RICARDO RANGEL GUIMARÃES - CONHECIMENTO E JUSTIFICAÇÃO NA EPISTEMOLOGIA DA MEMÓRIA

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA MESTRADO

RICARDO RANGEL GUIMARES

CONHECIMENTO E JUSTIFICAO NA EPISTEMOLOGIA DA MEMRIA

Prof. Dr. Cludio Gonalves de Almeida Orientador

Porto Alegre 2009

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RICARDO RANGEL GUIMARES

CONHECIMENTO E JUSTIFICAO NA EPISTEMOLOGIA DA MEMRIA

Dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de Mestre pelo Programa de PsGraduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Cludio Gonalves de Almeida

Porto Alegre 2009

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RICARDO RANGEL GUIMARES

CONHECIMENTO E JUSTIFICAO NA EPISTEMOLOGIA DA MEMRIA

Dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de Mestre pelo Programa de PsGraduao em Filosofia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

Aprovada em __de_________________de______

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________________________________ Prof. Dr. Cludio Gonalves de Almeida - PUCRS ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Luft - PUCRS ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Felipe de Matos Mller - PUCRS .

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minha me. memria do meu pai e de Marcelo Jos Pereira.

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AGRADECIMENTOS

Ao CNPQ, pela concesso de bolsa integral de estudos nos trs ltimos semestres, e a CAPES, pela concesso de bolsa parcial no primeiro semestre, e que permitiram a realizao desta dissertao e do curso de mestrado. Ao Programa de Ps - Graduao em Filosofia da PUCRS, ao seu corpo docente, e aos secretrios Denise Tonietto e Paulo Roberto Mota, sempre solcitos e prontos a resolverem qualquer problema. Ao meu orientador, Prof. Dr. Cludio Gonalves de Almeida, pela amizade, apoio, pacincia e precisa orientao, e por ter-me proporcionado contato direto com a pesquisa filosfica em Epistemologia Analtica Contempornea. Ao Prof. Dr. Draiton Gonzaga de Souza, pela amizade, incentivo e por encorajar-me a seguir na carreira de pequisador em Filosofia. Aos meus colegas de grupo de Epistemologia Analtica, pelas ricas e inteligentes discusses dentro e fora da sala de aula. A todos meus queridos amigos, pelos bons momentos, pelas boas conversas, pelo esprito fraterno. minha famlia, em especial minha me e ao meu pai, que sempre me apoiou e deume incentivo, mesmo sem saber direito o que eu estava fazendo. E, finalmente, Daniela, pelo companheirismo e amor.

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A realidade apenas se forma na memria: as flores que hoje me mostram pela primeira vez no me parecem verdadeiras flores. Marcel Proust A memria o essencial, visto que a literatura est feita de sonhos, e os sonhos fazem-se combinando recordaes. Jorge Luis Borges

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RESUMO

O contedo da presente dissertao versa sobre tpicos fundamentais da epistemologia da memria de Robert Audi e Sven Bernecker. Num primeiro momento, so investigados aspectos bsicos destas epistemologias, para posteriormente se analisarem as suas teorias respectivas, a saber, a teoria epistemolgica e a teoria representacional da memria. De posse destes referenciais, o que buscado so possveis relaes e contraposies entre estas teorias, que sero comparadas e confrontadas na medida em que ambas so expostas, utilizando-se o problema da lembrana sem crena de Bernecker (Lembro que P, mas no creio que P), bem como sem justificao e conhecimento, como baliza para uma defesa da teoria representacional e/ou epistemolgica da memria, bem como oferecer possveis crticas a uma e/ou a outra teoria em discusso para pesquisa ulterior e futura.

Palavras-chave: epistemologia; memria; lembrana; crena; justificao; conhecimento.

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ABSTRACT

The content of this dissertation is about fundamental issues of epistemology the memory of Robert Audi and Sven Bernecker. Initially, these are investigated basic aspects epistemologies, and then we look at their respective theories, namely the epistemological theory and the theory of representational memory. Possession of these benchmarks, what is sought are possible relationships and differences between the theories, to be compared and confronted the extent that both are exposed, using the problem of memory without belief in Bernecker (I remember that P, but not I believe that P), and without justification and knowledge, as a beacon for a defense theory of representational and/or epistemological theory of memory, as well as offering possible criticism of one or the other theory being discussed for further research and future.

Key-words: epistemology; memory; remembering; belief; justification; knowledge.

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SUMRIO

INTRODUO................................................................................................................... 10 1. A EPISTEMOLOGIA ANALTICA CONTEMPORNEA: UMA INTRODUO GERAL ........................................................................................................................... 13

1.1 A ANLISE DO CONHECIMENTO....................................................................... 13 1.2 O CONCEITO DE CRENA.................................................................................... 15 1.3 O CONCEITO DE JUSTIFICAO....................................................................... 17 1.4 AS FONTES DO CONHECIMENTO E A EPISTEMOLOGIA DA MEMRIA 20 2.AS EPISTEMOLOGIAS DA MEMRIA DE ROBERT AUDI E SVEN BERNECKER: ALGUMAS IDIAS GERAIS INTRODUTRIAS.......................... 24 3. A LEMBRANA SEM CONHECIMENTO DE SVEN BERNECKER................ 34 3.1 O ARGUMENTO DA MEMRIA........................................................................... 34 3.2MEMRIA PROPOSICIONAL E A ANLISE EPISTEMOLGICA DA MEMRIA........................................................................................................................ 37 3.3 MEMRIA SEM JUSTIFICAO E SEM CONHECIMENTO......................... 46 4. A TEORIA EPISTEMOLGICA DA MEMRIA DE ROBERT AUDI............... 58 4.1 A BASE CAUSAL DAS CRENAS MEMORIAIS E AS TEORIAS DA MEMRIA........................................................................................................................ 58 4.2 A MEMRIA COMO FONTE DE CONHECIMENTO: CENTRALIDADE EPISTMICA E JUSTIFICAO MEMORIAL......................................................... 65 5. LEMBRANA SEM CONHECIMENTO VERSUS TEORIA EPISTEMOLGICA DA MEMRIA: UMA ANLISE DOS CONTRA-EXEMPLOS BERNECKERIANOS ............................................................................................................................................ CONSIDERAES FINAIS............................................................................................. 70 79

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................ 82

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INTRODUO

A memria uma das faculdades cognitivas mais importantes no homem, e nossa existncia totalmente dependende da mesma. O que seria de nossas vidas, desde a mnima tarefa diria, como de lembrar-se do que fiz h algumas horas e do que farei dentro de instantes, lembrana de eventos do passado, bem como de informaes que apreendemos que no perceptualmente e recordamos no presente por testemunho, por exemplo, se no fossemos providos da capacidade memorial? Alm desta importncia prtica e basilar, a memria possui interesse e relevncia extrema para a epistemologia, pois canonicamente considerada uma fonte de conhecimento. Juntamente com a percepo, o testemunho, a razo, o raciocnio e a introspeco, a memria uma fonte vinculadora e preservadora de conhecimentos passados que trazemos de volta conscincia atravs da evocao do contedo mental memorial, segundo uma concepo epistemolgica tradicional e geral. Esta dissertao de mestrado tem como objetivo principal analisar o aspecto epistemolgico da memria, buscando compreender minimamente o que significa a mesma estar vinculada com o conhecimento, e se de fato a memria necessariamente conduz fidedignamente ao conhecimento. Para tanto, sero exploradas e desenvolvidas basicamente as epistemologias da memria de dois autores filosficos contemporneos bastante renomados e que possuem vises distintas acerca do aspecto epistmico desta faculdade, a saber, os epistemlogos Robert Audi e Sven Bernecker. O primeiro defende basicamente uma teoria epistemolgica da memria, que associa lembrana diretamente com o conhecimento, e o segundo, um estudioso tambm de tpicos da filosofia da mente, como a anlise externalista do contedo mental, por exemplo, no vincula memria com conhecimento, e defende uma concepo de lembrana sem conhecimento, em que a memria teria uma funo meramente representacional, e no epistemolgica. Vamos abordar os sistemas epistemolgicos de ambos aqui, separadamente e em conjunto, para posteriormente confrontarmos as idias destes sistemas, a analisar com algum detalhe as problemticas que emergiro desta anlise, sempre ancoradas e embasadas em pressupostos epistemolgicos imprescindveis para este estudo. Num primeiro momento, a ttulo introdutrio, sero fornecidos elementos mnimos para a discusso posterior, e dizem respeito a conceitos bsicos de epistemologia analtica contempornea: o primeiro captulo deste trabalho tratar da anlise do conhecimento e dos conceitos de crena e de justificao, bem como da conducncia verdade que uma

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epistemologia deve primar. Tais conceitos so fundamentais para um entendimento mnimo de toda a obra, e sem uma compreenso dos mesmos todo o entendimento restante ficar prejudicado. Na sequncia, no segundo captulo, sero expostas introdutoriamente as idias mais fundamentais de Audi e Bernecker: a funo deste captulo meramente metodolgica, e visa traar um panorama geral acerca das suas concepes de memria e de como os mesmos tratam os conceitos de crena, justificao e conhecimento memoriais. No captulo 3, a tese da lembrana sem conhecimento de Sven Bernecker exposta, e est dividido em trs sees: na primeira, o argumento da memria apresentado e discutido, onde o interesse aqui basicamente epistemolgico. H que se ressaltar isto neste momento, porque as discusses sobre este argumento, apresentado pela primeira vez por Paul Boghossian, tambm dizem respeito anlise sobre o contedo mental e o externalismo sobre este contedo, temas estes de domnio da filosofia da mente e que no sero tratados no escopo desta dissertao. O objetivo da apresentao do argumento da memria o de analisarem-se as condies de crena e de justificao passada e presente como condies para uma lembrana proposicional, a lembrana que P, a espcie de lembrana relevante e de interesse para a epistemologia, pois envolve o conhecimento proposicional, S sabe que P, sendo P uma proposio com contedo semntico determinado: tal aprofundamento nestes tpicos tambm ser realizado no desenvolvimento do trabalho. A segunda seo trar o conceito de Bernecker sobre a memria proposicional e ser feita uma anlise epistemolgica da memria, onde este autor oferece as suas bases tericas para defesa da lembrana sem conhecimento, expostas especialmente no seu artigo Remembering Without Knowing. Na terceira seo, apresentado o cerne da tese berneckeriana da memria sem justificao e sem conhecimento, onde o mesmo expe os seus contra-exemplos para a assim chamada teoria epistemolgica da memria. No captulo 4, a epistemologia de Robert Audi agora apresentada independentemente, e as suas idias acerca de crena, justificao e conhecimento memoriais so detalhadas, bem como so apresentadas, a ttulo ilustrativo, as suas teorias da memria e as conseqncias epistemolgicas que porventura estas possam apresentar e trazer alguma relevncia para o debate. No captulo 5, as teorias epistemolgicas da memria de Audi e a lembrana sem conhecimento de Bernecker so confrontadas, procedendo-se a anlise dos contra-exemplos de Bernecker expostos na terceira seo do captulo 3 como baliza e pano de fundo para o debate que da instaura-se: neste captulo concentra-se grande parte da estrutura argumentativa da dissertao, e sua importncia fundamental para todo o escopo que compreende a presente pesquisa. O objetivo essencial desta especulao filosfica, sob a

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gide e a luz das teorias discutidas anteriormente, o de analisar as possibilidades de xito ou no dos contra-exemplos berneckerianos, e concluir pela eficcia ou no dos mesmos na crtica deste autor aos fundamentos bsicos da teoria epistemolgica da memria.

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1.

A

EPISTEMOLOGIA

ANALTICA

CONTEMPORNEA:

UMA

INTRODUO GERAL

1.1 A ANLISE DO CONHECIMENTO

A Epistemologia o ramo da filosofia que estuda e investiga como podemos obter conhecimento. A pergunta sobre a natureza e o estatuto ontolgico do conhecimento uma pergunta de carter metafsico, e no epistemolgico: o questionamento epistemolgico mais fundamental diz respeito ao que seja o conhecimento e a possibilidade de se conhecer, e uma vez que seja possvel o conhecimento, como o mesmo obtido e classificado. Na tradio filosfica ocidental, e na histria da teoria do conhecimento, a assim denominada epistemologia analtica ofereceu, h algumas dcadas, uma definio de conhecimento dita cannica, clssica, e que remonta ao dilogo Teeteto, de Plato. O assim chamado legado platnico na histria da epistemologia oferece uma definio de conhecimento fundamentada em trs componentes essenciais, a saber: verdade, crena e justificao. A anlise tripartite do conhecimento, que engloba estes trs elementos, definida da seguinte forma pela epistemologia analtica contempornea, a saber: S sabe que P se e somente se:

1) P (ou, equivalentemente, o caso que P ou verdadeiro que P). 2) S cr que P. 3) S est justificado em crer que P (ou S possui boas razes para crer que P).

No esquema conceitual acima, inspirado no Teeteto platnico pelo epistemlogos contemporneos e considerado hoje a anlise tradicional do conhecimento (ATC), S um sujeito cognoscente, passvel de conhecimento, e P uma proposio qualquer. importante salientar que o conhecimento de que estamos tratando aqui possui uma natureza proposicional: S sabe que P se P possuir um contedo proposicional, onde o que caracteriza este estatuto proposicional do conhecimento o saber que P.1 O contedo do conhecimento1

Nesta definio, por contedo proposicional entenda-se que a proposio a ser conhecida, a saber, P, seja passvel de cognio pelo sujeito S, possuindo este contedo um carter semntico neste esquema, e com isso se

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proposicional expresso por uma proposio, ou seja, pelo significado de uma orao declarativa: por exemplo, as expresses Est chovendo, da lngua portuguesa, e It is raining do ingls, so sintaticamente distintas quanto forma do signo lingstico, mas o contedo semntico que veiculam so os mesmos, elas possuem o mesmo significado, expressando a mesma proposio, ou o mesmo estado de coisas, se formos utilizar um jargo wittgensteiniano, consagrado especialmente no seu Tractatus Lgico-Philosophicus. O conhecimento proposicional, o nico que nos ocuparemos aqui, distinto do conhecimento prtico ou por habilidade, que opera no nvel do saber como, e no do saber que: por exemplo, nas oraes S sabe como andar de bicicleta e Eu sei que S est andando de bicicleta, na primeira h conhecimento prtico, que implica a habilidade de S em andar de bicicleta, enquanto na segunda h conhecimento proposicional, pois refere um estado de coisas ao qual S tem algum acesso cognitivo, estado de coisas este que pode ser verdadeiro ou falso, o que caracteriza propriamente a natureza proposicional do conhecimento em questo. Na anlise da definio tripartite do conhecimento, verdade, crena e justificao so condies individualmente necessrias e coletivamente suficientes para o conhecimento. Plato, no Teeteto (2001, p. 140, 210a), assinala que apenas crena e verdade no so condies suficientes, ainda que necessrias, para o conhecimento, onde a opinio verdadeira deve estar acompanhada de uma explicao racional. Esta noo de conhecimento permaneceu quase que intacta nos seus fundamentos por mais de dois milnios na histria da filosofia, passando pela teoria do conhecimento moderna at os contemporneos. Entretanto, em 1963, Edmund Gettier, um epistemlogo norte-americano, escreveu um artigo de trs pginas intitulado uma crena verdadeira justificada conhecimento?2 que revolucionou as bases da teoria do conhecimento e praticamente fundou a epistemologia analtica contempornea, ao questionar argumentativamente a suficincia das condies de verdade, crena e justificao para a obteno de conhecimento. Atravs da exposio de um conjunto de contra-exemplos, Gettier mostrou que podemos ter uma crena verdadeira justificada sem que essa crena seja conhecimento, ou seja, a crena verdadeira justificada no condio suficiente para o conhecimento, embora seja condio necessria. Adefinir proposicionalmente S sabe que P. Sobre a anlise tripartite do conhecimento, Richard Feldman fornece uma definio anloga utilizando a nomenclatura Anlise Tradicional do Conhecimento (ATC), que est estruturada da seguinte forma: ATC. Se S sabe P = df. (i) S cr P, (ii) P verdadeira, (iii) S est justificado em crer P. (Feldman, 2003). 2 Gettier, E. L. Is Justified True Belief Knowledge? Analysis 23, p. 121-123, 1963. Reimpresso em Griffiths 1967, p. 144-146. Sobre o conhecimento ser definido como crena verdadeira justificada, h uma vasta literatura na epistemologia contempornea que trata desta questo. Algumas referncias relevantes so: BonJour (1985), Feldman (2003), Fumerton (2006), Lehrer (2000) e Steup (2006).

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necessidade de cada condio isoladamente permanece inalterada e inatacvel na comunidade epistemolgica, mas Gettier provou ao analisar dois casos em especial como contra-exemplos a definio tripartite, que P pode ser verdadeiro, S ter crena e justificao para crer que P, e mesmo assim este no ser um caso de conhecimento. Desde ento, muitos epistemlogos tem elaborado mais contra-exemplos e procurado mais alguma condio ainda desconhecida que se agregue ao modelo tripartite a fim de oferecer uma definio universal para o conhecimento; contudo, tais tentativas tem se mostrado infrutferas, e a questo permanece em aberto. No escopo do tema desta dissertao, no nos ocuparemos dos casos tipo Gettier na epistemologia, no trataremos da assim chamada gettierizao na epistemologia (um sujeito ter crena verdadeira justificada e mesmo assim no ter conhecimento), sendo, pois, suficiente para os propsitos presentes trabalhar com a noo do modelo tripartite, do conhecimento como crena verdadeira justificada. Nas prximas sees, aps esta breve introduo s bases conceituais mais fundamentais da epistemologia analtica contempornea, discutiremos os conceitos de crena e de justificao, bem como os de verdade e racionalidade, fundamentais para os nossos propsitos, bem como as fontes do conhecimento, de uma maneira geral, a fim de abordarmos a epistemologia da memria no decurso da investigao, que o objetivo central deste trabalho. necessrio um esclarecimento inicial sobre cada um destes elementos para o tratamento das questes posteriores, pois fundamentado nos mesmos que toda anlise subseqente desta dissertao ir concentrar-se, a saber, a definio de conhecimento como crena verdadeira e justificada.

1.2 O CONCEITO DE CRENA

Segundo o modelo epistemolgico tradicional, a crena uma condio necessria para o conhecimento.3 Descrita desta maneira, a crena constitui-se num trao lgico do conhecimento, e no se restringe conceitualmente apenas a um estado psicolgico complexo: nesse sentido, crer proposicionalmente, crer que P, tem funo cognitiva anloga a tomar este P, bem como o seu contedo proposicional, como verdadeiro. Sob esta tica, a noo de3

Timothy Williamson (2000) inverte esta ordem e condiciona a crena ao conhecimento, o conhecimento que seria condio necessria para a crena. Contudo, tal concepo williamsoniana polmica na tradio analticoepistemolgica, possuindo muito pouca aceitao. Faz-se a referncia aqui apenas a ttulo ilustrativo e como mera curiosidade.

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crena envolve uma concepo de atitude proposicional que deve ser estudada cuidadosamente no contexto epistemolgico: crer assentir mentalmente o contedo proposicional de P. Visto que a crena sempre a crena em algo, em um determinado estado de coisas, e um estado mental cuja propriedade tomar este estado de coisas como verdadeiro, a crena possui uma natureza representacional acerca do contedo proposicional que vem expressado por ela, representao esta presente na mente de um sujeito cognoscente S, e que tem a funo de capturar o objeto do mundo a qual representa, bem como seu carter, a sua propriedade ontolgica de ser verdadeiro ou no. A crena como uma atitude proposicional4 determinada basicamente por dois fatores, a saber: um psicolgico, e outro que tem relao com o seu contedo semntico. O critrio psicolgico diz respeito a um sujeito que cr dotado de um aparato cognitivo formador de crenas, e a natureza proposicional destas crenas encontra-se em um domnio lingstico lgico-semntico. Na epistemologia analtica contempornea, uma opinio consensual entre os epistemlogos que a crena um estado mental cujo contedo semntico possua uma natureza informacional, e estas informaes dependem, pelo menos parcialmente e em alguma medida, do modo pelo qual tais crenas representam o mundo. Se a crena representa um estado de coisas corretamente, ela verdadeira, se o representa incorretamente, falsa: h necessariamente uma correspondncia com a verdade envolvida neste processo cognitivo. As representaes so fundamentais nas nossas vidas mentais, bem como a relao constitutiva que deve haver entre estas e as crenas que formamos. Nosso interesse central aqui, no contexto epistemolgico, a funo cognitiva da crena, e nesse sentido importante ressaltar que o ato de crer (a atitude proposicional, pois) no requer necessariamente que haja o assentimento do objeto da crena, pois possvel crer em algo sem expressar-se a assero nesse algo, seja introspectivamente ou no processo de tornar tal crena de domnio pblico. Outras consideraes importantes acerca do conceito de crena so que esta objetiva sempre a verdade, conducente verdade pelo sujeito cognoscente que cr, embora a atitude proposicional de crer por parte do sujeito nem sempre atinja a marca da verdade, mas a conducncia a esta algo inerente a esta capacidade de crer. Um sistema de crenas de um agente doxstico tambm pode sofrer alteraes, pois as crenas so passveis de mudana pela entrada de contra-evidncia no sistema: uma contra-evidncia algo que fornece uma razo contrria para crer, e as crenas em questo do sistema de crenas deste agente devem

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O termo atitude proposicional, na filosofia analtica contempornea, foi desenvolvido no sculo XX por Bertrand Russell.

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ser substitudas por outras crenas compatveis com estas evidncias5. Tambm o carter da coerncia em um sistema de crenas um critrio importante, em qu se S crer em proposies contraditrias entre si, tal atitude proposicional torna o sistema incoerente, no sendo lgica e epistemicamente coerente tomar, por exemplo, uma proposio P e a sua negao como verdadeiras ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Muito mais se poderia falar a respeito da noo de crena na epistemologia e na filosofia da mente, tambm, de modo geral, sendo suficiente, por ora, estas consideraes iniciais e introdutrias. Na prxima seo, falaremos um pouco acerca da terceira condio para haver conhecimento, que a justificao epistmica: estar justificado que P ter boas razes para crer que P, basicamente. Analisaremos introdutoriamente o que isto significa neste contexto investigativo presente, e que conseqncias trs para a epistemologia de uma forma geral.

1.3 O CONCEITO DE JUSTIFICAO

Na seo anterior, tratamos do conceito de crena e desta ser conducente verdade, bem como de uma proposio P ser verdadeira, como condies necessrias para o conhecimento proposicional de P, para S saber que P. Mas como j foi colocado e discutido anteriormente, verdade e crena no so condies suficientes para o conhecimento. Do fato de P ser verdadeiro, e S ter a crena que P, no se segue que S saiba que P: necessria a justificao da crena de que P, e de P ser verdadeiro, tambm. A justificao, tecnicamente falando, uma relao adequada que deve existir entre a satisfao da condio de crena e a satisfao da condio de verdade, e no contexto epistemolgico em geral, pode, em linhas gerais, ser compreendida tambm como sinnimo de racionalidade (o termo justificao pode ser interpretado analogamente como possuindo o mesmo sentido do que o termo racionalidade). Para S saber que P, ele necessita de indcios suficientes, evidncias para crer que P: tais evidncias aumentam o grau da justificao para crer, e so consideradas boas razes neste5

H muitas definies de evidncia em epistemologia realizadas por vrios autores. importante referirmos aqui alguns deles, pois o conceito de evidncia fundamental, e ser bastante utilizado. Feldman (2003), por exemplo, fala que a posse de evidncia a marca de uma crena justificada, e a isto ele denomina teoria evidencialista da justificao, ou evidencialismo. J Chisholm (1974, p.18) afirma que [...] evidncia adequada aquela que, quando adicionada opinio verdadeira, produz conhecimento. A evidncia, em Chisholm, pode ser entendida em termos do quo razovel para S crer na proposio P.

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processo justificatrio. A justificao dada por razes para crer em determinada proposio dita justificao epistmica, numa perspectiva internalista da justificao; no externalismo, o que se requer para se ter boa justificao, por exemplo, que o processo cognitivo envolvido seja um processo confivel, como o confiabilismo de Goldman: mas sobre este tpico no nos deteremos muito em detalhes, embora deva ser considerado neste domnio. Mesmo que a justificao seja uma condio para o conhecimento (condio necessria, mas no suficiente), crenas que no sejam verdadeiras podem estar plenamente justificadas e mesmo assim no haver conhecimento: o chamado falibilismo na epistemologia contempornea. O falibilismo admite boa justificao e razes para crer, mas se houver um sistema de crenas falsas, no h conhecimento: mesmo que todas estas crenas sejam coerentes entre si neste sistema doxstico, e estejam todas plenamente justificadas, no h conhecimento, pois uma das condies necessrias para a efetivao do mesmo por parte do sujeito cognoscente no foi satisfeita, a saber, a verdade da crena em questo. A verdade no uma condio necessria para a justificao de uma proposio: uma crena pode ser verdadeira por mero acaso, mas no conditio sine qua non que seja verdadeira para que seja justificada, sendo precisamente o falibilismo um exemplo de um sistema que admite crenas falsas justificadas. O conceito de anulabilidade tambm muito importante para a justificao epistmica: esta sempre ser passvel de anulao. Tal anulao da justificao se d quando h contraevidncia para a justificao de S em crer que P: se esta contra-evidncia oferecer melhores razes para o sujeito S crer, e estar justificado em crer, do que as evidncias que este sujeito possui, esta justificao anulada pela entrada de contra-evidncia no sistema de crenas, sendo a mesma revisvel e substituvel por uma justificao compatvel com estas contraevidncias. importante chamar a ateno para o aspecto epistmico que justificao e crena possuem em detrimento da verdade: enquanto estes dois primeiros so passveis de mudana e reviso, a verdade no muda com a entrada de contra-evidncia no meu sistema de crenas e de justificao. As crenas e a justificao que se tem sobre P so passveis de mudana, mas disto no se segue que a verdade de P seja tambm varivel, haja vista que se uma verdade adquire o status ontolgico de falsidade, fica epistemicamente vedada possibilidade de conhec-la, do conhecimento da mesma, pois no epistemicamente possvel haver conhecimento do falso. Crena e justificao para crer que P so qualidades puramente epistemolgicas, dependentes de um sujeito cognoscente S, ao passo que a verdade de P, ela mesma, uma propriedade ontolgica do objeto a ser conhecido, a saber, P, e independe epistemicamente de S.

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Os epistemlogos postularam algumas tentativas de soluo no-ctica em relao ao problema da justificao epistmica, como, por exemplo, a admisso de um coerentismo nas relaes entre crenas e justificao num sistema de crenas de um sujeito cognoscente. O coerentismo acerca da justificao um artifcio que os epistemlogos utilizam para evitar o assim denominado infinitismo epistmico, onde neste no h a presena de crenas bsicas das quais as outras crenas, em um sistema de crenas determinado, sejam derivadas (como no caso do fundacionismo clssico cartesiano, por exemplo, que admite a presena de crenas bsicas, fundacionais, das quais todas as outras crenas derivam), fazendo com que essa cadeia inferencial de causao de crenas estenda-se ad infinitum. O fundacionismo uma possvel soluo para o problema do infinitismo, e no apenas o fundacionismo clssico, como foi colocado anteriormente, mas tambm o chamado fundacionismo moderado, que admite algumas crenas fundacionais coerentes a fim de evitar o regresso ao infinito na cadeia de crenas. H tambm o confiabilismo epistemolgico, que de uma maneira geral no pede razes para a justificao de uma crena, um dos pontos este que caracterizam uma epistemologia externalista, por exemplo, como j foi colocado anteriormente. A justificao, em uma perspectiva no confiabilista, alega que as formas de acesso ao mundo, como as experincias sensrias, por exemplo, podem j estar dadas mesmo que estas experincias no sejam processos confiveis: no confiabilismo, as fontes de crena conduzem verdade, e se no confiarmos nos processos que nos do acesso cognitivo ao mundo, no h justificao das crenas geradas e oriundas atravs destes processos (uma justificao internalista seria independente de um processo confivel, por exemplo; no entraremos em maiores detalhes neste momento sobre esta questo, reservando tal discusso para outra oportunidade).6 Muito mais poderia dizer-se sobre o conceito de justificao epistmica alm do que j foi colocado, mas em linhas bem gerais e bastante resumidas, tais consideraes bastam para este propsito introdutrio. Na prxima seo, abordaremos as principais fontes de conhecimento na epistemologia contempornea, e introduziremos o estudo da epistemologia da memria, que ser o objeto de anlise mais detalhada desta dissertao.

O confiabilismo de Alvin Goldman apenas um exemplo de uma epistemologia dita externalista. H outras epistemologias externalistas, da qual no nos ocuparemos diretamente aqui. A discusso deste ponto, em alguma medida, ser retomada oportunamente no decorrer da dissertao.

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1.4 AS FONTES DO CONHECIMENTO E A EPISTEMOLOGIA DA MEMRIA

A aquisio e o estudo do conhecimento, que constituem a epistemologia propriamente dita, s podem ser adequadamente explicados em relao s fontes de conhecimento. H, na histria da epistemologia, algumas fontes de conhecimento chamadas clssicas ou bsicas, e que fundamentam outras fontes. De maneira geral, podemos dizer que temos essencialmente seis fontes principais de conhecimento, a saber: percepo, memria, razo, raciocnio, introspeco e testemunho. Esta lista est longe de ser exaustiva, podendo-se acrescentar outras fontes menores e mais negligenciadas na literatura epistemolgica; vamos, inicialmente, falar brevemente de algumas destas fontes, a ttulo ilustrativo e introdutrio, para na sequncia tratarmos da epistemologia da memria e desta como fonte de conhecimento, haja vista que acerca desta que tal trabalho de pesquisa pretende ocupar-se daqui por diante. Dizer que uma fonte de conhecimento bsica atribuir mesma uma produo de conhecimento que no dependa de outras fontes de conhecimento e de justificao. Nesse sentido, a percepo, o raciocnio, a razo e a introspeco podem, grosso modo, serem consideradas fontes bsicas de conhecimento, pois independem de outras, uma vez que o acesso cognitivo s informaes recebidas pelo agente epistmico direto, sem a intermediao de nenhuma outra faculdade. J a memria e o testemunho, duas das mais importantes fontes de conhecimento e de justificao, no so fontes bsicas de conhecimento, uma vez que dependem primariamente da percepo e da prpria memria, respectivamente. O testemunho at poderia ser considerado uma fonte bsica, uma vez que possamos supor uma independncia deste com a memria, e que este produza conhecimento sem a interferncia da faculdade memorial: mas grossssimo modo, para os propsitos presentes, diremos que o mesmo uma fonte no bsica de conhecimento, no entrando em maiores detalhes sobre tal questo. Em certa medida, podemos dizer que o conhecimento memorial deriva da percepo, mas no todo: se a aquisio do conceito de algo que apreendido perceptualmente se d no exato momento desta apreenso, no h a necessidade da recordao deste algo para formar a crena no mesmo, onde as crenas perceptuais e memoriais so formadas simultaneamente, neste caso. A percepo, dita de uma maneira geral, pode ser considerada uma fonte bsica e independente de conhecimento porque pressupe uma relao causal direta entre o sujeito cognoscente e a coisa, o objeto a ser conhecido, no havendo a mediao de nenhuma outra

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faculdade neste caminho entre a apreenso perceptual da coisa, seja visual, auditiva, tctil e olfativa, e a representao da mesma na mente do sujeito cognoscente. Certamente h muito a se tratar acerca das fontes de conhecimento e de justificao, o que no faremos aqui haja vista o desfocamento que tais tpicos ocasionariam: o intuito fornecer uma idia geral e resumida deste panorama conceitual todo. Ao falarmos da introspeco e do raciocnio, primeira vista parece-nos que so fontes bsicas de conhecimento e de justificao, uma vez que fazem parte da vida mental do sujeito cognoscente, inerentemente s suas capacidades. Contudo, o raciocnio parece pressupor a memria em alguns casos, uma vez que para raciocinarmos inferencialmente, seja por deduo ou induo, isto leva algum tempo, e a memria se faria presente aqui. Embora tal assero seja verdadeira, em um raciocnio dedutivo o condicional que une as premissas concluso em um argumento lgico no requer a necessidade do conhecimento de um em relao ao outro: por exemplo, na forma lgica do argumento Modus Ponens, afirmam-se as premissas Se P, ento Q e P, seguindo-se necessariamente como concluso Q. Neste sentido, pode-se dizer que o raciocnio fonte bsica tanto de conhecimento quanto de justificao, pois h autonomia e infalibilidade na transmisso da justificao epistmica; j na inferncia indutiva no h esta infalibilidade na transmisso justificacional, haja vista que logicamente invlida esta passagem das premissas para a concluso. Em relao introspeco, parece ser consensual entre os epistemlogos e filsofos da mente em geral que temos alguma espcie de conhecimento no inferencial de nossa prpria vida mental, na autoridade da primeira pessoa e atravs do acesso privilegiado que temos aos contedos de nossos prprios pensamentos. Pouca pesquisa existe, entretanto, acerca da funo epistemolgica da introspeco e da conscincia introspectiva como fonte de crena, justificao e conhecimento: esta uma rea das mais fascinantes de estudo dentro da epistemologia, a epistemologia da introspeco, e h muito mais questes que poderiam ser tratadas e discutidas neste contexto, o que infelizmente no o faremos aqui, mas certamente renderia muito assunto e pesquisa filosfica interessante para uma dissertao e/ou tese em teoria do conhecimento, como um suposto ceticismo acerca do contedo proposicional dos nossos estados mentais, por exemplo. Sobre o testemunho, o mesmo pode ser dito, haja vista a importncia deste, pois uma das fontes de conhecimento mais importante e mais negligenciada pela ampla maioria dos epistemlogos. primeira vista, o testemunho pode parecer uma fonte no bsica de conhecimento e de justificao, uma vez que o conhecimento veiculado por este pode ser dito de segunda mo, j que foi adquirido inicialmente pela percepo: ao ler alguma informao

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em um determinado livro ou jornal e ouvir algum me dizer algo, anteriormente informao testemunhal, os dados perceptuais entram em meu aparato cognitivo. Mas em uma anlise mais fina, a questo mais complexa do que parece, e a epistemologia do testemunho propese a analisar se esta fonte de informao pode ser fonte de crena, justificao e conhecimento, tema ao qual no trataremos aqui na presente ocasio. Falemos um pouco agora, pois, de forma bastante introdutria, da epistemologia da memria e de a mesma poder ser dita fonte de conhecimento antes de ingressarmos nas epistemologias da memria dos autores que sero estudados e discutidos. A funo bsica da memria, como a faculdade responsvel pela evocao no presente das informaes obtidas no passado, a capacidade da lembrana. A epistemologia, de uma maneira geral, considera no apenas a memria, mas as outras formas de aquisio de informaes discutidas aqui como fontes de crena, justificao e conhecimento; tal posio a concepo clssica. Contudo, h epistemlogos que contestam esta concepo, e defendem que algumas fontes no seriam necessariamente fontes de conhecimento. Para os propsitos desta seo introdutria, ser minimamente exposta a noo cannica da teoria epistemolgica contempornea, que considerar tais fontes de informao fontes de conhecimento7, especialmente no caso da memria. De acordo com a tradio epistemolgica, a memria uma fonte epistmica fundamental, embora ela no seja uma fonte bsica de conhecimento, como j foi colocado, pois envolve necessariamente a aquisio de informao por outras fontes. consensual tambm que a memria seja preservadora das informaes adquiridas no passado: se o contedo mental que ela reteve pode ser considerado conhecimento, a informao preservada na mente com o tempo, e quando do momento da evocao, na lembrana propriamente dita, continua mantendo este carter cognitivo. Em relao s crenas e justificao, pode-se dizer algo anlogo, embora a justificao memorial possa admitir anuladores epistmicos, bem como as crenas de memria: tais possibilidades sero analisadas e discutidas no detalhe nos captulos subseqentes, quando tratarmos da assim chamada teoria epistemolgica da memria, que condiciona a lembrana proposicional, lembrar que P, diretamente com o conhecimento, o saber que P. H objees na comunidade epistemolgica acerca deste aspecto da teoria epistemolgica, da memria ser fonte fidedigna de conhecimento, bem como de crena e justificao, sendo este o aspecto central a que esta pesquisa prope-se a investigar.

Gareth Evans, em seu Varieties of Reference, utiliza o termo fonte informacional a fim de referir gnese das informaes que recebemos do mundo, como o acesso cognitivo perceptual, memorial, testemunhal, etc.

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A partir do prximo captulo, portanto, dois sistemas epistemolgicos distintos sero confrontados no domnio e no cenrio da epistemologia da memria: o de Robert Audi, defensor da teoria epistemolgica da memria, que defende, grosso modo, a mesma como fonte de conhecimento, crena e justificao, no que veremos com algum detalhe, e o de Sven Bernecker, que por sua vez contesta esta posio, e alega que a memria nem sempre pode ser considerada uma forma de conhecimento, no comeando e nem terminando em conhecimento, e no implicando necessariamente nem em crena nem em justificao epistmica. Para Audi, a memria conduz verdade, e a informao memorial retida na mente do sujeito cognoscente possui o estatuto de conhecimento; Bernecker, entretanto, defende a concepo de que o conhecimento condicionado por alguns casos de lembrana, mas no todos, onde a trajetria epistmica que a memria percorre no necessariamente correta, pois no atingiria sempre a marca da verdade, e o contedo mental memorial pode apresentar uma natureza de mera representao ou pensamento, e no possuir em si mesmo o carter epistemolgico de poder ser dito conhecimento. sobre este debate e esta disputa intelectual que a presente dissertao ir ocupar-se e discorrer a partir de agora.

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2. AS EPISTEMOLOGIAS DA MEMRIA DE ROBERT AUDI E SVEN BERNECKER: ALGUMAS IDIAS GERAIS

A memria, como faculdade cognitiva e sob uma perspectiva epistmica, pode ser considerada uma fonte de conhecimento e tambm de justificao. Na tradio clssica e cannica da epistemologia contempornea, por exemplo, so consideradas fontes de conhecimento padro a percepo, a memria, a razo, o raciocnio, o testemunho e a introspeco, basicamente, como j foi colocado. Cada uma destas fontes, bem como a totalidade das mesmas, possui e exige uma teoria do conhecimento especfica, que d conta dos processos epistmicos de crena e justificao relacionados com cada. Na presente dissertao de mestrado, o objetivo fundamental e primordial o de analisar-se a epistemologia contempornea da memria, buscando investigar os aspectos bsicos desta faculdade tanto do ponto de vista da cognio quanto de um suposto carter de conhecimento atribudo faculdade memorial. Muitas abordagens podem ser feitas acerca da memria, e num horizonte panormico bastante abrangente, existem algumas questes de essencial importncia que permeiam o debate atual tanto na epistemologia quanto na filosofia da mente contemporneas, e duas destas abordagens particularmente sero descritas minimamente e analisadas no presente contexto, a saber: o externalismo sobre a justificao epistmica e sobre o contedo mental. O externalismo sobre a justificao ser o tpico a ser trabalhado aqui, haja vista sua relevncia e importncia para o debate epistemolgico atual. O externalismo sobre o contedo mental, embora mais de interesse para a filosofia da mente, possui interfaces de contato com a epistemologia da memria tendo-se em vista que so trabalhados conceitos que abrangem tpicos em comum, como a aquisio do contedo mental no passado, e a preservao e reteno do mesmo na mente. Tambm o estatuto ontolgico deste contedo mental de interesse para a epistemologia, que objetiva sempre a verdade, num domnio onde se investiga no apenas a obteno deste conhecimento proposicional, mas tambm a busca pela sua natureza. Na presente pesquisa, existem basicamente duas teorias concorrentes que sero confrontadas e tambm aproximadas no decorrer da dissertao, a saber, a teoria epistemolgica da memria (abreviada daqui por diante pela sigla TEM, haja vista a freqncia com que este termo ser utilizado), que trata os contedos mentais apreendidos no passado como reteno de conhecimentos, e a teoria representacional da memria (TRM,

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embora a referncia mesma no v ser to recorrenetemente utilizada como no caso da TEM), que considera o carter deste contedo mera representao mental, e no conhecimento. A teoria epistemolgica a teoria clssica, padro, e grande parte dos epistemlogos e filsofos da mente contemporneos a toma para si, como, por exemplo, Robert Audi, Timothy Williamson, Michael Dummett, dentre outros. A epistemologia da memria que ser trabalhada e discutida no corpo e no escopo da presente dissertao a de Robert Audi essencialmente, que bastante ortodoxo e conservador nesta sua concepo de proponente da TEM. No seu livro Epistemology: a Contemporary Introduction to the Theory of Knowledge8, Audi dedica o seu segundo captulo discusso sobre a memria, destacando aspectos cognitivos e epistmicos acerca da mesma. Ao defender uma TEM, Audi condiciona a faculdade memorial diretamente ao conhecimento: memria poderia ser fonte de conhecimento, tanto do passado quanto do presente e futuro, uma vez que a memria como faculdade cognitiva no necessariamente diz respeito apenas ao conhecimento do passado, podendo ser estendida ao futuro tambm (por exemplo, tenho de lembrar-me que amanh h uma consulta marcada no mdico). Embora considere a memria fonte de conhecimento, Audi afirma que nem sempre a mesma possui este carter, condicionando-a mais como fonte de justificao epistmica: este tpico ser razoavelmente explorado ao longo da dissertao, pois de vital importncia para o entendimento do carter epistmico da faculdade memorial. No sentido da preservao do contedo mental, para Audi a memria retm crena e conhecimento: este aspecto o que constitui um dos cernes da teoria epistemolgica, e ser investigado aqui, tambm. Aps a exposio mnima e necessria destes tpicos, em que basicamente a anlise das idias desenvolvidas por Audi no seu livro, particularmente no captulo sobre a memria, sero tratadas e discutidas, parte-se em seguida para a apresentao de alguns problemas desta TEM, que poderiam no estar suficientemente claros diante da apresentao de Audi. Para tanto, um contraponto pertinente ser utilizado, que a teoria representacional de Sven Bernecker e a sua tese da lembrana sem crena e sem conhecimento. Antes, contudo, por questes puramente metodolgicas, ser explorada e discutida esta concepo, que Bernecker desenvolve basicamente em dois artigos seus seminais9. A estratgia metodolgica ser a de analisar na mincia e no detalhe especialmente o contedo e as idias deste primeiro artigo, onde se explicita a tese de que seria cognitivamente possvel lembrar que P sem crer que P,AUDI, Robert. Epistemology: a Contemporary Introduction to the Theory of Knowledge. Routledge, 2003, Seg. Ed. As idias exploradas por Audi no seu segundo captulo, sobre a memria e a natureza epistemolgica desta, sero a base para o que discutiremos aqui no domnio da TEM, fundamentalmente. 9 A saber, os artigos Remembering Without Knowing, de 2007, e Memory and Externalism, de 2004.8

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tendo este P contedo proposicional. Para Sven Bernecker, memria no implicaria necessariamente em conhecimento, no uma forma de conhecimento sempre e nem implica tambm crena e justificao, tendo o contedo mental uma natureza meramente representacional. Bernecker procura provar em seu sistema epistemolgico a tese de que possvel lembrar no presente de algo ocorrido no passado sem crer justificadamenteneste no mesmo, ou seja, posso lembrar-me de algo sem conhecer esse algo: o que faremos, tambm, ser analisar cuidadosamente esta tese, dentre outras conseqncias da epistemologia da memria berneckeriana, e buscar contrapontos e possveis relaes com a TEM, especialmente a delineada por Audi e seus pressupostos epistemolgicos. Em seu estudo sobre a memria, a posio de Audi em relao s crenas memoriais a de que estas j estariam justificadas: tal assentimento do mesmo provm do fato de que a crena de que podei uma macieira silvestre no passado, por exemplo, no seja o resultado de nenhuma descoberta, de algum processo inferencial ou at mesmo de um wishful thinking10, mas sim de algo que eu j tinha em mente anteriormente, e que agora, no tempo presente, formo tal crena com alguma convico de que este fato tenha mesmo ocorrido. Para Audi, esta crena parece estar fundada na memria, e ele procura traar uma analogia da mesma com a percepo no sentido de se questionar se pela memria posso ter conhecimento de algo apreendido no passado. O exerccio de lembrar, de exercer a lembrana, seria uma das principais funes da memria, e se assim o for, deve haver algum xito que acompanharia a lembrana de algo por oposio crena por esse algo pela faculdade memorial. A relao entre memria e percepo em Audi fundamental para o desenvolvimento de sua epistemologia, pois ambas so essenciais e indispensveis para o conhecimento do mundo exterior e dos objetos externos mente. A memria construda na percepo, e preserva informaes adquiridas tanto pelos sentidos, quanto em relao s nossas vidas mentais: neste ponto a relao da memria com a crena, a justificao e o conhecimento pertinente e deve ser buscada neste contexto investigativo, mas para isto necessrio saber mais acerca de como funciona cognitivamente a memria para dar-lhe o aspecto epistemolgico que est se buscando aqui. Ao tratar da memria e da relao desta com o passado, Audi assume uma postura contrria a de Aristteles, por exemplo, para quem a memria seria apenas do passado11, e10

Uma traduo possvel para este termo seria algo como pensamento desejante. Contudo, nos contextos epistemolgicos em geral utilizado o termo original, haja vista que por si s o mesmo justifica-se pela inerncia de seu significado. O exemplo da macieira dado por Audi no incio do seu captulo sobre a memria em Epistemology: a Contemporary Introduction to the Theory of Knowledge, p. 54. 11 Conforme o seu tratado De Memoria.

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que moldou, de alguma forma, os estudos acerca dos aspectos cognitivos em geral sobre esta faculdade nos ltimos sculos. Audi atenta para a necessidade da memria de fazer remisso ao passado, mas no para ficar restrita a uma capacidade para o conhecimento ou crena sobre o passado. A lembrana indireta de eventos localizados num tempo anterior que o sujeito cognoscente no experenciou diretamente uma lembrana por descrio, e adquirida no mais das vezes pelo testemunho, seja o dos outros, ou de informaes obtidas em livros e outras fontes, por exemplo. Para Audi, a lembrana direta no interessaria tanto aqui, pressupondose que todo o conhecimento do passado est distante de ser alguma espcie de lembrana. Se adquiro conhecimento no presente de proposies relativas ao passado, e que fico sabendo apenas momentaneamente, isto, segundo Audi, no pode ser interpretado como sinnimo de lembrana. A esse saber momentneo que no pode ser dito lembrana h uma espcie de evanescncia, uma efemeridade inerente prpria capacidade de adquirir um dito conhecimento do passado. Outra considerao importante atentada por Audi diz respeito no necessidade das crenas sobre o passado representarem uma memria. Pelo fato das crenas sobre o passado no precisarem ser retidas na mente, elas no so crenas memoriais que tenham sido fundadas na faculdade da memria, estando baseadas as mesmas no testemunho e sendo esquecidas antes mesmo do seu armazenamento, por exemplo. Tambm crenas falsas baseadas na fantasia e na imaginao indisciplinada no podem ser elevadas ao estatuto de crenas memoriais, pois essas crenas, que so sobre o passado, podem ser meras criaes da mente que no possuam relao alguma com a memria do ponto de vista cognitivo e sob uma perspectiva epistemolgica. E mesmo quando as crenas sobre o passado tenham uma natureza memorial, e no meramente de reteno, no necessariamente representam uma lembrana, pois as mesmas podem ser todas falsas, ao passo que aquilo que lembro tem de ser factual. Isso pode ser constatado na seguinte passagem de Audi (2003, p. 56):

Pode-se pensar que as crenas sobre o passado, quando so memoriais, e no meramente retidas, representam a lembrana. Mas no necessrio que seja assim, porque elas podem ser falsas, enquanto tudo que genuinamente lembramos sobre a ocasio seja verdadeiro. Sendo assim, lembrar algo factivo. Se eu lembrar, por exemplo, que Thomas Reid debateu as idias de John Locke sobre a memria, ento ele de fato o fez.12

One might think that beliefs about the past, when they are memorial, and not merely retained, represent remembering. But this need not be so, because they may be false, whereas everything we genuinely remember to be the case is true. Remembering is, then, factive. If, for instance, I remember that Thomas Reid discussed John Lockes ideas about memory, then he in fact did. AUDI, Robert. Epistemology: a Contemporary Introduction to the Theory of Knowledge, p. 56. Routledge, 2003, Second edition.

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Quando Audi diz textualmente que lembrar algo factivo, ele est colocando a lembrana como condio necessria para o conhecimento memorial, para saber que P, bem como a verdade (s pode-se saber e ter conhecimento do verdadeiro, no se pode conhecer o falso, como j foi colocado), onde preciso tambm a presena da justificao para tanto. Tambm esta passagem pode ser contrastada, no presente momento, e j visando tecer uma analogia neste contexto, com os diferentes tipos de memria descritos por Sven Bernecker13. H uma das espcies de memria em Bernecker chamada por ele de memria negativa (negative memory), onde o prprio autor d um exemplo de que poderamos nos lembrar e declarar utilizando o recurso da lembrana de algo que no aconteceu, que no foi o caso no passado14. A posio de Bernecker, neste ponto, dista e no compactuada pela tradio clssica e cannica da epistemologia analtica contempornea, e da teoria do conhecimento de um modo geral, que defende uma concepo de que s seria possvel lembrar-se do factual, ter memria daquilo que aconteceu e foi o caso, bem como defende Audi. O prprio Audi em Epistemology: A Contemporary Introduction to the Theory of Knowledge, d um exemplo de uma crena memorial que no precisa necessariamente remeter de maneira fidedigna ao que o fato foi no passado, ao falar da crena (falsa) de que plantei uma semente de pinheiro verde, quando na verdade o que plantei foi uma semente de pinheiro azul. As coisas que lembramos serem verdadeiras so verdadeiras, diferentemente das crenas memoriais, que podem ser falsas: se eu tomar estas como verdadeiras, estarei equivocando-me, e no estaria autorizado a dizer o que lembro de fato. Para Audi, lembranas so crenas verdadeiras bem fundadas e armazenadas na memria, mas nem sempre uma crena verdadeira sobre o passado retida na memria , necessariamente, uma instncia da lembrana. O caso que crenas sobre o passado podem ser verdadeiras por acaso, e no serem bem fundadas: se tenho uma crena memorialmente retida de que ela usou um determinado vestido na festa em que eu estava presente, isto pode ser casualmente verdadeiro porque ela escolheu usar o mesmo vestido tanto na festa quanto em outra ocasio que me lembro dela com tal vestido. Isso no significa necessariamente que eu lembre que ela estava com este vestido, pois apenas armazenei na memria a impresso verdadeira e casual de que ela o estava usando. A lembrana propriamente dita constitui-se numa crena memorial verdadeira, bem fundada e armazenada na mente da maneira em que

Em Remembering Without Knowing. Esta apenas uma das diferentes espcies de memria que Bernecker explora em sua epistemologia da memria. Uma anlise mais refinada e detalhada destas espcies ser realizada no decorrer da dissertao.14

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normalmente formada, ao contrrio das crenas memorialmente retidas, que so fundadas fracamente na memria, de acordo com Audi15. As crenas memoriais, ao menos em parte, so produzidas por eventos passados que so lembrados, e esta gerao dada mediante uma relao de causalidade (essas crenas so causadas por esses eventos). Mas no so apenas os fatos do passado que so armazenados pela memria: por exemplo, um sujeito S aprendeu uma determinada operao matemtica na infncia (como a de soma, por exemplo), lembra dessa operao, e embora a aquisio e o aprendizado desta habilidade tenham sido apreendidos e seja um evento do passado, ela agora, no tempo atual, presente, no mais um evento do passado. Tambm nem toda crena memorial parcialmente causada por um fato do passado ela prpria necessariamente memorial: a crena em questo pode possuir uma natureza inferencial em relao ao que se pensa como a melhor explicao para a formao da crena, numa espcie de induo denominada inferncia melhor explicao (IME), que combina inferncia com explicao, e que difere, essencialmente, de outra forma de raciocnio indutivo, a assim chamada induo enumerativa, por exemplo. Para ilustrar este ponto, tomemos o seguinte caso: S bebe cerveja com lcool sem saber que a mesma possui lcool, supondo-se que o seu paladar pouco aguado para distinguir a presena de lcool. Aps a ingesto de uma quantidade razovel de cervejas, S sente-se embriagado e passa a crer, ento, que bebeu cerveja com lcool. Na verdade, S automaticamente perde a sua crena anterior, a de que havia bebido cerveja sem lcool, pois sua embriaguez passa a justificar, agora, a crena de que ingeriu bebida alcolica. A crena de S de que tinha lcool na cerveja pode ser inferida do fato de ele ter ficado bbado aps ingerila, sendo esta uma boa e suficiente razo para justificar esta crena16. Mas S no lembra, neste exemplo adaptado, que bebeu cerveja com lcool, nem por testemunho confivel, nem diretamente, uma vez que ningum veraz disse para ele que suas cervejas tinham lcool, nem ele leu nos rtulos das latas e (ou) das garrafas a presena de teor alcolico nas cervejas e fez tal constatao. Nesse ponto, pode-se traar uma analogia das crenas memoriais com as

Segundo Audi, beliefs weakly grounded in memory. Em AUDI, Robert: Epistemology: a Contemporary Introduction to the Theory of Knowledge, 2003, p. 70. 16 Tal exemplo foi adaptado de uma situao anloga descrita por Carlos Augusto Sartori na sua tese de doutorado, Sobre a viabilidade do Fundacionismo Epistmico Moderado, onde o mesmo oferece o exemplo da comida com cominho e de um sujeito alrgico a este tempero que experimentou tal comida no passado, passou mal e no sabia que a mesma continha cominho, formando uma crena no memorial, pois ele no lembra de que havia cominho na comida, de que a comida estava temperada com cominho, crena esta formada inferencialmente: tal exemplo encontra-se na seo sobre a memria na tese de Sartori. SARTORI, Carlos Augusto: Sobre a viabilidade do fundacionismo epistmico moderado. 2006, p. 74.

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crenas perceptivas: assim como uma crena causada por alguma coisa que esteja presente no meu campo visual e perceptivo no precisa necessariamente ser uma crena visual, uma crena causada por um fato passado que seja memorvel e que esteja de alguma forma armazenada e retida em minha memria no precisa tambm, necessariamente, ser uma crena memorial. Nem todas as crenas memoriais so sobre o passado, assim como nem todas as crenas sobre o passado so memoriais, e apesar de uma crena sobre o passado ser memorial apenas se a mesma tiver uma conexo causal com algo ocorrido no passado, isso significa que essa crena em questo possa ser monitorada, rastreada (traceable) at o evento, o fato passado onde ela foi adquirida e formada, pois tal crena no pode estar na memria se ela nunca entrou l e ficou retida na mesma. Sobre este tpico especfico, Audi desenvolve o problema do realismo direto/indireto sobre a memria, e deste segundo ser uma contrapartida da teoria dos dados dos sentidos (sense datum theory), o que tem alguma relevncia aqui; retornaremos um pouco a esta questo no captulo 4, quando sero discutidas as teorias audianas sobre a memria. Embora o aprofundamento desta discusso tenha de ser protelado para outra oportunidade, ele far-se necessrio mesmo que perifericamente neste momento a fim de tornar mais acessvel o problema da base causal das crenas memoriais e a centralidade epistmica da memria, que sero tratados na sequncia. A memria, como uma habilidade mental e da perspectiva da lembrana, pode ser entendida como uma fonte de crenas no sentido da preservao do contedo mental apreendido no passado, e tambm a capacidade de evocar na mente este contedo, bem como a preservao destas crenas e a evocao das mesmas. Retornemos agora a Sven Bernecker, a fim de abordar a questo do problema da lembrana sem crena e do lembrar sem conhecer17, para posteriormente retornar concepo de Audi sobre as crenas de memria e a justificao memorial; creio que se possam tecer relaes entre estes autores e os tpicos respectivos propostos, e antes de tal anlise torna-se necessrio desenvolver mais estas questes. Nos seus artigos j citados, Sven Bernecker admite a possibilidade da lembrana sem crena no caso da memria no factual, e sim ostensiva, sob alegao de memria: dos quatro exemplos de tipos de memria que Bernecker oferece (a saber, memria impura ou elptica, lembrana desatenta, memria negativa e lembrana ignorante, exemplos estes que sero exaustivamente explorados e trabalhados no curso desta dissertao)18, o ltimo tipo, a

17 Expostos fundamentalmente em Remembering Without Knowing e Memory and Externalism, como j referido anteriormente. 18 Em Remembering Without Knowing, p. 150. In The Australasian Journal of Philosophy, Vol. 85, March 2007.

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lembrana ignorante, da perspectiva epistemolgica, tem um foco e interesse particulares, pois o sujeito lembra que P, mas toma sua memria, ou suas crenas de memria, melhor dizendo, como falsas, resultado de sonho ou alucinao, por exemplo, e com isso no creria que P: de fato, o sujeito cognoscente no estaria sonhando ou alucinando, mas ele julgaria assim por achar que encontra-se mesmo num estado cognitivo destes (julgaria erroneamente estar sob efeito de alguma droga poderosa, por exemplo, quando de fato no est), e como conseqncia ele no creria naquilo que viu e/ou experimentou (na seqncia do texto, no captulo sobre a lembrana sem conhecimento, crena e justificao, sero fornecidos exemplos dados por Bernecker para argumentar nesse sentido). No caso da memria impura ou elptica, a justificao da crena no pode ser dada, pois o sujeito cognoscente lembra que P, mas no tem o conceito de P, pois a lembrana de P foi anterior aquisio do conceito do fato P apreendido no passado: por exemplo, uma criana v algum fenmeno natural, como um eclipse, mas no possui o conceito sobre o mesmo, que ela s ir adquirir quando adulta: ela lembra que P, mas no pode opinar, ou crer, verdadeira e justificadamente que P, a saber, no pode e no est autorizada epistemicamente a dizer que sabe que P. Nos captulos subseqentes, mais ser dito e abordado acerca do conceito de memria impura, pois o mesmo tem importncia fundamental para boa parte das questes a serem discutidas na sequncia. Em Remembering Without Knowing, Bernecker (2007, p. 147) ilustra sua simpatia pela hiptese da lembrana sem crena, mesmo salientando a incoerncia pragmtica de Lembro que P, mas no creio que P e fazendo aluso ao paradoxo de Moore, o que pode ser constatado na seguinte passagem sua:

Prima facie, um proponente da teoria epistmica da memria pode descartar a possibilidade da memria sem crena do fato que Eu lembro que P, mas no creio que P seja igualmente incoerente com o famoso paradoxo de G.E. Moore Est chovendo, mas eu no creio que est chovendo. A idia da incoerncia de Eu lembro que P, mas no creio que P no pode ser explicada apenas supondo ou assumindo que lembrar implica crer. possvel explicar a incoerncia pragmtica da afirmao Eu lembro que P, mas eu no creio que P sustentando, ao mesmo tempo, que memria no implica crena: quando alego lembrar que P, eu estou convencido que P o caso e, portanto, creio que P.1919

Prima facie, a proponent of the epistemic theory of memory may dismiss the possibility of memory without belief on the grounds that I remember that P, but I don`t believe that P is equally incoherent as G.E. Moore famous paradoxical statement It is raining, but I dont believe that is raining. The idea is that the incoherence of I remember that P, but I don`t belief that P cannot be explained unless one assumes that remembering implies believing. It is possible to explain the pragmatic incoherence of the statement I remember that P, but I don`t believe that P while maintaining that memory does not imply belief: When I claim to remember that P, I am convinced that P is the case and hence believe that P. BERNECKER, Sven. Remembering Without Knowing. In The Australasian Journal of Philosophy, Vol. 85, March 2007, p. 147-9. Para uma compreenso mais detalhada

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Esta ltima afirmao da citao anterior pode aproximar-se de uma espcie de conservadorismo epistmico, pois quando dito que se alega lembrar que P, est se aceitando que P o caso e se cr que P. Goldman (1999) chama a ateno para um caso caracterstico em que uma crena justificada embora o sujeito cognoscente no saiba que ela justificada, que aquele em que a evidncia original para a crena foi esquecida h muito tempo. Se a evidncia original fosse compelidora, a crena original pode ter sido justificada e esse status justificacional pode ter sido preservado pela memria, que nesse contexto e perspectiva pode ser estendido tambm ao contedo mental, alm das prprias crenas e seus contedos epistmicos; nesse sentido, a concepo de memria preservativa de Tyler Burge possui alguma relevncia e poderia trazer alguma luz a essa questo, inclusive, mas disto no nos ocuparemos por ora aqui, pelo menos por enquanto. Fazendo-se referncia a Goldman novamente, uma vez que o sujeito cognoscente no lembre mais como ou por que ele formulou a crena no passado, ele poderia no saber que a crena justificada: se fosse solicitado ao mesmo que a justificasse, a crena em questo, ele poderia estar perdido quanto a essa procura pela justificao, mas ainda assim a sua crena seria justificada, mesmo na impossibilidade epistmica de se demonstrar ou estabelecer tal condio. A justificao das crenas de um modo geral, e em particular da memria, que so objetos de anlise nesse trabalho, pode estar conectada com a perspectiva de uma teoria do conhecimento causal, em vista de Bernecker possuir uma teoria representacional da memria (TRM) na sua Teoria do Conhecimento e na sua Metafsica, onde os contedos mentais so vistos como representaes causadas pelos objetos exteriores, em um horizonte panormico externalista e (ou) anti-individualista (o anti-individualismo entendido aqui como uma perspectiva externalista em relao ao contedo mental). Outra questo importante que ser discutida acerca da natureza representacional deste contedo mental at que ponto se pode atribuir a estas representaes um carter de imagens mentais, se estas seriam necessrias para a memria proposicional: Audi discute este ponto, bem como Bernecker, e um bom entendimento desta questo ajudaria a compreender este suposto carter representacional do contedo mental. A posio de Bernecker neste ponto bastante polmica e controversa com a TEM, que defende que a memria, por ser fonte de conhecimento, implicaria no mais das vezes em crena e/ou justificao. O autor de Remembering Whitout Knowing discorda destano que propriamente consiste o paradoxo de Moore, e uma anlise fina sobre o mesmo, consultar ALMEIDA, Cludio G. What Moore`s paradox is about. Philosophy and Phenomenological Research, Providence, RI, EUA, v.62, n. 1, p. 33-58, 2001.

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concepo, e veremos quais so os seus argumentos para tanto, para posteriormente analisarmos com mais detalhe o que vem a ser, genericamente, uma concepo epistemolgica da memria em Robert Audi, que no seu sistema defende a TEM, e podermos confrontar e observar pontos de contato da mesma com a TRM de Sven Bernecker e a sua tese da lembrana sem crena e sem conhecimento neste movimento metodolgico analticodialtico empreendido aqui como estratgia de anlise. Antes, contudo, analisaremos com algum detalhe o assim chamado argumento da memria na epistemologia, pois sua compreenso e entendimento so em alguma medida necessrios para uma abordagem mnima da concepo berneckeriana da lembrana sem conhecimento e dos fundamentos bsicos da TEM como um todo.

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3. A LEMBRANA SEM CONHECIMENTO DE SVEN BERNECKER

3.1 O ARGUMENTO DA MEMRIA

A fim de abordarmos a lembrana sem crena e sem conhecimento, seria conveniente retomar o argumento da memria de Peter Ludlow revisitado por Paul Boghossian, e discutir a posio de Sven Bernecker sobre o mesmo. Segundo Ludlow, o argumento da memria pode ser analisado da seguinte maneira:

(1) Se S no esquece nada, ento tudo o que S sabe em t1 ele sabe em t2. (2) S no esquece nada. (3) S no sabe que P em t2. (4) Logo, S no sabe que P em t1.20

Segundo Sven Bernecker, este argumento da memria se apoiaria em trs pressupostos bsicos, a saber: em primeiro lugar, o contedo da memria seria fixado pelas condies ambientais e externas do passado, quando o mesmo foi adquirido, e no no presente, quando a memria evocada. O segundo pressuposto que uma mudana no informada de ambiente (slow-switching), como, por exemplo, da Terra para a Terra-Gmea21, levaria o sujeito a perder seus conceitos antigos, adquiridos no passado, passando a adquirir conceitos novos, e o terceiro, que o que de fato mais interessa aqui em nosso contexto, que a lembrana envolveria conhecimento, lembrar conhecer. Mas para Bernecker, o primeiro destes pressupostos seria razovel, o segundo questionvel (ao contrrio de Ludlow, por exemplo, que na sua variedade de externalismo social, em detrimento do externalismo semntico defendido por Sven Bernecker, admite a slow-switching permanente, uma constante mudana conceitual do contedo mental relativa ao ambiente de deferimento), e o terceiro falso, ou seja, lembrar no implicaria necessariamente em conhecer22.(1) It S forgets nothing, then what Sknew at t1, S can know at t2. (2) S forgot nothing. (3) S does not know that P at t2. (4) Therefore, S did not know that P at t1. LUDLOW, Peter. Social Externalism, Self - Knowledge, and Memory, 1998a, p. 308. Citado em Memory and Externalism. BERNECKER, Sven. 2004, p. 608. Em Boghossian, tal agumento est exposto em seu artigo BOGHOSSIAN, Paul: Content and Self-Knowledge. In Externalism and Self-Knowledge. Stanford: CSLI Publications, 1998, p. 171-72. 21 Conforme o exemplo de Hilary Putnam em seu clebre ensaio Crebros numa Cuba (Brains in a vat), em que este autor imagina este experimento mental de slow-switching para defender o seu externalismo semntico acerca do contedo mental. PUTNAM, Hilary. Razo, Verdade e Histria. 1992, p. 41. 22 BERNECKER, Sven. Memory and Externalism, p. 609.20

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Sem entrar no mrito da questo do contedo mental, e concentrando-se na questo epistemolgica apenas, o argumento da memria de Ludlow apia-se na tese de que lembrar uma forma de conhecer, a lembrana seria uma forma de conhecimento. A teoria padro a teoria epistemolgica da memria (TEM), que busca evidncia pela primeira premissa do argumento da memria, a saber, se S no esquece que P, ento S sabe que P, sendo P um caso de conhecimento: isso s poderia ser o caso se lembrar for uma maneira de conhecer. Esta TEM, to referida e objeto de anlise aqui, que condiciona diretamente a lembrana com o conhecimento, aceita, por exemplo, s para citar alguns nomes importantes, por filsofos do porte de Robert Audi, j referido e que ser objeto constante de anlise neste contexto, Michael Dummett, Gareth Evans, Norman Malcolm e Timothy Williamson, dentre outros, mas rejeitada por Sven Bernecker, que ao contrrio de conceber epistemicamente a memria como reteno de conhecimentos na mente, concebe a mesma como reteno de representaes, como tem se insistido neste horizonte de pesquisa. Uma das principais razes para esta rejeio que Bernecker admite a possibilidade do contedo da memria ser representacional ou mera crena, e no conhecimento; assim, nesse caso nem toda lembrana teria o carter, o estatuto de ser conhecimento23. De acordo com a TEM, esta, a memria, seria conhecimento retido na mente. Se tomarmos e aceitarmos a viso cannica de conhecimento como crena verdadeira justificada, excluindo os casos de tipo Gettier, que requereriam a tal quarta condio para garantir a suficincia do carter epistmico de tais casos, isso significa que a lembrana de P em t2 no argumento da memria precisaria satisfazer algumas condies para tanto, a saber:

a) P deve ter sido verdadeiro no tempo t1; b) S teve uma crena que P em t1; c) S estava justificado em t1 a crer que P; d) P verdadeiro em t2; e) S cr que P em t2; f) S est justificado em t2 a crer que P.24

BERNECKER, Sven. Memory and Externalism, p. 618. BERNECKER, Sven. Memory and Externalism, 2004, p. 618. No seu artigo, Bernecker expe tais condies no corpo do texto; aqui, contudo, optei por coloc-lo nesta forma estrutural para oferecer uma maior visibilidade das seis condies para haver conhecimento segundo a TEM.24

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Na TEM, todas as condies acima devem ser satisfeitas para haver memria. Para Bernecker, possvel haver memria sem a necessidade de crena ou de justificao, ou seja, ele aceita a primeira e a quarta condies ( a) e d), respectivamente), e recusa todas as outras. Os casos de defeated justification, de derrota da justificao que sero dados pelos contraexemplos que sero apresentados no curso de desenvolvimento desta pesquisa, bem como da no necessidade de haver crena memorial no processo da lembrana proposicional, ilustram este ponto e estes tpicos: contudo, tais anlises sero realizadas e discutidas nas sees subsequentes. Levando-se em conta o fracasso da TEM, Sven Bernecker reformula o argumento da memria apresentado anteriormente, refinando-o e redefinindo-o da seguinte forma:

(1*) Se S no esquece nada, ento o que S representa em t1, S pode representar em t2. (2*) S no esquece nada. (3*) S no pode representar P em t2. (4*) Logo, S no representa P em t1.25

No argumento da memria original, aquilo que no pode ser conhecido no futuro, no pode ser conhecido no presente: isto significaria, em termos gerais, jogar a possibilidade para o futuro das crenas que o agente epistmico tinha no passado, pois potencialmente possvel perder, extraviar crena, justificao e mesmo conhecimento no futuro em relao s crenas, justificao e conhecimento do passado. Neste argumento refinado de Bernecker, aquilo que no pode ser representado no futuro no pode ser representado no presente, e assim como o argumento da memria original, este refinado nocivo ao externalismo, por exemplo, pois possui uma crtica implcita e tcita teoria da causao das representaes na mente como contedo da memria, em que se S no representa P nem no tempo passado, t1, e nem no presente, t2, no haveria uma relao causal dos objetos externos com a mente, inexistindo com isso as representaes mentais dos mesmos e a sua possvel evocao atravs do expediente memorial, e a preservao do contedo mental entre t1 e t2. Sven Bernecker distingue duas concepes diferentes acerca da noo de esquecimento que fazem parte do senso comum, a saber, um esquecimento do sujeito em sentido amplo e25

(1*) If S forgets nothing, then what S represented at t1, S can represent at t2. (2*) S forgot nothing. (3*) S cannot represent that P at t2. (4*) Therefore, S did not represent that P at t1. BERNECKER, Sven. Memory and Externalism, p. 620-21.

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irrestrito, uma falha cognitiva na memria causada por qualquer razo que seja, estando ou no no controle do sujeito em questo, e o esquecimento estrito, uma falha de memria na qual o sujeito o responsvel por tanto. Na premissa (1*) do argumento refinado, esta noo de esquecimento amplo est suposta, pois se S no tem nenhum tipo de esquecimento, ento ele pode representar em t2 o que representou em t1. Em relao ao contedo mental, o argumento apia-se em uma noo equvoca de esquecimento, pois a mudana de ambiente (slow-switching) leva em conta o esquecimento no sentido amplo, e no estrito: se a perspectiva externalista fosse adotada, essas mudanas de ambiente poderiam privar-nos das nossas prprias lembranas, abandonando com isso a concepo de autonomia de uma memria individual, e passando a se adotar uma espcie de memria coletiva. Este, contudo, um problema que no ser tratado nem interessa diretamente aqui, haja vista ser um tema mais pertinente filosofia da mente e a anlise do contedo mental do que a epistemologia da memria propriamente dita. A mudana lenta leva ao esquecimento no sentido amplo, numa crtica ao argumento da memria j realizada, por exemplo, por Brueckner26. No final da seo 5 de Memory and Externalism, intitulada justamente lembrando sem conhecer (remembering without knowing), Sven Bernecker diz textualmente que a memria, ao contrrio do conhecimento, no implica em justificao, e que a mesma, memria, pode ser mera representao ou crena, mas no conhecimento27. De posse destes elementos importantes acerca do argumento da memria revisitado por Sven Bernecker, passaremos a analisar agora, a partir da prxima seo, a sua concepo de memria proposicional e o aspecto epistemolgico que atribui ou no a esta. Tais consideraes so de suma importncia para o tratamento global e especfico da sua tese central da lembrana sem conhecimento.

3.2 MEMRIA PROPOSICIONAL E A ANLISE EPISTEMOLGICA DA MEMRIA

No incio do seu artigo Remembering Without Knowing, Sven Bernecker fala da TEM e j anuncia que ir proceder por uma crtica mesma, atacando os seus fundamentos bsicos e26 27

BRUECKNER, Anthony. Externalism and Memory, p. 326. Memory, unlike knowledge, doesn`t imply justification., [...] Memory may be merely a representation or belief, not knowledge. BERNECKER, Sven. Memory and Externalism, p. 620.

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procurando erros conceituais em sua estrutura. Esta teoria defende que lembrar-se de algo significa saber esse algo, da lembrana que P segue-se necessariamente que se conhea P, tendo sido este conhecimento adquirido e preservado na memria, e possuindo P um determinado contedo proposicional: a perspectiva de anlise neste contexto investigativo envolve uma concepo de memria proposicional, um lembrar que P. Bernecker atenta para a correspondncia com a verdade que um conhecimento memorial pode atingir eventualmente, mas no sempre: o conhecimento, neste ponto de vista, sobrevm em alguns casos de lembrana, mas no em todos. Um ponto importante destacar que a memria proposicional no se limita a coisas com as quais se tenha tido contato direto e/ou pessoal, como na percepo e no testemunho, por exemplo: no esquema proposicional S lembra que P, sendo S um sujeito cognoscente e epistmico, e P uma proposio verdadeira, S no necessariamente precisa ter esse contato direto com P em termos do que foi colocado. Posso lembrar-me de proposies tanto do passado, quanto do presente, e mesmo relativas ao futuro sem esse contato geralmente perceptual e (ou) testemunhal direto: que eu lembre que Scrates bebeu cicuta, que neste momento meu colega disse-me que estaria estudando Epistemologia, e que amanh tenho um encontro marcado para ir ao cinema, bem como que F = ma, uma verdade atemporal, por exemplo, no dependem da criao de imagens mentais ou representaes nem de experincias qualitativas relativas a estes eventos. Apesar dos objetos da memria proposicional no necessitarem lidar com o passado diretamente, o aprendizado de algo no qual a lembrana seja de natureza proposicional requer uma precedncia desta lembrana com o mesmo, com esse algo: no se pode lembrar que P tendo-se recm aprendido que P. A lembrana de uma proposio, ou do contedo proposicional veiculado pela mesma, requer um pensamento anterior sobre este contedo proposicional, bem como uma conexo causal correta entre o pensamento passado e o pensamento presente, sendo este ltimo entendido como a recordao, que envolve elementos de memria intermediria ao longo deste processo cognitivo. Bernecker coloca que os proponentes da TEM fazem uma distino entre esta memria proposicional e mais dois tipos de memria, a saber: memria pessoal ou experimental, e memria prtica. A memria pessoal tem o aspecto de ser diretamente causada pela experincia que desencadeou esta memria: s possvel lembrar-se pessoalmente de algo que se tenha experenciado atravs de um contato pessoal do sujeito cognoscente com esse algo, na perspectiva da primeira pessoa e que envolva, nesse aspecto, imagens memoriais e representaes. Ao elencar os trs tipos de memria como um esquema padro em uma

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classificao tri-partite (proposicional, pessoal e prtica), Sven Bernecker no v com muita clareza a distino entre memria proposicional e memria pessoal que os proponentes da teoria epistemolgica apregoam. Teria uma experincia pessoal vivida por um sujeito S que a lembra um carter de memria pessoal ou proposicional? A diferena, aqui, residira num aspecto puramente proposicional em relao ao contedo memorial, ou na evocao de imagens mentais e representaes: esta evocao depende muito de pessoa para pessoa, e no poderia ser um critrio vlido e infalvel. Para algumas pessoas, suas vidas mentais so repletas de imagens memoriais ntidas, ao passo que para outras h a presena destas imagens, mas elas so vagas, opacas e evanescentes, enquanto que outras ainda sequer necessitam de tais imagens. Os critrios de diferenciao entre a memria proposicional e a memria pessoal residem, basicamente, em uma diferena bsica, segundo Sven Bernecker: a memria proposicional trabalha com um conceito essencialmente gramatical, onde o contedo memorial deve possuir uma forma declarativa (S lembra que P), enquanto a memria pessoal guiada por um critrio psicolgico, estando esta mais fundada nas imagens memoriais e nas experincias qualitativas. bastante sutil a diferena entre ambas, e por esta razo pertinente buscar a distino entre conhecimento por contato (by acquaintance) e conhecimento por descrio de Russell para fazer uma analogia entre a memria pessoal e a memria proposicional28: algo conhecido por contato quando h uma experincia direta com esse algo, ao passo que conhecer por descrio seria descrever algo com determinadas propriedades. Na analogia com a memria pessoal, esta memria por contato, e seu objeto no proposicional, como coisas, eventos e situaes, diferentemente da memria proposicional, que possui semelhana com o conhecimento por descrio, sendo seu contedo passvel de verdade ou falsidade. Para Bernecker, S lembra que P tem como referncia o lembrar proposicional em sua anlise, o lembrar que P, independente de P referir-se a algo que algum tenha experenciado pessoalmente. Retomando alguns aspectos das distines entre os diferentes tipos de memria, na TEM, de uma maneira bastante geral, existem basicamente trs espcies de memria, a saber: memria proposicional, memria pessoal ou experiencial, e memria prtica, que umEsta distino feita por Russell particularmente na sua obra Problems of Philosophy, no captulo V, que trata do conhecimento direto ou por acquaintance (contato direto do sujeito cognoscente com o objeto a ser conhecido), e o conhecimento por descrio. Por exemplo, para Russell, o conhecimento que se tem de uma mancha azul em uma parede, pode ser expresso pela proposio Isto azul (por contato direto do sujeito cognoscente com o objeto a ser conhecido), ao passo que o conhecimento de uma relao entre nmeros, por exemplo, do tipo 2 maior do que 1, envolveria conceitos lgicos e matemticos, e no o conhecimento direto dos nmeros. Nornam Malcolm tambm faz uma distino semelhante ao tratar da memria proposicional e da memria pessoal em Knowledge and Certainty.28

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lembrar-se de como fazer algo, referindo-se a uma habilidade previamente adquirida e retida. Nosso objeto de anlise aqui o primeiro tipo de memria, a proposicional, que onde h de fato interesse epistmico relevante, pois nela que a teoria epistemolgica concentra-se. Entretanto, como assinala Bernecker, esta confuso que existe na literatura filosfica entre os conceitos de memria pessoal e proposicional deve ser devidamente esclarecida, ressaltandose que enquanto a primeira necessariamente envolve a presena de experincias qualitativas (qualia) e a criao de imagens mentais, a segunda no requer essa presena29. A memria pessoal representa o contedo daquilo que lembrado a partir de uma perspectiva da primeira pessoa, internamente, ao passo que na memria proposicional esta no est limitada a coisas com as quais se tenha tido contato direto ou pessoal. Sob esta perspectiva, h uma determinada subjetividade que governaria a memria pessoal, pois a presena de imagens e (ou) qualia varia bastante de indivduo para indivduo: alguns destes se lembram de coisas com as quais tiveram contato direto necessitando de imagens mentais, outros nem tanto, e outros ainda dispensam tais imagens, como j foi colocado anteriormente. J o funcionamento da memria proposicional admite um critrio de identificao essencialmente gramatical, onde a informao memorial deve possuir um contedo declarativo. Tal definio de memria proposicional pode ser constatada na seguinte passagem de Bernecker (2007, p. 139):

As memrias proposicionais e pessoais so governadas por critrios diferentes. O critrio para identificar as memrias proposicionais primeiramente gramatical: o contedo memorial deve ter a forma de um that clause.30

importante salientar que a distino fundamental destas espcies de memria reside no fato de que o critrio que governa a memria pessoal essencialmente psicolgico, ao passo que na memria proposicional tal contedo declarativo implica em uma determinada objetividade da lembrana, podendo ser expresso pela forma Lembro que P. Ao fim e ao cabo, a nica diferena real entre estas duas espcies de memria que a pessoal est limitada a objetos com os quais se tenha tido contato direto, atravs da experincia, e na proposicional no. Tambm por esta razo, pois, que a memria pessoal refere-se apenas ao passado, ao

A noo de qualia, no contexto presente, abrange tambm as qualidades subjetivas das experincias mentais. Propositional and personal memory are governed by different criteria. The criterion for identifying propositional memories is primarily a grammatical one: the memory content must have the form of a thatclause. BERNECKER, S. Remembering Without Knowing, p. 139. O termo that-clause um tipo de orao subordinada classificada como de contedo declarativo. Pode haver uma correspondncia com a orao subordinada substantiva na lngua portuguesa, por exemplo: Eu me lembro que deixei o carro aqui.30

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passo que na memria proposicional no necessariamente: por exemplo, ao lembrar-me de alguma coisa que tenho de fazer amanh, esta lembrana possui uma natureza proposicional, e no h contato direto com o contedo da mesma, pois tal assentimento memorial refere-se ao futuro, e no ao que j aconteceu e que me lembre pela experincia pessoal. Bernecker tambm ressalta em seu mais recente livro, Metaphysics of Memory, que a memria proposicional tambm pode ser chamada de memria factual (2008, p. 2), e encontra proponentes desta concepo na literatura epistemolgica (Malcolm, Knowledge and Certainty, 1963), mas tambm algumas objees (por exemplo, em Sharp, Factual Memory, 1968). Uma vez bem delineado o conceito de memria proposicional, passemos agora concepo tradicional que a TEM apresenta, para em seguida abordarmos a tese berneckeriana da lembrana sem crena e os seus contra-exemplos s condies de justificao epistmica memoriais. Robert Audi (2003, p. 67), por exemplo, um dos principais proponentes desta teoria, atesta seu ponto de vista em uma passagem bastante clara acerca do aspecto epistmico que atribui memria:

Quando nossas crenas memoriais so proposies que ns lembramos como verdadeiras elas constituem conhecimento. Se voc se lembra que nos encontramos, voc sabe que nos encontramos. Igualmente, se voc se lembra de mim, voc me conhece (pelo menos no sentido de saber quem eu sou, o qu no quer dizer que voc me reconhece pessoalmente). Sendo assim, quando uma fonte do que lembrado, a memria normalmente produz tanto o conhecimento que quanto o conhecimento de. 31

Ao citar Robert Audi (em Remembering Without Knowing, p. 141, fazendo aluso passagem da citao acima), Sven Bernecker faz referncia a TEM, havendo aqui uma relao direta entre estes autores, neste contraponto entre as distintas concepes que ambos possuem acerca da memria. Bernecker tambm faz aluso a outro proponente da TEM para ilustrar e destacar este aspecto epistmico memorial, a saber, Michael Dummett (1993, p. 420): A memria no uma fonte, muito menos uma fundamentao, para o conhecimento: ela a manuteno do conhecimento antes adquirido por quaisquer meios.3231 When our memory beliefs are of propositions we remember to be true, they constitute knowledge. If you remember that we met, you know that we did. Similarly, if you remember me, you know me (at least in the sense of knowing Who I am, which is not to say you can recognize me in person). So memory, when it is a source of what is remembered, commonly yields both knowledge that and knowledge of. AUDI, Robert. Epistemology: a Contemporary Introduction to the Theory of Knowledge, p. 67, 2003. 32 Memory is not a source, still less a ground, of knowledge: it is the maintenance of knowledge formerly acquired by whatever means. Em DUMMETT, Michael: Testimony and Memory, 1993, p. 420-21. Citado por Sven Bernecker em Remembering Without Knowing, p. 141.

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Tanto Audi quanto Dummett comprometem-se, numa leitura destas passagens, com a TEM e os seus pressupostos, em que o primeiro chama a ateno para a conexo do contedo da lembrana com um aspecto epistmico correspondente, e o segundo destaca o carter preservativo deste contedo memorial e a sua suposta natureza de conhecimento. Outro autor relevante para esta discusso, David Annis, por exemplo, tambm defende um aspecto epistemolgico para a memria, ao dizer no incio de seu artigo Memory and Justification que Memria Proposicional reteno de conhecimento (Annis, 1980, p. 324), assim como Norman Malcolm, que afirma Uma pessoa B lembra-se que P somente se B sabe que P, porque ele sabia que P (Malcolm, 1977, p. 102). Enfatizando Audi neste contraponto da TEM com a TRM berneckeriana, este questiona, no fim das contas, a necessidade da presena de alguns tipos de imagens memoriais para a lembrana ocorrente, mesmo essas imagens tendo sido formadas atravs dos dados sensoriais advindos dos objetos externos, num contexto de teoria causal da percepo. A resposta afirmativa a esta questo seria uma resposta razovel e normal, haja vista a concepo clssica que temos da memria como faculdade cognitiva que associa imagens ao que foi adquirido, apreendido memorialmente no passado, pelo menos em relao aos objetos empricos com os quais tivemos, direta ou indiretamente, alguma espcie de contato sensrio dado pela experincia. Mas Audi chama a ateno para o que seja, de fato, uma lembrana ativa de algum evento do passado, e se o sujeito cognoscente cria alguma espcie de imagem mental acessando a memria. O epistemlogo norte-americano aponta para a possibilidade das imag