ,

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podemo s t radu zi r de uma l íngua pa ra out ra . Nenhu ma l íngua , se javerba l ou não verbal, pode dizer tudo que tem a d izer . E n e n h u m alógica ou gramát ica do d i scurso, da sentença ou propos ição con-seguem supr i r ta l imposs ib i l idade, antes a favorecem e reforçam .Por um m ot i vo bem simples. Pois é jus tamente es ta imposs ib i l i -dade que const itui e perfaz a Linguagem, como língua materna detoda língua. Somente esta impossibi lidade cria as condições d eum a m a te rna gem que acolhe a d i ferenc iação vigente nos d izeres

de uma l íngua . Dizer tudo ser ia a máx ima redundânc ia e uma puratautologia , pois saturaria o vazio da pa lavra e preencher ia osi lêncio da fala com o alarido dos discursos. Grã, ambos os doi s ,t an to o s i lênc io quanto o vazio , são ind i spensáveis a qua lquerd i ferenc iação. O solo de uma relação e de qua lquer re lac ionamen-to não es tá na repet ição da igua ldade mas no ruído d a d i fere nc ia -ção das d i f e r ença s , q u e p r o v o c a o " e t e r n o r e to rno de seui g u a l a r - s e " , n o " p e n s a m e n t o ab s i s sa l " d e Ni e tz s c he . P rovoc a rr e pe t i ç õe s é t ud o q u e sabe e pod e f a ze r u m a t r a d uçã o c om pu-tac iona l . Ora , pa ra t raduzi r c r ia t ivamente , toda poes ia tem de

fug i r à li teralidade e ser f ie l às pa lavras da Linguag em nos d iver-so s discursos d as mui tas l ínguas.A s línguas perfeitamente ordenadas são transparentes e imutáveis.

Ideais e clonadas são, contudo, desprovidas de vida e de morte ,tornando-se insensíveis para as diferenciações históricas e as diver-s idades culturais da humanidade. A linguagem real da vida doshomens não considera apenas as estruturas logicamente ordenadasque se podem compor co m clareza e uma perfeição se m jaca. ALinguagem da vida real se mantém sempre em aberto e abrindo-separa usos sempre inesperados e jogos em contínua mu tação de suasregras. A fonte da vida histórica é o caos, no sentido originário da

experiência e da palavra grega. Trata-se de uma experiência inaugu-ral tão cheia e dinâmica que dela se origina tudo que é e nela se nutretoda criação em qualquer área ou nível, tanto do real quanto dopossível, tanto do necessário quanto do co ntingente. Por isso todopropósito de pensar ou falar, de conhecer ou agir sempre acena paraeste vigor primordial de ser e realizar-se que a Linguagem propician u m a infinidade de modos, entre eles, no seu livro, no livro debiblioteca. Do caos provém, para o caos remete e n o caos se mantém

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e de volta ao caos retorna toda ordem e toda desordem, o m und o e oimundo, tudo que está sendo e tudo que não está sendo.

A palavra caos tem o mesmo radical do verbo X Ó C T K C J , que nosenvia para a experiência de manter-se continu amente abrindo-se, deestar, portanto , sempre e m aberto. Diz o hiato do ser, o abismo hianteda realidade que é, no sentido transitivo de deixar ser e realizar-se.Todo real se instala e sustem nu m advento desta realidade que seabisma no hiato sem limites nem d iscriminações de um nad a criador.

A essência da Linguagem, mãe de todas as línguas, está neste podermatricial do caos, o poder em si indeterminado e indeterminável detoda determinação e indeterminação.

A L inguagem, portanto, envia no livro de biblioteca para a conju-gação da s três dimensões, os três poderes, da realidade:

1° A realidade está aquém e/ou além de toda ordem e desordem dequalquer t ipo, natureza ou nível;

2° A realidade é a possibilidade, em sentido transitivo de possibi-litar, dar e/ou tirar o poder, de toda diferenciação e indiferenciação;

3° A realidade é o princípio de transformação e manutenção paratoda discriminação e/ou indiscriminação.

Esta integração da L inguagem consti tui de alto a baixo a exis tênciahumana em cuja força se inaugura a dinâmica his tórica da s culturas.Nela mora tanto o silêncio da fala como o espanto da criação. Delavive o estranho que atrai o Pensamento e o inesperado que alimentade esperança as esperas. Com ela partilha o pensamento a ousadia desuas aventuras e para el a recorre a insis tência das tentativas det ransformação de cada at o criador. É nesta direção e neste sentidoque o livro de biblioteca é sempre livro da Linguagem!

Rio de Janeiro, agosto de 2000

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CUMPLICIDADES

RAFAEL ARGULLOL

Respondendo ao tema proposto neste colóquio, gostaria de referir-me, muito especialmente, às cumplicidadesque podemos entrever nes-ses anos marcados pelo paradoxo e pela transição. Em conseqüência,vou destacar três territórios de convergência nos quais permaneceimplicada a cultura de nosso tempo, sem renunciar a expor meuspróprios desejos, na direção que, em seu momento, ítalo Calvino indi-cou, conforme ouvimos nesta manhã. Estes territóriosde cumplicidades

representam um cenário, uma proposta de hospitalidade e um apelo àpolifonia.

O Cenário

Considerando que a percepção do tempo, em princípio linear, é tãos igni f ica t iva na mente ocidental, deveríamos primeiro entender comoele se estrutura, uma vez que dificilmente a cotidianidade ocidental podeser pensada em outros termos que não sejam lineares. Estamos for te-mente configurados no sentido de um tempo linear - passado, presente

e fu turo. À margem, somente o tempo do sonho, que é um tempoanárquico cujas leis desconhecemos, como desconhecemos os ritmos,a legislação com que o tempo da memória atua, embora seja um tempoque vai do presente para o passado.

Não sei até que ponto assim o era, na época clássica dos gregos. Apartir de algumas deduções que podemos fazer, desde os filósofospré-socráticos e do mundo da tragédia, é possível que ali atuasse umaespécie de dupla dimensão do tempo. De um lado, um tempo efet iva-

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escapava , nós nos iludimos com a possibil idade de conqu istar umespaço que significasse a contradição do tempo, do passar do tempo;que contrar iasse esse t ranscorrer do tempo. Enquanto produto dacivilização e produtor d e civil ização, a cidade d o h o m e m não deixade ser uma conquista do espaço, criando um a i lusão contra o passard o tempo. O homem, como cons t ru to r de cidades, como con s t ru to rd e monumentos, como construtor d e pontes, o homofaber, o h o m e mdotado d e u m a dimensão técnica, cria um a perspect iva espacial qu e

o engana em face do passar do tempo. Em termos gerais , dir íamosque o espírito utópico é a criação de um topos, um lugar que não é olugar que ef et ivamen te existe, m as o lugar que pode chegar a f icar àmargem d a condição humana, enquanto atr ibuto mortal e temporal ;é .uma idé ia, creio, qu e deve ser tão ant iga, rudimentar , como aprópria consciência d a morte e a consciência do t empo . A s principaismanifestações do que agora cham amo s arte ( a ar te paleolítica, a arterupestre) , ou as primeiras m anifestaç ões simbólicas do homem , aten-dem, provavelmente, à necessidade d e criar esse não-lugar que ,con tudo , não existe e é incapaz d e erguer muralhas contra a passagemdo tempo. Portanto, grande parte do que vimos denominando civil i-zação, desde a arte até a técnica, passando po r sucessivas expressõessimbólicas, está vinculada a esta luta contra o tempo que é , t ambém,luta contra a morte que é, em grande medida, um a lu ta contra o tempoconcebido através dessa gravidade l inear d o t empo . Natu ra lmen te , ohomem não luta unicamente contra o tempo, por meio de produtosexteriores d a civilização material, d a técnica, inclusive a arte, mas,também, através de toda um a série d e real izações espir ituais que,igualmente, denominamos ar te ou l i teratura. Creio que, no m o m e n t omesmo em que o homem assume a consciência d o tempo, dá-se contada dupla dimensão d a memória como organismo dessa consciência

d o tempo e como cenário da lu ta contra essa consciência. Isso é amemór ia . Para o homem pr imi t ivo , para o homem an t igo e para nóst ambém, a memór ia é o veículo d a mor te e cenário legí t imo contra amor te . Não é de estranhar que os ant igos t ivessem, como m usa mít icadas artes, a memória, porque, afinal, essa outra vertente da arte , a artecomo criação u tóp ica que tenta erguer barreiras contra o passar d otempo, atua por meio d a memór ia , po rque é ela que cria determinadosjogos nos quais o superficial é o produto resul tante , mas cuja raiz é

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a lu ta da memór ia con t ra o f lu i r do t empo , con t ra a consc iênciada morte. Por essa razão, na or igem do que chamamos ar te sempreestarão presentes os monumentos funerários, e memória contra amor te . E daí, em todas as culturas conhecidas existe a épica que é,d o mesmo modo , a memór ia d a morte , memória contra a mor te . P orisso, quando, no mundo secular , ocidental , moderno, tende-se arecusar a esfera do d ivino, a esfera dos deuses, desaparece, então, aesfera dos heróis , porque, no sen t ido da épica, estava ela for tem ente

vinculada a essa inter-relação com o m u n d o d o divino. Aparece,então, o herói moderno, que a poesia re-apresentou na l i teraturamod erna e que estava mais l igado àquilo que O ctavio Paz denom inoua consagração do instante. O conceito de Paz se refere , não àpossibil idade de construir m onum entos l i terár ios ou ar t ís ticos, re tá-bulos, afrescos contra a morte , por meio de uma memória que tenhacapacidade d e representação, qu e seja poét ica, p ictór ica ou escultó-rica, mas à possibil idade d e certos instantes que nos resgatem, aindaque provisoriamente, de nossa condição de caídos no tempo; cer tosins tantes que nos criem uma ilusão de superação do tempo, de atem-poral idade. Por essa razão, re tomando uma questão anter iormente

referida, de m odo amplo, ap ontamos a atemporal idade, a e ternidade,como plenitude, como imensidade. O bter a atemporal idade, subtrair-seà consciência do tempo, supõe, para os ocidentais, sentirem-se plenos,a plenitude, porém, o vazio absoluto tam bém nos deixa à margem docurso do tempo. Portanto, uma das características da ar te moderna, dapoesia moderna no O cidente , tem sido esta espécie de aposta, apostasecular, suplemento d o religioso e do mítico, a favor dessa consagraçãodo instante que acaba sendo, sem embargo, m ít ica e sagrada. A melhorexpressão da arte e da poesia modernas emancipou-se do sagrado paraacabar sendo, de novo, sagradas.

V ivemos em um mundo onde o domín io t ecno lógico , do comuni-cacional , do que se vem chamando global idade planetár ia mais aexigência de uma atual idade permanente , converteram-se em umconvite planetár io à amnésia. Nesse sent ido, nosso mundo está for-t emente marcado por um mode lo d e amnés ia e d e velocidade, d eamnés ia e d e vert igem, embora, evidentemente, muitas vezes essavert igem se manifeste como no mito de Sísifo; manifeste-se comoum a vert igem imóvel , de voltas circulares, sobre um mesmo eixo.

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Parece-me mu i to s igni f ica tivo que o modelo l inea r , te leológico,de um paraíso religioso ou paraíso laico do progresso e da igual-dade, tenha sido substituído, no O cidente, por um modelo que pode-ríamos cham ar de circular presentif icado, de um presente circular,permane nte, como sugere o capitalismo de nosso tempo. Trata-se deum modelo d e produção-consumo permanente, permanentemente seconsumindo para a produção; produz-se como consumo, sem quenada f ique ao largo deste círculo totali tário, nem mesmo o ócio, o

qual se consti tui como compo nente dessa produção ou desse consu-mo. O mundo atual nã o parece propor um paraíso no f inal dos tempos,m as um a fantasmagoria de um paraíso permanente, sempre que seproduzir essa espécie de consumo do produzido. Portanto, a substi-tuição do paraíso como promessa do paraíso, como consumo acom-panhado da amnésia , e da vertigem imóvel marcam tão duramentenossa época contemporânea que chegam, inclusive, a destruir omodelo h is toricis ta ocidental moderno. O cidadão que faz parte daglobalização atual nã o pensa, nem em termos historic istas, nem emtermos de eterno retorno, mas exclusivamente através da visão de umpresente permanente em que o paraíso se consome e se autoconsome,permanentemente.

Por isso, aparentemente, em nossa sociedade contemporânea, autopia perdeu prestígio, não apenas em face das calamidades causa-das pelas utopias coletivas, a que já aludimos, m as também pelo fatode que se, efetivamente, o presente é contínuo, um presente que seautoconsome, nele nã o cabe a utopia, nã o cabe o não-lugar, devido àilusão de lugar permanente, embora esse lugar passe, rigorosamente,pela produção e pelo consumo de bens. Não há lugar para a utopiacomo não há lugar para o tempo, nem para a memó ria , que é contra-di tada pela amn ésia , sem perspectiva suficiente dentro deste p rocesso

d a permanente atualidade, nem para a m orte camuflada e submetidaao esquecimento, porque o morto não é, nem produtor, nem consu-midor. Para se construir uma possibilidade de crítica em face domundo atual, um a resistência, é totalmente imprescindível tratar d ese situar fora desse círculo infernal apresentado como paraíso.

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A Hospitalidade

Creio que, no substancial, podem-se contemplar três t ipos deconhec imento : o conhecimento científico, o conhecimento artísticoe, para os devotos, o conhecimento religioso. O conhec imento c ien-tífico nos transporta para um idéia de domínio objetivo da realidadeexterior. É um conhecimento que está vinculado a um concepçãolinear e progressiva do tempo, que permite assegurar qu e, o que hoje

temos na conta de certeza, invalida o que tínhamos como certo hádois mil anos, como ocorre no terreno da astronom ia, da medicina,da botânica, etc. O segundo con hecimen to, poderíamos chamar, emlargos traços, de artístico. E um terceiro conhecimento, o religioso,é o que diz respeito ao s devotos, aos que crêem, implicando a relaçãodos homens com seus deuses ou a religião dos homens através dedist intos sistemas metafísicos. No caso da religião do Ocidente,tende-se a compreender esse conhec imento, fundamentalmente, emtermos lineares e apocalípticos, em termos de um paraíso final.Descartando este terceiro conhecimen to que, como digo, é exclusivo

dos que crêem, gostaria de manter-me no âmbito dos conhecimentoscientífico e artístico.O conhecimento artístico nos conduz a um tipo d e conhec imento

circular ao qual não se aplica a percepção linear do tempo. As obrasde arte que hoje nos agradam não invalidam as obras de arte de doisou três m il anos atrás. A s obras filosóficas qu e hoje se tornamapreciáveis não invalidam as obras filosóficas de Platão ou Aristóte-les. Este con hecimento circular teria relação com toda uma série decenários nos quais a visão da vida, da morte , das paixões, d asemoções hu manas adquire caráter priori tário. Permite-nos uma apro-ximaç ão maior em relação às luzes e sombras de nossa existência. Se

buscássemos resumir, por m étodos cibernéticos, os temas da poesiauniversal, verificaríamos que não passam de uma dúzia os que per-mitem essa circularidade. Sã o temas que não favorecem qualquerdomínio colonizado. A poesia, a arte, a filosofia não nos permitemcontrolar, colonizar, dominar. Confirm a um conhecimen to inacaba-do, que retorna para nós e que jamais perm ite atribuir-lhes um final.Em a lgum mom ento eu disse que, em boa lógica, um poema nuncadeveria ter um úl t imo verso, nem uma pintura a ú l t ima pincelada,

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p o rq u e , do pon to de vis ta da lógica intern a da arte, não exis te essaúl t ima pince lada , nem a úl t ima pa lavra do úl t imo verso. Is soexpressaram Leonardo, M ichelangelo ou Rodin, a través do inacaba-do, porque este é mais perfeito do que o acabado e porque há nelealgo profundamente astucioso. Este conhecimento se s i tua fora dal inearidade, fora do domínio e fora da colonização.

O destino próprio do con hecimento científ ico é o domínio objeti-vo, por isso seu prolongamento n atural é o tecnológico, embora essa.

relação possa ter dois sentidos, já que tam bém a técnica pode induzira novos avanços científicos.

Creio que, no hom em, atuam, s imultaneam ente, esses dois planosdo conhecimento. Podemos contemplar nosso corpo desde um pontode vista científico, como um conjunto de células, canais, nervos,músculos e órgãos que podem ser descri tos por meio de técnicascomo a cirurgia. Esse mesmo corpo, porém, pode ser cantado, ex-presso, através da emoção provocada por sua beleza, da repulsa, porcausa de sua feiúra; é o que poderíamos chamar de sentimentosestéticos. O conhecimento científ ico não é melhor, nem superior,

nem inferior ao estético. O sol, por exemplo, tem sido, tradicional-mente, um dos grandes s ímbolos da beleza p ara a maioria das cultu-ras, porém o Sol, em termos científicos, em termos da física, é umados maiores cenários de violência cósmica jamais concebidos, porsuas imensas explosões termonucleares. Conhecermos esta informa-ção sobre o Sol não impede que contemplem os sua beleza estética.Tanto o conhecimento que se vem chamando objetivo e que produzcolonização e domínio, quanto o conhecimento estético circular,aquele que Kant uma vez denominou "des interessado", oferecemseus ritos e seus mito s. De fato, quando falamos dessas verbalizações- os mitos - e desses representações ou gestualizações - os ri tos -

estamos falando de dois tipos de conhecimento em suas múltiplasmanifestações. Cada um deles apresenta um tipo de rito e de mi to: oconhecim ento produtivo, técnico, colonizável, que pôd e possibi li taro dom ínio objetivo na captura de uma presa de caça, como mist if ica-ção e atualização, e o conhecim ento s imbólico, que se vincula ao quevimos chamando de conhecimento artístico, is to é, o desejo de trans-cendência, de chegar a expressar uma harmonia, uma ordem, umcosmos.

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De m od o geral , o conhecimento estético, s imbólico, refere-seà esfera do sagrado , mas, eu diria que, inclusive no terri tório doque poderíamos chamar conhecimento científ ico, há um desejo detranscendência, pois construir, por exemplo, um a teoria dos camposunificados expressa o desejo de unidade. De Prometeu a Fausto, épossível identif icar esse desejo de criação de vida, que implica umaespécie de desejo de absoluto. Naturalmen te, essa ambição se mani -festa com mais clareza no conhecimento de tipo estético, artístico,

que supõe, como costumo dizer, uma contínua circularidade, aolongo de toda a história da cultura ocidental.Minh a posição a esse respeito é de uma aposta na integração dos

dois t ipos de conhecimento. Parece-me imprescindível qu e não en-caremos o conhecimento em termos absolutos ou exclusivis tas , masque saibamos dis tinguir entre conhecimento e sabedoria. O conheci -mento nos conduziria a determinados momentos, a lgumas vezesgrandiosos, outras vezes terríveis, enquanto a sabedoria seria aquiloque sugeriria um a alternância, um equilíbrio, entre o conhecimentoe o enigma. O saber demonstra que determinados aspectos da vida

humana, da relação do homem com o mundo, ou com a exis tência ,não podem ser dominados ou colonizados, uma vez que sempre serãoincontroláveis , i rredutíveis . Essa dialética entre o conhecimento e oenigma, a dialética do saber, seria expressa pela coexistência entre oconhecimento de tipo científico e o do tipo s imbólico-estético. Se mefosse atribuído definir o homem , coisa que, em princípio, é melhornã o fazer, nunca uti l izaria a definição tradicional, ensinada em n os-sa s escolas, de que o hom em é um animal racional, mas, sim, que ohomem é um animal nostálgico, uma consciência de coerência, um aconsciência de separação, de ser estrangeiro, de estar exilado emrelação a uma pátria q ue não é a sua pátria de nascimento . Essa p átria,

em mu itas tradições m íticas e religiosas, foi povoada por deuses, mas,quando os deuses sã o expulsos, o hom em se torna um ser nostálgico,defini-se a s i mesmo como estrangeiro, como um exilado, um nôma-de, que peregrina pelo mundo afora. A vida, desse modo, seria essaperegrinação, não exa tamente se m sentido, mas que não se sabe osentido pleno. A partir daí se desenvolve um a ignorância que, muitasvezes, implica dor e sofr imento; outras vezes, imagens de considerá-ve l beleza. Para mim, o sagrado, na atualidade, está relacionado com

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esta nostalg ia , não tanto com a definição religiosa d o m und o , deum deus, mas com a sensação de isolamento que essa nostalgiaproduz, com a educação nessa nostalgia , com a aprendizagem doestrangeiro nessa nostalgia. Pois bem, essa espécie de busca de algoperdido no h orizonte desconhecido nos leva a desenvolver um senti-do de plenitude que é um sentido de hospitalidade. Desejamos alcan-çar uma pátria que não se encontra em nosso berço natal, que não estápor detrás de nós.

Paradoxalmente, ansiámos por uma pátria qu e está adiante de nós,que é a que no s promete essa unidade, plenitude, inteireza e que nãopode ser atingida pela colonização, pela dominação. Sermos hóspe-des dessa pátria é o que nos possibi li ta verbalizar, expressar a har-monia e a beleza. O que cham amos beleza não seria tanto o produtode algumas leis, de alguns números, de alguns cânones, mas a formado momento em que se habita essa pátria, do sentir-se hóspede. A í éonde eu creio que se pode d esenvolver um sentido plenamen te atualdo rito e do mito. O fato de superar essa condição de exílio paraalcançar essa pátria , a inda que provisoriamente, é o que nos trans-

porta aos ri tos mais profund os do ser hum a no em sua dupla dimensão:de ser nostálgico e de ser que deseja a hospitalidade.Referi -me, antes, ao ritual estético que tem sido, desde o início,

representação, jogo, máscara. Porém, o estético também tem sidohabi tante dessa pátria e dessa hospitalidade: sentir-se h abitant e dessacasa, sentir-se habita nte de uma inteireza, de uma superação de cisão.Este ri to estético é o que eu cham aria arte, cuja definição incluiriatodas as máscaras, todos os jogos, todas as representações qu e per-mitem ao home m sentir a hospitalidade essencial. O m esmo podemosdizer dessa outra ponte em direção à hospitalidade essencial qu evenho chamando conhecimento fulgurante. Conhec imento que é de

fogo, que se produz muitas vezes sem que saibamos como, por meiode labaredas. Assim acontece com nossos ritos eróticos nos quais seident if ica Eros como força nostálgica e força de unidade. Tambémco m o êxtase místico que nos oferece visões fulgurantes dessa hos-pitalidade essencial sem que, necessariamente, deva ser religioso, jáque se pode tratar de rituais místicos de natureza la ica. O que defulgurante têm esses ritos - estéticos, eróticos e místicos - é que nosproporciona um a imagem congelada dessa nostalgia e, ao mesmo

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tempo, uma superação , a inda que t rans i tór ia , e fêmera , provisór ia ,em relação a essa nos ta lgia , com que podemos sentir essa hospita-lidade essencial. Parece-me importante enfatizar que, embora estetipo de conhecimento se produza, como disse antes, de maneirafulgurante, pode acontecer um a espécie de predisposição. Essa pre-disposição exige que se reconheça a dialética entre logos e enigma,entre conhecimen to e enigma a que também já me referi antes. Quemquer que se atenha exclusivame nte à razão jamais viverá este t ipo de

experiência. Tampouco os pseudo-espiri tualis tas , qu e caem em umaespécie de culto irracional do enigma.Gostaria de enfatizar outro aspecto importante. O conhec imento

fulgurante acontece em experiências dialógicas, nunca monológicas.Quem pensa que vai chegar a este tipo de conhecimento através domonólogo recai num tipo de solipsismo, na melhor das hipóteses, oude i lusão fantasmagórica. O conhecimento do enigma se produzsempre por via dialógica e assim sucede nos ritos eróticos, místicose estéticos que implicam sempre um diálogo com o outro, um deixar-se tombar para o outro. Sem este diálogo, não é possível superar nossa

condiçãode

estrangeiros.Por

isso,no

terrenoda s

culturas,é tão

importante abrir-se para o outro e, no campo pessoal, é tão importantechegar a s i mesmo sempre através do outro.

A Polifonia

Não sei se é possível um d iálogo real entre cultu ras, mas sim entreinterlocutores pertencentes a distintas culturas. Gosto de me referir,neste sentido, à noção de cumplicidade. Nã o acredito em projetoscoletivos. Creio, sem dúvida, que se pode construir uma cumplicida-de intelectual que normalmen te é conseqüência de uma amizade, não

só intelectual, mas também sensível. Se dois interlocutores não sesentem, não se apalpam, não se percebem; se entre eles não seestabelece cumplicidade de tato, dificilmente vai-se poder construirum a conversação real, uma conversação que vai mais além dosarquétipos, dos tópicos, do poli t icamente correto. A paixão da in ti-midade deve estar equilibrada por um saber se desarmar cada umdeles , porque, se alguém cultiva um a espécie de personalidade dog-mática, de caráter dogm ático, dif ici lmente se instala a amizade ínti-

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r ec ido com a hybris da que fa lava no começo . Hybris v in c u l a d aao saber como colonização, aquela hybris que levou, afinal, a umacontraconsciência ecológica, de defesa da biodiversidade. Defendera comunicação e o diálogo entre todo o hum ano, entre todo o vital, éum fator extraordinar iamente cr iador , porém, ao mesmo tempo , de-fender a diferença é um dos caminhos para defender a igualdade,como d efender a biodiversidade é um dos caminhos para defender auniversal idade. De novo, a idéia da metamor fose do uno e do múl t ip lo

é a que nos convida a um certo tipo de equil íbr io que está sendosaqueado pela global idade, m uitas vezes terrível.

Creio que vivemos num mund o de aldeia global, prognost icado porMcLuhan. A o mesmo tempo, esta aldeia global gerou um a contrafigu-ra: uma metrópole tribal. Algum as tendências centrípetas acontecem,mas, por outro lado, perm item tendências centrí fugas, como a buscadessa biodiversidade, a busca de uma diferença que não deve ser adesigualdade.

Por meio da técnica, o Ocidente tratou não só de colonizar ana tu reza , o não-humano , mas de co lon izar t ambém o não-humano

não-ocidental . Produziu essa espécie de modelo global co m e lemen-to s extraordinar iamente posit ivos e frutíferos, porém co m fortesestal idos de violência. Em termos gerais , penso que, em face dounidimensional, do monoteísmo, frente à unilateralidade da coloni-zação humana , f rente a um pensamento que se constrói a part ir domonólogo, o de que realmente necessitamos é a polifonia. O pol ifô-nico se relaciona com a sabedoria, tendo em con ta qu e esse saberdeveria superar a separação entre a ét ica e o in te lectual ismo, a razãoprática e o intelectualismo. A polifonia é o meio para alcançar essesaber viver que é t ambém um saber sentir.

(Trad. Carlos Sepúlveda)

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LIVRO - LIBERDADE

GIANNIVATTIMO

É d if í c i l faze r um inven tá r io comple to do que devemos ao slivros. Não somente no sentido b a n a l d e que nossa educaçãoin d iv id u a l se f u n d a m e n t o u em certos l ivros, que se tornaramnossos educadores, com freqüência, permanentes, nossos textosd e r e fe rência , m as t a m b é m a par t i r d e d ic ioná r ios , enc ic lopéd ias ,cód igos , e scr i tu ras san tas , c l á ss icos . Se r e f l e t i rmos sobre e s talista, nela encontraremos não apenas nossa b iogra f ia in te lec tua l

ind iv idua l , mas o e s q u e m a qu e sus ten ta a cu l tu ra oc iden ta l . Fa la -se geralmente de religiões do livro, para indicar o judaísmo, oc r i s t i a n i s m o , o i s l a m i s m o ; mas se dever ia fa la r d e u m a civ i l izaçãod o l ivro para toda a cu l tu ra oc iden ta l , mesmo a par t i r d a época emque o livro, no sen t ido moderno d a pa lavra , a inda não ex is t ia .

Tudo isso nos é tão habitual que se tornou difícil captar a dist inçãoe aconexão entre o conteúdo de nossa educação e a fo rma "livresca"na qual e le nos foi comunicado; com a conseqüência de que tudoparece se reduzir , se resolver, ao conteúdo desta educação. Se o livroparece destinado a desaparecer, ou a ser subst ituído po r outras formasde transmissão, temos tendência a pensar que is to somente concerneao aspecto instrumental da educação. A ponto de a defesa do livro,qu e f r eqüentemente nos engaja em discussões sobre as novas formasde comu nicação social, parecer o negócio de velhos senhores que nãoconseguem imaginar um a Bildung* diferente da deles, e que serão,fa ta lmente, superados pelo progresso etc. O debate se reduz, então,

* Em alemão no original.

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a um a luta entre gerações, marcada por t raços purame nte ps icoló-gicos, e, no fundo, torna-se i n ú t i l . ' O q u e seria ú t i l fazer , aocontrár io , s er ia um inventár io , o ma is completo poss ível , doque, n a educação, provém d a forma livresca d a comunicação;melhor, não somente na educação escolar ou pessoal, mas naprópr ia Bildung da nossa tradição.

Começarei es te inventár io , recordando d i re tamen te o e lo ent rel ivro e l iberdade: um elo que -jamais havia pensado n i s so ser ia -

mente - é denunciado pelos termos latinos que designam as duascoisas , liber em ambos os casos. Na tradição polít ica moderna,um passo decis ivo para uma sociedade m ais l ivre foi dado quan doos reis acei taram pô r por escri to suas leis . Um exemp lo m uit o ricod e s ignif icação, vis to que fo i sempre em torno d a in terpre taçãode certos textos de base que a liberdade se afirmou. Primeiro,como é evidente, na grande revolta religiosa do século XVI, ondese tratava de conquistar o direi to de ler pessoa lmente a Bíblia ed e interpretá-la , contra toda restrição d a tradição e d o magis tér iod a Igreja Católica. Por outro lado, também sobre o plano dasciências exatas d a natureza, o modelo d o livro não foi apenas um a

m e t á fo r a inocente : Ga l i leu pensou c o n c r e t am e n t e a n a t u r e z acomo um livro escrito em carac teres matem át icos ; e B lumenbergmost rou como, no seu caso e no de tantos outros , es ta s imili tudedesempenhou papel dec i s ivo pa ra a h i s tór ia da modernidade.Aliás, as tábuas d e Moisés são um livro, um texto que se tornoua base da é t ica juda ico-cr i s tã ; não somente pelo seu conteúdo,repito, mas por sua forma de texto escrito e comunicável . A le imoral, mais tarde, fo i imaginad a como impressa em nossos cora-ções . É bem verdade que, durante séculos , antes d a invenção d eGutenberg, o l ivro - a Santa Escri tura, os códigos, os clássicos da

l i t e ra tura e d a f i l osof ia - eram acessíveis apenas através da c o -municação verbal d e alguma "au t o r idade " . Mas fo i cer tamenteem torno d a t rans formação d e suas formas , até a poss ib i l idade,inicialmente restri ta às c lasses dominantes , de dispor d e um abiblioteca, que se desenvolveu o processo moderno d e l iberaçãoi nd iv idual , da conq uis ta da l iberdade de co nsc iênc ia e tc . Poder-se-á acrescentar que aqui não nos conf rontamos apenas com li-vros, m a s c om f enô m enos m a i s c om plexos , que p rova ve lm en te

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possuem aspectos irredutíveis à forma livro enquanto tal. Sim e não,direi: a complexidade destes fenômen os me parece somente mostrar,um a vez mais , a dif iculdade de separar a "forma" dos conteúdos. Éum pouco como dizer que não se poderia imaginar um a democraciase m imprensa e sem o s is tema mo derno de informação; cer tamen te ,se m querer co m isso reduzir a democracia à informação etc.

Pode-se co nclui r que o ind ivíduo l ivre moderno se form a apren-dendo a ler e se referindo a textos? Não se excluem , ass im, todos

os heróis analfabetos d e nossas tradições populares, os R o b i n sd os b os ques d e Walter Scot t , m as i gua lm en te , por que não, Ul i s -se s de Homero? Poder-se-ia evidentemente tentar sair desta dif i-culdade, esclarecendo que a noção d e l iberdade é menos genér icaque a de revol ta " imed ia ta" de a lguém contra a violênc ia quesofre; ou que as revoltas "populares" tê m sempre necess idade deum chefe ca r i smát ico. Sem nos voltarmos para problemas destegênero, notaremos que, em todo caso, também o nosso culto ao sherói s - clássico ou moderno e as ações que eles inspiraram nahi s tór i a efet iva é " m e d i a d o " , mediatizado, pelos textos l i terários(o herói te m sempre necess idade do seu can tor?) . Descobre-se

talvez também que, numa cer ta med ida , o l ivro, a t ransmissãoescri ta e vivida n o silêncio d a lei tura privada, é um elementoconst i tu t ivo de nossa def in ição d e l iberdade; a ponto de , mesmoum a revo lta popu lar contra a inju stiça som ente poder aparecer soba luz do chefe carismático, o que é muito suspeito para o quec h am am o s de liberdade.

Poder-se-ia desenvolver mais longamente as implicações destasugestão "e t imológica" sobre o elo l ivro-liberdade. Mas mesmo sedeixamos de lado a sugestão verbal enquanto tal , parece-me be mclaro que tudo, ou a maior parte, do que se encontra , se nos

i nc l inamos a analisar, enumerar s implesmente, os traços de nossaBildung (conteúdo e maneira da educação) qu e dependem da formalivresca da transmissão, reencontra-se o elo em termos menos"sugestivos", porém to talmente concretos. A comparação entreliberdade e revolta conduzida por um chefe carismático orienta-nospara um outro e lemento dec i s ivo da Bildung l ivresca: a inte-r ior idade , mesmo o que se poderia chamar de apropr iação dosc on teúd os da Bildung herdada , co m tod a um a série de relações

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entre l iberdade e privacidade*, por exemplo. Poderia a l iberdademoderna se r pensada sem a dist inção entre público e pr ivado , queimplica a consti tuição de um espaço " in te r io r" , t ambém no sentidofísico da palavra, o salão da casa burguesa (Benjamin) . É verdadeque aprendemos a ler na escola e, por tan to , sob a direção de umavo z presente e sonora; mas é justamente apenas o fato de aprenderum meio que se uti l izará depois por si mesmo. (Recordo a m in h adificuldade em preparar este texto sem os meus l ivros. Poderia

u sa r a B i b l i o t e c a N ac i o n a l d e Par i s . M as agora es tá toda conta-minada pe la e le t rôn ica e só se pode pedi r um cer to número d el ivros. A o escrever, porém, precisamos de não poucos livros, eadequados . E depois nossos l ivros estão assinalados, marcados naprimeira passagem, significando assim a nossa cultura. Pela voz ea lei tura: que dizer da poesia que se lê em voz alta, e que precisado som?) O e lo l ivro-l iberdade se enriquece aqui de um elo ulterior:o elo l ivro-liberdade-interiorid ade ( ta lvez também pr ivacidade bur -guesa). A recordação do salão burguês pode também não ser tãobanal. Ela nos dirige a um out ro cômodo do interior burguês, abiblioteca. Mais ainda que a imagem do l ivro é a da bibliote ca que

domina a própria forma da nossa cultura. Surpreendi-me freqüen-temente ao pensar qu e daria plena confian ça, a pon to de lhe entrega ras chaves da minha casa, a alguém que tivesse passado su a vidan u m a bibl io teca , i ndependen temente do tipo de l ivro que tenha lidoou gostado. Habi tar a biblioteca é talvez, em vários sentidos, aprópria imagem da perfeição, do h u m an i sm o , da exper i ênc ia daverdade que nos l iberta, segundo a palavra de um l ivro, o Evange-lho. (A verdade tornará vocês livres, e também livros?...) Habitara biblioteca é ao mesmo tempo a plena realização do i t i nerár io daFenomenologia d o Espírito hegeliana e sua superação. Se, de um

lado, tornamo-nos, de fa to, o perfei to habi tan te da biblioteca, quese reconhece em sua complexidade, que sabe viver nela tendoassimilado seus conteúdos; por out ro lado , es ta "fami l i ar idade"com os conteúdos des ta imensa co leção d e saberes e d e e x p e -r i ênc ias não é absolu tamente o espír ito absolu to hege l i ano , éum a forma d e assimilação inte i ram ente especial, que, al iás, é o

Em inglês no original: prívacy.

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modelo da experiência moderna, ou antes pós-moderna, da verdade.Não se conhecem todos os livros da biblioteca, tudo o que ela contémanaliticamente; sabe-se onde procurar quando um problema se apre-senta, nos reconhecemos nela, por assim dizer. É, como se vê, antes anoção hermenêutica da verdade do que a noção metafísica. É precisoprestar atenção a isso, pois poderá se tornar decisivo para compreendere se adaptar às novas formas de experiência determinadas pela infor-mática. Esta experiência da verdade que se tem ao se habitar* a

biblioteca tem a ver com a memória, evidentemente. O ra: a l iberdadeque nos advém do fato de saber habi tar a biblioteca dependesimplesmente do fa to de ter à nossa disposição todos os "dados",as fichas do catálogo, digam os; ou há alguma coisa a mais, que nãose reduz à me mór ia objetiva e deposi tada no catá logo, mas tema ver com nossa memór ia orgânica , que se to rnou um a p a r t e d enós (penso aqui nos computadores de que se fala - somente emficção científica? - ut i l i zando proteínas. . . )? Poder-se-ia formular aquestão também des ta forma: o fato de trabalhar numa biblioteca,podendo circular l ivremente nela, deixando-se levar pela sugestãodas proximidade s casuais, (com o sistema Dewey tudo isso já é mais

complicado, mas assim m esmo...) é exatamente o mesmo que disporde um computador no qual procuramos textos, palavras etc? Àprimeira vista, o contato com o computador parece mais rígido edeterminado: deve-se, desde o começo, escolher um percurso, queé tanto mais rápido e funcional quanto mais delimitado. Por e x e m -plo, ainda em termos de palavras lat inas: poder-se-ia ainda chamarde otium o t rabalho intelectual nos computadores? O q u e acontece-ria se os amantes, Paolo e Francesca, de Dante, estivessem lendoas aventuras de Lancelot e Guenièvre no m o n i t o r de um c o m p u t ad o r(que poderia, por exemplo, registrar a longa permanência d os aman-

te s em certas passagens, a interrupção d a lei tura no m o m e n t o emqu e os dois caem um nos braços do o utro. . .)? Todo ot ium, se nãose t ratar dos dois pobres amantes de R i m i n i , se ap r e se n t a aq u icomo uma vio lação da ordem (do computador ) , um pouco comoa espera muito longa do empregado do banco quando ele aguarda aresposta no moni tor .

Em inglês no original: inhabitation.

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Deixe-me tenta r um pequeno ba lanço do que se encontrou a téaqui , neste inventário provisório e to ta lmente incompleto. A Bildungque se t ransmi te nos livros é caracterizada pela l iberdade (que nãoé s implesmente independênc ia com re lação ao outro) ; pela in te-rioridade, com todos os seus elos com a privacidade; por umtempo e um ri tmo mais bio lóg ico-biográf i co que es t r i t a m en tefísico e material; pelo otium, que impl ica também a l iberdadee n q u an t o possibi lidade d e seguir os vôos d a imaginação e das

associações livres (a psicanálise estaria e la t a m b ém i m pl i c a d a n acultura d o l ivro?...). Outross im, a imagem da bib l io teca, o fato d eviver numa b ib l ioteca , hab i tando-a ma is como b ib l iotecár io doque como pesquisador especializado, tornou-se o modelo da ex-periência d a verdade pós-moderna: d e u m a verdade múltipla qu ej a m a i s se deixa possui r por um ind ivíduo, logo nem mesmo peloespí r i to absoluto hegel iano, ao menos na med ida em que esse épensado como a to pontua l , como o nós noeseos* de Ari s tóte les .

A segunda parfe desta exposição - que infe l i zmente será mui tocur ta - deveria responder à ques tão: como re tomar e realizar osmesmos "valores" de nossa Bildung num a si tuação onde o compu-tador e a comunicação eletrônica substituem cada ve z mais os livros?Se nos colocamos um a questão parcial, poderemos tam bém descobrirqu e o pequeno balanço que acabamos de propor não tem apenas umasaída catastrófica; poderíamos descobrir que existem perdas e ga-nhos, e estamo s, sobretudo , certos de que seria preciso refletir. Creioque o aspecto m ais dif ícil , porém igualm ente mais " in tr igan te" , doque nos aguarda na s novas condições de transmissão da cultura, étalvez o que se chama de interatividade das comunicações informá-t icas. Os surrealis tas anteciparam isso (conscientemente? não ocreio) em seus jogos dos cadáveres excelentes** Ao invés de propor

novas interpretações de textos , o leitor informático intervirá cadave z mais nos próprios textos. A qu estão já se coloca hoje so b a form adas leis de direito autoral, um direito que se torna cada ve z mais difícil

Em grego no original.O "jeu dês cadavres exquis ' era praticado em grupo pelos surrealistas. Consis t ia em

cada participante escrever uma palavra num pedaço de papel que era dobrado epassado adiante , compondo-se ass im uma frase (Nota do t radutor) .

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de proteger contra os piratas de todo gênero, mas que, no presente, écolocada somen te como questão f inanceira. Certamen te não é impos -sível preservar também, na s formas da comunicação informática, aintegridade o riginal de nossos textos; mas torna-se cada ve z m a i sfácil in te rpe lar hiper textos , comentár ios , promover verdadei rast ransformações. Como concebo a tradição européia - e não somenteel a - como um negócio de comentários sobre textos basi lares , emtorno dos quais se desenvolveu a própria experiência da l iberdade

mod erna, nossa religiosidade, n ossas artes , m e pergunto o que seriade tudo isso n as novas condições. Podem os ob servar que diante deum computador , co m todas as suas possibi lidades de in tera t ividade,nos sent iremos de c id idamente ma is "l ivre" , porque menos " l iv r o" .M as será ela uma l iberdade acompanhada por uma interioridaderica, ou ( somente?) antes um a independênc ia no fundo vazia, abertaa toda forma de dominação carismática? (Isso já é visível nasclasses juvenis de hoje, nas quais a capacidade de trabalhar emcomputador é acompanhada de uma aber tura à predicação de pro-fe tas de todo o gênero.) É talvez neste ponto que nossa discussão,e nossa pesquisa, deveria começar.

(Tradução do original francês deClaudius Bezerra Gomes Waddington)

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A PROPÓSITO DA H ISTÓRIADE UMA VIDA: O LIVRO

G E R D BORNHEIM

A constatação oferece todos os r equin t es da obviedade: para escri-tores, pesquisadores , intelectuais , professores o l ivro vem se tornando,já em sua própria form a f ís ica de ser , um problem a, um objeto f reqüentede d iscussões. J ustamen te uma das pr incipais , senão a mais imp ortantevi a da moderna fo rma de expressão, t ransforma-se agora em inu sitadoalvo de inquietações. E éclaro queesse alvoroço, em tudo novo, merece

o car inho da melhor consideração. Traço a seguir, e já que tanto se falaem crise do l ivro, alguns tópicos sobre esse tema de relevância que nempoder ia ser exagerada.

O pr imei ro decorr e jus t amente do fato de que sobre o livro tanto sefale. Exatamente as pessoas menos suspeitas, as industriosas em suaconfecção, entregam-se co m ardor à defesa do l ivro, elogiam o seucaráter de perenidade, de excelência, de realidade insubstituível, e poraí afora. Pois parece -me que o problema já começa neste ponto, e é quetodos esses falares, precisamente pela sua insistência, pela sua convic-ção - convicção de gente que escreve -, pelo seu entusiasmo até,

terminam levantando essa gravíssima suspeita: e se tudo estiver acon-tecendo sob o signo da mor te , da decadência def in i t iva, como se o livroestivesse deixando esvair as própria raízes de sua razão de ser? Por queesse novo entusiasmo em sua defesa , tão tota l e entregue, e ta lvezdesavisado? A questão se revela até ardilosa: por que esse objeto, ol ivro, cuja exis tência já parecia tão espontânea, em tudo tão natural ,veículo privilegiado e tão inconteste - por que é que o l ivro, de repente,passou a exigir tanto encômio em seu resguardo?

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Afigura-se até que são exa tamente os vigores desse resguard o qu et e rminam po r tudo pôr a perder. E nem se duvide d a autent ic idadedessa paixão d e tantos e mesmo necessár ia a quem quer qu e escreva.

Convém l evar a sério as bases em que r epousam essas inquie t açõ ese, com elas, o entusiasmo pela defesa d o l ivro, expresso, at é m e s m ode m o d o precípuo, como fo i dito, pelos escr i tores , po r aqueles qu etê m o l ivro, por assim dizer , entre as suas mãos. Mas já aqui , d e saída,remeto-me brevemente ao âmbito d a revolução gutenberguiana,

quando, pela pr imeira vez, passou-se a oferecer o l ivro na plenitudede um objeto, e objeto manipulável , acessível , tudo já acontecendonos albores da democracia e da expansão do mercado. Esses iníciosforam realmente auspiciosos. Pense-se, por exemplo , em t o m a r na sm ã o s um l ivro da bibl ioteca de Erasmo, ou de Espinoza ; de fe içõesainda um tanto rudes , ofereciam - e oferecem ainda hoje - o esplen-dor de uma fo rma de objeto, um tom solene a té, de coisa que se que r iave r respeitada entre os seus a inda poucos pares , como acon tecim entoúnico e inéd i to . O l ivro er a então, em seus começos, essa oferta emtudo generosa, prom issora , sa t is feita em sua suficiên cia . Sem dúvida,esse elemento impresso representava a própr ia glorifícação da n o v a

h e g e m o n i a que começava a a fe t a r a categor ia d o ob je to .Não há com o iludir -se: a edição da Bíbl ia , fei ta por uma maquina -

ria quiçá ainda estouvada, logo revelaria a inteireza de seus destinos.De fa to, aquela Bíbl ia nã o passava de madrasta de proced imentos qu eos tempos modernos descar tar iam co m facil idade, e é que os t óp icosbíblicos sobre a predestinação divina, como que por i ronia , cedoviram-se subst i tuídos pelos impressos imperat ivos d o assentamentoda d icotomia sujeito-objeto, e as coisas se f izeram rápidas. Nosmomentos inaugurais , isto: o esplendor do sujeito e a ostentação doobjeto. De permeio , e d e m o d o s em tudo esclarecedores , o progres-

s ivo imbr icamento d as relações entre sujeito e objeto. De fato , arevolução indu str ia l, e com ela as t r ans formações d a técnica t ipográ-f ica, tudo veio mo dif icar . E isso a ponto de, em nosso tem po, tudo sete r metamor foseado em sujeito ou ob je to , nada ma is ex is t indo que ses itue acima ou abaixo dessa d icotomia. Mais a inda: a par t ir doenvolvimento in t erno de sujei to e objeto, passa a desenvolver-se amoderna soc iedade de consumo, e nela , suje i to e ob je to t ornam-serea l idades ext ensamente manipuláveis - o própr io planeta Terra

passa a ser um ob je to manipulável pe lo homem. Pois t odo ob je tojá não é mais que o resultado d e u m a manipulação humana des t inadaao consumo. E ins taura-se por aí esse nosso novo mundo, no qua lprodução e consumo se per fazem n um a espéc ie de necessidade eter -na , a fund ame nta r a democrac ia , a inves t iv idade hum ana ent rosandoa ciência e a técnica , sempre com o fito d e erradicar a pobreza eestabelecer o homem nes t e mundo.

Claro qu e este contexto todo, aqui tã o sucintamente del ineado, nãopoder ia deixar de a fe t a r o l ivro. Pois o l ivro é, antes de tudo, umobjeto, inteiramente submisso às regras d a revolução industr ia l . E ,como objeto, o livro não poderia fazer-se ausente às rígidas normasque passaram a nor tear a confecção d os objetos . Considere-se, pois ,fundamenta l para o nosso tema o fa to de que o l ivro passa a ser, com otodo objeto, uma realidade manipulável. Os processos se inserem,s implesmente , no contexto geral por que passam os avatares dacategor ia do objeto. O l ivro disso em tudo par t icipa , e d is so t ambémsofre as conseqüências: o corolário intrínseco à própria idéia d emanipulação está em que o ob je to se torna agora descar tável , e issose aplica a tudo o que cons t i t u i o nosso mundo manipulado: vale para

a pedra , para a maçã, a energia solar, a casa, para a máquina e todaa parafernál ia das aparelhagens. Talvez o museu nã o passe de umm o d o de tornar descartável at é m e s m o a obra d e ar te, desenraizadaqu e el a agora se faz em relação a qualquer contexto. Entende-se logo:t ambém o l ivro se t ransforma numa real idade que fac i lmente se diluino abraço de suas própr ias entrel inhas. A his tór ia do l ivro percorre,então, em exatas l inhas , a his tór ia da própr ia categor ia do objeto - deuma cer ta soberania pres id ida pelo cálculo at é alcançar os desloca-mentos e a incontinência do descartável.

Descartável quer dizer: substituível e perecível. O s países maisavançados do mun do vêm-se dedicando a editar a obra de tantos autoresquantos se quiser, em edições primorosas, as mais perfeitas que sepossa imaginar , e o primor alcança as chamadas "edições de t rabalho".E, no entanto, ao ler-se nelas um a página qualquer de Freud, o manu-seio nem tão freqüente leva logo ao inesperado que já se fazia pressen-tir: um a folha se destaca, remet ida agora às mãos do lei tor . Rep ito queas edições são perfeitas , mas a irônica subst i tuição da costura dalombada pela cola torna a dimensão mater ia l do l ivro s implesmente

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deplorável. Parece até que o des t ino do livro logo se empare lha co mo que a i ndús t r i a ve m c h am an d o de xerox, ou seja, co m essasimensas pilhas de papéis avulsos que se acumulam, tudo destinado àdesorganização do lixo - é assim que vem sendo feita a educação denossos estudantes em relação ao livro. E isso tudo ocorre justo agoraem que qualquer professor de província p ode alimentar o pequeno luxode organizar talvez a sua nem tão pequena biblioteca particular. Seráque os livros m ais caros, os bem costurados em suas lombadas e com

capas solidamente encadernadas não se destinam à inutilidad e decora-tiva do s estoques dos colecionadores?Mas não se perverta o ócio do s colecionadores. O bibliófi lo (e onde

o pesquisador que não se compraz em sê-lo?), tanto quanto vejo, devever os seus antecessores no deleite a que se entregavam, lá pelos idosdo século XVIII, os fundadores dos famosos gabinetes de HistóriaNatural; colecionavam objetos raros, coisas como cobras embebidasem éter, pedras e areias estranhas, passan do po r esqueletos e o que querque fosse, mas sempre coisas de mundos distantes, a formar calidos-cópios de alteridades. E nesses gabinetes destacavam-se os belos evolumosos livros, nã o raro profusos em ilustrações, qu e relatavam as

exóticas aventuras de tantos viajores por terras desconhecidas. Abibliofilia talvez não seja mais do que o prolongamento daquele espí-rito aventureiro.

Mas há de se averiguar também esse novo tópico, o d o sentido dasmodernas bibliotecas. A questão não se poderia concentrar na s belase adequadas dimensões, talvez ainda possíveis, da biblioteca doreferido professor d e província, nem na teimosia d os bibliófi los.Penso aqui nesses m onum entos desvairantes, no s milhões de volumesque consti tuem as grandes bibliotecas e que hoje se erguem em tantoslugares de nosso mundo. Elas são rea lmente des lumbrantes e soube-

ra m tornar-se em tudo insubsti tuíveis para qu alquer t ipo de pesquisa.A i lusão concentra-se precisam ente neste detalhe: o consultor pensaque, de repente, ele tem o livro concretamente entre as suas mãos; e,de fato, assim é, e assim é necessário. Por que então falar em i lusão?É qu e a grande biblioteca já n ão representa mais o saber, ou já não ofaz de modo concreto em seu saber total ; perde-se agora nas minu-dências, no escrúpulo da observação particular, do caráter tornadoincontrolável da visão fragmentária. E, no entan to, a transparência

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daquele saber to ta l i zan te pertence , por ass im dizer , quase gene t i -c am e n t e à própria invenção d o mundo oc identa l ; bas ta lembrar aedi f i cação , já nos f inares da grande matur idade do mundo grego,da biblioteca de Aristóteles. Essa representação totalizante do saberconstruiu-se possivelmente de modo perfei to, pela últ ima vez, noideário daEnciclopédia francesa do século XVIII - elacontinha todoo saber, sistematicamente ordenado, e punha-se à disposição dopesquisador qu e podia, então, dominar e criar a partir de uma totali-

dade viva. Sã o coisas que hoje já nem exi s tem; ou existem apenasfranjas daquele ideal enciclopedista. Nossas bibliotecas desdobram-se agora em labir intos po r assim dizer infinitos, que se deixamvasculhar através de computadores que, também eles, nã o deixam àsua maneira de oferecer caráter labiríntico.

Não há de ser por acaso que os tempos modernos souberam criardois meios de expressão: o sistema e o f ragmento , ou o prolongamen-to deste últ imo que é o ensaio. O sistema oferece a transparência daracionalidade enfim concretizada: o sistema tudo sabe e tudo trans-mite. Já o fragmento vive de seus próprios tentames, de seus experi-mentos, el e ensaia diversos caminhos, m as sempre no s meandros do

claro-escuro, das fainas inacabadas. E é importante observar, paranosso assunto, que o sistema já não funciona, ou só funciona na sciências ditas formais, caso da lógica e da matemática, formalidadesestas que, m uito interessantemente, se fizeram plurais: hoje, coexis-tem as lógicas e as matemáticas. E, mais importante ainda, está emconstatar que o meio de expressão como qu e universal de nossos diasestá no f ragmento , no ensaísmo. A biblioteca - e os livros dentro delanão passa de ser apenas um amontoado de f ragmentos , e f ragmentár iose faz até o indivíduo qu e disso tudo se aproxima. Na base de tudo,qualquer coisa como um ceticismo material, a desmantelar a própria

realidade do livro. Ceticismo, no caso, quer dizer: o saber se fazinacessível ao h o m e m , ele só capta detalhes disso ou daqui lo, postoqu e a enciclopédia tornou-se inviável. Já não há mais espaço para acabeça de um Leibniz.

De certo modo, a biblioteca passou a viver da impossibil idade deseus próprios pressupostos, ela se desmente no r i tmo mesmo de seuandamento. M as isso tudo nã o afeta apenas a grande biblioteca comoum todo - afeta, isso sim, e em primeiríssimo lugar, cada livro em

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particular. Cada livro é tão-somente , nes ta perspec t iva d e cons i -deração, o índice f u n d a m e n t a l da crise de s i mesmo, da inviabili -dade do projeto: tudo se confina em espécies de particularidades: oensaio, o cálculo, o rom ance, a poesia , o fragm ento que se quer modode ensaio, o cálculo preso n o enredo de sua iman ência, a visão parcialque é o romance, as frestas da subjetividade que é a poesia.

Parece que esse contex to todo não deixa de provocar uma espéciede vertigem, como se o hom em devesse estar condenado a caminhar

sobre algo como a ausência de fundamento. Não estranha, po r isso,qu e haja autores que falam em penúria , nosso tempo seria de modoat é essencial um tempo de pen úria. E talvez assim se possa falar, m asisso, se verdadeiro, possivelmente nu m plano mais remoto, qu eestaria enraizado nu ma certa dis tância a provocar a cisão da biblio-teca em relação ao s seus próprios desígnios originários ou, então,naquele ceticismo material acima mencionado. Por aí, a penúriadecorreria do advento d e certo hiato essencial: portanto , na origem,a biblioteca era apenas a unif icação do saber plenam ente dom inávelpelo homem , e o homem t inha o saber; o gênio dos tempos modernosainda convivia com a objetividade total d o saber criador. Mais tarde,

já em nosso tempo, surgiu a vez da falação sobre a penúria , ou seja,entre outras coisas, um a forma de proliferação que tornou totalmenteimpossível aquela un idade do saber que era a própria raz ão de ser dabiblioteca . Algo d e análogo, de resto, verifica-se també m na evoluçãode nossas univers idades. De fa to, a univers idade assenta as suasraízes numa bem estabelecida classificação das ciências, garantindopor aí uma visão u nitária do conjunto. Aconteceu, ent re tanto , que aexpansão das ciências conduziu a uma fragmentação intrínseca daUniversidade, e ela vive, em nosso tempo, da impossibilidade dereconhecimento da unidade essencial que determinava a sua própria

razão de ser originária . E os problemas, em nada descartáveis, jácomeçam por aí : e é que esses complexos todos não podem se rconsiderados ingenuam ente como negativos. E, de qualquer maneira ,é dentro de todo esse entrevero que devemos procurar entender qualpossa ainda ser a identidade do livro.

De imediato, convém acrescentar a tudo o que foi dito que areferida penúria em nada se assemelha à pobreza, ou mesmo à s implesausência de sentido. Se tal pobreza exis tisse, ela só poderia reportar-

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se a um mundo p retér i to , já u l t rapassado e que nem mais poder iasus ten tar -se . Quero dizer que o que hoje se percebe está em que oelogio da penúria deriva, antes, da exibição de uma extrema riqueza.Basta lembrar que até faz pouco tempo, no s idos de Kant, haviaapenas uma ciência bem estabelecida, que era a física de Newton ;hoje, a multiplicação da s ciências tornou-se po r assim dizer incon-trolável. E isso para não falar da dicotomia arvorada a parti r dasegunda metade do século XIX, qu e dis tingue as ciências d a na tureza

desse outro ramo, constituído pelas ciências da cultura, ou históricas,ou do espírito, como insistem em dizer os alemães. Sabe-se que essaimensa divers if icação termino u por gerar uma crise correspondenteno campo das metodologias e das próprias raízes do saber - e, naponta disso tudo, mais uma vez, a presença do livro. O livro, agora,como que esquecido de suas origens, assume limites exteriores a sipróprio, a alastrar-se em bibliotecas inf initas - mas existirá hoje coisamais alheia ao homem do que o inf inito?

Evidentemente, toda essa situação leva com facilidade e até u stez aa reconhecer algo como a g lorif icação do livro. A m ultiplicação dasbibliotecas e a im ensidão inscri ta em seus propósi tos insere-se agora

em destino s preconizados n as próprias origens da fabricação do livro.Acontece, entrementes , que toda essa pujança, nã o obstante a suaóbvia necessidade, não passa de ser, mais uma vez, o índice daextrema fragilidade do livro. A rique za imprescindível à condiçãohumana de expressar-se, isso desde os tempos das inscrições nasparedes de cavernas primitivas ainda hoje existentes, seguidas pormúltiplas formas de proliferação subseqü entes (pense-se na s espan-tosa história dos alfabetos) , certamente encontrou no livro a suaconfiguração mais perfeita e significativa. M as recorde-se que olivro, aliado à invenção da imprensa, vem se expand indo no breve

decurso de alguns poucos séculos. Pois não é que as coisas hojeparecem perscrutar novos rumos? Reconheçamos que, a despeitomesmo da desmedida de todas as paixões, nã o faria sentido algumpretender que o l ivro devesse consti tuir-se em realidade po r assimdizer eterna e estável. Veja-se, po r exemplo, o que parece não passarde s imples acidente: na última Feira do Livro de Frankfurt , realizadaneste ano de 2000, considerada o evento mais impo rtante do universoletrado, aparece, como qu e de repente, a grande novidade: o primeiro

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e x e m p l a r , f a r t a m e n t e p r e m iad o , d e u m l ivro eletrônico, e n e m h áde ser tão difícil ima ginar o que o novo rebento possa vir a s ignificar .Na era da tecnologia, os progressos revelam-se irreversíveis. M astalvez sobre um p equeno e nostálgico espaço para a extrem a genero-sidade dessa espécie de bibl iófilos em que todos nós nos to rnamos -na medida em que o l ivro conseguir sustentar-se em nossas mãos.Entretanto, advir ta-se que a pior d as saídas está se m d ú v id a , po rinút i l , em al imen tar qualquer fo rma de preconceito contra os avanços

da tecnologia. Mesmo porque não serão tais avanços que irão atra-vancar os descendentes de Ma c h a d o de Assis.

PARÁBOLA DO LIVRO NA CULTURA GLOBAL

FRANCISCO DELICH

44 Rev. TB, Rio de Janeiro, 142: 37/44, jul.-set., 2000

A global ização, tã o menta lmen te e laborada na ú l t ima década d oséculo passado*, não é produto recente. Isto está mui to bem dem ons-trado po r Aldo Ferrer em sua Historia de Ia globalización (Histór iada globalização), cujo segundo volume acaba de ser editado pelaFondo de Cu l tu ra Econômica . Em sen t ido e s tr i to , a p r ime ira o rdemmundia l se instalou com o descobrimentoe ocupação da Amér ica porparte d os espanhóis e portugueses. Coincidiu com a invenção d a

imprensa e o prenuncio da difusão em massa do livro, séculos depois.Os l ivros - l embremo-nos - se escreviam e se i lustravam à mão,

eram produto da inteligência e habilidades individuais e manuais queregistravam e con t inham os códigos d a vida e a m e m ó r i a d os povos.

De maneira que, com os espanhóis e portugueses, desembarcaram,nã o apenas guerreiros e sacerdotes, mas também l ivros, objetosestranhos aos nativos.

Na Am é r i c a d o Sul, os j e su í t as se in s ta la ram e, c o m o se sabe,evange l iza ram os índios no ant igo vice-reinado, se m impor se ui d i o m a nem tampouco u t i l izando t ex tos sag rados que t raz iam con-

sigo, em l a t im, na maior par te d os casos, m as t ambém em castelha-no . Ao f im de um século, adver t i r am que a consol idação d a evan-gel ização (a propósito , nada fácil ) requeria algo mais do que pa la -vra, discipl inas e organização teocrát ica d a e c o n o m ia e d a socieda-de indígena. Sua tarefa ia mais além da conversão à nova fé ;propunha-se incluí- los para sempre na fé cr istã. A nova moral

O autor se refere ao século XIX (NT).

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re l ig iosa e o acesso à c u l tu r a oc i d en t a l r eque r i a m a lgo m a i sp e r m a n e n t e do que as h o m í l i a s e o s r i t ua i s .

A verdade es tava no Livro Sagrado e este objeto - o l ivro - erat ambém sagrado e, por isso mesmo, inacessível ao s profanos . OLi vro S a g ra d o não era acess ível às t r i b os eva nge l i za d a s p o rr a z õ e s es t r i tam ente id iomát icas . O s jesuí ta s tom aram duas dec i -sões que hoje , qua t ro séculos depois , impr ime m sua marca e suasconseqüênc ias , merecendo o ma is amplo reconhec imento. Deci -

d i ram, em pr imei ro lugar , evangel iza r no própr io id ioma dosevangel izados , na l íngua a imará , quíchua e guarani . Conseqüen-temente , dec id i ram dispor os textos sagrados no própr io id iomaindígena. Necessi tavam de uma prática de tradução para essasl ínguas e também de um espaço onde pudessem educar as e l i teslocais que, cedo ou tarde, necessi tariam se r cooptadas . Fundaram,em 1613, a Univers idade de Córdoba que, durante o século XIX ,em seguida à independênc ia nac ional* , fo i secula r izada e inc luídana jur i sd ição do Es tado provinc ia l , em primei ro lugar , e depois ,nac iona l .

A Biblioteca Maior da atual Univers idade Nacional de Córdoba

te m sob guarda uma impressionante coleção de livros que acompa-nhou a expansão jesuítica, até sua expulsão das terras ame ricanas, noséculo XVIII. Ali se pode seguir, com relativa facilidade, a aventurado Livro Sagrado em terras do novo mundo. O primeiro catecismoem aim ará e quíchua, edição trilíngüe, se relaciona com países hojeoficialmente bi língües como a Bolívia e o Peru; logo a seguir emguarani para o Paraguai, também bilíngüe, utilizados durante séculospara faci li tar a integração dos evangelizados com os evangelizadores.

Em 1584 e 1585, publicou-se a Doctrina Christiana y Catecismopara instrucción de lo s índios e de Ias demás perfonas que ha n de

fe r enfenadas en nuestrafantafe Con un confesionário y otras cosasnecefesarias para los que doctrinam, que fé contienem en Ia paginasiguiente compuesto por autoridad de i Concilio este catecismo in-cluye un segundo catecismo para instrucción de curas, de índios yun tercero para I a expansión de servidos (Doutrina cristã e catecis-m o para educação dos índios e das demais pessoas que hão de ser

* O au tor se refere a seu país, a Argent ina.

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doutr inadas em nossa santa fé . Com um confess ionár io e out rascoisas necessárias para o s que dou trinam, que se contém na páginaseguinte composto por autoridade do Concilio este catecismo paraeducação de curas, de índios e um terceiro para a expansão dosserviços).

U m Congresso Provincial dos jesuítas, celebrado em Lima, em1583, f ixou as bases teológicas deste excepcional catecismo.

Estes livros iniciais, distantes e incompreensíveis para os índios, em

breve menos alheios, compreensíveis quando lidos na própria língua,contribuíram para consolidar uma rara parábola histórica. Seriam esteslivros - e outros - que egitimariam oprotesto e a insurreição contra osdominadores. Os Livros Sagrados, vulgarizados, seriam incluídos naidentidade coletiva e se rebelariam contra a antiga ordem colonial,sustentada no analfabetismo, e, claro, na coerção.

O s l ivros sagrados, quando o Estado moderno, no O cidente, def i-niu-se como um a insti tuição laica, foram confinados à privacidadedos crentes. O utros l ivros ocuparam seu lugar, porém não lograramsubstituí-los. Novos livros contribuíram logo para definir a identida-de, não mais tribal, mas, sim, nacional.

Em todo caso, os l ivros e a pa lavra contr ibuí ram, pr imei ro , pa raa Independência e, em seguida, para a formação das cidadanias.O l ivro c ivi l i zador , na m ed ida em que avançou a indus t r ia l i zação,e, por outro l ado, no m o m e n t o em que as sociedades se consc ien-t izaram da impor tânc ia da educação universa l , se d ifund iu entrepúbl icos d i spos tos a devorá- los i l im i tadam ente . Aqu i , surgi ramos paradoxos de uma parábola desconcertante: por que motivo selê cada ve z m e n o s nas soc iedades contemporâneas? Nos Es t a d osUnidos , segundo d ivulgam a lguns jorna i s , o s a lunos passam11.000 horas anuais na esco la , contra 15.000 em frente da te levi -

são. Na Argen t i na , cálculos razoavelmente conf iávei s a s s ina lamque os a lunos do ens ino f u n d a m e n t a l passam não menos do quequat ro horas diárias defronte de um televisor, mais do que dedi -ca m à escola .

Assim, então, tem os cada vez m ais alfabetizados, tanto nos paísesavançados quanto nos emergentes, porém lendo meno s. Por quê? Por-qu e alfabetizamos mal, nos acomodamos em ensinar a ler e escrever,na tradição antiga da recepção passiva em compreender os s ignos

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para tornar óbvios os significados. Todos sabem ler e escrever,dispõem de um instrum ento formid ável para a compreensão da vida,da socieda de, dos códigos explícitos e implícitos. Porém a capacidadepara a leitura crítica e auto-estimulante continua adormecida.

Enquanto se escrevem estas l inhas, estamos recebendo mais deduas mil resenhas cr í t icas de l ivros, no marco da Primeira O limpíadade Leitura para estudan tes do ensino médio. São interessantes, algu-mas fascinantes. Porém estamos nos reportando a 1% dos es tudantes

em condições de part icipar . Em plena expansão indu str ial , posto aoalcance de todos, no entanto, apenas d iscreta minoria sente a neces-sidade de ler e de se expressar sobre os livros que lê. O segundoparadoxo se refere ao Mercado . O s livros se compram e se vendem,em edições d e bolso, em dignas edições populares acompanhando aedição d os jornais diár ios nacionais e regionais , em massa; estão aoalcance do poder d e compra de setores d a pequena classe média eainda d os raros setores emergentes. Se m dúvida , compram-se menoslivros. Certamente, a desigualdade social não a juda em nada a con-sol idar o mercado editor ial . Porém não parece ser razão suf ic ientepara esta apatia c o m a leitura.

Será então, como pensam alguns, que o avanço da vida digital é oin imigo qu e condiciona a vigência do livro e sua leitura?

É verdade: a digitalização permite quecada qual disponha, em suacasa, de uma bibl ioteca vir tual , assim acontecerá nos próxim os anos,mas m uito além de toda nossa capacidade de consulta e absorção. Istoestá e estará disponível , co m certeza, ao redor d o planeta.

No entanto, existem duas restr ições. A primeira é d e ordem técni-ca. É possível que os l ivros digital izados, para proteger os dire itosautorais e editor iais , não possam se r impressos. Poderão se r lidos econsultados, mas não copiados. A segunda é de ordem subjet iva. O

prazer esté t ico que põe em relação de int imidade a mão, o olho e acontemplação, ao correr d as páginas, é ir repet ível . Ninguém podeconfund i r o cinema com o teatro. E m ambos os casos, o prazer podeser imensurável, mas são distintos.

O terceiro paradoxo refere-se ao avanço da global ização, tambémno caso dos l ivros. Assim ilam-se os gostos. O best-seller t ranscendeas f ron te i ras nac iona is e r eg iona is . Um es t i lo p lane tá r io p r iv i l eg iao s relatos neo-histór icos, quer dizer , u m a invenção d e h is tó r ias

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qu e jamais ocorreram. U m modo, entre tantos outros, de invadir amemória dos povos; os livros resistem à invasão de um estilo que nãose relaciona com os países nem com suas histórias. A globalização dacultura avança, mas não é de ninguém. Os livros vacilam e os leitorestambém.

No entanto, a globalização, em sua etapa contemporânea, necessitado livro, porque continuam sendo os livros, não importa como se leia,o su porte instituciona l do Estad o. São os livros, livros canônicos, livros

de poesia, são os livros qu e identificam as nações e são os livros tamb émqu e mobil izam as sociedades no sentindo de reconhecerem-se.Quem são, então, os inimigos do livro? Provavelmente e em

primeiro lugar , a desvalor ização da palavra e a fe t ichização dogestual. A palavra fragil izou-se e não apenas em f rente da gestual i-dade, mas tam bém como valor social .

Len tamen te , as sociedades deix am de lado a dist inção entre formase conteúd os, entre consciente e inconsciente , entre objet ivo e subje-t ivo. Só vale a aparência pr imeira, sem antes nem depois, que seesgota em sua própria reiteração.

E m segundo lugar , um quase pragmatismo, correlato e vulgar ,

empenhad o em desterrar todo debate de idéias. No mom ento em queassomam as cr í t icas discu rsivas, começa, de ime diato, uma desvalo-rização oblíqua. O q u e passa em branco não é a escrita em s i mesma,nem se u conteúdo, nem seu estilo. A idéia e o próprio conceito é queques t ionam a ut il idade de qualquer discurso controverso. Argumen-ta r por si mesmo é considerado per igoso para o sent ido comumestabelecido. N estas condições, para que l ivros, se o que eles contêmsã o os a rgumentos?

Finalmente, uma conseqüência necessár ia e infeliz derivada dasduas anter iores: o pensamento único; a histór ia ensina o suf ic iente

sobre as conseqüências e dest inos para a l iberdade quando o pensa-mento ún ico se apossa das sociedades; ele que agora se di funde co ma global ização é provavelmente mais sut il . O pensamento ún ico nãose diferencia dos outros pensamentos, m as conforma em s i mesmoum gigantesco vazio, a que assist imos, entretanto, sem reagirmos.

(Tradução do original espanhol por Carlos Sepúlveda)

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t e rm ha i s d e emissão e d e recepção) , a circulação é perceb ida pelo

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atinge hoje as fronteiras da edição: ela ameaça colocar em questãotodas as suas estruturas de produção, de distribuição e de consumo,assim como, m ais profund amente ainda, o próprio estatuto do texto e arelação en tre autor e leitor. Paralelamente, ela se enriquece u d e poten -cialidades suplem entares que lhe dão uma vantagem decisiva sobre olivro tradicional: a possibilidade de associar sobre o mesmo suporte, nã oapenas o texto e a imagem, mas também o som, e dar a esta associaçãoum caráter dinâmico e móvel (e não mais estático) e interativo (o "leitor"

dispondo de uma liberdade e de uma margem de iniciativa infinitamentemaior de m odos de consulta).Fundamenta lmente , por tanto , a "era eletrônica" se s i tua ao

menos tanto sob o s igno da cont inuidade quanto da ruptura comre lação à era de Gutenberg. E la libera, co m efei to , o impresso damaior ia d as l imi tações de que ele permanec ia pr i s ionei ro já hácinco séculos, apesar d os progressos rea l i zados pa r t icula rmentedesde o começo d o século XIX, mas se s i tua na mesma lógica .

Fim dos l imi tes do volume de informação c i rculando sob formaimpressa, l igados à capacidade e aos custos da composição e daimpressão por empresas especializadas: toda divisão de trabalho

é abol ida , porque todo autor pode compor e le mesmo seu texto eescolher os destinatários , e todo lei tor tem a escolha de ler no seumoni tor ou de imprimi r , d e conservar, de t ransmi t i r a outrem oude j o g a r fora a informação receb ida , e, cer tamente , de responder,tornando-se por sua vez autor . A escrita d e imprensa consegueass im ocupar (o que ela vinha apenas ensaiando há um século co ma m áqu i na d e escrever) um a larga parte d o campo reservado a téaqui à escri ta manuscri ta , que a invenção d a imprensa haviat ransformado, em contrapar t ida , no s igno do ind ividua l e da in t i -midade: o i n s t rum en to d a correspondência pessoal e d a criação

li terária , mas também, através da ass inatura (que havia substi tuí-d o o selo) e da grafologia, a expressão mais profunda e a maisinimi tável d a persona l idade. E esta vi tória d a escri ta impressaa t inge também países como a China ou o Japão, onde os ideogra-mas haviam bloqueado o uso da máquina de escrever, ao passoque se entendem perfe i tamente bem com o computador .

F i m , d o ra va n te , d o s l imi tes espac ia i s o u t em pora i s à c i rcu-l ação d o texto: desprend ida d e todo supor te mater ia l (a lém d o s

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usuár io como instantânea (os únicos atrasos devendo-se aos pos-s ívei s engarra fame ntos d as auto-es t radas d a informação) , e ind i -fe ren te às dis tâncias , como se ela f izesse o mundo inte i ro viver àm e sm a hora. E la permi te , des ta forma , ao impresso desempenharpapel i gua l ao do or a l , q u e progr i d e n o m e s m o r i t m o , nam ed i d a em que u t i l i z a o m es m o i ns t rum en to d e t r a ns m i s s ã ocod i f icada : um te lefone que é , com f reqüê nc ia cada vez maior , e letambém, digi tal.

O s limites precedentes, hoje esquecidos, tendem, é verdade, aceder lugar a outros, ligados a problemas de saturação. Saturação dasmemórias dos com putad ores, atulhadas, apesar do crescimento de suacapacidade, po r causa do fluxo da s mensagens que não ousamos maisjogar fora, como se todo escrito devesse ser conservado. Saturaçãoda capacidade de leitura dos destinatários e a dificuldade cada vezmaior de mobilizar sua atenção. Sufocamento dos autores, incapazesde fazer face à demanda de textos de que são alvo, e tentados aconstruir, a custa de "copiar-colar", umpatchwork de f ragmentos detextos redigidos por eles mesmos ou por outros , que opõe à plurali-

dade das leituras possíveis a das reuti l izações do mesmo texto.Paralisia das redes, cuja expansão por dem ais rápida susci ta descon-fiança ou indiferença, e o desejo de retornar a círculos mais restritosde comunicação, proteg idos de todo vírus e de toda indiscrição, logode reconstituir hierarquias e espaços reservados ao interior de umsistema julgado, doravante, muito aberto para todos. Saturação, en -f im, do s acessos às bases de dados, vítimas de seu gigantismo, e dasexpectativas, tanto mais significativas quanto em parte utópicas , quese alimentam de um saber (ou de uma s imples informação) que sejarealmente enciclopédica.

O jogo, obviamente, permanece aberto e o balanço que se podeesboçar hoje pode ser rapidamente posto em questão por inovaçõestécnicas e mo dif icações práticas. A escri ta m anuscri ta pode, a termo,encontrar seu lugar de pleno direi to nos monitores , e pôr fi m aoreinado do teclado, de que o economista Paul David fez, em artigocélebre, o modelo da s escolhas técnicas de longo prazo, criadoras derigidez e de irreversibilidade mais ou menos longas (uma duração,neste caso, simplesmente secular, o que é pouco para um historiador

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fo r m ad o na escola d e Fernand Braudel , cu jas "pr isões d e longa Se o livro parece hoje posto em causa é que ele havia lentamente

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duração" t inham i lus t rado, vinte anos antes , a mesma intuição) .A mediação de toda escri ta pessoal faz parte do universo deposs ívei s vi sua l izados , o computador , t ranscrevendo e le m esmoso b forma d e texto o som da voz. O moni tor , e lemento a tua lme ntei nsubst i tu íve l da cadeia, esqu ar te jado ent re a minia tur ização (oscomputadores d e bolso) e, ao contrár io , o a la rgamento (que per-mite jus tapor vários textos) pode ceder lugar a suportes de uti l i -

zação mais f lexível e menos cons t rangedora . Da mesma forma ,p o d e m evoluir as preferênc ias dos usuár ios , que hes i tam a indahoje ent re a le i tura d i re ta ao m o n i t o r e a i m pres s ã o d os t e x t o spreparados (para uma correção mais atenta) ou recebidos (paralei tura n eventual class if icação mais conformes co m seus háb i tosou com suas necessidades) . E que preferem ainda as bibliotecas(das qua i s consul tam ao moni tor os ca tá logos ) , como lugar deacesso ao s livros, à le i tura ao m on i to r d as obras d igi ta l i zadas .

Mas quaisqu er qu e sejam as mu danç as possíveis, elas se inscrevemna perspectiva de uma generalização e de um a multiplicação dos usosdo escri to como m eio de comunicação, de circulação da informação,

de transmissão dos conhecimentos e de acesso a eles. Que estageneralização e esta multiplicação se refiram ainda hoje apenas a umaminoria do s países e da população do planeta, e que somente um aparte dos alfabetizados tenha acesso ao universo eletrônico, não hádúvida. O computador exige, assim como a instalação e a manutençãodas redes, pesados investimentos em material e em pessoal qualifi-cado, que contribuem para cavar novos e duradouros fossos entre"pobres" e "ricos": a lógica da extensão do mercado, à procura denovos clientes, será suficiente para levar as insti tuições públicas eprivadas, be m como os particulares, a fazerem os investimentos

necessários, cuja amortização das despesas de pesquisa provocaria abaixa d os custos? U m ot imismo se m reserva seria, se m nenhum adúvida , excessivo. M as o livro e a carta não seguiram a mesm a rota?Produtos caros, reservados às elites, se "democratizaram" lentamen-te. O im portante é ver que as mud anças atuais consti tuem nova etapade sua história: e-boók e e-mail somente exis tem, se desenvolverame se im puseram em referência a esta his tória , mesmo se seus efei tospodem se revelar revolucionários a mais longo prazo.

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conquistado, em nossa cultura, um lugar e um estatuto igualmenteprivilegiados. Prestígio do tex to, referência s imu ltaneamen te religio-sa e literária, que se deve reproduzir e transmitir para proteger contrao esquecimento, mas também ler para se apropriar e se identif icarcom uma cultura e com um conjunto de saberes profissionais (direito,medicina, teologia) ou mais desinteressados (filoso fia, poesia etc). Aimprensa não havia apenas permitido m ultiplicar o número de cópiasem circulação e colocar à disposição de uma clientela mais amp la umnúmero maior de obras (crescimento quantitativo), ela havia condu-zido ao desenvolvimento de um conjunto de disciplinas eruditas qu econcorreram p ara recupera r a pureza do texto original, para l iber-tá-lo de todas as ad ições voluntár ias ou não e de todos os errosdos co pis tas , para estabelecer ass im um a versão única de referência(mutação qualitativa). Mas, em nível do s modos de apresentação dotexto, ela havia retomado a forma do codex, feito d e folhas dobradase reunidas, de que a Idade M édia havia confirmado a substi tuição aorolo (volumeri) da Antigüidade Clássica - uma mutação que parecepoder ser datada entre os séculos II e IV da nossa era, e na qual a

reprodução dos textos do iníc io do c r i s t i ani smo parece ter desem-penhado papel pione i ro . 1 Esta fo rma servia , pa r t i cula rm ente bem,ao s usos religiosos d o texto, associando as lei turas das d i ferentespassagens d as Escr i turas ao r i tmo d as horas , dos dias e dos meses.Mas tinha também, entre outras vantagens, a de permitir , aomesmo tempo, a lei tura curs iva, a identif icação de um textopreciso (graças à numeração d as páginas e ao es tabelec imento d esumários e índices) , e a comparação de d i ferentes páginas d am e sm a obra ou de diferentes l ivros.

Se nossos computadores marcam, deste ponto de vista, umavolta ao passado, vis to que eles rolam o texto diante de nossosolhos como um volumen antigo, eles procuram compensar estedefe i to com a paginação, a indexação e a s poss ib i l idades de busca ,por pa lavra ou frase, e de impressão, sempre possível, do textoque nos res t i tu i a forma fami l ia r d o codex. Mas , sobretudo, elespropõem, graças ao hiper texto , um modo de le i tura rad ica lmentenovo, inf in i tamente ma is l ivre que o do l ivro, ao mesmo tempoque se s i tuam na mesma lógica , na med ida em que o hiper texto

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permite generalizar ao infini to a comparação, ligando potencialmente dos países f r an có f o n o s" . Mas, por acaso, o mesmo programa m e per-

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cada ponto do texto co m todos os outros, e autorizando, assim, leituraspo r encomenda, qu e jogam com as estruturas profundas e freqüente-mente ocultas do texto.2

Mas os próprios computadores se encontram confrontados com omesmo desafio que a imprensa havia encontrado e m s u a rota: o d alíngua, ou antes, da ausência de uma língua comum. E isto, mesmose as posições podem parecer, em 2000, exatamente opostas às de1500. A imprensa havia sido inventada num contexto em que os

intelectuais europeus tinham o domínio de uma língua comum, ola t im , e ela devia servir para multiplicar edições de referência nestalíngua. Rapidamente, contudo, as encomendas d a clientela e as exi-gências d os Estados colocaram-na a serviço d a afirmação d as línguasnacionais, a expensas tanto d o latim, língua internacional, quanto d o sdialetos, relegados ao lado da oralidade.

Hoje o inglês pode dar a impressão, num primeiro momento,de quepoderia servir de língua comum da era eletrônica, na medida em que eraa língua na qual haviam sido concebidos os computadores, seus progra-m as e as redes sobre as quais os internautas surfam. Mas, se os Estados

intervém pouco, ou à margem, para impor seus idiomas a usuáriospreocupados em utilizar todas as novas liberdades qu e suas novasmáquinas lh e oferecem, as línguas nacionais se recuperaram rápido eimpuseram que os computadores e seus programas fossem adaptadosàsnecessidades dos usuários: mesmo se um número crescente de usuárioslêem e escrevem em várias línguas, elas permanecem línguas da comu-nicação cotidiana e majoritária. É preciso, portanto, lhes adaptar asescritas disponíveis no computador (alfabetos, silabários ou ideogra-mas) , bem como os programas de correção ortográfica e gramatical.Depois de ter, como meus antigos professores naescola, sublinhado comum traço vermelho, em sinal de protesto ou advertência, e -mai l e e-book,mas também primavera e verano, para não falar de " Ia muerte", meucomputador acaba de assinalar que patchwork é um anglicismo e queeu deveria preferir o termo "mosaine" ou "arlequine" que propõe oDiário Oficial da República Francesa, do qual ignorava a existência,assim como meu dicionário Larousse Lexis, editado, é verdade, em1982, mas rico em 76000 palavras, cobrindo tanto a língua clássica eliterária quanto o vocabulário contemporâneo e os "termos regionais e

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mite ignorar estas recomendações...Observando-se mais d e perto, as línguas nacionais não são as únicas

a se saírem bem neste novo contexto: as línguas regionais ganham apossibilidade e o direito de retomar o lugar que a imprensa lhes havia,duran te muitos anos, recusado ou estritamente medido. A era eletrôni-ca , atuando em favor da f lexibi l idade contra a produção em massa,alarga e renova, com efeito, de maneira espetacular o "mundo dospossíveis" :3 ela permite descentralizar a produção, a circulação e o

consumo, e de tornar rentáveis, na medida em que os custos sãobancados pelos autores e leitores, e não pelos editores, impressores,divulgadores e bibliotecas de séries "curtas", criadores e organizado-res de novos mercados sobre os quais a edição clássica poderá ulterior-mente se implantar, se sua rentabilidade parecer assegurada. A combi-nação do global e do local pode, doravante, intervir mais facilmenteem outras esferas, e recolocar em discussão a fronteira tradicional entrelínguas e dialetos, que passa, precisamente, pela existência de umal i teratura escrita e de uma gramática.

Podem-se assim precisar-se três níveis de produção e de circulação

de textos, em relação à língua utilizada: língua d e comunicação inter-nacional (o inglês e, mais raramente, o espanhol, francês ou português),língua nacional e língua regional. A estes três níveis correspondemtantas definições d e pertinência qu e ressaltam, como essencial, a deci-sã o dos indivíduos e das organizações privadas, e que escapam, por suavez, daquelas relativas ao s Estados: estes não têm outra escolha, em seuesforço por manter sua língua nacional, senão como língua central emseu sistema de ensino e funcionamento da vida cotidiana, tanto quantofacilitar o aprendizado da língua internacional, nas escolas, (indispen-sável em todos os setores sujeitos a concorrência) e tolerar, quando elasnão se sustentam, as línguas regionais, utilizada em ambiente familiare promovida por autoridades locais. Entre estes níveis, nenhuma outramediação é possível senão a dos indivíduos sozinhos, obrigados buscarsu a expressão em meio a inúmeros registros lingüísticos, d e modo qu eos programas d e tradução automática não atingiram um a qualidadesuficiente a ponto d e garantir su a credibilidade. Inúmeros atores são,propriamente, capazes de multilingüísmo, esta superposição de níveisnada tem de rígido, ela assegura uma margem de liberdade de escolha

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e a possibilidade de redefinir, de acordo com as circunstâncias e dos os l ivros foram convocados a m udar , por sua vez, de suporte , de forma

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conteúdos de informação, as redes em fronteiras móveis.Enfatizar, de modo exclusivo, a liberdade dos atores e as novas

possibilidades que oferecem aos atores, bem como aos leitores, aredefinição da cadeia de produção e distribuição do livro, oferecerá orisco, entretanto, de falsear as perspectivas. A imp ortância dos investi-mentos exigidos pela informatização, a dimensão mundializada domercado da comunicação, que ultrapassam largamente as fronteiras domercado editorial, o contexto jurídico do direito autoral, a diversidadeda s formas sob as quais o mesmo texto é suscetível de ser apresentadoa diferentes públicos (livro do CD-Rom, simples ou multimídia, filmeou programa televisivo, etc) tem favorecido a emergência de grandesempresas operando em escala internacional; qu e surgem, hoje, influen-ciando não somente, em razão de campanhas promocionais caríssimas,a produção, a distribuição e a venda - em umapalavra: fabricação dosbest-sellers - mas também a própria criação.4 Tudo se resume, mais doque nunca, a um problema de escala. Entre liberdade total, onde cadaum se tornará editor e difusor de seu próprio texto, selecionando osleitores, e a dominação se m limites desses grandes grupos, capazes de

modelar e orientar os gostos do consumidor, o jogo está feito, mais doque nunca.Será m elhor deixar de lado as fórm ulas abusivas ou inut ilm ente

apocalípt icas acerca dessas t rês mortes associadas: m orte do l ivro,morte do autor (anunciada, em 1968, por Roland Barthes num outrocontexto, é verdade, uma vez que o autor houvera sido vít ima, nãoda máquina, mas da onipotência do le itor) , e morte do le itor . Umacoisa, porém, sobrou disso tudo: a galáxia d e Gutenberg, aquela d ageneral ização da comunicação escr ita sob uma forma impressa (masobrigatoriamente sob suporte de papel), está mais viva e sólida doque nunca, contrar iamente às profecias pessimistas de Marshall M cLuhan, que anunciou seu fim, l igado ao tr iunfo da imag em; as novastecnologias foram recolocadas no centro de um sistema de comun i-cação renovada, pois se abriram à participação ativa do leitor, etambém ao texto, ao qual podem estar , doravante , associadas nãoapenas a imagem, vir tual ou real, es tá tica ou em movimen to , masigua lmen te o som. O universo da Internet é um universo de le itorese de autores. É também um universo de livros. E, mesmo assim, se

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e de conteúdo, e se as definições de " autores" e de " leitores" concor-darem em m odificar-se , bem como as re lações que m antêm entre s i eco m os livros. Pois atribuir a estes três "objetos" inscr itos na histór iaum a estabil idade e uma permanência, que am ais t iveram, será um errofundamentaldeperspect iva.

Esta constatação acerca do universo da Internet marca, na verdade,o pr imeiro e , sem dúvida, o mais profundo l imite de nosso debatedesses três dias. De que se trata, afinal? Trata-se da sol itár ia m inoria,expressa em porcentagem , e , além do mais, muito in justam entedistr ibuída em escala planetár ia, para a qual as novidades tecnológi-ca s foram colocadas na ordem do dia, a fi m de responder às suasnecessidades crescentes em matér ia de in fo rmação e d e comunica-ção: uma minoria que tem também a vontade e os meios para fazeros invest imentos necessár ios? Ou, de outro modo, a total idade dapopulação do mundo ou mesmo apenas suas el ites sol itár ias?

Entende M adame Gyoret t i Kyomuhend o de nos falar do l ivro que,na África subsaariana, talvez seja percebido pelo le itor como exclu-dente , em face da comunidade, na medida em que se tornou objeto

de um a le itura individual , sol itária e s ilenciosa; nunca se pode pensarnisso senão em face da história da leitura no Ocidente europeu, naépoca medieval e moderna: a le itura individual foi uma longa con-quis t a (ou o produto de longa evolução, se se prefere , para e vitar aconotação triunfalista do termo "conquista"), que se consol idou, nomínimo, ao longo de seis ou sete séculos. Houve, antes de tudo, apresença dos monges, estes profissionais da leitura, cujas regras deconduta os fazia, precisamente, viver desligados do mundo. Durantemui to tempo, isto coexistiu com a prática da leitura em voz alta, às vezesindividualmente, mas, na maioria dos casos, coletivamente, como oscamponeses franceses no alvorecer do século XVIII, que não sabiamler, ou liam m al, ou, mesmo sabendo, preferiam esta forma de recepçãoe de apropriação d o texto àquela que hoje nos parece superior e óbvia;ora, esta forma preenche, pelo menos, duas necessidades: uma leiturarápida, permitindo a cada um assimilar mais rapidamente um fluxocrescente de informações com plexas e matizada - a leitura oral acabasendo, desde então, percebida como simplificadora -; por outro lado, aleitura silenciosa fo i também entendida como necessária à compreensão

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em profundidade, como se o som da voz constituísse um obstáculo. com o computador; também a dist inção entre o saber acumulado por

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Significativamente, a leitura de um texto escrito em voz alta, lá onde elepersiste, no fundo , é claro, das cerim ônias religiosas, tende a se disfarçarpor detrás da aparência d e improvisação, da palavra falada: o jornalistada televisão faz isto, parecendo nos olhar nos olhos, enquanto lê o texto,redigido previamente, e que se cola no " teleprompter" (mais um angli-cismo que meu computador sugere substituir po r " teleponto" ,* situadopor detrás da câm era. O ensino tend e a relegar para segund o plano estaantiga prática de leitura de textos em voz alta, feita por um professor,que há muito tempo vem se chamando "leitor", ou pelo aluno.

A h istória, então, nos convida a pensar que a etapa do livro, e de tudoaquilo que o acom panha em m atéria de relações restritas ou generaliza-das num a sociedade com uma cultura escrita, f ixada e difundida so bforma manuscrita ou impressa, não pode, portanto, ser ignorada, pelomenos nã o inteiramente. Estamos hoje, efetivamente, numa situaçãomuito diferente da que foi criada há pouco mais de cinco séculos: ainvenção da imprensa de tipos móveis, na Europa Ocidental.

Isto interveio na s sociedades onde ler e ter acesso ao livro era,ainda, pr ivilégio de uma minoria. Permit iu , antes, produzir , em

grande quantidade e custo menor, obras para o público habituado aol ivro m anuscrito. Porém, mu ito depressa, os editores se dedicaram adiversificar su a produção e a baixar os custos, a fim de at ingir novospúbl icos , que não t inham ou não t e r iam nunca acesso ao l ivromanuscr i to . E les fo ram bene f ic iados por um con tex to favoráve lde progresso na a l fabe t ização pela escola, o que encorajou, nam e s m a época e por razões in te i r ame n te d i fe ren tes , as Igrejas e o sEstados - mas também as famíl ias desejaram e mant ive ram - alevantarem financiamentos locais , n os burgos e nas pequenas cida-des, para pequenas escolas, d a mesma mane ira como f inanciavam oses tudos d e seus f i lhos em faculdades e universidades.

Os mesmos editores, para at ingir novos públicos, favoreceramnotável ampliação no campo da escrita, que conduz iu à fo rmal izaçãode du pla dist inção: a dist inção entre o texto, restaurado à sua fo rmaoriginal , e o come ntár io ou a glosa, que a escr itura manu scrita tendiaa integrar no próprio corpo do texto, como se pode fazer , de novo,

* O autor utilizou o termo francês télésouffleur.(tlota. do s tradutores).

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gerações e mesmo civilizações precedentes, simbolizadas pelos textosantigos, religiosos ou não, e a criação original - ou que procurava serou parecer original - aplicadas aos gêneros novos ourenovados: apoesiae a filosof ia, a história, o romance, a novela, o ensaio, quer dizer: tudoo que chamamos hoje literatura, cuja afirmação impôs-se ao preço demúltiplas "renascenças" e de não menos da querela dos "ant igos emodernos" , qu e visam legitimar as rupturas, daí o direito à inovação,

em contrafação com simples respeito à tradição.Dentre essas renovações no campo da imprensa, convém fazerexceção à recuperação da t radição oral por parte da l i teratura oficial,que precede, freqüentemente, sua circulação por meio do l ivro,ilustrado ou não, para um público mais amplo, graças a ediçõesresumidas: percurso qu e s imbol iza os Contos de Perraul t .

Deste ponto de vista, Menocchio não deixa de ser particularmenterepresentat ivo d as transformações que nc s prendem ao século XVI.Sua passagem por uma escola pública cimentar não passa de umahipótese, deduzida por Cario Ginzburg d o fato de ele sabar "ler,escrever e contar", mas que não se confirma.--A dúv ida é reforçada

pelo fato de que ele não se preocupou, de modo algum, em t ransmit irseu saber a todos os seus filhos, porque, pelo menos um deles,Ziannuto, aquele que aparece com mais freqüência ao longo doprocesso, é analfabeto. A dezena d e obras que ele parece te r l ido, acrer-se nas citações que faz, são, em sua maior ia , textos anter iores àimprensa, religiosos (a Bíblia, a Lenda dourada de Jacques d e Vora-gine) e não religiosos (John Mandevil le , Boccacio 5). E , m e s m o qu et enha fe ito uma le itura individual , sobretudo não-crí t ica, apressa-seem part ilhar a oralidade de suas leituras consigo mesmo, como se nãopudesse se contentar com um tête-à-tête pessoal com o texto e tivesse

necessidade, ou d e mediação, ou de confi rmação da palavra, e compar-tilhar com os outros o conteúdo da mensagem ou das idéias que se lheinspirava: será preciso esperar mais de um século pela form ulação, porSpinoza, do célebre Larvatus prodeo. A escola, com todos os processosde aprendizagem e de domesticação que propicia, mas também dehierarquia dos saberes e da perspectiva de sua utilização, não passoupor lá. Ora , o livro de que falamos hoje está indissoluvelmente ligado àescola e, de modo mais geral, a todo um sistema de ensino por onde

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passa a reprodução organizada de nossos saberes. O lugar que os nível: o dos custos de difusão e de distribuição que duplicam ou

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verdadeiros autodidatas construíram, no campo da cultura, não cessa dese restringir.

É-nos necessário, então, levar em conta esta força e esta presençainsti tuc ionais do livro e não apenas a leitura, em nossas sociedades, pelomenos naquelas onde está assegurada a alfabetização majoritária ougeneralizada. Esta força e esta presença vã o muito além do prazerestético que os intelectuais - quesomos - podemos terquando vemos,

quando manipulamos, quando acariciamos su a encadernação, quandosentimos o cheko do papel e da tinta. Este prazer estético não serásuficiente para assegurar a sobrevivência do livro, se este não estiversido inscrito no mais profundo d e nossos hábitos mentais, a tal pontoque a forma d o livro possa ditar a forma de todas as adaptaçõeseletrônicas atuais: caracteres, formato , paginação, etc. Todos os Soft-books, Rocketbooks ou E ve ybooks, para melhor se parecer com livros,são dotados de um dispositivo que permite passar de uma página aoutra.6 O s mais aperfeiçoados apresentam o texto so b fo rm a d e u m apágina dupla e outros são até munidos de capa de couro. Será o livroeletrônico obrigado a se disfarçar ou se esconder para se afirmar?

O livro dispõe, portanto, de todas aspossibilidades de viver melhoresdias no futuro, não importa o que se diga. Ele se beneficia do prestígioe de todas as aquisições de seu passado. E, em termos de custo, continuaperfei tamente competitivo, desde que os números das tiragens perma-neçam num certo patamar. Mesmo no caso de um milhar de exemplares,a impressão propriamente dita representa apenas a metade e um terçodos custos reais (incompreensíveis, se queremos manter a qualidadefinal do texto) de composição e de preparação do "pronto para impri-mir" , e este percentual diminui rapidamente, quando a tiragem aumenta.Para quem continua a preferir a leitura no papel, a partir de um texto

recebido pela Internet, o custo da impressão (em torno de dez ouquinze cêntimos de franco por página por usuário) édefinitivamentemarginal, em relação ao custo da composição e da impressão de altaqualidade de um texto fornecido em disquete, por parte d o autor a seueditor (no mínimo 80 a 100 francos a página, muitas vezes mais). Averdadeira fragilidade d o livro, como produto industrial em série, que,além do mais, se conserva, infini tamente melhor e por mais tempo d oqu e todos os suportes eletrônicos existentes, situa-se, de fa to, noutro

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triplicam o preço, quando mantidos nos circuitos tradicionaisda livraria,que nos parece, entretanto, essencial salvaguardar. E percebe-se bemqu e a ganância dos grandes grupos de comunicação, mesmo quando elesse apressam em defender os direitos de seus autores (que funda m se upróprio copyright) consiste em eliminar os intermediários na di fusão edistribuição, para atender diretamente os leitores e aumentar mais aindao rendimento de seus próprios investimentos, graças ao preço na trans-missão do arquivo.

A concorrência da edição eletrônica é, então, convocada a transfor-mar, em torno de certo número de pontos essenciais, as condiçõesmesmas da escrita, a formatação do texto, sua disponibilidade para oleitor, enfim, a leitura propriamente dita.

Em face da proliferação da escrita e da "impressão", a leituraarrisca-se a tornar-se ainda mais individual e solitária, mais rápida eseletiva também, porém, do mesmo modo, mais interativa d o ponto devista do leitor, que reencontra o direito de interferir no texto que lhe éproposto. E le utilizará, também, cada vez com mais freqüência, osrecursos de um hipertexto.

A composição tipográfica passará, daqui até uns quinze anos, peloembargo que a eletrônica exerce, bem como pela digitalização dostextos, que tenderão a circular sob uma pluralidade de formas, emproporções que variam conforme os tipos de textos. Hoje, parecelegítimo pensar que a disponibilização e circulação dos textos,por meiode procedimentos e com suportes eletrônicos, têm boas perspectivas deserem válidas para diversas categorias de textos:

A informação cotidiana: quanto mais a rapidez é exigida, maisiminen temente o texto é perecível; a maioria de nossos jornais nospropõe, já , edições on Une.

A informação de tipo enciclopédico que poderá, desse modo, fazerfrente às necessidades de capacidade de armazenamento, deatualizaçãopermanente e de consulta pontual para um número crescente deusuários. Ou, ainda, sob o mesmo modelo, os manuais escolares,propostos aos alunos; estes manuais serão acompanhados demateriaispedagógicos, cada vez mais atraentes e eficazes.

A consulta a distância de livros e revistas, através da alocação emredes de bibliotecas, e o acesso pela web a publicações digitalizadas.

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Não existe aqui o menor paradoxo em relação àqueles que, por profis-

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são, se apresentam ou sepercebem como os maiores defensores do livro,uma vez se arriscam a ser, também, os principais usuários desta biblio-teca universal com a qual sonham há tanto tempo.

A publicação e circulação de textos complexos, especializados ouraros, redigidos em língua d e rara difusão, destinados a um número deleitores muito restrito para poder passar pelos circuitos tradicionais deedição e da livraria.

A s comunicações internasna República d as Letras, já tão amplamen-te transformadas pelo uso do telefone, ao ax, e da Internet de modo que

as correspondências em suportes tradicionais tê m sido esvaziadas emse u conteúdo essencial.

Pode-se também supor que a escrita de certos textos, não necessaria-mente sua totalidade, tenderá a se transformar para levar em contapossibilidades novas, abertas no ambiente eletrônico da comunicação.A escrita tenderá então a tornar-se menos individual e mais coletiva,apelando para verdadeiros "cenógrafos" e especialistas de diferentesmídias e de diferentes técnicas.

Possíveis ou verossímeis, todas estas escolhas, todas estas evolu-

ções, todos estes compromissos ou divisão de tarefas confirmam,plena e integralmente, o lugar atual, central, do livro como instru-m e n t o de um diálogo direto e sem intermediário entre um autor e umleitor, através de qualquer coisa que continuamos a chamar de texto.U m texto q u e n ã o existe senão porque existe u m a forma acabadaque lhe foi atribuída por seu autor, seja por um transcodificador,mesmo desconhecido, seja pela tradição editorial. E porque háleitores é que cada leitura -- diferenciada, individual e livre -torna-se, a cada vez, viva.

Tudo no s permite pensar que esta relação esteja destinada a perdurar,

embora tudo esteja se transformando. Que ela seja "eterna"!Nenhumhistoriador deixará de se aventurar emdize-lo, mesmo que, como é meucaso, aconteça-lhe de apenas desejar.

(tradução do original francês deClaudius Bezerra Gomes Waddington

& Carlos Sepúlvedá)

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1 Roger Chartier. "Lês représentations de 1'écrit", in Culture écríte et

société. L'ordre dês livres ((XlVe-XVIIIe siècle). Paris, AlbinMichel,'1996, pp. 33-35.

2 Umberto Eco, "D e internet à Gutenberg", Debate (Institucio' Alfonsei Magnànim, primavera/verano 2000), n° 69, "La muerte (incierta)de i libro y su cultura", pp . 66-75.

3 Charles F. Sabei e Jonathan Zeitlin (eds.). World of possibilities.Flex ib i l i ty and mass production in weste rn industrialization.Cambridge/Paris: Cambridge UniversityPress/Maison dês Sciencesde l'Homme, 1977.

4 Roger Chartier. Lê livre en révolutions. Paris, Lê Seuil, 1977, pp.146-148.

5 Cario Ginzburg. II f romaggio e i vermi. Turin, Einaudi, 1976, pp. 4,10 e 35. (Trad francesa porMonique Ay mard . Lê fromage etles vers.Paris, Flammarion, 1980, pp. 34,40 e 65).

6 Steve Silberman. "Ex libris. La satisfacción de 'enrollarse' con unbuen dispositivo de lectura digital", in Debats, cit., pp. 94-103.

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A C U L T U R A D O FI M D E TUDO:DOFIM

D A C U L T U R A A O F IM D O LIVRO*SÉRGIO PA U L O R O UA N E T

U m poeta bras ileiro deflagrou uma polêmica célebre, há alguns anos,d izendo que vivíamos uma época "pós-tudo". Hoje es tamos vivendoum a síndrome conexa, qu e poder íamos designar como a época do " fi mde tudo", ou, se qu iséssemos ser pedantes , a era do "pan-escatologis-

mo". Estaríamos vivend o o f im da ideologia, o f im da utopia , o fim dageograf ia, o f im da his tór ia , o f im do estado nacional, o f im do h o m e me o f im da mod ernidade, para não fa larmos do f im do mun do, anunciadopelas seitas apocalípticas, às quais pertence por direito de ant igüidadeo r iquíss imo tema do f im de todas as coisas. Só não está à vista,aparentemente, o f im do própr io pan-escatologismo, o f im da época dofim de tudo. Sem dúvida, esse es tado de espír i to é es t imulado pelamudança d o século e do m ilênio, e ta lvez se d issipe quando passar aatual vaga de excitação milenar is ta .

Entre as várias coisas que estão acabando, um lugar de honra éreservado ao l ivro, em face da a tual difusão de tecnolog ia d igita l , quecria a f igura do l ivro elet rônico. Bil l Gates e outros agentes dabibl ioclast ia se a legram com isso, e se t ransformam nos profetasinspirados da deusa Web e do seu esposo imorta l , o deus Bit . Mas,em gera l , o s in t e l ec tua is se h o r r o r i z a m . A té nis so se d e m o n s t r a o

* Pales tra pronunciada no simpósio "O lugar do livro entre a nação e o m u n d o " .Bibl ioteca Nacional - Rio deJaneiro, 28 de agosto de 2000.

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caráter " m i le n a r i s t a " , ou qui l iást ico, do clima atual , porque segun-do uma visão tradicional, agora desmentida pelos historiadores, a

fo rma, o d a opos ição ent re cu l tura e c iv i l i zação. A cul tura des ig-

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passagem do ano mil ter ia sido acompanhada po r fenômenos dehisteria de massa, que ora se mani fes tavam sob a forma do pânico,ora sob a forma da esperança num a vida melhor, além da s calamida-des da vida presente.

Mas m ilenarismo à parte, pergun to-me se não haveria um equívocode acento nessa angústia gerada pelo f im do livro. Seria, realmente,a crise do livro qu e tanto preocupa nossos intelectuais, ou algo qu e

está po r trás dessa crise, a crise de cultura, da qual a crise do livroseria, senão um epi fenômeno, pelo menos um s in toma? O problemaé que só se lê hoje James Joyce em livro digital, ou que não se lê, detodo, James Joyce, qualquer que seja o suporte dessa leitura? Se asegunda parte da disjuntiva fo r verdadeira, então não é o livro queestá em crise, e sim a cultura. Por isso é ela que convém interrogar

' primeiro, fazendo diagnósticos e vaticínios sobre se u futuro, som-brios ou otimistas, antes de interrogarmos o l ivro, cujo destino serásempre solidário da cultura que ele contribui para formar, e da qualconsti tui o veículo mais prestigioso.

II

A angústia co m relação ao desaparecimento da cultura vem de umavelhíssima tendência, que os romanos já exteriorizavam, quandodeploravam a perda de prestígio da cultura grega, e que se mani fes touno s vários avatares da "querela do s antigos e modernos" , do século17 às vanguardas contemporâneas. De modo geral , os "antigos" viamnas inovações culturais dos "modernos" investidas contra a culturaclássica e, por extensão, contra a cultura em s i . Os "mode r nos" , porsu a vez, não se faziam rogar, e se esforçavam po r confirmar esses

temores. O ni i l ismo do s dadaístas, qu e queriam desart icular todas asformas tradicionais de expressão artística, e dos futur is tas , qu e que-riam incendiar os museus , é apenas o avesso da velha angústia co mo fim da cultura.

Com o advento da modernidade, que consagrou a hegemonia daclasse burguesa e pôs em circulação valores mercantis, ligados aoganho e à uti l idade, o fantasm a do fi m da cultura se difundiu sob nova

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nava a esfera simbólica - religião, arte, literatura - enquanto acivilização aludia ao mundo material - a economia e a técnica.

Desde o início, a polarização teve intensa carga ideológica. Natradição do romant i smo a lemão, de Herder a Schiller e Hegel, acivi l ização exprimia a condição fragmentada do homem moderno,que, por estar escravizado à máquina e aos valores comerciais, perdeua visão do todo, da unidade original c om a natureza. A cultura - aalta cultura, a cultura clássica - era uma via para corrigir os males d acivilização, contribuindo para a reconquista da totalidade perdida.

Essa ideologia experimentou violenta guinada nacionalista a part i rda primeira guerra mundial. O s alemães passaram a ver-se como opovo da Kultur, associada à autentic idade, ao inst into vital, à tradi-ção, e viram, nos franceses, os protagonistas da mera Zivilisation,que acei tava como inevi tável o desmembramento do homem moder-no, substi tuía a história pela razão, baseava-se em valores m ateria-listas e uti l i tários, e era pervert ida por um refinamento excessivo, queafastava o h o m e m da sua verdade e da sua natureza. O s francesesacei taram em parte essa atribuição, considerando-se, realmente, os

porta-vozes da c ivi l ização, mas a palavra t inha para eles um conteúdoposi t ivo. A civüisation consagrava a hegemonia da moral e do direi-to , e, nesse sentido, o país dos direitos do homem encarnava acivilização em sua forma mais alta, enquanto a Kultur de além-Reno- os franceses usavam a palavra i ronicamente, em alemão - era, naverdade, o reino da barbárie.

Com isso, o velho topos do fi m da cultura (ou da civilização)sofreu um a transfiguração chauvinista. Vi toriosa a "civ i l ização" ,seria o f im da Kultur, segundo os alemães, ou , pelo menos, o f im doOcidente , na l inguagem de Spengler; vitoriosa a Kultur, seria o fimda civilização, segundo os franceses, consagrando, assim, o pr imadoda força e do inst into sobre a razão e o direito.

A velha distinção fo i retomada pela Escola de Frankfur t , agoranuma ótica marxista. Marcuse usou a polaridade explic i tamente: ocapi tal ismo seria hoje um a sociedade de massas, em que a esfera dacivilização teria absorvido a esfera da cultura. Com isso, a sociedadetornou-se unidimejisional, perdendo su a t ranscendência co m relaçãoao existente. De modo menos direto, a velha nostalgia pela cultura

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p e r d i d a perme ia a crítica à indú s t r ia cu l tu ra l, f e i ta p or Ad o r n o e subst ituída por cul turas, no plural . Com isso, o tema do fim dacultura foi redefinido em termos part icular istas, herder ianos, em

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H o r k h e im e r . Reduz ido à mera "c iv i l i zação", o I lumin ismo passoua ser o cul to do mundo tal como é , sem possibil idade d e fazer apeloaos valores ideais que outrora habitavam a esfera da cul tura, e queofereciam tanto um padrão cr í t ico como uma perspect iva utópica:um a "promesse d e bo n h e u r " , nas palavras de Stendhal . A angúst iacom o fim da cul tura assumia agora a forma do horror diante dodesaparecimento da única instância capaz de proporcionar uma exte-rioridade com relação ao todo social. Todos os f rankfurtianos eramsuf ic ien t emente marxistas para saberem que a cultura era so f r imen tosublimado, dist i lação ideal de relações de violência; mas sabiamtambém que, sem ela, o homem estar ia entregue ir remissivelmente àfact icidade bruta do que é . É por isso qu e Adorno disse qu e escreverpoesia depois de Auschwitz era um ato de barbárie, mas acrescentouque de ixar d e escrever poesia seria igualmente bárbaro.

É esse o sent ido d a crítica cultural de Adorno e Horkheimer. Elescombatem a pseudocu l tu ra di fund ida pela indústr ia cul tural , porqueela não tem nenhum dos elementos de t ranscendência cont idos na al tacul tura. Em sua estereot ipia, em sua banal idade, em sua unidimen-

sional idade, a cul tura de massas entroniza o mero entretenimento,bloqueia qu alquer reflexão cr í tica e sub st itui a utopia de um m undosituado além do existente pelo m ito do existente como real ização dautopia. Nessa perspect iva, o fantasm a do fim da cul tura é , na verdade,o fan tasma da sub st ituição da alta cul tura por uma cultura de massasque nada mais é que o lado lúdico d a esfera d a " civi l ização", o m u n d oda economia e da técnica.

Mas o topos do fim da cul tura experimentou decisiva modificaçãonos anos que se seguiram à publicação da Dialética do esclarecimen-to . Nesse período, qu e coincidiu com o m o v im e n t o d e descoloniza-ção, a in im iga passou a ser a cul tura me tropolitana, e não a cul turad e massas. Paralelamente, houve um deslocamento no conceito d ecultura. Ela não designava m ais um acervo de saberes, norm as e ar tes,como a moral, o direito, a ciência, a filosofia, a literatura, a música,a danç a, o teatro, e sim, lato sensu,um conjunto de valores, crenças,símbolos, modos de agir , de fazer , de pensar . Em suma, o sent ido dacultura como culture cultivée fo i sendo reprimido, e, g rada t ivamen te ,subst ituído pelo sent ido antropológico. A cultura, no singular , foi

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oposição ao tratamento universal is ta, marxista, que lhe dera Adorno.O espectro que assombra o escr itor pós-colonial não é o fim da al tacul tura, e s im o fim da cultura nacional , entendida nu m sentidoantropológico amplo, e das várias cul turas nacionais , ameaçadas pelorolo compressor de uma cultura ocidental hegemônica.

Essa redefinição experimentou um reforço desmedido com o tér-mino da guerra fria, e o advento do tema da global ização. A gora não

se t ratava mais de proteger a cul tura nacional contra as invest idasdescaracter izadoras que vinham da ant iga metrópole , mas de prote-gê-la contra um verdadeiro catacl ismo planetár io , um capital ismomund ial izado que atravessava todas as fronteiras e arrasava todas asespecificidades culturais. O velho tema adorniano da crítica da cul-tura de massas não estava ausente , porque, af inal, as mercadoriasculturais qu e invadiam os rincões mais longínquos dos nossos paísesnão eram sinfonias dodecafônicas e quadros abstratos, e s im filmessobre artes marciais e discos d e Ma d o n n a e Michael Jackson. Mas ofoco d o horror provocado pela global ização cul tural é c la ramen te

outro. O q u e assusta é o f im, considerado iminente , d a "nossa"cul tura - fest ivais de bumba-meu-boi, rodeios, folhetos de cordel,esta tuetas do mestre Vital ino - e não o declínio da al ta cul tura. Anteso t ema do f im da cultura t inha um conteúdo el it is ta; hoje t em umconteúdo xenófobo. O q u e é considerado repulsivo na cultura demassas global é o fato de ser global, e não o fato de ser cul tura demassas.

So b essa nova aparência, o fan tasma do f im da cultura assusta, eco m razão, porque o medo que ele evoca pertence ao domínio do queFreud chamava de Realangst, o medo não-neurót ico, que vem dareal idade. É um fato que a diversidade cul tural está sendo am eaçadapelas pressões niveladoras que vêm da cultura global. E é tambémum fato , por mais que essa dimensão do tema do f im da cultura tenhasido recalcada pelos ideólogos do nacional-populismo, que a globa-lização acelerou a generalização d a cultura de massas, em de t r imen toda al ta cul tura, qualquer que seja a sua nacional idade, n isso consis-t indo o que talvez seja o seu aspecto mais problemático. Mas ser iaoutro fato, também, que o reforço das ident idades locais , das t radi-

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ções locais , das raízes locais , seria o m e lhor exorc i smo paraexpulsa r a a s sombração?

Marx usa quase as mesmas pa lavras que Goethe. No t rechocé lebre do Manifesto comunista em que descreve, nos mínimos

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A meu ver, todos esses particularismos são perigosos, porquepartem de uma visão ontológica do próprio grupo e absolutizam aidentidade d o O utro, transformando-o num a essência inimiga e n u m aextraterritorialidade irredutível. Sã o máquinas de fabricar es trangei-ros. A proliferação desses particularismos está transformando nossasociedade no que um autor já chamou d e sociedade heterofí l ica,votada ao culto da diferença. Eles o põem ao pesadelo da homogenei -zação total o pesadelo da retribalização do mundo. Além de ética epoli t icamente inaceitáveis , particularismos desse gênero sã o inefica-zes para conter o globalismo, que, por definição, cruza todas asparticularidades e se evade a todas as jurisdições nacionais.

Diante disso, o que fazer?A resposta exige um a análise mais detida do que entendemos po r

cultura global. Permito-me, para isso, retomar algumas idéias quedesenvolvi em ensaios recentes.

A internacionalização da cultura não é um fato inédito na his tór iada humanidade. O f enô m eno se deu no império alexandrino, quand o

a cultura grega se impôs; no império romano, em que o latim e o gregose generalizaram; na Idade M édia, unif icada pelo uso do latim e porum a religião comum ; e, no período das grandes navegações ibéricas,em que o uso do português e do castelhano interligou os várioscontinentes. Ela conheceu novos impulsos, desde o século 17, com aentrada em cena de outros atores , como a Holanda, a França e aInglaterra. Mas foi a partir do século 19 que a expansão mundial docapitalismo gerou a consciência de que uma cultura mund ial es tavaverdadeiramente surgindo.

Talvez a primeira referência a essa cultura esteja em Goethe.N u m a de suas conversas com Eckermann, ele disse que "se nósalemães não olharmos além do círculo estreito do nosso própriohorizonte, cairemos faci lmente nu m obscurantismo pedante. Por issogosto de olhar para o que se faz nos países estrangeiros e aconselhoa todos que façam o mesmo. A l i teratura nacional nã o quer dizergrande coisa hoje em dia. Chegou a hora da l i teratura mundial(Weltliteratur), e cada um de nós deve contribuir para acelerar oadvento dessa época".

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porm enore s , o que hoje chamam os de globalização, Marx af irma que"os produtos intelectuais das diferentes nações se transformam empatrimônio comum. A unilateralidade e a es trei teza nacionais setornam crescentemente im possíveis, e uma l i teratura mun dial (Wel-tliteratur) se constitui a partir das várias literaturas nacionais elocais".

Tanto Goethe como Marx de ixam claro que a "li teratura mundial"- os dois usam a mesma expressão, Weltliteratur - funciona comoalusão metonímica à cultura como um todo. E ambos a descrevemcomo um fenômeno moderno.

É um a pista importante para compreendermos a na tureza d a cul-tura global e explorarmos os meios que permitam superar suasperversões.

Habitualmente, a modernidade é entend ida na significação que lhede u M ax Weber, como o desfecho de processos cumulativos deracionalização, ocorridos no Ocidente a partir d a reform a protestante.Segundo essa acepção, num a sociedade moderna as ins t i tuições/ww-

cionam melhor que num a sociedade pré-moderna. Por isso, podem osfalar em uma concepção funcional de modernidade.M as existe um segundo vetor da modernidade, que não tem a ver

co m a eficácia e sim com a autonom ia. Sua matriz é o proj eto civiliza-tório da Ilustração, que não busca a funcionalidade da s estruturas e sima emancipação dos indivíduos. É a concepção emancipatória de mo-dernidade.

A modernidade é a coexis tência contraditória desses dois vetores.Ela é uma prisão, um a stahlhartes Gehause, na expressão de Weber ,m as também uma promessa de auton omia, é o reino da racionalidadeinstrumental , que submete o homem a imperativos s is têmicos, mastambém o prenuncio utópico de uma humanidade mais livre.

Pois bem, a modernidade tende à internacionalização - ou àmundialização - nesses dois vetores.

Em seu vetor fun cional, a modernidade percebe as barreiras locaise nacionais como obstáculos para o pleno desdobramento da lógicada eficácia e do rendimento. Conseqüentemente, a modernidade va iderrubando essas barreiras . Ela passa prim eiro dos particularismos

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loca is , que impunham l imi te s à ação do cap i ta l , pa ra o e spaçomais amplo cr iado pelo es tado nac iona l , q u e p u n h a à sua d ispos i -

d o t a d a d e estruturas qu e facu l tam a t rans fo rmação d e bens cul turaisem mercadorias e permitem a difusão no m undo in te i ro de p rodu tos

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ção um mercado in teg rado . E m seguida, os próprios estados nacio-nais se tornam demasiado estre itos, e ela ultrapassa esses l imites,mundia l izando-se . É a globalização.

M as a modernidade se mun dial iza, também , em seu vetor emanci-patório, porque, so b esse aspecto, el a deriva de um projeto planetár io ,o da I lustração, que visa à autonomia de todos os seres humanos,independentemente de sexo, e tnia, cul tura ou nação. Podemos cha-m ar de universalização a esse movimen to de extroversão da moder -n idade em ancipa tó ria .

Os agentes da global ização são os execut ivos t ransnacionais , aselites tecnoburocrát icas, os especial istas d a comunicação po r saté l i-tes, e, em geral, os "intelectuais orgânicos" do novo príncipe - a"burgues ia global". O s agentes da universal ização são as organ iza-ções não-governamentais , os part idos pol í t icos, os sindicatos, osparlamentos, os governos dem ocrát icos, os art is tas, e os in te lectuaiscr í t icos comprometidos co m ideais universal is tas. A global ização éa união d os conglomerados. A universal ização é a un ião d os povos.

Somos objetos da global ização. Somos sujei tos da universal ização.A aceleração dos processos d e mundia l ização , em seus dois veto-res, está levando, em nossos dias, a algo qu e poderíamos chamar d esociedade mundial . É uma sociedade ainda relat ivamente amorfa ,porque não dispõe, por enquan to , d e estruturas políticas. Mas jádispõe de uma cultura própria, irredutível à soma das culturas nacio-nais. Assim como as sociedades nacionais geram culturas nacionais ,a sociedade mundial gera uma cultura mundial .

Ocorre que, sendo, como é, produto d os do is g randes movime n tosda mundial ização moderna, a cul tura mundial contém elementos,tanto do vetor funcional, como do vetor emancipatór io da moderni-dade. Por isso, ela é ambiva len te . A cu l tu ra mundia l é a un idadeantagoníst ica d e duas culturas: a cultura global , produzid a pela glo-bal ização, e a cultura universal, produzid a pela un iversal ização.

No sent ido antropológico a que me refer i antes, em que o termo"cultura" designa um repertório d e crenças, at itudes, representaçõese significados simbólicos, a cultura global privilegia valores ligadosao ganho, à eficácia, à competição. Num sen t ido mais mater ial , e la é

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culturais de massa, que tendem a expulsar as cr iações cul turais"autênticas".

Segundo a bela análise de Ren ato O rtiz, a cultura global correspondea uma nova fase, transnacional e não simplesmente internacional, daorganização capitalista da produção e do consumo. A Disneylandia, oblue-jeans e o McDonald não resul tam de um projeto imperialistanorte-americano, e sim das características dessa nova fase. A novarealidade seria ofastfood, não o McdonakTs; ofastfood correspondeao s ritmos m ais velozes da vida, neste final de século, e pouco impo rtaa nacionalidade das empresas que encarnam essa realidade. Há outrasfirmas especializadas nofastfood - Brioche dorée, Quick e Free Time- todas três são francesas. O cinema se transnacionaliza cada vezmais:um número cada vez m aior de filmes é rodado na Áfr ica, por um estúdiode Hollywood, com um diretor europeu, e financiamento japonês. Owestern há muito deixou de ser privilégio americano. Hoje ele é produ-zido naAustrália (Silveradó) e na Itália - o western spaghetti . Háalgunsanos, o público americano reagiu com choque à notícia de que os

japoneses t inham comprado companhias cinematográficas americanas.Não havia m otivo para tanta surpresa. Afinal, o capitalismo global éfundamentalmente cosmopolita. Isso fo i perfeitamente expresso por umempresário japonês, para quem "antes da ident idade japonesa, antes dafiliação local, antes do ego alemão ou ital iano, vem o com promisso comum a missão global, única e unificada", o compromisso com os cl ientes.Um documento da Brown Bovery deixa isso claro: "Não somos umacompanhia sem teto; somos uma companhia com vários lares". Essecosmopolitismo é especialmente evidente na esfera da cultura. Nummomento dado, a indú stria dos bens culturais pode estar indiferentemen-te monopolizada por conglomerados americanos, suíços, alemães oujaponeses, e o panorama pode mudar da noite para o dia, ao sabor d asfusões e aquisições, qu e variam co m estonteante velocidade. A indústr iafonográfica, por exemplo, é dominada por empresas de várias naciona-lidades, corao a Bertelsman, a Polygram, a Sony, a Virgin. Se a Sonyabsorvesse suas concorrentes, isso não bastaria para caracterizar umimperial ism o musical japonê s, porque, no momen to seguinte , a alemãBertelsman poderia capturar o mercado.

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Embora menos visível que a cultura global , a cul tura universaltem-se ampliado desde o tempo de Goethe e de Marx. No sent ido

global, nã o devemos refugiar-nos em particularismos a contracorrente,porque eles não nos perm itiriam lidar com fenômenos que se sobrepõem

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antropológico, e la é impregnada de valores humanistas, não-ut i l i tá-r ios, t raduzindo a consciência de que pertencemos à mesma espécie ,de que estamos expostos aos mesmos r iscos, de que todos os hom ense mulheres, independentemente de etnia ou nação, const ituem umacomunidade de dest ino. A ciência, cada vez mais cosmopolita , setorna crescentemente sensível à dimensão é t ica e política d o saber.A mora l se universal iza, num sen t ido human is ta , a par t i r d e propos tascomo a de Hans Küng , que pretende fundar uma ét ica ecumênica, deHans Jonas, qu e lançou as bases para um a ética d a responsabilidademund ial , e a de Jürgen Haberm as, que concebeu uma ét ica discursivacapaz de ser aceita universalmente. O dire ito se universaliza, atravésde instrumentos como a Declaração Universal dos Direitos Human os,d e 1948, a Convenção para a Prevenção do Genocídio, d o m e s m oano, a Declaração sobre a Abolição da Escravidão, de 1956, ou aDeclaração contra a Tortura, de 1975, e, mais recentemente, atravésda fixação do conceito da jur isdição universal nos cr imes contra ah u m a n id a d e e da inst itu ição d o Tribunal Penal Internacional . No

sentido estético, limitado às chamadas "artes", a cultura se univer-sal iza rapidamente, graças à Biena l d e Veneza e de São Paulo, nocampo das artes plásticas, ao Pen Clube ou ao Parlamento de Escri-tores, no campo da literatura, a festivais como o d e Avignon , nocampo do teatro e da dança, ou aos festivais como o de Cannes eBerl im, no campo do cinema.

Não há guerra de m orte entre global ização cul tural e universal iza-çã o cultural. Elas sã o opostas, m as dialet icamente complementares.A m esma revolução técnica que viabil izou a global ização da cul turapode se r usada pelos que pretendem un iversal izá- la. A s duas cul turassão partes da modernidade, indissociáveis uma da outra. Sem acultura global , a cul tura universal não ter ia os meios técnicos paraimplantar-se , e , sem a cul tura un iversal , a cul tura global carecer ia deconteúdo é t ico.

Mas há uma relação hierárquica entre as duas. É da cul lura univer-sal que vêm os impulsos para t raçar seus rumos à cul tura global ,supervisioná-la, reti f icar seus desvios. E, com isso, encontramo s umaresposta à nossa indagação. Para combater os excessos d a cultura

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a todas as culturas, e sim agir no próprio terreno em que se dá a culturaglobal: o da mundialização. O corretivo da mundialização pelo globalismoé a mundialização pelo universalismo.

Com isso, nosso fantasma do fim da cultura começa a esvair-se. Acul tura não precisa ser paciente terminal em nenhum dos dois sent i-dos. Não é necessár io temer a ext inção da cul tura no sent ido d a al tacul tura, porque, como o s processos de universal ização serão condu-

zidos, em tese, po r cient istas, f i lósofos e artistas, ou por seus repre-sentantes autor izados, eles saberão evitar a tr ivial ização d e suascriações. E o fim da cul tura no sent ido antropológico é igualmenteevitável . É certo que a global ização tende a nivelar todas as part icu-lar idades, porque sua fo rça motr iz é a ot imização do ganho, atravésde uma racional idade de mercado que supõe a cr iação de espaçoshomogêneos. Mas a universal ização é pluralis ta, porque seus f ins sópodem ser at ingidos por uma racional idade comunica t iva , que supõeo desejo e o poder dos sujeitos de defenderem a especificidade dassuas formas de vida.

É óbvio que os processos de universalização só poderão ser plena-mente eficazes quando chegarem à sua culminação lógica, a implanta-ção de uma democracia m undial , dotada do s mecanismos necessár iospara corrigir os abusos da globalização, m as isso é assunto para outrosimpósio.

Podemos agora abordar a segunda questão, a idéia do f im do livro.Essa idéia encontra sól ida confirmação na real idade: as estatísticasmostram que as t iragens estão ficando cada vez menores, e que há

cada vez menos le itores.Mas a crise do livro não precisaria necessariamente indicar uma

crise de cultura. Por exem plo, as tiragens podem ser pequen as, porqueo alto preço de cada exemplar inviabiliza su a compra po r parte decamadas mais amplas da população. Essa explicação é, sem dúvida,decisiva no Brasil, onde o livro está entre os mais caros do mundo .Medidas de ordem tributária provavelmente ajudariam a resolver esse

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problema. O u podem se r pequenas, porque grande parte da popula-ção é analfabeta, ou não adquiriu na escola o hábito de ler. Tam bém

tou, severamente : "Jacques, qu'est-ce qu e c 'es t que ca?" O peque-no vândalo respondeu: " C ' es t Ia révolution culturelle!"

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aqui é um problema localizado; situadc na escola, e não precisa pôr emquestão a cultura como um todo.

Mas não são esses fatores tópicos que assustam, e sim os sinais deque o livro estaria sendo deslocado pelas novas tecnologias de infor-mação e comu nicação: em vez do livro, o CD R o m , e, em vez do livroimpresso, o livro digital. Por que nos assustamos? É preciso confes-sar: em parte, por tradicionalismo.

Todos n ós, intelectuais, vivem os dos livros e para os livros. Somosum pouco como aquele personagem de Eça de Queirós, qu e adormeceno meio de milhares de livros, no palacete em que vivia, em Paris, esonha qu e tudo tinha se transformado em livros: as casas eramconstruídas com livros, dos ramos dos castanheiros pendiam livros,e as mulheres usavam vestidos de papel impresso. Ele escala oobelisco da Concorde, evidentemente um a montanha de livros, echega ao céu. Encontra Deus, sentado entre vetustíssimos fólios,lendo. O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria.

Em nossa imaginação, somos todos diretores da Biblioteca de

Babel, quando n ão da Biblioteca de A lexandria , uma biblioteca ideal,incorruptível, qu e nunca fo i destruída pelo fogo. Eduardo Portellate m sobre seus confrades a vantagem, ou a d esvantagem, de estarvivendo na realidade o que para nós é um a fantasia.

Como se isso não bastasse, somos incorrigíveis fetichistas, fasci-nados pelos l ivros enquanto objeto s , e não somente como depo si tá-rios de idéias ou informações. Não há prazer sensual comparável aode acariciar as páginas de um livro da Pléiade, virando as págin as depapel couché como se fossem as etapas de um jogo amoroso. Folhear,no caso, eqüivale a desfolhar. É nisso que consiste, literalmente, oplaisir du texte. Essa atitud e, meio perve rsa e meio religiosa, é quase

um convite à ati tude oposta , antifetichista e dessacralizadora. Umamigo meu, du rante os acontecimentos de maio de 1968, t inha enco-mendado as obras de Flaubert, na Pléiade, e passou o dia antegozandoo momento em que chegaria em casa, depois do trabalho, paraexaminar suas novas aquisições. Mas, em casa, encontrou os livrosprofanados pelas unhas raivosas do seu filho Jacques, de 10 anos,com a palavra: "Merde!", escrita em toda parte. Meu amigo pergu n-

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Sim, somos filhos da galáxia de Gutenberg, e não poderíamosacei tar facilmente a passagem para outra galáxia. Nisso, não somosmui to diferentes de Claude Frollo, arquidiácono da catedral de No-tre-Dame, no romance de Hugo: ele opunha o livro impresso àcatedral, d izendo que uma coisa mataria a outra, ceei tuera cela. Queseria de nós, se a Internet matasse o livro?

Levada às úl t imas conseqüênc ias , es sa a t i tude é , cer tamente ,

irracional. Só um cego negaria as extraordinárias contribuiçõestrazidas pelas novas tecnologias para a preservação, difusão e atéformulação do pensamento. Só por uma d i s torção ideológica mui -to p ro funda seria possível negar os enormes serviços que elasprestaram ao próprio l ivro, e que vão desde a poss ib i l idade deconsul ta r à d i s tânc ia os catálogos d as principais bibliotecas d om und o até a de comprar l ivros raros com um simples clicar demouse. Mas, mesmo que elas estivessem de fato deslocando olivro, não seria necessariamente uma tragédia. O livro é essencial-mente um instrumento, um instrumento valiosíssimo, mas um instru-

mento. O utros instrumentos podem surgir, capazes de coexis ti r como livro, sem expulsá-lo. Em si, a crise do livro não precisa indicarum a crise de cultura. Não nos preocuparíamos tanto, se houvessealgum indício de que as novas tecnologias estariam realmen te cum-prindo o papel qu e lhes atribuem os seus propagandistas, e s e captás-semos algum sinal de que atrás dos conteúdos transmitidos por essesveículos houvesse uma cultura vigorosa e intacta, como existiu, naFrança, no século 18 e em parte do século 19, isto é, no apogeu dacultura do livro. Nesse caso, haveria crise do livro, mas não crise decultura. Com a invenção da imprensa, por exemplo, houve crise natecnologia tradicional, pela qual os livros eram copiados nos mo stei-

ros, mas não houve crise de cultura, que, pelo contrário, floresceucomo nu nca, pois a imprensa tornou acessíveis autores modernos epôs à disposição de um público mu ito maior que no passado todos ostesouros da sabedoria antiga.

Mas, se nossa análise é verdadeira, existe, sim, uma crise de cultura,e é ela que produz, em grande parte, a crise do livro. As pessoas nãolêem, não por serem analfabetas, mas por serem vítimas do fenôm eno

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social do "iletrismo", a recusa de ler, mesmo quando dominam atécnica d a leitura. É nisso, fundamentalmente, que a globalização é

xote para a identidade espanhola, ou pelos Lusíadas para a identidadeportuguesa.

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fatídica, não por dissolver identidades, muitas d as quais devem se rmesmo dissolvidas, mas por planetarizar a massificação, levando o lixocultural aos confins do universo, e demolindo, com isso, a curiosidadeintelectual, sem aqualnão existe o prazer da leitura. É da cultura global,e dos canais utilizados para sua difusão, como a televisão por satélitese a cabo, que vêm as contratendências que inibem a leitura. O homemnão lê , porque fo i condicionado para não ler, passando por uma

pedagogia da não-lei tura. Não lê, porque a leitura exige esforço, e amídia lh e oferece um a gratificação instantânea;não lê , porque a leituraimplica u m a historicidade, um mergulho temporal na cronologia d ospersonagens e d a trama, enquanto a mídia o habituou a um presenteeterno; não lê, enf im, porque passa por um aprendizado regressivo quefa z com que regrida do estágio d o pensamento conceituai, sem o qualnenhuma leitura é possível, para o estágio do pensamentopor imagens,e fêmeras por natureza, sem ligações entre si, e que não podem fazeroutra coisa senão refletir um mundo também desconexo, por issoininteligível, e, portanto, intransformável. E é óbvio que o contrário é

também verdadeiro: porque não lê, o homem não aprende a pensarcausalmente, historicamente e politicamente.Mas, se a crise do livro é solidária da crise da cultura, um otimista

diria que a modificação d a cultura segundo as exigências d o processode universalização levará à superação da crise do livro. Uma vezre t i f i c ados os descaminhos da cultura global, principal responsávelpela resistência à leitura que hoje caracteriza todos os países, o livropoderia reassumir seu papel de guia, companheiro, magister vitae,

que sempre desempenhou no passado, sem que isso signifique oabandono das novas tecnologias, que continuariam cumprindo astarefas que lhes são próprias, sem tornar o livro redundante.

Mas o livro não pode dar-se ao luxo de ser apenas um beneficiáriopassivo e automático da universalização da cultura. Ele pode contri-buir para a consolidação desse processo.

Durante b o a parte d a história, o livro fo i constitutivo para af o r m a ç ã o das identidades coletivas. A Ilíada e a Odisséia foramos fundamentos da identidade grega. O mesmo papel foi desem-penhado pela Divina Comédia para a identidade italiana, pelo Qui-

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Mas, na fase da universalização, não se trata tanto de construiridentidades, como d e desconstruí-las e reconstruí-las, substituindo oconceito de identidade única pelo de identidades múltiplas.Por exem-plo, Michael Walzer sugeriu que uma maneira de "civilizar" o nacio-nal i smo seria integrá-lo em molduras pluralistas mais amplas. Numcongresso sionista dos anos 30, David Ben-Gur ion disse o seguinte:"Pertencemos a vários círculos. Como cidadãos palestinos, estamos no

círculo deum a nação qu e aspira aum a pátria; como trabalhadores, estamosno círculo da classe operária; como filhos de nossa geração, estamos nocírculo do mundo moderno; e nossas companheiras estão no círculo domovimento das mulheres trabalhadoras qu e lutam por sua emancipação".No mundo contemporâneo, as identidades pessoais se estruturam cada vezmais pelo cruzamento dessas identidades particulares.

Podemos encontrar um prenuncio disso em nosso próprio passado.A figura do latino-americano "alienado", que sai do seu lugar deorigem, europeizando-se, sempre fo i vista como odiosa ou ridícula,e, de fato , em grande parte o foi. Mas, de outro ângulo, essa "aliena-

ção" pode ter sido precursora de uma atitude ep i s temológ ica repre-sen ta t iva dos novos tempos. É o topos do exilado lúcido, que, por serexilado, percebe o que as evidências locais impedem que seja perce-bido. É o persa de Montesquieu, ou o pe le -vermelha de Voltaire, quecompreenderam m u i t o melhor a França do século XVIII que todosos sábios europeus juntos. Ora, foram o s brasileiros q ue forneceramaos europeus o modelo desse saber "de fora". Refiro-me aos trêscan iba i s tup inambás que foram levados para a França, no reinado deCarlos IX, e que, segundo Montaigne, observaram coisas sobre aFrança qu e nenhum francês tinha notado. Viram mais claro, porquese u olhar era um olhar estrangeiro: um olhar etnográfico.

Muitos intelectuais latino-americanos foram como esse tupinam-bás do século XVI: já não se sentiam bem em sua pátria e nãochegaram a entrar na cultura européia. Eram forasteiros d o s doislados d o Atlântico. Ouçamos u m trecho d e Minha formação, a obra-prima de Joaquim Nabuco. "Estamos condenados à mais terrível dasinstabilidades, e é isso o que explica o fa to de tantos sul-americanospreferirem viver na Europa Não são os prazeres do rastaquerismo,

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como se cr ismou em Paris a vida elegante dos mil ionários da sulAmér ica ; a explicação é mais del icada e mais p ro funda . É a atração

manual didát ico para o aprendizado da areté grega. Hoje , pelo con-trár io , devemos ler Homero para nos recultural izarmos, para nos

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das afinidad es esquecidas, mas não apagadas , qu e estão em todos nós,da nossa comum origem européia. A instabil idade a que me refiroprovém de que na América falta à paisagem, à vida, ao ho rizonte , àarquite tura, a tudo o que nos cerca, o fundo histór ico, a perspect ivahumana; e que na Europa nos falta a pátr ia , is to é , a fôrma em quecada u-m de nós foi vazado ao nascer . De um lado do m ar, sente-se aausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sen t imen to em

nó s é brasileiro, a imag inação , européia".O que cham a atenção, nessa passagem notável , é que a mental ida-

d e l a t ino -amer icana é de f in ida por uma dupla negação, pela in tersec-ção de duas ausências: na Europa, falta-nos a floresta t ropical , e , noRio, fal ta-nos o Sena. O q u e Nabuco descreve é a experiência de umdesterro permanente.

Mas um século depois, na era da universal ização, talvez se possanegar essa negação dupla, e preencher, com uma dupla presença, ovazio d as duas ausências. Nesse caso, não teremos mais o expatr iado,mas o cidadão d e dois mundos , não o déraciné, no sent ido de Bar res ,

mas o homem descen trado , com uma ident idade nômade, sempre sefazendo, sempre se refazendo, sempre disposto a re lat ivizar todas assuas cer tezas cul turais por sua capacidade d e role-taking, d e assumirincessantem ente o ponto de vista do O utro. O exí lio passo u, de cer tom o d o , a ser a experiência fundadora de uma nova epistemologia: aepistemologia do olhar excêntr ico, porque o exilado é o h o m e m qu ese desenraizou sem se reenraizar , o que se l iber tou de uma part icula-ridade se m entrar em outra.

Para a aquisição dessas ident idades múlt iplas, as novas tecnolo-gias de in fo rmação podem, se m dúvida, desempenhar papel impor-tante. Mas só o l ivro permit ir ia que a aquisição fosse profunda eduradoura. O livro sempre nos permit iu sair de nós mesmos , paramelhor nos r eencon t ra rmos . E le deveria permit ir -nos, agora, sair d enossa cul tura, para vê-la de fora. Esse sair-de-si cu l tural foi prenun-ciado por Goethe, quando descobriu afinidades entre um romancechinês e as novelas d e Fielding e Richardson .

U m jovem grego aprendia a ser grego ao ler Homero . Era uminstrumento d e socialização para a cultura grega, um a paidea, um

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descentramos de nossa cul tura de or igem, do século em que nasce-mos . C om isso, passamos a ser con temporâneos de Heito r e deUlisses, e nos iden t i f ica remos co m várias cul turas, a européia e aasiát ica , que se digladiavam junto às muralhas de Tróia, e tambémcom todas as f iguras da al ter idade que povoam a epopéia, os semi-deuses, os semi-homens , as sereias e os ciclopes, Pol ifemo e Circe.

No início da mod ernidade, surgiu um gênero novo, o do Bildungro-man, o romance que narrava as vicissitudes de um herói que buscavaformar-se, atingir a Bildung, no sent ido dos ilum inistas do século 18,como Kant, Lessing e Herder. A o mesmo tempo, esse processo deautoformação do personagem central envolvia o leitor, que deveria,pela ident if icação com o herói, chegar também à sua Bildung, à suaautoformação.

O pro tó t ipo do Bildungsroman é o Wilhelm Meister , d iv id ido emduas partes, os anos d e peregrinação e os anos d e aprend izado deW ilhe lm M eis te r . São os do is mom entos da Bildung con temporânea .Por um lado, o homem plur iident itár io peregrina pelo planeta mun-

d ia l izado , nu ma v iagem real ou vir tual , e , por outro lado, e le aprende,nessa viagem, a reconhecer-se como hab itante da cosmópole. Nessesent ido, qualquer grande romance, hoje em dia, pode transformar-senum Bildungsroman, porque , em todos , podemos chegar ao O u t ro , avários outros, e , no l im ite , a esse O ut ro gene ra l izado que é o gênerohumano .

E n q u a n t o não chegarmos à utopia (ou ao pesadelo) d a l íngua única,o l ivro só poderá prestar-se a esse objet ivo através da t radução. SeWal te r Benjamin tivesse razão, a pr incipal tarefa do tradutor é a deliberar os ecos d a l íngua pura, apr is ionados no or ig ina l, " to rnand otanto o or iginal como a t radução reconhecíveis como fragmentos de

um a l íngua maior , d o mesmo modo que os est ilhaços sã o reconhecí-ve is como f ragm entos de um vaso ... A verdadeira t radução é trans-parente; e la não recobre o or iginal , não bloqueia sua luz, mas permiteque a l íngua pura, como que reforçada pela t radução, br ilhe maisin t ensamente sobre o original". Mesmo sem esses mot ivos mess iâ -nicos, não há dúvida de que a t radução permite à nossa l ínguatranscender-se em direção às outras, e obriga as outras l ínguas a se

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t ranscenderem em direção à nossa. Pela tradução, nossa culturase abre ao m und o , e nossa própria l íngua pode se r m od i f i c a d a .

a esse preço possamos con s t i tu i r um a cul tura universa l . A escolhaoposta é m ais arriscada ainda. Na etapa da mundialização, não há

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Pois , numa grande t radução, como também observou Benjamin,não se trata tanto de t rans formar a língua estrangeira na nossa, masde deixar a nossa língua ser t ransformada pela língua estrangeira. Foio que fez Hõlderlin ao traduzir Sófocles: a l i teral idade da traduçãoviolentou de tal maneira o alemão, que ele deixou de ser o que era, econverteu-se por ass im dizer numa nova língua. As traduções deShakespeare feitas por W ieland , Tieck e Schlegel o germanizaram de

ta l modo, que, para os alemães, ele deixou de ser um autor inglês,integrando-se, de modo indissolúvel, à tradição cultural alemã. M asa tradução está também a serviço da língua estrangeira, não só nosentido trivial de que ela permite a difusão de uma obra fora das suasfronteiras l ingüís ticas d e origem, como no sentido d e que, numagrande tradução, a obra chega à plenitude do seu sentido. A traduç ãofaz o original dizer o que ele não sabia que sabia. Não sei se Kantrealmente só compreendeu sua filosofia depois de ler a traduçãofrancesa, como juram os maledicentes, mas é incontestável que, aotraduzir em francês a Fenomenologia do Espírito, Hyppoli te deu a

Hegel uma clareza que certamen te não havia no original. Ele demons-trou, com isso, que não há textos que não possam ser transpostos emoutras línguas. Hegel não é intraduzível, apesar de sua vinculação àlíngua alem ã, como não é intraduzível Platão, apesar de sua vincula-ção à língua grega.

Original ou traduzido, todo livro pressupõe um a transcendência,porque sua leitura permite sempre escapar a nosso contexto espacio-temporal imediato. Em nossos-dias, a leitura pressupõe um a trans-cendência sui-generis, a que se dirige a todo o gênero hum ano, emsu a inf inita variedade. O hom em pluri identi tário aprende a ser j ud eucom Proust, católico com Greene, irlandês com Joyce, colombiano

co m Garcia Marquez, mulher co m Virgínia Woolf , e, em cada umdos seus livros, pode fazer o aprendizado da alteridade, identifican-do-se, sucessiva ou simultaneamente, com cada personagem.

Estaríamos, com isso, propondo a esquizofrenia como ideal dohomem pós-moderno , um hom em co m tantas personalidades queacaba não tendo nen hum a, transformando-se, por excesso de atribu-tos, num "homem se m qualidades"? O risco é óbvio, m as talvez só

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nada mais perigoso que a adesão obstinada a uma identidade única.Se bósnios e croatas tivessem identidades múltiplas, além de suaslealdades meramente nacionais e culturais , ta lvez tivéssemos evitadoo genocídio na antiga Iugoslávia.

Fim da cultura? Fim do livro? Talvez, mas não necessariamente.Não se trata de f im, e sim de Aufhebung, no sentido hegeliano. Acultura pode sobreviver, ao transformar-se em cultura universal. E o

livro te m futuro, se renunciar a seu papel de instância formadora deidentidades coletivas homogêneas, transformando-se em instrumentopara a consti tuição de identidades múltiplas , segundo a lógica doprocesso de universalização.

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OS LIVROS NO DIÁLOGO GLOBAL DAS CULTURAS

ZYGM U NT B A UM AN

No m eu tempo de estudante em Varsóvia, o meu professor delógica era um defensor de uma rara linha de f i losof ia, que elechamava d e "reísmo" (d o latim rés, "coisa"). Significava, pelomenos em intenção, um tipo realista de filosofia, ao modo do sensocomum, afastando-se da disputa culta - e, no geral, esotérica - entreos part idár ios das visões d e m u n d o "materialis tas" e " idea l i s tas" .O s "reístas" admit iam a óbvia e empir icamente dada factual idade

dascoisas - mas nada além decoisas. Sentenças, osprincipais objetosd a invest igação lógica, eram coisas como qu aisquer outras, e isso er atudo que se podia dizer sobre su a "realidade" ou "substancialidade"- insistia o professor, quando eu o pressionava. "Elas existem",eled i z i a , " tanto quanto uma camad a de t inta ou grafite sobre a superfícied o papel, ou sulcos na pedra, ou uma corrente d e ar". E u m e lembroda minha dificuldade em aceitar isso -não só como jovem es tudan te ,mas, também agora, com o professor aposentado... Havia, cer tam ente,algo mais numa sentença ou proposição do que alguns pingos det inta? Mais impor tan te : um a proposição mudaria de acordo com a cordo lápis usado po r mim? M eu amigo erudito Leszek Kolakowski

insist ia , po r outro lado, qu e mitos não são coleções de palavras, m asde personagens humanos e animais, suas relações e fei tos : por isso,eles podem se r contados e são contados e continuarão sendo contadosde muitas maneiras diferentes, repet idas vezes. Eles "permanecemos m es m os " , embora as histór ias mudem. Achei essa opinião muitomais aceitável, e não apenas no caso de mitos - muito embora o casodos mitos guarde part icular importância: e les eram, não só mais

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antigos, como eram também a mais onipresente da s matér ias em queforam constantemente moldadas as histórias contadas de homens para

de visitantes, a situação da produção editorial argentina passou de fracaa mais fraca ainda: pequenos editores independentes são postos parafora do mercado d ominad o por alguns dos grandes produtos de fusões

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h o m e n s . Eu acredite i então - como acred ito agora - que, por mais queo "significado" e a forma no qual esse significado é "comunicado"sujei tem, determinem ou influenciem int imamente um ao outro, elesainda conservam bastante autono mia, e cada significado pode ser ex-presso de várias maneiras. Há mais n u m a sentença do que apenasrabiscos sobre uma lousa ou manchas pretas sobre papel, e eles nãomudam necessariamente, quand o um a caneta substitui o gráfio...

Esse episódio num país distante e noutro século não mereceria se rl embrado e recontado, se ele não tivesse saído d o esquecimen to , co mtodo o seu frescor incorrupto e também com su rpreenden te atual id a-de, quando li no L ê Monde, de 13 de maio de 2000, a r epor tagem deRoger C hart ier sobre a conferência internacional dedicada à situaçãodo l ivro e suas perspect ivas hoje , real izada no começo d este ano emBuenos Aires pela Câmara Argentina do Livro. Eu t ive a estranhaimpressão de reencontrar meu professo r de lógica há mui to falecido,com sua canção fam il iar íssima, mas dessa vez t ranscr ita para vár iasvozes e can tada em coro por muito s clones...

Pr imeiro, Dick Brass, vice-presidente d a Microsoft , presenteou aspessoas a l i r eun idas com um programa de ta lhado da mo r te iminen tedo livro e do seu funeral . A té 2015, disse ele, todos os volumes daBiblioteca do Congresso Am ericano serão transcr itos e le tronicamen -te . Em 2018, sairá o úl t imo número impresso de um periódico, aomesmo tempo que , d e 2019 em diante , o verbete "livro" encontradonos dicionários deverá t razer a seguinte definição: "obra escritafundamenta l , geralmente disponível por meio de computador ou deequ ipamento e le t rôn ico próprio". O seu p ronunciamen to , como es -perado, causo u pânico entre os editores presentes, todos ocupados naprodução deobjetos queagora - eles ouv iram d ize r - estavam prestes

a ser descartados na lata de l ixo da histór ia, dentro de uma ou duasdécadas . O q u e tornou as notícias ainda piores foi que parecia haveralguma correspondência entre a mensagem trazida pelo pessoal d aMicrosof t e a exper iênc ia m esma d os editores. Embora a 26 a Feirado Livro de Buenos Aires (um dos maiores eventos deste gênero naAm érica Lat in a, ao lado das fe iras real izadas em São Paulo e Guad a-la jara) , real izada em maio de 2000, tenha atraído mais de um milhão

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d e empresas e d e tomadas de controle tais como Prisa Santil lana,P lane ta ou Sudamer icana , sucursa l d o impér io Ber te l smann . P io ra in d a , a d e m a n d a p or p r o d u t o s d o s ed i to res con t inua ca indo . Àexceção d as r eed ições de uns poucos imor ta is como Borges eCortazar ou textos das poucos celebridades d o nível de Garcia Mar-quez, os autores ficar iam fel izes (e ter iam sorte) se a venda dos seus

l ivros ul t rapassasse a barreira das 1.000 cópias (veja a reportagemno L ê Monde de Livres, de 26 de maio de 2000). Ma is de 700representantes da indústr ia do livro de 70 países se reuniram naconferência d a Câmara A rgen t ina do Livro, e a maior ia deles com-part ilhou d as apreensões dos seus anfi t r iões argent inos. Parecia queDick Brass e seus assistentes puseram os dedos nas fe r idas quemachucavam todos ou quase todos os presentes. Eles ofe rec iam umaexplicação digna de crédito sobre a doença - m e s m o que o remédiopromet ido parecesse a m ui tos ouv in tes mui to mais hed iondo e desa-gradável do que a enfe rmidade que ele se propunha curar...

Então, logo após Dick B rass, Jerome R u b in e Joseph Jacobson (d oMe d ia Lab do Inst ituto de Tecnologia de Massachuse t t s - M IT)levantaram-se para informar a platé ia de que os testes d e u m a " t in taeletrônica" e de um "papel eletrônico" - que jun tos pe rmit i rão at ransferência eletrônica de textos sem a mediação de computadores,e farão com que os le itores tenham a sensação de estar virando apág ina de um livro "verdadeiro" - t inham chegado às etapas finaise que poder iam, em breve, estar disponíveis no comércio. A expres-são dos representantes da Microsoft converteu-se num estado d eprofunda agitação: a vida pós tuma do livro - de que eles esperavamte r posse exclusiva - parecia estar escorregando de suas mãos. Depois

de pequena confusão e de muito exame de consciência, a Microsoftsugeriu ao Me d ia Lab do MIT que eles jun tassem suas previsões ecompart ilhassem o espólio d a implosão da Galáxia de Gutenberg pormeio da un ião de forças em favor do desenvo lv imen to de ambos osprojetos de subst ituição dos l ivros impressos.

A maior ia d as pessoas que compareceram à confe rência d e BuenosAires ficaram provavelmente com a impressão - assim como ficar ia

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o meuprofessor de lógica, caso ele a tivesse presenciado - de que eleshaviam testemunhado um debate sobre o futuro do livro; de que essefuturo

espécime de coleção depáginas encadernadas sob umacapa - quepodese r assim descrito. Como sugeriu, há muito tempo, o fundador damoderna filosofia da ciência, Gasto n Bachelard, a ciência nasceu quan -

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está agora sendo embaralhado entre a Microsoft e a Media L ab, eque a sua forma depende, finalm ente, de qual dos protagonistas/antago-nistas sobre o palco se provará mais determinad o, habilidoso ou inteli-gente para levar a cabo suas idéias favoritas.

Assim, qual das duas previsões - se é quealguma - deve prova-velmente suceder? Pessoalmente, estou incl inado a repet ir o RhettButler de E o vento levou...: "Francamente, eu não dou a menor

importância.. ." O assunto pode ser de imenso interesse para Bil lGates e todos aqueles que prefiram antes achar a m in a d e ouropessoalmente do que deixar a sat isfação para os seus concorrentes,mesmo que isso significasse o risco de ser acusado pelas juntascomerciais d e prát ica monopolíst ica. Mas, ao contrár io do que elesgostar iam que o resto de nós acreditasse, o fu turo do livro não seráde te rminado pelo que eles venham a fazer ou não. Não é a tecnologiade publicação e distr ibuição que decidirá o papel do l ivro em reunir(ou separar , se for o caso) as com unidad es human as, o seu lugar emnossas cul turas com part ilhadas ou exclusivas, na fo rma e no conteú-

do de nossa humanidade. Não quero dizer que não há elementospreocupantes em todas essas coisas. O que quero dizer é que asquestões calorosamente debat idas em Buenos Aires pelos chefes daMicroso f t e d a Media Lab, e por aqueles qu e f izeram eco às suaspreocupações em muitas outras ocasiões, não são as verdadeirasrazões com que se preocupar.

Desde o seu começo, e mu ito tempo antes de ele assum ir a fo rmaque sustentou sua imagem nos séculos passados, o livro tem sidobas icamen te um a histór ia contada nu m diálogo vital ício com a expe-r iênc ia humana . Como obse rvou Wal te r Ben jam in ," uma exper iênc iapassada adiante de boca em boca é a fonte em que bebem todos os

contadores de história. E, entre os que escrevem contos, são grandesaqueles cujas versões escr itas diferem menos da fala dos mui toscontadores de histór ia anônimos. . . O contador de histór ia narra o queextra i da experiência - de sua própria experiência ou daquela repor-tada po r outros. E ele, por sua vez, transforma o que con ta numaexperiência daqueles que o ouvem " . (Permita-me notar , contudo, quenão são todos ou, para ser exato, nem qualquer l ivro - ou algum

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do os livros científicos pararam de recuar diante do encantamento daexperiência human a comum, como um trovão ou uma panela a vapor,e , em vez disso, part iram de uma referência a experimentos que nãofaziam parte da prática cotidiana dos leitores, ou da citação de umaproposição feita po r outra testemunha de acontecimentos sem elhante-mente misteriosos; noutras palavras, a ciência começou, quando o

cordão um bilical que liga a experiência dos cientistas à experiência laicafoi cortado. Por essa razão, as publicações científicas e a experiênciac o m u m f o r a m separadas há m u i t o t e m p o - e sua c o m u n ic a ç ã o nãoes tá em jogo, o que quer qu e acon teça à tecnologia editor ial ) . Ore lato de histór ias al imentou-se da experiência compart ilhada dom u n d o ao mesm o tem po que lhe provia o sustento. Por isso, o cenárioda conversa terminaria por deixar su a marca p ro funda sobre a histór iacontada. Como sugeriu Franz Rosenzw eig: diferenteme nte do pensa-dor abstrato, que não pensa por ninguém e não fala para n inguém eque, por isso, "conhece de an temão seus pensamentos" , o pensadorque fala não pode an tecipar nada e deve ser capaz de esperar , porque"depende d a palavra d o o u t r o " , d e "alguém que não tem apenasouvidos, mas um a boca t am bé m " . A qu estão da conversa não é passara verdade pronta de alguém que a conhece para alguém que não aconhece. Como propôs William James , "a verdade ocorre a umaidé ia ... Sua validade é o processo de comprovação". Podemos dizerque o enco ntro entre locutor/ le itor e entre le itor / locutor foi o lugarpreciso daquela " verificação".

O relato de histórias e a audição de histór ias cr iaram um vínculo entreos dois protagonistas e os m anteve amarrados durante a negociaçãoenvolvendo a verdade da experiência humana. Foi o restabelecimento

repetitivo daquele vínculo no ritual de reiteração que sustentou a basecognit iva para a idéia decontinuidade e deparentesco - o " ea r caseiro"da experiência, comumente herdada e usufruída por aqueles cujaspráticas de vida nã o haviam sido compartilhadas; fo i confortante , rouxereafirmação, min imizou ou encobriu as exasperantes incertezas da vida(isto é, talvez, a razão por que as crianças - ainda lutando "para fazerparte de", para encontrar o seu lugar seguro no mundo assustadora-

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mente estranho - adoram ouvir, repetidas vezes, as mesmas históriasque sabem de cor). Enquanto o relato de histórias permaneceu oral, paracada grupo de pessoas havia também um número estritamente limitado

contador fica bem distante, e, no momento em que somente os contadorescujas histórias são impressas, é que podem contar com um número signi-ficativo de ouvintes transformados em leitores. O círculo de leitores e

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de histórias a ser provavelmente contadas, bem como ouvidas, napresença delas. Para usar a distinção de Walter B enja m i n , podemosdizer que o tipo predominante, quase único, de história contada e ouvidaera então a "história de camponês", a história de alguém "que f icavaem casa, ganhando a vida honestamente, e que conhece os contos etradições locais" ; apenas ocasionalmente, a série de "histórias de cam-

poneses" foi interrompida por "histórias de marujos" , contadas por ououvidas de "alguém que veio de longe". Podemos supor que essedesequilíbrio não desempenhou papel menor na manutenção da cont i -nuidade e da identidade em separado do grupo. Na maioria das vezes,"fazer parte conjuntamente" - "nós" como uma existência distintade "eles" - significava ouvir as mesmas histórias, enquanto raramente,

se é que alguma vez,se podia ouvir outra diferente.Isso poderia ter mudado, ou pelo menos ter adquirido potencial de

mudança, com o advento da "Galáxia de Gutenberg". Impressas evendidas, as histórias poderiam agora viajar sem os contadores, ecruzar as fronteiras que separavam "nós" e "eles" mais facilmentedo que os contadores de histórias em sua maioria: "histórias demarujos" não seriam mais marginalizadas pelas "histórias de cam-poneses". Deve ter sido o começo do que mais tarde viria a serchamado de "comunicação transcultural" , embora o verdadeiro im-pacto da mudança não viesse a ser completamente sentido após ainvenção da máquina impressora, mas,visivelmente, graças a umarevolução social, não tecnológica: a di fusão da alfabetização, logoseguida por impressões de baixo custo - como só se poderia esperar

do que se conhece da esperteza do mercado.Uma das mais proféticas conseqüências da nova mobilidade das

histórias foi a relativa emancipação da composição e narração emrelação à experiência vivida dos leitores. Na "era da comunicaçãooral" , com histórias tendo a não ser a memória humana como únicoreceptáculo e abrigo, cada ouvinte era um contador de histórias ouum recontador em potencial: os dois personagens envolvidos nodiálogo eram intercambiáveis. Nem tanto agora, com as históriassaindo, na maior parte das vezes, de forma impressa, enquanto seu

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o círculo de "parentesco" não precisam mais coincidir. Isso talvez

significasse uma bênção confusa para os contadores de histórias, umavez que eles não poderiam continuar confiando na harmonia predeter-minada dodiálogo, mas poderiam enfatizar - e enfatizaram - o destinoum tanto desconcertante embutido numa estimulante oportunidade desuperação, ou de ir além daquele aspecto de suas experiências compar-

tilhadas com os leitores. De agora em diante, as realidades sociaissurgiam com a tarefa que Hannah Arendt designou para os artistas: a de"adicionar ao mundo". Adicionar - inserirno mundo alguma coisaquenão estava lá antes e que não estaria lá a não ser que fosse inserido - éum ato precisamente distinto de preservar, mais uma vez,o que já foidito; é mais do que dar f o r m a articulada ao que já foi vivido porcompleto, embora não comentado.

"Adicionar ao mundo" pôs em risco a continuidade e a separaçãodo grupo cujo mundo ele encarnava. O livro que adicionasse ao mundo- em vez deexibir, uma vezmais, seu auto-retrato fami l iar - perturbariaa ordem das coisas em lugar de preservar intacta a fo r ma que elaassumira previamente. Ele poderia chocar-se com a sabedoria recebidado mundo ou, a qualquer custo, insuflar dúvida sobre sua exclusivapretensão à verdade. Ao invés de ser, como antes, um instrumento de

continuidade e separação, o livro se transformou num fermento deauto-reflexão e mudança. Os guardiões da coesão do grupo e ossentinelas da ordem não poderiam senão perceber o perigo na livrecirculação de histórias. As artes haviam se tornado subversivas - e nãopor escolha dos artistas (foi mais exatamente a decisão de conformar-se, a submissão plácida ao sistema que tinha avocado a si o direito deúnico intérprete da história e tradição popular, que veio a ser, agora

confessadamente, a escolha do artista). O tempo de construção danação com suas cruzadas culturais promovendo a unidade da língua,tradição, panteão e visão de mundo tinha de ser também - e era, naverdade, em quase todo lugar - o tempo de censura. Nem todas as"adições ao mundo" eram bem-vindas, e particularmente ressentidaera a seleção de adições fe i ta por agentes sem plenos poderes paracomandar o processo de construção da nação.

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d as duas experiências salientou os diferentes aspectos d o fenômenobif ronte d o livro; cada um a delas esperou, vislumbrou e encontrou noromance histórias diferentes - tipos distintos de préstimos suprindo

enclaves territoriais, as civilizações vão se encontrar no s campos debatalha - se muito.

Não obstante suas diferenças, são visões de uma cisão irreversível e

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diferentes faltas e redimindo tormentos diferentes.Quais são os préstimos que o livro pode proporcionar ao nosso t ipo

de sociedade? Que tipo de préstimos ele oferece mesmo, e que tipode préstimos, se houver algum, tende a estar na expectativa dos seusleitores? Para responder essas perguntas mordazes, precisamos tal-vez pensar na mudança da tecnologia de produção e distribuição do

livro bem menos do que os profetas da revolução eletrônica gostariamque fizéssemos, mas, em vez disso, olhar mais d e perto para anatureza mutante d o mundo e m q u e vivemos e para a experiênciam u t a n t e de viver dentro dele.

No Lê Monde d'avenir, um suplemento extra do Lê Monde, publi-cado no começo do novo século, Jean-Pierre Langellier justapõe duasvisões de nosso planeta tal como ele evoluiria nos anos que virão. Aprimeira é oriunda do romance F.A.U.S.T., de Serge Lehman, cujaação ocorre em 2095. No mundo governado pelos "Grandes Pode-res" dos impérios industriais e comerciais, uma série de "aldeias"

metropolitanas, ricas e confortáveis, se estende ao longo do"

Sota-vento de Darwin" que circunda o globo. O estreito cinto de riquezaé separado por um outro, o largo cinto sanitário da terra de ninguém,abandonada, um matagal sem lei, o território da pobreza desesperan-çada, habitado por seis milhões de criaturas miseráveis, sofrendoprivação. Nesse mundo, os bem-sucedidos optaram por não fazerqualquer tipo de contato com o resto, tendo antes assegurado, para seuuso exclusivo, as melhores regiões do planeta: o que antes eram classesque coabitavam transformou-se agora em sociedades separadas e decomunicação cortada entre si. A segunda visão é tirada das profeciasamplamente lidas e calorosamente debatidas de Samuel Huntington,

que não dá importância às desigualdades produzidas socialmente, aomesmo tempo qu e vaticinaum abismo profundo, intransponível, sepa-rando "civilizações" que ele calcula chegar a sete ou oito (não estábem certo do futuro da África). Os universos ideológicos, políticos,artísticos e tecnológicos seriam, na visão de Huntington, impotentespara transpor as fendas intercivilizacionais, quanto mais para vedá-lasou escondê-las. Fortificadas e sem muros dentro dos seus respectivos

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incurável. Enquanto Huntingtonpõe em discussão o blefe da "globali-zação" e sugere sua impossibilidade final em vista da divisão perma-nen te da espécie humana, Lehman leva à sua conclusão lógica as atuaistendências separatistas da globalização " talqual nós a conhecemos" -globalização dos poderes econômicos, financeiros e comerciais irrestri-to s e desigualados pela planetarização das instituições políticas e do

controle democrático (estes permanecem tão locais quanto antes). Omaior efeito desse tipo de globalização é u m a polarização agravante,tanto d as condições, como dos padrões d e vida (Permita-nos notar queas diferenças culturais e a f ragmentação política do mundo parecemestar se desenvolvendo na direção oposta: enquanto, em 1850, o globoestava dividido entre 44 estados, há 193 estados "soberanos" agora,co m aproximadamente outros 30 fazendo fila para promoção; enquantose espera que - de 6.000 línguas usadas hoje em todo o globo -aprox imadamente a metade seja extinta antes do f im deste século, 95 %delas são faladas por escassos 4% da população global). A cisão deHuntington é causada por um colapso de comunicação que não tem

reparo. A ruptura de Lehman é induzida pelos ricos, que não fazem maisus o dos pobres e, por isso, não mais aliviarão o seu fado, e os pobresnã o tendo mais ilusões sobre a boa vontade d os ricos para tomar umati tude. É tudo a mesma coisa, uma cisão abissal, não é nenhumaunidade ou universalidade d a condição humana o que aparece ao f im cêcada uma das duas estradas.

Lehman e Huntington produziram distopias, colocando lado a ladoos receios declarados ou tácitos da nossa era de globalização. Suasvisões são avisos, não vaticínios, muito menos "prognósticos cientí-ficos" (a assim chamada " fu tu ro log ia" assume con t ra fac tua lmente

a regularidade e a legitimidade da história do homem, a fim de sepronunciar sobre o fu tu r o : mas fu tu ro , por definição, não existe - éum "não-ser".Não tendo um objeto acessível empiricamente, a idéiade uma "ciência do futuro" é um oxímoro, uma contradição determos). O que os dois escritores previram pode realmente acontecer,m as não estamos na posição de dizer, com algum grau de certeza, seva i ocorrer o u não. A história é fei ta d e atos humanos, e o fu tu ro não

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está determinado até que ele se torne um outro presente. Tendênciasestatísticas podem permit ir extrapolações, mas a histór ia do homemprima po r frustrar probabilidades estatísticas. Qual do s cenários imagi-

opus m a g n u m , A Estrela da Salvação. Em s i mesma, a mensagemdesse livro não era "verdade i ra" . Ainda ass im, e la poder ia se tornarverdadeira em suas conseqüências; e la poderia ser "verificada" na

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náveis (ou inimagináveis, se for o caso - como uma sociedade semescravos fo i inimaginável para Aristóteles, e um estado se m realeza,para Bo ssuet) se converterá em p resente futuro, não podemos d izer . Oque nós podemo s é tentar evitar que os hom ens encarnem os termos dadistopia.

O u t r o s cenários af luem noutros debates. Há ewtopias ao lado de

í/z'.ytopias, visões da bem-aven tu rança un ive rsal , da emancipaçãof inal do potencial cr iat ivo do homem e da verdadeira autonomia doindivíduo; e tam bém das barreiras entre povos e seus tesouros cul tu-rais sendo finalmente desmontados, de f ronteiras sendo abolidas ouabertas, d e idéias de uma vida saudável livremente trocadas, dispo-níveis para todos e negociadas por todos com a intenção universal-mente com part ilhada de chegar a um acordo. Há também esperançasexpressas de que, mais cedo ou mais tarde, chegaremos a um enten-dimento sobre a plural idade e a diversidade do mundo e de seushab i t an t es - que os veremos como uma opor tun idade , não como uma

.ameaça , e talvez até acrescentemos à mera tolerância da variedade a

sol idar iedade ao outro e ao diferente. Se o fu turo não está predeter-minado (e não está! ) , então ele está aberto; talvez não "bem aber to" ,não "sem fronteiras" - mas, provavelmente, mais aberto do queestamos preparados para admitir. É nossa responsabilidade assegurarque não seja ignorada ou negl igenciada qu alquer possibil idade de umdest ino melhor para a humanidad e, que possa passar ou ser condu zidaatravés dessa abertura.

O livro, o relato d e histór ias qu e "faz sent ido" da experiênciahumana, tem um imenso papel a desempenhar nesse jogo de possibi-l idades . Pe rmita -me c i t a r F ranz Rosenzwe ig u m a v e z m a i s : "Hou-

vesse Lute ro mor r ido em 30 de o u t u b r o d e 1517, toda a o u s a d i ado seu comentár io sobre a "Epístola dos Romanos" não passar ia d eextravagâncias d e um escolást ico falecido". Sabemos, contudo, queele não morreu naquele dia, e, assim, no dia seguinte , el e pregousobre a porta da igreja de Wit t enberg as suas 95 teses. Foi graças aesse ato, conclui Rosenzweig, que "a vida complementou a teoria ea tornou verdade i ra" . Sob a mesm a luz, Rosenzweig viu o seu próprio

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vida e pelos vivos. Ela não ter ia, contudo, tal oportunidade, caso nãofosse escr ita , publicada e lida.

Correr o risco de verificação e então surgir como o verdadeirosent ido da experiência humana - em si mesma confusa , dispersa eopaca, dest ituída de senso óbvio - é uma tarefa do livro que os nossostempos talvez tenham tornado mais urgente do nunca; mas estes

mesmos tempos fizeram o cumprimento dessa tarefa a inda maisdifícil do que antes. Colocar a culpa nas costas da nova tecnologiaeditorial seria grave erro. A d if icu ldade em ques tão afeta o l ivro e ,de maneira mais geral, o relato de h istór ias em toda a sua forma, quersobre o papel, sobre a tela ou escrito co m "t inta e le t rôn ica" . Adificuldade está int imam ente relacionada com a natureza mutável denossa experiência, e, mais precisamente, com a mudança no m o d ocomo vivemos nossas vidas e , conseqüentem ente, como percebemose relacionamos o m u n d o em que elas sã o vividas.

O s dias de hoje diferem daqueles em que as formas clássicas do livro,e o romance em particular, prosperaram - e diferem deles em muitasrelações fundamentais. Penso que um a, entre essas m uitas relações, sejade particular relevância para nosso problema: a saber, a marca registradada atualidade, a fragm entação da vida numa série de episódios relativa-mente autosegregadosligados à percepção do fluxo do tempo como um asucessão de eventos relativamente autosegregados. A conseqüênciadessa dupla fragmentação é o "encurtamento de período" qu e marca,tanto a vida pública, quanto a individual.

De acordo com o slogan lançado pelo canal francês RTL, "infor-mação, assim com o café , só é boa quando é quente e fo r te" . Hoje emdia, há uma enchente de informação sobre nós, mas ainda servida

como café - bastante for te para anular o sabor da comida consumidano m omento an ter ior e bastante quente para abafar todas as sensaçõese x p e r im e n t a d a s . C o n t u d o , ela esf r i a r a p id a m e n t e - desaparecedas manchetes de jornal e do noticiário de televisão antes que o seugosto possa ser saboreado por completo, mui to menos aval iado. Sefor, por acaso, informação sobre o mundo, servida como café , avelocidade da sua ida e vinda prediz o fim do entendim ento: um bi t

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de informação é caçado por outro antes mesm o que possa ser absorvido,e, uma vez que eles não são assimilados, não podem ser conectados aum a cadeia de eventos significativa. Cada evento deve assim " sobrevi-

guinte , a demanda por tais le ituras pode apenas sofrer quedas . Ospróprios l ivros mudam o seu lugar no mundo existente de nossoscon temporâneos ; eles m u d a m d o universo do esclarecimento para o

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ver" po r conta própria, e o senso de totalidade é deixado para trás peloscompetidores já no início da caçada.

O s even tos - sincronicamente t rombeteados pela mídia e sincro-nicamente lançados por ela ao esquecimento - criam, por um breveespaço d e tempo, se u próprio "público", por sua vez tão e fêmero quese separa logo após juntar-se , se m aperfeiçoar su a coesão. Trata-se

também de um público guiado por influências externas, for jado defora para dentro, não um "públ ico orgânico", nascido de um diálogocontínuo e mantido por ele. Fora dessa experiência singular do"público", é extremam ente difícil , não impossível , moldar a imagemdo "interesse público" e d e qualquer outra coisa re lat iva a ele, ta lcomo a idéia de uma sociedade jus ta, de just iça social ou de é t ica dapolítica - do mesmo modo que , fora dessa histór ia da vida vividacomo um a série de episódios escassamente l igados, é d if í c i l aoextremo organizar um debate sobre o "projeto da vida", sem men-cionar o projeto d e " od a um a vida". O m u n d o nos é oferecido comoum contêiner cheio de eventos para consumo imediato, instantâneo,de uma única vez. Nu m mundo ass im, o breve espaço de tempo davida parece ser uma série de episódios, devendo cada um deles se rconsumido de modo similar e superficialmente.

É a part ir de tal entrelaçamento do mundo fragmentado e da vidaf r agmentada que o livro enfrenta se u maior desafio. Como pode olivro ajudar , e pode el e realmente ser de ajuda, no corte deste nógórdio part icular? E enquanto o nó permanecer amarrado, comoparece estar agora, pode o livro d ar con t inu idade a um diá logos ignif icat ivo com a experiência hum ana, essa condição sine qua no nde qualquer prést imo que ele possa vir a oferecer?

A força do l ivro foi sua única habil idade para amarrar biografia ehistór ia, o privado e o público, o ind iv íduo e a sociedade , m omentosvividos e o s ign i f icado d a vida. Esse trabalho d e síntese é difícil d ecompreender nu m m u n d o que pôs fi m à duração e ao pensamento alongo prazo; sua significação (na verdade, sua indispensabil idade)t ende a i l u d i r o s seus hab i tan tes . Nossa a tenção muda rap idamen-te demais para nos pe rmit i r fazer uma pausa e refle t ir ; por conse-

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universo do entretenimen to, mud am de valo resduráve isparaob je tosdeconsumo . Mais do que isso: no mun do que dividiu sua própria histór iaem eventos, os l ivros podem c onfiar no seu poder d e atração, caso elesmesmos se tornem eventos; daí o paradoxo d o crescente aumento d epúblico das fe iras de l ivros coincidir com a rápida queda do núme ro deleitores. O culto às listas de best-sellers - os "livros quentes" , l idos

por " odo mundo" e que decoram a m e s a de café de " odo mundo"apenas para que se jam jogados fora d a sala de espera na semanaseguinte , quando saírem d e moda empurrados pela l is tagem d ospróx imos best-sellers - sinaliza essa transformação do livro em

evento. Em vez de contra-atacar as pressões para fragmentação e"episodiação" da visão de mundo e da vida humana, os livrostransformados em eventos cooperam com o processo. É a transfor-mação profunda do cenário da vida produzido socialmente que fezcom que os livros se ajustassem à "realidade virtual" flexível,caleidoscópica e multiforme da rede eletrônica - e não o contrário.

Os l ivros podem ter adicionado ao m u n d o - mas nunca o f izeramde fora; eles sempre foram parte do mundo e esta é precisamente arazão por que as adições que eles ofereceram puderam se r assimila-das. É natural que os membros do mercado editor ial imaginem osseus produtos nos termos d e problemas que venha m a surgir no cursoda produção. Mas o dest ino do livro, em nosso mundo g loba l izan te ,não depende, nem pode se r explicado, pelas tecnologias d e impressãoou qualquer o utra coisa restr ita ao mercado editor ial. O s livros estãocondenados a compart ilhar o dest ino das sociedades das quais sãouma parte . Qu ando pensarmos em l ivros, vamo s pensar pr imeiro emsociedade. Quando nos preocuparmoscom o futuro dos livros, vamos

olhar mais d e perto para a sociedade e suas tendências. Para produzirl ivros ajustados à sociedade em que vivem os, vamos tentar evitar queessa sociedade se torne inadequada para os l ivros...

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mentalidade dos indivíduos nela inseridos. Castells lembra que essesprocessos de mudanças radicais aconteceram recentemente, nas últi-m as duas décadas, alçando um quarto d a humanidade a patamares d e

de governos, empresas bancos, etc. Em verdade, Castells quis dizer:"Este livro não se inspira em teorias dos outros. Ele procura construirum a teoria própria: a teoria da era informacional" . Para tal, tudo indica

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riqueza jamais vista, somando aproximadamente dois bilhões de "opu-lentos" . Em contrapartida, os mesmos processos deixam aproximada-mente três quartos d a humanidade à margem da era informacional. Estapopulação de mais de 4 bilhões de pessoas vive, como o autor admite,em níveis de pobreza indignos, espalhados em continentes e países quenã o ousaram ou não foram bem-sucedidos em sua tenta t iva de integrar-

se no novo "modo de desenvolvimento informacional". Este repre-sentaria o último estágio do capitalismo internacional, produzido porum a quarta revolução tecnológica, que teve a sua origem em SiliconValley, na Califórnia/USA.

A o escrever su a trilogia, Castells teve o objetivo de formular um a teoriasistemática da sociedade informacional, capaz de analisar o impacto dasmodernas tecnologias da informação sobre a nova divisão do trabalho, aestrutura de emprego, o enfraquecimentodo Estado e dos sindicatos, aorganização d os meios de comunicaçãono mundo globalizado e conectadoem redes. Como reafirmou, em sua palestra no Brasil, Castells se propôs a"identificarosprincipais processos de âmbito mundialque transformarama economia, a culturae a sociedade na última década, analisando o comoe o porquê do atual desmantelamento do Estado Nação, construído desdea idade moderna, e da crise de legitimação que sofrem suas instituições e

seus representantes?"7

Neste novo contexto de "passagem", em que "tudo que é sólidoparece desmanchar-se no ar", mais precisamente, "em fluxos eletrôni-cos" ,cabe anós - reunidos neste Seminário Internacional,naBibliotecaNacional, órgão do Estado - lhe perguntar, qual seria, em sua opinião,o lugar do livro no futuro?

,N o prólogo de sua trilogia, Castells dá uma resposta (em termos):

"Este livro não é um livro sobre livros", no que parece querer contra-por-se a autores como Habermas, que antes de formular sua " eoria daação comunicativa" revisitou, criticou e remanejou mais d e dois m illivros e ensaios, buscando uma nova via teórica para compreender asociedade d o fu turo. Castells, no entanto, diz que buscará suas informa-ções na "própria realidade", aliás em Relatórios do Banco Mundial,estatísticas oficiais d as Nações Unidas, relatórios técnicos e econômicos

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que pode "descartar" os livros com suas teorias, hoje obsoletas. (Cas-tells, vol. I., pp. 25 ss.)

Assim sendo, tentarei, num primeiro passo, expor, de maneira sinté-tica, a teoria da network society, desenvolvidapor Castells. Em seguida,procurarei "rastrear" os três volumes da "Era informacional" paraencontrar alguma referência ao lugar e papel do livro nesta sociedade

mundia l calcada no "modo de desenvolvimento informacional". So-mente então, passarei a examinar o "lugar do livro entre a nação e omu n do , fazendo alguns empréstimos a teorias menos deslumbradas co mos dados e as tabelas da era informacional.

O Castells da década de 90 está convencido de que o final do séculoXX representa, não somente o fim do marxismo, como também o fimda "era da razão". Ambos estariam sendo substituídos pela "era dainformação". Para ele, é chegado o momento em que deveríamosdesenvolver novos conceitos, capazes de exprimir as mudanças tecno-lógicas ocorridas nas últimas duas décadas e sintetizadas no conceito de"quarta revolução tecnológica". Em sua essência, essa revolução se deugraças um conjuntod e tecnologias convergentes, integradas num bloco:a microeletrônica, a computação (soft e hardware), a telecomunicação,a eletrônica baseada na f ibra ótica e, ultimamente,at é mesmo a bio- eengenharia genética. Mas tudo isso não teria gerado mudanças estrutu-rais nos mercados, Estados e nas sociedades do mundo inteiro, não foraum feliz casamento entre essa tecnologia de ponta e um mercado ágil eflexível, que soube veicular e multiplicar os resultados da ciência (novosconhecimentos) e da tecnologia de ponta, desenvolvidos em SiliconValley, através das redes do "www".

A característica dessa revolução tecnológicarecente não éacentralidade

do saber e da informação (que sempre já estiveram presentes na s revolu-ções anteriores), mas sim a comunicação imediata e fácil dos novos saberes,conhecimentos, informações e tecnologias ao mundo inteiro pelas redesglobais, realimentando e integrando novas redes, associadas ao mercado eao poder (econômico e político).

Castells admite qu e isso somente ocorreu em algumas partes do mundo,privilegiadamente nos Estados Unidos, na União Européia e em certos

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países Asiáticos, como o Japão e o Taiwan. Nesses países, também hááreas e segmentos populacionais que não foram atingidos pela revolu-ção em discussão, ficando excluídos e marginalizados da riqueza pro-

A o Estado, ao s sindicatos, ao s empresários e aos empregados nã oresta outra alternativa senão adaptar-se ao s novos paradigmas introdu-zidos pela revolução tecnológica in form aciona l. Por isso, cabe ao Esta-

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duzida.O cará te r "excludente" des te novo modo de desenvo lv imen to não

passa despercebido a Castel ls . Ele sabe que, no máxim o, um quartoda população global está sendo beneficiada, mas exprime a sua"esperança" d e q u e i s s o s e j a s o m e n t e t e m p o r á r io . A l o n g oprazo, ele espera que seja possível integrar frações cada vez mai o-

res dos atualmente excluídos no seio d a "sociedade in formac iona lfavorec ida" . O caderno "Mais", de 20 de agosto 2000, publicourecente ar t igo d e Castells, no qual este procura assessorar um chefede Estado a fr icano. A única saída para superar a pobreza na África oautor vê na adesão ao novo modelo da sociedade em redes. Isso requergrande esforço d os afr icanos de se modernizarem tecnologicamentee de educarem melhor as novas gerações d e afr icanos. Requer aindauma compreensão e generosidade dos países ricos d o planeta, jáconectados em redes, para "perdoar dívidas" e facilitar a adesão dosexcluídos, dando sustentabil idade às estruturas geradas pela quarta

revolução tecnológica.Castells não culpabil iza a "era informacional" pelo desemprego.Ao contrár io , argumenta que, com as novas tecnologias, tambémforam criadas novas formas de emprego. Se houve novas ondas dedesemprego, isso se deve à incapacidade dos t rabalhadores vincula-dos às velhas tecnologias de se adaptarem às novas condições d e vida.Aponta para as mudanças estruturais da divisão do trabalho e doemprego dos países do leste europeu e da ant iga Uniãc Soviét icadepo is da queda do muro de Ber l im.

A "flexibi l ização" das estruturas de emp rego é inevitável , tornan-do imperiosa a dissolução da estabilidade do emprego e d o Estado de

Bem-Estar que a garant ia. Nem a profissional ização dentro de qua-dros r ígidos, nem o emprego vital ício , ainda re ivindicados pelasorganizações t rabalhistas, ter iam condições de "modern izar" a eco-nom ia. Somente os novos paradigmas impostos pela globalização daeconomia e pela informatização generalizada d a vida política, cultu-ral e social da sociedade podem mostrar novos caminhos para ahuman idade do t e rce i ro mi lên io .

do agilizar as estruturas de trabalho, flexibilizando a legislação trab a-lhista, dando uma educação mais atualizada e diversificada às novasgerações, para qu e essas, por sua vez, tenham condições de adaptar-se,co m maior rapidez, às exigências do mercado. Além de retirar-se domercado, o Estado contempo râneo faria bem em devolver a autonomiae responsabilidade aos governados, que passariam a velar por sua

própria saúde e aposentadoria, assinand o planos d e saúde e convêniosp rev idenciá r ios par t icu la res , educando me lhor seus f i lhos para anova era. A ação do Estado deveria, pois , restringir-se a form ular asle is corretas e pô r à disposição certos serviços básicos, entre eles amod erna tecnologia das te lecomunicações e das auto-estrad as ciber-nét icas, para processar as mudanças, em benefício da internacionali-zação da network society.

A m ídia, até agora vo ltada para as massas, também ter ia de acom-panhar essas mudanças, incorporando a nova lógica informacional .Seus dest inatár io s, receptores de mensagens, não ser iam mais massas

amorfas, m as "internautas" individualizados. O s "acoplados" à In-ternet são sujeitos isolados, que se re lacionam em casa (na int im ida-de, e não no espaço da rua) com seu PC e os diferentes programassoftware ao "w w w " . O recurso ao s meios d e comunicação d e massa,rádio e te levisão, estar ia passando para o segundo plano. O sindica-lismo de massas, bem como atuações partidárias demagógicas, co-m u n s no século 20, ter iam os seus dias contados, perdendo sua funçãod e mobil ização colet iva. A mão-de-obra flexível "livre" estar iadisponível para ser (ré) util izada de acordo com as demandas de ummercad o voltado para a al ta produtividade, o lucro (a médio e longoprazo), sem riscos, assegurando o acúmulo de riqueza para os conglo-

merados internacionais. A mão-de-obra flexibilizada e facilmente reci-clável assume, ela mesma, os riscos, outrora repassados ao Estado debem-estar. É assim que o trabalhador de hoje passaria para a condiçãode cidadão autôn omo e responsável de amanhã.

O modelo da sociedade informacional, aqui relatado, é, como admiteCastells numa da s entrevistas, a-moral (isto é, desprovido de moral ida-de individual e eticidade coletiva) e neutro, nos melhores moldes

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advogados pelos positivistas do século XIX e parte do XX; sua funçãoúnica e exclusiva é garantir a médio e longo prazo a lucratividade.

Se é verdade que o impacto da "era informacional" se traduz em

néfico" da era informacional sobre suas vidas. A estrutura de empregose diferencia e flexibiliza, o desemprego se reduz, os salários crescem,a sociedade como um todo se enriquece, apesar de uma apropriaçãomuito diferenciada (e por parte de uma fração reduzida da população).

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aumento acelerado de riqueza para mais ou menos 1/4 de beneficiados, emdetrimento do resto da população do globo terrestre, por sua vez excluídoe pauperizado, precisamos retomar a questãodo livro, levantada no início,para dois tipos potenciais deleitores: aminoria conectada àsredes mundiaisda Internet, e a grande maioria não conectada.

Para os primeiros," os conectados", desenvolver-se-ão novas formas

de sociabilidade, como, por exemplo, a "virtualização das relaçõessociais" entre as pessoas. Elas, a rigor, não precisariam mais via jar ,nem mesmo telefonar para seus pares do outro lado do globo, nemsair de casa para trabalharem, irem ao banco, se encontrarem com osvizinhos ou fazerem suas compras. Como terão acesso fácil à "ama-zon@com", podem inclusive encomendar os livros que quiserempela Internet, desde que tenham um cartão de crédito, do qual podemser debitados o custo e o envio por correio. Graças ao acesso virtualaosúltimos lançamentos, à crítica e réplica do livro que os interessa, podemestar, potencialmente sempre a par de tudo que se publica no ramo de

sua especialização. As chances de emprego para esses beneficiadosaumentam, já que têm igualmente acesso à tecnologia informacional ea todas as alternativas de emprego geradas pela remodelação da produ-ção baseada nos fluxos imediatos de informação capitalizável. Essapopulação fica beneficiada. Independentemente do livro, se beneficiamacima de tudo os setores do management privado e público, jogadoresnas bolsas financeiras, aplicadores de capitais voláteis que prometemaltos lucros de risco, corretores de imóveis, vendedores virtuais, agên-cias de informações, jornalistas, editores. Abrem-se, assim, novas pos-sibilidades de emprego e de enriquecimento fácil, rápido, tentador elucrativo. Como se pode ver, todos esses empregos pressupõem o uso

do livro ou do ornal real ouvirtual. Para não "perder tempo" e dinheiro,esses "privilegiados" podem estar lendo, diretamente no screen de seumonitor, as últimas notícias, a situação da bolsa, o saldo da contabancária, dispensando a impressão. Mas trata-se de livros, jornais,textos eletrônicos que, com um clique, podem materializar-se em folhasimpressas, encadernadas ou não. Aqueles beneficiados pelo novo "modode desenvolvimento informacional" experimentam, pois, um "efei to be-

O impacto da sociedade organizada em redes sobre os 3/4 da populaçãonão atingida pela quarta revolução tecnológica traduz-se em aumentoacelerado da pobreza (proporcional e absoluta). Apesar de excluídos daeconomia e política informacional, esses mais de 4 bilhões de habitantesdo globo são duplamente atingidos, pois não existem mecanismos

capazes de inseri-los nem no mercado de trabalho tradicional, nemmecanismos adequados para que os preparassem para o novo mercadode trabalho gerado pela sociedade informacional.

Surge, assim, o que ficou conhecido como o desemprego estrutural,isto é, um desemprego que atinge várias gerações de potenciais traba-lhadores (avô, pai e filho). Esta grande maioria permanece fora dogueto exclusivista dos beneficiados. Para tirarem proveito das vanta-gens, teriam de ter acesso às diferentes redes de informação e àstecnologias da informação, que, por sua vez, garantem o acesso a redes(celular, computador, novas linguagens software, bem como o treina-mento adequado para poder lidar com essa tecnologia, entre outros).

Atépode serverdade, como Castells insinua,que anetworksociety tenhadissolvido as classes sociais tradicionais, mas também é verdade que elacriou nova hierarquia social, em cujo topo vivem os habitantesdo globoencerrados numa torre de marfim virtual, sustentada e viabilizada por umchão real, de trabalhadores "não conectados". São estes que verdadeira-mente sustentam a torre. O s "virtuais" muitas vezes perderam a noção dequem garante efetivamente a sua existência na base do sistema social.Nestes termos, a "sociedade informacional" de Castells lembra "Metro-polis", o filme expressionista de Fritz Lang, dadécada de 30, no qual essavisão da sociedade emdois patamaresjá fo i antecipada.O desenvolvimento

da era informacional, admitidamente "insustentável" a longo prazo, podeterminar em revoltas operárias, como as encenadas no filme.A sociedade informacional é indiferente ao risco que ela corre,

negligenciando a população excluída dos "benefícios" que ela gera edesrespeitando a natureza, da qual extrai boaparte de sua riqueza. Comoé sabido, a sociedade informacional é alta consumidora de energiaelétrica e não pode existir sem ela. Esgotadas asreservas, essa sociedade

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desmoronaria como um castelo construído em areia ou como umaseqüência de peças de dominó em queda l ivre. Por ser indiferente ànatureza e suas fontes de energia, ela também não respei ta as regras desua preservação, como alertam os mo vimentos ecologistas. Po r isso, ela

mão, surpreendi-me com a ausência do livro nos dois estratos principaisda sociedade (retratada). Nem os donos da fábrica nem seus operáriosexplorados e exaurido s pareciam recorrer ao livro, seja para se divertir oudistrair, no primeiro caso, seja para se informar e reorganizar, no segundo.

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é hostil aomeio am biente. Basta lembrar as pilhas tóxicas dos te lefonescelulares, walkie-talkies, rádios e CDs, TVs.

E, como foi admitido pelo próprio Castells, ela é a-moral, por nãopreservar os valores herdados d o hum anism o dos séculos XIX eX X , comoa defesa da integridade e da dignidade do homem, de todos os homens

(no sentido de humanidade) . Defendendo a neutralidade da ciência, datecnologia e do mercado, ela não introduz novos valores sociais, políticose morais capazes de encaminhar as novas gerações no sentido de integrar-se, sustentar, preservar e ampliar a sociedade informacional em basesdignas para todos. Esses valores dificilmente podem ser gerados no espaçovirtual do web, mas nele podem ser incorporados e veiculados. É aqui quevejo novas chances para o livro, os livros escritos, lidos e relidos,debatidos e comentados, e até mesmo concretizados em valores einsti tuições (como a d emocracia, direi tos hum anos, alfabetização paratodos, liberdade de religião, sufrágio universal, etc.).

Em interessante artigo, escrito na década de 80, Vilém Flussèr,

fi lósofo tcheco-brasileiro8 já alertava para a necessidade d e traduzir osvelhos códigos, encerrados em livros e documen tos (empoeirados) paraos novos códigos da era digi tal. Noutras palavras, não se trata de"descartarmos" os livros por haver a Internet, cabe preservá-los, incor-porando-os, guardando-os - no sentido daAufhebung - no interior dasl inguagens eletrônicas e digi tais da era informacional. Essa proposta deFlussèr, lamentavelmente não faz parte do ideário e das recei tas deManuel Castells, mas já está sendo colocada em prática, como nosinformam diariamente os nossos jornais.9

Se acei tarmos a nova d ivisão da humanidade em incluídos e excluí-

dos, estratificada nos "de cima" e "nos debaixo", qual o papel do livropara os "de cima" conectados em rede? E qual o papel (se é que t êm?)e lugar do livro entre os "de baixo", os desconectados e excluídos, quevivem na pobreza e no desemprego estrutural?

Para melhor visualização deste problema, voltemos ao filme de FritzLang, "Metropolis", que antecipou em imagens marcantes essa estratifi-cação do futuro. Revendo este "clássico" do cinema expressionista ale-

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O s donos da fábrica pareciam estar mais ocupados com seus livros decontabilidade (perdas e ganhos; salários e custos da produção) que emlivros prop riamente ditos (de filosofia, literatura, arte, ciência, econ omia,política). Ocupavam-se mais em controlar (através de uma espécie de"panopticum-TV") os operários e verificar se estavam efetivamente traba-

lhando. Estes, por sua vez, colados as máquinas no subsolo e nas cavernasde Metropolis, não unham como pensar ou pegar num livro, porque lhesfaltava tempo e energia para investir em leitura, durante a dura jornada detrabalho. Tampouco aM aria (boa) qu e prega solidariedade e fé na religião, ne ma Maria (má), o clone mecânico da Maria boa, consulta um Manual daRevolução que ela prega somen te para desorientar a classe op erária.

No entanto, o livro aparece no filme, nas mãos do cientista judeu, quemora numa residência própria a meio caminho e à parte das duas classesantagônicas. É o cientista louco que termina sendo, na versão quechegou ao público, o culpado do desastre e curto-circuito que ameaça aexistência de Metropolis, quando os operários enfurecidos destroem as

máquinas e inundam a parte subterrânea da cidade em que viviam seusfilhos. Revoltam-se, assim , instigados pelo "clone" Maria, fabricado pelocientista, contra o falso inimigo - as máquinas - e não reconhecem, nosistema monstruoso de exploração, concebido e realizado pelos donos dafábrica, o seu verdadeiro inimigo. Neste filme de ficção, que reflete oanti-semitismo e antiintelectualismo difuso já existente n a Alemanha, at émesm o antes da tom ada de poder de Hitler, o livro da ciência e a tecnologia,em mãos do cientista judeu, assume papel perverso: "clonar" Maria. Ofilme antecipa duas práticas abomináveis, posteriormente comuns duranteo nazismo: a queima dos livros em plena praça em frente à Universidade

de Hum boldt e as experiências do doutor Mengele em Auschwitz, pesqui-sador frio e monstruoso da biogenética.

Recorrendo à metáfora de "Metropolis, tentarei pensar o papel do livrona "sociedade informacional" , seguindo o script qu e Castells no s deixouem sua trilogia. Tam bém no terceiro milênio, os detentores da riqueza estãomais preocupados com o acompan hame nto dos valores das ações na bolsa,a venda virtual de "ações", aplicações financeiras etc., do que com livros

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que pudessem ser virtualizados e divulgados pelo sistema eletrônicoda rede ou em CD-Rom, a versão tecnológica mais adiantada do livro.

Os que não manipulam (histericamente) os seus telefones celulares,suas agendas eletrônicas e calculadoras, "estudam" pela Internet,

ministérios e até mesmo no Palácio do Planalto e no Buriti, isto é, nocoração do poder institucionalizado.

Não se trata de uma peça do passado, guardada a sete chaves, mas deum material real que pode ser ativado a qualquer instante.

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acoplados a um laptop na sala VIP de qualquer aeroporto mundial, oua um PC instalado em casa, as últimas notícias e "informações" quepossam ser úteis para novos investimentos, o home banking e novas

decisões econômicas. Raras vezes encontramos, em aeroportos oudentro do avião, em restaurantes ou cafés, modernos/as profissionais

da"

era informacional" lendo um livro real e muito menos um virtualdownloaded no seu screen.

Por outro lado, acompanho há 6 meses, a partir da sacada do meuapartamento, o dia-a-dia e o movimento de 10 a 20" sem teto/sem terra"que habitam embaixo de uma árvore (encobertos por uma plástico preto)na entrequadra da Asa Norte em Brasília. Certamente trata-se da "raspado tacho" dos excluídos da era informacional, dos quais nos falaCastells. No caso deles, a preocupação primeira é a água, a comida, ofogo. Seus filhos não vão à escola, seus pais não sabem ler nem escrever.Eles não têm eletricidade e muito menos "conexão internética". Vivemdo lixo acumulado nas grandes lixeiras dos blocos das superquadras e

comerciais mais próximas. Fazem a coleta de latas, garrafas e outros"restos" do lixo, não aproveitados pela classe social mais abastada dasociedade de consumo e os revendem, estando vinculados ao merca-

do monetário dessa fo r ma "original". É óbvio que não têm livros emuito menos os lêem, mas gostam de receber os jornais velhos, para

forrar o chão de terra em que dormem.Caricaturei os dois extremos da estratificação social na "era infor -

macional" , deixando claro que nos pólos extremos da hierarquia socialde hoje não há lugar para o livro. Contudo, o livro existe e persistirá.

Onde o encontrar?

Na metáfora de Metropolis, ele estavá na casa do cientista judeu, quemorava entre as duas classes. Na realidade da era informacional, ele seencontra na casa dos pesquisadores, professores e alunos, em centrosde pesquisa, bibliotecas, livrarias, editoras, nas estantes de muitosleitores, ainda encantados pelo livro fisicamente materializado. Mas eletambém se encontra - em meu campo visual, além dos sem teto/sem

terra - nas bibliotecas da UnB, do Congresso, do Itamaraty e outros

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O noticiário da semana passada mostrou um esforço feito no Congressode alfabetizar os serventes e faxineiros da casa, em sua maioria analfabetos.

O livro do qual um deles havia espanado o pó, durante duas décadas, semsaber do seu autor e conteúdo, era Os Lusíadas, de Camões.

Provavelmente o faxineiro recentemente alfabetizado desistirá de ler

além das primeiras estrofes, mas o livro visível, palpável, "bonito",existe e continua provocando, como tantos outros, o potencial leitor. Porisso, ouso arriscar uma tese a ser confirmada: o livro " salvo" num texto

virtual ou impresso, encadernado em U n h o ou couro, papel de em-brulho ou plástico, estabelece um elo entre os estratos extremos da"sociedade em redes". Ele tem condições de humanizar aquele estratodos excluídos que vive aparentemente no nível técnico da pré-história,

como ele conferiu dignidade e alegria ao faxinei ro (antes) analfabeto doCongresso brasileiro. Mas, antes de mais nada, ele tem condições dehumanizar aqueles que atingiram riqueza e glória na sociedade infor -macional, manipulando seus computadores e telefones celulares. Em

Brasília, a Biblioteca do Congresso é conhecida como uma das melhorese mais atualizadas do Brasil. Isso nos dá esperanças de que deputadose senadores, vindos dos todos os cantos do Brasil, sigam o exemplo dofaxinei ro e usem a biblioteca, mergulhando nos livros que ela abarca.

Em lugar dos personagens de "Metropolis" que estabelecem o con-tato entre em cima e embaixo (o filho do dono da fábrica, o operáriopadrão que acata as ordens do patrão e as retransmite aos operários,como traduz o clamor destes ao dono insensível, a Maria autêntica, ocientista judeu), temos na "era da sociedade em redes" batalhões dein-between. Trata-se dos mediadores entre os extremos, que somente

tê m de "loucos" o interesse pelo livro, dedicação em sua preservaçãoe transmissão, colaborando na formação de leitores. Acrescentem-seaqueles que escrevem livros, os editam ou encadernam, organizamfeiras nacionais e internacionais para divulgá-los. Mas são, antes demais nada, os leitores do livro, que nele vêem seu amigo mais íntimo,inspirador de idéias, diálogos, fonte de saber e prazer, alegria e lazer,

texto e pretexto para pesquisas científicas e descobertas tecnológicas.

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A "era informacional" é resultado do livro e do saber readquiridoatravés dele por leitores inventivos, criadores. Associado à tecnologiada informática, o livro pode ser "virtualizado" como nos ensinouFlusser, transmitido por fibras óticas ao outro lado do globo e lá

Vol. II: The Power of Identi ty (1997);Vol. III: End of Millenium (1998).

Tradução para oportuguês:Título geral dos três volumes: A era informacional: Economia,

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novamente materializado em papel impresso, costurado e encadernado.O livro pode ainda se r f ixado em disco CD-Rom, armazenando numapequena chapa de silicone brilhante, informações condensadas que

antes enchiam prateleiras e bibliotecas.A "era informacional" não é inimiga do livro, ela dispõe da tecno-

logia para universalizá-lo, democratizá-lo. A tecnologia informacionalé, mais que qualquer outra (penso naquelas que Walter Benjamin tinhaem mente), a que garante a "reprodutibilidade técnica" da letra escrita,do som falado, da imagem ilustrada, separadamente .e em síntese. Háaqueles que preferirão ler uma peça de Shakespeare, impressa empapel machê, outros darão preferência a um vídeo obtido em Londres,no Globe Theater; terceiros, por sua vez, querem ouvir a voz deLawrence Olivier, acompanhando as palavras sonoras com a leitura d otexto. M as também pode haver aqueles que querem sintetizar tudo issonu m CD-Rom tecnicamente perfeito em que todos os seus sentidosestarão ativados: os olhos, os ouvidos e sua mente.

De minha parte, prefiro levar o King Lear para a cama, no exemplarde couro perfumado que herdei d e minha av ó materna.

NOTAS

Vide Freitag, B . "Habermas como intelectual", in Habermas: 70anos. Número especial da Revista TB, Rio, 1999.

Cf. Giddens, A . The Third Way. T he Renewal of Social Democracy .Polity Press: Cambridge 1998.

3 Castells, M. "Hacia ei Estado de Red? Globalización econômica einstituciones políticas en Ia era de Ia información. [Ponencia presentadaen ei Seminário sobre "Sociedade y Reforma dei Estado" ]. São Paulo,março 1998.

4 CASTELLS, Manuel (1996-1998). The Information Age:Economy, Society and Culture. Oxford: Blackwell Publisher/U.K.

Vol. I: The Rise of Network society (1996);

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Sociedade e Cultura. São Paulo, Editora Paz e Terra.Vol. I: A sociedade em redes (1998);Vol. II: O poder da identidade (1999);Vol. III: Fim de milênio (1999)

5 Do Banco Mundial, das Nações Unidas (Desenvolvimento

Humano), UNIDO, UNICEF, UNESCO, entre outros relatórios deeconomistas, sociólogos, comunicólogos, das últimas três décadasdo século XX, etc.

Vide entrevista dada por Castells no programa de televisão"Roda Viva", em que é interpelado ao vivo por váriosintelectuais, sociólogos, economistas e urbanistas brasileiros,em 1999, por ocasião do lançamento de sua trilogia pela EditoraPaz e Terra em São Paulo.Vide também : "Castells - The Videos" (I Castells at Oxford / I ICastells the Interview/III Castells, org. por B. Dimitri ) , que podem

ser solicitados pelo endereço: 3 Broadway Close, WoodfordGreen, Essex, IGH O H D - U.K.A revista inglesa C I TY: Information, Identity and the City, n° 7 ,de maio de 1997/Oxford-U .K. publica uma Introdução à trilogiaacima citada, fei ta pelo próprio Manuel Castells (pp. 6-17), bemcomo um a entrevista fe i ta por Bob Catterall, em Londres, co mManuel Castells, em 1997.

7 Página introdutória de "Hacia ei Estado Red?"8Flusser, Vilhem. "Alte und neue Codes", in Prigge, Walter (org.).

Stãdteische Intelektuelle. Urbane Milieus i m 2 0 . Jahrhundert.

Frankfurt/M.: Fischer Verlag, 1992 (o texto fo i escrito originalmenteem 1988). Vide, também, do mesmo autor, Ficções filosóficas. SãoPaulo: EdUSP, 1998.U m reflexão sobre o artigo de Flusser encontra-se em Freitag,Barbara: "A cidade brasileira como espaço cultural", in TempoSocial. Rev. Sociol. USP, São Paulo 12(1): 29-48.

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JL.

3 Cf. Piquer, Isabel. "Livro digital se firma na Internet", in CorreioBrasiliense, 12/8/2000, comentando o recente acordo f i rmadoentre a Microsof t e a Barnes & Nobel.

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O L U G A R D O L IV R O E N T R E A N A ÇÃO E O M U N D O

GLORIA L OPE S M OR A L E S

Quem são os novos a l fabet izados da sociedade de redes?Nas eleições pres idencia is real izadas no México , em 2 de j u lho de

2000, Francisco Labastida, o candidato do PRI, arrolou, como umad e suas pr incipais promessas de campanha , a univer sa l ização d oens ino da l íngua inglesa e da computação pa ra os es tudantes doe n s i n o f u n d a m e n t a l e méd io . Ofer ec ida a panacéia , el e deve te rf icado mu ito decepc ionado com a respos t a t íb ia e a t é mesm o i r ôn icado eleitorado, que não se deixou deslumbrar pelas duas mais impor-tantes chaves de acesso ao progresso e à modernidade que se desejaob ter em nossos d ias .

O cer to é que o cand ida to Labas t ida fo i o gr ande der ro t ado nad isputa e, com ele, a prolongada hegemonia d o Par t ido R evoluc ioná-ri o Inst i tucional no poder . Surgem interpretações em vár ios sent idosperante a a t i t ude dos e l e i tor es m exicanos que , de manei r a m a is oum e n o s consc iente , de ixa ram mani fes ta u m a sáb ia h ier aquização d osprob lemas que o país enfrenta , ass im como das necessidades e pr io-r idades para l ivrá- lo de seus graves entulhos. O at raso impe rante nãose mede apenas em t ermos q uant i t a t ivos , embora es t es s e jam det er -

minantes . Em números redondos, exis te a lgo em torno de 10% depopulação ana l fabeta , embora o ana l fabet i smo funcional alcanceproporções mui to ma is a l a rmantes . Es t ima- se em cerca de 60% onúmero de mexicanos v ivendo em níveis de pobreza e uns 30%abaixo da l inha da pobreza absoluta .

As es ta t ís t icas refletem baixos níveis nos serviços de saúde, águapotável e e l e t ric idade , ausênc ia de qu a l idade de v ida no mun do rura l

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e nas imensas áreas suburbanas das grandes cidades, co m favel ização,moradia insuficiente e improvisada. Out ro indicador pouco recon-for t an t e é o desemprego no cam po e na c idade , cu jos e fe i tos maisv is íve is são a imig ração e o aumento sens íve l da de l inqüência .

do l ivro sintam-se estranhos com relação a uma l inguagem que osimpede de pensar, que inibe a emotividade e que enrijece a memória.Em todo caso, os vários gêneros d e expressão escr ita parecem m aisconsubstanciais ao s seus próprios padrões do que a l inguagem d os

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Nessas c i rcuns tâncias , pa rece quase i r ôn ico pensar num plano parap romover a en t rada de milhões d e analfabetos na modern idade ,mediante a informática, que, como num passe de mágica, passar iama integrar as legiões de novos alfabet izados, profetas do mun do feliz .Parafraseando o provérbio: pr imeiro a comida, depois ser um espe-

cial is ta em computação.É preciso pensar , por outro lado, que o baixo êxito d o refrãopolí t ico labast idista se deveu a que os e le itores, que, na ma ioria dasvezes, ignoram números e estat ís t icas, manifestaram uma sabedoriaprimord ial que os fez discernir entre o substan t ivo e o adjetivo, nafinal idade essencial e o meio para alcançá-la. É aqui onde entram asconsiderações de índole qu al itat iva que, tanto a gente do povo,quanto as e l ites i lustradas levaram em conta para não se deixardeslumbrar pelo inglês, a língua d o sucesso, e pelos computadores.Notaram , provavelmente, que, por t rás desse atraente pacote did át ico,se escondia todo um em bate neocivil izatór io que, se não lhes oferecia

gato por lebre, estava muito perto de fazê-lo , posto que pretendiafazer passar o acessório como se, na verdade, fosse o essencial .Notaram que se lhes oferecia um veículo supersônico para a imersãonuma g loba lidade amorfa , quando ainda não puderam terr itor ial izar-se, assumir e conhecer seu espaço vital.

No México, como nos demais países d a Amér ica La t ina , não épossível lançar um convite à cidadania quando, por uma questãosocial , isto é inviável ou, pelo menos, secundário , tendo em vistaoutras urgências. Em adendo, há questões de contextura social queparecerão contraditór ias como as noções de tempo , espaço e ut il idade

que a cibernét ica prom ove. É que, t radicionalmen te, as pessoas nestespaíses pertencem, em p arte , por um de seus segmentos, à com unidad equ e Roberto Cardoso de Oliveira chama de Comunidade da Argu-mentação. E, como muitos teór icos af i rmam, o que possibil i ta osuporte informático é a capacidade de t ransladar e processar infor-mação a granel e em grande velocidade, sem perm it ir o raciocínio; élógico que, em troca, os p ra t ican tes da l inguagem ora l e os adeptos

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computadores.No planejamento das pol í t icas e na elaboração de programas de

governo, não se pode ignorar esse contexto cul tural , tampouco ascircunstâncias histór icas herdadas. Nesse sent ido, desde o início ,torna-se necessário elim inar o falso dilema entre o com putado r e o livro.

Não se trata de escolher entre um e outro, porque ambos sã o necessáriose com plemen tares. Talvez a exposição a esta disjuntiva seja a causa dosexcessos que, atualmente, provocam efeitos indesejáveis, devido àinformat ização seletiva e elitista nos países com grandes desníveis dedesenvolvimento. De fato, o que se está conseguindo é a fragm entaçãoe a produção de uma ruptura cul tural entre os diferentes segmentos dasociedade. Por outro lado, uma população informatizada não é, neces-sariamente, um a população culta. Para sê-lo, te m primeiro que seralfabetizada e aficionada à leitura.

Voltando ao processo político mexicano, uma campanha eleitoralinteligente deveria ter embasado suas prom essas no fomento da produ-

ção do livro e incen tivo à leitura, complem entado — e aqui não cabedúvida — com uma boa dose de capacitação em informática. Dessemodo, s im, será possível que o mexican o se ponha em sintonia, atravésdo ciberespaço, com o resto do mundo e passe a trocar conhecimentosválidos com ele. Para conseguir isto e, sobretudo, para aprofundar oprocesso político, é preciso que o indivíduo seja capaz de penetrar osentido de um texto, qu e possa exercitar-se na reflexão a fim de captaros matizes da realidade em que está imerso e assim poder analisá-lacriticamente. Isto só se consegue mercê da paciência gregária daspalavras que se vão alinhando, um as após as outras, graças à fidedigni-

dade à mensagem qu e permanece sobre o papel, que se deixa compor erecompor gramatical e filosoficamente. (Alatriste)Ler é uma disciplina ligada ao tem po e os leitores se apropriam, com

ela, do instan te e da eternidade. Para acercar-se d a tela cibernética comcapacidade seletiva, primeiro é preciso que se tenha sido um leitor.Desse modo, em face da sedução da imagem imediata, tornamo-noscapazes de transcendência.

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A formulação de polí t icas de com unicação, de pol í ticas educat ivasaçodadas e impacientes, nasce de expectat ivas errôneas no poder todopoderoso da info rmação . Não há que enganar-se, nada s ubstitui o livrono sentido de sat isfazer a necessidade de reflexão qu e subjaz a toda

são, em realidade, os verdadeiramente capazes de nos colocar na van-guarda do mundo. Pode ser que pareça muito complicado atrelar apolítica fiscal à política educacional, porém sabemos se r possível con-segui-lo e muitos países altamente desenvolvidos já o f izeram. U m a

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função educat iva, assim como nad a subst itui a Internet na necessidadede tratamento rápido da inform ação. Em todo caso, o aprendizado daescrita e d a leitura é a única ponte ind ispensável para em preender ambosos caminhos.

L á pelos anos c inqüen ta , com o nascente desenvo lv imen t ismo ,

nossos países conceberam a le itura como o melhor instrum ento paraa decolagem. Imagine o que foi o ápice da produção editor ial deentão! A intuição foi cer te ira, só que os caprichos do mercado, ascrises econômicas general izadas e recorrentes, d o m e s m o m o d o qu ea falta de polí t icas adequadas para atr ibuir ao l ivro o papel deprotagonista indispensável , f izeram com que o advento da i n fo rmá-t ica nos encontrasse sem ter preenchido os requisitos básicos para dara essa fe r ramen ta o uso adequado . Vemos , ass im, que o desamparoaos le itores faz com que eles se entreguem inertes às te las audiovi-suais com o conseqüente prejuízo para a formaç ão e t ransm issão dosvalores individuais e colet ivos que oferecem coesão ao corpo social.

Em nosso meio, a reflexão está desvalor izada, não se nota suaut il idade, deixou de ter importância. O valor cul tural da le itura estácedendo vez ao valor de consum o que o l ivro vem ganhando , inclu-sive em países onde há um número consistente de le itores.

Uma boa polí t ica para um povo educado, cul to e informado devepassar pelo reconhe cimento de q ue l ivro e le itura são pré-requi sitospara t irar o melhor proveito da inform ática, que deveria ser conside-rada um m eio para sat isfazer necessidades co mplem entares de infor-mação e apoio técnico, porém nunca para subst ituir os verdadeiroselementos que for jam a cul tura ind ividual e colet iva.

Com bater a ignorância, a corrupção, a falta de eqüidade e cul t ivara democracia só é possível usando a única arma a nosso alcance: acultura e seu enorm e apetrecho que é a le itura. Há que apren der , alémdo mais, a pensar , de maneira diferente , a cul tura, caso queiramosreformar as bases de nosso desenvolvimento e compreender que orecurso cul tural é , para is to , o melhor motor; há de reconhecer-se ,igua lmen te , que nossos ar t is tas, nossos criadores, nossos pensado res

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política cultural correta pode fa zê-lo e mais aind a se incen tivar a leitura,e, co m ela, o exercício do pensamento, promovendo cidadãos conscien-tes, com grandeza espiritual e prontos para participar da coisa pública;cidadãos capazes de fazer avançar os povos em direção a metas menosconfusas do que aquelas que a cibervida nos faz entender como condição

necessária e suficiente para adentrar o mundo feliz.Quantas coisas ter iam os políticos d e considerar quando contra-tam, para suas campanhas, os magos do marketing eleitoral!

Nada mais distante das mentes lúcidas em nossos países de in-f luência luso-hispânica do que negar o avanço e a influência dosmeios eletrônicos e muito menos fechar os olhos a uma real idadeavassaladora. B em sabemos o que pensa um Garcia Márquez acercado apoio inest imável do que significa para e le o computador no seuprocesso de criação. Há pouco, um dos mais esclarecidos e consultadosin t e l e c t u a i s m e x ic a n o s , C a r l o s Mo n s iv á i s , a l i n h a v o u , n u m a sq u a n t a s f r ases , u m a série d e verdades desmit i f icadoras ao d ize r

q u e , com a Internet, dá-se o r e to rno à l e i tu ra ou ao a f i r m a r qu e"a t e l ev isão t inha a ú l t ima pa lavra an tes que chegasse a web eque , agora , não há nada tã o pouco concor r ido d o q u e u m a confe -rência ao vivo e nada mais povoado d o q u e u m chat". Supos ta -m e n t e , e le r e s tabe lece o s equi l íb r ios , s ina l izando a sobrev ivêncianecessá r ia d a imprensa e scr i t a e a p e r m a n ên c i a i n d i s p e n s á v e l d olocal f r en te ao global.

Parece, então, d el inear-se um consenso no que se refere à profeciade que o livro não morrerá e que, melhor ainda, dar-se-á a conv ivên-cia de vários suportes. Porém isto não acontecerá d e modo espontâ-

neo. Fal ta ver ific ar como se comportará a polí t ica, como se fo rmula-rão as polí t icas que, no momento, parecem entregues a correntesfatais e pragmáticas d o devir cibernét ico. O tema deve se r anal isadoem toda sua complexidade, complexidade esta que faz com que osocial seja ecológico e o ecológico, ético; que faz com que a trans-missão d o pensamento e do conhecimento nã o possa se r abordadaapenas do ponto de vista do suporte ou do meio.

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O LIVRO TE M FUTURO?A cultura do livro na era da globalização

MILAGROS D EL COR R A L

O s ciclos temporais se aceleram vert iginosam ente (há três anosnão exist ia a Amazon.com) e eis-nos aqui reunidos, no Rio deJaneiro, ainda fresco em nossa memória o lançamento do primeiroe-book destinado ao grande público (Riding the bullet, de StephenKing); ainda surpreendidos p elas 500.000 có pias digi tais comercia-l izadas em 48 horas, breve tempo que, não obstante, foi suficientepara que um jovem hacker rompesse a segurança tecnológica, permi-

tindo a proli feração de clones da obra po r toda a Internet. Estasingular experiência d eu, se m dúvida , o que pensar ao autor e, comoos senhores todos sabem , só faz algumas semanas o mesmo StephenKing , que não sei se passará para a história da l i teratura de terror,m as que, desde já, criou o terror entre os editores de livros deliteratura, decidiu "baipassar" seu edi tor - nada menos que Simon& Schuster - e oferecer, em seu próprio site na rede web, a maisrecente de suas ob ras, com uma estratégia comercial nova: no dia 24de julho estava disponível o primeiro capítulo de seu romance T heplant, que podia ser baixado com um único endereçame nto no e-mail.O autor popular solic i tava de cada lei tor que lhe enviasse um dólaramericano, assegurando-lhe que, se recebesse contribuições de pelomenos 75% de seus leitores, continuaria escrevendo o romance; casocontrário, não continuaria. 76% d os que baixaram o primeiro capítulo(100.000, em apenas dois dias) responderam posi t ivamente e oscapítulos 2 e 3 já estão anunciados para o dia 21 de agosto e 25 desetembro, respectivamente. Esta iniciativa, aparentemente anedótica,

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i.

na qual o sr. K i n g , co m a lgumas poucas pág inas , embolsou100.000 dólares de jubilosa antecipação, busca propor um novoparadigma para o direito autoral, sustentado no pagamento voluntáriode direitos, para uma edição sem editores, baseada na técnica defolhetins a domicílio, revigorada pela m alícia televisiva, com temp e-

lado d a deman da de bens e serviços culturais , num contexto mun-dial onde predominam as assimetrias, acrescidas pela globalizaçãocomercial e tecnológica.

No s países industrializados, aumenta sensivelmente o gasto comconsumo cultural, e a oferta é também cada vez mais competitiva. O

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ro tecnológico. O lançamento de The plant suscitou animado debatenos fóruns da Internet, com mais aderentes do que detr atores, se bemque a maioria do s comentadores reconhecesse que o "sistema" sófunciona para autores de grande popularidade.

O que significa tudo isto para a comunidade do livro (autores,editores, distribuidores, livreiros, bibliotecários, le i tores) , quenão havia conhecido transformações substanciais ao longo deseus mais de 500 anos de existência? Quais sã o suas implicaçõespara o futuro do direito autoral, fundamento jurídico do negócioeditorial? Quando nenhum discurso parece possível se m mencio-nar a globalização, qua is podem ser as repercussões desses desen-v o lv i m e n to s p a ra 80% da população p lane tá r ia e p a ra os m a i sd e 1.200 milhões d e pessoas qu e v i v e m co m m e n o s de um d ó la rp o r d i a ?

Anatomia do livro

Sem dúvida, o setor editorial encontra-se confrontado com umasituação inédita em sua história. Até hoje, o capital cultural, esseconjunto, de elementos simbólicos e intelectuais criado pelo se rhumano permanecia f ixado em suporte de papel, decodificava-se pormeio da leitura e gerava rendimen tos derivados de sua capacidade d ecirculação. O editor era o último elo da cadeia do direito autoral, numesquema que soube superar, sem problemas, inclusive com vanta-gem, o surgimento de sucessivos desenvolvimentos tecnológicos -os jornais diários, o cinema, a televisão, as novas tecnologias deimpressão -, condenando ao ridículo os agourentos que anunciavama morte do livro. Assistimos, agora, à desmaterialização do suportee ao questionamento dos direitos autorais por parte dos usuários daInternet, cujo interesse pela gratuidade dos conteúdos coincide comos novos atores e operadores de redes, qu e substi tuem o editor, nofinal da cadeia produtiva. Importantes mudanças também ocorrem do

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consumidor está mais consciente e mais sensível ao fator preço, lutacontra o tempo e busca, por ele mesmo, um serviço personalizado emmatéria de informação e cultura. A resposta da . ndústria editorial, qu eoscila entre a fascinação e a desconf iança com as novas tecnologias, temsido o incremento permanente da oferta em meio a uma crescenteinsegurança jurídica no âmbito da proteção do direito autoral, o queconfigura um alto risco para o investimento e conduz a urna concentra-ção empresarial, tanto no âmbito da edição, quanto no da distribuição.O corolário é a integração vertical em grandes holdings multimídia, comfreqüência financiados por capitais alheios ao setor e acostumados aum a rentabilidade maior para o investimento. No novo cenário, asdecisões empresariais atendem a razões de mercado. Onde, porém, ficaa função cultural e educativa do editor? O que acontecerá com alegendária pluralidade e diversidade do setor?

No s países em desenvolvimento, a situação é bem diferente. A s

condições necessárias para o decolagem do setor editorial nãoacontecem. A demanda privada existe e é enorme, porém carece depoder aquisitivo suficiente para satisfazer suas necessidades deeducação, cultura e informação. A s administrações públicas, porseu turno, esmagadas pela dívida externa e o crescimento demográ-fico, socorrem-se de empréstimos internacionais para financiar acompra de manuais escolares importados ou optam pelo textoúnico, editado e impresso pelo Estado, fechando, assim, ao s edi to -re s locais o acesso ao mercado d o livro didático. M uitos países emdesenvolvimento contam com modernas leis de direito autoral,geralmente inspiradas por organizações internacionais e por pres-sões bilaterais , porém isto não impede que a pirataria e a reprografiailegal façam estragos, ante a passividade - e às vezes a cumplici-dade - dos governos, com prejuízo para as importações legais einves t imento estrangeiro, sobretudo, em claro detrimento da indús-tria nacional. O impacto das novas tecnologias é , quase sempre,i r re levante e de elevado custo, em razão da escassez de in f ra-es -

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esta altura, parece que não restará ao livro nem aquele prazersensor ia l do conta to com o papel! . . .

O futuro do livro: mais perguntas do que respostas

cont rover t i da ques tão do d i re i to autora l na Internet dê em nada ,caso se confirme a tendência ao "controle vertical" das redes depar te de alguns poucos atores , geralmente alheios ao mundo doslivros ( basta recordar, por exemplo, as recentes incorporações daTime-W arner pela AO L, da Unive rsal por Vivendi , da Endemo l pela

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- É , desde já , muito difícil predizer qual há de ser a acolhida que ogrande público dedicará a estes "novos livros", porém os s intomassã o muito s ignif icativos, no que se refere ao s inves t imentos emprodução e distribuição. Todas as livrarias on-line, até agora dedica-das a comercializar livros tradicionais, estão abrindo, em seus catá-logos, seções de e-books ou e-conteúdos, geralmente combinadosco m a possibilidade de obter um exemplar impresso e personalizado,conforme a demanda. (A s Edições UNESCO lançarão também, nopróximo outono, os primeiros e-books em sua web, t í tulos que já nãoexistirão mais em suporte papel... questão de economizar custos deprodução e de armazenamento, a lém de fazer um teste, a parti r daresposta de nossos leitores)

Cabe, se m dúvida, perguntar se a eventual generalização do e-bookno século XXI será favorável ou n ão à divers idade cultural e l ingüís-tica; se sua produ ção, em larga escala, irá contribu ir para a dem ocra-

tização da cultura ou ao surgimento de novo elitismo; se, tendo emvista o d esnível social entre ricos e pobres, o livro convencionalver-se-á confinado em cobrir as necessidades de grupos sociais maisdesfavorecidos, ou se, pelo contrário, se converterá nu m objeto deluxo para colecionadores; se os e-books terão como pressuposto ofim da censura ou , quiçá, o princípio de nova e mais perversa"censura de mercado eletrônico"... m as também o que vai ser dapreservação do patrimônio li terário do futuro, despojado de seusuporte material.

Por outro lado, os problem as mais sérios em relação aos conteúdo sque se oferecem na Internet se referem à f idelidade, à permanênc iae à responsabilidade da mensagem ou do conteúdo.

Ligada a esta responsabilidade, encontra-se a questão do direitoautoral, das dificuldades tecnológicas para garantir su a proteção, emambiente digital, e da resistência do público em pagar pelos conteú-dos (a solução a que se cheg ue com o caso "Napster" , originário dodomínio musical, é também relevante a esse respeito). Talvez a tão

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Telefônica), segundo um modelo em que os conteúdos, previamenteadquiridos por grandes grupos de m ultimídia , passam a ser um meroálibi, u m simples pretexto para atrair novos assinantes - e maispublicidade - para seus serviços de telemática quegeram o verdadei-

ro negócio. Se is to chega a acontecer, que novo s modos de remune-ração ao autor seriam conven ientes desenvolver a fim de promovera criação de cultura e a autoria intelectual?

Ninguém sabe ainda se estes novos desenvolvimentos chegarão aconfigurar a nova fisionomia do livro no século XXI, ou se, pelocontrário, acabarão logo no museu da s tecnologias, como tantos outrosgadgets. É impossível adiantar se as crianças em idade escolar chegarãoa substituir suas pesadas mochilas por uma pequena quinquilhariaeletrônica e muito m enos qual possa ser o impa cto destas novas tecno-logias no processo da aprendizagem. O que, sim, sabemos é que, no spaíses industrializados, faz muito tempo, as crianças não aprendem mais

a tabuada, porque a calculadora eletrônica ganh ou a parada, contra osprofessores da velha escola. E é por isso normal que os editores de livrosdidáticos comecem a inquietar-se seriamente em face do anúncio dachegada em massa de tais competidores, combin ada, além do mais, como sacrifício do preço único do livro, no altar do liberalismo econô mico,com o beneplácito do s sofridos chefes de família.

O impacto sobre os conteúdos ou como declinar o "global"

É sabido que as edições de livros didáticos constituem, em todos

os países , o segmento mais poderoso do setor edi torial e como osgrandes grupos edi toria is desenvolveram-se, quase sempre, em tornode l ivros de textos didáticos. Se este segmento se fragiliza, seusefeitos logo se farão sentir nou tras l inhas edi toria is de maior prestí-gio, mas de menor rentabilidade. Esta indesejável, porém possível,debilidade pode tam bém acentuar-se, caso o paradigma "King" sejaseguido po r outros autores d e êxito, cujas obras , d e a l ta rentab i -

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lidade econômica, estão, na realidade, financiand o indireta men temuitas outras obras de difícil venda - experimentalismos literários,novos gêneros, debate de idéias, etc. - que só interessam a públicosreduzidos . Eis o primeiro impacto possível sobre os conteúdos.

U m m o v i m e n t o , no entan to , subte r râneo d e "editores i nde-

mento d o leitor no processo cogni t ivo. Sem que se perceba, o proces-so da aprendizagem está passando do d iscurso l inear, característicod o texto escri to, para a percepção simultânea, geralmente adornadoscom imagens, que se apresentam numa tela, por meio de múlt iplasjanelas. Esta nova forma de apreensão de mensagem é algo mais do

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pendentes" ou alternativos, que apostam decididamente na ediçãotradicional e sua missão cultural, está emergindo e conta co m todanossa simpatia. Em junho passado, uma reunião convocada pelaUNESCO, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a OEA

promoveu estudos, em Gijón, sobre esta particular problemática, nocontexto d a tão oblíqua e inevitável globalização. Trata-se de editorespor vocação que cultuam seu capital simbólico, não dependem degrandes conglomerados e, por i sso, conseguem man ter a autonomia desuas decisões editoriais, o que, unida a uma certa concepção d e quali-dade, lhes permite atingir altos níveis de compromisso com a cultura.Su a independência econômica - ainda que, de modo geral, precária, jáqu e este tipo de edição é o oposto da busca compulsiva pelo best-seller- suavocação e rigor levam-nos a resistir à banalização e àpadronizaçãodo "produto editorial', concebido pelos grandes grupos apenas em funçãoda demanda e da rentabilidade, constituindo o ú ltimo baluarte do escritor

de temas de transcendência, de análises qu e recusam o facilitário e dasexpressões cu lturais portadoras de enfoques pouco convencionais.

Sem dú vida, sem uma decisiva polí t ica de incen tivo, por parte dospoderes públicos, estes editores, prontos a oferecer resistência ao"comerc ia lmente correto", em part icular no campo da ficção, dapoesia e do ensaio, podem se r considerados "o s últ imos dos moica-nos", como um a espécie rara em vias de extinção. Se se deseja evi taro risco da monocultura e do pensamento ún ico , é necessário avaliar ,detalhadam ente, o potencial estratégico que este movim ento ed i torialal ternativo oferece, a fim de restaurar o equi l íbrio entre a importância

atribuída ao significado e aquela concedida à comercialização desseobjeto de dupla face - simbólica e econômica - quechamamos l ivro .

Texto versus "zapping": o impacto sobre o intelecto

Mas n ão quero, nem posso encerrar esta intervenção sem mencionar,ainda que brevemente, o impacto das novas tecnologias no comporta-

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que um método; é um a nova a t i tude e novo modo de concatenar opensamento, que afeta, de mais a mais, os mecanismos da memória.

Com efeito, a técnica da lei tura exige aprendizado m etódico. Não setrata tanto de aprender a decifrar um código, mas de penetrar o sentidode um texto, de exercitar a memória e a reflexão para captar todos osseus matizes. Isto conduz ao desenvolvimento da análise crítica e àexaltação de comparar o que está escrito com a própria vivência(sempre digo que não há nada mais interativo do que ler e, contra osque opinam que "uma imagem vale mais que mil palavras", sustentoqu e "uma palavra vale mais que mil imagens") . Tudo isto é possívelgraças à paciência greg ária das palavras, que se alinham umas atrás dasoutras, e à fidedignidade à mensagem que, embebida no papel, se deixair e vir, se deixa folhear, decompor-se e recompor-se, gramatical efilosoficamente.

Ler é uma disciplina relacionada com o tempo, porque requer

prolongado esforço de concentração; porém sabemos que o tempo é,precisamente, o recurso mais escasso em nossa sociedade. A tela,pelo contrário, qualquer tela, serve mais para mo strar imagens e, nom á x i m o , textos curtos que não exigem esforço de compreensão, mas,simplesmen te, reconhecimen to e receptividade. A m ensagem na telaapresenta-se como algo evidente que não requer fundamento racionalnem análise dos antecedentes, que - por outro lado - nãodispõe det empo para se tornar real. Daí a rup tura entre o l ivro e a tela, entre oespírito linear d o discurso escrito e a percepção "matizada" , simul-tânea e rápida do m ult imídia por tela interposta.

A ação s imultâ nea da tela ( televisão e computador que, ademais,se anuncia m em convergência, na banda larga que nos prometem para2005), a busca do mínimo esforço e a escassez crônica de tempopodem fazer estragos na memór ia e na capacidade de análise d asgerações m ais jovens, sobre o quê é preciso começar a reflet i r . Nãose trata, de minha parte, de satanizar as novas tecnologias, cujasvantagens aprecio profu nda men te e cujos benefíc ios aprovei to o mais

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que posso. C reio, isto sim, que é preciso começar a ensinar/aprend erum a gestão saudável d os recursos informatizados e, desde já , insistir naimportância fundamental da leitura linear.

Nossos não tão remoto s bisavôs só podiam deslocar-se por terra apé ou a cavalo, isto antes da invenção da bicicleta. A generalização

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do automóvel, do ônibus, do trem e do avião é, historicamente,recente. Se m dúvida, o caminhar continua-se praticando com a f ina-l idade d e cobrir pequenas distâncias; mo ntar a cavalo é uma práticadesport iva cada dia mais apreciada; a bic icleta voltou à moda por

razões ecológicas e, para se l ivrar do excesso d e tráfego, os automó-veis são mais popu lares, mas, às vezes, o ônibus é mais prático; asvan tagens do trem sã o cada d ia mais evidentes e o avião acabouconsagrado como o transporte adequado para as grandes distâncias.Em n enhum m omen to, o setor aeronáutico pretendeu substi tuir todosos outros, até o l imite de fazer o ser humano esquecer que, emdispondo de pernas, é para poder andar.

Do mesmo modo, superado o "efei to novidade", haverá de seaprender a uti l izar, de forma racional e combinada, os diversossuportes d o conhecimento disponível: l ivros, jornais, revistas, tele-visão, Internet, e-books e o que mais se produza, porque cada um

deles desempenha um papel e é necessário que todos estes suportescoexistam e sobrevivam para al i jar de nossas sociedades o r isco daamnésia e da anestesia e dar lugar a um futuro que respei te adiversidade cultural , onde a l iberdade de escolha e o desen volvimen-to do pensamento crí t ico, bases do pluralismo democrático, perma-neçam garantidos; porém, sobretudo, para assegurar a cada um dosindivíduos qu e compõe nossas sociedades um futuro co m memór ia ,en tendimento e vontade qu e são, precisamente, as faculdades d aalma.

(Tradução do original espanhol po r Carlos Sepúlveda)

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O LIVRO E A INVENÇÃO DA MODER NIDADE 1

CLAUDIUS BEZERRA GOMES WADDINGTON

Para Franco Portella

O livro como lugar de resistência do pensamento

D e sm e d i d o e es t ranho o p o d e r que as eli tes conservadoras d aE u r o p a d e q u i n h e n t o s e se i scentos at r ibu í ram ao livro. Justa o ui n j u s t a m e n t e ? A indagação pers i s te . O fa to é que pessoas , emnúmero express ivo , foram presas , to r turadas e mor tas pe la s im-

ples pos s e de l ivros c ons i d e ra d os pro ibidos . Qi^e diria escrevê-los , impr imi - los o u comerc ia l i zá- los? S in t o m a ; i c a m e n t e , na auro-ra da m o d e r n i d ad e , o livro, seu pr inc ipal agente d e t r an s fo r m aç ã o ,e ra cons iderado tabu. Tod o aquele que se ap r o x i m av a de le , fossele i to r , escri tor , edi tor, l ivreiro, todos colocavam a vida em r i sco .E s t r an h a m o d e r n i d ad e , capaz d e i n c r i m i n a r u m a pessoa pela s im-ples pos s e o u le i tura , se m aferi r sua concordânc ia ou di scordânc iacom o que fo i l ido .

Superes t i m a ção d o p o d e r revoluc ionár io d o l ivro , menospre-z an d o a inércia q ue ent re laça a trama social , d as esfe ras d e

prod uçã o ao espaço cul tura l? Nem tan to . A o proporc ionar emr i tmo, pene t ração soc ia l e qual idade , en tão in ima gináve i s , o aces-so ao l ivro , a invenção da imprensa sublevou a in te lec tual id ade eas autor idades re l ig iosas , po l í t i cas e e d u c ac i o n a i s . O q u e o livronão t ransfo rmou , abalou a té as en t ranhas ; nada perman eceu comoantes . Contudo , a reação fo i tão v io len ta quan to a ameaça de perdad e pod e r . Em pouco tempo a re inc idênc ia de ve lhas prá t i cas de

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controle e censura permitiu o retorno de um obscurantismo em nadainferior ao medievo. Nos habituamos a pensar as trevas do espíritocomo uma exclusividade medieva, da mesma forma qu e pensamos ailuminação como um privilégio m oderno. Esta visão dicotômica impe-de-nos de perceber, tanto a busca de esclarecimento qu e germina de

rimentados. A insustentável asfixia do ambiente acadêmico, a queconduz iu a excessiva especialização dos campos do saber, nã opoderia perdurar por muito tempo. Enquanto soçobram os siste-m as fechados de pensamento e o re la t iv ismo avança , a civilizaçãodo livro é chamada a depor . Ela é in t imada a declarar as causas

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Boécio a Nicolau de Cusa, quanto a quota de sombra qu e atravessa amodernidade, da Noite de São Bartolomeu a Auschw itz, passando pelolento extermínio das populações ameríndias.

Se as pessoas não são mais incriminadas pela le i tura, posse ,escrita, edição ou comércio do livro, ou pelo menos não f reqüen-temente , se rá que a crença em seu poder t rans formad or d imin u iu?Não faria es te fenômeno parte da Entzauberung do l iv ro? Amodernidade tardia parece ter ultrapassado sua dessacralização,hoje ela se confronta com a sua banali zação: qualquer um e screve,qualquer um publica. Impossível conter a indiferença que tomaconta tan to de in te lectua is quanto dos de rrade i ros remanescentesd o pa t ru lha m en to ideológico organizado. A ascendência político-social e cultural do livro se rarefez nas últimas décadas, a pontode podermos dizer que o intelectual, sobretud o o pensador, p erdeui rrevers ive lmente sua " a u r a " , tomando empres tado o te rmo con-

sagrado de B e n j am i n . Para conferir, é suficiente atentar paracomo os in te lectua is vê m sendo preteridos pelos chamados " for-madores de op in iã o" . A cena tardo moderna não reconhece maisas credenciais dos intelectuais para diagnosticar as mazelas dacivilização, nem para fazer a prospecção das mutações sociais. Anão ser que eles sustentem discursos qu e corroborem os interessesdas megacorporações f inance i ras , do capital voláti l e sem pátr ia ,e não questionem a in jus t iça socia l embutida no processo deglobalização.

Mas cum pre indagar se es te fenômeno não es ta r ia igua lmentec on ta m i na d o pelo descrédito em que caiu o edifício de verdades,laboriosa mente erigido pela me tafísica ocidental, e de que o livrofo i o incansáve l a rau to e o in t rép ido pa lad ino . O espectro da crisequ e corrói os modelos clássicos d e pensamento pro je ta -se sobreo l ivro. Talvez, a queda de prestígio do livro corresponda à buscade uma abertura d o pensamento , enquanto novas modal idades d ee xe r c í c io crí t ico e d e r e f o rm u la ç ão do co n h e c i m e n to são expe-

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que abraçou e as alianças que selou. Desde a aurora da modern i -dade, a secularização foi sustentada pela civ i l ização do l ivrocomo condição para a l i be rd a d e , ao m e s m o t e m p o em que aa l i anç a com as eli tes intelectuais imprimiu-lhe u m a inflexãopa terna l i s ta utópica da qual ela jamais logrou se desvencilhar.Agora que a ba ixa modern idade lança um severo olhar d e descon-f i ança sobre os grandes valores d a modern idade p lena , o livrosurge desti tuído de seus poderes insurrecionários. Talvez agora,despido das i lusões em que se viu envolto por tantos anos, eleconsiga levar a cabo a tarefa de emancipaç ão que é sua por opção,direito e vocação. Emancipação que a renascença desencadeou eo i luminismo resga tou e re formulou de forma mais consisten te. Oproje to emancipador do livro persiste , confirmando sua função deresistência à unidimensionalização da existência. Por isso, seriaprove i toso rev is i ta r o m o m e n to em que o livro assumiu o seu

compromisso cidadão. Acordo firmado entre o livro e a cidadevisando à reinvenção da vida.

O desmantelamento do universo de certezas

A incorporação pelo ocidente de três inovações tecnológicasesteve na base das revoluções renascentistas: a pólvora, o com-passo e a imprensa . Enquanto a primei ra de rrubava as m u ra lh a sfeuda is , o segundo desbravava os caminhos marítimos. Ambas,somando v io lência e temeridade, supervalorizaram a ação e, como auxílio da bússola, catapultaram o expansionismo e o colonia-lismo europeus. Liberaram e ampliaram os espaços fís icos eimaginár ios para a nova modal idade d e ex is tência que a modern i -dade ia fo r j ando . Por mais c i tad ina que fosse, porém, esta novaforma de viver em sociedade não se mostrou ap ta a conviver co mo não-europeu. Era antes uma ampliação, sem precedentes, de umi de a l d e e x i s t ên c i a p ro f u n d a m e n te a r ra i g a d o a o s valores oci -

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den tais , europ eus e cris tãos, pou co o u nada f lexível a uma aberturapara a d i ferença . Quando, graças às aventuras mar í t imas , a mo-dernidade européia deparou-se c om um horizonte desconcer tanted e diferenças, deixou escapar a opor tun i d a d e d e es tabelecer m o-da l idades de convívio com o outro , prefer indo as variadas estra-

móve is , não m odif icaram apen as a produção do livro. Eles revolu-cionaram a forma do ocidente se comunicar.

Para se ter uma idé ia do impacto do inve nto, es t ima-se que om o n t a n t e dos manuscr i tos produzidos durante os mi l anos deIdade Média n ão tenha ul trapassado a lgum as dezenas de m i lha res ,

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tégias de dominação, em defesa da fé , da coroa e da glór iam und a na .

Das t rês inovações , fo i a imprensa que t rouxe o fermento dat rans formação d o olhar e, sem ela, as pro fundas m ud a nça s que sedesencadearam em todos os campos do conhec imento ser iami m pens áve i s , e a c onv i vê nc i a u m d es i d e ra to a i nd a p o r m u i t ot em po i nexeqü íve l . Enqua n to a pó lvora , o c om pa s s o e a b ús s o -la foram c e do arregimentados pa ra as esca ramuças do colonia -l i smo, impl icando a neutra l i zação, senão a sub jugação do outro ,a d i s seminação do l ivro desencadeou uma prob lemat ização docânone que a modernidade ia er ig indo, facu l tando a ins tauraçãod e um a a tmosfera propíc ia ao d iá logo e, po r t a n to , à auscul taçãoda voz discordante do outro.

Ul t imam ente a tendênc ia tem s ido de minimiza r a impo r tânc iada contr ibuição de Gutenberg.2 Contudo, se o invento propr ia -

mente d i to pode eventua lmente não ser dele , ou nem todo osaspec tos técnicos envolvidos , o cer to é que foi Gutenberg quemprimei ro rea l i zou o que a junção de todas as inovações pa rc ia i sna fabr icação do l ivro poder ia representa r . Efet ivamente , fo i asoma des tas m udanças na fabr icação do l ivro com as novas pers -pec t ivas que o humanismo descor t inava no campo do saber queprovocou u ma m udança rad ica l na re lação que a cul tura oc iden ta lmant inh a com o livro. Propulsado pela inovação gutenberguian a ,o l ivro foi deixando a órbi ta da perpetuação do poder e do ente-s ou ra m en to do saber, para disseminar a contes tação ideológica eo pensamento quest ionador , a tuando iconoclast icamente em todasas esferas sociais em que pene t rou .

Quando Gutenberg começou su a incansável busca, o oc idente jád o m i n av a a fabricação do papel. A técnica da pintura a óleo, quevinha sendo desenvolvida pela escola f l amenga já há m ui tos anos ,fo r n e c e r i a a t inta adequada à impressão. J o h a n n e s G u t e n b e r g ,Joha nn Fus t e Peter Schõf fer , ao conceberem a prensa d e t ipos

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para um leque compara t ivamente l imi tado de t í tu los . Enquanto,em apenas c inqüen ta anos da era gutenberg uiana , a té 1500, cercade dez ou quinze mi l t í tu los d i ferentes , es t imando-se a t i ragemmédia a quinhento s exemplares, em cerca de trinta mil impressões,produzi ram uns vinte mi lhões de exemplares ! 3 Para o século XV I,imagina-se que cento e c inqüenta ou duzentas mi l impressões ,es t imando-se a t i ragem méd ia de mi l exempla res , e levaram aprodução do livro à surpreendente cifra de duzentos mi lhões deexemplares ! 4

A in te lec tua l idade européia fo i t om a d a por uma enorm e eufo -ria , gerada pelo cresc imento se m precedentes do pa t r i m ô n i o c u l -tura l impresso disponível e circulante. Não apenas a noção delimite parecia evaporar do campo do saber, como também pareciaminf initas as possibilidades de transformação que esse saber recém-conquistado poderia operar na sociedade moderna. Um dos emble-

mas mais eloqüentes desse aume nto descomunal de informaç ões e deconhecimento é a obra ciclópica de Rabe lais. Seus gigan tes ence nama passagem do mundo medievo para o moderno. Com Thubal Holo-ferne e Jobelin B ridé, satiriza os velhos métodos pedagógicos, sen-tenciando:

M i e u l x lu y vaul d ro i t r ien n ' a p r e n d e q u e telz l ivres soulztelz precepteurs aprendre, ca r leur sç avoi r n ' e s t o i t quebesterie e t l eur sapience n'estoit que m ouf l e s .5

A Sorbonne, com o ins t i tu ição, e a teologia , como campo do

saber, são os alvos preferidos de sua cr í t ica im placável . Janotusde Bragmardo, da faculdade de teologia de Par is , encarna a de-crepi tude de um saber extemporâneo, agora vi s to como umadebi l idade do espí r i to . Quando Pon ocra tes as sume a educação deGargantua , depois de es te ter - lhe mos trado como seus ant igospreceptores o ins t ruíam e rec i tado a longa lis ta d e jogos a l i enan-tes , a lém d e u m a t o t a l m u d a n ç a d e h á b i t o s e d e curr ículo ,

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prescreve- lhe "elebore d e A n t i cy re " , droga usada no t r a t a m en tod a l ouc u r a . 6 Porém , m a i s e f i c a z que a terapia química , é o poderregenerador do saber per t inente à vida ; por i s so não fa l tam, nau top i a thelemi ta , "lês belles grandes l ibrairies , en Grec , La t in ,Hebreu, Françoys , Tuscan e t Hespa ignol , ..."7 Se a época d e

(Pier re Tar ta re t , teólogo d a Sorbonne e c om en ta r i s t a d e Ar i s tó t e -les) t Q De Optimitate Triparum, de Beda (Noel Beda , professorno Colégio de Monta igu, um dos ma iores adversár ios do huma-n i s m o e da R ef o rm a ) 11 a modernidade descons idera o que a IdadeM éd i a p rod uz i r a d e re levante . M al pr inc ipia a tarefa básica d eseparar o j o i o trigo ques tão encerrada . A invenção

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Gargantua ca rac ter iza -se a inda por epi sód ios que remetem paraum ho r i zon t e s em i f eud a l, como a guerra pricocolina, a de Panta-grue l é entus ias t icamente renascent i s ta , f acul tando a Gargantuaa f i rmar , na célebre car ta que envia a Pantagruel :

Maintenant tout discipl ines sont res t i tuées , lê s languesinstaures - Grecque, [...] tout lê monde est plein de genssavans, de precepteurs três doctes, de librairies três amples ,qu ' i l m ' e s t advis que, ny au temps de Pla ton, ny de Ciceron,ny d e Papinian, n 'es to i t telle com m odi t é d ' estude qu 'on yveoit raaintenant, ...8

Es te quadro ext remamente pos i t ivo e auspicioso gera expecta-t ivas e anseios que exorb i tam a d imensão humana . Na mesmacar ta , Gargantua expr ime o d ese jo hum a n i s t a de um saber enci-clopédico que se inicia pelas letras

Ten ten s et veulx que tu aprenes lê s langues par faic tement :p r e m i e r e m e n t Ia Grecque, c o m m e lê veul t Q uin t i l i an ;secondement , Ia Latine; puis 1 'Hebra ique pour lê s sainctesletres, et Ia Chaldaícque et Arabicque pare i l lement"9

no i n tu i t o de t r i lha r todos os c a m i nhos do c onhec i m en to - paranunca mais ter f im. Ao af i rmar "que je voy un abysme d e sc ien-ce", Gargantua assume a desmed ida sede d e c onhec i m en to q ueanima a aurora da modernidade, mas , ao mesmo tempo, t ra i aincapac idade ou imposs ib i l idade de saciar essa voracidade sobre-

h u m a n a .Quando Rabela i s impregna a descr ição da "L ib r a i r i e de Sa intV ic t o r " , célebre biblioteca teológica par is iense ,1 0 co m s u a i roniam o rd a z , torna pa tente o desprezo a que a in te lec tua l idade renas -cente sentenc ia a t rad ição med ieva . E j u n t o com a A rs honestepetandi in societate d e M. Or tu i num ( H a rd ou i n , de Cologne,a d ve r s á r i o d e E r a s m o ) , o D e modo cacandi, d e T a r t a r e t u s

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da imprensa torna conceb ível o "ab í me d e sc ience", m as desnor-teia a in te lec tua l idade ren ascente com um d i lúvio de livros. Tend oq ue nadar por um revol to oceano d e impressos , mui tos le i toresn au f r ag am , se m conseguir se or ienta r na ava lancha d e novost í tu los , surpreend idos pela tor rente d e opiniões d ivergentes econtrad i tór ias , em que são conclamados a tomar pa r t ido. Nes tem o m e n t o , a modernidade deixa -se seduzi r pela exc ludente novi -dade d o ant igo, se m preocupar-se em consolidar cri térios d ere levânc ia , s em a fer i r - lhe a per t inênc ia pa ra a vida , sem tenta rreelabora r seu re lac ioname nto com a t rad ição em outro pa tam ar .Não há como camuf la r o d es lum b ra m en to que toma conta d amodernidade renascente , que, po r outro lado, revela-se desprepa-rada para as conseqüênc ias d as inovações tecnológicas de que seapropr iava , promovia ou pa t roc inava , vendo-se pos ter iormente

obr igada a adota r m ed idas de força pa ra conter os efe i tos que nãoprevira.A associação do papel, d a t in ta adequada à impressão e d a

prensa d e t ipos móveis nã o resul tou apenas na aceleração d aprodução - o que já representava um avanço s igni f ica t ivo -, masi gua lm en te colocou o livro ao alcance do poder aqui s i t ivo de umnúm ero ve r t i g i nos a m en te c r e s c en t e d e le i tores . O saber passoua c i r c u l a r na soc iedade, escapando ao controle e ao pr ivi légioquase tota l da Igre ja e da nobreza . Co m a invenção da impren sa ,a l i teratura, a his tória , a f i losofia e a c iênc ia da ant igüidadec láss ica , redescober tas graças ao empenho da e l i te humanis ta ,começaram, pr imei ro , a circular inte nsam ent e pelas cortes , para,f ina lmente , penet rar n as mais variadas classes sociais , repercutin-do nas formas m ais d iversas e fu n d am e n t an d o percepções e in ter -pretações, senão Opos tas , d iscordantes . Espec ia lmente nas corteshumanis tas , a prática, então d e regra, da le i tura em voz altam u l t i p l i c a v a pe lo núm ero d e a s s i s t en t e s a ex i s t ê nc i a d e um

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único exem pla r . Os comentár ios e deba tes que acomp anhavam ouseguiam es tas le i turas eram f reqüentemente re tomados pa ra aelaboração de cartas e outras obras , f acul tando a irradiação dolivro para além do recinto do salão. Incontáveis vezes , também,os debates prosseguiam para a lém d a cor te , ganhando a praça

dora , despon tava no cenár io cul tura l renascente a f igura do ind i -víduo, que com eçava a se rebelar con tra a ordem do saber ins t i -tuída. A i n t i m i d a d e com a t rad ição, que a prol i f eração d o livrofacul tava e os des l i zamentos que a le i tura s i lenc iosa e pr ivadaproporc ionava propic ia ram a ruptura da in terpre tação com oscânones exegét icos ins t i tuc iona l izados . O hum a n i s m o log ra r á

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públ ica , a academia, as reuniões legis lativas , os círculos delibe-ra t ivos dá polis e a té a a r red ia un ivers idade. A le i tura em voz a l tafe z o l ivro i r rad ia r da cor te humanis ta pa ra toda a soc iedade,fazendo d a cultura letrada coisa viva, dinâmica, e g r an j e an d o - l h eprojeção social que ra ras vezes na hi s tór ia do oc idente poderáigua lar .

Com a consti tuição das primeiras casas edi toria is , baseadas nosuporte tecnológico gutenberguiano, furou-se o monopól io da pro-dução do livro retido pelos mosteiros e univers idades, es tas sob avigi lante jurisdição do papado ou dos reis . Até então a produç ão dol ivro era met iculosamen te cal ib rada pa ra o a tend imento preciso dasdemandas do s i s tema educa t ivo pr imár io , in termed iár io e super ior ,ou então as encomendas da nobreza ou de algum outro mosteiro. Aprodução não excedia à demanda e t inha destino certo e monitora-do. Não havia espaço para o trabalho intelectual oriund o da inicia-

tiva d o indivíduo, apenas para o exercício coletivo, prescri to etutelado, de um saber rei terativo. Muito menos espaço ainda eraconferido à erudição, que era t ida como essencialmente perniciosa,fosse ela religiosa ou não. Era insti tucio nalm ente desestim ulada,pois trazia à tona uma multiplicidade perturbadora de pontos devis ta , perspectivas insuspeitadas e desconcer tantes d e abordagem,a ameaçadora relativização do saber. Foi cerceada ao longo domilênio medievo, mas agora a s i tuação começava a escapar aocontrole.

Se a inda era por demais cedo fa la r em secula r ização do conh e-c imento, já se pod ia cons ta ta r sua d isponib i l i zação e circulaçãoem proporções e ri tmo até então inconcebíveis . Este foi um pri-mei ro passo; o segundo ser ia a mudança na forma de o homemse r e l a c i ona r com o c o n h e c i m e n t o , co m a t rad ição. Nes te sen-t i d o , enqua n to a s ec u l a r i za çã o nã o c hega va , m a s p r epa ra nd o-lhe o caminho, a s s i s t imos ao advento do ind ivíduo. Se, por uml a d o , a c lasse i n t e l ec tua l se m a n t i n h a , e m bo a pa r t e , c ons e rva -

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romper com a percepção de m undo ins ta lada , inves t indo o ind iví -duo de poderes sobre-humanos , a f im de viab i l i za r- lhe o sonho deescapar à tute la in te lec tua l e ao m o n i t o r a m e n t o do pens a m en to .A erud ição revelou-se u ma das ma is ef icazes reservas de contes -tação e crí t ica , f om en ta nd o a emancipação ao ins t rui r os a rgum en-tos da diss idência. Este percurso em que o homem arriscava aprópria vida, terrena e eterna , e que ia da cr ia tura que redupl icao criado à criatura capaz d e criação, e que não escapou às lentespercucientes do Cassirer de Indivíduo e Cosmos,1 2 descrevia umtrajeto emancipador que nosso tempo perdeu a capacidade de avaliar.A m odernidade tardia revela-se sempre p ronta a atacar a miragem dohom em , do indivíduo, do sujei to, obli terando q ue, se m passar por ele,a modernidade não alcançaria a secularização do saber. E moderni -dade sem secularização do saber já não é m odernidade. A relevância

his tórica desta entidade, na g uinada do pensam ento moderno, deveriaser reavaliada pela baixa modernidade. Forjado ou não, o indivíduofo i um dos principais agentes da transformação do pensamento,prom ovida pela modernidade. Graças a esta entidade, que passou aminar e a corroer as insti tuições e a m entalidade domin antes , a lavan-cando as revoluções ren ascentis tas com um pé na fogueira e outro nocadafalso, o acesso ao conhecimento deixaria gradativamente deestar condicionado a uma adesão ideológica e as vozes discordantesse fariam cada ve z mais ouvir.

Não há como discordar: na manhã seguinte à conquista gutenber-guiana, o livro permanecia sob o domínio de uma elite de editores-letrados e a erudição ainda restri ta aos muros monacais ou senhoriais .Contudo, Hans Amerbach, Froben, Josse Bade não eram apenasempresários do livro, pois troux eram para o ramo editorial todo umprojeto de propagação do saber fortemente la icizante e inspirado nosmelhores idea i s hum anis tas . Mas quem pio nei ramen te rea l i zou oideal do impressor humanista de que fala Febvre fo i Aldo Manuzio.13

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Em Ferrara, ao aprender o grego com Guarini, Aldo bebeu de fontepura a essência do pensame nto hum anista em sua vertente mais radical.Por ocasião da chegada dos sábios gregos refugiados em Venez a, tevea idéia de fundar um a oficina tipográfica que, em pouco tempo, de uorigem à Academia Aldina. Por lá passaram Erasmo, Bembo, Ge roni-m o Aleandro, en tre outros, escolhendo e discutindo os textos a serem

bibliotecas públicas e leigas , um número crescente de letrados eintelectuais de confissões religiosas e tendências filosóficas diferen- ,te s ganhou acesso à imensa tradição do saber ocidental que jaziaen t e s oura d a e m or t a na s penum b ra s d a s b i b l i o t ec a s m ona c a i s .C om eçou a s e m ul t i p l i c a r , o u t r o s s i m , um a m od a l i d a d e d e b i -b l iot eca cuja d i s se min ação só se tornou poss ível graças à inven-

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impressos e o s manuscritos que serviriam de base às edições. Mand oucortar caracteres gregos e latinos de distinta elegância para suas ediçõesde Aristóteles, Aristófanes, Tucídides, Teócrito, Sófocles, Heródoto,Xenofonte, Demóstenes e Platão, entre os gregos; Virgílio, Horácio,Ovídio, Juvenal, entre os latinos, e Dante, Petrarca, Boccaccio eErasmo, entre os modernos. Tudo com apuro filológico inteiramentedesconhecido para a época. O que tornou realmen te revolucio nária aatuação de Aldo na imprensa renascentista, porém, foi sua idéia deoferecer tudo isto em edições "d e bolso", extremam ente acessíveis ,e, para manter o preço o mais baixo possível, fez tiragens de milexemplares, ao invés do s duzentos e cinqüenta exemplares entãopadrão. O exemplo de Aldo fo i imediatamen te adotado pelos outrosgrandes impressores renascentistas, como Josse Bade, SébastienGryphe e os E stienne, que asseguraram a continuidade da revolução

laicizadora, mantend o o formato compacto, barato e com o melhorconteúdo que havia para se oferecer ao público.Sébastien Gryphe exemplif ica o espíri to que anima, nessa épo-

ca, os livreiros e impressores humanistas . Enquanto l ivreiro, foio grande dis tribuidor das edições aldinas; como impressor, tendocomeçado a impr imi r em gót ico, logo adquiriu caracteres i tálicose romanos, adotando como linha editorial os clássicos la tinos e a straduções latinas dos clássicos gregos, tudo no compacto e aces-sível formato aldino. Nã o m enos prezou os modernos, tendo edi-tado Budé, Erasmo, Pol iz iano, Jules -Césa r Scaliger, Dolet e ostrabalhos científ icos de Rabelais . Como humanista , apesar de nãol egar obra escri ta , reunia em sua casa intelectuais e eruditos ,propiciando fecunda troca d e idéias e opiniões que imprimiu aohum a n i s m o l i onê s i n f l exã o e s pec i a l í s s i m a e d i s t i n t a d a pa r i -s i e nse , qu e pe rm a nec eu sob o espec t ro d a Sorb onne .

Não apenas a produção se descentrou, como também a guardae o acesso à cultura impressa. C om a cons t i tu ição das p r i m e i r a s

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ção da imprensa : a bib l ioteca pa r t icula r d o s hum a n i s t a s . A mul t i -pl icação des te espaço foi f u n d a m e n t a l para ga rant i r a inde-pendênc ia f r en te às ins t i tu içõ es e a cont inuid ade do t raba lho, poi sa prática mais comum d e controle e d e censura, e a primeira deque se lançava mão, res idia em veta r o acesso à bib l ioteca mona-cal, pa lac iana , rea l ou un ivers i tár ia . A t rad ição, uma vez exu ma-da, foi a lvo de uma seleção: o f i lão medievo, salvo raras exceções,ca iu em os t rac i smo, enquanto a ant igüidade c lás s ica recém-res -ga tada recobrou velozmen te a subvers iva se iva e o vigor contes t -ador . A erud ição humanis ta fez reviver a pol i fonia do saber edesencadeou a crít ica d a modernidade pela t rad ição. Eis por que,dentro em breve, a pr imei ra mode rnidade, ca recendo d e a rgum en-tos ma is cons i stentes , incapac i tad a d e s us t en t a r o deba te e repli-car as contes tações m ovidas pela t rad ição, opta r ia pelo s i lenc ia -

m e n t o des ta , recorrendo ao es t ra tagema do desca r te da voz d i s so-na n t e . Ela fo i a c om et i d a não tanto d e amnés ia como d e precon-cei to . Foi aí que ela enveredou pelo d i scurso monológico, que afascinaria dentro em breve, e que daria origem a um exercíciorec luso e s i s temát ico do pensamento, desprezando o outro e oespaço públ ico, na impassível fr ieza d e suas articulações. A m o -dernidade descurou de que não poder ia ir mui to longe ignorandoo outro e a polis. Não por acaso el a veio a se cons t i tu i r nes ta sér iede equívocos e tropeços, inaugurada pelas guerras de rel igião epela C o n t r a - r e fo r m a , protagonizad as pela in tolerânc ia ma is inf le-xível e pela violênc ia ma is inc ivi l i zada .

O papel do livro no processo de laicizaçãodo conhecimento e de consolidação da cidade moderna

E n q u an t o a imprensa cuidou de saciar a voracidade lei tora dopúbl i co emergente com matéria religiosa dentro da melhor ortodo-

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além de ter de amarg ar este prejuízo substancial , teve qu e apagar oincêndio provocado p ela publicação, no mesmo ano, da Instituição daReligião Cristã, de Calvino , verdadeira bomba contra a supremaciado dogma católico. O Calvinismo empen hou-se em concil iar a maissevera r ig idez moral com o enriquecimento, af i rmando, para con-tentamento da burguesia , que a riqueza pessoal er a sinal de proteção

fomentaram a riqueza de seus cidadãos, ao passo que os católicos, a daIgreja e a do Estado. Con quan to o dissenso campeasse sobre qualqu eroutro tópico, houv e consenso quanto à relevância da riqueza.

Enquan to os p roje tos reformadores , fossem ca tó l icos , lu tera -nos ou ca lv in i s tas , segu iam seus v i ru len tos caminhos , remen-dando interesses f inanceiros co m t ransformações rel ig iosas , a

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divina. Curiosamente, os reformis tas não pesaram o en r i qu ec imen -to da Igreja Catól ica pela mesma medida, tendo fei to da contes-tação do f aus to do clero e da escandalosa venda de indulgênciasuma de suas bandeiras. Graças a esta f lexibil idade no t rato co mas coisas de César, o calvin ismo al iviou o drama da consciênciaburguesa , descu lpabi l i zando-a . O s ca lv in i s tas p rospera ram pelaEuropa so b diversos nomes: presbiterianos, na Escócia , pur i t anos ,na Ing la ter ra , e huguen otes , na França . O mundo ca tó l ico, com-balido pelos sucessivos golpes reformistas , teve que reagir . Nãoh a v i a mais como diferir a sua própria reforma e, neste mesmo anode 1534, surge em Roma a sua mil ícia da fé, a Companhia deJesus.

Es te fo i a inda o ano da descober ta do Ca n a dá por J a cqu esCar t ier , re lançando o sonho de uma nova ter ra onde as re lações

h u ma n a s s e r i a m r e i n v en t a da s sobre bases supos tamente maise quân ime s , porém sob um crescen te recrudescimento mora l ,re l ig ioso e cívico. A descober ta ou a con qu i s t a de novas ter rasera invar iavelmente percebida como a opor tun idade de rea l iza -ção de um proje to u tóp ico pela cons t i tu ição de uma comu n ida deisolada , onde uma facção se ressa rc i r i a da indesejada in terpe-lação da ou t ra , se resguardar ia do qu es t i on a men to de suasi d é i a s , se p r eca t a r i a da á r du a t a r e f a da a u toc r í t i c a .

P or toda parte, a solução encontrada pela modernidade para aconvulsão econômico-pol í t ico-socia l- re l ig iosa que en tão sacudiaa E u r op a p a s s a v a pela r a d i ca l i z a çã o dos p a r t i dos , r e l i g i os os ounão, pela queda das quotas de tolerância às di ferenças , pelofor ta lecimento do s dispos i t ivos de combate às divergências dequalquer na tu reza , pelo enr i j ec imento mora l . A promoção doconvívio entre as diferenças no espaço público recém-reconquis-tado é preter ida em favor do en f r en t a men to .Mas o reconhecimen-to da impor tân cia da r iqueza un iu todas as facções . Os reformis tas

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velha cosmovisão medieva , que m u t a v a so b o efei to das idéiash u ma n i s t a s , i a - se dis solvendo, ao mesmo tempo que uma novacos mov i s ã o se erigia dos seus escombros. A s ru ínas da an tece-den te serv iam de escora da que sucedia , a inda qu e prov isór ia ,

mas de uma prov isor iedade pers i s ten te , ren i ten te , indesejada .Dessa convivência forçada com a di ferença , t a lvez tenha nasci -do o f a n t a sm a da pureza como uma formação r e a t i va .17

Não há dúvidas de que, entre os lugares privilegiados desteconvívio entre cosmovisões, os mais eloqüentes são os tex tos deRabelais , Cervantes e Shakespeare. Atenhamo-nos, por questõescronológicas, ao texto rabelais iano. Quan do, neste mesmo ano de1534, Rabelais publica, em Lyon, La vie três horrifique du grandGargantua, onde a verve goliárdica e o espírito da feira e docarnaval medievos fundem-se com o evangelismo e os ideais hu-

manis t a s , a miscigenação das cosmovisões at inge seu clímax. Oalto grau de impureza do texto rabelaisiano inviabilizaria qualquerdogmatismo, qualquer intransigência e, exatamente por isso, foicondenado tan to por Calvino quanto pela Sorbonne, porque amb asas facções t inham em comum a irresis t ível compulsão à eugeniaespir i tual . A truculência da Inquisição tornou explíci ta a opção daIgreja por uma vivência religiosa mediada, codificada e patrulhada,que salvaguardasse a pureza do dogma catól ico. Entre os reformis-tas, o fascínio pela primit iva rel igião cris tã , conquanto pregasseu m a comu n i ca çã o d i r e t a com a d iv i n da de , n ã o a b r i a mão docódigo severo e do cont role fé r reo, ao mes mo t emp o qu e

t r a du z i a a mes ma p e r qu i r i çã o da assepsia da crença . At raves -sando os perca lços e os desen tendimentos da fé, a modernidadeseria conduzida a opta r p or formas supostamente puras de experi-mentação do exist ir e o exercício do pensam ento seria moldado porprát icas excludentes onde reinaria soberana a razão, emancipadado s sentidos, ou os sentidos, l ibertos da razão. A pr imei ra moder-

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nidade caiu na armadilha metafísica, qu e previa, para o trabalho dopensamento, o imperativo da opção excludente entre racionalismo ouempirismo. Silenciou a crise cética do século XVI e a libertinagemerudita do início do século XVII.

Quando o " Affaire dê s placards" e s tou r a na França , no ano de1534, a reação da Igreja e da facção católica f r ancesa t inha como

tistas estimulavam, cedeu gradativamente lugar à leitura silenciosa eintrospectiva, que, posteriormente, facultaria o desenvolvimento dadefesa da liberdade de pensa mento , com Voltaire, e da tolerância, comKant . A cidade, qu e deveria ser o lugar po r excelência do diálogocom o outro, da aceitação recíproca da s diferenças, tornou-se pro-visoriamente uma praça entrincheirada, dominada pela intolerância

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pano de fundo o descrédito crescente em que caía o diálogo comoins t rumento de negociação dos confli tos e a aposta no enf renta -mento como estratégia para solucionar a ameaça que a voz discor-dante do outro parecia opor ao disposit ivo sócio-polít ico vigente.A reação, desproporcional aos nossos, olhos, mas compreensívelno mom ento em que ocorrera, determin ou a fuga de todos quant osnão souberam conter a veia contestadora e most ravam-se s impa-t i zan tes do evange l ismo. Marg uer i t te de Nav arre pro tegeu qu an-to s pôde e o quanto pôde , mas , em breve, nem Augerau, se u edi tor ,escaparia da fogueira.

O hum anis ta Ét ienne Dole t , que ent rou para o ramo edi tor ia l aoingressar na empresa de Sébastien Gryphe, em Lyon, a princípionão pretendia descer à arena dos confli tos rel igiosos, mas acaboupreso. Seu crime? Tendo recebido privilégio real para imprimir e

comercializar l ivros, estabeleceu-se entre os grandes l ivreiroslioneses, colocando à venda, em sua livraria, obras cristãs, porémsuspeitas: o Enchiridion, de Erasmo, alguns textos de Lefèvre , osSalmos na tradução de Marot e u m Novo Testamento em francês,entre outros. Uma busca em sua casa revelou que ele possuía atradução francesa da bíblia, fei ta por Ol ive t ano , e a Institutionchrétienne, de Calvino . É quanto bas ta . Após uma seqüênc ia deencarceramentos e l ibertações provisórias, termina na fogueirainalando a fumaça dos l ivros que ele mesmo publicara.

Quando os conf l i tos re l ig iosos se ge ne ra l i z a r am, as persegui -ções tornaram-se sistemáticas e freqüentes. Foi imposs ível con-ter a debandada dos editores, que buscavam refúgio nos paísesmais tolerantes. A Contra-reforma interceptou o florescimento daimprensa h uma nista e as guerras de religião redirecionaram a men-talidade e a intelectualidade européias, mas o homem já dera oprimeiro passo em direção à construção da l iberdade. A leituraem voz a lta, extroverti da e mu ltiplicado ra, que as cortes renascen-

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mútua , mas que, em breve, viu surgir os salões e os cafés, onde aconversação e, em seguida, o pensamento voltariam a privilegiar oespaço público. As sementes da secularização e da universalizaçãodo saber, como in strumentos de emancipação do homem, haviam

sido lançadas. Custariam a florescer pelas circunstâncias adversas.Mas o livro permaneceu guardando o lugar da liberdade. Como seinstasse o leitor a se aventurar pela experiência da maioridade eportasse a inscrição Sapere aude. Se u percurso, na primeira moder-nidade, fez dele este espaço de resistência, ensin ou-o a lutar contr atodas as formas de t irania e d e obscurantismo, e consti tuiu-o guar-dião dos sonhos da hu man idade inteira, onde ela vai periodicamentebuscar a energia n ecessária para reinv entar a existência.

NOTAS

O s conceitos de baixa modernidade, tardo moderno e modernidadeplena são tomados da fecunda reelaboração crítica da modernidadeempreendida por Eduardo Portella. Dentre seus trabalhos sobre otema destaco: "As modernidades", in Revista Tempo Brasileiro,[84]: 5/9. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1986; "Premissas epromessas da modern idade", in Revista Tempo Brasileiro,[130/131]: 5/10. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997; " Q u a lmodern idade?", in Revista Tempo Brasileiro, [111]: 109/112.Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992," A racionalidade aberta",in Revista Tempo Brasileiro, [135]: 217/220. Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, 1998, e "O começo da história", in RevistaTempo Brasileiro, [136]: 117/123. Rio de Jane i ro , TempoBrasileiro, 1999.

9

Ver, a respeito, o capítulo "Lês représentations de 1'écrit" , emRoger Chartier. Culture écrite et société. L'ordre dês livres(XlV-XVlf siècle). Paris: Albin Michel, 1996, pp.17-44.

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Lucien Febvre/Henri-Jean Martin. O Aparecimento do livro.São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista - Huci tec ,1992, p . 356.

4Ibidem, p. 374.

Rabela is . Gargantua, in Oeuvres completes. [Edição de P.

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Jourda, volume 1]. Paris: Garnier Frères, 1962, p. 62.6

I b i d e m , p. 88.

7I b i d e m , p. 193.

8I b i d e m , p. 259.

9I b i d e m , p. 260.

10

l i12

13

14

1 5

16

17

Rabela is . Pantagruel, in Oeuvres Completes. [Edição de P.Jourda, vol. 1]. Paris: Garnier Frères, 1962, pp . 248-256.

Ibidem, pp. 250 e 251.

Ernst Cassirer. Individu et cosmos dans I a philosophie de Iarenaissance. Paris: Minuit , 1983.

Lucien Febvre/Henri-Jean Martin. O Aparecimento do livro.

S ão Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista - Hucitec,1992, p .221- 223 .

Condorcet, na terceira época de seu Esquisse d'um tableauhistorique dês progrès de Vesprit humain, apud Roger Chartier.Culture écrite et société. L'ordre dês livres ( X F V -XVlf siècle).Paris: Albin Michel, 1996, pp . 22-23.

Wilson M artins., A palavra escrita: história do livro, da imprensae da biblioteca. Sã o Paulo: Ática, 1996, p. 219.

Rabelais. Pantagruel, in Oeuvres Completes. [Edição de P. Jourda,

volume l, capítulo LVII]. Paris: Garnier Frères, 1962.Remeto o leitor para o capítulo de abertura (intitulado " O sonho dap u r e z a " ) de O mal-estar da pós-modernidade, de Zygmun tBauman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar E ditor, 1998, pp . 13-26.

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Cena Aberta

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JUAN RULFO, A PALAVRA MURMURADA*

EDUARDOPORTELLA

O narrador mexicano Juan Rulfo nasceu no dia 16 de maio de1918, em Apulco, Estado de Jalisco, e morreu a 8 de janeiro de1986, na Cidade do México, Distri to Federal. Em toda a vida,publicou apenas dois livros: El llano en llamas (1953) e PedroParamo (1955). Logo se tornou , na Amé rica Latina das transições, ede maneira inesperada para ele, desprendido e desambicioso, nocaso mais convincente de um clássico moderno. N a contracorren-te da retórica de época, fez do comedimento, da parc imônia , da

economia verbal, a sua opção primordial. Sem contudo renunc iar"à cultura de origem, ao hispânico mesclado, americano e amerín-dio a uma só vez.

Certo dia, depois de muit o cobrado pelos am igos, pelos leitores,pela imprensa, tentou justificar o seu laconismo, dizendo: "Porquepara escribir se sufre en serio". Apesar desse sofrimento, e doperfeccionismo inibidor, escreveu textos para cinema, trechos in-completos de relatos vários, fragmentos independentizados que, peloseu vigor narrat ivo, tornaram-se autô nomos. É o que nos mostra TodaIa Obra (1992), de Juan Rulfo, que a Colección Archivos recolheucuidadosamente, acrescentando parte substancial da fortuna críticade Rulfo, sob a coordenação qualificada de Claude Fell. A essa obraanteriormente conhecida se junta agora, saído há poucos dias, ovolume Aire de Ias Colinas. Cartas a Clara (2000). Poucos imagina -

* Palestra realizada na ABL, Rio de Janeiro, a 5 de setembro de 2000.

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riam que o lírico contido se deixaria explicitar, talvez enrubescido, nacorrespondência amorosa. Mas eram cartas dirigidas à sua mulher,Clara Aparício de Rulfo. Juan Rulfo, desde cedo, afastou-se da predicação. Em vez de expor

idéias ou vender ideologias, ele preferiu ser, tão-somente, e mais quetudo, o narrador. Não o narrador metafísico, portador de verdadesirrefutáveis. O narrador que, embora envolvido, em quem predomina a

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Filho diletoda designada "novela de Ia Revolución Mexicana", todopressionado pela exacerbação dos "Cristeros" (1926-1928) de umlado, e do outro pela repressão do Governo, Juan Rul fo recusa aplacidez dos retratos de família. Ultrapassa imediatamente a reprodu-

tibilidade preguiçosa do realismo fotográfico. Os rostos crispados,sobriamente arrancados de planícies e paramos, apenas murmuram.

Pode-se surpreender uma espécie de estilística do murmúrio, em meioao alarido ensurdecedor do discurso dominante. Não por acaso a versãoinicial de Pedro Paramo se chamouLos murmullos. "Ali — diz Rul fo ,em uma passagem de Pedro Paramo —, donde ei aire cambia ei colorde Ias cosas, donde se ventila Ia vida como si fuera un puro murmurar,

como se fuera un puro murmullo de Ia vida", ali, diria, moram "osremorsos", as obsessões, o mutismo programado, os intervaloscomu-nicacionais carregados de significações - o sentido perpassado pelos

sentidos. Esses sentimentos constrangidos, e não raro constrangedores,com que Juan Rul fo promove a união operosa e matricial de palavra,espanto e silêncio.

O alargamento .imaginário do real, obtido mediante procedimentosrigorosamente ficcionais, soube proteger-se das ingerências ou políti-cas ou melodramáticas, f reqüen t emen te políticas e melodramáticas,que a história revolucionária cultivou até o limite da caricatura e, porrazões óbvias, da exaustão. O realismo sem adjet ivos que ident i f icaRul fo recolheu a violência, a culpa, a fatalidade, do que modestamentedenominou "relato de aldeia", mas evitou a grandiloqüência dos dis-cursos edificantes. Ele soube interpretar a cólera dos despossuídos, a

indignação raramente contida e assiduamente explosiva dos oprimidospela ordem social injus ta . Desde a narrativa breve "Nos han dado Iatierra", ao começar A planície em chamas, até a descida aos infernosde Comala, em Pedro Paramo, a desigualdade e a opressão jamais sãopoupadas. Sem recorrer, porém, à estridência eleitoreira ou ceder àtentação da ênfase.

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primeira pessoa, consegue evitar o autocentramento e abrir passagempara o outro. O narrador enraizado, perigosamente equilibrado entre acartografia minada do campo e a sóbria desconfiança no progresso.

É verdade que, entre humilhados e ofendidos, uns contingenciais,

outros fantasmais, toma corpo e se desenvolve o mandato dos justicei-ros. O séquito danado de Pedro Zamora, no relato A planície em chamas

expõe, à visitação pública, a ferida aberta pela brutalidade humana. Massem melodramatizar. O corte vertical sobre o horizonte intersubjetivoda linguagem promove a prescrição da lamúriae aprescriçãodopranto.A austeridade simples de Juan Rul fo não admite concessões. Quandomuito, a ironia travada ou o impulso trágico, deixa passar pelas frestasdo edifício narrativo, boa parte da dramaticidade inerente às migraçõesurbanas e aos campos abandonados. Os personagens, nessa hora, pade-cem de certa paranóia coletiva, plausível sobretudo para quem se

encontra em estado de sítio ou pode se deparar, a qualquer instante, coma emboscada fatal. A descrição precisa, a oralidadenunca banal, o apuroléxico, o sopro vivificador da linguagem, encarregam-se de repor ascoisas nos seus devidos lugares.

Não seria despropositado considerar a Juan Rul fo o tradicionalistamoderno. Mais do que relembrar, ele registra a transformação. A vidada cidade recupera, por entre a trepidação do asfalto, e certamente porela filtrado, o imaginário rural. Deixa, contudo, que se perca o que fora

o eixo ético sedimentado. O rural cada vez mais pré-urbano e urbano,sacudido pelo idioma da modernidade, recolhe mitologicamente osícones e os fetiches, postos ou impostos à suadisposição pela voracidadecitadina. Rulfo conhece por dentro todos esses mal-entendidos dostempos modernos. Conhece o lugar e a errância, a raiz e mais ainda o

desenraizamento.

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IV

Estamos nos aproximando de Comala, a divisa da morte, o território

onírico de Juan Preciado. Aí se desenrola a peripécia vital, ou mortal,

de Pedro Páramo. É a narrativa tenaz de ausências que são presenças,

de interlocutores desaparecidos, e nem por isso menos participantes. É

murmúrio, no centro da qual se encontra a eclosão da morte. Osescritores verticais dispõem de mecanismos apropriados para tratar

da morte. Os levianos, não. Estes preferem banalizar o sentimento

trágico da vida, e com isso retirar da morte o que ela tem ao mesmo

tempo de contingente e de extraordinário, de fa ta l e de perdurável.

Vol tamos portanto ao cerne da linguagem. O que não se pode dizer

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a parábola do s fantasmas, levada à cena po r atores fantasmais ou , como

disse Rulfo , em certa ocasião, por "almas en pena". N em assim osf an t asmas de Juan Rulfo deixam de ser fantasmas de carne e osso,

tragicamente soterrados na s ruínas de Comala.

Nes ta direção Juan Preciado, atendendo à vontade da mãe, expressa

na hora da morte, parte ao encontro do pai. Todos guardaram namemória o começo emblemático de Pedro Páramo. Em várias univer-

sidades do mundo, colegas meus me repetiram de cor este parágrafo:

"Vine a Comala porque medijeron que aqui viv ia mipadre, un talPedro

Páramo". Adesolada procura do pai foi uma missão impossível, porém

repleta de signos grávidos de vida. A vida qu e aflora e floresce nodiálogo dos mortos.

Comala era um povoado morto de morte morrida, como se dizia nointerior do Brasil. Comala era uma pequena cidade morta, e um grande

mausoléu, habitada po r cadáveres enfurecidos. Somente o amor prome-tido de Susana San Juan, um a sorte de Inês de Castro tropical, destoa

desse ambiente fúnebre. N o mais, é a profunda solidão, qu e atravessa

Comala de ponta a ponta.

A revolução extraviada, e as representações estilhaçadas de ummundo agonizante, pareciam alimentar a solidão. A solidão em Juan

Rulfo distingue-se da solidão em Gabriel GarciaMárquez. N o segundo,

a solidão está ligada ou decorre, em maior ou menor escala, de estruturas

de poder em deperecimento. No primeiro, a solidão é antes conseqüên-

cia da errância cravada no coração do projeto humano. D e qualquer

modo, persiste alguma coisa de becketiana em toda essa perplexidade.

Com uma diferença básica: aqui todos sabem de antemão qu e Godotnão virá.

"A gente não morre, fica encantado", disse uma vez outro escritorradical, também João, João Guimarães Rosa. E essa revelação talvez

possa servir de legenda abrangente dopercurso narrativo de Juan Rulfo ,de epígrafe à sua poética do encantamento ou à sua estilística do

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por culpa das carências da língua, é possível murmurar com e pela

força da linguagem. A linguagem é uma prática amorosa. Só avita l idade da linguagem pode salvar o homem da morte, ou pode

fazê-lo ressuscitar. É a lição de vida e de literatura do escritor

exemplar Juan Rulfo.

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FRANCISCO DELICH

Professor de Sociologia Econômica da Universidade de Córdoba ede Teoria Social na Universidade Nacional de Buenos Aires. Atu almen-te, dirige a Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais e a Biblio-teca Nacional da Argentina.

MAURICE AYMARD

Historiador, Diretor de estudos daÉcole dês Hautes Études en SciencesSociales (Paris), Administrador da Maison dês Sciences de VHomme(Paris) e Secretário Geral do Conselho Internacional de Filosofia e deCiências Hu manas da UNESCO. De suas publicações mais recentes res-

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GERD BORNHEIM

Professor de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Livre-docente em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grandedo Sul. Possui vasta obra p ublicada, da qual ressaltam: Dialética, Teoriae Práxis; Sartre, Metafísica e existencialismo; Páginas de Filosofia daArte; O sentido e a máscara; e Metafísica e Finitude.

GIANNIVATTIMO

Professor Titular de Hermenêutica Filosófica da Universidade deTurim. D esenvolve uma perspectiva de análise da história da civilizaçãoocidental que denominou "pensiero debole". Seus inúmeros ensaiosabordam questões da sociedade contemporânea; dentre eles ressaltam:// soggetto e I a maschera (1974), Al di lá de i soggetto (1981), La finedelia Modernità (1985), La Società T rasparente (1989), Oltre Vinter-pretazione (1994).

GLÓRIA LOPEZ MORALES

Possui considerável experiência internacional em gerenciamento de

cultura e negócios culturais, destacando-se nas áreas de pluralismocultural e diferença. Coordenou a participação da UNESCO na Celebra-ção dos 500 anos de Aniversário do Encontro de Dois Mundos (Euro-pa/América) e representou a UN ESCO em seu Escritório Regional emHavana (Cuba).

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salta: Histoire économique de 1'Italie à Vépoque moderne (1991).

MICHEL MAFFESOLI

Professor de sociologia na Universidade de Sorbonne, dirige o "Cen-tre d'études sur 1'actuel et lê quotidien" (Sorbonne) e o "Centre derecherche sur 1'imaginaire" (Maison dês sciences de l 'hom me). De suavasta bibliografia destacam-se: La violence totalitaire, À Vombre deDionysos - contribution à unesociologie de l orgie, Lê temps dês tribus,Éloge de Ia raison sensible.

MILAGROS DEL CORRAL

Diretora da D ivisão de Criatividade, Indústria Cultural e Direitos doAutor da UNESCO, além de seu Departamento Editorial. Tem expe-riência internacional em edição e e m biblioteconomia.

RAFAEL ARGULLOL MURGADAS

Filósofo, autor de numerosos ensaios, é igualm ente dramaturgo, roman-cista e poeta. Professor Titular de Estética e de Teoria da Arte na U niver-sidade Pompeu Fabra de Barcelona. Su a vasta bibliografia inclui: La

atracción de i abismo; Aventura, un filosofia nômada; El cansando de iOccidente; El cazador de instantes; El fin de i mundo como obra de arte;El afilador de cuchillos; El héroe y ei único; e La razón de i mal.

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Publicamos no n° 141

• FRANCISCO FOOT HARDMANMorrer em Manaus: os avatares damemória em Milton Hatoum

• RENATO CORDEIRO GOMESDe Ópera, cenas urbanas e outras burlas

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na narrativa brasileira contempo rânea

• BEATRIZ RESENDE

Imagens da Exclusão

• IV O LUCCHESIDo flâneur ao voyeur: a crise da(s)modernidade(s)

• A N A CLÁUDIA GIASSONESã o Miguel e o dragão. Cidade e violênciaem O matador, de Patrícia M elo

• THEOTONIO D E PAIVA

D a desutilidade poética: um estudoacerca do Livro sobre o nada

• ELEONORA ZILLER CAMENIETZKITrês propostas para o próximo milênio:Cidade de Deus, de Paulo Lins, A lição doprático, de Maurício Luz e Trono da rainhajinga, de Alberto Mussa

• JOSÉ ELIAS JR .Jardim Brasil: conto; os lados do infinito

• CLÉA CORRÊA MELLOO desafio crítico de Cidade de Deus

• C L Á U D I U S B E Z E R R A G O M E SWADDINGTONSérgio Sant'anna e a baixa modernidade

• EDUARDO PORTELLAO ensaio como ensaio