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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA UNAMA HÉLIO PENA BAIA RURBANIDADES MARAJOARAS: PRODUÇÃO, CONSUMO E MUDANÇAS CULTURAIS NO ESPAÇO DA CIDADE DE MELGAÇO-PA. BELÉM 2015

RURBANIDADES MARAJOARAS - unama.br · dificuldade de ser criança e a honestidade tornou-se um tabu, presente na vida de poucas pessoas, contudo, todos nós nascemos santos e sinceros

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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA – UNAMA

HÉLIO PENA BAIA

RURBANIDADES MARAJOARAS:

PRODUÇÃO, CONSUMO E MUDANÇAS CULTURAIS NO ESPAÇO DA

CIDADE DE MELGAÇO-PA.

BELÉM

2015

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HÉLIO PENA BAIA

RURBANIDADES MARAJOARAS:

PRODUÇÃO, CONSUMO E MUDANÇAS CULTURAIS NO ESPAÇO DA

CIDADE DE MELGAÇO-PA.

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente

Urbano da Universidade da Amazônia –

UNAMA, como requisito para obtenção do título

de Mestre.

Orientador: Prof. Dr Carlos Augusto da Silva

Souza.

BELÉM

2015

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Edvaldo Wellington

CRB2 1398

307.76

B152r Baia, Helio Pena.

Rurbanidades marajoaras: Produção, consumo e mudanças culturais

no espaço da cidade de Melgaço-PA. /Helio Pena Baia. – Belém, 2015.

191 f.: 21 x 30 cm.

Dissertação (Mestrado) - Universidade da Amazônia,

Programa de Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente

Urbano, 2014. Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto da Silva Souza.

1. Rurbanidade – Melgaço - PA. 2. Cartografia Social – Amazônia

Marajoara. 3. Urbano Melgacense – Características. 4. Urbanização –

Amazônia Paraense. I. Souza, Carlos Augusto da Silva. II. Título.

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HÉLIO PENA BAIA

RURBANIDADES MARAJOARAS:

PRODUÇÃO, CONSUMO E MUDANÇAS CULTURAIS NO ESPAÇO DA CIDADE DE

MELGAÇO-PA.

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente

Urbano da Universidade da Amazônia –

UNAMA, como requisito para obtenção do título

de Mestre.

Orientador: Prof. Dr Carlos Augusto da Silva

Souza.

Banca examinadora:

______________________________________________

Profº Dr. Carlos Augusto da Silva Souza – Orientador.

Universidade da Amazônia (UNAMA)

______________________________________________

Profª. Drª. Maria Lúcia Bahia Lopes

Examinador(a) Interno(a)

______________________________________________

Profª Drª Maria Dolores Lima da Silva

Examinador(a) Externo(a)

Apresentado em: 23/01/2015

Conceito:10,0

BELÉM

2015

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Certo que toda construção humana é coletiva não poderia

deixar de dedicar este trabalho para meus pais (Raimundo

Soares Baia e Luiza Pena Baia), aos meus irmãos (Ilca Baia,

Heli Baia, Helica Baia, Herica Baia, Helié Baia, Heliton Baia,

Juliana Baia e Gisele Baia), aos meus filhos (Jaymison, Hiago,

Hugo, Helem e Hélio Junior), juntamente com a amada esposa

(Dania Maria), mas, estes estão representados por outra pessoa

que em nome dele atribuo esta dedicação aos demais. O

encontro e o convívio com esta pessoa é um sentimento

inexplicável, como diz Fafá de Belém, “são coisas que não sei

dizer...”, com seu sorriso puro e singelo ele me faz refletir o

quanto o egoísmo nos destrói, no mundo de hoje, temos

dificuldade de ser criança e a honestidade tornou-se um tabu,

presente na vida de poucas pessoas, contudo, todos nós

nascemos santos e sinceros. Meu querido talvez não terei outra

oportunidade acadêmica para dizer-te o quanto você é

importante na minha vida e nesta caminhada, espero que Deus

me dê a oportunidade de ler esta dedicatória para você daqui a

alguns meses, quando você estiver mais crescido e falar-te da

alegria que você trouxe na vida de nossa família, da esperança

e dos sonhos que você transmite a cada um de nós. Esta

dissertação foi escrita junto com você, muitas e muitas vezes lhe

tomei no colo e próximo ao teclado do computador você

descaracterizava todo o meu texto que em seguida teria que

consertar a “bagunça” feita, com isso me ensinaste a exercitar

paciência e que a vida é muito mais linda do que parece,

revigoraste a chama do desejo que outra sociedade é possível e,

dedicar este trabalho à você é a certeza do começo de uma

linda história pessoal, profissional e familiar que você vai

trilhar, e como tudo está conspirado por Deus, escrevi este texto

no dia 22 de agosto de 2014, data em que você está

completando cinco meses de vida.

A Você, meu filho/Neto

Henzo Gabriel Viegas Baia

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AGRADECIMENTOS

Considero este momento, tão especial, quanto os demais itens deste trabalho. A

diferença é que neste tópico, estão as nossas subjetividades, vivenciadas no percurso desta

pesquisa, juntamente com as pessoas que devemos gratidões pelo apoio e incentivo recebido

desde o processo de seleção até a conclusão deste Mestrado. Por isso, em primeiro lugar,

agradeço a Deus pelo dom da vida, pela saúde, familiares e amigos que juntos somamos

forças espirituais para alcançarmos este objetivo.

Sustentado nesta Fé acredito que foi Deus quem me deu esta oportunidade,

primeiramente por ser filho de um pai e uma mãe que têm como principal meta na vida, a

educação dos filhos, seu Raimundo Soares Baia e dona Luiza Pena Baia foram uma das

primeiras famílias migrantes da década de 1990 que deixaram o furo Tajapuru em direção a

cidade de Melgaço em busca de educação sistematizada para os filhos. Éramos, na época, seis

irmãos e em 1993 chegou nosso irmão caçula, o marajoara Heliton Pena Baia, que hoje está

no segundo ano do curso de Engenharia Naval na UFPA/Belém.

Os anos de 1990 é o marco de uma nova história, recomeço e encontros, com

lugares e pessoas que significaram muito na caminhada social, cultural e política da minha

história. Aqui registro a importância da Escola Tancredo de Almeida Neves e seus

professores, aos quais devo a base de minha formação política e cultural.

Agradeço de maneira especial minha querida esposa Dania Maria que desde o

início deste projeto não mediu dificuldades para apoiar, incentivar e ajudar significativamente

durante a pesquisa, da mesma forma os filhos Hiago, Hugo, Hélio Jr., Jaymison e Helem pelo

apoio, carinho, afeto e inspiração deste trabalho: amados filhos, muito obrigado! Neste

ambiente familiar está o meu amigo, cunhado, compadre Dr. Agenor Sarraf Pacheco que

assumiu condição de orientador desde as primeiras linhas do projeto de pesquisa, “meu

compadre, seu otimismo, apoio intelectual e suas orações me permitiram chegar e concluir

com muito êxito este curso, muito obrigado, meu eterno orientador”. Aos meus irmãos pelo

apoio, carinho, respeito e afeto, devo minhas gratidões especiais a Ilca, Heli, Helica, Herica,

Heliton, Helié, Juliana e Gisele.

Não poderia deixar de agradecer e ao mesmo tempo registrar a importância de

cada um de nossos entrevistados (as) os marajoaras: Valdenora, Patauá, Admilson, Manoel

Rufino, Odivaldo, Mamedia, João, Benedito, Dário, Francisco, Daniel, Cavalcante e Augusto.

Sem a participação ativa dessas pessoas não seria possível a conclusão com tanto êxito desta

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pesquisa. Agradeço de modo especial a professora Cilene Viegas pela revisão ortográfica

deste trabalho.

Por tudo isso, agradeço ao povo brasileiro que através dos seus impostos me

possibilitaram o acesso através da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior) de uma bolsa de estudo e da mesma forma sou grato ao povo paraense por

estar licenciado da SEDUC-PA com remuneração durante dois anos para cursar o mestrado e

registrar o carinho de todos os melgacenses, principalmente, aqueles mais pobres que com

seus impostos me remuneraram nesses dois anos pela SEMED/Melgaço para cursar as

disciplinas do Mestrado, fazer a pesquisa, estudar e produzir esta Dissertação. Espero que este

trabalho possa no mínimo ser uma crítica por aqueles e aquelas que sobrevivem apenas de

uma bolsa do governo federal. Muito obrigado, a cada pai, mãe, jovens, crianças e

adolescentes deste município de Melgaço por terem me oportunizado a formação de um

“mestre na periferia do capitalismo” (Machado de Assis).

Agradeço à Universidade da Amazônia, especialmente ao Programa de Mestrado

em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano, pelo carinho e amizade que construímos

nesse pequeno tempo, especialmente aos amados mestres Marco Aurélio, pelo seu

profissionalismo e dedicação, Maria Lúcia Bahia que desde o período de seleção, nos portões

da Universidade nos transmitiu segurança até na banca de entrevista e no acompanhamento

desta pesquisa como co-orientadora, a professora Rosália pelas orientações que encaminhou

no crescimento deste trabalho durante o curso e na banca de qualificação, a professora Maisa

Tobias pelos elogios e incentivos neste tema e ao orientador desta Dissertação, professor

Doutor Carlos Augusto, por muitas coisas, mas, principalmente pela liberdade e respeito na

minha escolha, acredito que isto foi a maior senha do sucesso, obrigado professor, por ter

acreditado em minha pessoa e apostado neste tema.

Por fim, agradecer a minha nova família, meus novos irmãos, Ana Carolina, Ana

Silvia, Áthila Kzan, Brissa Ramos, Cinara Estrela, Davina Bernadete, Dhavynci Lyonard,

Hermógenes Neto, Icrys Neybel, Igor Morotomi, Luiz Thomaz, Luzia Cristina, Manoella

Cristina, Mary Jane e Shyrlene Barroso que durante dezoito meses percorremos saberes,

conhecimentos e partilhamos experiências, agradeço a cada um de vocês pelo carinho e

respeito que tiveram por minha pessoa, me acolhendo com gratidão. Por tudo isso, um sincero

e carinhoso obrigado!

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Mestre, eu preciso de um milagre

Transforma minha vida, meu estado

Faz tempo que eu não vejo a luz do dia

Estão tentando sepultar minha alegria

Tentando ver meus sonhos cancelados

Aline Barros

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RESUMO

BAIA, Hélio Pena. RURBANIDADES MARAJOARAS: Produção, Consumo e Mudanças

Culturais no Espaço da Cidade de Melgaço-PA. Belém 2014 (185). Dissertação (Mestrado em

Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano) – Universidade da Amazônia.

A pesquisa apresentada nesta Dissertação de Mestrado discorre sobre o tema rural/urbano na

“Amazônia Marajoara” tendo como foco de investigação moradores da cidade de

Melgaço/PA, localizada na Mesorregião do Marajó e microrregião de Portel. Através do

método da “cartografia social” produziu-se uma “geoetnografia” no espaço da cidade

objetivando seguir rastros de produtores rurais, caçadores, pescadores para entender as

motivações que os colocam cotidianamente nesses trânsitos e analisar a relação dessas

atividades com os processos de produção e consumo do espaço urbano melgacense. Diante

dessa investigação, constatou-se que as razões que motivam dezenas de homens e mulheres

em praticarem essas atividades estão relacionadas às condições econômicas, históricas e

culturais de cada sujeito e da própria cidade. Os trânsitos e as dinâmicas espaciais da cidade

produzem “formas” e “conteúdos” confusos impossibilitando fazermos uma classificação dual

e antagônica do espaço, “borrando” as fronteiras do rural e o urbano. Neste contexto

socioespacial e cultural, refletidos na paisagem melgacenses, advogamos a tese que esses

espaços ao assumirem formas e conteúdos híbridos, são caracterizados como espaços

“rurbanos”, assumindo identidades plurais, sem a negação de um ou de outro, mas, a

afirmação de ambos.

Palavras-chave: Rural. Cidade. Modos de vida. Práticas de trabalhos. Rurbanidades.

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ABSTRACT

BAIA, Hélio Pena. RURBANIDADES marajoaras: Production, Consumption and Cultural

Change in the City of Melgaço-PA area. Belém 2014 (leaves). Dissertation (Master of Urban

Development and Environment) - University of the Amazon.

The research presented in this Master's Thesis discusses the rural theme / Urban in "Amazon

Marajoara" focusing on research residents in Melgaço / PA, located in the Greater Region of

Marajó and micro-Portel. By the method of "social mapping" produced a "geoetnografia" in

the city space aiming follow tracks of farmers, hunters, fishermen to understand the

motivations that place daily in this traffic and analyze the relationship of these activities with

the production processes and consumption of Melgacense urban space. In light of this

research, it was found that the reasons for dozens of men and women in practice these

activities are related to economic conditions, historical and cultural features of each subject

and the city itself. Transits and city spatial dynamics produce "forms" and "content" confused

impossible do a dual and antagonistic classification of space, "blurring" the boundaries of

rural and urban. In this socio-cultural context and reflected in Melgacense landscape advocate

the thesis that these spaces by taking forms and hybrid content, spaces are characterized as

"sprawl", assuming plural identities without the denial of one or the other, but the affirmation

of both.

Keywords: Rural. City. Ways of life. Work practices. Rurbanidades.

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LISTA DE SIGLAS

IGC Instituto Geográfico e Cartográfico

CVRD Companhia Vale do Rio Doce

UCs Unidades de Conservação

PAGAIs Projetos de Gestão Ambiental Integradas

PDAS Plano de Desenvolvimento Sustentável dos Assentamentos

ZEE Zoneamento Econômico Ecológico

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

AMAM Associação dos Municípios do Arquipélago do Marajó

PDAs Planos de Desenvolvimento da Amazônia

RMSP Região Metropolitana de São Paulo

RMBH Região Metropolitana de Belo Horizonte

EMATER Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará

COSANPA Companhia de Saneamento e Abastecimento de Água do Pará

IDH-M Índice de Desenvolvimento Humano Municipal

PIB Produto Interno Bruto

ONU Organização das Nações Unidas

DIEESE Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos

INSS Instituto Nacional de Seguridade Social

DICATRI Divisão de Cadastros e Tributos

PEA População Economicamente Ativa

ICMS Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

FPM Fundo de Participação dos Municípios

IPI Impostos Sobre Produtos Industrializados

FUNDEB Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento da Educação

Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação

IPVA Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores

NUGEL Núcleo Gestor Local

PDP Plano Diretor Participativo

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LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1- Escola Estadual Bertoldo Nunes (1968) ............................................................. 87

Fotografia 2- Marajoara Valdenora ........................................................................................ 102

Fotografia 3- Marajoara Patauá. ............................................................................................. 104

Fotografia 4- Marajoara Edimilson ........................................................................................ 106

Fotografia 5- Marajoara Rufino. ............................................................................................. 108

Fotografia 6- Marajoara Odivaldo Costa. ............................................................................... 109

Fotografia 7- Marajoara Maria Mamedia. .............................................................................. 111

Fotografia 8- Marajoara João Moraes. ................................................................................... 112

Fotografia 9- Marajoara Benedito .......................................................................................... 114

Fotografia 10- Marajoara Dário e Esposa............................................................................... 115

Fotografia 11- Marajoara Francisco ....................................................................................... 116

Fotografia 12- Marajoara Daniel ............................................................................................ 118

Fotografia 13- Marajoara Cavalcante ..................................................................................... 119

Fotografia 14- Marajoara Augusto ......................................................................................... 120

Fotografia 15- Rua Marechal Rondon .................................................................................... 122

Fotografia 16- Estiva na Estrada do Moconha. ...................................................................... 125

Fotografia 17- Beira-Rio ........................................................................................................ 127

Fotografia 18- Vida Noturna na área Beira-Rio ..................................................................... 128

Fotografia 19- O rio como espaço de lazer............................................................................. 130

Fotografia 20- Cotidiano dos Moradores da Estrada do Moconha. ........................................ 141

Fotografia 21- Mulher melgacense no ofício de carregar água. ............................................. 144

Fotografia 22- Estação 1 – Bairro do Tucumã ....................................................................... 147

Fotografia 23- Vista panorâmica da frente da cidade (1968) ................................................. 149

Fotografia 24- Horta caseira urbana ....................................................................................... 151

Fotografia 25- Vista panorâmica da frente da cidade (2006) ................................................. 152

Fotografia 26- Residência da rua do Matadouro .................................................................... 154

Fotografia 27- Rua Beira-Rio ................................................................................................. 155

Fotografia 28- Placa de melhoria sanitária da cidade ............................................................. 156

Fotografia 29- Medidores de energia da rua do Matadouro ................................................... 157

Fotografia 30- O balador na trilha do tatu .............................................................................. 165

Fotografia 31- Trapiche da igreja ........................................................................................... 167

Fotografia 32- Hortas na Estrada Melgaço-Moconha ............................................................ 168

Fotografia 33- Fogão à lenha .................................................................................................. 169

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Mudanças Estruturais na Amazônia ....................................................................... 49

Quadro 2 - Formação histórica e ano de fundação das municipalidades marajoaras ............... 63

Quadro 3 - Espaços Tradicionais: Décadas de 1960/70 ........................................................... 93

Quadro 4 - Expansão e Criação de Novas Ruas: Décadas de 1980/90..................................... 94

Quadro 5 - Criação e Expansão de novas ruas: 2000 a 2006 ................................................... 94

Quadro 6 - Criação e Expansão de novas ruas: 2007/2013 ...................................................... 94

Quadro 7 - Uso e Ocupação do solo da rua Orlando Amaral ................................................. 135

Quadro 8 - Uso e Ocupação do solo da estrada Melgaço-Moconha ...................................... 137

Quadro 9 - Uso e Ocupação do solo da rua do Matadouro..................................................... 139

Quadro 10 - Uso e Ocupação do solo da Rua Beira-Rio ........................................................ 140

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SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO DA VIAGEM ................................................................................ 14

CAPÍTULO 1 .................................................................................................................................... 18

2 O EMBARQUE ................................................................................................................. 18

2.1 O Rural e o Urbano: Uma releitura das fronteiras...................................................... 28

2.1.1 A urbanização brasileira.......................................................................................... 31

2.1.2 O rural e o urbano no cenário brasileiro ............................................................... 34

2.2 O Rurbano: Primeiras Impressões .............................................................................. 38

2.2.1 O Rurbano no cenário brasileiro ............................................................................ 42

CAPITULO 2 .................................................................................................................................... 47

3 NA TRAVESSIA DAS FRONTEIRAS ........................................................................ 47

3.1 A Urbanização Da Amazônia Paraense: Uma discussão Geohistórica ...................... 47

3.2 O Urbano na “Amazônia Marajoara” ......................................................................... 54

3.2.1 A produção do espaço marajoara no período colonial ......................................... 57

3.2.2 Os significados da economia da borracha nos espaços das cidades e vilas

marajoaras (XIX – XX) .......................................................................................................... 57

3.3 As Primeiras Impressões do Espaço Melgacense ....................................................... 69

3.3.1 Melgaço: De vila à cidade ........................................................................................ 72

3.3.2 As primeiras décadas da “Cidade-Floresta (1961 a 1980) .................................... 79

3.4 A Cidade no Foco da Pesquisa ................................................................................... 83

3.4.1 A caracterização do urbano melgacense ................................................................ 83

3.4.2 As dinâmicas de produção da cidade ...................................................................... 86

3.4.3 As dinâmicas espacial da “Cidade-Floresta” nas décadas (1990 a 2010) ............ 89

CAPÍTULO 3 .................................................................................................................................. 100

4 AMARRANDO O CASCO: Na árvore da História com os laços da memória 100

4.1 Uma Cartografia Social dos Sujeitos da Pesquisa .................................................... 100

4.2 A Cidade e o Cotidiano: Entre imagens e narrativas. ............................................... 122

4.3 A Cidade e os sujeitos da “Beira do Rio”: Dinâmicas de Produção e Consumo do

Espaço. ..................................................................................................................... 122

4.3.1 As áreas inundáveis da cidade e os modos de produção do espaço ................... 133

4.3.2 Entre estivas e lamas percorrem os moradores no “escuro” da cidade ............ 150

4.3.3 Espaço e cultura na margem da Baia de Melgaço ............................................... 150

4.4 A Cidade e o Trânsito entre Rios e Florestas ........................................................... 160

5 O DESEMBARQUE ....................................................................................................... 172

REFERÊNCIAS.............................................................................................................................. 180

APÊNDICES .................................................................................................................................... 187

APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO SOCIOECONÔMICO E CULTURAL ........................ 187

APÊNDICE B - ROTEIRO DE ENTREVISTA .................................................................... 189

ANEXOS ........................................................................................................................................... 189

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14

1 APRESENTAÇÃO DA VIAGEM

No cotidiano, a dinâmica mais comum é passarmos de um território para outro. É

uma des-reterritorialização cotidiana, onde se abandona, mas não se destrói o

território abandonado. (HAESBAERT e BRUCE, 2011).

Neste tópico introdutório que estamos denominando de “apresentação da viagem”

iremos apresentar o cotidiano da cidade de Melgaço, localizada à margem esquerda da baia de

Melgaço, território indígena onde habitavam numerosas populações de nativos batizados

pelos portugueses de Guarycurus, este lugar carrega na história de seu espaço as marcas da

colonização e os traços físicos, econômicos, políticos e culturais de uma população que

durante séculos aprendeu a construir com a natureza as razões de suas vidas.

O século XVII (1653) colocou em “contato” duas visões de mundo e ao mesmo

tempo duas concepções geográficas completamente antagônicas. A estrutura de produção e

consumo do espaço marajoara praticado por milhares de populações nativas passaram a

disputar com os modelos de produção espacial europeia fundamentado pelas doutrinas e

ordens da produção que se “reterritorializaram” naquela Amazônia e assim como os

indígenas, os portugueses, iniciaram múltiplas formas de negociação para não recuarem e

manterem acesa a esperança dos seus objetivos econômicos, geográficos e culturais na

Região.

Nossa viagem será feita por dentro desse território, sintonizando objetos,

narrativas, movimentos espaciais, condições socioambientais de vida dos moradores, práticas

de trabalhos e formas de captura de animais na floresta e nos rios melgacenses. Antes, porém,

é necessário colocarmos na embarcação algumas informações que serão importantes para

nortear nossos contatos. A ONU (Organização das Nações Unidas), ao divulgar em 2013, os

indicadores sociais de educação, renda e longevidade levantados pelo IBGE (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística) no senso demográfico de 2010, identifica que os

“marajoaras melgacenses” possuem os piores serviços de educação, saúde e qualidade de vida

do Brasil, fatores que os colocam na condição de pior município para se viver do país, com o

IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,418.

A divulgação dessas estatísticas foram manchetes de todas as emissoras de

televisão do país e causou desconforto nos moradores, principalmente da sede municipal. Os

moradores ao verem sua cidade sendo manchete das emissoras de rádio e televisão do país,

resolveram empreitar movimentos de ruas objetivando chamar a atenção das autoridades

locais diante dos desafios de infraestrutura urbana que a cidade vivencia. Moradores de todas

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15

as idades ocuparam as ruas da cidade com cartazes e faixas exigindo mais empenho das

autoridades para as problemáticas da cidade. Entre os adjetivos atribuídos pela imprensa ao

lugar as que mais impactaram foi “fossa da Amazônia” e “chiqueiro humano” 1. Em meio a

esses feitos históricos comprovou-se a forte identidade que os “marajoaras melgacenses” têm

com aquela cidade, visualizadas por cada gesto e expressão dos movimentos sociais,

simbolizados pelas frases de cartazes e camisetas “Eu amo Melgaço”.

Mas, nossa viagem não acontecerá apenas por essas rotas dos feitos históricos e

dos movimentos sociais empreitados pelos moradores da cidade, obviamente que não

deixaremos de abordar as condições sociais do lugar, os descasos, mas ao mesmo tempo,

discutir o espaço urbano melgacense considerando as práticas de moradores que dedicam

parte do seu tempo nas atividades da pesca artesanal, na captura de animais, agricultura

familiar, extração de madeira, palmito, açaí, práticas de cura e outros modos de vida que em

tese são praticados por moradores rurais.

Neste cenário espacial ancoram homens e mulheres que aprenderam a dialogar

nessa intercessão com a cidade e a floresta, a tradição e a modernidade, com o lugar e o não

lugar, com os de cá e os de lá. São sujeitos que cotidianamente entrecruzam essas fronteiras e

reescrevem os limites do urbano e o rural naqueles “Marajós”.

Os movimentos cotidianos de pessoas, conduzindo materiais e equipamentos

como malhadeiras, paneiros, motor de popa (rabudo), remo e outros utensílios de caça e pesca

tipicamente amazônico despertaram curiosidade e interesse em conhecer – como estudante de

geografia – melhor aquela dinâmica espacial, assim como, a permanência de alguns hábitos e

costumes praticados pelos moradores como: contratar serviços de benzedores para a cura de

várias doenças de crianças e adultos, práticas de plantar ervas medicinais e temperos no

entorno das residências, práticas cotidianas de tomar banho no rio e os significados de barcos

e rabetas2 na vida cultural daquelas populações, assim como os usos de estivas, pontes e

trapiches pelos moradores, subsidiaram a construir a seguinte problemática desta pesquisa: De

que maneira as práticas de mariscos, trabalhos e outros modos de vidas rurais, praticadas

por homens e mulheres residentes da cidade de Melgaço, participam da dinâmica de

produção e consumo do espaço urbano melgacense?

1 Conceitos construídos pela equipe de reportagem da emissora de televisão BAND, numa série exibida em rede

nacional em setembro de 2014, denominada “BRASIL: O Céu e o Inferno”, fazendo um comparativo da

qualidade de vida entre os melgacenses e os moradores do interior Paulista, região que apresentou o melhor

IDH do país. 2 A rabeta é um meio de transporte tipicamente amazônico utilizado pelas populações ribeirinhas como meio de

transporte, conduzido por um motor de popa, nomeado pelos moradores como rabudos.

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Diante dessa situação problema e a posse de algumas pesquisas realizadas na

cidade de Melgaço em nível de monografias de conclusão de cursos de graduação e outros

levantamentos escolares realizados por alunos como etapa de atividades pedagógicas

elaborou-se a seguinte hipótese: As razões que levam os moradores da cidade de Melgaço

não se desvincularem dos espaços rurais estão relacionados com a história de vida daquela

população que desde criança absorveram habilidades de se relacionar com os rios e a

florestas e hoje esses espaços constituem suas identidades.

A partir desses dois focos (situação problema e hipótese) objetivou-se realizar

uma pesquisa sobre os modos de vidas e as práticas de trabalho que os moradores da cidade

de Melgaço realizam, procurando entender a permanência desse cotidiano no espaço da

cidade e as motivações que os colocam naquelas atividades e relacionar com o processo de

ocupação, consumo e do espaço da cidade a partir da relação cidade/floresta.

Diante dessas pretensões buscou-se percorrer “rastros” que remetessem ao contato

com os cotidianos de vida da cidade de Melgaço, foi neste cenário metodológico que buscou-

se amparo teórico no método da “Cartografia Social” dos pesquisadores franceses Gilles

Deleuze e Félix Guattari, representada na América-Latina pelo pesquisador Martín-Barbero.

A cartografia é um método de pesquisa que acompanha a pesquisa social como um processo e

não como um objeto. Os pesquisadores advogam a tese que a relação do pesquisador com os

demais sujeitos da pesquisa não acontece de maneira hierárquica, ambos estão no mesmo

chão.

A partir desta sustentação teórico-metodológica foram delimitadas as etapas da

pesquisa de campo que teve como base a realização de uma “geoetnografia”. Com esta

referência constituiu-se um diário de campo para registrar a dinâmica espacial da cidade

através da observação, conversas semiestruturadas com transeuntes e fotografias. Percorreu-se

a cidade em suas diferentes dimensões geográficas “fisgando” práticas espaciais que

fundamentasse o alcance dos objetivos desta pesquisa.

Nessas viagens “por dentro da cidade” identificou-se moradores urbanos

praticando atividades que aparentemente teriam sido há muitos anos desarticuladas pela

tecnologia. Esses encontros foram motivando outros encontros com outras práticas e sujeitos

diversos. Nesta motivação, percorreu-se todas as ruas e bairros da cidade, conhecendo e

registrando as motivações dos moradores e suas frustrações, angustias e esperanças de terem

uma cidade melhor, contudo, ao mesmo tempo nos deparava com práticas espaciais como: a

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armadilha com o balador artesanal na floresta, a caça na espera do mutá3 e a lanternação na

varrida4.

Diante das variedades de sujeitos vivenciando tanto as práticas urbanas quanto as

rurais foi necessário discutir a cidade por dentro dessas múltiplas “formas” e “conteúdos”

tendo o cuidado de analisar todas as áreas já que não poderíamos partir de um estudo somente

da periferia.

Além das áreas, identificou-se centenas de pessoas em todas as ruas convivendo

pela intercessão das “urbanidades” e as “ruralidades”, assim como um espaço produzido no

diálogo com o urbano e o rural. Diante desse universo de pessoas ficaria complicado trabalhar

com histórias de vidas de todos, por isso, optou-se em entrevistar doze sujeitos com perguntas

abertas e semiestruturadas. Esses moradores foram selecionados pelo tempo de moradia na

cidade, entrevistou-se pessoas que migraram na década de 1960, 70 e 80. Esses sujeitos foram

selecionados, pelo tempo de moradia na cidade, e as práticas de trabalho que os colocam nos

trânsitos cidade/rios/florestas e serem habitantes de uma das áreas pesquisadas.

O registro da “geoetnografia” foi feito através de uma descrição do cotidiano da

cidade, realizado em diferentes dias da semana e horários, gravação de pequenas narrativas de

moradores quando estavam realizando determinada atividade atípica ou não muito comum dos

espaços urbanos. As entrevistas foram gravadas e transcritas para o diário de campo,

juntamente com as demais descrições, ilustradas com fotografias dos entrevistados e de suas

atividades praticadas em rios e florestas e a cidade.

Nesses percursos encontrou-se sujeitos e práticas que eram manifestadas em

diferentes lugares sociais, políticos e culturais sobre a cidade. Percebeu-se as manifestações

das pessoas no espaço da cidade, suas histórias e os percursos que elas traçavam durante suas

atividades, para isso, carece de olhares que possam ir além de uma geografia da população e

seus lugares superando o conceito de um espaço geográfico. São homens e mulheres

migrantes e filhos natos da cidade, de diferentes faixas etárias, uns mais antigos e outros com

histórias mais recentes na cidade, contudo, eles compõem o tecido espacial do urbano e o

rural simultaneamente.

3 É uma técnica de caça utilizada pelos moradores da cidade de Melgaço. Eles identificam na floresta onde

existe uma árvore frutífera que esteja sendo comida por algum animal roedor, dependendo do animal eles

sabem o horário que a caça vai aparecer no que eles chamam de “comidia”, aí eles montam com vara um

assoalho, aproximadamente, quatro e cinco metros de altura, camuflada nas ramadas das outras árvores, eles

sobem e ficam em silêncio total esperando a caça aparecer para matarem. 4 A lanternação na varrida é outra técnica de caça durante a noite, os caçadores identificam na floresta

determinada área que apresente sinais de andanças de caça, durante o dia eles tecem pequenas trilhas em

meio a vegetação e varrem para tirar toda a folhagem para não fazer barulho durante a caçada que vão

empreitar na noite seguinte.

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Além dessas doze vivências realizadas com os moradores, a “geoetnografia”

colocou em contato com outras realidades sociais, políticas e culturais do urbano melgacense,

realidades que ampliam e pluralizam o cotidiano da cidade, fundamentadas nos capítulos

desta dissertação.

Diante desses registros e focado em alcançar os objetivos desta pesquisa,

estruturou-se esta Dissertação em três capítulos. O Primeiro Capítulo, intitulamos de

“EMBARQUE”, o que significa convidar o leitor a fazer uma viagem de barco por rios já

navegados por outros pesquisadores do tema, neste embarque faz uma discussão teórica de

alguns conceitos fundamentais desta pesquisa, entre eles, estão as “rurbanidades”, “espaço”,

“geoetnografia”, “cartografia social” e “entre-lugar”, associando-os com algumas bases

empíricas da pesquisa. O Segundo denominamos “NA TRAVESSIA DAS FRONTEIRAS”.

O significado de travessia é múltiplo, contudo, neste capítulo é uma análise da literatura sobre

a urbanização brasileira, fazendo uma abordagem geohistórica do urbano amazônico e

marajoara. Em outro momento tece uma crítica ao processo de hierarquização oficial da rede

urbana nacional, considerando que a maioria das cidades brasileiras não é visualizada por essa

cartografia e por último debate a importância de superarmos alguns paradoxos espaciais, entre

eles, a dualidade rural-urbano fundamentando a importância das “rurbanidades” para entender

geograficamente a “confusão” espacial apresentada por inúmeras cidades da “Amazônia

Marajoara” (PACHECO, 2010).

O Terceiro Capítulo denominei, “AMARRANDO O CASCO: Na árvore da

história com os laços da memória”, inicia fazendo uma apresentação dos doze sujeitos diretos

da pesquisa, suas histórias de vidas e as matrizes culturais que vieram norteando suas histórias

no espaço marajoara. Essas narrativas somadas com os outros registros de campo constituíram

a base empírica deste capítulo que fundamenta a tese de que a cidade de Melgaço é um “entre-

lugar” que se chama “rurbano”.

A espinha dorsal que costura a discussão teórico-metodológico percorre pela

categoria espacial “rurbano”, tecido pelo campo teórico de alguns pesquisadores dos estudos

culturais, sociológicos, históricos e geográficos, advogando a tese que o espaço não é um

produto da sociedade, mas, uma extensão da vida social e cultural das subjetividades e das

coletividades dos sujeitos que o produzem, imprimindo nessas relações os desejos e as

intervenções que conduz a dinâmica individuais e coletivas das pessoas.

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CAPÍTULO I

2 O EMBARQUE

Trazer a Amazônia como foco de uma pesquisa sempre é carregado de

motivações, entusiasmos e desafios. Por isso, estamos convidando você para juntos fazermos

esta viagem pelos rios da Amazônia e dialogar com pessoas para conhecer como elas se

relacionam com espaço onde vivem, seus modos de trabalhos e as práticas de mariscos, as

técnicas que utilizam para mediarem a relação sociedade natureza e como esses saberes locais

vem dialogando com as linguagens e os códigos globais e a cultura letrada.

Adentrar o rio amazonas requer passagem obrigatória pelo arquipélago do Marajó

e, nesta viagem vamos partir por dentro da cidade de Melgaço, numa pesquisa de mestrado,

tratando sobre uma cidade que dialoga com a tradição e a modernidade dando importância,

principalmente, aos sentimentos, as vozes, as práticas de vida daqueles e aquelas que, talvez,

ainda não foram ouvidos. Dialogando também com agricultores, pescadores e caçadores,

migrantes e não migrantes, conhecendo suas identidades culturais, seus desafios econômicos e

suas relações políticas e sociais.

Como você já percebeu, será uma viagem por dentro de outras viagens,

conhecendo a “cartografia”5 dos sujeitos sociais que borram as fronteiras territoriais urbanas e

rurais através dos seus modos e costumes próprios, ignorando as normatizações do poder

público sobre a gestão do espaço urbano, fincam os açaizeiros das moradias movidos pela

força da cultura do lugar de onde partiram e (re)configuram a malha urbana das cidades às

suas formas, às suas maneiras e vão inserindo as “ruralidades” (FREYRE, 1982) nos espaços

limitados pela legislação oficial como urbanos6.

Essas forças ribeirinhas refazem o sentido de urbano e colocam em diálogo mútuo

esses espaços que interagem e constituem o que apresentamos como “rurbanos” (FREYRE,

1982). São cidades que navegam na interseção dos territórios rurais e urbanos.

As “rurbanidades” melgacenses e marajoaras é uma categoria espacial por onde se

interpretou os cotidianos da cidade e, assim, comungar com aqueles que vêem defendendo os

5 O termo “cartografia” será utilizado nesta pesquisa a partir das concepções teóricas dos pesquisadores

franceses, Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995), como um método que entre outras funções supera a pesquisa

como um objeto, enfrenta a pesquisa sempre como um processo que não se busca estabelecer um caminho

linear que levará a um fim, mas, sua construção acontece “caso a caso”, procurando pistas para discutir e

coletivizar “a experiência do cartógrafo”. 6 Os conceitos de urbano e urbanização que algumas vezes aparecem neste trabalho está no sentido amplo dos

mesmos, utilizado como sinônimo de cidade.

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conceitos de “urbanodiversidades” (TRINDADE JR. 2010) e “Cidade-Floresta” (PACHECO,

2006) na Amazônia paraense e marajoara.

Esses atributos espaciais melgacense tornaram-se elementos motivadores na

investida deste tema, pela importância da reflexão geográfica que ele representa ao lugar,

reafirmando a identidade espacial das pessoas e ao debate do urbano na escala nacional. A

contestação de Souza (2010) que o Brasil está muito distante de uma completa urbanização

nacional, através de um estudo de caso sobre a cidade de Tapauá/AM, vem se confirmando na

“Amazônia Marajoara” com as dinâmicas socioeconômica, sociocultural e socioambiental da

cidade de Melgaço em pleno século XXI.

Neste contexto sociocultural em que se confronta o espaço de muitas cidades

marajoaras (Melgaço), o “rurbano” (FREYRE, 1982) nesta dissertação coloca na “mesa” das

discussões, uma categoria espacial que provoca significativas contribuições nos debates das

práticas sociais e culturais que os moradores imprimem no espaço das cidades marajoaras.

Essas interfaces pluralizam os conceitos de trabalho, produção e consumo do

espaço das cidades na “Amazônia Paraense”. As cidades da “Amazônia Marajoara”

(PACHECO, 2010) vivenciam dinâmicas múltiplas, transitadas entre o “moderno” e o pré-

existente, esses trânsitos não podem continuar no silêncio e na marginalização dos centros de

produção científica. As pequenas cidades tradicionais marajoaras, mesmo desarticuladas pelo

circuito de produção da malha urbana rodoviária associado aos desafios econômicos e

políticos estão sendo foco de migração populacional dos espaços rurais circunvizinhos. Este

fenômeno está sendo responsável pelo espraiamento urbano com identidades ribeirinhas sem,

contudo, descaracterizar as identidades urbanas presentes naqueles espaços.

Nesse contexto socioespacial se fundamenta a categoria “rurbana” discutindo

essas características espaciais confusas. O rurbano não associa a vida desses centros urbanos

por uma perspectiva romântica, muito menos uma sociedade congelada em seus traços

tradicionais, a opção por esta categoria é apostando que ela dar conta de discutir o espaço

como processo dinâmico que dialoga com o “tradicional” e o “moderno” sem descaracterizar

ou minimizar as ações de nenhum dos dois no espaço das cidades.

Aqui cabe enfatizar que a relação campo-cidade, urbano-rural na Amazônia vem

sendo muito discutido nos últimos anos. Pesquisadores de várias áreas do conhecimento vêm

debruçando olhares sobre esses conceitos. As opiniões ainda dividem muito quando se trata

de permanência ou supressão das dualidades entre esses espaços, mas, grandes avanços já

foram dados nesses debates. A geografia, contudo, é uma das ciências que tem avançado

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pouco nessa discussão, mas existem geógrafos7 que vem tratando sobre as diversidades

urbanas regionais há bastante tempo, fato que descaracteriza qualquer adjetivo de modismo ao

tema ora em debate.

Por outro lado, não dar para negar os avanços demográficos que as cidades

marajoaras estão vivenciando. As estatísticas oficiais estão sinalizando que em poucas

décadas o Marajó terá uma sociedade urbanizada, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística), no ano de 2010, contabilizou mais de quatro milhões de pessoas habitando áreas

rurais nos Estados da Região Norte do Brasil.

Os indicadores populacionais dos estudos de Silva (2008) sobre as Mesorregiões

paraenses apresentam forte crescimento da população urbana em todas as mesorregiões do

Estado, exceto Marajó, que ainda 2/3 da população habitam os espaços rurais dos dezesseis

municípios marajoaras. A região é a terceira maior em abatimento da floresta amazônica

nativa do Estado, com 46,10% de desflorestamento, além de 73,90% da população está na

margem de extrema pobreza.

Em 2010, o censo demográfico nacional identificou na Mesorregião Marajoara

487.024 habitantes e 56,60% estavam habitando as margens de rios, campos e florestas. Neste

mesmo ano, Melgaço confere o maior percentual de população rural entre os municípios de

fronteira (Breves, Portel, Bagre, Curralinho e Gurupá), 77,80% dos 24.808 habitantes vivem

às margens de baias, lagos, rios, igarapés, furos e florestas.

As cidades marajoaras que foram de grande importância aos projetos da

colonização da Amazônia servindo de entrepostos comerciais da borracha e sustentaram por

décadas as indústrias madeireiras e palmiteiras, não se mantiveram como tais a partir do

projeto federal de “integração nacional”. A desarticulação econômica atribuiu às prefeituras o

papel de gerar emprego e renda aos moradores. Diante desses desafios, os moradores se

articulam em grupo ou individual e adentram rios e florestas praticando extração de recursos

florestais, capturando frutas e animais para suas sobrevivências.

O contato de cidadãos urbanos com áreas rurais está além de uma busca

econômica, essa dinâmica espacial reescreve rotas, espaços e inter-relacionam rural e urbano

por cartografias cognitivas de domínio e construção própria daqueles sujeitos que são

construídas no anonimato dos indicadores oficiais, as investidas de moradores da cidade em

busca de peixe, caça, madeira, palmito e seus saberes herdados no convívio com seus

7 Entre eles estão PACHECO (2006) apresenta o debate sobre “Cidade-Floresta”, TRINDADE JR com o

conceito de “urbanodiversidade” na Amazônia e MONTE-MOR que amparado pelas teorias de LEFEBVRE

discute esta relação campo-cidade a partir do conceito de “tecido urbano” no Estado de São Paulo.

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remanescentes inscrevem suas marcas que estrategicamente vão imprimindo no espaço

regional e nacional, construindo “formas” e “conteúdos” (SANTOS, 1994) condignos com

suas atividades, distribuindo pela cidade práticas espaciais que confundem aqueles leitores

que olham a cidade pelo que elas apresentam na superficialidade de suas paisagens.

Nessa confusão conceitual equivocadamente utilizou-se de maneira dual e

homogênea para definir que “isto é rural” e “aquilo é urbano” ou “isto é campo” e “aquilo é

cidade”, apresenta fragilidade quando se aplica no urbano marajoara. A “essência de um é

sempre a continuidade do outro, os conceitos puramente “urbanos” e rurais” geograficamente

são contraditórios com os cotidianos praticados da maioria das cidades da “Amazônia

Ribeirinha” e é neste cenário confuso que se fundamenta a categoria espacial “rurbano”, onde

os modos de vidas e as práticas espaciais interagem numa condição simultânea no espaço e no

tempo.

As “rurbanidades” (FREYRE, 1982) marajoaras estão mais visíveis nos cotidianos

de agricultores, pescadores e caçadores da cidade de Melgaço. Na memória dos moradores

que residem na cidade desde a formação de vila que participaram dos primeiros passos da

cidade a partir da década de 1960, período da emancipação política do município, está muito

fértil ao lembrarem o quanto eram motivados pelos pais a ingressarem desde criança em

práticas de trabalhos e mariscos daquele lugar. A primeira educação das crianças era o

convívio com as águas, as florestas e, consequentemente, o domínio de seus códigos de

vivências e interpretações.

Desde a década de 1960 até os últimos anos do século XX, a cidade mantém

poucas alterações na sua dinâmica de vida. A base econômica da maioria dos moradores

permaneceu nas atividades primárias do extrativismo vegetal, na madeira e no palmito de açaí

e na agricultura familiar de subsistência, funcionando em regime de parceria com aqueles e

aquelas que não possuíam equipamentos básicos para a produção de farinha e na ajuda mutua

entre os agricultores, denominados por eles como práticas de “convidados” ou “troca de dia”8.

A monocultura da farinha de mandioca sustentava a maioria das famílias da

cidade, mas, nos últimos anos essa produção vem sofrendo uma decadência, o abandono de

8 O convidado ou troca de dia é uma prática de ajuda mútua estabelecida entre os moradores marajoaras. Nessa

atividade, o dono do serviço convida vários homens para a realização de uma atividade que necessita de

várias pessoas para realizar ou para a realização de um trabalho em tempo mais curto. As maiores práticas de

convidados acontecem para fazer roçados, colocar troncos de madeiras da floresta para as margens dos rios.

Nessa atividade quem convida se responsabiliza pela comida com abundância para todos os trabalhadores,

aqueles que não oferecem comida farta encontram dificuldade de obter trabalhadores no próximo convidado.

Nesta prática não acontecem pagamento em dinheiro do dia de trabalho, o dono do convidado ou já tem dia

de trabalho ganho na mão de outros trabalhadores ou pagará com outro dia de trabalho para aqueles que

vieram ajudar.

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muitas “casas de fornos”9 de famílias tradicionais da cidade está visível. Atualmente é muito

comum encontrarmos nas margens da estrada, centros10

abandonados sem nenhuma

produtividade.

Esse abandono das “casas de fornos” confirmou-se com os comerciantes e em

observação no trapiche municipal percebeu-se que a maioria da farinha de mandioca que é

consumida na cidade de Melgaço vem das áreas rurais do município (Rio Anapú) e da área

rural do município de Portel. Este fechamento das casas produtoras de farinha da cidade vem

sendo justificada pelo desencanto de muitos agricultores com a falta de apoio técnico e

financeiro dos órgãos estadual e municipal11

.

Outros passaram a fazer das “cozinhas de fornos” um espaço de produção da

farinha apenas para a alimentação familiar e buscaram atividades como carreteiros,

vendedores de bombons, lanche, a pesca e a caça artesanal. As ruralidades nesses sujeitos

estão entrelaçadas em suas culturas que mesmo não tendo na produção de farinha a principal

fonte de renda como em outrora, buscam outras estratégias de não se desvincularem dessas

relações com a floresta e as águas e, com isso recriam identidade espacial de maneira mais

plural e complexa, com o local se (re) significando no global e o global (re) significando o

local.

Trindade Jr. (2005) ao pesquisar a relação entre as cidades e os rios na Amazônia,

encontra nesse processo sociocultural, forte dimensão geográfica expressadas na paisagem

regional pelos modos de vidas materiais e simbólicos ribeirinhos que adentram formas

espaciais urbanas e reconfiguram as relações socioespaciais daquelas áreas. O pesquisador

também chama atenção para a importância de construir categorias espaciais que submeta as

duas situações problemas fundamentais, como localização e funcionalidade dos aglomerados

urbanos amazônicos.

Faz-se necessário, assim, reconhecer a produção do espaço beira-rio, sua história,

suas vivências, suas identidades, responsáveis por reforçar uma especificidade da

cidade na Amazônia, a cidade ribeirinha – forma e conteúdo –, diferente da cidade

beira-rio, demarcada pela simples localização às margens fluviais e pela presença do

rio como adereço da paisagem. (TRINDADE JR., 2005, p.11).

9 Casa de forno, é a industrial artesanal da farinha, normalmente, é feita com troncos de árvores, coberta de

palha de bussú (palmeira típica da “Amazônia Marajoara” (Pacheco, 2010) que os moradores utilizam para

cobrirem suas residências, o piso é de chão batido. Funcional com equipamentos de produção distantes dos

avanços tecnológicos contemporâneos. A principal energia utilizada na cozinha de forno é a humana. 10

Centro é o termo utilizado pelos moradores da cidade de Melgaço para as áreas onde eles tem suas roças e

fazem o processo de fabricação da farinha de mandioca. 11

Essa informação foram apresentadas pelos filhos de alguns agricultores antigos da cidade durante a realização

da “geoetnografia” e está registrada nos registros da pesquisa de campo.

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Na trajetória não apenas melgacense, mas, marajoara, nas andanças e vivências

que historicamente viemos trilhando entre algumas cidades dos “Marajós das Florestas”

(PACHECO, 2006) não há como negar que os pequenos centros urbanos da “Amazônia

Ribeirinha” constituem dinâmicas de consumir e produzir o espaço a partir de intenso diálogo

entre as “ruralidades” e as “urbanidades”.

Essas especificidades Amazônicas e Marajoaras, não se encaixam nas gavetas

metodológicas e conceituais de pensar o espaço urbano. As dinâmicas espaciais vivenciadas

pelas cidades ribeirinhas carecem de uma releitura conceitual e metodológica dessas

especificidades, associando-as numa escala de “domínios locais e não local” Clark (1985,

apud COSTA, 2005) que cotidianamente se entrelaçam por múltiplos fatores, como as

práticas de trabalho de mariscos e outros modos de vidas vivenciados no cotidiano

melgacense.

Essas relações dos sujeitos com o espaço da cidade de Melgaço sustentam a tese

de um espaço “rurbano” caracterizado pelo intenso diálogo entre esses dois mundos (rural e

urbano) presentes no espaço melgacense. Esses contatos entre as “ruralidades” e as

“urbanidades”, materializam no espaço das cidades múltiplas formas de negociação entre os

saberes tidos como rurais e as modernidades da vida urbana. Assim compreende-se que as

rurbanidades melgacenses constituem grande importância para pensarmos o espaço e suas

territorialidades. Neste sentido as fundamentações de Deleuze e Guattari (1997) sobre o

espaço afirmam que a dinâmica de desterritorialização e reterritorialização deve ser visto

como processos indissociáveis, ou seja, os sujeitos ao saírem de um lugar já têm em mente

onde vai ancorar sua moradia, desta forma eles tecem intenso processo de diálogo, negociam

e ao mesmo tempo impõem e sofrem as pressões dos sujeitos do “novo” lugar cultural.

Essas “cartografias” requerem do pesquisador social lançar mão de uma

ferramenta de pesquisa, que coloque em contato com sujeitos cartógrafos, que concebem

outras formas de pensar e produzir o espaço que diferem dos clássicos modelos de conceituar

o urbano. Essas vivências não podem ser restritamente pensadas pela superficial relação

sociedade-natureza, mas, fisgarmos nessas espacialidades elementos como os tempos

históricos e geográficos em que elas vêem se reproduzindo. Entre essas temporalidades estão,

o trabalho, as manifestações festivas, as religiosidades, as práticas de “mariscos” e de curas

que vêem dialogando e negociando sua existência, durante séculos, com as temporalidades

exógenas que desde a colonização vieram disputando espaço às espacialidades locais.

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Ainda no entrelace das rurbanidades encontramos vários “território de pajelança”

em que benzedores, a maioria mulheres medicam crianças e adultos com chás, banhos e

espécie de xarope a base de ervas e raízes da floresta marajoara.

O encontro com esses modos de vidas e os sujeitos responsáveis pela reprodução

dessas práticas no espaço, nos permitiu construir o roteiro da pesquisa que pudesse não apenas

identificar essas atividades, como ao mesmo tempo, analisá-las e entendê-las, pois, na prática

elas participam das dinâmicas espaciais da cidade e para isso, optamos por uma linha de

pesquisa que nos levasse ao encontro de sujeitos de diferentes faixas-etárias e tempos de

moradias na cidade. Além de conhecermos através das suas histórias de vidas os processos

socioculturais e econômicos que nortearam suas práticas e saberes, assim como, as

motivações que as trouxeram até aqui.

A partir dessas histórias de vidas, fomos percebendo as razões culturais e

econômicas que lançam esses sujeitos ao encontro com a floresta e as águas da “Amazônia

Marajoara”, são moradores movidos pela forte tradição oral que os identifica como sujeitos

espaciais rurbanos. Por não dominarem os códigos da leitura e escrita, tecem suas relações

com o espaço a partir de práticas e técnicas adquiridas através do intenso processo de

observação, tornando-os sujeitos que realizam seus cotidianos pelo método do “saber-fazer”

(JARDIM, 2013) adquiridos pelo meio social e cultural que historicamente estiveram

inseridos.

Esta metodologia foi muito motivadora e de grande importância para adentrarmos

nas matrizes culturais que colocaram e colocam aqueles homens e mulheres em diálogo com a

cidade e a floresta, além de nos manter em mesmo “chão” com o participante. Através da

“geografia etnográfica” foi possível construir vivências e envolvimento com o cotidiano

daquelas populações, vivenciando os fluxos que aqueles indivíduos realizam na cidade.

Com o “método da cartografia” (PASSOS e BARROS, 2009) nos possibilitou a

entender que as pessoas não são somente o hoje, o que somos é um intenso processo

constituído por inúmeras relações que nos trouxeram até aqui. Percorrer com eles e elas, nas

trilhas da caça, da roça e acompanhar as saídas e chegadas dos rios, parece ter sido o caminho

mais próximo que escolhemos para a compreensão do histórico processo de

produção/reprodução das rurbanidades melgacenses e marajoaras.

Sob este propósito metodológico construiu-se as tessituras das entrevistas, das

conversas informais e das observações do cotidiano melgacense, dando maior ênfase no ouvir

as histórias, as opiniões e os pontos de vistas dos participantes, para assim, abrirmos

caminhos de interpretações, identificando os “pontos” que articulam as relações

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cidade/rios/florestas, catalogando o que Abreu (2012) o denomina de “A memória das

cidades”.

Por outro lado, o pesquisador social e a geografia não deve se fundamentar apenas

no espaço, este por si só, reflete o processo de produção/reprodução de maneira fragmentada e

desarticulada, como o mesmo ocorre com a memória das pessoas. Contudo, são as pessoas

que do seu “lugar cultural” narram a “memória da cidade” daí a importância que elas

assumiram e assumem nesta pesquisa. Apesar das variações que a memória apresenta, ela não

é apenas um estoque de lembranças que estão eternizadas na paisagem ou nos registros de um

determinado lugar, elas são agora, objeto de apropriação por parte da sociedade. Elas podem

ser de tempos anteriores distantes, mas, ao serem recordadas ancoram no espaço do presente,

por isso, não podemos tratá-las como algo estático, elas são moventes e dinâmicas.

Fundamentados por essa base teórica e metodológica discute-se o espaço da

cidade de Melgaço a partir das memórias da cidade, narradas por homens e mulheres que por

décadas vem desenvolvendo atividades agrícolas, práticas de mariscos e extração de palmito,

madeira, açaí em áreas rurais e urbanas do município.

Esses recursos da memória e da oralidade estão “materializados na paisagem (...)

ou ainda vivo na cultura e no cotidiano dos lugares (...)” (ABREU, 2012). Daí a importância

em dialogar com os “trabalhadores e trabalhadoras rurbanos” daquela cidade que realizam nos

seus cotidianos constante interligação entre cidade/rios/florestas. Essas memórias apresentam

elementos por onde dialogamos com a cidade e os modos de vidas daqueles habitantes que há

décadas vem sendo praticadas, e que subsidiaram a confirmação da hipótese em que a cidade

de Melgaço costura seu espaço numa estreita relação com as ruralidades de seus moradores,

que por razões históricas de afetividade com a floresta e os rios, não as deixam de praticá-las.

Assim, como no alcance dos objetivos propostos desta pesquisa.

A partir desse levantamento de informações, se discutiu o passado, não apenas

como algo ultrapassado, mas as razões que o trazem até o presente e suas estratégias de

resistências e negociações entre os diferentes sujeitos que dinamizam o tempo e o espaço

contemporâneo. Assim, o lugar, conforme compreende Santos (1994), “é a extensão do

acontecer solidário” e do conflito de maneira simultânea, refletida no espaço físico e no

espaço das relações entre os sujeitos da/na cidade.

Outra parte da pesquisa empírica constituiu na observação participante e registro

desses cotidianos da cidade, através de fotografias e anotações no diário de campo. Nessa

etapa foram realizadas conversas informais com funcionários públicos, comerciantes,

camelôs, feirantes, compradores de açaí, moradores ribeirinhos que comercializam na cidade,

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pescadores, caçadores, carreteiros, moto taxista e outros sujeitos que tiram o tempo de todas

as manhãs para comentar a vida da cidade sentados no ferro do cais, são conhecidos pelos

demais moradores como os “fuxiqueiros da cidade”. Cada um desses indivíduos contribuiu

significativamente para as diversidades sobre os cotidianos melgacense, procurando entender

de maneira ampla quem são esses moradores que transitam os espaços da cidade e qual os

seus pontos de vistas, sobre o lugar em que vivem, seus sonhos, suas perspectivas e suas

desavenças, conflitos que podem não ter sido revelado durante as entrevistas com os outros

moradores.

Esta construção empírica compõe a base cartográfica desta viagem, a bússola que

norteia nosso trajeto e os portos que iremos ancorar. Contudo, essas rotas foram

constantemente refeitas e alteradas, a pesquisa social não pode correr o risco de definir seu

percurso de maneira rígida, assim como navegar pelos rios e igarapés marajoaras requer

habilidades e saberes sobre os movimentos de marés e outras práticas que são patrimônio

cultural daquela população, adentrar em seus territórios deve-se necessariamente seguir suas

“cartografias” e foi essa atitude que tomamos nesta viagem, colocamos os sujeitos do lugar no

comando da embarcação, foram eles que conduziram esta navegação.

Além desses comandantes embarcaram na embarcação outros sujeitos,

pesquisadores que estão navegando nesta Amazônia, discutindo as cidades marajoaras, suas

histórias, culturas, sua gente e são eles que iremos apresentar neste tópico.

Como não somos os únicos a adentrarmos nesses rios amazônicos e ancorarmos

nos portos das cidades que formam a rede urbana regional, para nossa viagem se tornar mais

interessante foi necessário colocarmos abordo pesquisadores com seus instrumentos de

navegação utilizados nos percursos de outras viagens na “Amazônia Marajoara”.

As informações obtidas na “geoetnografia” foram discutidas com a categoria

geográfica “espaço”. Sob esta categoria tecemos a problemática da pesquisa, contudo, a

discussão está sendo feita por dentro do espaço das cidades do “Marajó das Florestas”

(PACHECO, 2006), a partir da cidade de Melgaço. As relações com as áreas rurais

identificadas na pesquisa empírica subsidiaram o campo teórico para uma discussão

fundamentada na geografia cultural, avançando na releitura das dicotomias campo-cidade,

rural-urbano, conduzindo para uma interpretação geográfica do espaço marajoara e

melgacenses pela categoria “rurbana” (FREYRE, 1982).

A preocupação com um dos principais objetos de estudo da geografia, vem

motivando muitos geógrafos como Santos (1994), há décadas se dedicar nos estudos sobre o

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“espaço” como uma das principais categorias por onde o geógrafo deve percorrer suas

investigações metodológicas sobre a cidade e o campo.

Uma das primeiras contribuições não apenas com a ciência geográfica, mas, aos

estudos do espaço urbano, foi sobre o processo de “heterogeneidade do espaço habitado”

(SANTOS, 1994). A partir da década de 1950 o cenário urbano em muitos lugares do mundo

foi alterado, principalmente, os modos de vidas e as funcionalidades desses conglomerados

espaciais. Contudo, essas realidades econômicas além de não chegarem ao mesmo tempo em

todos os lugares, principalmente na América Latina, não desarticularam os antigos e

tradicionais modos de vidas das populações. Daí a afirmativa do pesquisador que a principal

característica do espaço é a “heterogeneidade do espaço habitado”.

Sobre essa dinâmica espacial e a preocupação em discutir a cidade não apenas

pelo o aparente que ela apresenta, mas, constituir uma perspectiva sobre essa paisagem. Nos

fins do século XX, o pesquisador escreve sobre a “natureza do espaço” (SANTOS, 1996),

tendo como principal pano de fundo, o argumento que “o espaço é um conjunto indissociável

de sistemas de objetos e de sistemas de ações” (SANTOS, 1996).

Entre esses percursos sobre a natureza do espaço, Santos (1996), define o espaço

como “um híbrido”. Influenciado pelas teorias do antropólogo francês Bruno Latour,

argumenta que as formas espaciais constituídas de maneira heterógena contradizem a

modernidade científica, seus métodos e conceitos puros.

No mundo de hoje, é frequentemente impossível ao homem comum distinguir

claramente as obras da natureza e as obras dos homens e indicar onde termina o

puramente técnico e onde começa o puramente social. (SANTOS, 1996. p.101).

As influências de teóricos franceses como Latou (1991), Michel Serres (1991) e

pelo geógrafo sueco, Torsten Hägerstrand (1989-1991), torna Santos o primeiro propagador

dessas teorias no campo da interpretação geográfica sobre o espaço, partindo da concepção

que o espaço é dinamizado por múltiplas realidades que coexistem num intenso processo de

colaboração, conflito e contradição.

Carlos (2003) pluraliza esse debate ao discutir o processo de “produção” e

“reprodução” analisa o espaço como condição essencial à “existência constitutiva da

sociedade” fundamentando a importância do conhecimento geográfico em romper as

fronteiras disciplinares o que, segundo a pesquisadora, não faz avançar o entendimento do

espaço numa dimensão histórica e contraditória da vida, através do cotidiano dos lugares.

Neste sentido, a autora define o espaço, como materialidade do processo produtivo em que

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cada sociedade se insere em determinado período histórico e social, definindo-os como

condição indispensável à “compreensão do mundo contemporâneo”.

A partir desta discussão sobre o espaço, a escrita e as interpretações do tema, as

“rurbanidades” (FREYRE, 1982) nas “Amazônias Marajoaras” (PACHECO, 2010) ganha

terreno e amplia o debate para os modos de vida rurais coexistindo com as urbanidades. O

“rurbano” na perspectiva dos estudos culturais de Bhabha (2003) é o “entre-lugar”, ou seja,

não é urbano, nem rural, são dinâmicas espaciais vivenciadas por modos de vidas e práticas de

trabalho que entrelaça o rural e o urbano numa perspectiva tempo e espaço.

2.1 O RURAL E O URBANO: Uma releitura das fronteiras

Historicamente esses dois conceitos socioespacias vêm fazendo parte da literatura

sociológica, histórica e geográfica. Por outro lado, essas ciências vieram se preocupando em

estabelecer, equivocadamente, interpretações dicotômica e singular, tendo como referência de

análise os aspectos econômicos. Essas formas metodológicas contribuíram muito pouco com a

interpretação das dinâmicas espaciais tanto do urbano quanto do rural. A clássica seletividade

espacial que atribuía ao rural às atividades primárias e ao urbano as secundárias e terciárias

além de não se fundamentarem por conta dos tecidos urbanos terem adentrado o espaço

produtivo rural, contribuíam para fortalecer as fronteiras geográficas entre eles.

Diante desse contexto metodológico e principalmente das problematizações que

vieram se afunilando e exigindo dos pesquisadores urbanos, outras explicações para as

relações socioculturais, socioeconômicas e socioespaciais, materializadas nos espaços tidos

como rurais e urbanos, a dicotomia conceitual e metodológica anteriormente aceita serão

duramente questionadas.

No entanto, antes de avançarmos ao debate teórico sobre a dicotomia rural x

urbano ou campo x cidade, há que considerar outro ponto, assim como os geógrafos, os

sociólogos impõem entre si divergências conceituais entre o que seria o urbano e a cidade.

Mesmo não pretendendo me alongar nesta discussão, procuramos seguir o urbano e a cidade

não pelas dimensões econômicas como define Milton Santos, mas, pelas dinâmicas das

“formas” e “conteúdo” (SANTOS, 2004) estabelecidas nas múltiplas relações vivenciadas nos

cotidianos, tanto da cidade quanto das metrópoles ou do urbano.

Tomando o ponto de partida, o espaço urbano, como uma construção coletiva do

cotidiano de vários sujeitos, chegaremos à interpretação de Castells (1983) que chama atenção

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para o quanto os pesquisadores de maneira geral perderiam tempo em se prenderem na

tentativa de classificar o espaço. Pois, segundo o pesquisador, teríamos umas centenas de

formas e maneiras em confrontar o espaço, seja urbano, rural, cidade, metropolitano, etc. Para

o autor “a dicotomia rural/urbana perde toda a significação” quando os pesquisadores sociais

passarem a enfrentar o problema conceitual a partir das múltiplas relações que o espaço

apresenta, seja ele urbano rural ou cidades chegaremos ao rompimento dessas fronteiras

superficiais de classificação do espaço.

Destas constatações resulta que não é procurando definições de escola ou critérios

da prática administrativa que chegaremos a uma delimitação válida de nossos

conceitos; ao contrário, é a análise rápida de algumas relações estabelecidas

historicamente entre o espaço e a sociedade que nos permitirá fundamentar

objetivamente nosso estudo. (CASTELLS, 1983. p.41).

O contexto histórico de produção e consumo do espaço das primeiras

aglomerações humanas não foi homogêneo, assim como as aldeias, as cidades medievais,

caracterizadas como “cidades fortalezas”, não foram espaços de relações de uma classe social.

Com o advento da urbanização a pluralidade espacial das cidades tornou-se ainda mais forte e

passou a desafiar os pesquisadores diante dos conceitos anteriormente firmados. Ou seja, a

separação geográfica nunca existiu entre o urbano e o rural, como o próprio Castells (1998),

afirma, não há uma cultura urbana, para o pesquisador, a cultura urbana é uma invenção.

O espaço urbano é uma contigüidade social, política, cultural, histórica e

geográfica que interage através de múltiplas formas de relações e diferentes sujeitos

imprimindo no território formas e conteúdo que externam através da paisagem. Neste

contexto é que o urbano aparece como uma dicotomia ideológica fundamentada pelo

tradicional e o moderno, levando em consideração a distinção física das aparentes paisagens

do urbano e rural.

A questão urbana de Castells (1998) tramita, a partir de quatro pontos

fundamentais: 1) São as condições e formas do espaço urbano que se difere das demais

produções espaciais; 2) A noção de urbano/rural é uma dicotomia ideológica entre as

sociedades tradicionais e modernas; 3) Trata de uma discussão mais teórica da questão,

associando a urbanização como um processo de formas espaciais e; 4) Interpreta a

urbanização a partir da problemática do desenvolvimento.

Esses pilares metodológicos de interpretação do espaço, no final da década de

1990 passaram a fazer parte de outras indagações espaciais sobre a discussão do urbano e

rural. Uma das maiores contribuições para o problema, no nosso ponto de vista, foi o avanço

nas categorias de análise que essas franjas espaciais vieram sendo pesquisadas. Desde a

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década de 1990, alguns pesquisadores já adentravam em constantes interações dessas

dinâmicas espaciais, admitindo as especificidades que essas unidades espaciais possuem, mas,

ao mesmo tempo afirmando as relações estabelecidas entre elas, ou seja, “o modelo teórico de

‘sociedade urbana’ foi que elaborou as clássicas dicotomias por oposição à sociedade rural’”

(CASTELLS, 1998).

Embora os espaços urbanos queiram mencionar um processo de fragmentação,

eles são constantemente entrelaçados por modos de vidas e práticas cotidianas de trabalho que

materializam diferentes formas e conteúdo que ocupam e consomem tanto o urbano, quanto o

rural. Sob esta interpretação Castells, (1998), advoga a tese que a “cultura urbana” é um mito,

mesmo assistindo as grandes transformações espaciais dos últimos anos e admitindo que os

“gigantescos aglomerados” é fato que caracteriza os tempos da modernidade, mas, que não

homogeneíza nem as formas, nem os conteúdos das dimensões de uma cidade.

Em tempos que a comunicação, o transporte e as tecnologias não somente

ganharam proporcionalidades globais como se popularizaram e se difundiram em todas as

classes sociais e em todos os lugares do planeta, torna-se muito complexo, continuarmos

afirmando as dicotomias, rural-urbano e associando-as como tradicional e moderno. Assim,

como as pessoas, as culturas, as práticas de consumo, saberes, etc., também se integram e

interagem simultaneamente.

Nessa discussão conceitual Lefebvre (2001), aproxima-se de Castells (1998),

problematizando o conceito de urbano e cidade, sistematizando a teoria do “modelo de

sequência dialética”. Esta tese contextualiza a urbanização, como um processo produzido

historicamente pelo desdobramento de contínuas fases de investimentos socioespacias, que

levam o espaço da cidade a se urbanizar através da industrialização.

Contudo, Castells (1998) insiste em defender a tese que não há como identificar

uma sociedade, puramente urbana, considerando que este contexto permite concluir a

existência de um espaço homogêneo, tanto nas formas de pensar dos seus sujeitos, quanto nos

investimentos produtivos da cidade. No entanto, na maior proporcionalidade de concentração

humana, identifica-se uma diversidade de formas espaciais e de modos de vidas que tornam o

espaço urbano, com múltiplas funcionalidades e significados.

A pluralidade do urbano é uma das maiores concretudes que caracteriza a

urbanização. Castells (1998) considera que a segunda fase crítica da história do pensamento

do urbanismo depende do habitar, ou seja, da vida cotidiana. Nesta perspectiva, compreende-

se que o espaço urbano e/ou a cidade é o cotidiano externado ao lugar do indivíduo e da

sociedade, daí sua natureza, plural e contraditória que vem historicamente negociando e

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resistindo com as políticas de produção espacial da cidade conduzida pelo Estado e pela

indústria como frutos do capital especulativo da modernidade.

2.1.1 A urbanização brasileira

Há consenso na literatura que os anos de 1950 marcaram o processo de

urbanização do território brasileiro. Contudo, em escala planetária, os pesquisadores se

divergem, para uns desde a Idade Média já havia em algumas cidades medievais, indicadores

urbanos. Santos (2012) considera a urbanização como um fenômeno que se apresenta na

história humana do Planeta a partir do século XVIII. No entanto, a discussão não se conduz a

esse respeito, mas, entender como o mundo foi vivenciando essas transformações espaciais.

A Europa foi o continente que vivenciou de maneira muito rápida esse fenômeno,

a partir da Revolução Industrial. Contudo, esse contexto passa a ser alvo de algumas

indagações. Santos (2012) afirma que é necessário considerar duas questões fundamentais

desse processo, que é “entender as causas do fenômeno e verificar se elas são as mesmas nos

diferentes pontos do globo” (SANTOS 2012).

Tanto a Europa, quanto, os demais continentes, não vivenciaram este fenômeno de

maneira totalitária no território. A América Latina, assim como nas demais regiões

consideradas periféricas (África) em relação aos grandes centros do poder econômico e

político, vivencia, atualmente, uma das maiores taxas de crescimento da população urbana do

mundo. O Brasil, segundo as projeções da ONU (Organização das Nações Unidas), a

população urbana crescerá até os anos de 2050 taxa superior aos 200 por cento enquanto a

rural crescerá 6,3 por cento.

Maricato (2000), no entanto, ressalta em seus estudos sobre a urbanização

brasileira que além de ser um fenômeno do século XX, enfatiza que este processo se

“caracteriza como ‘defasagem e continuidade’.” Os indicadores que o país apresenta como

qualidade de vida, emprego e renda, saneamento básico, escolaridade, confirmam a

conceituação da pesquisadora. Na “Amazônia Marajoara” este conceito está muito mais

visível, ao mesmo tempo em que as pequenas e médias cidades vêm aumentando seus

indicadores demográficos, e poucos municípios chegaram ao século XXI com políticas de

infraestrutura urbana e saneamento que garanta a qualidade de vida e a autoestima dos seus

moradores. Além disso, mantiveram percentuais de populações rurais superiores que os

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urbanos, garantindo a continuidade dos “tecidos rurais” sobrevivendo em meio aos “tecidos

urbanos”.

Diante desse contexto, é necessário pontuar que a urbanização brasileira,

constituída a partir das funcionalidades políticas e econômicas, classifica as cidades em

grandes, médias e pequenas quantificando o espaço pelos indicadores demográficos, através

dos números absolutos de pessoas residindo nas capitais das Unidades da Federação e nas

sedes municipais e as influências econômicas, políticas e culturais que cada centro urbano

realiza em escala nacional, regional e local.

Esta hierarquia constitui uma rede urbana “desigual e articulada” (CORRÊA,

2005) no território nacional, concentrando em poucas áreas população e riqueza,

cartografando nos espaços regionais centralidades que convivem com grandes desafios de

mobilidade urbana, saneamento básico, periferização e violência urbana que afetam a

qualidade de vida de todos os habitantes das metrópoles regionais e das sedes municipais.

Esta configuração trabalha com uma rede espacial urbana hierarquizada, pautada

no ponto de vista econômico que cada centro de decisão realiza no espaço intra e interurbano,

suprimindo dessa malha espacial cidades que não apresentam o perfil produtivo ou

demográfico da escala oficial, conforme retrata o mapa 1 sobre a rede urbana brasileira e as

regiões de influências das capitais.

Mapa 1- Rede Urbana do Brasil - 2007

Fonte: Instituto Geográfico e Cartográfico – IGC, 2003.

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Outro ponto que requer atenção nesse processo de hierarquização entre as cidades

brasileiras são as especificidades que cada região impõe a essas redes. A Amazônia, não

imprime a mesma dinâmica espacial que outras regiões brasileiras que merecem ainda ser

pesquisada com maior profundidade, embora, apresente características urbanas próximas às

demais regiões do Brasil possuem dinâmicas socioeconômicas, demográficas e espaciais

distintas entre si, retratadas no cenário nacional, confundindo as fronteiras desta cartografia

oficial estabelecidas pelas políticas territoriais de fragmentação do território do país.

2.1.2 O rural e o urbano no cenário brasileiro

Alguns estudos mais recentes estão discutindo o processo de produção

socioespaciais da urbanização extensiva na América do Sul, a partir do Estado de São Paulo.

Neste contexto, Caiado e Santos (2003) apresentam significativa contribuição na discussão

das definições de rural e urbano, a partir da expansão metropolitana de São Paulo e a

consequente ocupação de áreas definidas pelo IBGE como rurais. Com esta pesquisa, os

estudiosos problematizam a clássica dicotomia urbano-rural, assim como, a oficialização das

especificidades do espaço.

A malha espacial paulista, representa no espaço latino americano a articulação

econômica da metrópole no centro da dinâmica capitalista, interiorizando o espaço da

produção e consequentemente o padrão de modernização urbano aos espaços oficializados

como rurais, constituindo uma dinâmica socioespacial híbrida, vivenciada pelo intenso

processo de conturbação, produzindo a extensão da mancha urbana paulistana.

Uma das maiores contribuições dessa discussão, no nosso ponto de vista, é a

complexidade das funcionalidades espaciais brasileiras a partir de determinados pontos do

território, para assim compararmos com as dinâmicas espaciais urbanas de outras regiões. As

pesquisas identificam forte influência nas sedes dos municípios (cidades) na RMSP (Região

Metropolitana de São Paulo) de práticas produtivas tradicional/rural, mesmo diante do modelo

de produção tecnológica que a região vivencia.

Essas “formas” e “conteúdos” espaciais paulistanas não mais se caracterizam

como rurais e agrários. Os modos de vida e as práticas de trabalhos estão contaminados pelo

intenso processo da técnica e da produção de excedentes que germinam através dos “tecidos

urbanos” presentes no campo. Por outro lado, há nos espaços urbanos metropolitanos modos

de vidas e práticas espaciais que migraram, com o camponês, para os bairros das camadas

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populares e dinamizam o espaço urbano metropolitano, a partir dos modos de produção e

consumo rural. Na “Amazônia Marajoara”, no espaço da cidade de Melgaço, esta relação está

muito mais explicita e latente, por conta de uma urbanização mais tímida no espaço da cidade.

Diante desses dois pontos espaciais (RMSP e Melgaço) temos a dimensão da

complexidade, que o processo de urbanização do território brasileiro nos coloca. Pois, a

própria oficialização quantitativa e demográfica adotada pelos países para caracterizar as

áreas urbanas e rurais do território, não há uma definição que possa ser utilizada a todos.

Normalmente, os critérios estão fundamentados pela escala geográfica das localidades.

Caiado e Santos (2003), consideram que a oficialização da população rural na América Latina

“está sendo definida por exclusão: aquela que não habita as áreas urbanas (UNITED

NATIONS STATISTICS DIVISION, 2002)”.

Nos países latinos americanos, 35%, entre eles o Brasil, utiliza o tamanho da

localidade como critério de definição da área urbana e rural, variando entre 1.500 a 2.500

habitantes. Cerca de 30% definem sua área urbana como o território das sedes municipais e

dos distritos e outros utilizam leis com critérios diferenciados da maioria, mencionado neste

parágrafo. O Brasil, contudo, dá autonomia aos próprios municípios para definirem os limites

entre área rural e urbana, através da Lei do Perímetro Urbano (Lei 10.257/2001).

A referida legislação regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal do

Brasil e estabelece diretrizes gerais da política urbana, garantindo a obrigatoriedade de todos

os municípios da Federação, possuir sua própria lei do perímetro urbano que além de

estabelecer a divisão municipal em zonas rurais e urbana, estabelece as seguintes

contribuições:

Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da

política de desenvolvimento e expansão urbana.

$ 1º O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal,

devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual

incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.

A legislação em vigor no território brasileiro, sobre o que é urbano e rural, deixa

em aberto atribuindo aos municípios constituírem essas fronteiras espaciais que

constantemente estão sendo alteradas em razão do espraiamento da malha espacial municipal,

no entanto, vale ressaltar que as próprias prefeituras não tem o controle do crescimento

espacial da cidade. O espaço urbano é produzido por outros sujeitos que burlam as leis e

códigos de regulamentação do Estado. Caiado e Santos (2003) confirmam que no Estado de

São Paulo, a ocupação urbana em área rural acontece sem a aprovação da prefeitura. Esta

realidade não é uma especificidade paulista, nas pequenas cidades marajoaras, a expansão da

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malha espacial urbana, independe da autorização e do controle do poder público local, fatos

que levam a necessidade de discutir as fronteiras espaciais oficiais.

O atual contexto socioeconômico impacta significativamente as dinâmicas

políticas, econômicas e culturais do espaço das cidades latino americanas. No território

brasileiro, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, a expansão urbana vem acontecendo a

partir de um “duplo processo: a implosão das centralidades e a explosão da periferia”

(MONTE-MÓR, 2006), constituindo uma dinâmica urbano-industrial como um dos principais

fatores que virtualizam o espaço e espraiam as malhas espaciais urbanas do país,

caracterizando-as como um processo de “urbanização extensiva”.

Nesse contexto, Monte-Mór (2006), aprofunda a discussão entre a relação cidade

e campo, fazendo a seguinte indagação: “Onde começam e onde terminam?”. A

fundamentação do pesquisador está amparada no atual fenômeno da expansão urbana.

Segundo ele, definir os limites e as fronteiras entre essas unidades espaciais está sendo cada

vez mais difícil e complexo.

(...) cada vez mais as fronteiras entre o espaço urbano e o rural são difusas e de

difícil identificação. Pode-se supor que isso acontece porque hoje esses adjetivos

carecem da sua referência substantiva original, na medida em que tanto a cidade

como o campo não são mais conceitos puros, de fácil identificação ou delimitação.

(MONTE-MÓR, 2006, p.10).

A partir da metade do século XX, o processo de industrialização implantado nas

cidades brasileiras iniciou os primeiros passos que Monte-Mór (2006) define como “inflexão

do campo sobre a cidade”, a partir deste período, as cidades multiplicaram suas

funcionalidades espaciais, além de unidade política, ampliaram as dimensões espaciais para a

cidade que Lefebvre, no início do século passado, intitulou de “cidade mercantil”.12

Os estudos estão sinalizando que o “tecido urbano” no Brasil é um processo que

emerge a partir do início da segunda metade do século XX, com os projetos de interiorização

dos governos militares, iniciado a partir da década de 1960, onde a virtualização do território

nacional saiu das condições espaciais que Santos (1994) intitulou de “arquipélago urbano”,

12

A escola política de Lefebvre chega ao século XXI influenciando pesquisadores das ciências sociais que

passam a pensar a cidade, como um espaço plural, conflituoso, articulado e fragmentado que através das

dinâmicas de produção capitalista submete o rural à lógica de produção urbana, através do que Lefébvre

(1999) intitula como “tecido urbano”, formando a complexidade da urbanização contemporânea de caráter

extensivo.

A problematização do conceito da urbanização contemporânea e do seu caráter extensivo constitui uma das

maiores contribuições das teorias de Henri Lefebvre nos últimos anos do século XX, onde aparece a teoria do

“tecido urbano”.

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passando à integração dos diversos espaços regionais, tendo como principal centro industrial e

tecnológico do país a cidade de São Paulo.

O pesquisador Monte-Mór (2006) analisa os efeitos desse espraiamento da malha

urbana, a partir do Estado de São Paulo, e atribui como um dos efeitos desse fenômeno no

espaço o estrangulamento físico territorial das cidades, em direção ao campo que em menos

de quatro décadas atingirá todo o território nacional, carregando consigo, as formas e

condições da “práxis urbana” (LEFEBVRE, 1999).

Alguns pesquisadores, contudo, vem chamando atenção para o cuidado que

devemos ter ao lidar com essas condições espaciais homogêneas que impõe o processo da

urbanização brasileira. O território brasileiro vivencia um processo de desterritorialização de

populações rurais muito fortes, mas, nos espaços amazônicos constata-se ainda uma forte

presença numérica de populações declarando não gostarem de habitar e viver nas cidades,

mesmo tendo que realizarem atividades comerciais nas áreas urbanas, preferem habitar os

espaços rurais. Um dos pesquisadores que vem trazendo grandes contribuições nessas

discussões é Guerra (2006), para ele esta é a forma mais excludente que temos de tratar a

relação sociedade/natureza.

Simbolicamente, as portas podem ser entendidas como limites do espaço de quem

está dentro e de quem está fora, de quem tem acesso e de quem não tem, de quem é

da cidade e de quem não é, de quem lhe pertence e de quem não lhe pertence. É o

princípio da dualidade centro-periferia que se afirma nesta lógica. (GUERRA, 2006.

p.99-100).

O pesquisador constitui uma problematização das fronteiras espaciais urbanas-

rurais, centro-periferia, representada pela simbologia da porta como expressão do sentido

excludente que estas fronteiras impõem no espaço, atribuindo o critério de seleção. Contudo,

esta análise difere do campo de interpretação que estamos empreitando nesta pesquisa, as

rurbanidades de Freyre (1982) que dialoga com o espaço das pluralidades de relações que ele

absorve a partir das ações de diferentes sujeitos. Neste sentido a simbologia da porta não

deixa de manter no debate as funcionalidades dos limites.

Os limites entre urbano e rural nesses autores, assim como em Guerra (2006),

podem ser identificados de muitas maneiras nas paisagens, quando visualizadas pela sua

forma física externam a dicotomia entre a cidade e o campo, no entanto, esses espaços são

dinâmicos e moventes. Há consenso nesses teóricos que existem espaços tanto nas metrópoles

quanto nas pequenas cidades que são “pontos de encontro” entre os modos de vidas urbanos e

rurais. Guerra (2006) discute as feiras como um dos principais pontos de encontro entre o

rural e o urbano. Esses espaços não apenas são os territórios, o lugar dos conflitos entre esses

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modos de vidas, como é por onde as urbanidades e as ruralidades se diluem, constituindo

outros espaços que não são, nem rural, nem urbano, são os dois, tornam-se espaços

“rurbanos”.

2.2 O RURBANO: Primeiras impressões

Neste tópico apresenta-se a importância desta categoria de análise no campo

espacial da pesquisa e sua contribuição no debate frente ao processo da relação campo-cidade,

num contexto sociológico e geográfico. Além disso, menciona alguns significados dentro da

classificação gramatical, segundo os conceitos de três dicionários da língua portuguesa e, por

fim, discorre um diálogo com os principais teóricos levantados nesta bibliografia que

possivelmente deram início nesta discussão nas primeiras décadas do século XX.

Alguns dicionários da língua portuguesa que se levantou sobre o significado do

“rurbano” obteu-se os seguintes resultados, o dicionário Michaelis, define o termo como, adj

(rur(al)+urbano) neol “Diz-se da área de transição entre a cidade e o campo; suburbano. sm O

habitante dessa área”. O dicionário Priberam, define o termo como um adjetivo geográfico

“Zona Urbana, espaço em que se interpenetram habitat e atividades rurais e urbanas”. O

dicionário Bem Falar.com, reconhece-o na categoria dos adjetivos na classe gramatical e o

conceitua, como, “relativo a, pertencente a ou relacionado como o espaço resultante do

encontro entre a área rural e a área urbana.13

No campo da geografia, o rural-urbano é discutido como formas concretas que

compõem o espaço geográfico de uma determinada franja espacial, contida e interpretadas a

partir de alguns aspectos visuais, assumindo destaque nessa análise o conceito de paisagem.

No entanto, desde as primeiras décadas do século XX pesquisadores de várias áreas do

conhecimento veem se debruçando na discussão desses conceitos, como Sorokin, Zimmerman

e Galpin (1930), Redfield (1956), Mendras (1969), Lefèbvre (1970), Sarraceno (1994),

Kayser (1996) e no Brasil emerge as pesquisas de Gilberto Freyre (1982), Graziano da Silva

(2001) e Veiga (2002).

A contribuição desses pesquisadores e outros, que não teríamos como mencionar

todos, foram e continuam tendo importância incondicional para as discussões das categorias

13

Os três dicionários foram consultados on-line. O dicionário Michaelis, está disponível no site:

http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=rurbano.

Acessado no dia 07 de abril de 2014. O dicionário Priberam, está disponível no site:

http://www.priberam.pt/dlpo/rurbano. Acessado no dia 07 de abril de 2014. O Bem Falar.com, está

disponível no site: http://bemfalar.com/significado/rurbano.html. Acessado em 07 de abril de 2014.

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espaciais aqui propostas, contudo, não vamos nos deter em discutir esse campo teórico com

todos eles, focaremos como eixo teórico Gilberto Freyre, Henri Lefebvre, Graziano da Silva e

Veiga.

As teorias marxistas seguem alguns pressupostos sobre o surgimento das cidades

e da separação campo-cidade. Henri Lefebvre analisa esse processo através dos avanços das

forças produtivas e do aprofundamento da divisão social e técnica do trabalho. O campo era o

espaço da agricultura e a cidade a mão de obra especializada, acompanhando o processo da

divisão social do trabalho.

Outra preocupação conceitual do pesquisador foi em estabelecer diferenças, entre

os conceitos de cidade e urbano. O primeiro emerge com as classificações entre campo e

cidade, definida pela base arquitetônica, as formas concretas que retrata a história do espaço, é

a “morfologia material”. Quanto ao segundo, estão configuradas no espaço da cidade através

das centralidades, as relações, as dinâmicas que entrelaça o “tecido social” nas atividades de

caráter exógeno instituída no espaço, caracterizando-se como “morfologia social”.

As fundamentações teóricas de Lefebvre, ao conceituarem o campo como a

morfologia material e o urbano como morfologia social tratam esses espaços com

especificidades distintas e antagônicas, mas, além disso, o pesquisador menciona que essas

distinções tenderão deixar de existir, pois a urbanização irá correr a vida agrária, tornando um

espaço totalizante, ou seja, “a urbanização completa da sociedade” (LEFEBVRE, 1999).

Nesse ponto de vista, as distinções entre campo e cidade serão somente nos arranjos espaciais

da paisagem física, mas, (SANTOS, 1994) considera que as dinâmicas dos “fixos” e “fluxos”

espaciais superam a interpretação paisagística do pesquisador francês e se constituem em

“tecidos espaciais”.

As teorias de Henri Lefebvre apresentam indícios homogeneizadores na

caracterização do espaço. O autor, parte das concepções marxistas fundamentadas na divisão

social e espacial do trabalho e na segregação de classes sociais para distinguir o campo da

cidade e vice-versa. Esta conceituação é estruturante e homogênea. Primeiro, conceitua a

cidade como espaço ocioso e das elites políticas, econômicas e intelectuais. Segundo, defende

a superação da dicotomia campo-cidade pela plenitude da urbanização.

Temos aí dois momentos históricos construídos simultaneamente. A conceituação

marxista refere-se a dois espaços distintos com dinâmicas próprias totalmente independentes,

onde as elites estavam na cidade e as classes subalternas no campo. Contudo, os camponeses

não foram “empurrados” para o campo como modos de passividade, mas, encontraram nas

“formas” e “conteúdos” do espaço condições de manterem suas resistências aos modos de

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vidas violentos, estruturantes da cidade e essas populações não estavam isoladas, havia

inúmeros “pontos de encontro” na cidade que interagia, social, política, econômica e

culturalmente com o campo.

A teoria do “tecido urbano” é uma realidade espacial global, os avanços

tecnológicos das comunicações e transportes estrangularam as fronteiras nacionais e

regionais, conectando por meio das redes tecnológicas, diferentes lugares da superfície

terrestre. A partir do momento que essas técnicas da vida urbana passam a fazer parte do

cotidiano dos espaços rurais, em tese, tende a desarticular os modos de vida e tradição dos

lugares. Contudo, o que presenciamos em regiões, como o Marajó, é uma forte presença de

práticas rurais convivendo simultaneamente com os “tecido urbano”.

Diante dessas aparentes resistências dos lugares, alguns pesquisadores iniciaram a

problematização sobre a dualidade e o antagonismo entre esses lugares. Com isso, a partir da

década de 1930 emergem as pesquisas dos Norte-Americanos Sorokin, Zimmerman e Galpin,

rompendo com a polarização instituída e propondo um “continuum rural-urbano” (BIAZZO,

2008). Esta perspectiva ganha campo em várias áreas do conhecimento, entre elas, a filosofia

e a sociologia. Os anos 30 do século XX marca o começo das primeiras discussões

interdisciplinares sobre o antagonismo rural-urbano, tornando-se um referencial para as

posteriores interpretações.

Por outro lado, as pesquisas espaciais que procuram interpretar criticamente a

conceituação dual entre o urbano e rural, enfrentam resistências instituídas pela cultura

ocidental, que historicamente vem doutrinando nossa forma de pensar e entender o mundo. A

modernidade institui formas e critérios de pensar o rural como atrasado, espaço da produção

primária, quer dizer, tradicional, não moderno. Raymond Williams (1989), afirma que a

superação dessas dicotomias ainda é um dos desafios que precisam ser vencidos, tanto na vida

cotidiana empírica, quanto nos espaços acadêmicos.

Partilhando desta concepção, Biazzo (2008), reflete sobre as formas da

modernidade no doutrinamento do pensamento científico, a partir da problemática

epistemológica do “rural”, no prisma do pensamento geográfico, sociológico e econômico. A

geografia clássica analisa o espaço rural como um tipo de paisagem física e cultural; na

sociologia, o rural se manifesta como modos de vidas e; na economia, é o lugar da produção

agrícola e outras atividades que estejam ligadas diretamente à terra. O que torna significativo

pensar nesta discussão é o comprometimento que essas teorias tinham com os objetivos da

época.

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A partir da década de 1980, no nosso ponto de vista, foram apresentadas as

maiores contribuições para o rompimento dessas dualidades, principalmente pelos franceses,

alemães e brasileiros que passaram a enfatizar veementemente, questionamentos, a respeito

das funcionalidades e usos do espaço rural. A partir deste período, firma-se a categoria de

análise “ruralidades” que expressa às ações dos sujeitos sociais de maneira movente,

contraditória e antagônica, rompendo com a visão homogênea e romântica que o pensamento

ocidental muitas vezes menciona sobre o rural. Além do mais, rompe-se com a teoria do

“continuum” (REDIFIELD, 1956) que visualiza o rural e o urbano na concepção da inflexão

do rural diante do “tecido urbano”.

As ruralidades espaciais estimularam os geógrafos e sociólogos a utilizarem como

contraposição a expressão “urbanidades”. Destaca-se nesse debate, o geógrafo RUA (2000;

2002). Por outro lado, tanto as ruralidades quanto as urbanidades passaram por vários

questionamentos, levando-se em consideração o significado que cada uma delas teria dentro

da análise das ciências humanas. Corrêa (2002) menciona que as pesquisas espaciais das

ciências humanas são caracterizadas pelas suas “pluralidades conceituais”, defendendo a tese

que tanto o rural e as ruralidades, quanto o urbano e as urbanidades, devem ser enfrentadas

como categorias que expressam com maior proximidade a relação que esses espaços

constituem entre si e o desdobramento metodológico que essas expressões trazem para as

ciências humanas.

Nessas curvas e frendas deixadas pelas ruralidades e urbanidades estão as

fronteiras mensuradas pelos “espaços vividos” (SANTOS, 1994) dos sujeitos sociais que

percorrem no anonimato de ambas as categorias denominados por Bhabha (2003) como o

“entre-lugar” que emergem das entranhas espaciais sem identidade própria, desterritorializado

de classificação teórica, firmando suas existências no campo das oralidades e do “saber-

fazer”.

Em meio a esta crise conceitual apropriou-se de Gilberto Freyre que em uma de

suas últimas obras, publica no Brasil, em 1982 um livro intitulado “Rurbanidades: Que é?”. O

sociólogo brasileiro inspirou-se nos estudos originados nos Estados Unidos da América com o

sociólogo estadunidense Galpin, e, por outro, com o sociólogo indiano Mukerjee, a

“rurbanidade”.

Antes da publicação do livro nos anos de 1956, o pesquisador brasileiro proferiu

pela primeira vez o termo “rurbano” numa comunicação às professoras primárias do Estado

de Pernambuco a convite da Secretaria de Educação e Cultura daquele Estado. Durante o

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encontro, o pesquisador, além de definir o campo metodológico de sua análise, exemplifica na

prática, o significado do “rurbano”.

Que dizer a Vocês, professoras rurais, sobre uma, no Brasil, pungentemente

necessária política de rurbanização, que atenda à solução de desajustamentos entre

valores urbanos e rurais (...): valores que devem ser considerados no seu conjunto e

não em oposição uns aos outros? Formando como formam um complexo, é preciso

que sejam tratados como um complexo. (FREYRE, 1982. p.81).

E continua.

(...) é uma política social que não se extreme nem na urbanização nem na ruralização

da comunidade pernambucana mas se esmere na sua rurbanização. (...) Pois rurbana

é palavra derivada de rural e de urbana como certo nomes modernos de meninos que

se chamam Jomar, pelo fato de o pai se chamar João e a mãe, Maria; ou Editônio, de

Edite, nome da mãe, e Antônio, nome do pai. (FREYRE, 1982. p. 82-3).

Entre as preocupações que mais hesitava o pesquisador eram os valores rurais e

urbanos que deveriam nortear as políticas públicas. Nesse contexto, emerge no Brasil uma

categoria de análise espacial que explica a confusão conceitual da relação campo/cidade,

centro/periferia, rural/urbano e outras dicotomias colocadas em práticas por muitos métodos e

conceitos das ciências humanas.

Nesta pesquisa, o tratamento metodológico do “rurbano”, está associado ao campo

de análise da geografia numa perspectiva interdisciplinar com a sociologia e a antropologia. O

contexto socioespacial das cidades marajoaras fundamentados por práticas rurais e urbanas

desenham “formas” e “conteúdos” (SANTOS, op. cit.) plurais. Ao mesmo tempo em que

essas dimensões espaciais assumem o papel e a importância política de sede administrativa de

uma sociedade se ver entrelaçada por práticas de vidas rurais.

Navegando por esses rios de complexidade das relações espaciais, culturais e

econômicas, o “rurbano” assume outras proporcionalidades naqueles “Marajós” (PACHECO,

2006). O conceito político da categoria espacial do início da segunda metade do século XX

limita-se diante das complexidades que o urbano marajoara impõe no espaço contemporâneo

da “Amazônia paraense”.

2.2.1 O Rurbano no cenário brasileiro

Além das discussões do rurbano de Freyre (1982) e Souza (2009), identificou-se

outros estudos como o de Pacheco (2006, 2010, 2012) e Costa, (2012) no Marajó que trazem

categorias como “cidade-floresta” e “urbanidades”, respectivamente. Assim como Hernández

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(2008); Candioto e Corrêa (2008); Lindner, Alves e Ferreira (2009); Aragão (2010); Souza, C.

(2010), entre outros, que debatem a relação campo-cidade no Brasil a partir da intercessão

desses espaços, fomentando a tese de muitos, inclusive a nossa, que esses espaços só podem

ser concebidos pelas relações que estabelecem entre si.

As ruralidades e as urbanidades aparecem em várias pesquisas nos Estados da

região Nordeste do país, justificando a preocupação de Freyre (1982) em pensar o rurbano

como política pública que tratasse os valores rurais e urbanos pela mesma complexidade que

cada um apresenta. Estas preocupações estão presentes nas pesquisas de Aragão (2010),

analisando o processo histórico da educação superior do Estado de Alagoas considera que a

formação da sociedade alagoense transita entre a tradição e a modernidade, responsáveis pela

forma espacial indefinida, “ilustrando as dificuldades” que as instituições de ensino superior

enfrentam para democratizar essa política no Estado. Neste debate de indefinição do espaço

alagoano, emerge o “rurbano” como categoria espacial possível de explicar o que as demais

categorias limitaram-se esclarecer.

O rurbano – um conceito que marca o encontro do mundo rural e urbano, sobre tudo

nos seus aspectos sociais, culturais e axiológicos (valores) – vem sendo discutido

devido à dificuldade de classificar, pelos critérios habituais, populações que se

situem, quer na zona rural com hábitos urbanos, quer na urbana com

comportamentos rurais. (ARAGÃO, 2010. p, 2).

A interpretação da pesquisadora de “rurbano” atribui como “conceito espacial”

marcado pelo “encontro de valores” e práticas que cotidianamente fortalecem as rurbanidades.

Esta definição “desterritorializa” (HAESBAERT, 2011) o conceito, pois, o rurbano pode estar

nos limites oficiais da cidade, nas áreas do entorno, fora dos limites urbanos e também nas

áreas consideradas como rurais pela fragmentação do território, segundo o IBGE.

No Sudeste brasileiro, as rurbanidades, são caracterizadas pela dinâmica de

trabalho dos ruralitas (FREYRE, 1982) que foram desterritorializados (HAESBAERT, 2011)

das áreas rurais, ocupando o entorno das cidades que compõem a região metropolitana de

Belo Horizonte. Esse processo de ocupação das áreas periféricas da RMBH (Região

Metropolitana de Belo Horizonte), Hernández (2008), define como “um espaço que sintetiza a

integração econômica e sociocultural” que cotidianamente recriam as identidades rurais em

áreas consideradas urbanas, tornando-as um lugar cada vez mais “indistinguível e diluído”,

denominando-o de “ocupações rurbanas”.

No Sul do Brasil, os pesquisadores Lindner, Alves e Ferreira (2009) veem

identificando municípios com baixo índice demográfico, localizados à margem dos principais

centros metropolitanos regional, objetivando pluralizar o debate da relação rural e urbano

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numa das regiões mais desenvolvidas do país, através de pesquisas socioespaciais que

apresentam a permanência “marcante de ruralidades” no Estado do Rio Grande do Sul, onde

os “tecidos urbanos” dinamizam muito pouco o cotidiano de moradores que ainda preservam

costumes e tradições dos seus antepassados.

Nesta mesma diversidade regional brasileira, no Estado do Paraná, Souza (2009),

apresenta o município de Ângulo, com menos de três mil habitantes, como foco de pesquisa

espacial geográfica, discutindo a partir da categoria paisagem as formas de vida rurbanas,

apresentando elementos socioespaciais e socioculturais que desvelem a presença de “modos

de vidas rurais e urbanas”, numa determinada porção espacial, tendo como principal centro de

interesse, tecer questionamentos à teoria de “metropolização dispersa”, considerando que

dinâmicas espaciais, como a cidade de Ângulo/PR, encontra-se “no extremo oposto deste

fenômeno”.

Nesse contexto metodológico, Souza (2010) discorre contestação à tese de

“completa urbanização do mundo atual”, fundamentando que a totalidade urbana é uma

divisão grosseira, pensada pelo IBGE, cabendo de maneira restrita nas “caixas” da política

administrativa do espaço brasileiro e disserta sobre a cidade de Tapauá/AM como cenário

dessa diversidade conceitual, analisando os modos de vidas dos moradores daquela franja

espacial e a relação de seus sujeitos com os espaços rurais, fundamentados pela categoria de

análise “ruralidades”.

As dimensões espaciais do “rurbano”, de Norte a Sul e Leste a Oeste do país, está

distante de uma homogeneidade nacional, nem é esta nossa pretensão. Contudo, reforçam o

debate a nível nacional, não somente na relação rural e urbano, mas, permite avançarmos no

debate das pluralidades do urbano brasileiro, a partir das escalas locais, vivenciadas no

cotidiano das pequenas cidades, nas periferias metropolitanas e nos espaços considerados

rurais que vivenciam modos urbanos ou vice-versa.

Por outro lado, nos “Marajós das Florestas”14

, Pacheco (2006) apresenta o

conceito de “Cidade-Floresta”, referindo-se aos modos de vidas, como, pajelanças,

encantarias, domesticação de animais silvestres, práticas de trabalhos, culinária e outras

manifestações socioculturais características dos espaços rurais, vivenciadas pelos moradores

da cidade de Melgaço.

14

A expressão foi cunhada pelo pesquisador Agenor Sarraf Pacheco (2006) que mesmo não concordando em

definir uma regionalização pelos aspectos naturais e admitindo que as paisagens de campos naturais e florestas

não é uma homogeneidade nas partes oriental e ocidental do arquipélago, respectivamente. Contudo, essas

paisagens estão mais expressivas nessas porções espaciais citadas.

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A “Cidade-Floresta” é uma das primeiras reflexões que discute as cidades da

“Amazônia Marajoara”, a partir das relações dos sujeitos da cidade com os espaços

ribeirinhos. Contudo, as “formas” e “conteúdos” daquelas “manchas espaciais” não estão

contemplados na discussão. Alguns indicadores contidos nos bancos de dados dos órgãos

oficiais do Estado e do país reforçam nossa tese que, embora o “rurbano” seja uma realidade

nacional, no Marajó, ele remonta o processo histórico das cidades ribeirinhas, ao contrário das

demais regiões brasileiras que o “rurbano” vem se firmando na malha espacial das cidades a

partir da expansão do “tecido urbano” sobre o campo.

Os indicadores demográficos marajoaras, segundo o IBGE, desde 1970 até o ano

de 2010 houve um crescimento da população urbana de 35,50% para 70%, embora a região

tenha uma taxa de urbanização inferior à média paraense e nacional, as cidades marajoaras

veem nas últimas décadas ampliando o quantitativo populacional. Contudo, a elevação

demográfica das sedes dos municípios marajoaras, não caracteriza a inflexão do rural diante

das cidades. Os fluxos migratórios da maioria dos municípios em direção às cidades

acontecem, internamente, pois são moradores ribeirinhos que buscam nas sedes municipais

acesso aos serviços básicos que inexistem nas comunidades rurais, ou chegam de maneira

incompleta e precária, como educação, saúde e segurança.

Esses migrantes desenham juntamente com os demais moradores pré-existentes

nas cidades, uma cartografia rurbana15

, na malha espacial marajoara. Essa cartografia supera

os indicadores populacionais, econômicos e educacionais, além de outros. Os moradores ao

mesmo tempo em que buscam e permanecem na cidade continuam homens e mulheres rurais

e simultaneamente vivem e realizam os dois mundos no seu dia a dia.

Esse viver simultâneo dos universos urbanos e rurais dinamiza as “formas” e

“conteúdos” das cidades marajoaras. No “Marajó das florestas” (PACHECO, 2006.) elas

estão presentes em todos os espaços das cidades, mas, muito mais expostas, nas áreas

portuárias, nos trapiches através das relações comerciais, nas relações familiares e outros

modos de vidas que transitam e dinamizam as manhãs daquelas cidades.

Intrigado com essas vivências buscou-se nesta pesquisa, encontrar uma categoria

espacial que nos ajudasse a explicar com maior profundidade e criticidade o que seria aqueles

espaços que se revelam de maneira muito confusa, sem uma distinção clara entre o urbano e o

rural em determinadas cidades da “Amazônia Marajoara”. Com base no cotidiano dos

15

O sentido de Cartografia utilizado nesta dissertação, também está fundamentado, no teórico Latino-Americano,

Martin-Barbero (2004) que interpreta a cartografia a partir de outros desenhos e outros conceitos espaciais,

contidos nos lugares em que a cartografia oficial dos limites não abarca e ignora, constituindo as “histórias e

geografias esquecidas” de Antonacci (2013).

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moradores da cidade de Melgaço, adjetivou-se que aqueles espaços confusos das cidades dos

“Marajós das Florestas”, são espaços “rurbanos”.

O “rurbano”, portanto, é a relação construída e negociada entre os “pontos de

encontros” da tradição e a modernidade, mencionada por Carneiro (2004), como um processo

que supera as relações de temporalidades que coexistem a partir de intensa negociação e

resistência que a tradição estabelece no espaço das cidades. Essas resistências estão muito

mais visíveis em cidades de médio e pequeno porte, contudo, elas preexistem com vigor nos

grandes centros metropolitanos da Amazônia brasileira.

Por outro lado, Souza (2009), advoga que são nas sedes municipais de pequeno

porte que as rurbanidades se encontram muito mais latente nos cotidianos espaciais, através

de práticas de trabalhos e outros modos de vidas que pluralizam e questionam a cartografia

oficial da rede urbana brasileira.

Nesta pesquisa sobre o rurbano no espaço da cidade de Melgaço (PA), se apoiará

nas definições de Freyre (1982) que entende o rurbano como uma relação híbrida entre modos

de vidas rurais e urbanos.

Na Amazônia brasileira, considerando o levantamento realizado durante a

pesquisa bibliográfica, não foi possível identificar trabalhos acadêmicos nas ciências humanas

com esta proposta, por isso, este tema será abordado pela primeira vez como categoria de

análise do espaço da cidade de Melgaço-PA para categorizar “formas” e “conteúdos” dos

espaços das pequenas cidades daquela Amazônia, dinamizando seus cotidianos entrelaçados

entre as múltiplas práticas que, em tese, constituiriam os espaços urbanos e rurais.

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CAPITULO II

3 NA TRAVESSIA DAS FRONTEIRAS

Após o embarque, saímos ao encontro de alguns temas que consideramos

importante para o diálogo nesta pesquisa. O encontro com a história urbana da Amazônia foi

inevitável, não poderíamos falar de um lugar sem conhecer os processos históricos que

orientaram a produção desses lugares. Contudo, nesta Amazônia, diversa e plural, encontra-se

o arquipélago marajoara que expressa a dimensão gigantesca dessa pluralidade cultural, física,

econômica e política.

3.1 A URBANIZAÇÃO DA AMAZÔNIA PARAENSE: Uma discussão geohistórica.

O processo nacional de hierarquia urbana, adotado pelos órgãos oficiais do país,

retrata o Estado do Pará à condição socioeconômica muito desigual, concentrada pela Capital

(Belém) e dois centros sub-regionais que se articulam economicamente com alguns pontos

“aqui e acolá”. Analisar a urbanização paraense apenas por esta via hierárquica corre-se

alguns perigos, entre eles, o de homogeneizar essa malha espacial. As dimensões territoriais

do Estado do Pará estão constituídas, atualmente, por 144 municípios e destes apenas 28%

possuem mais de 50 mil habitantes, a maioria das sedes municipais (72%) são cidades que

possuem uma demografia inferior aos 50 mil moradores16

.

Esses indicadores refletem a dinâmica populacional da Amazônia e seu marco

histórico e geográfico que os colocam em constantes contatos espaciais físicos e culturais.

Estima-se que nos últimos quatrocentos anos, os modelos desenvolvimentistas exógenos, os

modos de vidas e as práticas de trabalhos locais, apresentam no espaço regional, conflitos

socioeconômicos e socioculturais inerentes às demais regiões do país, mas, ao mesmo tempo

se destacam pelas especificidades que a Amazônia produz suas cidades. Machado (1999)

contextualiza o processo de urbanização regional, como uma estratégia política que foi o

elemento organizador do “sistema de povoamento”, com início a partir do século XVI.

Se colocarmos de maneira breve o percurso histórico da urbanização amazônica

numa escala temporal e linear, podemos dizer que a Região vivenciou pelo menos oito

16

Fonte IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) disponível no site do instituto, pesquisado em

junho de 2013.

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períodos econômicos que foram constituindo as dinâmicas estruturais, políticas e econômicas

da rede urbana regional.

O primeiro período que data do século XVII até a primeira metade do XIX, os

condicionantes econômicos e políticos das missões religiosas e os interesses das coroas

ibéricas, principalmente Portugal, o “sistema de povoamento” foi responsável pelas primeiras

Vilas nas margens do rio Amazonas e seus afluentes, onde a maior densidade populacional era

indígena. As vilas exerciam uma função logística tanto à igreja, quanto aos interesses

econômicos da coroa europeia.

O segundo período compreende aproximadamente os quarenta últimos anos do

século XIX (1851 a 1891), o principal condicionante econômico foi a exploração da borracha,

responsável pela produção dos primeiros embriões urbanos (protos-urbanos) e pela formação

de uma rede urbana dendrítica na região17

. Nesse primeiro momento da economia gomífera,

muitas vilas do primeiro período não sediaram os seringais. Os coronéis da borracha

instalaram seus “barracões” em áreas estratégicas visando tanto o escoamento do produto,

quanto ao acesso de mercadorias que chegavam às casas aviadoras dos seringais.

O terceiro período marca o fim do século XIX e início do XX, dinamizado pelo

apogeu da econômica gomífera constituindo uma estrutura urbana voltada aos modos

econômicos e culturais europeus na Amazônia e a “estrutura urbana primaz – Belém”. O

quarto período é marcado pelo declínio da economia gomífera que, consequentemente,

estagna as dinâmicas econômicas e políticas das vilas e cidades no interior da Amazônia.

O quinto período inicia a partir de 1966 e se estende até meados da década de

1980, tendo como principal característica a intervenção do Estado na região com a

implementação dos grandes projetos e a política de “urbanização dirigida”. Esta fase desloca a

dinâmica de produção das cidades ribeirinhas, localizadas nas várzeas para as cidades

rodoviárias de terra firme, constituindo outra malha urbana na Amazônia.

O sexto período é marcado pela retração do Estado, culminando com a

descentralização da gestão territorial para a esfera municipal. Havendo uma transferência

simultânea de compromissos entre a União, os Estados e os Municípios, fato que foi

oficializado pela Constituição de 1988 e a criação de novos municípios na Amazônia,

principalmente, na Amazônia Paraense.

17

Este conceito foi tecido pelo pesquisador Roberto Lobato Corrêa em 1989 ao discutir a rede urbana e sua

forma espacial, para o pesquisador essa forma espacial constitui a forma mais simples de produção do espaço

urbano, normalmente é constituído por uma “cidade primaz” que centraliza todos os principais serviços e

econômicos em relação os demais centros menores. Além do mais, a rede dendrítica se caracteriza pela

presença excessiva de pequenos centros populacionais que concentram em seus territórios pequenos pontos

de comercio varejistas, característico pelo baixo nível de demanda populacional.

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O sétimo período compreende entre os anos de 1991 a 1996, caracterizado por

políticas de gestão e controle territorial com ênfase nas políticas ambientais, tendo como

principal marco o macro zoneamento regional. Nesse período há uma diminuição das

migrações para a região.

Por último, a partir de 1997, a Amazônia vivencia de maneira mais intensa e

ampla, com a descentralização da gestão territorial, os municípios passam a serem inseridos

na dinâmica urbana nacional e internacional, através da inserção no território regional de

infraestruturas energéticas na dinâmica urbana nacional e internacional, transportes e

telecomunicações onde as sedes municipais passaram a interagir economicamente com outras

regiões do país e do mundo, de maneira mais intensa e autônoma.

Essas temporalidades produtivas significaram uma “nova” polarização econômica

mediada pelas fronteiras agrícolas, pecuárias, minerais, industriais e tecnológicas provocando

significativas mudanças no padrão de distribuição da população urbana regional, constituído

pelas transformações que a economia global processou no espaço amazônico.

Este contexto regional vem sendo pesquisado por vários intelectuais de todas as

áreas do conhecimento, buscando explicação para as funcionalidades dos recém-centros

econômicos sub-regionais e o processo de estagnação da rede urbana ribeirinha visivelmente

desarticulada por essas mudanças econômicas vivenciadas na “Amazônia Oriental”. Os

pesquisadores Bertha Becker (1998, 2006), Silva (2000), Gonçalves (2001),Trindade Jr. e

Rocha (2002), Yara Vicentini (2004),Cardoso (2006), Pereira (2006), Rivero e Jayme Jr.

(2008), Barbieri e Monte-Mór (2008) entre outros vêem contextualizando histórica e

geograficamente a dinâmica de ocupação amazônica, a partir do contexto contemporâneo que

a região foi inserida.

Becker (2002) ao analisar as formas e as razões das territorialidades agrárias,

atribui os conflitos envolventes no cotidiano dos sujeitos sociais, econômicos e políticos à

urbanização como um espaço estrategicamente pensado pelos modelos exógenos à “base

logística para o projeto da rápida ocupação da região”, que emerge no cenário da colonização

e adentra ao novo milênio, com ritmo de crescimento demográfico superior às demais regiões

brasileiras, esse fenômeno justifica-se, para a pesquisadora, pelo intenso processo de

migração que a Amazônia constituiu nas últimas décadas, tornando-a como uma “fronteira

que já nasce urbana”.

A fronteira não era a retaguarda dos processos históricos-geográficos atuantes no

território nacional – como sugeriam alguns colegas das ciências sociais – mas sim a

frente avançada desses processos. Tampouco era apenas uma fronteira mineral ou

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agropecuária, pois por vezes a fronteira urbana precedeu as próprias atividades

econômicas. (BECKER, 2002, p. 19).

Neste cenário geopolítico que insere a Amazônia como uma fronteira não apenas

da comercialização dos minerais e da agricultura, mas uma estratégia geopolítica dos sujeitos

que interagem os espaços amazônicos. As populações locais vêm historicamente resistindo e

negociando suas existências físicas e culturais em meio às formas de produção e consumo que

vem sendo interiorizado pelo processo de globalização que Santos (2004) denominou de

“articulado e desigual”.

Os cenários que estão se configurando pelos modelos de desenvolvimento

regional refletem a afirmativa de Santos e, ao mesmo tempo enfrenta desafios de interesses a

nível global que Becker (2002) constitui como, “uma fronteira percebida, como espaço a ser

preservado para a sobrevivência do planeta”. Por outro lado, a nível nacional os interesses são

mais antagônicos, entre eles a pesquisadora considera que a Região assume “a condição de

fronteira de recursos”. Na escala regional/local “a fronteira é a projeção para o futuro”. Nesta

mesma escala os interesses estão expressos no território pela velocidade de transformação e

na constituição de uma nova geografia apresentada no quadro 1.

Quadro 1 - Mudanças Estruturais na Amazônia

Mudanças Estruturais Principais Impactos Negativos Novas Realidades

1. CONCTIVIDADE –

Estrutura de Articulação

do Território

a) Migração/mobilidade do trabalho

b) Desflorestamento

c) Desrespeito às diferenças sociais

e ecológicas

a) Acréscimo e diversificação da

população

b) Casos de mobilidade ascendente

c) Acesso à informação –

alianças/parcerias

d) Urbanização

2. INDUSTRIALIZAÇÃO

– estrutura da economia

a) Grandes Projetos – “economia de

enclave”

b) Subsídio à grande empresa

c) Desterritorialização e meio

ambiente afetado (Tucuruí)

a) Urbanização e industrialização de

Manaus, Belém, São Luis, Marabá

b) Valor total da produção mineral / 2º do

país

c) Valor total da produção de bens de

consumo durável / 3º do país

d) Transnacionalização da CVRD

3. URBANIZAÇÃO –

estrutura do povoamento

Macrozoneamento –

povoamento linear; arco

a) Inchação – problema ambiental

b) Rede rural-urbana – ausência de

presença material da cidade –

favelas

c) Sobre urbanização – isto é, sem

base produtiva

- arco do desflorestamento e focos

de calor

a) Redução e primazia histórica de

Belém-Manaus

b) Nós das redes de

circulação/informação

c) Retenção da expansão sobre a floresta

d) Mercado verde

e) “Locus” de acumulação interna, 1ª vez

na história recente

f) Base de iniciativas políticas e da gestão

ambiental

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em torno da floresta

4. ORGANIZAÇÃO DA

SOCIEDADE CIVIL –

estrutura da sociedade

a) Conflitos sociais/ambientais

b) Conectividade + mobilidade +

urbanização

a) Diversificação da estrutura social

b) Formação de novas sociedades locais

– sub-regiões

c) Conscientização – aprendizado

político

d) Organização das demandas em

projetos alternativos com alianças /

parceiros externos

e) Despertar da região / conquistas da

cidadania

5. MALHA

SOCIOAMBIENTAL –

estrutura de apropriação

do território

a) Conflitos de terra e de

territorialidade

b) Conflitos ambientais

a) Formação de um vetor tecno-

ecológico

b) Demarcação de terras indígenas

c) Multiplicação e consolidação de

Unidades de Conservação (Ucs)

d) Projetos de Gestão Ambiental

Integrada (PGAIs) nos estados; Plano de

Desenvolvimento Sustentável dos

Assentamentos ( PDAS)

e) Capacitação de quadros para o

Zoneamento Ecológico-Econômico

(ZEE)

6. NOVA ESCALA a) Conflitos/construções a) Amazônia como uma região do Brasil

Fonte: BECKER, 2002

Este quadro sintetiza os processos de relações espaciais que a Amazônia

constituiu no início do século XXI, nesta abordagem, destaca-se o item 3 – URBANIZAÇÃO

– estrutura do povoamento. O movimento populacional em direção aos centros urbanos não

aconteceram mais, rumo as duas maiores metrópoles regionais (Belém e Manaus), mas, para

as sedes municipais que passaram a receber maiores investimentos em estrutura produtiva do

capital nacional, multinacional e estatal em obras de infraestrutura, transportes e as

dificuldades de acesso em serviços básicos como educação e saúde, associado aos inúmeros

conflitos agrários nas comunidades rurais, são fatores que colocam essas populações em

movimento das sedes municipais mais próximas.

A dinâmica populacional amazônica direcionada aos centros urbanos de médio e

pequeno porte sobrecarrega tanto o espaço natural, quanto o social dessas cidades e, os efeitos

fazem parte do mais novo “arranjo espacial” (SANTOS, 1988) do urbano amazônico. A

carência de infraestrutura urbana nas cidades amazônicas espraia a malha espacial das

cidades, avançando sobre a floresta e os cursos de rios e igarapés causando graves problemas

ambientais e sociais tanto às populações remanescentes, quanto às pré-existentes.

Para alguns estudiosos, como Gonçalves (2001), o processo de urbanização da

Amazônia é uma consequência histórica que foi sustentada desde o período colonial como um

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“enclave” as formas e práticas de vida das comunidades locais, chegando a afirmar que “a

modernidade é um processo intrinsecamente contraditório quando social e espacialmente

considerado”. Neste contexto interpretativo, afirma-se que a ideia de atraso assume não

apenas um caráter desigual, mas, ao mesmo tempo como uma estratégia dominante para

dissociar o lugar da produção ao lugar do consumo considerando as desigualdades como uma

das formas mais atuais de dominação espacial, constituindo uma espécie de lógica as

populações amazônicas a serem levadas e estarem sempre em busca de atualizações de seus

“atrasos”, precisando ser constantemente (des)envolvidas.

A dinâmica espacial urbana na Amazônia, segundo Gonçalves (2001) classifica-se

em dois macros padrões espaciais, “o padrão de organização do espaço rio-várzea-floresta” e

“a organização do espaço estrada-terra firme-subsolo”. O primeiro caracteriza-se pelas

dinâmicas econômicas do extrativismo das drogas do sertão, localizada as margens do rio

amazonas e seus principais afluentes, iniciada com o processo de aldeamento, tendo como

função dar suporte aos modos de vidas da cultura europeia e garantir o poder sobre o

território. Durante o período da economia da borracha e a produção de produtos agrícolas, a

localização e as funcionalidades das vilas perderam expressão, a extração do látex era uma

atividade essencialmente rural, os barracões aviadores e administrativos dos seringais estavam

fixados próximo à área de extração. Nesse contexto, muitas vilas do período colonial entraram

em decadência e sofreram forte recesso populacional.

A partir da década de 1960, a política de incentivos do governo federal motivada

pela meta de integração nacional, procurava atrair investimentos para a Amazônia. Esses

investimentos não só atraíram como transformaram a Amazônia em forte ponto de migração

populacional nas áreas federalizadas dos Estados. Tais medidas desencadearam em territórios

amazônicos maciços investimentos, e em tempos recordes desarticularam as cidades

ribeirinhas do circuito econômico do país e com o mercado internacional, levando-as a

estagnação econômica e demográfica, em consequência da nova malha urbana da região

surgida em torno dos grandes projetos minerais, agropecuários e dos eixos rodoviários.

Emerge no cenário urbano amazônico, uma diversidade de formas e conteúdos

marcando no espaço regional os atributos do “meio técnico científico informacional”

(SANTOS 1994). A Amazônia Oriental, especialmente, o Sudeste paraense, experimentou

pelo menos, três modelos exógenos de cidades na Amazônia.

Trindade Jr. e Rocha (2002) considera o modelo de “Cidade Empresa” na

Amazônia uma forma espacial presente desde a década de 1960. As primeiras experiências

dessa forma de planejamento urbano, voltada para o processo de gestão e controle do

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território surgiu no vale do rio Tapajós com as cidades de Belterra e Fordlândia no Estado do

Pará para servirem de apoio ao plantio de seringueira.

Contudo, essa forma espacial ganhou destaque no cenário amazônico a partir da

década de 1980. Trindade Jr. e Rocha (2002) preocupou-se em compreender a produção dessa

tipologia urbana e a relação com a gestão do território e as dinâmicas das localidades em que

estão inseridas. Para isso, os pesquisadores analisaram a Vila Residencial Permanente e

entorno de Tucuruí (PA), o Núcleo Urbano de Carajás (PA) e Vila dos Cabanos e seu entorno

em Barcarena (PA).

Aqueles municípios compõem o mais recente “arranjo espacial” (SANTOS, 1994)

urbano na Amazônia Paraense, alimentados pelos grandes empreendimentos econômicos e de

infraestrutura presentes no espaço paraense. Esses modelos do urbano na Amazônia se

caracterizam pelo caráter de “enclave”, que eles assumem diante do cotidiano econômico,

cultural e político dos assentamentos pré-existentes, como define Trindade Jr. e Rocha (2002).

Um exemplo claro dessa dinâmica é, sem dúvida alguma, a alteração da rede urbana

regional, na qual um papel decisivo foi assumido pelas cidades das empresas – as

company towns. Tratam-se de franjas avançadas (...) formas urbanas que carregam,

em termos relativos a outros espaços urbanos da Amazônia, uma densidade técnica

que as diferencia do entorno local e do contexto regional. (TRAINDADE JR. e

ROCHA, 2002. p. 16).

As “Cidades Empresas” refletem os “nós” da rede urbana regional contemporânea

na Amazônia a inserção de franjas espaciais nas dinâmicas de produção global, que tem como

princípio a autossuficiência tecnológica e financeira. Por outro lado, esses “nós” arrastam no

seu entorno a existência de outros núcleos urbanos, surgidos espontaneamente por migrantes

de rios, florestas e urbanos de outras regiões do país que configuram a mão de obra móvel que

são aproveitadas momentaneamente na fase inicial daqueles projetos.

Por outro lado, é importante contextualizar o processo histórico de evolução

urbana na região, problematizando as diversidades regionais que historicamente vem

caracterizando as “Amazônias” (GONÇALVES, 2001). Importante contribuição, neste

sentido, Vicentini (2004) ao discutir a “Cidade e a História na Amazônia” analisa a formação

das cidades amazônicas não apenas como um espaço de apoio logístico aos projetos de

exploração econômica que iniciou nos primeiros anos de colonização regional e chegou até os

dias atuais, mas principalmente, como um símbolo de “controle” social e cultural, expressado

no espaço das “cidades-empresa”, apresentadas por Trindade Jr. e Rocha (2002).

É possível perceber, uma significativa diversidade no período contemporâneo que

o processo de urbanização apresenta na Amazônia, caracterizado pela inserção de valores

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exógenos que passam a interagir com os diversos agentes internos, formando intensas formas

de assimilação cultural, e ao mesmo tempo resistências e negociações que os modos de vidas

locais realizam nessa interação econômica, política e cultural.

Fazer uma discussão do processo geohistóricos das cidades amazônicas deve-se

considerar em primeira linha, os modos de vidas e as culturas das sociedades milenares que

ainda estão presentes nas formas de trabalho, nos códigos de interpretar o tempo, os deuses, as

práticas de curas presentes em milhares de indivíduos e comunidades dos espaços urbanos e

rurais, principalmente, daquela “Amazônia Marajoara” (PACHECO, 2010).

Esses elementos são parte do processo de produção, consumo das “formas” e

“conteúdos” das cidades tradicionais da Amazônia paraense. Percebendo a importância que os

modos de vidas apresentam e o diálogo que eles realizam com os valores contemporâneos

urbanos, vivenciados pelo intenso processo de circulação e consumo de bens materiais e

culturais das sociedades globais, apresenta-se debate teórico sobre as funcionalidades das

cidades marajoaras, a partir de cotidianos dos moradores da cidade de Melgaço e a relação

que eles estabelecem com os modelos de produção e consumo do espaço urbano vivenciado

na Amazônia brasileira, nas últimas décadas.

3.2 O URBANO NA “AMAZÔNIA MARAJOARA”

O processo histórico de formação da “Amazônia Marajoara” como uma dimensão

territorial, política, econômica e cultural da Amazônia brasileira e paraense torna-se

importante nesta discussão para entendermos algumas complexidades físicas e naturais do

espaço e a ocupação humana regional. Além disso, a pequena produção acadêmica na área das

ciências humanas sobre este processo e a contextualização da cidade de Melgaço neste

cenário amazônico, nos motiva a adentrar nesses labirintos da história e da geografia regional,

seguindo rastros históricos que subsidiaram esta pesquisa, especialmente no que concerne à

rede urbana, conforme apresenta o mapa 2 da divisão política administrativa marajoara.

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Mapa 2 - Mapa político do Marajó

Fonte: SDT/MDA, 2010

A formação geológica marajoara, segundo os estudos da Agência Nacional para a

Cultura Científica e Tecnológica, subscreve ao período quaternário, aproximando aos 10 mil

anos. Os Estudos publicados no site do portal da Amazônia (www.portalamazonia.com.br)

acreditam que a bacia amazônica teve seu início a mais de dois bilhões de anos, no período

em que a África e a América formavam um só continente, com o rompimento dessas placas a

Amazônia passou a ser inundada pelas águas do pacífico.

Os estudos geográficos de Aziz Ab’Saber, consideram que as influências do

pacífico foram interceptadas com o soerguimento das cordilheiras dos Andes que passaram a

formar o grande rio amazonas. Essa geologia estrutural amazônica impõe ao Marajó um

processo de formação recente, quando comparado com a formação geológica da Amazônia. O

Marajó, portanto, é o resultado de intensos depósitos sedimentares carregados pelo grande rio

desde períodos que datam anterior aos dez mil anos.

Os estudos geomorfológicos marajoaras são recentes, mas, já concluem que a

quantificação das baias, rios e furos na região é o resultado das constantes movimentações que

a placa americana realiza, desconectando com muita facilidade as decomposições recentes de

aproximadamente dez mil anos, causando as fissuras no solo e formando a complexa bacia

hidrográfica marajoara.

Essa dinâmica estrutural constitui a formação híbrida do solo, entre a várzea,

igapó e terra firme. A fertilidade das várzeas, ocorridas pelos constantes depósitos dos

nutrientes animais, vegetais florestais e substâncias minerais e orgânicas em suspensão nas

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águas barrentas do rio Amazonas, causadas pelos contínuos movimentos das marés,

contribuindo para uma fertilidade das margens dos rios, baias, furos e igarapés formam a

complexa hidrografia marajoara, explicam a localização das remotas populações que

habitaram a região aproximadamente há 3.500 anos.

Os estudos arqueológicos na “Amazônia Marajoara” são muito recentes, os mais

antigos datam do século XIX. Os maiores destaques desses artefatos estão na cerâmica

marajoara. Na região dos campos marajoaras, estão contidos os primeiros estudos

arqueológicos, já a parte ocidental da região, essas pesquisas datam a partir da década de

1990. “A área dos campos alagados, onde se localiza o município de Santa Cruz do Arari, foi

intensamente pesquisada desde o século XIX” (SCHAAN, MARTINS E PORTAL, 2010) e

registrado no IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) a partir da

década de 1950.

Na região de florestas em pesquisa realizada pelo IPHAN nos municípios de

Bagre, Breves, Gurupá, Melgaço, Portel e Santa Cruz do Arari na região dos campos,

publicado em forma de artigo no ano de 2010, na coletânea intitulada “Muito além dos

Campos: Arqueologia e história na Amazônia Marajoara” encontraram-se 169 sítios

arqueológicos, o que caracterizou o “Marajó das Florestas” (PACHECO, 2006) com grande

potencial arqueológico da Amazônia.

A maioria dos sítios pesquisados, 86% são heranças de povos pré-coloniais,

apresentados nos vestígios dos artefatos de cerâmicas, no entanto, os municípios de Breves,

Gurupá e Melgaço apresentaram vestígios do período colonial, como moedas de cobre e

bronze datadas dos séculos XVIII e XIX, garrafas portuguesas de vidro egrés, louças,

artefatos de metal (chave de chumbo) categorizado pela arqueologia como sítios históricos

que sinalizam a presença europeia no Marajó e as relações que os navegadores mantiveram

com a população local durante o período colonial.

Tanto os sítios arqueológicos formados por populações pré-coloniais, quanto os

históricos, como igrejas, cemitérios, moedas, objetos de uso domésticos e pessoais, assim

como outras formas arquitetônicas, testemunham através das “rugosidades espaciais”

(SANTOS, 1980), os processos históricos do período pré-colonial e da colonização, ocorridos

na “Amazônia Marajoara” e garantindo fontes palpáveis à compreensão da formação urbana

marajoara e os aspectos socioeconômicos e socioculturais presentes nos cotidianos das formas

e conteúdo das cidades contemporâneas do Marajó.

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3.2.1 A produção do espaço marajoara no período colonial

O percurso pela literatura urbana da Amazônia e do Marajó nos levou ao encontro

com a história política, econômica e cultural do município de Melgaço que vivencia desde o

século XVII as marcas do contato com os europeus através das culturas materiais e sensíveis,

presentes no espaço cultural da cidade. Neste porto da história, apresentamos aos leitores,

uma breve trajetória política, cultural, histórica e geográfica percorrido pela aldeia dos

Guarycurus, a chegada dos projetos religiosos de colonização da Companhia de Jesus, a

formação da vila São Miguel de Melgaço, e após décadas de penúria e abandono, a

oficialização da municipalidade de Melgaço e percurso que a cidade faz nas primeiras décadas

de existências.

As cidades ribeirinhas da “Amazônia Marajoara” (PACHECO, 2010), foram

constituídas, sob os modelos econômicos, políticos e culturais impostos com a dinâmica de

colonização da Amazônia, em expansão do capitalismo mercantilista europeu. Esse modo de

produção constitui segundo Corrêa (1990), a “gênese e a evolução urbana” regional, tendo

como cidade primaz Belém, constituída no século XVII.

O processo de colonização da Amazônia veio carregado de múltiplos significados

à coroa portuguesa, principalmente do ponto de vista do domínio do território, já que este

estava sendo constantemente assediado por outras potências européias da época. Além disso,

as numerosas populações marajoaras que habitavam a ilha e todo o arquipélago constituíam

mais um desafio aos europeus. Neste contexto, considera-se que a colonização amazônica e

marajoara assumiu propósitos e estratégias específicas, em relação à colonização das demais

regiões do Brasil.

O Marajó constituiu um verdadeiro desafio tanto no ponto de vista econômico,

quanto cultural e geográfico para a coroa ibérica materializar seus objetivos em uma região

traçada por rios, furos, igarapés e outros acidentes geográficos (lagos e baias) que originaram

uma infinidade de formas espaciais e constituindo verdadeiros labirintos naturais e culturais

que dificultavam o acesso ao colonizador nos corredores dos rios marajoaras, além de

numerosos nativos que realizavam fortes investidas contra os navegadores e resistiam às

formas de produção do capitalismo comercial e monopolista da época18

.

18

Muitos estudiosos da região veem se dedicando aos estudos sobre a complexa colonização da Amazônia em

seus múltiplos aspectos. A respeito desta questão mencionada, consultar FILHO, Armando Alves. PONTOS

DE HISTÓRIA DA AMAZÔNIA. v. 01. Belém: Paka-Tatu, 2000; a coleção CONTANDO A HISTÓRIA

DA AMAZÔNIA – Da conquista à sociedade da borracha (sec. XVI-XIX). v. I. Organização de

FONTES, Edilza. Belém: E. Motion, 2002 e PACHECO,

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Por outro lado, as políticas externas atribuíam algumas dificuldades que

dificultavam o avanço português ao interior da região. Com a União das coroas ibéricas (1580

a 1640), período em que Portugal foi governado por reis espanhóis, possibilitou Portugal

romper os acordos de divisões territoriais entre as duas potências da época, fato que levou os

lusos ultrapassarem a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas. Daí iniciou-se a corrida de

exploração do interior da Amazônia, imprimindo no território as fortificações militares e as

bases religiosas que marcaram a fixação europeia e a implantação da política de aldeamento,

conduzida pelos religiosos da companhia de Jesus.

A fundação de Belém a partir da criação da primeira fortificação militar, 1616, foi

o marco inicial de exploração e afirmação europeia no território amazônico, não significando

apenas o início de um processo de colonização de uma região com muitas riquezas, para ser

desbravada e explorada e de um povo “selvagem” que precisava adquirir a civilização do

“velho mundo”. Foi também, o marco de uma estrutura que passou a caracterizar o modelo

europeu na produção do espaço amazônico através das bases militares, religiosas, formas de

trabalho que entraram em conflito com os modos de vidas, práticas de defesa do território e

cosmo visões locais próprias das populações amazônicas.

A partir dessa fixação territorial, dar-se início ao intenso e conflituoso processo de

colonização e catequização política e cultural, à margem dos rios da “Amazônia Marajoara”,

com exceção de Gurupá que surgiu tanto das bases religiosas e militar erigida na margem

direita do grande rio amazonas, todas as outras quinze cidades marajoaras emergiram a partir

do processo de catequização religiosa. Nesse contexto socioespacial e sociocultural, Corrêa

(1990), considera que “as aldeias missionárias implantam o embrião da rede urbana dendrítica

amazônica”, onde distintos grupos locais e estrangeiros passaram a encravar na dinâmica

socioespacial múltiplas relações de vida compartilhada por relações de poder, até então,

desconhecida entre eles (portugueses e indígenas).

Em meio a essas complexidades produzidas nas “Amazônias” (GONÇALVES,

2001), emerge a dinâmica produtiva que tem como base de sustentação o extrativismo de

produtos florestais, obtido através do trabalho forçado dos nativos que realizavam a extração

das “ervas preciosas” para o comércio clerical realizado na Europa, contribuindo diretamente

para a obtenção de enormes lucros e na composição das riquezas religiosas que importavam

mercadorias em nome das missões e eram isentos de impostos, passando a competir

Agenor Sarraf. A CONQUISTA DO OCIDENTE MARAJOARA: Índios, portugueses e religiosos em

reinvenções históricas. In: MARTINS, Cristiane Pires e SCHAAN, Denise Pahl (Orgs.). MUITO ALÉM

DOS CAMPOS: Arqueologia e história na Amazônia Marajoara:GKNORONHA, 2010, p. 11-30.

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diretamente com a burguesia comercial europeia e de certa forma excluindo-as das rotas de

exploração das “drogas do sertão”.

As dinâmicas recém-implantadas pelos religiosos, juntamente com o aldeamento

são formas socioespaciais que marcaram na “Amazônia Marajoara” a gênese dessa rede

urbana que carrega nas “rugas espaciais” (SANTOS, 1994) contemporâneas, os conflitos

espaciais e culturais desde o século XVII naquela região e ao mesmo tempo revelam as

relações, os modos de vidas e outras práticas que dinamizam as “formas” e os “conteúdos”

daquelas cidades através do cotidiano dos múltiplos sujeitos que produzem o urbano no

Marajó.

A sede de corporações externas implantadas em função da dinâmica de

colonização passa a desenvolver no espaço amazônico, novas territorialidades ao longo dos

rios da região, no sentido de viabilizar a exploração dos recursos como estratégia de obtenção

e acumulação de lucros às coroas ibéricas. Essas estratégias são fundamentais para

percebermos o processo histórico de produção do espaço das cidades amazônicas, contudo, as

edificações e as lógicas de produção, assim como, as dinâmicas de relações estabelecidas

naqueles espaços, precisam ser pesquisados numa perspectiva do outro, dos nativos e negros

que imprimiam suas formas de negociação e suas forças de resistências, naquele processo

exógeno de produção do espaço marajoara.

Com a expulsão dos religiosos do Brasil e, consequentemente, a criação da

Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, no período de 1750 a 1780 ocorreram algumas

reformulações nas dinâmicas de gestão econômica e territorial da Amazônia brasileira. Corrêa

(1990) atribui esse período de “relativo desenvolvimento”. Analisando esse mesmo contexto,

Nunes Dias (1970), afirmou que com a criação da Companhia Geral do Grão-Pará e

Maranhão houve uma reorganização das atividades produtivas devido à incorporação da

burguesia mercantil no lugar da igreja.

O aparecimento de subsídios primordiais para o início da produção capitalista

baseada no controle da força de trabalho por colonos portugueses e a inserção de algumas

atividades como a pecuária e a agricultura, mudaram a política de distribuição de terras

através das sesmarias, passando a absorver outras culturas de caráter lucrativo. Essa dinâmica

foi marcada pela força de trabalho compulsório, contribuindo para uma forte dispersão

territorial da população fora dos limites físicos das vilas.

Tais mudanças no processo de produção foram estabelecidas pelo reordenamento

da força de trabalho. O indígena que vivia sob as condições das aldeias missionárias divide

espaço de produção, de fuga e resistência com o negro africano. Ação intensificada a partir da

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presença dos colonos que embora as vilas tivessem caráter laico, nativos e negros não se

submeteu ao “novo” modelo de exploração da coroa portuguesa.

Com as alterações da produção desenvolvida nas antigas aldeias missionárias,

praticada pela política urbana pombalina, foram se espalhando por toda a região amazônica e

marajoara, iniciada com as missões religiosas. Outros “fixos espaciais” (SANTOS, 1994) que

dinamizaram política e economicamente o espaço das antigas aldeias, como, os portos,

depósitos, atraindo, em seguida, moradores, fazendo surgir os aglomerados, as primeiras ruas,

os serviços e com o decorrer do tempo, o aparecimento de elementos que constituíram a

paisagem da época, simbolizando o espaço a partir dos “sistemas de objetos” europeus.

Essa reordenação que, por sua vez, dinamiza a rede urbana dendrítica para a

incorporação do novo processo de produção direcionado à região, apreende elementos que

dão existir para o espaço produtivo e intensificam a hierarquização entre as cidades

amazônicas. Podemos citar como exemplo, as cidades de Belém, capital do Estado do Pará, e

Manaus, capital do Estado do Amazonas, ambas historicamente desenvolvidas, semelhantes à

trajetória das demais cidades ribeirinhas. Contudo, a verticalização da dinâmica capitalista na

região tornou-se decisivo ao processo de elevação e centralização de centros financeiros e de

serviços que as colocaram em condição de metrópole regional. Isto não significa que os

pequenos núcleos preexistentes com as políticas missionárias não tivessem importância na

redefinição do território, enquanto espaço de produção e circulação de bens e capital, pelo

contrário, foi neles que a ação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão materializaram

muitos dos seus objetivos, especialmente, com a elevação das aldeias missionárias à categoria

de vila, passando a contribuir decisivamente ao modelo produtivo europeu.

Após a saída dos religiosos, as aldeias foram elevadas à categoria de vilas e

nomeadas com nomes de povoações portuguesas como é o caso de Melgaço, que nos anos de

1758, passou a desenvolver atividades produtivas de interesse das políticas econômicas

colonialistas. A formação histórica, como núcleo populacional de Melgaço se confunde, por

exemplo, com a história da Companhia de Jesus na Amazônia, tendo início em 1653, quando

padres da Companhia de Jesus lá chegaram, com objetivos semelhantes aos das demais

aldeias missionárias da Amazônia: catequizar os nativos e, consequentemente, desenvolver e

reordenar o espaço geográfico para uma incorporação produtiva à base da exploração da força

de trabalho de nativos e negros19

.

19

Em Melgaço, já circularam alguns documentos que trazem um pouco dessas informações. Para essa pesquisa,

consultamos Inventário Cultural do município de Melgaço – Estado do Pará, secult, 1994 e também

SANTOS, Hermógenes Furtado dos. Resumo da História do município de Melgaço – 1653 a 1988. Material

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Os Guarycurus, Uarycurus ou Arycurus da tribo dos Neengaíbas, primeiros

habitantes onde está localizada a cidade de Melgaço sofreram a ação missionária dos

religiosos e a exploração dos portugueses colonizadores. Em 1661 é criada a aldeia

missionária, pelo padre Jesuíta Antônio Vieira, ainda sob a categoria de aldeia missionária,

insere-se no modelo econômico, fornecendo produtos agrícolas e derivados da cana de açúcar

à metrópole portuguesa. Assim, a expulsão dos religiosos do Brasil, o controle das antigas

aldeias missionárias nas mãos dos representantes da coroa portuguesa e, consequentemente, a

elevação das mesmas à categoria de vila, foi refletida num ótimo estímulo na escala da

produção. Por meio da utilização da mão de obra barata, as vilas ganharam outra configuração

espacial em relação às antigas aldeias missionárias e passaram a ser administradas pelos

subalternos civis ou militares da coroa portuguesa.

A estrutura urbana amazônica foi distribuída ao longo dos principais rios da

região, principalmente, no médio vale amazônico e o crescimento urbano se desenrola

semelhante ao processo iniciado com a colonização, tendo a cidade de Belém como principal

centro de articulação, controlando a dinâmica da produção e a circulação dos produtos pela

rede fluvial. Os pequenos povoados e vilas do interior amazônico apresentavam pouca

articulação na diversidade de serviços, exercendo a função de fornecedor de matéria-prima e

consumidor dos produtos industrializados, nas indústrias do centro regional, Belém PA.

A colonização, além da dizimação dos bravos defensores de seu território e a

escravização de outros, assinala como um dos maiores marcos da fragmentação territorial por

meio da política fundiária da coroa e da província com o processo de doações de extensas

áreas territoriais através das concessões de sesmarias. Os registros de documentos históricos

confirmam que no período de 1721 a 1740, foram concedidas mais de cinquenta sesmarias no

Marajó.

Com a colonização, a Amazônia é inserida na lógica de produção global. Nesse

contexto, a Mesorregião do Marajó, vivencia as sucessivas fases de expansão e recessão dos

ciclos econômicos regionais, principalmente na pecuária do oriente marajoara e no

extrativismo da parte ocidental da região. Sendo que todas essas atividades, principalmente, a

pecuária, continuaram prevalecendo o trabalho escravo de índios e negros africanos.

O projeto de colonização amazônico direcionado pelos interesses econômicos de

várias nacionalidades europeias e acompanhado pelos interesses culturais do catolicismo do

de circulação livre. PACHECO, Agenor Sarraf. À MARGEM DOS “MARAJÓS”: Cotidiano, Memórias e

Imagens da “Cidade-Floresta” – Melgaço-PA. Belém: Paka-Tatu, 2006.

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velho mundo, marcaram a paisagem amazônica com a construção de bases militares e a

edificação de igrejas católicas de diferentes congregações religiosas.

A literatura clássica trata esse embrião das cidades amazônicas com pouca ênfase

ao Marajó, algumas vezes, aparecendo à cidade de Soure nos debates da colonização. Nos

últimos anos, Pacheco (2006, 2010) vem problematizando a colonização amazônica, a partir

do Marajó. Entre suas pesquisas destaca os desafios que a colonização enfrentou para

atravessar o “estreito de Breves”, através de crônicas dos jesuítas encontradas nos arquivos

das paróquias marajoaras, refazerem “a escrita e as reinvenções da história” marajoaras

(PACHECO, 2010).

O contato com os marajoaras foi muito mais desafiador aos invasores, devido às

características físicas da região que entrelaça rios, furos, igarapés e florestas fugindo do

domínio cartográfico europeu. Além disso, somavam-se milhares de populações locais em

todos os lugares do arquipélago, cada uma apresentando códigos culturais distintos,

dificultando a aproximação estrangeira. Entre outras nações habitavam na região os Aruãns,

Sacacas, Marauanás, Caiás, Ariris, Anajás, Muanás, Mapuás, Pacajás que se tornaram grandes

defensores dos seus territórios durante, aproximadamente, duas décadas (PACHECO, 2010).

O padre jesuíta João Daniel registrou a geopolítica do enfrentamento territorial

vivenciado no arquipélago marajoara20

e os desafios que os europeus enfrentaram durante

vinte anos de resistência local.

Muito deu que fazer esta nação aos portugueses, com quem teve muitos debates,

contendas, e guerras. (...) expediam-se tropas contra eles, mas os Nheegaíbas (...)

zombavam das tropas, escondendo-se por um labirinto de ilhas, e de quando em

quando dando furiosas investidas, já em ligeiras canoinhas, que com a mesma

ligeireza com que de repente a cometiam, com a mesma se retiravam, e por entre as

ilhas se escondiam as balas, e já de terra encobertas com as árvores, donde

despediam chuveiros de flechas e taquaras sobre os passageiros e navegantes, que

além do risco de vida, se viam impedidos a navegar o Amazonas, para onde não

tinham outro caminho, senão pelo perigoso furo do Tajapuru (...) (DANIEL 2004:

368-9. Apud PACHECO, 2010. p. 17-8).

O cenário marajoara, apresentado nos relatos do religioso, torna-se importante

neste trabalho para entendermos os processos geohistóricos de enfrentamento e negociação

que os nativos travaram durante décadas com os colonizadores e a formação dos aglomerados

humanos através das políticas territoriais de aldeamento religioso.

O rio foi o espaço de maior disputa territorial do Marajó, os nativos não

defendiam os cursos hídricos por questões econômicas, mas, por fatores culturais, pois havia

20

Consultar o artigo A conquista do Ocidente Marajoara: Índios, portugueses e religiosos em reinvenções

históricas. In: SCHAAN, Denise Pahl e MARTINS, Cristiane Pires (Orgs.) Muito além dos campos:

Arqueologia e história na Amazônia Marajoara. Belém: GKNORONHA, 2010. p. 11-30.

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aí interesses opostos pela geografia marajoara. Nesse embate territorial e cultural, foram se

firmando as “manchas urbanas” na floresta marajoara e configurando a “malha espacial” das

cidades ribeirinhas do arquipélago, voltados aos interesses dos modelos econômicos e

culturais exógenos. O quadro 2 representa a fundação histórica e a origem das dezesseis

municipalidades marajoaras.

Quadro 2 - Formação histórica e ano de fundação das municipalidades marajoaras

Nº Nome do município Ocupação Histórica Emancipação política

01 Afuá Séc. XIX 23.08.1890

02 Anajás Séc. XIX 06.07.1895

03 Bagre Séc. XIX 11.03.1955

04 Breves Séc. XVIII 10.11.1909

05 Cachoeira do Arari Séc. XVIII 31.10.1935

06 Chaves Séc. XVIII 23.01.1891

07 Curralinho Séc. XIX 06.07.1895

08 Gurupá Séc. XIX 11.11.1885

09 Melgaço Séc. XVII 30.12.1961

10 Muaná Séc. XVIII 06.07.1895

11 Ponta de Pedras Séc. XVIII 30.04.1877

12 Portel Séc. XVII 24.01.1758

13 Salvaterra Séc. XVIII 29.12.1961

14 Santa Cruz do Arari Séc. XIX 29.12.1961

15 São Sebastião da Boa Vista Séc. XVIII 30.12.1943

16 Soure Séc. XVIII 09.09.1847

Fonte: IBGE/AMAM/site das prefeituras.

O tempo histórico de formação das “manchas espaciais” (SANTOS, 1994)

marajoara reflete os escritos do religioso João Daniel sobre os desafios que os europeus

vivenciaram durante duas décadas de intensa relação de conflitos e negociações, com as

nações indígenas no arquipélago. Todas essas cidades nasceram a partir da edificação de uma

igreja e a política do catolicismo na “Amazônia Marajoara” (PACHECO, 2010) em aldear

para catequizar os nativos das florestas e dos campos.

Outro fator geohistórico, que nos remete às evidências dos contextos

socioeconômico amazônico a partir do segundo período do século XX, são os períodos de

oficialização das municipalidades. O século XVII aparece como o primeiro marco de

formação das nucleações humanas marajoaras, a estrutura estava voltada aos trabalhos

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missionários. Com a expulsão dos religiosos do Brasil já no século XVIII, as antigas aldeias

passaram a categorias de vilas. No histórico das atuais cidades marajoaras, oito (50%) aparece

com formação durante o século XVIII, período de transição do rompimento da aliança entre a

igreja e a coroa portuguesa.

Após o ano de 1775, marco de rompimento das relações entre a coroa portuguesa

e a igreja católica, houve forte investimento da coroa no extrativismo de ervas e outros

produtos das florestas marajoaras, nas recém-criadas vilas, tendo como principal mão de obra,

o braço escravo de índios e negros africanos. A partir deste período, os espaços das vilas

marajoaras são “crivadas de externalidades” (SOUZA, 2000) políticas, econômicas e

culturais. A presença de comerciantes estrangeiros e de outras regiões do país está evidente

nas linhas dos documentos pesquisados por Pacheco (2006). As antigas aldeias tornaram-se

entrepostos comerciais dos portugueses, ainda na segunda metade do século XVIII.

Neste período, oito das dezesseis cidades marajoaras, emergiram a partir das vilas

coloniais. Elas eram administradas por subalternos da coroa que prezavam pela exploração do

trabalho escravo, tornando-se “enclaves espaciais” aos habitantes regionais e aos negros que

estavam na região, em condições de fugitivos ou na condição de trabalhadores das fazendas,

localizadas nas áreas de campos do grande arquipélago.

Durante o século XVIII, nas narrativas de João Daniel, pesquisado por Pacheco

(2010), registra a presença de negros fugitivos do atual estado do Maranhão para o ocidente

marajoara. Nesses caminhos de diásporas africanas emergem nas regiões de florestas do

arquipélago verdadeiros territórios “afroindígenas” (PACHECO, 2010), formando espaços de

resistências às funcionalidades das vilas localizadas às margens dos rios marajoaras.

Por outro lado, as vilas marajoaras foram dinamizando o comércio e ampliando o

intercâmbio com vários lugares do país e do mundo. Nesse contexto, o século XIX produz no

espaço das vilas investimentos em infraestruturas, como, escolas, sede de governo, delegacia,

engenhos que, entre outros fatores, mantinha a presença de vários comerciantes que

dinamizavam o comercio local. No entanto, vale ressaltar que esses investimentos não

ocorreram em toda a região, eles aconteceram onde havia maior presença do “controle” da

mão de obra e, consequentemente, maior evidência produtiva.

O espaço produtivo das vilas marajoaras representava as forças políticas locais, na

maioria das vezes, eram militares nomeados pelo interventor da província para coordenar a

vida política e, principalmente, econômica da região. Os intendentes conduziam as transações

comerciais locais, com compradores de várias regiões do país e do mundo.

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A economia marajoara estava baseada, exclusivamente, de produtos do

extrativismo vegetal como borracha, castanha do Pará, madeira, lenha, timbó, pesca e outros

de menor expressão produtiva. As atividades agrícolas resumiam-se exclusivamente, à

produção manufaturada, voltada ao consumo familiar com comercialização do pequeno

excedente aos comércios locais. Esse potencial produtivo regional foi primordial para a

formação do povoamento das vilas e posteriormente das cidades ribeirinhas marajoaras,

distribuindo a população em pequenos núcleos urbanos, localizados nas margens de rios e

igarapés da região.

Essa característica econômica influenciou na demografia urbana regional. Todas

as atividades estavam fortemente vinculadas aos espaços rurais, mantendo a população

economicamente ocupada próxima aos locais de trabalho. Enquanto isso, as cidades iam se

firmando como espaço da moradia, sem expressão industrial e comercial na região. Os

espaços urbanos ribeirinhos caracterizavam-se pela funcionalidade política administrativa

local. Durante o período de extração da borracha, os moradores da cidade de Melgaço

deslocavam aos barracões da seringa localizadas no rio Tajapuru para comprarem os produtos

básicos de suas sobrevivências, pois, na cidade não havia nenhuma casa comercial.

Essas atividades produtivas voltadas ao espaço rural, não apenas contribuíram

para um lento crescimento urbano no Marajó, como, também para manter as cidades do

“Marajó das Florestas” vinculadas as práticas de trabalhos de rios e florestas, assim como, a

manutenção do sistema de aviamento herdado dos barracões dos seringais rurais.

O comércio urbano e rural durante décadas, após o declínio da economia da

borracha, continua entrelaçando trabalhadores marajoaras como pagamento de seus serviços

através de autorizações em estabelecimentos comerciais e a troca entre a produção do

agricultor e o gênero de sua necessidade imediata que estão nos estabelecimentos comerciais.

Além do endividamento que agricultores, pescadores, extrativistas, aposentados e

funcionários públicos assalariados adquirem nos estabelecimentos comerciais e nas lojas da

cidade.

Quanto aos ribeirinhos, mantém com poucas alterações a estrutura de distribuição

humana com poucos aglomerados, se localizam de maneira dispersa ao longo dos rios e

igarapés da região. A atividade econômica foi alterada, mas, ainda mantém à dinâmica da

natureza local, caracterizado pela extração de madeira, palmito, açaí, pesca artesanal de

subsistência do peixe regional e do camarão. Além do acesso aos programas federais de

transferências de renda, entre eles a “Bolsa Família”.

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Analisando o contexto socioeconômico e sociopolítico das antigas vilas, percebe-

se que no período de transição entre os séculos XIX e XX elas iniciaram os caminhos rumo à

emancipação política. O município que se emancipou politicamente ainda no século XVII foi

Portel. Os outros quinze, foi nos séculos XIX e XX. Sendo que 50% dos dezesseis formaram

sua municipalidade no século XIX e 43,8% no século XX. Essas municipalidades foram

motivadas por uma geopolítica que articulava lideranças locais e as relações partidárias, com

o os políticos influentes do Estado, levando a constantes perdas e ganhos territoriais das suas

fronteiras. Esses “duelos” das lideranças locais são os responsáveis pela atual configuração da

cartografia oficial dos municípios da “Amazônia Marajoara” (PACHECO, 2010).

3.2.2 Os significados da economia da borracha nos espaços das cidades e vilas

marajoaras (XIX – XX)

Entre os anos de 1850 e 1920, a produção urbana da Amazônia brasileira ganha

nova dimensão do ponto de vista econômico, demográfico e espacial. Com a valorização da

borracha no mercado, em função de intensa procura pelas indústrias pneumáticas e,

principalmente, pela abundância da matéria prima na região, estimulou a presença de grandes

investimentos econômicos nacionais e internacionais para a extração do produto, justifica-se

com as implantações das condições necessárias da produção para possibilitar acúmulo de

riquezas ao novo modelo econômico. Com isso, necessita-se de mão de obra em abundância

para atender os interesses do mercado21

, estimulando a migração de sujeitos para a região,

principalmente, nordestinos que juntamente com a presença de capital investido vão

simultaneamente modificando a rede urbana regional. Essas modificações podem ser

apreendidas, segundo Corrêa (1990) como duas grandes inter-relações: “o revigoramento dos

centros urbanos e, por outro, a intensificação dos relacionamentos entre eles”.

Com a migração da força de trabalho, os revigoramentos dos centros urbanos

foram fundamentados na expansão dos centros preexistentes e no surgimento de novos em

função da valorização da matéria prima amazônica nos centros consumidores internacionais,

contribuindo para o crescimento demográfico das cidades ribeirinhas amazônicas que

passaram a atender esses focos migratórios. Os novos centros foram se caracterizando em sua

21

Esse argumento se contrapõe a ideia que concebe a Amazônia como uma região demograficamente vazia como

foi pregada principalmente pelas políticas de ocupação dos governos brasileiros, justificando a ação do Estado

junto à população de outras regiões para atraí-los em busca de melhores condições de vida, garantida pela

economia da borracha, já que e a população local não era suficiente para produzir o necessário ao mercado de

consumo.

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maioria, nos locais onde funcionavam as sedes dos seringais22

. Estes iam se desenvolvendo,

se articulando e se povoando em função dos vínculos que eram estabelecidos com as “capitais

da borracha” (Belém e Manaus) e os barracões23

, intensificando as relações e a circulação de

matéria primas e bens de consumo estabelecidos pela densa rede fluvial, que as cidades

amazônicas desenvolveram entre si.

Todas essas reordenações que as cidades ribeirinhas incorporaram diante da nova

dinâmica do processo produtivo, foram dinamizadas em função do “sistema de aviamento”,

que neste contexto, assume caráter importante na esfera da produção e na concentração de

capital dos “barões da borracha”. Essa concentração de capitais, juntamente com a massa de

trabalhadores, provenientes de outras regiões do país, foram elementos fundamentais para a

reordenação das cidades ribeirinhas da região, considerando as relações de poder

estabelecidas pelos patrões24

.

Em função da concorrência estabelecida entre o produto brasileiro e o asiático,

houve uma desvalorização da borracha nacional caracterizando uma baixa procura do

produto. Com isso, a queda de preço, a partir da década de 1920 foi inevitável, inserindo a

Amazônia num período de intensa crise econômica, durante aproximadamente quatro

décadas.

Essa crise foi refletida nas estruturas demográficas das cidades do “Marajó das

Florestas” (PACHECO, 2010) pelo refluxo da população para outras localidades, envolvendo-

se com outras atividades, como foi o caso de seringueiros do município de Melgaço que após

a baixa da produção, retomaram os caminhos da antiga vila, por meio da produção da farinha,

plantio de arroz e outros gêneros agrícolas25

. Nesse contexto, a maioria das cidades ribeirinhas

do interior da Amazônia brasileira que vinham ampliando suas “formas espaciais” para

atender o intenso fluxo migratório, no período áureo da comercialização e extração da

borracha, passou sofrer o fenômeno da retração econômica.

22

Melgaço no auge da economia da borracha contribuiu significativamente com a produção do Estado do Pará,

chegando a ser no ano de 1900 o quinto maior município do Estado na escala de produção, perdendo apenas

para Breves, Anajás, Cametá e Gurupá, respectivamente. WEINSTEIN, Bárbara. Os limites do domínio

estrangeiro. In: A Borracha na Amazônia: Expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: Hucitec-Edusp,

1993. p.191-218. 23

A denominação de barracão foi atribuída para as casas aviadoras que estavam localizadas próximas a extração

da matéria prima, onde o seringueiro mantinha a transação comercial com o patrão. 24

Além desses aspectos mencionados, texto muito interessante sobre o cotidiano de trabalhadores nos caminhos

do seringal foi escrito por LACERDA, Franciane Gama. A vida e o trabalho no seringal. In: FONTES, Edilza

(Org.) CONTANDO A HISTÓRIA DO PARÁ – Da conquista à Sociedade da Borracha (Séc. XVI-XIX).

Vol. I. Belém: E. Motion, 2002, p. 293-317. 25

Seguindo esse universo de compreensão, PACHECO em sua dissertação de mestrado, trabalhando na

perspectiva da análise histórica, discute a movimentação desses trabalhadores rurais para outras áreas, no

contexto da chamada “decadência” da economia gomífera. Op. cit. p.76-108.

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A vila de Melgaço passa a viver um período de “penúria” (PACHECO, 2006), de

abandono e de total decadência. O refluxo da população foi muito intenso. Segundo registros

de alguns memorialistas, entre eles, o caderno de memórias escrito por Francisco Mamede,

morador antigo de Melgaço, hoje falecido, recuperado por Pacheco (2006) havia residindo na

decadente vila, doze pessoas que nem sempre estavam reunidas, pois comumente ao saírem

para trabalhar nas pequenas lavouras de mandioca, milho e arroz, a vila ficava praticamente

abandonada.

Com a desvalorização do produto gomífero no mercado consumidor externo, a

maioria das cidades foram estagnando suas atividades, por não encontrarem alternativa

imediata que garantisse seu desenvolvimento econômico. Outras conseguiram manter ou até

mesmo equilibrar suas atividades econômicas em função de disponibilizarem recursos

alternativos de capital, em razão da valorização desses produtos em suas hinterlandias. Assim,

é válido notar que apesar da decadência da economia da borracha e o refluxo da população

para outras regiões, algumas cidades ribeirinhas buscaram além da extração de outro produto,

alternativa de sustentação econômica à população.

A título de exemplo, podemos mencionar a cidade de Marabá26

que desenvolveu

ao longo de sua história econômica, atividades gomífera, mas com a decadência daquele

modelo econômico, os capitais da borracha foram redirecionados para a extração da castanha-

do-pará. Outras cidades do médio amazonas dinamizaram o capital do látex para a pecuária de

corte, mas a grande maioria retirou-se definitivamente da região, transformando as vilas em

espaços de estagnação e ampliando os maiores centros urbanos regionais em áreas que Corrêa

(1999), analisou como sendo a “periferia regional que a urbanização prossegue, a despeito da

estagnação econômica” dos seringais.

A partir da análise produzida por Corrêa, podemos dizer que em função das

dinâmicas estabelecidas por essas cidades, no auge da economia da borracha, e as redefinições

encontradas em outras atividades, durante o período de crise, a urbanização consegue a

retomar seu crescimento após o período de decadência. A vila de Melgaço enfrentou muitas

dificuldades em retomar a dinâmica do comércio que obtinha anteriormente, chegando a ter

várias casas comerciais, inclusive no entorno da vila, que realizavam atividades parecidas

com o sistema de aviamento, financiando o agricultor a plantar o arroz, o milho, etc. Esses

produtos eram comercializados com o patrão como forma de pagamento das mercadorias

financiadas. As atividades comerciais no município estão comprovadas pelo pagamento de

26

Marabá, está localizada no sudeste paraense, no vale do Rio Tocantins, atualmente vem dinamizando toda a sua

economia vinculada aos eixos rodoviários da Belém-Brasília e Transamazônica.

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impostos que os proprietários das casas comerciais se submetiam à intendência27

. Tal relação

comercial entre produtor e comerciante no município desenvolveu laços de dependência

muito forte na economia de Melgaço e essa estagnação não ocorreu isoladamente, foi também

um elemento que desencadeou profundamente a estagnação da dinâmica da cidade.

A discussão teórica da rede urbana da Amazônia e do Marajó apresenta bases

históricas e geográficas das cidades, as dinâmicas da produção interna e externa em que foram

envolvidas e, consequentemente, as alterações estabelecidas no espaço geográfico, nos

permite analisar os contextos socioeconômicos e socioculturais que a “Amazônia Marajoara”

foi inserida e ao mesmo tempo, contextualizando, a histórica geografia da cidade de Melgaço

como espaço que também externa as percepções dessas mudanças até aqui esboçado.

A dependência política e financeira são fatos que tramita o histórico das

municipalidades regionais. Além disso, as cidades marajoaras foram margeadas pelos projetos

federais, a partir dos anos de 1960, principalmente com a política de integração regional do

governo federal. O redirecionamento econômico da Amazônia e, consequentemente, a

inserção de nova configuração urbana regional vinculada aos projetos minerais, agropecuários

e rodoviários imprimiram na rede urbana amazônica uma estrutura de funcionamento

hierárquico, incluindo no novo circuito de produção as duas principais cidades regionais

(Belém e Manaus) e outros centros regionais de médio porte, que passaram a integrar os eixos

rodoviários.

A mesorregião marajoara adentra na década de 1960, período de instalação dos

governos militares e de implantação dos PDAs (Plano de Desenvolvimento da Amazônia)

com mais de 81% dos dezesseis municípios constituídos politicamente e os 19%,

aproximadamente, se efetivaram quanto municipalidade no início da década de 1960. Antes

do golpe militar, o Marajó vivencia o período político ditatorial, com a rede urbana

politicamente instituída. Por outro lado, a maioria das municipalidades convivia com muitas

fragilidades em infraestruturas, renda e consequentemente, inferiores qualidade de vida da

população regional, em relação às demais mesorregiões do Estado.

Com todos esses desafios, o Marajó imprime no cenário regional outra

especificidade, entre elas, a distribuição populacional no território. Os indicadores

populacionais da mesorregião do censo demográfico de 2010 contabilizam 487.161

habitantes. Entre esses meio milhões de pessoas ainda perduram práticas políticas e culturais

27

Descobrir essa questão a partir de PACHECO, Agenor Sarraf. LEMBRANÇAS DE UMA VIDA. Op. Cit.

p.17-18.

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da sociedade pré-colonial e durante o período colonial, assim como, modos de vidas

africanos, gerando impactos nos modos de vida dos marajoaras.

A maioria dos municípios possui características rurais e baixa densidade

demográfica, os municípios de Breves, Portel e Afuá aparecem como os três mais populosos

da mesorregião. O quantitativo populacional vivendo em áreas fora dos limites urbanos está

sendo a cada década censitária diminuída, pois, no ano de 2010, o IBGE (Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística), identificou 56,59% habitando os espaços rurais da “Amazônia

Marajoara”.

Contudo, os 43,41% que se encontram habitando os espaços urbanos, são na

maioria, migrantes rurais que estão buscando na cidade serviços como educação, saúde e

segurança que chegam de maneira muito precária aos espaços rurais. A população migrante,

não se desprende dos vínculos com o rural, que será mais bem discutido no terceiro capítulo

desta dissertação. Mas se formos comparar estatisticamente o quantitativo rural marajoara

com a média nacional que é de 16%, pode se caracterizar que a distribuição populacional no

espaço marajoara é uma especificidade nacional. Dos dezesseis municípios somente três

(Breves, Soure e Salvaterra) possuem população urbana superior à rural.

Esse contexto de mobilidade demográfica na mesorregião marajoara, como já foi

mencionado, se caracteriza pelas dificuldades de acesso aos serviços básicos à população. No

âmbito da educação não há na maioria dos municípios a oferta do ensino médio aos jovens

que concluem o ensino fundamental nos espaços rurais. A motivação pela continuidade dos

estudos os traz aos centros urbanos mais próximos, normalmente, são as sedes do próprio

município onde a família reside. Esses moradores com baixa condição econômica para obter

um terreno nas áreas com melhor infraestrutura e também, por contextos socioculturais,

acabam ocupando áreas nas cidades com proximidades aos rios, normalmente alagadas,

inóspitas, levando-os a viverem com baixos padrões de qualidade de vida por não disporem de

condições econômicas de construir infraestrutura de saneamento básico e esgotamento

sanitário adequado, nem terem acesso a essas políticas como serviços públicos coletivos.

3.3 PRIMEIRAS IMPRESSÕES DO ESPAÇO MELGACENSE

Durante o período colonial, a Amazônia integrou-se ao mercado internacional na

condição de fronteira natural do capitalismo mercantil e, com ela, o arquipélago de Marajó. A

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dinâmica econômica da Ilha e do entorno foi ao longo do tempo processada de forma cíclica,

diante da prosperidade e depressão do extrativismo e da pecuária.

As intensidades dessas atividades foram desenvolvidas em lugares diferentes, de

um lado (oriental ou dos campos) da Ilha, as atividades pecuaristas foram predominantes com

a criação do gado bufalino, aproveitando as peculiaridades oferecidas pelos campos do

Marajó. Na outra dimensão (ocidental ou das florestas), a pecuária não assumiu destaque na

economia, sendo desenvolvidas as atividades extrativas de produtos florestais como palmito e

madeira, principalmente. O arquipélago de Marajó passa a ser caracterizada de forma distinta

no aspecto das atividades econômicas (NETO, 1993).

As atividades desenvolvidas no ocidente marajoara, principalmente nos

municípios de Breves, Curralinho, Anajás refletem nos municípios “das margens”

(PACHECO, 2006), Bagre, Gurupá, Melgaço e Portel, voltadas ao extrativismo vegetal da

madeira e do palmito e na produção agrícola de subsistência (farinha de mandioca) e, na pesca

artesanal de peixes regional e do camarão.

Neste cenário econômico, histórico, geográfico e cultural está a cidade de

Melgaço. Com a expulsão dos religiosos do Brasil no século XVIII (1775), os portugueses

assumiram a direção da aldeia dos Guarycurus, elevando-a a categoria de vila, deixando de

lado sua antiga denominação para chamar-se São Miguel de Melgaço.

Na memória dos moradores mais antigos da cidade estão vivas algumas versões

para a origem dessa denominação. Durante o processo de colonização, vários colonos

deslocaram-se à vila na condição de administradores, com o propósito de manter a “ordem” e

garantir a produtividade. Miguel de Bulhões foi um desses colonos que veio à Melgaço, filho

de uma freguesia em Portugal denominada “Barão de Melgaço”. Na tentativa de prolongar

sua terra Natal em território desconhecido, batizou a antiga aldeia com o mesmo nome. Outra

versão está muito ligada a uma das atividades econômicas da época, segundo a memória de

moradores, a denominação de Melgaço, significa “mel” de cana e “gaço” do bagaço da cana

de açúcar28

.

Essas narrativas não sistematizam uma explicação para a origem do nome do

lugar, contudo, mostram o processo de produção do espaço produtivo e político da vila de

Melgaço, diante de políticas coloniais que passaram a dinamizar a produção de matéria prima

na “Amazônia Marajoara”, compondo elementos padronizados da moradia que aos poucos

28

A explicação da origem do nome de Melgaço foi captada de PACHECO, Agenor Sarraf. À MARGEM DOS

“MARAJÓS”. Op. cit. p. 51. É importante ressaltar que aqui privilegiei apenas duas versões, mas existem

outras.

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tentam substituir ocas e cavernas por casebres localizados retilineamente, formalizando,

através daqueles “fixos” a presença da cultura europeia na floresta amazônica.

A vila de São Miguel de Melgaço nasce diante desse contexto econômico, político

e cultural complexo, como a maioria das cidades ribeirinhas do Marajó que se configuram no

entorno de uma centralidade, seja religiosa, militar ou econômica, refletindo o processo

conflituoso das fronteiras europeias e amazônicas, na produção do espaço regional e local29

.

A criação e ocupação da vila de São Miguel de Melgaço não se dão de forma

linear, desde a frente extrativista e agrícola até a formação da cidade. Gesta-se diante das

dinâmicas econômicas da fronteira amazônica com suas relações sociais, crenças e mitos

incorporados por ribeirinhos que diante das diferentes situações em que vivem, tentam

explicar as origens da formação e localização da vila de Melgaço.

Os ribeirinhos passaram a acreditar que a vila era pra ser fundada do outro lado da

baia de Melgaço, num lugar denominado de Pacoval, porém, como a imagem de São Miguel

Arcanjo, seu padroeiro, foi encontrado deste lado, todas as vezes que pretendiam levar a

imagem para o outro lado, alguma coisa o impedia. Essas memórias ainda estão vivas na

cultura dos moradores que iniciaram na sua infância, o povoamento da vila, acreditando que o

santo não queria sua formação em outro local.

Nesse contexto o espaço da vila reflete o que Martin-Barbero (2004) caracteriza

como “cartografia sensível”, fundamentada na oralidade de sujeitos sociais que atribuem ao

lugar, suas próprias razões de explicar e entender o espaço e suas dinâmicas geográficas e

históricas, no confronto e nas estratégias de negociações com os investimentos em

infraestrutura, equipamentos funcionais urbanos, relações de trabalho estabelecidas nas

estratégias capitalistas ali materializadas, desde o controle da terra, até o domínio completo da

produção. Daí, o lugar se configura com atividades diversas, implicando no deslocamento de

forças de trabalho, alterando o espaço da produção e do consumo dos diferentes sujeitos

sociais produtores da vila de Melgaço.

29

A política pombalina eleva a aldeia dos guarycurus à categoria de Vila, em 1758 pelo então governador do

Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em uma de suas viagens de

reconhecimento da região amazônica. Consultar SANTOS, Hermógenes Furtado dos. Resumo da História do

município de Melgaço – 1653-1988. Material de circulação livre, sem publicação.

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3.3.1 Melgaço: De Vila à Cidade

A denominação desse tópico não significa que temos uma visão linear e

positivista ao estudarmos a produção do espaço urbano melgacense, ou tão somente

interpretando-o do ponto de vista econômico. Acreditamos que diante das múltiplas relações

vivenciadas pela história da cidade, o espaço geográfico vai incorporando ações territoriais,

sociais e culturais, as quais estão refletidas nas contradições do espaço da cidade.

As relações conflituosas da antiga vila, vivenciadas no território dos Guarycurus,

dinamizadas pelos projetos de colonização das formas de vida, dos saberes e outras práticas

culturais, iniciaram a produção do espaço melgacense numa relação de conflitos culturais que

marcaram as “formas” e “conteúdos” daquele espaço nos diferentes períodos que a vila

transita, até a sua efetivação como sede do município de Melgaço.

As reordenações políticas na antiga aldeia dos Guarycurus são reflexos de

projetos de exploração dos recursos amazônicos, para as indústrias de base das metrópoles

européias, em conjunto com as redefinições e alterações nas políticas estaduais. Em 1883, a

província do Pará passa a ser dividida em termos e comarcas, a vila de Melgaço foi instituída

em “cabeça do termo”, pertencendo em seu território a vila de Portel, rebaixada para freguesia

de Melgaço e parte do território da vila dos Breves (SANTOS, 1994).

Essa constituição amplia o território e atribui mudanças significativas, como a

“Era do Desenvolvimento e do Progresso”30

atraindo intensa migração de trabalhadores rurais

de outras regiões do país que desenvolveram além da extração do látex, outras atividades

econômicas no campo da agricultura e ampliaram o extrativismo vegetal para a madeira e o

palmito.

O aumento dessas atividades na vila atrai a presença de muitas pessoas de

distintas nacionalidades como comerciantes nordestinos, turcos, judeus que exportavam a

matéria prima para algumas regiões do país e do mundo. Esse período foi muito significativo

para a vila, ficando registrado na memória de alguns moradores como a do professor Gabriel

Severiano de Moura31

.

Melgaço cresceu bastante nesta época (1856-1930) (...) com a chegada dos

nordestinos, Melgaço chegou a uma fase do apogeu. Nesse espaço de tempo até a

década de 1920, a maioria de suas casas era em alvenaria, o comercio bastante

ampliado e forte, nas mãos dos judeus, portugueses, turcos e nordestinos, etc.

30

Categoria atribuída por Hermógenes Furtado dos Santos. Idem. 31

Gabriel Severiano de Moura, Documentário – Melgaço por dentro – 1770-1976, Melgaço década de 70.

Arquivo da Paróquia de Soure. In: PACHECO, Agenor Sarraf. À MARGEM DOS MARAJÓS. Op. cit. p.52.

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mantinha intercâmbio de exportação e importação com algumas capitais e também

com estrangeiros. Existia uma capitania (residência do intendente), Fórum, Cartório,

três escolas públicas, a igreja – matriz, delegacia de polícia, engenho de cana de

açúcar tangido a junta de bois, para a fabricação de açúcar mascavo, cachaça,

rapadura e mel (...) e um estaleiro para a construção de pequenas embarcações

movidas à vela e a remo, etc.

As descrições do professor Gabriel possibilitam a compreensão da produção

espacial da vila no seu apogeu. A presença dos serviços públicos (fórum, delegacia, etc.)

reflete o papel econômico e político que Melgaço exercia na região do “Marajó das

Florestas”. Como menciona Santos (1994), os “fixos” são reflexo dos “fluxos” estabelecidos

no espaço da produção, fazendo com que o aumento da produção, a circulação de capital e a

localização da sede da intendência na vila justifiquem-se com as implantações dos serviços e

suas funcionalidades no espaço geográfico de Melgaço.

Essas dinâmicas remodelaram a configuração do espaço da vila qualitativa e

quantitativamente. “A paisagem natural vai sendo substituída pela paisagem cultural e os

artefatos tomam, sobre a superfície da terra, um lugar cada vez mais amplo” (SANTOS 1994).

Por outro lado, os artefatos exógenos, representados pelos “fixos” não substituem “fluxos”

florestais e das águas que bem antes da formação da vila estavam presentes no lugar, entre

eles, a caça e a pesca, praticadas pelos Guarycurus.

Esses tempos históricos e geográficos que a Vila de Melgaço adquire com suas

funcionalidades, são reflexos do processo de internacionalização que a Amazônia e o país

estão vivenciando, através das políticas econômicas globais presentes na Amazônia que a

partir da segunda metade do século XIX, programam formas de apropriação dos recursos

naturais em diferentes lugares e regiões do Planeta.

A economia da borracha torna-se a principal dinâmica econômica de prosperidade

da Vila de Melgaço. Os migrantes passaram a desenvolver naquele espaço suas moradias,

onde deixavam suas famílias e deslocavam-se para os seringais que estavam sob o poder dos

coronéis nas margens dos rios, furos e igarapés da bacia hidrográfica melgacense. Nas terras

dos “senhores da seringa”, os melgacenses adentravam longos caminhos nas atividades de

extração do látex. Sua estada na vila restringia-se a apenas alguns dias do mês, durante a

entrega da quinzena32

. Portanto, a extração da seringa não era uma atividade praticada nas

32

A quinzena para os seringueiros era o período que eles entregavam a produção dos primeiros quinze dias ao

patrão, para serem novamente aviados com produtos de consumo básico à permanência na floresta.

Aproveitando desse tempo de produção e aviamento – ajuste de contas com o patrão – desciam os rios em

direção a vila para rever a esposa e os filhos pequenos e deixar um “rancho” para os familiares. Obtivemos

essa informação em conversas com dois moradores da cidade que vivenciaram esse período, Manoel Tavares

(2003) e Augusto Ribeiro (2014).

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vilas, por isso, ela não impacta os indicadores demográficos das vilas e das cidades da

Amazônia.

Toda a dinâmica produtiva estava centralizada nas casas aviadoras da capital

(Belém) e nos barracões dos “senhores da seringa”, as vilas se tornaram espaço com baixo

índice demográfico e a sede administrativa que estava entrelaçada aos interesses dos donos

dos seringais, sem vida econômica próspera.

A vila passa a desenvolver outra atividade, como consta nos relatos do professor

Gabriel, a presença de um engenho de cana de açúcar e as atividades agrícolas como a

plantação de mandioca, milho, feijão, além de outros produtos que garantiam o sustento das

famílias e a comercialização do excedente com antigos donos de barracões e os comerciantes

ambulantes, os regatões, que adentravam a complexa rede dendrítica levando uma variedade

de mercadorias, confecções, tecidos, medicamentos, munições, bebidas e outras variedades,

de acordo com a procura ou a encomenda dos ribeirinhos, contribuindo para um

distanciamento econômico entre a vila e as áreas rurais.

O engenho de cana de açúcar da vila era a única indústria que garantia a dinâmica

da produção, gerando, de certa forma, opção de trabalho aos moradores. Além disso, as

atividades agrícolas praticadas por trabalhadores migrantes garantiam a fonte econômica da

vila, como milho, arroz, feijão, farinha de mandioca e seus derivados, além de permitir a

realização da criação de animais, caça e a pesca permitindo certa autonomia econômica tanto

dos moradores rurais, quanto dos da vila.

Essas atividades juntamente com a produção das áreas afastadas do território da

vila eram centralizadas e controladas pelos patrões que estavam em sua maioria, localizados

nas áreas rurais e, nesse mesmo contexto controlavam a força de trabalho, considerando que

toda a extensão territorial que estava sob a jurisdição da vila, encontrava-se como

propriedades particulares dos antigos “senhores da borracha” ou de seus descendentes.

Diante desses cenários, percebemos a vila de Melgaço durante seu período áureo

sob duas categorias: primeiro um espaço que singulariza as formas produtivas do lugar a

partir das influências financeiras e culturais do capital externo, alterando e corroendo algumas

práticas preexistentes. Segundo, as “formas” e os “conteúdos” da vila, com ares de

modernidade e atraente, não baniram dos cotidianos dos ribeirinhos práticas socioculturais e

socioeconômicas, assim como as formas de morar e interpretar o mundo a partir dos códigos

da cultura oral.

Essas relações socioespaciais constituem na vila, o espaço de moradia do

intendente, mas também, de famílias dos agricultores descendentes dos nativos e de africanos

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que vieram por fugas ou como mão de obra escrava e se territorializaram nas terras

marajoaras, onde passaram a ensinar e aprender formas de moradias, de trabalhos e relações

com a natureza.

O espaço da vila vai se reproduzindo numa correlação de forças entre sujeitos

sociais diversos e de matrizes culturais distintas que passaram a se estabelecer naquele lugar e

materializar em outros territórios, intenso processo, que foram paulatinamente,

reconfigurando as dinâmicas espaciais da vila.

Com a desvalorização da borracha no mercado consumidor externo, causado pela

concorrência com a Ásia, a Amazônia passa por forte retração econômica e a vila de Melgaço

foi atingida diretamente pela decadência da economia gomífera, chegando praticamente a

“desaparecer do mapa”33

. Além dessa crise, os anos de 1930 aprofundam-se no país uma

grande crise política que atingiu todo o território nacional que associada a crise econômica,

constituíram em elementos decisivos, para a vila de Melgaço, ser rebaixada à categoria de

Intendência para Inspetoria34

da vila dos Breves, inicialmente, e depois de Portel.

Com a anexação ao território dos Breves, a vila de Melgaço, perdeu sua

autonomia política passando a ser administrada por pessoas ligadas a administração de outros

municípios. Nesse período, além da perda política, ocorreram sucessivas perdas territoriais e

econômicas devido as constantes anexações entre Breves e Portel35

.

Com o rebaixamento da Intendência para Inspetoria, a freguesia de Portel é

elevada à categoria de Cabeça de Comarca e, em 1932, Melgaço passou a ser anexado a

Portel. Nessas transições, Breves se apropria da Ilha de Nazaré, onde estava concentrada

intensa produção de madeira e palmito, somando aos cofres brevenses significativos

honorários em impostos e ampliação do território político daquele município, pelo número

significativo de trabalhadores que habitavam, principalmente, na vila de Antônio Lemos. A

Ilha de Nazaré, atualmente é um distrito de Breves, denominado de Antônio Lemos, mas a

forte produção de madeira e palmito entrou em decadência, sendo possível visualizar apenas

as ruínas dos galpões das indústrias e a memória de alguns moradores que resistem à crise que

a vila vivencia, assim como o abandono político da municipalidade brevense.

33

Expressão utilizada por muitos moradores melgacense que demonstrava a profunda crise que a vila passara em

função da retração econômica que a Amazônia vivenciou. 34

A denominação Inspetoria era uma espécie de Posto Fiscal da intendência. Segundo alguns relatos de

moradores antigos, Melgaço nessa época, tinha dimensão espacial maior que a vila dos Breves. 35

Nesse período Melgaço perdeu a Ilha de Nazaré para Breves, igarapé Marajoí até o rio Areias para Gurupá e as

Ilhas de Pacoval e Santa Rosa para Portel. PACHECO, Agenor Sarraf. À MARGEM DOS “MARAJÓS”.

Op. cit. p. 65.

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Essa geopolítica vivenciada pelo território melgacense, a partir da década de 1930,

está configurada nas atuais fronteiras territoriais do município, como mostra o mapa 3 de

localização geográfica de Melgaço no Marajó.

Mapa 3 - Localização do Município de Melgaço na Mesorregião do Marajó.

Fonte: EMATER-PA. 2014.

A configuração do Município de Melgaço, seus limites físicos, suas fronteiras

territoriais, refletem os conflituosos séculos de sua história e o resultado de uma geopolítica

em que foi submetido nas primeiras décadas do século XX, conduzida pela submissão dos

municípios de Breves e Portel e as seqüentes perdas territoriais, inclusive para os municípios

de Gurupá, Breves e Portel. O encolhimento da légua territorial do município aconteceu

próximo às cidades dos três maiores adversários daquela “briga” em que Melgaço foi

submetida.

A área anexada a Gurupá continua sob o domínio daquele município, assim como,

o distrito de Areais, território melgacense, por estar mais próxima de Gurupá e fisicamente

mais distante da cidade de Melgaço, está muito mais contemplado por políticas de educação e

pronto atendimento de saúde da municipalidade gurupaense do que dos melgacenses. Quanto

às ilhas do Pacoval e da Santa Rosa, os moradores mantiveram relações políticas e

econômicas muito mais com a cidade de Melgaço do que Portel.

Voltando aos períodos de 1930 a 1942/48, representam para Melgaço o

retrocesso. Pacheco considera que o ano de 1930, na memória dos moradores, está presente

como um divisor dos tempos de desenvolvimento, marcado na história de construção e

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produção das dinâmicas estabelecidas na vila e da crise, marcada pelo abandono e destruição

de prédios, casas, ruas, edificações que impossibilitavam aquele território a continuar sua

supremacia política e econômica diante das vilas circunvizinhas.

Entre os muitos relatos trabalhados por Pacheco (2006, op. cit.) extraídos do

caderno de memórias de Mamede, um deles traz, na perspectiva geográfica, a produção do

espaço da vila no ano de 1930. Assim vejamos:

A vila em condições precárias serradas as ruas sem iluminação que era feito a

querosene e lampiões o funcionalismo em atraso com os pagamentos, ninguém mais

queria pagar os impostos e enfim, a lavoura caída e já não produzindo quase nada.36

A decadência econômica visível no espaço e o descaso com o lugar torna-se o

preço que a vila está valendo, a importância econômica e política que ela tem no “novo”

cenário em que está inserida. A estagnação econômica causada pela desvalorização da

borracha no mercado internacional reflete diretamente no cenário melgacense, onde a

prosperidade pretérita ficou nas saudosas lembranças daqueles e aquelas que viram o apogeu e

assistiram a decadência, como relata uma moradora que fez essa travessia.

Melgaço era um aturiazal medonho, traça, traça, nessa cidade que não se podia

quase entrar numa canoa. Num tinha um comercio, num tinha nada. Só era tristeza

mesmo, os moradores era, família Mamede e família de Nogueira. Isso aqui, as ruas

só era essas duas.37

Esses relatos permitem alcançar ideias que traduzem Melgaço em seu tempo de

vila desenvolvida, com número expressivo de moradores. Com o fracasso da economia da

borracha, juntamente com a perda da autonomia política, as famílias passaram a se deslocar

em busca de outras frentes de trabalho, normalmente, fazendo o percurso de volta aos espaços

rurais, vinculando-se aos domínios dos grandes latifundiários da borracha que desta vez

estavam produzindo arroz e iniciando a extração de madeiras para fornecimento das indústrias

do ramo que estavam sendo instaladas na região.

As migrações internas apontam um verdadeiro vazio demográfico na vila, relatado

pela moradora, resistindo toda a crise somente duas famílias, somando aproximadamente doze

pessoas, entre adultos e crianças. Essas famílias deram continuidade nas atividades que

faziam em tempos de prosperidade, fazendo roças para o cultivo de mandioca e produção de

farinha e algumas pequenas experiências de milho, feijão, café, cana de açúcar, apenas para

consumo familiar e, a alimentação ficava mantida com a domesticação de animais (pato,

galinha, porcos, etc.), caça e pesca. Essa relação com os rios e a floresta, durante os dias da

36

Depoimento coletado por PACHECO, Agenor Sarraf. À MARGEM DOS MARAJÓS. Op. cit. p. 70. 37

Idem p. 84.

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semana, Melgaço, praticamente, ficava vazia, pois as famílias passavam o dia todo nas

“cozinhas de fornos”38

.

Daí inicia-se uma série de saques aos prédios públicos e nos bens patrimoniais

que restavam na vila. Segundo os moradores mais antigos, os saqueadores eram viajantes e

principalmente mandados dos governos da vila dos Breves da qual Melgaço fora anexada.

Com isso, a vila caminha para outros rumos. Atrasada, abandonada, sendo visitado apenas no

mês de setembro pelos festejos de São Miguel Arcanjo, seu Padroeiro, aonde os romeiros

vinham pagar suas promessas ao santo, reatando laços de sua religiosidade.

Com o segundo período da economia gomífera na Amazônia, no auge da Segunda

Guerra Mundial, a vila de Melgaço retoma suas dinâmicas econômicas de outrora, voltando a

ser foco de migração de trabalhadores de outras regiões do Estado e de municípios

marajoaras. Com o fim da Grande Guerra, essa atividade desvalorizou-se nos centros

consumidores europeus e Norte-americanos e, a população não tendo muita opção de

sobrevivência nos seringais, muitas famílias retomam suas casas e seus centros que tinham

deixados na vila, reiniciando a produção de atividades agrícolas com destaque para a

produção da farinha de mandioca, dando novo impulso econômico e político ao local39

.

Os ribeirinhos que migraram para a vila, além de praticarem as atividades

agrícolas, buscaram uma melhor condição de vida para suas famílias, iniciando a reconstrução

das ruas que estavam quase desaparecendo com muito mato por terem ficado muitos meses

abandonadas. A frente da vila encontrava-se muito cerrada, chegando a abafar o porto e, os

moradores transformaram o mato em estivas, pontes, que pudessem lhes garantir acesso as

negociações/trocas empreendidas com os “regatões” que ancoravam suas embarcações nas

vegetações da beira do rio e praticarem o marisco de peixes e a extração da madeira e palmito

nos rios próximos à vila.

Entre esses moradores que decidiram reconstruir a vila como espaço de suas

moradias, retomando a identidade com o lugar e a religiosidade com o padroeiro São Miguel

Arcanjo, praticaram a agricultura de subsistência, a pesca artesanal, a caça e esperar na

retomada do crescimento a partir de um milagre do santo, no entanto, outros sujeitos

perceberam que a autonomia política da vila seria mais viável com a aproximação das

autoridades estaduais, já que os critérios para a criação das municipalidades, em meados do

38

Cozinha de forno é uma casa coberta, normalmente com palha de palmeira típica da região, denominada

popularmente de bussu, com piso de terra batida, contendo, normalmente, um forno para torrar a farinha, uma

tarisca movida a energia humana para triturar a mandioca e um espremedor de massa. 39

Idem, Ibidem, p. 97.

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século XX, dependiam de aprovação nas Assembléias Legislativas dos Estados40

. Dialogando

com Pacheco, na memória dos moradores mais antigos que viveram os períodos de abandono

da vila, estão vivas as mágoas e o rancor pelos brevenses, acreditando que foram eles os

principais saqueadores da vila. Por isso, emancipar seria uma questão de honra para os

melgacenses41

.

O ano de 1961 retrata para os moradores o antigo sonho, de ser uma cidade

próspera como em outrora. As expectativas eram tantas para os habitantes que acreditavam

ser a falta de competência política dos intendentes, as causas para a vila perder sua autonomia

política para Breves e Portel. Neste sentimento, a emancipação significava o retorno ao viver

próspero.

A emancipação de Melgaço42

era defendida pelos seus defensores junto às

autoridades políticas estaduais justificadas pela produção local (agricultura e extrativismo

vegetal) e o número de habitantes que no ano de 1960, era de 5.25343

pessoas, desse total, 350

estavam residindo na vila44

. Nesse sentido, a dinâmica produtiva estava fundamentada no

extrativismo vegetal e na agricultura familiar, contribuindo tanto para calçar o projeto de

emancipação, quanto para mostrar as singularidades de um município que nasce para o

cenário nacional, com uma população inserida em modos de viver, trabalhar e festejar,

extremamente rural.

3.3.2 As primeiras décadas da “Cidade-Floresta” (1961 a 1980)

A cidade de Melgaço, diante do contexto de emancipação política, inicia a

reconstituição de aproximadamente duas décadas de retrocessos econômicos, políticos e

40

Em 1954, o governador do Estado do Pará, divide o município de Portel em três municípios (Portel, Melgaço e

São João do Acangatá), todavia, outras forças políticas do Estado não concordando, entram com pedido de

anulação da divisão no Supremo Tribunal Federal. Foi nomeado para o Município de Melgaço Floriano Pinto

Gonçalves até as eleições municipais de três de outubro do mesmo ano. Próximo às eleições, o STF atendeu o

pedido de anulação, mesmo assim, houve as eleições com dia e hora prevista, porém foram contados apenas os

votos para governador, sendo eleito nesse pleito o General Joaquim Cardoso de Magalhães Barata. 41

PACHECO em Dissertação de Mestrado, no capítulo I, Memórias em tempos de prosperidade e penúria,

aprofunda essa questão. Op. cit. 47-114. 42

A luta pela emancipação foi um processo demorado, somente em 1959, foi encaminhado pelo Deputado

Estadual e Vice-Governador, Newton Miranda, projeto de criação de vários municípios do baixo-amazonas e

nesse projeto estava o de Melgaço, publicado no Diário Oficial em 30 de dezembro de 1961, através da Lei nº

2460/61. 43

Fonte: IBGE, Senso Demográfico realizado em 1960. 44

Em campanha política pela região marajoara, Magalhães Barata havia prometido apoiar a criação de novos

municípios que tivessem condições de sobrevivência. Assim que foi eleito, passou a ser procurado por algumas

pessoas interessadas na criação do município de Melgaço que em campanha foram seus correligionários

políticos, entre eles, Hermógenes Furtado dos Santos, que se tornou influente na história política de Melgaço.

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sociais. As duas únicas ruas herdadas da vila começam a ser reproduzidas por ribeirinhos que

migraram para a vila e iniciaram a recuperação e ampliação do espaço preexistente, abrindo

caminhos, clareiras na floresta que levavam até suas residências.

Manoel Tavares foi um desses ribeirinhos que migrou para a cidade de Melgaço e

descreve a vida na recém-criada municipalidade, a partir do ano de 1967 quando chegou por

lá com a esposa e alguns filhos.

A cidade era muito fraca, tinha apenas dois comércios, um do Sr. Francisco Leite,

conhecido como “Piteira” e o outro era do Sr. Raimundo Gonzaga, todos dois na rua

da frente (atual Avenida Senador Lemos). Nessa mesma rua tinha um posto médico,

trabalhava nele o farmacêutico Osvaldo Miranda. Esse homem era um excelente

profissional que dá de dez em muitos desses doutores que tem por aí. Ele cuidava de

malária e anemia, era as doenças que mais afetava a população. Mas na frente tinha

uma escola, onde hoje é Câmara dos Vereadores, nessa escola tinha duas salas de

aula e trabalhava com quatro professoras, não tinha muito aluno. Nessa época

morava poucas pessoas em Melgaço, se fosse conferir não dava cinquenta casas.

Essa rua da frente que hoje é a Senador Lemos chegava até aqui na igreja e onde

hoje é aquela praça em frente o mercado. A rua de trás era somente de casas de

moradores, tinha parage que não dava quase pra nós passar, era só um caminho!

Vinha dali de onde é a delegacia e chegava até aqui no canto do hospital. Assim que

era a cidade, as casas eram todas coberta de palha, não tinha casas bonitas45

.

Manoel Tavares ao relembrar como era o espaço da cidade com suas ruas, prédios,

moradores, doenças, faz uma descrição da vida administrativa e o acesso aos serviços que a

municipalidade oferece aos ribeirinhos na década de 1960. Essas memórias nos levam ao

percurso de uma cidade emancipada politicamente, que muito pouco tinha para oferecer aos

seus munícipes e, o enfrentamento com as lideranças políticas de Breves e Portel sinalizava o

longo caminho que teria a percorrer sem ajuda de suas vizinhas.

A façanha dos melgacenses em lutar por uma cidade politicamente autônoma e

sonhando que lá estaria o desenvolvimento econômico de outrora, foram sendo aos poucos

silenciados pelos desafios que a sociedade não conseguia vencer e superá-los.

Esses avanços e recuos, a depredação do patrimônio arquitetônico e histórico,

causado pelo abandono dos moradores durante a decadência da vila, foi à principal herança

que a cidade adquiriu e, a justificativa apresentada aos políticos estaduais para criar a

municipalidade não oferecia nenhuma condição real do município construir sua estrutura

administrativa, nem garantir a sobrevivência econômica. A agricultura de subsistência e

familiar, não era suficiente para o governo municipal programar política fiscal aos pequenos e

pobres produtores de farinha da cidade.

45

Entrevista realizada na residência do morador Manoel Tavares, popularmente conhecido como “Tavares”, no

ano de 2003, quando estivemos procurando impressões da cidade para realização da Monografia de conclusão

de curso de Geografia, apresentado na Universidade Federal do Pará em 2004.

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Observamos na narrativa de Manoel Tavares a descrição do viver em Melgaço; a

cidade emerge num cenário muito mais desafiador que o período de vila, apresentado nos

escritos do professor Gabriel; o abandono por décadas daquele lugar, é o retrato da

contradição sociopolítica que a internacionalização da borracha fez com núcleos

populacionais daquela “Amazônia Marajoara”.

Essas memórias significam para muitos daqueles moradores que os períodos

anteriores ao de cidade foram melhores. Como de práxis, nas populações que vivem de

tradições orais, amparam-se nas crenças e nos mitos para explicar a decadência da vila assim

como as condições difíceis que vivenciavam nos primeiros anos da cidade. Para os devotos de

São Miguel Arcanjo que presenciaram a decadência, explicam que “a vila só decaiu devido o

santo em suas caminhadas pelas ruas, ter olhado para trás”, esse “olhar”, trouxe para os

melgacenses o castigo, a perda, a pena sofrida por mais de vinte anos de abandono e

retrocesso em todos os aspectos46

.

Diante desse contexto complexo, a vila de Melgaço é elevada à categoria de

cidade, com estrutura política e econômica bem diferenciada dos anos anteriores. A existência

de duas pequenas ruas que mais se pareciam com trilhas ou caminhos, por conta da

inexistência de veículos motorizados de qualquer espécie, típico de uma cidade que

apresentava baixa densidade demográfica, revela como aconteceu a emancipação política

atribuída no ano de 1961. Uma emancipação que brotou, a partir de interesses partidários, que

foram travados ao longo do tempo entre os grupos locais e os grupos estaduais.

Para muitos, essa autonomia seria a busca pela vida plena, o orgulho de ter a

cidade de outrora, principalmente, para aqueles que conseguiram superar o período de penúria

e abandono da vila. Para outros, a autonomia política seria uma alternativa econômica para a

família e uma maneira de se promoverem aos cargos eletivos, ou estar inseridos no grupo que

formava a administração direta municipal.

A fragilidade estrutural era o maior desafio que a “nova” sede municipal

marajoara vivenciava; a cidade não tinha energia elétrica, saneamento básico e,

principalmente, casas comerciais que pudesse atender a população local. Os moradores

deslocavam-se de casco movidos a remo até as cidades de Portel ou Breves e outros, iam às

casas comerciais que estavam localizadas nas áreas rurais, realizarem as compras de quinze

em quinze dias ou esperavam os regatões chegarem à cidade para adquirirem algumas

46

PACHECO, trabalhando esse imaginário a partir da perspectiva antrópica, remete-nos para outros ângulos de

interpretação. Ver sua dissertação, especialmente o tópico SINAIS DA MEMÓRIA: São Miguel Arcanjo e o

prenúncio das histórias de Melgaço. Op. cit. p. 109-114.

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mercadorias básicas do cotidiano familiar. Manoel Tavares descreve a presença de dois

pequenos estabelecimentos comerciais, que não tinham condições de garantir o fornecimento

básico da população melgacense.

O enfraquecimento da cidade é visível nas narrativas dos moradores que

vivenciaram aquele espaço nos anos de 1960, 70 e 80. Essas memórias nos remetem a tempos

históricos, mas, principalmente, geográficos que filmam cotidianos rurais num espaço que é

urbano somente por sediar os poderes executivos e legislativos. As práticas produtivas, sociais

e culturais estavam firmadas em territórios rurais que se diluíam em todas as dimensões da

vida dos moradores. Melgaço é uma cidade que emerge das entranhas das ruralidades e, o

urbano nas primeiras décadas daquela cidade era praticamente inexistente.

Nesse caminho de interpretação, a reprodução do espaço vai sendo aos poucos

frutos das diversas relações sociais praticadas pelos múltiplos sujeitos que dinamizavam o

lugar, entre eles, estavam os ribeirinhos, migrantes com práticas de trabalhos e outros modos

de vida firmados nas oralidades de seus tempos e espaços e de outros marajoaras, que foram

se firmando ao poder político e econômico municipal. Em outras palavras, a cidade é

produzida para a moradia e a sede da administração, ou seja, emergindo outro conceito de

cidade no cenário amazônico que atualmente exige das ciências sociais, métodos que possam

nos levar a outras interpretações do urbano marajoara. Esses significados estão muito latentes

nos moradores, as razões que entrelaçam campo e cidade (re)significam o pensar e o ser

urbano no Marajó.

No ano em que eu com a minha velha e nossos filhos chegamos aqui, a população

vivia somente da agricultura, da produção de farinha, nós só viemos para cá por

causa de doença. Tivemos que buscar um recurso, mas nós passamos muita

dificuldade. Nessa época, já tinha energia elétrica na cidade, isso foi no ano em que

o Neca nasceu (1967), mas era muito fraca, apagava muito cedo e tinha dia que não

tinha luz, às vezes passava de semanas para ter luz na cidade, a prefeitura não dava

conta de comprar o óleo e o motor era muito fraco. Os postes eram todos de madeira

e muito baixo, um homem em pé pegava nos fios e a luz não chegava em todas as

casas, era mais nas casas da rua da frente, nessa época o prefeito era o Amorim47

.

O ano de 1967, o município de Melgaço continha 5.253 habitantes e, na cidade,

estavam habitando exatamente 300 pessoas48

. Esse quantitativo demográfico se distribui tanto

nos espaços rurais quanto na cidade de maneira dispersa nos territórios, corroborando com as

características de ocupação do espaço amazônico. O quantitativo demográfico com maior

concentração nos espaços rurais justifica-se pelas existências de populações que nasceram,

47

Entrevista realizada com Manoel Tavares no ano de 2003 em razão da pesquisa de campo para elaboração da

monografia do curso de licenciatura em Geografia. 48

Fonte IBGE, senso demográfico 1960.

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cresceram e foram educadas aos valores do universo ribeirinho e florestal. A maioria das

famílias vinha na cidade participar dos festejos do padroeiro, ou por razões de doença.

Contudo, as famílias que residiam na cidade, mantinham fortes vínculos familiares e

econômicos com os espaços rurais, a maioria dos moradores não tinha vida econômica na

cidade.

3.4 A CIDADE NO FOCO DA PESQUISA

Neste tópico far-se-á uma apresentação da cidade de Melgaço em dois momentos,

no primeiro, discute-se a cidade a partir das características e traços urbanos que,

historicamente, se posicionam na definição conceitual da tipologia espacial da mesma. Em

seguida, embarca-se na história da construção do espaço melgacenses, identificando os

“resíduos” das ruralidades que desde a década de 1960 vieram configurando e caracterizando

na condição de cidade.

Partindo desta proposta, é oportuno apresentar os “fixos” e “fluxos” espaciais que

caracterizam o urbano melgacense. O espaço urbano aqui entendido como cidade e ao mesmo

tempo expressão das relações sociais, travadas historicamente entre os sujeitos modeladores

dessa condição espacial, está constituído por uma morfologia espacial própria da dinâmica

urbana que não podemos negar sua existência e importância para discutir e entender a cidade

e a relação que ela estabelece com o lugar e as pessoas.

3.4.1 A caracterização do urbano melgacense

A malha espacial da cidade de Melgaço é a típica representação da identidade

amazônica, caracterizada no cenário marajoara pela hierarquia urbana nacional como uma

cidade de pequeno porte, fundamentada pela inexpressividade de seu contingente

populacional e econômico.

Diante deste cenário amazônico, ribeirinho se configura um processo de produção

espacial que desde a década de 1960 vem se configurando como cidade. Segundo as

definições de Corrêa (1995), a forma mais objetiva de identificar uma condição espacial e

caracterizar como urbana é pelos diferentes usos da terra justaposta entre si. São nessas

práticas de produção e consumo do espaço, que a cidade vai se desenhando de acordo com os

interesses e necessidades dos diferentes sujeitos que a produz e, tais ações se encarregam de

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definir o espaço em: centro, caracterizado pela concentração de atividades comerciais, de

serviços e gestão; áreas industriais e residenciais, que se distinguem pelas formas e conteúdos

sociais; áreas de lazer; reservas para futura expansão. Esse conjunto de ações que produzem o

espaço da cidade é o que caracteriza como um espaço articulado e fragmentado. Nesse

sentido, se percebe que o espaço urbano é a expressão das relações sociais, políticas,

econômicas e culturais dos sujeitos que o produzem.

A partir dessa definição, Corrêa (op. cit. 1995) identifica cinco principais “agentes

sociais que fazem e refazem a cidade: a) os proprietários dos meios de produção; b) os

proprietários fundiários; c) os promotores imobiliários; d) o Estado e; e) os grupos sociais

excluídos.”

A pesquisa “geoetnográfica” identificou na configuração espacial da cidade de

Melgaço uma área central definida, constituída por serviços bancários (públicos e privado),

comércios (supermercados, lojas de confecções, farmácias, pequenas mercearias, bares, casas

noturnas e hotéis) e, serviços da gestão pública, entre eles, segurança, poder judiciário, sede

do executivo, do legislativo e sindicato dos trabalhadores rurais. No entanto, vale ressaltar que

essa área é constituída, também, por residências tanto dos proprietários dos estabelecimentos

comerciais, quanto por agricultores, pescadores, desempregados e trabalhadores informais.

Além dessas características é a área com maior fragmentação espacial que ocasiona a

verticalização das edificações.

Como já foi mencionada, a área comercial e de serviços é também o principal

espaço de lazer da cidade, nas ruas mais antigas, principalmente na rua da frente (Av. Senador

Lemos) e na rua de trás (Rua 12 de outubro) estão concentrado o maior número de bares e

lanchonetes que durante a noite, a área comercial se transforma em “ponto de encontro” de

jovens e outras pessoas de todas as áreas da cidade e, nos finais de semana inclusive a

população evangélica vão para frente da cidade, passear em meio às confusas sonoridades

emitidas pelos sons dos bares. Nesta área realizam-se todas as festas populares do calendário

cultural do município, entre elas, destaca-se o carnaval, festival de verão, desfile cívico da

semana da pátria, comemoração do aniversário do município e a transição de ano.

Identificou-se uma área central em formação, sem estrangulamento para o

entorno. Todas as classes sociais da cidade convergem para aquela franja espacial

cotidianamente em busca dos serviços de gestão pública, comércio e lazer. O entorno deste

centro caracteriza-se por uma forte presença residencial com alguns resíduos comerciais

financiados pelas casas comerciais do centro. Quanto às atividades industriais identificaram-

se duas beneficiadoras de madeira, atendendo o mercado local e consumindo pouca mão de

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obra. Além dessas atividades estão em funcionamento duas fábricas de móveis em madeira

regional, produzindo por encomenda para os moradores da cidade. Nessas fábricas o consumo

de mão de obra é muito menor do que nas beneficiadoras. As movelarias funcionam

basicamente com o proprietário que produz suas mercadorias de maneira artesanal, com

pouco auxílio de máquinas e pessoas.

Outra característica do urbano melgacense é o aumento do trabalho informal, de

maneira mais visível na área central. O crescimento populacional, das últimas décadas,

ocasionou na cidade algumas alterações nas formas de produzir e consumir o espaço da

cidade. Identificaram-se moradores urbanos que tiveram toda a sua vida na produção da

farinha de mandioca que ao chegarem a idades avançadas abandonaram seus antigos “centro”

e para complementar a renda familiar, vendem bombons durante a noite na “rua da frente”.

Um desses moradores é Walter Nogueira que complementa a renda de uma aposentadoria de

um salário mínimo com a venda de bombons, coxinha, chope e cigarro, na Av. Senador

Lemos nos finais de semana.

Sou morador há muitos anos dessa cidade, já vi muita coisa boa e ruim aqui, mas,

não pretendo sair daqui. Antigamente o morador de Melgaço tinha como trabalho a

lavoura ou madeira e o palmito, então eu foi um desses moradores que não tinha

escolha sempre sustentei minha família com as atividades da roça e da caça. Com o

passar do tempo, fiquei velho e me aposentei como funcionário há muitos anos da

prefeitura, mas essa renda não dar é apenas um salário, ir pra roça não é mais

negócio, nossa agricultura está falida os governantes não olharam para essa

atividade, então hoje venho pra cá dois, três dias na semana fazer a minha venda e

assim eu vou defendendo. Aqui a gente vende a coxinha, o choop, o cigarro e o

bombons.

A informação de Walter Nogueira e outros moradores nos confirmam a tese, que

as formas de produção e consumo do espaço da cidade de Melgaço estão sendo alteradas

significativamente, nos tempos hodiernos. Esses feitos colocam em discussão, as práticas

melgacenses para sobreviver no espaço de uma cidade com pouca expressividade produtiva,

no campo da indústria e a desarticulação que os modos de produção agrícola estão sofrendo

diante das históricas fragilidades políticas dessa área e, entre essa encruzilhada emergem o

campo econômico da informalidade, através de atividades como carreteiros, banqueiros de

bombons, vendedores ambulantes, como tempo de mediação entre a produção global e a não

global.

Esses grupos excluídos, fundamentado por Corrêa (op. cit. 1995) como um dos

sujeitos sociais que produzem o espaço urbano periférico estão, ao mesmo tempo,

consumindo e reconfigurando as áreas centrais tanto dos grandes centros quanto das pequenas

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cidades marajoaras. Em meio a economia formal dos bares, lojas e comércios estão outros

trabalhadores nos arredores dos “fixos” econômicos, disputando espaço e tempo dos dias e

noites do consumo melgacense. Portanto, a cidade de Melgaço se caracteriza em uma área

central mista entre residências e as atividades comerciais e de serviços e, outra, com alguns

resíduos comerciais e serviços, mas que se configura pela predominância de ocupação

residencial.

3.4.2 As dinâmicas de produção da cidade

O fato de termos uma população predominantemente rural e reduzida a

diversidade econômica voltada ao espaço urbano, sinaliza um espaço que segue as dinâmicas

rurais ao longo de sua história, produzido por sujeitos que tem como prática espacial a

oralidade, os modos de vidas florestais e das águas, relações de vizinhança e ajuda mútua.

Esses indicadores assumem o papel de fio condutor deste trabalho, sem perder de vista que a

vida rural, assim como a urbana, constitui por uma série de desafios vivenciados e externados

pelos moradores através dos desencantos, frustrações e sentimento que historicamente vieram

vivenciando ao longo de suas trajetórias. Entre elas estão: a ausência de serviços básicos e

essenciais de educação e saúde, crises de farinha, conflitos familiares e declínios dos modelos

de produção: madeira e palmito.

Esses percursos traçados por homens e mulheres marajoaras em direção a cidade

de Melgaço e o processo de (re)territorialização sociocultural que vieram historicamente

singularizando a produção espacial da cidade, não representa somente uma mobilidade

populacional e um inchaço demográfico urbano, assumem caráter espacial muito mais

complexo. Essas complexidades motivam a construção de uma etnografia sobre o espaço da

cidade de Melgaço, caçando rastros dos sujeitos através de narrativas e histórias de vidas

fisgadas no urbano melgacense.

Segundo os moradores que chegaram a Melgaço, nas décadas de 1960 e 1970,

“Melgaço era cidade só de nome, mas o trabalho era igualzinho no interior, por isso, não tinha

diferença nenhuma do interior, tinha muita terra pra trabalhar e morar, além de outras coisas

que a gente fazia no interior que também fazia aqui, como até hoje é assim...”49

.

Essas formas de vidas rurais reproduzem o espaço da antiga vila em cidade,

genuinamente ribeirinha e rural, durante as primeiras décadas de sua emancipação. Tornando-

49

Trecho da fala do marajoara Francisco da Silva, pesquisa realizada em 2014.

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se o espaço da moradia e da cidade política, dinamizada por migrantes ribeirinhos que a

procuravam, em busca de serviços básicos que garantissem sua cidadania que, segundo Santos

(1993), “esse homem do campo é menos titular de direitos que a maioria dos homens da

cidade, já que os serviços públicos essenciais lhes são negados sob a desculpa da carência de

recursos para lhe fazer chegar saúde e educação” (SANTOS, 1993. p. 93), como retrata a

fotografia 1, da Escola Bertoldo Nunes, localizada na “rua da frente” da nascente cidade de

Melgaço em 1968.

Fotografia 1 - Escola Estadual Bertoldo Nunes, localizada na Rua da Frente - 1968

Fonte: Publicada em rede social de Marta Garcia de Araújo, 2014.

A citação de Santos e a fotografia comprovam as narrativas dos moradores sobre

os serviços públicos de educação e saúde na recém-cidade de Melgaço. A escola Bertoldo

Nunes, localizada na popular “Rua da frente”, atualmente, denominada Avenida Senador

Lemos. Na década de 1960, sete anos após a emancipação política da “cidade-vila”50

, por

conta da baixa densidade demográfica, a “Rua da frente” era o espaço onde estava sendo

implantados os serviços de educação e saúde da cidade. Não havia nenhum sinal de

segregação espacial, onde a vida predominava exatamente como nas margens de rios, furos e

igarapés, passando a ser configurada pelas dinâmicas das populações que buscavam na cidade

o direito à “cidadania mínima”.

50

O conceito de “cidade-vila”, refere-se as formas de vidas que fazem o cotidiano das pequenas cidades

amazônicas, como, relações interpessoais, ajuda mutua, etc. cunhada em 2004, por BAIA, Hélio Pena. A

cidade no tempo, o tempo da cidade: elementos para uma compreensão histórica e geográfica da cidade

de Melgaço-PA.

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Para alguns moradores, a maior dificuldade que a cidade enfrentava para crescer

nos últimos anos da década de 1960, justificava-se pelo fato do prefeito ser comerciante.

Manoel Tavares, é um desses moradores que diz, “chegava período do mês que não se via a

cara do prefeito, podia ir lá no Tajapurú que ele estava lá, bem no seu comércio”. Os

moradores viam ainda na primeira década de emancipação política da cidade, o sonho de

recuperar o desenvolvimento econômico de outrora, cada vez mais distante. O abandono,

levantado com muita angústia na narrativa do morador, caracteriza o adjetivo atribuído nesse

trabalho como um espaço que tem desde suas origens, presença marcante das ruralidades, nos

fazendo chamar para as primeiras décadas da sua emancipação, como “Cidade-Vila”.

Além disso, percebe-se que as dinâmicas espaciais da “cidade-vila”, são reflexos

do modelo de produção capitalista desenvolvido no município e as formas de negociação dos

moradores. O ano de 1967 é o marco de implantação das primeiras madeireiras e fábricas de

palmito no Marajó, especificamente, na microrregião dos “furos de Breves”, uma das maiores.

Essas atividades concentraram suas indústrias nas sedes dos municípios de Breves e Portel,

além de outras dezenas de indústrias madeireiras e palmiteiras que foram instaladas nos

principais rios dos territórios de Breves, Portel e Melgaço.

A cidade de Melgaço não sediou madeireiras, constam na histórica econômica da

cidade a existência de duas fábricas de palmitos das empresas “Diana Paulicci” e “Caiçara” e

posteriormente a estas, na década de 1980, foi implantada próximo a Igreja católica outra

fábrica denominada como “Palpará” que ao longo da sua história foi recebendo outras

identidades. As cidades de Breves e Portel sediaram as maiores indústrias, tanto de palmito,

quanto de madeira, ambas de capital nacional e internacional. Essas indústrias contribuíram

para a dinâmica populacional e financeira, muito maior do que a vizinha Melgaço. Como

consequência dessa localização industrial, as cidades de Breves e Portel ampliam sua malha

espacial urbana e incorporaram maior pluralidade de serviços e comércios, quanto os

melgacenses passaram décadas de lento crescimento populacional e forte dependência

econômica dos brevenses.

A memória dos moradores daquela época (1967-8) relembra uma cidade pobre

que não consegue competir com as circunvizinhas, assistia as mesmas crescerem e ao mesmo

tempo ficava cada vez mais dependente da cidade de Breves. Nessa trajetória alguns

depoimentos tornam-se importantes para conhecermos a vida da “cidade-vila”.

Depois que o Amorim (Prefeito) começou a trabalhar, começaram vim pra cá muitas

pessoas. Essas pessoas eram a maioria do interior devido a crise da farinha que era

muito grande na berada, então eles vinham para Melgaço trabalhar na lavoura e

muitos deles trabalhavam na lavoura e na prefeitura. Quando essas pessoas vieram

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começara a fazer suas casas todas desordenadas pelo meio do mato e nisso foram

surgindo outras ruas, foi quando o Amorim mandou abrir essa 31 de março e a

Marechal, mas todas elas eram caminhos, não tinham esse tamanho que tem hoje e

também não morava toda essa quantidade de pessoas de hoje.51

A memória da moradora, agricultora, negra, com 67 anos de idade, atualmente

aposentada pelo INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) adquirida pelo sindicato dos

trabalhadores rurais sediado na cidade de Melgaço, reconstitui as formas espaciais da cidade

na década de 1960, além disso, a narrativa apresenta uma cidade que é cartografada pelas

formas culturais ribeirinhas, pois a racionalidade urbana foi dominada pelos códigos e

significados do viver ribeirinho e florestal.

A abertura das ruas colocada pela moradora deixa alguns indicadores que

reforçam o conceito espacial “rurbano” do sociólogo Gilberto Freyre, a se constituir como

categoria metodológica de entendimento do espaço geográfico da cidade de Melgaço. Aqueles

migrantes tecem nas formas espaciais da cidade, suas culturas rurais ribeirinhas, constituindo

em espaços que não são puramente urbanos nem rurais, reestruturando formas da cidade a

partir de suas “cartografias moventes” (MARTÍN-BARBERO, 2003), traçadas entre ruas e

florestas, espaços tecidos por diversas práticas socioculturais que nos possibilitam pensarmos

a “urbanodiversidade” (TRINDADE Jr., 2010), a partir das cidades marajoaras.

Nesse contexto está a cidade de Melgaço, com características de vila, até final da

década de 1980 e início dos anos de 1990. Após esse período, outros rumos são dados a

cidade, principalmente pela produção de diferentes classes sociais, visibilidades de algumas

áreas que apresentam segregação espacial, configuração de um centro comercial e de serviços

e um recente espraiamento da malha espacial urbana com precárias condições estruturais,

produzidas por comunidades ribeirinhas que fazem do perímetro urbano em espaços

“rurbanos”.

3.4.3 A dinâmica espacial da “Cidade-Floresta” nas décadas (1990 a 2010)

A reprodução socioespacial da cidade de Melgaço é o reflexo de uma história

política, econômica e cultural discutida nos tópicos anteriores deste capítulo. Neste tópico

discute-se a (re)produção da cidade a partir da década de 1980 até os anos finais do século XX

e como recurso metodológico, vamos dialogar com as memórias dos moradores que viveram a

cidade neste período, documentos, imagens e outras informações empíricas que nos dão

51

Entrevista realizada na residência da marajoara Maria Mamedia em janeiro de 2014.

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subsídios para pensar a cidade, num processo de transição entre a “cidade-vila” das décadas

de 1960 a 1980. Dinamizada pelas ruralidades e a transição ao século XXI, a presença de

elementos das urbanidades nas áreas de telecomunicações, comércios e consumos passam a

fazer parte do cotidiano dos moradores da cidade.

Diante desse contexto geohistórico, objetiva-se compreender essas pluralidades

espaciais, que a cidade apresenta nos fins do século XX e início do século XXI, analisando as

formas espaciais no entorno do centro tradicional, seus sujeitos e os modos de vidas que eles

imprimem na dinâmica cotidiana daquelas áreas físicos territoriais da malha urbana

melgacense.

Os tópicos anteriores trouxeram uma cidade que vivenciou várias fases de

avanços e retrocessos, em função das dinâmicas econômicas e a busca dos serviços de

educação e saúde, além das constantes crises de farinha, que fizeram ribeirinhos buscarem na

cidade uma saída desses problemas, mas, ao mesmo tempo, continuar praticando atividades

rurais. Fatos que contribuíram significativamente para a (re)configuração espacial da

produção do espaço “rurbano” nas “Margens dos Marajós” (PACHECO, 2006).

Nas narrativas dos moradores aparece com muita evidência, a vida cotidiana de

uma cidade ribeirinha, vivenciando alterações nos modos de vida da população. Entre eles,

Manoel Rufino, morador da cidade desde 1967, agricultor, descendente indígena, migrante

ribeirinho, narrou algumas transições entre a cidade-vila, as ruralidades e a cidade “rurbana”.

Durante muito tempo nós vivia aqui, comendo e bebendo muito bem. Quando um ia

caçar e não matava e outro matava, podia contar que o vizinho também ia comer.

Isso aqui era muito parado, você pudia andar qualquer hora da noite que não

encontrava ninguém, quando anoitecia todo mundo já estava agasalhado, pensando

no trabalho do outro dia. De um certo tempo pra cá as coisas foram mudando, parece

que umas coisas melhorou, como, o comércio, o transporte tanto para Breves como

para Belém, antigamente, pra gente fazer uma compra tinha que ir pra Breves, hoje

não, tudo o que a gente quer tem aqui, a mesma coisa era, pra Belém, era muita

dificuldade, os barcos não tinham condições de navegar, era muito arriscado, assim

como pra ir pra Breves, a gente tinha que dormir no barco, digo passar a noite,

porque a gente não conseguia dormir no trapicho. Por outro lado, jovem, adultos e

idosos jogados nas ruas, nos bares, com isso, a violência ficou muito grande, os

vizinhos não querem nem saber um dos outros, cada um que se vire. A cidade de

modo geral mudou muito, a maioria das pessoas já não conheço mais e olhe que

mora a muitos anos em Melgaço, mas, tem tanta gente que não sei de onde vem,

assim como tem lugar na cidade que nunca andei.52

A narrativa do morador se confunde com outras memórias, de sujeitos ribeirinhos

migrantes, que percorreram espaços da cidade-vila, da solidariedade e das ajudas mútuas, até

as mudanças ocorridas nos últimos anos do século XX. Percebe-se que a cidade de Melgaço

52

Entrevista realizada na residência do marajoara Manoel Rufino, em fevereiro de 2014.

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vivenciou uma produção espacial até a década de 1980 em que predominava as relações

espaciais dinamizadas pelas ruralidades. Contudo, a partir da década de 1990 e os primeiros

anos do século XXI, o espaço da antiga cidade-vila, constitui-se na inserção de uma série de

“sistema de objetos” dinamizados pelos “sistemas de ações” (SANTOS, 1996), onde os

sujeitos ribeirinhos compõem modos de vidas exógenos e passam a atribuir outros

significados e sentidos ao espaço da cidade, constituindo ao espaço que Moreira (1993)

definiu como “o corpo do tempo”, materializados nas “rugas espaciais” de Santos (1994),

mas, simultaneamente, diluídas no que chamamos de “corpos da cultura”, ou seja, desde a

cidade-vila, até a espacialidade “rurbana”, Melgaço sempre foi “corpo” dinâmico e dialético

entre o tempo e as culturas locais e não locais, que historicamente configuram a sua geografia

rurbana.

Muitas dessas (re)significações socioculturais e socioespaciais foram dinamizadas

pelo aumento da população da cidade, a partir da década de 1980, representada no gráfico 1

sobre o crescimento demográfico da cidade entre 1960 a 2010.

Gráfico 1 - Crescimento Demográfico da Cidade de Melgaço-PA (1960 a 2010)

300 356976

18922302

3177

5503

0

1000

2000

3000

4000

5000

6000

1960 1970 1980 1991 1996 2000 2010

Fonte: IBGE, 2000/2010

O gráfico mostra a elevação da população da cidade nos finais dos anos de 1970,

que era de apenas 356 habitantes, para 1.892 no início dos anos de 1990. Um cálculo simples

contabiliza o crescimento absoluto, em uma década de 1.536 habitantes, uma média de

crescimento de 153,6 habitantes por ano.

O quantitativo demográfico de 1.536 moradores foi responsável pela expansão da

cidade a partir dos anos de 1970 na primeira administração do então prefeito Hermógenes

Furtado dos Santos (1973-1976). Nesta administração que iniciou o calçamento e a construção

de meios-fios da Avenida Senador Lemos e da Rua 12 de Outubro, serviço que foi continuado

na administração do seu sucessor Alberto Felipe Barbosa (1977-1982).

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Após a emancipação no início da década de 1960, a cidade permaneceu com as

duas ruas herdadas da vila até a segunda administração, no mandato do Sr. João Valentim de

Amorim (1967-1970), quando se inicia a abertura da Rua São Miguel, em função da

construção da pista de aviação, abrindo o povoamento da referida rua. Seu povoamento, no

entanto, expande-se em décadas posteriores, chegando até ao então isolado cemitério da Bica

e a boca da estrada que leva os trabalhadores para suas casas de farinha. No ano de 1974, de

acordo com as informações da Companhia de Saneamento e Abastecimento de Água do Pará

– COSANPA, a Rua São Miguel, somente do lado direito, atualmente denominada, Santos

Dumont, estava ocupada por 12 residências.

Entre as décadas de 1970 e 1980, o aumento da população urbana provoca a

expansão da malha espacial da cidade, com o surgimento de novas ruas. Neste período,

emergem a abertura de seis novas ruas e a expansão de uma, no segundo mandato do então

prefeito Hermógenes Furtado dos Santos (1983-1988). As ruas foram: Antônia Nogueira,

Princesa Izabel, Sete de Setembro, Marechal Rondon, Francisco da Silva Leite, João Valentim

de Amorim e a expansão da Rua 31 de Março.

Os estudos monográficos de Baia (2004) apontam quatro eixos de expansão e

adensamento populacional ocorridos no espaço da cidade de Melgaço a partir da década de

1990. São eles: Rua Orlando Amaral; Expansão da Rua 31 de Março; Rua Francisco Leite e;

Rua Wilson Ribeiro. Quando o “lago virou rua”, conforme denominou em estudos

monográficos Andrade (2004), a ocupação da Rua Princesa Izabel a partir do ano 2000 amplia

os eixos de expansão. Contudo, tanto Baia quanto Andrade constata que a ocupação

residencial das ruas aparece em números elevados de madeira e cobertas com palha,

demonstrando a fragilidade socioeconômica das populações. Por outro lado, revela-se uma

cidade que se faz pelos saberes da floresta, seja nas formas de moradia, seja nos falares, gírias

e práticas de trabalhos.

Vejamos as ruas da cidade a partir do ano de 1960 até o ano de 2013,

caracterizada em cinco períodos:

Quadro 3 - Espaços Tradicionais: Décadas de 1960/70

01 – Senador Lemos

02 – 12 de Outubro

03 – Abertura da futura Santos Dumont

04 – Abertura da futura 31 de Março

05 – Abertura da futura 1º de Maio

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Quadro 4 - Expansão e Criação de Novas Ruas: Décadas de 1980/90

01 – Expansão da 1º de Maio

02 – Praça João XXIII

03 – Expansão da rua 31 de Março

04 – Expansão da rua São Miguel

05 – Expansão da rua Santos Dumont

06 –Francisco Leite

07 – 7 de Setembro

08 – Marechal Rondon

09 – Antônia Nogueira

Quadro 5 - Criação e Expansão de novas ruas: 2000 a 2006

01 – Estrada Melgaço-Jangui

02 – Mário Castor

03 – Wilson Ribeiro

04 – João Valentim de Amorim

05 –Passagem Bom Jesus

06 – Raimundo Anacleto

07 – Expansão da Princesa Izabel

08 –Estrada Melgaço-Moconha

Quadro 6 - Criação e Expansão de novas ruas: 2007/2013

01 – Expansão da Rua Orlando Amaral

02 –Beira Rio

03 – Matadouro

04 – Nova Aliança

05 – Bairro do Tucumã com 10 ruas

Tomando como referência, a dinâmica populacional de reprodução e crescimento

do espaço melgacense, observa-se que entre as décadas de 1970 e 1980, o salto de 364

habitantes para 953, representou um percentual superior aos 160% de crescimento e dos anos

1980 para 1990, quando a população praticamente dobrou, houve significativas alterações na

malha espacial da cidade, passando a se caracterizar pelas ruralidades e as urbanidades, onde

o rural deixa de ser predominante, mas ao mesmo tempo, não perde suas existências e

significados na vida das pessoas e nos espaços da cidade.

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O processo de produção e crescimento da malha espacial melgacense, histórica e

geograficamente, caracteriza-se em quatro fases. A primeira fase, compreendida entre as

décadas de 1970 e 1980. Período em que a cidade retoma dinâmicas populacionais advindas

dos espaços rurais motivadas pelos seguintes fatores: a) Implantação de duas fábricas de

beneficiamento de palmito no perímetro urbano; b) Oferta de alguns serviços que os espaços

rurais não disponibilizavam: Educação e Saúde; c) Política de incentivo da administração para

o povoamento da cidade, doando lotes de terra, facilitando a aquisição de materiais para a

construção das habitações.

A segunda fase compreende o período de 1980 a 1990. Neste período houve a

abertura e a expansão de maiores números de ruas, alongando a malha urbana, tanto no

sentido da baia de Melgaço, quanto em sentido ao Oeste, adentrando a floresta. Esse período

representa um dos maiores crescimentos demográfico da cidade. O movimento floresta-cidade

é motivado pelo esgotamento das atividades extrativistas da madeira e do palmito nos espaços

rurais; busca de continuidade da educação dos filhos; conflitos de terras; baixo índice de

violência na cidade; maior facilidade de acesso à terra urbana e; práticas de trabalho da cidade

voltadas ao mercado informal, agricultura, extrativismo do açaí e pesca artesanal.

O terceiro período compreendido entre os anos 2000 e 2006, teve como marco

espacial a abertura e ampliação de oito ruas, nesses seis anos que se segue; no quarto período,

com abertura e expansão de quatro ruas e o surgimento do bairro do Tucumã, com dez ruas.

Esses dois últimos períodos de crescimento demográfico da cidade representam nas “formas”

e “conteúdos” da malha urbana, significativas alterações socioespaciais e socioeconômicas. O

crescimento demográfico da cidade continua vinculado à fragilidade econômica e das

políticas públicas de educação e saúde nos espaços rurais.

A conclusão do ensino fundamental de jovens e adultos nas comunidades

ribeirinhas desloca, anualmente, famílias inteiras ou parte delas em direção à cidade em busca

de continuidade escolar. Além disso, a abertura de concursos públicos nas esferas municipal e

estadual trouxe parcela significativa de moradores de outras cidades vizinhas, a fixarem

moradia em território melgacense. Esses fenômenos demográficos estão sendo decisivos na

ampliação do quantitativo populacional e no crescimento da malha espacial urbana. Entre

outras, cita-se a produção espacial do bairro do Tucumã e as Ruas do matadouro e Beira-Rio.

Essas etapas de crescimento demográfico e expansão da dimensão físico e

territorial da cidade de Melgaço, principalmente, nas últimas décadas, atribuem ao espaço

formas e conteúdos vinculados aos modos de vidas ribeirinhos e urbano, subsidiando nossa

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afirmação que a cidade é movida pelos sistemas de objetos (formas) e sistemas de ações

(conteúdos) que configuram uma cidade rurbana.

A abertura de novas ruas representa a chegada de várias pessoas, mas, também os

significados socioeconômicos e socioculturais que esses moradores imprimem, tanto nos

espaços preexistentes, quanto nas áreas que vem sendo produzidas, a partir desses

movimentos floresta-cidade. As ruas são lugares que registram as múltiplas relações, modos

de vidas, práticas culturais dos sujeitos que fazem a dinâmica da cidade, entre o viver

ribeirinho e o viver urbano que se reproduz à margem da baia e adentrando as florestas

marajoaras.

Esses fatores refletem na produção do espaço e no tempo estabelecido e vivido

pela cidade. A abertura de nova rua e a relação política, econômica e cultural estabeleceu

mudanças no viver da cidade, com a produção de outros cotidianos. Além disso, as indústrias

palmiteiras, localizadas na cidade, produziram diferentes funcionalidades aos espaços, como

ocorreu com a Rua São Miguel, que se tornou uma pista de pouso para os aviões de pequeno

porte que pousavam e decolavam todos os dias na cidade dos palmiteiros e madeireiros que,

muito pouco, ou quase nada sabiam sobre a importância das aeronaves, visto principalmente,

pelas crianças como atração e beleza do viver na cidade.

A presença de avião nessa época na cidade era frequente para os moradores, esse

foi o marco da abertura e do povoamento da Rua São Miguel. Viver na cidade com a vista

para ver chegar e sair aviões passou a ser a mais nova atração, tanto para as crianças, quanto

para os adultos. Esse fluxo de navegação aérea tornou-se rotineiro na cidade, chegando a

pousar várias aeronaves por dia53

.

As práticas de vidas da clássica “cidade-vila”, através das predominâncias rurais

passam a conviver com outras atividades não locais, entre elas, constatou-se a presença de

mão de obra de outras regiões do país para operar as máquinas que não estavam no alcance

dos melgacenses das fábricas de palmito. Essa atividade foi muito dinamizada na cidade

provocando semanalmente, o deslocamento de moradores para os palmitais das áreas rurais,

extraindo matéria prima para alimentarem as fábricas. Além disso, nos espaços rurais formam

instaladas centenas de pequenas fábricas improvisadas por ribeirinhos, que passaram a

beneficiar sua produção nos quintais de suas residências, de maneira artesanal, que eram

53

Dados levantados por moradores que eram empregados de uma das fábricas e por pessoas que na época

presenciaram essa dinâmica e que continuam habitando espaços das ruas São Miguel, lado esquerdo de onde

ficava a antiga pista e a rua Santos Dumont, lado direito do aeroporto de Melgaço.

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comercializadas por compradores, das grandes empresas que estavam localizadas em outras

regiões do Estado do Pará.

Durante o auge dessa atividade, os moradores dos espaços rurais vivenciaram

tempos de abundância econômica superiores aos moradores da cidade. O capital financeiro do

palmito adentrado nos rios e furos marajoaras através dos atravessadores das indústrias, que

estavam localizadas em outras regiões do Estado, causou uma concorrência salutar para os

moradores da floresta. Os compradores faziam questão de financiar recursos financeiros

antecipados para os extratores, os valores de várias toneladas de palmito sem prévia data de

quitação. Nesse período, ninguém queria ser funcionário público, preferiam compor as turmas

de palmiteiros que adentravam as florestas e, no final da semana estavam com o pagamento

em mãos da produção.

Por outro lado, essas indústrias e a baixa taxa de desemprego não foram

suficientes para o desenvolvimento da cidade e do comércio local, nem na melhoria de

infraestrutura urbana. As transações comerciais realizavam-se através dos regatões e com as

casas comerciais localizadas nas cidades de Portel e Breves, a presença de algumas

mercearias e cantinas não atendiam as necessidades de consumo da população urbana e rural.

Assim, como os serviços bancários, mesmo com todo o movimento financeiro existente na

cidade, as agências bancárias estavam todas localizadas na cidade de Breves.

A infraestrutura da cidade, além da ausência de serviços bancários, era ineficiente

o fornecimento de energia elétrica que funcionava através de um sistema de luz municipal,

entre quatro e cinco horas por dia. Normalmente, o motor funcionava as 18h00 e desligava às

22h00 ou no máximo 23h00, sendo que a regularidade desse serviço oscilava bastante, muitas

vezes, não tinha luz por falta de combustível e outras vezes, o motor quebrava e passava-se

até meses a cidade no escuro. Esse fator, atualmente, é lembrado pelos moradores como um

dos responsáveis pelo “atraso” econômico e social da cidade.

(...) a energia era o nosso maior problema, era um motor muito pequeno que

funcionava aí perto da prefeitura, onde nós chamava de usina, não dava conta, a

lâmpada era só aquela brasinha, por isso, era poucas pessoas da cidade que tinha

uma geladeira ou freezer, não adiantava comprar porque a energia não dava conta de

funcionar, era muito difícil a gente tomar uma água gelada, chope, tudo vinha de

Breves, a gente já ficava na frente da casa esperando o barco chegar e nele vinha o

chope duro de gelo de Breves, xerox a gente tinha que tirar em Breves, enfim, tudo

vinha de lá. Então isso dificultou o nosso crescimento, muitos funcionários quando

recebiam iam pra Breves pra fazer a compra do mês, além do comercio aqui não ter

uma variedade de produtos, era muito caro, eles compravam dos comerciantes de

Breves para vender aqui, aí as pessoas iam pra Breves. Depois que chegou energia

24 horas com a CELPA, acho que foi em 1999, sei que ainda era o Cassimiro

prefeito e ele só saiu em 2000, então acredito que a chegada da energia elétrica 24

horas foi em 1999. De lá pra cá as coisas mudaram, as pessoas passaram a viver

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melhor, comprar as coisas e foi aí que a cidade passou a evoluir, chegou o telefone,

agora o celular e fomos ficando mais livre dos brevenses, mas ainda temos que

avançar mais, outros problemas temos que enfrentar.54

A narrativa apresenta uma cidade que chega ao fim do século XX, com precárias

infraestruturas e serviços. O sistema elétrico, não oferecia condições suficientes para a

implantação de indústrias que dinamizassem a economia da cidade. Essas foram uma das

principais explicações para a estagnação econômica dos melgacenses, em relação aos

brevenses e portelenses. Contudo, a partir da década de 1990 houve transformações

significativas no espaço da cidade. Neste período, a cidade passa a ser foco de migração de

várias famílias do espaço rural e, esses moradores passaram a se fixar em áreas que deram

origem as ruas Wilson Ribeiro, Orlando Amaral, Raimundo Anacleto e passagem Boa Jesus.

Além do aumento demográfico de outras vias preexistentes na cidade, que tradicionalmente

foram cartografadas pela mesma relação funcional que interliga modos de vidas rurais e

práticas urbanas.

Essas alterações provocadas por migrantes ribeirinhos, que por vários motivos

ancoraram suas vidas na cidade instituindo-a como o território de suas vidas políticas,

culturais e econômicas. Esses moradores foram imprimindo formas espaciais ribeirinhas que

ao entrarem em contato com os serviços e consumos urbanos, externam as complexas e

difusas espacialidades rurbanas. O resultado dessa produção espacial se dá primeiramente

pelo acúmulo das relações praticadas e vivenciadas por sujeitos sociais que foram

paulatinamente “desenhando” espaços urbanos que, entre outros conceitos, estão o de “cidade

ribeirinha” (TRINDADE Jr. 2003); “cidade-floresta” (PACHECO, 2006), “cidade-vila”

(BAIA, 2004) e dinâmicas espaciais “rurbanas” (FREYRE, 1982) identificados na “Amazônia

Marajoara”.

Os fluxos populacionais, floresta-cidade e a inserção da cidade no circuito elétrico

e telefônico, político e educacional se responsabilizaram em reescrever as “formas” e

“conteúdos” desencadeando mudanças significativas no processo de (re)produção do espaço

melgacense, principalmente, no que diz respeito ao aparecimento de novas ruas e as

funcionalidades atribuídas à elas pelos sujeitos sociais que dinamizam. Aqui vale ressaltar,

que a rua não é somente o espaço de circulação de pessoas e veículos é “a extensão da vida

humana”, o espaço de estender as roupas no varal, ponto de encontro das relações

interpessoais é o espaço público construído e apropriado pela identidade particular onde parte-

54

Informações obtidas com um marajoara da cidade, durante uma conversa informal, as seis horas da manhã,

tomando café na feira livre localizada próxima do trapiche municipal, em julho de 2013. A pedido do narrador,

mantivemos sua identidade no anonimato.

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se lenha, criam-se animais domésticos, plantam-se temperos e ervas medicinal e outras

funcionalidades que serão discutidas com maior aprofundamento no próximo capítulo.

Os migrantes ribeirinhos que vieram em busca dos serviços de educação e saúde

na cidade, constitui um tipo de migração que Santos (1993) caracteriza como “migrações

ligadas ao consumo e a inacessibilidade de bens e serviços essenciais”. As famílias ribeirinhas

ao chegarem à cidade, tornaram o espaço de suas moradias, dormem na cidade e ainda muito

cedo se deslocam as áreas rurais para pescar, caçar, extrair produtos florestais ou

desempenhar atividades agrícolas, produzindo farinha de mandioca, normalmente em parceria

com os pequenos produtores rurais. Outros buscaram formas diversificadas de sobrevivência,

através dos serviços ambulantes como vendas de chope, pão, carreteiros, moto táxi para

complementar a renda da bolsa família que a maioria dos moradores da cidade tem acesso.

A produção da malha espacial da cidade, a partir dos eixos rios e florestas

desafiam as políticas urbanas imprimindo formas espaciais através das pontes, das casas

construídas com troncos de madeiras e açaizeiros, cobertas de palhas, implodindo o centro

tradicional e explodindo o espaço da cidade dentro de suas necessidades e possibilidades,

discutidas por Santos (1993) que “as porções do território, ocupados pelo homem vão

desigualmente mudando de natureza e de composição exigindo uma nova definição”.

Essas definições caracterizam a cidade diante de um crescimento horizontal

fundamentado nos eixos de expansão vinculados aos rios e a floresta, como acontece com a

Rua Orlando Amaral, Estrada do Moconha, Rua do Matadouro, Rua Beira-rio e bairro do

Tucumã que apresentam nas formas e funções espaciais de uma cidade que não se desvincula

das formas e conteúdo dos espaços “rurais-ribeirinhos”.

O cenário produzido por esses sujeitos, desde os períodos da Vila vêm trilhando

formas de trabalhos por onde produz suas existências, constituindo suas famílias, participando

das atividades política da cidade, do Estado e do País, fazendo da cidade com o menor IDH do

país, o lugar por onde reconstroem múltiplas formas de vidas passadas com o presente

moderno e tecnológico. Aqui cabe fazer a pergunta de Hommi Bhabha (2003), que questiona

sobre a forma como os sujeitos sociais constroem suas identidades, com o espaço e os lugares

onde vivem.

(...) De que modo se formam sujeitos nos “entre-lugares”, nos excedentes da soma

das “partes” da diferença (geralmente expressas como raça/classe/gênero etc.)?

(BHABHA, 2003. p.20).

Os sujeitos sociais com suas práticas econômicas e culturais produzem e

consomem o urbano melgacenses, a partir do diálogo entre as práticas urbanas e rurais. Os

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moradores da cidade, historicamente, foram conduzidos por dentro desses contextos espaciais

e com isso, construíram identidades plurais, se identificando ora como sujeitos urbanos e ora

como rurais. Neste sentido, fundamentou-se o método de análise instituído pela cartografia

social que se propõe identificar as ações dos sujeitos “sem vozes” que produzem e consomem

as áreas centrais, periféricas e recentes da cidade. Eles e Elas constituirão a “cartografia

móvel”, diluindo as fronteiras e limites da cartografia urbanística oficial.

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CAPÍTULO 3

4 AMARRANDO O CASCO: Na árvore da História com os laços da memória

Amarrar o casco, o barco ou a rabeta é uma das primeiras coisas que o ribeirinho

faz quando chega a seu destino. Viajar pela Amazônia requer do pesquisador vivenciar

cotidianos e lugares, que somente as pessoas do lugar conhecem e vivenciam. Por isso, neste

capítulo, “Amarrando o casco: Na árvore da História com os Laços da Memória”, vamos

colocar em discussão o resultado da pesquisa de campo, realizada na cidade de Melgaço,

Estado do Pará, vivenciada com os moradores da cidade.

Nesta viagem, “amarra-se o casco” nas dezenas de trapiches e pontes da cidade

que ao desembarcar encontram-se populações marajoaras em intensa relação de trabalhos,

práticas de mariscos e outros modos de vidas, relacionados com as águas e as florestas

transitando nos espaços urbanos. A impressão refletida visível foi de “formas” e “conteúdos”

espaciais difusos e complexos. A cada passo adentrado no cotidiano melgacenses,

presenciávamos pessoas realizando atividades territoriais múltiplas, embaraçando os conceitos

duais e antagônicos das funcionalidades urbanas e rurais. Portanto, vamos iniciar este capítulo

com uma breve apresentação dos sujeitos desta pesquisa.

4.1 UMA CARTOGRAFIA SOCIAL DOS SUJEITOS DA PESQUISA

As formas espaciais do espaço urbano melgacense refletem as condições sociais e

culturais dos sujeitos que o produzem e, a interação desses espaços com as dinâmicas

econômicas locais e não locais. Corrêa (2005), ao caracterizar o que é o espaço urbano define

como “espaço (...) simultaneamente fragmentado e articulado”.

Paralelo a esta conceituação do pesquisador brasileiro, se fundamenta, a

“cartografia” do pesquisador colombiano Martin-Barbero (2004). Pensar o espaço urbano dos

“Marajós das Florestas” (PACHECO, 2006), com foco na cidade de Melgaço pela ótica das

“rurbanidades” do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1982) é, no mínimo, complementar as

lacunas deixada por Corrêa (2005) diante das complexidades materializadas nas porções

espaciais da cidade que estão além das fronteiras econômicas.

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Barbero (2004) ao diluir o enredamento da cartografia moderna sobre o espaço, a

formalização e a técnica cartográfica, nos ensina que os mapas temáticos modernos não

passam de uma representação daquilo que interessa a determinado grupo homogêneo.

(...) todo mapa é em princípio, filtro e censura, que não só reduz o tamanho do

representado, como também deforma as figuras da representação, trocando,

simplificando, mentindo, ainda que seja só por omissão. Para outros, ao situar-se na

encruzilhada de ciência com arte, a cartografia abriu-se a uma ambiguidade

ilimitada, já que o que as tecnologias aclaram, no plano da observação e sem registro

é borrado pela estetização digitalizada de sua forma (MARTIN-BARBERO, 2004.

p. 11).

A cidade de Melgaço produzida no trânsito entre as “formas” e “conteúdos”

espaciais urbanos e os modos de vidas locais ribeirinhos, marajoaras e amazônicos, vem

historicamente sendo configurada na contramão da cartografia moderna e dos conceitos

urbanos homogêneos. As práticas espaciais melgacenses são tecidas também pela “cartografia

cognitiva” (BARBERO, 2004) dinamizada por “sujeitos cartógrafos” que produzem a cidade

a partir de outros códigos e legendas espaciais. Esses sujeitos, desprovidos dos códigos da

sociedade letrada negociam sua existência urbana pelos códigos da oralidade adquiridos no

convívio do dia a dia com seus antepassados. O sentido de negação que os centros urbanos

atribuem a essas populações os colocando na condição de intrusos citadinos, conduz esses

migrantes a continuarem praticando atividades “rurais-ribeirinhas” e com isso, entrelaçam as

fronteiras urbanas e rurais.

Neste contexto, cabe querer entender, quem são esses sujeitos? Quais são essas

práticas e seus significados na vida deles e delas? O que isso reflete no espaço de uma cidade?

Como a cidade ver esses moradores que durante décadas constituem suas vidas nas rotas de

“cartografias noturnas” pelas “Margens dos Marajós” (PACHECO, 2006)? Quem é esta

cidade que é floresta? Que é rurbana? Quem o (re) produz?

A identificação dos sujeitos com práticas de vidas “rurbanas” no espaço da cidade

de Melgaço nos colocaram em contato com esses questionamentos e, mais que isto, nos

adentramos em trajetórias de vidas tecidas e marcadas por múltiplos lugares por onde foram e

estão sendo “formados”. Essas vidas entrelaçam lugares físicos e culturais da cidade e ao

mesmo tempo reconfiguram as “formas” e os “conteúdos” (HENRY LEFÈBVRE, 2001) do

espaço urbano melgacense, imprimindo lógicas florestais e ribeirinhas que se diluem nas

“formas” e “conteúdo” das urbanidades.

Procurando seguir as orientações de Barbero (2004), serão apresentados os

“sujeitos-cartógrafos” produtores dos “mapas noturnos” rurbanos melgacense. Seus percursos

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socioespaciais de vida revelarão quem são esses “cartógrafos noturnos” que articulam cidade,

rios e florestas num Brasil oficializado como “urbano”.

O desenho da “cartografia rurbana” da cidade de Melgaço envolveu moradores da

Estrada Melgaço-Moconha, Vala da Wilson Ribeiro, Rua do Matadouro, Beira Mar, Rua 7 de

Setembro, Rua Raimundo Anacleto, Rua São Miguel, Estrada Melgaço-Jangui, Rua 12 de

Outubro e bairro do Tucumã.

Durante a pesquisa “geoetnográfica” dialogou-se com moradores dessas ruas da

cidade, observando, registrando e vivenciando o trânsito daqueles sujeitos no espaço urbano,

identificando modos de vidas e de trabalho, analisando os diferentes usos, formas e conteúdos

que essas práticas imprimem no urbano melgacense.

Neste percurso encontraram-se moradores com práticas de vidas, tanto na cidade,

quanto nas áreas rurais. Moradores que por múltiplas razões vêem se reencontrando com

práticas de mariscos, com o trabalho na roça, com formas de morar, de comunicação, de

transportes em estreita relação entre o tradicional e o moderno, o campo e a cidade.

O “Moconha” como é conhecido pelos moradores da cidade é uma das franjas

espaciais de Melgaço, onde os tecidos rurais (re) significam os tecidos urbanos. Na teia

daquelas “rurbanidades” (FREYRE, 1982) estão homens e mulheres que narraram suas

histórias de vidas e identificam os “pontos” por onde o “mapa noturno” marajoara e

melgacense são tecidos.

Fotografia 2 - Marajoara Valdenora.

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2014.

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Valdenora, migrante do Rio Junã, distando da cidade de Melgaço, em motor-

rabeta, entre uma hora e meia a duas horas de viagem é uma mulher, mãe de seis filhos,

esposa de agricultor e tirador de madeira, negra, 46 anos de idade, descendente “afroindígena”

(PACHECO, 2010), analfabeta, vive da agricultura familiar rural e do programa bolsa família

do governo federal.

Esta agricultora transita duas vezes ao mês entre o Rio Junã e a cidade de

Melgaço. Todos os meses, ela passa quinze dias na cidade e quinze dias no interior. Os filhos

mais novos estão no interior, estudando e ajudando nas atividades diárias da família.

Os mininuzinhos estão lá com nós, eles são criança, né? e nós fica preocupado em

mandar eles pra cá. Seu minino, lá tem escola pra eles, não como aqui, aqui a

educação é melhor, mas dá pra eles riscar o nome deles, então fiquemos lá, quando

eles chegam da aula, eles vão tirar um açaí, colocar uma malhadeira e pegar um

peixe, vão pescar e também nos ajudar no trabalho da farinha, então é assim.55

Nesse trânsito, o rural reaparece no urbano e faz da Estrada Melgaço-Moconha

um espaço “híbrido” (BHABHA, 2003), configurado nas formas e conteúdos daquela área,

através das práticas de vidas manifestadas pelos moradores. Esse tempo na cidade, a moradora

cuida da casa, do quintal e costura as roupas da família de maneira manual. A arte de tecer,

costurar, remendar manualmente roupas, objetos e outros utensílios duráveis e não durável é

uma prática secular das populações tradicionais. Os ribeirinhos melgacenses desprovidos das

condições materiais, de acesso aos bens básicos de sobrevivência, se valem de seus saberes,

enredando modos de vidas tradicionais em tempos da modernidade.

Valdenora conta como foi que adquiriu essa habilidade de consertar roupas e

redes e, o significado de trabalho que essas atividades têm na vida das populações ribeirinhas.

Desde criança, ficava olhando minha mãe a fazer isso, quando foi crescendo um

pouquinho foi aprendendo a fazer, como diz, o homem, fazendo (sorrindo). Naquela

época não tinha máquina, nem loja pra gente comprar feito, como hoje, então, a

gente tinha que aproveitar e nas horas vagas, nós sentava, assim no girau e ficava

remendando roupas, costurando aquelas que tava rasgada. O que to fazendo fazendo

agora é consertando o punho desta rede, ah! isto nós faz muito no interior, a

condição não dar pra comprar rede nova pra todo mundo, então quando a gente

compra uma nova pros mais velhos a gente vai consertando pros mais novos aquelas

que não aguenta mais os maiores, quando não tu fazendo nada, pego as ropa e

aquelas redes e fico fazendo isto, a gente precisa, né?56

Seguindo a trajetória “geoetnográfica” pela estrada do Moconha e atento aos

modos de vida daquela população, ficava a cada hora e a cada dia mais surpreso com as

dimensões das ruralidades imprimidas na dinâmica espacial do lugar. O “espaço dividido” de

55

Entrevista com a marajoara Valdenora, realizada na sua residência, no dia 11 de janeiro de 2014. 56

Outro trecho da entrevista com a marajoara Valdenora.

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Santos (2004) se dilui pelos trânsitos “híbridos” dos “entre-lugares”, que o tradicional e a

modernidade constroem no urbano melgacense. Home Bhabha (2003) argumenta esses

espaços, como “figuras complexas de diferença e identidade” manifestadas pelos múltiplos

sujeitos sociais da cidade e diluem as fronteiras instituídas pela cartografia oficial.

Encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para

produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e

exterior, inclusão e exclusão. (BHABHA, 2003. p.19).

O pesquisador indiano, um dos ícones dos estudos pós-coloniais e culturais de

referência para a maioria dos pesquisadores sociais, principalmente, antropólogos, faz

importante ligação com as “formas espaciais” (CORRÊA, 2005 e LEFÈBVRE, 2001) de uma

cidade que, historicamente, vem sendo cartografada pelas práticas de sujeitos que ficaram às

margens da história e das geografias do lugar, no entanto, são eles e elas que garantem as

permanências socioculturais locais.

As “formas” e “conteúdos” constituídos no urbano marajoara estão fortemente

materializados no cotidiano de homens, mulheres e crianças que através de suas práticas de

trabalhos e modos de vidas rurais tecem o viver urbano, numa relação de conflitos e diálogos

com o rural, cartografando espaços com identidades “rurbanas”.

A fotografia 3 registra a chegada do pescador, com o resultado de três dias de

pescaria nos rios e igarapés da bacia hidrográfica do município e o reencontro com os filhos

que ficaram na cidade juntamente com a esposa.

Fotografia 3 - Marajoara Patauá.

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2014.

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Patauá, como é conhecido pelos moradores da cidade, com 64 anos de idade,

nascido à margem do rio Mapuá, município de Breves, filho de migrante nordestino, seu pai

veio para a Amazônia durante o segundo período de extração da borracha. Após a Segunda

Guerra Mundial, veio morar pela primeira vez em Melgaço, ainda adolescente, na década de

1960. Sua trajetória de vida é marcada pelo trabalho do mato. Homem negro com fortes traços

africanos tem um linguajar carregado de sotaques atípicos do “Marajó das Florestas” com

características nordestinas, desconhecedor do código da cultura letrada, vem durante décadas

remando e trilhando os rios e as matas da “Amazônia Marajoara”. Construiu ao longo desses

anos uma forte identidade com a cidade de Melgaço.

Os percursos da história de vida deste morador, o fez um sujeito com identidades

rurbanas, a vida foi desenhada na cidade apenas para estudar e dormir, durante o dia percorria

as roças, os igarapés, as florestas juntamente com os pais e os irmãos em busca de matéria

prima (palmito e madeira) que garantiam o sustento familiar. Atualmente, vive com a segunda

esposa, pai de onze filhos, as razões que os levam a emoções quando se lembra do filho rapaz

que faleceu, assim como se revolta, bebe e arruma desavença com outros moradores por onde

passou.

Estas inconstantes emoções é uma das razões que o faz está em processo de

migração na cidade. Atualmente desenvolve o “oficio de pescador”, adjetivo que ele próprio o

deu. “Meu ofício é pescar, rolo por toda essa região, chego com o peixe, vendo, tiro pra boia e

já vou de novo, às vezes pro mesmo lugar, às vezes não”57

.

Em busca de outros cotidianos e cartografando práticas de vidas que evidencie o

“mapa noturno” de Barbero (2004) e o “rurbano” de Freyre (1982), percorreu-se o bairro do

Tucumã, área de ocupação a partir do ano de 2004. Este bairro é constituído por moradores

natos da cidade e migrantes rurais e de outras sedes municipais (Breves, Portel, Curralinho,

Gurupá). Os melgacenses são filhos de moradores que foram constituindo suas famílias e

construindo residências no “bairro novo”.

Neste bairro vive Edmilson Moreira, com 44 anos de idade, pai de sete filhos,

alfabetizado, com a 4ª série do ensino fundamental, filho nato da cidade de Melgaço, tem uma

história marcada pelos cantos e encantos da floresta e das águas. Desde criança foi educado

nesse trânsito, aprendeu a dialogar com a tradição e a modernidade. Faz farinha, caça, pesca e

é funcionário público. O local de trabalho deste morador é marcado por constantes reuniões

de caçadores que planejam as futuras caçadas e comentando as anteriores. Eles cartografam

57

Trecho da entrevista realizada com o morador em sua residência no dia 04 de janeiro de 2014.

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nesses encontros todos os roteiros dessas investidas e sabem o tipo de caça que podem

encontrar em determinado período, conectados com os movimentos de maré e da lua.

Fotografia 4 - Marajoara Edmilson.

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2013.

Habitante da “Cidade-Floresta” (PACHECO, 2006), aprendeu a encontrar

soluções para os problemas dos objetos de caça, de pesca, utensílios da “cozinha de forno” e

de outros objetos de uso no dia a dia da população, tornou-se um “mecânico da floresta e das

águas”. Esta habilidade de conserto e fabrico de vários objetos de uso, tanto da cidade, quanto

das atividades de mariscos, adquiriu através das observações e vivências que desde criança foi

submetido.

Este morador trabalha durante a noite em uma escola municipal da cidade e

durante o dia, realiza conserto de ventiladores, bombas d’água, espingardas, bicicletas. A

oficina é dentro da própria casa, produz baladores para caça e conserta com auxílio de

equipamentos elétricos (furadora, esmeril, broca elétrica, etc.). O tempo dessas atividades é no

contra turno do trabalho de guarda municipal. Além disso, nas noites que está trabalhando

deixa os baladores armados nas trilhas da caça, na floresta, que são retirados no outro dia após

a saída do trabalho.

Edmilson é um marajoara com múltiplas identidades, joga bola, trabalha como

guarda municipal, mas, jamais abandona sua prática de marisco, os objetos e utensílios

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utilizados nessas investidas são cuidados com muito carinho e mistérios. Além disso, não

gosta que ninguém pegue sua espingarda e nenhum outro utensílio de marisco.

Tem uma coisa que me deixa muito chateado é quando as pessoas chegam pra me

falar emprestado a minha arma, meus vizinhos sabendo disso, nem me falam mais

sobre isso. Professor, a arma da gente que gosta do marisco só o dono deve pegar, o

outro não cuida da arma, olhe com esse negócio de proibir a gente de ter arma, eu

ando com minha arma, toda desmontada aqui dentro desta sacola de encerado que

mandei fazer exclusivo só pra ela, quando eu chego do marisco, tanto faz eu ter

atirado ou não, eu tiro da sacola, pego este pano, passo um óleo e lá em cima no meu

quarto já tenho o lugar onde vou guardar. Não é por nada, não, é que outra pessoa

não vai ter o mesmo cuidado.58

A identidade com a floresta é um processo construído desde a sua infância. Como

filho mais velho de uma família de agricultores e caçadores, tinha a missão de acompanhar o

pai para onde fosse. Nesses percursos foi aprendendo as artimanhas da mata e ao mesmo

tempo sobreviver da floresta, dominando as técnicas de caçar, pescar e extrair frutos e matéria

prima como forma de sobrevivência.

Essas identidades são constituídas por vivências de outros “Marajós”. As

circunstâncias socioeconômicas os colocam em trânsito territorial, produzindo cartografias

marajoaras que ao mesmo tempo singularizam e pluralizam suas relações com as cidades, por

onde moram. As andanças nesses “Marajós” colocam esses sujeitos em constantes trocas de

experiências e aprendizagens, abstraindo e repassando modos, práticas e técnicas de mariscos.

O Marajoara Edmilson cartografou em suas narrativas os lugares por onde morou na cidade

de Melgaço e no Marajó. Essas vivências são carregadas de múltiplos sentimentos na vida do

morador, ganhos e derrotas materiais e afetivas são marcas que percorrem o espaço interior

deste homem, mas, ao mesmo tempo conhecemos um cidadão marajoara muito sonhador com

o amanhã, crente que dias prósperos viverão a sua gente e a sua cidade.

Neste mesmo itinerário pelo bairro do Tucumã, encontrou-se o Marajoara Manoel

Rufino que ao receber uma visita, em sua residência, procura manter antigos hábitos de

cordialidade oferecendo café como demonstração de boa acolhida. Manoel Rufino é migrante

do Rio Ituquara, município de Breves, chegou à cidade de Melgaço na década de 1960,

período em que as ruínas de decadência da vila estavam visíveis no espaço, pelas condições

de abandono em que foi submetida.

58

Entrevista com o marajoara Edmilson Moreira, realizada em sua própria residência, no dia 20 de novembro de

2013.

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Fotografia 5 - Marajoara Rufino.

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 2014

As razões que fizeram este morador migrar para a cidade com a esposa, três

filhos, a mãe, dois irmãos e um compadre com a família, foram as constantes faltas de farinha

enfrentadas por aqueles moradores.

Descendente de migrante nordestino (sua mãe) com nativo marajoara (seu pai),

desde criança foi inserido nos modos de vidas e práticas de trabalhos relacionados aos

universos ribeirinhos, não domina os códigos da cultura letrada, pai de doze filhos no

primeiro casamento e dois com a atual esposa. Com 67 anos de idade, recebe uma

aposentadoria do INSS, como agricultor rural, sai todos os dias seis horas da manhã para o

centro e retorna após as dezesseis horas.

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Durante a jornada de trabalho, com aproximadamente dez horas por dia, o

agricultor realiza a limpeza na roça de mandioca, no açaizal, nas outras plantações do sítio e

coordena a tiração do açaí. Contrata dois ou três moradores da cidade para tirarem açaí no

sítio e paga com o vinho de açaí ou com dinheiro.

O fabrico de farinha para este agricultor é somente para a despesa, faz alguns

meses que deixou de fazer farinha para vender, ele explicou que os filhos casaram tudo e cada

um procurou conduzir sua própria vida e fazer farinha precisa de muita gente, só uma pessoa

não faz, além disso, o preço que os comerciantes pagam no quilo para o agricultor é muito

barato, por isso, passou a investir no cultivo do açaí, como a principal fonte de renda que

complementa a aposentadoria.

Fotografia 6 - Marajoara Odivaldo Costa

Fonte: Arquivo pessoal de Alípio Moreira, 2014

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Do outro lado da cidade, na Rua 31 de março, mora o servidor público municipal

Marajoara Odivaldo Costa, de 34 anos de idade, casado, pai de três filhos, nascido e criado na

cidade de Melgaço. Filho de pais agricultores que migraram do rio Ituquara, município de

Breves, fugindo da crise da farinha, buscaram a cidade de Melgaço, na década de 1960, terra

para fazer farinha, tirar palmito e madeira nas áreas rurais, próximas à cidade. Odivaldo Costa

é a segunda geração desses migrantes que foi desde criança, educado a conviver entre os

códigos das florestas e das águas. Aprendeu a caçar desde doze anos de idade, disse que não

fazia isso por vontade, mas, porque não tinham emprego.

Eu comecei a caçar, aprendi com meu pai, comecei a caçar com a idade de doze

anos, já caçava sozinho e tudo o que eu aprendi a caçar eu aprendi com ele, eu

caçava não por vontade de caçar, eu caçava por necessidade que nós não tinha

emprego nenhum, no meu tempo eu não tive muito tempo pra estudar, porque o

papai era só ele, se ele ia fazer uma farinha ficava difícil dele fazer só, eu tinha que

ajudar, aí ficava difícil pra mim trabalhar com ele e vim estudar (...)59

A atividade de guarda municipal não é a principal identidade funcional deste

morador, ele representa uma geração de outros jovens do seu tempo que nasceram na década

de 1980 e desde criança foram conduzidos aos trabalhos da roça, pesca e caça. A década de

1980 tem como principal atividade dos melgacenses a produção de farinha de mandioca, a

caça e a pesca como maneiras de garantir a subsistência familiar.

Durante a infância deste morador, saber ler e escrever não importava, pois o

importante era “saber se virar na mata”, aquele garoto que completava doze anos de idade e

não sabia caçar e pescar servia de gozação para os demais. Os jovens de seu tempo firmavam

verdadeiras competições nas florestas para treinarem a pontaria, cada um queria ser melhor de

tiro que o outro. Essas práticas eram permitidas pelos pais, que desde criança levavam os

filhos para observarem como proceder na floresta.

Essas relações e vivências com as atividades dos rios e das florestas vieram

construindo em diálogo com hábitos urbanos, a identidade deste morador, que muitas vezes

negocia o turno de trabalho da cidade para deslocar-se, com outros amigos, até comunidades

rurais longínquas distando até doze horas de viagem em pequenos barcos da cidade.

Essas práticas de trabalhos e os modos de vidas rurais feitos por cidadãos urbanos

são saberes que avançam por gerações, fazendo desses homens e mulheres pessoas com

identidades “híbridas”. Esses trânsitos colocam aqueles sujeitos na condição espacial do

59

Entrevista realizada com o marajoara Edivaldo Costa da Silva, na escola onde o morador estava trabalhando

como vigia, realizada em 23 de julho de 2013.

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“entre-lugar”, Hommi Bhabha (2003), nem urbanos, nem rurais, estão nos dois, são homens e

mulheres “rurbanos”.

Na Rua 7 de setembro, habita uma Marajoara com 89 anos de idade, negra, filha

de migrantes nordestino (pai) e de nativa marajoara (mãe), agricultora, mãe solteira de seis

filhos, conhecida na cidade como “Dona Mamédia”, reside em Melgaço desde a década de

1960, passou a trabalhar na agricultura como diarista dos agricultores mais antigos, criou os

filhos com atividade da farinha e complementava com a pesca artesanal, atividades que até

hoje realiza, mesmo sendo aposentada pelo INSS e com idade avançada. Todo dia vai ao

“centro” trabalhar, tanto como diarista, quanto na sua própria roça. Além disso, realiza

pescaria com a técnica do caniço nas cabeceiras de igarapés, próximos a cidade e em

comunidades mais distantes, deslocando-se de casco a remo.

Fotografia 7 - Marajoara Maria Mamedia.

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 2014.

A Marajoara Mamédia é negra, de estatura baixa com o rosto e os cabelos

refletindo as oito décadas de vida, marcada pela “peleja” entre uma propriedade e outra dos

coronéis da borracha e do gado teve toda a sua vida construída pelos roçados, caminhos da

seringa, nos palmitais e como diarista dos grandes proprietários de terras do “Marajó das

Florestas”. A última propriedade rural onde trabalhou foi denominada de Pacoval de um

coronel conhecido como “Vadico Sá”. Foi expulsa pelo proprietário, por ter reclamado que

ganhava pouco pela quantidade de trabalho que realizava na fazenda. Não tendo para onde ir,

decidiu vir para Melgaço na década de 1960. Na cidade, passou a trabalhar como diarista dos

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proprietários de terras, continuando a mesma “peleja” de outrora. Sua vida é marcada por

muitas derrotas e frustrações, mas nada que abale a alegria e a cordialidade.

Ao chegar a sua residência fez questão de mostrar-me toda a casa, mostrando os

enfeites, mas, principalmente as imagens de vários santos católicos. Após essa recepção,

sentamos em uma área da cozinha, espaço da casa de muita familiaridade de Dona Mamédia,

onde guarda os utensílios que conduz todos os dias à roça e os instrumentos de pesca entre

eles, caniço, remo, paneiro e terçados. Neste espaço, deparei-me com um pilão de tronco de

madeira, um fogão a lenha e um antigo pote de cerâmica utilizado pelos melgacenses para

armazenar água até finais dos anos 1990, quando a cidade não tinha energia 24 horas.

O contato com a história de vida desta agricultora, filha nata daquele Marajó, que

mesmo com seus quase noventa anos de idade, caminha todos os dias mais de dois

quilômetros de sua residência para a o “centro”, onde cuida da roça, faz farinha, tira lenha e

trabalha como diarista na agricultura de outras pessoas, ganhando vinte e cinco reais por dia,

norteou nossa viagem, com muito mais segurança para encontrar nas ruas desta cidade,

elementos da cultura material e sensível que nos levasse aos portos das rurbanidades.

Seguindo a “pesca” por sujeitos mais antigos na cidade que praticam por muitas

décadas atividades de “mariscos”, agricultura ou extrativismo vegetal e animal das florestas e

rios da “Amazônia Marajoara” e identificar aqueles e aquelas que tecem os “mapas noturnos”

melgacense, em uma das “pontes ruas” da cidade, denominada como “invasão da Nova

Aliança” habita um desses “cartógrafos noturnos”, identificado popularmente pelos

moradores da cidade como “Acari”, mas com denominação de João Moraes Urbano.

Fotografia 8 - Marajoara João Moraes

Fonte: Arquivo da pesquisa 2013

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João Moraes tem quarenta e oito anos de idade, chegou a Melgaço criança com

seus pais que migraram do espaço rural do município de Breves, sua primeira experiência de

trabalho foi na roça e na extração de madeira e palmito. Aos dezoito anos de idade, já casado,

aprendeu a pescar com o seu cunhado e desde esse período passou a viver somente da pesca.

Atualmente, trabalha como vigia em um estabelecimento comercial particular, mas todos os

dias tem de ir ao rio “pegar pelo menos o da boia”. João Moraes, homem negro, se identifica

como um ribeirinho, diz que a cidade sempre foi um lugar bom, mas, nunca gostou de ser

empregado, disse que é um caboclo do mato.

A “cartografia cultural e social” deste morador está impressa em seus hábitos e

costumes, mas, principalmente, nos traços do seu corpo. Esses corpos não são apenas uma

estrutura biológica, são “corpos culturais” que refletem o processo cultural desses sujeitos e

os cotidianos em que historicamente foram inseridos.

João Moraes, assim como outros marajoaras, já habitou várias ruas da cidade,

cartografando a malha urbana melgacenses, através de uma história de vida marcada por

encontros e desencontros. Desde muito jovem, aprendeu a “fisgar” não somente peixe, mas ao

mesmo tempo, os sabores diversos da vida. Atualmente, mora em uma área de ocupação

recente da cidade e recorda com saudade a vida de outrora. Sujeito de baixa escolaridade, mas

autor de uma sabedoria popular adquirida pelas múltiplas vivências, que desde criança passou

a experimentar. Homem alegre e apaixonado pela sua terra se disse feliz e, uma pessoa que

soube aproveitar a juventude e ao mesmo tempo, em seu corpo está ancorada as marcas do

tempo, das vivências na floresta e nas águas.

Continuando na “geoetnografia” identificando “sujeitos cartógrafos” dos “mapas

noturnos” melgacenses, reside na rua 7 de setembro, Benedito Moreira, 39 anos de idade,

casado, pai de três filhas, filho de pais migrantes do município de Breves, estudou até a

terceira série do ensino médio, já foi professor do espaço rural do município de Melgaço

durante três anos (2003-2005). Em 2006, fez o concurso público pleiteando uma vaga na

guarda municipal, o qual foi aprovado e consequentemente passou a ocupar a nova função que

exerce, atualmente, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Getúlio Vargas, localizada

no perímetro urbano da cidade de Melgaço.

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Fotografia 9 - Marajoara Benedito

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2013.

O Marajoara Benedito Moreira é um melgacense que aprendeu desde criança, com

as atividades de farinha, a conviver com os sons de animais da floresta. Essa convivência

construiu neste morador uma forte identidade com animais, passando a domesticar vários

tipos de pássaros, roedores e outras espécies de animais, reproduzindo no quintal os espaços

das florestas e das águas. Essas práticas transformaram-se em atividades econômicas

complementando a renda familiar do morador, passando a ser conhecido na cidade por duas

razões. A primeira, pelo jeito de se vestir que é diferente dos demais moradores da cidade e a

segunda é pela criação de “xerimbabos” e animais da floresta. Essas práticas, o identifica

como um morador de identidade, tanto ribeirinha, quanto urbana. Os hábitos de vestimenta

são influenciados pelos meios de comunicação inspirados em artistas da televisão, associado

às práticas da vida cotidiana, vinculada as florestas e aos rios, torna um morador de

identidades plurais e híbridas.

Outro “cartógrafo” melgacense, habita a Rua Francisco Leite, próximo à margem

da baia de Melgaço. O marajoara Dário Brito, migrante do rio Tajapuru, município de

Melgaço, chegou à cidade em meados de 2001, veio para a cidade por uma antiga relação de

amizade e de trabalho com a família Viegas. Zequinha Viegas, seu patrão ao se tornar prefeito

do município nas eleições de 2000, trouxe seu antigo freguês para a cidade. “Seu Dário” como

é conhecido, trouxe ancorado em seus “corpos culturais” a religiosidade popular,

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fundamentada no culto aos santos. Este morador construiu desde criança uma forte devoção

por qualquer santo católico. Esta identidade religiosa o transformou em um grande

colecionador de imagens e qualquer pintura que esteja relacionado aos Santos. Esta devoção o

fez transformar toda a sala da residência em espaço sagrado, construindo oratórios em

madeira para as imagens e as pinturas de seus “santinhos”, expressão proferida pelo próprio

morador.

Fotografia 10 - Marajoara Dário e esposa

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2013.

A localização da moradia fica próxima a uma fábrica de móveis e uma

plainadeira. Essas duas indústrias produzem volume considerável de desperdício de madeira,

essas sobras são aproveitadas pelo artesão marajoara no fabrico dos oratórios de seus

“santinhos”.

Os traços, as formas e outros detalhes contidos nos oratórios são fruto da

imaginação do morador, assim como a pintura, os desenhos e as cores, contudo, ele relatou

em determinado momento de nossa conversa que assiste na televisão programas católicos e

observa os modelos dos altares, assim como outros detalhes internos nas igrejas e aqueles

modelos que considera bonito, grava na memória e no dia seguinte, inicia a construção de um

oratório parecido com o que assistiu na televisão.

Continuando a “geoetnografia” pelas ruas e pontes da cidade de Melgaço,

encontra-se Francisco Alves da Silva, morador da cidade de Melgaço, desde 28 de maio de

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1972, fugindo da crise da farinha do rio Ituquara no município de Breves, buscaram em

Melgaço uma solução para o problema da falta de farinha, que os deixavam meses comendo

com arroz. Francisco Alves chegou a Melgaço, ainda solteiro, local onde constituiu família e

teve todos os filhos. Descendente “afroindígena” (PACHECO, 2010), atualmente tem 59 anos

de idade, continua trabalhando na roça. A produção de farinha foi por muitas décadas a

principal fonte de renda deste agricultor, que atualmente é conhecido por outros moradores da

cidade como, “roceiro antigo”.

Fotografia 11 - Marajoara Francisco

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 2013

Atualmente, a produção da farinha de mandioca perdeu o destaque na econômica

familiar melgacense, mas esses moradores construíram essa identidade, por tudo que

significou esta atividade não apenas na vida deles, mas, da comunidade local.

Durante essas quatro décadas de vida na cidade de Melgaço, senhor Francisco

com sua esposa Conceição, fizeram do “centro” as razões de sustento, criação e educação dos

sete filhos do casal. O centro na vida desse morador não é apenas um espaço que representa

exaustão, cansaço, trabalho, mas, uma extensão da própria vida familiar, é a própria casa

deles. Não se sente confortável ficar o dia todo na cidade, seja qual for o dia, tem que ir ao

centro, afirma o morador em um dos trechos de nossa conversa.

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Não consigo ficar o dia inteiro na cidade, “batendo perna na rua”, mas quando, nem

bem amanhece o dia já tô me arrumando e venho embora pra cá, aqui é minha casa,

já disse pra Conceição (esposa) que vamos vender nossa casa lá na cidade e vamos

embora pra cá, aqui temos o açaí de graça, temos o peixe que nós cria aí nesses

tanques, se sair pra caçar a gente mata e o nosso trabalho é tudo aqui, lá na cidade é

só pra dormir. Esse meu centro só deixo depois de morrer, aqui foi onde criei todos

os meus filhos e até hoje é de onde eu tiro o meu sustento, então não posso deixar

este lugar, aqui a gente trabalha, quando cansa vem embora aqui pra cozinha de

forno, deita por aí, toma um café, conversa, quando precisa de alguma coisa lá da

cidade a gente pega o celular liga não demora nadinha já vem um trazer, aqui

também não é aquela quentura que é lá, tu tá vendo como, venta muito, aqui é que é

o lugar pra gente viver.

A relação desse morador com o “centro” é tão significativa que ao fazermos os

primeiros contatos para falarmos de nossa pesquisa e a importância que ele tinha para este

trabalho, Francisco, foi decisivo, dizendo: “quero muito participar deste trabalho, moro

muitos anos aqui e ninguém ainda me procurou pra mim contar a minha história, mas tem

uma coisa, eu não paro na cidade, tu tem que ir lá no meu centro”, para nós foi muito

significativo ir no espaço de trabalho e de vida deste agricultor, presenciamos a relação

afetiva que existe com o lugar, vivenciada por toda a família.

É um morador que embora tenha pouca escolaridade, está muito distante de ser

um matuto, muito menos, ser um sujeito passivo. Participa ativamente da vida política da

cidade, do Estado e do País, acompanha criticamente as campanhas políticas e não se intimida

diante de qualquer pessoa para falar o que pensa e emitir sua opinião. Demonstrou um forte

carinho e apego pela cidade e faz duras críticas à classe política local sobre o abandono em

que a cidade se encontra.

Seguindo o percurso “por dentro” da malha espacial da cidade de Melgaço,

embarcou nesta viagem, Daniel Moreira da Silva, morador da Rua Raimundo Anacleto, filho

de pais migrantes na década de 1960 do interior de Breves, nasceu na cidade de Melgaço,

onde viveu sua infância, adolescência, juventude, casou-se e está pai de cinco filhos. Os 39

anos de vivências na cidade teve uma vida marcada por muitos encontros e desencontros.

Desde criança entre os tempos de trabalho na roça, o tempo da escola, fazia forte investimento

na brincadeira com bola. Essa atividade, o fez jogar nos principais clubes da cidade durante os

campeonatos de futebol amador. Contudo, a brincadeira que tanto gostava lhe custou em 1997

aos 22 anos de idade a perda de sua perna direita, causada por uma grave infecção no joelho.

Esta experiência foi muito difícil para o jovem agricultor. Daniel, no entanto, enfrentou esta

realidade como um chamado de Deus e poucos anos depois se tornou pastor evangélico,

atividade que a fez deixar de ser conhecido na cidade como “Aredo” para “Pastor Daniel”.

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Fotografia 12 - Marajoara Daniel

Fonte: Arquivo da pesquisa.

Atualmente, mesmo com apenas uma perna, pastor Daniel é conhecido por seus

familiares e amigos como um homem que se supera, pelas constantes investidas que realiza

caçando, pescando e fazendo farinha. Subir e descer ladeiras, nadar, caminhar sobre estivas,

caminhos de terra firme e igapós são atividades praticadas mensalmente por este morador,

desloca-se até os rios e as florestas próximas e distantes da cidade para caçar e pescar em

“cascos rabetas”.

Pastor Daniel, desde criança recebeu a responsabilidade de cotidianamente

transitar entre a escola e a cozinha de forno. “Formado” pelas tramas da oralidade,

internalizou na sua cultura a necessidade de buscar alimentos na floresta e nos rios e, mesmo

nos dias atuais com a escassez da caça e do peixe, este morador encontra mecanismos de

capturá-los e garantir a alimentação da família. Por outro lado, assim como dezenas de

marajoaras, com uma família de sete membros, sobrevive de um benefício do INSS por

invalidez, equivalente a um salário mínimo, o que não permite garantir o necessário para a

sobrevivência familiar e, com isso, necessita complementar o mínimo orçamento com a

captura de animais nas florestas e nos rios da “Amazônia Marajoara” (PACHECO, 2010).

No percurso pela identificação da cartografia noturna, da cidade de Melgaço,

conhecemos um morador com 79 anos de idade, denominado de Benedito Cavalcante, viúvo,

morador da cidade de Melgaço desde março de 1954, nascido, no rio Machaqualim,

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município de Melgaço, após migrar junto com os pais por vários rios deste município

extraindo leite de seringueira, trabalhando em roçado, vieram para a vila de São Miguel de

Melgaço devido à morte do pai. Teve sua juventude marcada pela “peleja” da roça e a

extração do palmito e madeira. Percorreu desde a decadência da vila até a cidade atual e,

vivenciou diferentes tempos e modos de vidas que transitaram por sua história pessoal e

coletiva, assim como assiste práticas e opções de vida da juventude, sem entender as razões de

tais complexidades pessoais e culturais hodiernas.

Fotografia 13 - Marajoara Cavalcante.

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2014.

O Marajoara Benedito Cavalcante é mais um entre as centenas de “cartógrafos

noturnos” da cidade e imprime no espaço da cidade espacialidades de trabalho, que expressam

uma cidade construída por sujeitos ribeirinhos que foram “formados” culturalmente, em

modos de vidas rurais que vieram ancorados em seus corpos para a cidade e o fizeram um

cartógrafo marajoara, que cartografou entre tantos os espaços rurbanos da cidade. Atualmente,

não realiza mais as atividades de agricultura, da caça e da pesca, e garante sua sobrevivência

apenas com um salário que recebe do INSS como agricultor rural. Contudo, em sua residência

estão as ferramentas da roça, da pesca e da caça, assim como os remos e cascos que utilizava

nas atividades anteriormente praticadas.

Este morador, desde a década de 1950, tornou-se sujeito de produção e consumo

do espaço da cidade e, juntamente com dezenas de trabalhadores construíram uma cidade que

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cotidianamente dialogou com as ruralidades. As práticas de trabalhos e os modos de vidas

com os rios e as florestas foram repassados aos filhos destes moradores, através das vivências

e práticas que conduziram desde criança, fatos que permanecem presentes até hoje na vida

desses moradores.

Neste cenário está o Marajoara Augusto Ribeiro da Silva, com 72 anos de idade,

filho de pais nativos da região marajoara, chegou à cidade de Melgaço em janeiro de 1963,

início da vida política administrativa da cidade, com o mandato do primeiro prefeito, Orlando

Amaral. Augusto, desde criança, nas margens dos rios marajoaras aprendeu a buscar na

natureza as formas de trabalho e sobrevivência; foi seringueiro por muitos anos, trabalhou

como remador de regatão que navegavam em barcos movidos a remo na Amazônia; foi

serrador manual desde criança; trabalhou em roçado de arroz, juta, milho e quando chegou a

Melgaço, tornou-se agricultor plantando mandioca e produzindo farinha, atividade que

executa até hoje. Além disso, realiza a prática da pesca artesanal com caniço, malhadeira e

espinhel. Em outros tempos, gostava de “faxiar” (matar peixe durante a noite com terçado e

zagaia) durante a noite, pelas margens dos igarapés próximos a cidade.

Fotografia 14 - Marajoara Augusto

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 2013.

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Atualmente, guarda na memória e nos utensílios de caça, pesca e corte de seringa

e os remos e cascos que utilizava com muito mais frequência em outras décadas atrás. Foi

servidor público municipal e, atualmente, é aposentado pelo INSS como agricultor rural,

embora pesque e trabalhe no “centro” todos os dias como em outros períodos, mas, não

abandonou nenhuma dessas atividades completamente. Augusto é um morador com

identidade rural/ribeirinha, mas, ao mesmo tempo, tem muito carinho por sua cidade e diz que

a vida, atualmente está muito melhor, pois, as décadas passadas os serviços de saúde e

educação eram muito mais difíceis.

A partir desses sujeitos e suas histórias de vidas nessas “Amazônias Marajoaras”

(PACHECO, 2010), o transito que cotidianamente realizam entre os rios e as florestas são

subsídios para pensar as “formas” e “conteúdos” ou os “fixos” e “fluxos” da cidade de

Melgaço na dialética do urbano e o rural, a partir da categoria espacial “rurbana”.

4.2 A CIDADE E O COTIDIANO: Entre imagens e narrativas

O diálogo com os moradores de Melgaço e a observação atenta e cuidadosa da

cidade, durante o período de pesquisa e escrita desta dissertação foram experiências que

romperam as fronteiras científicas e nos entrelaçaram em sonhos, ideologias, sentimentos de

justiça que muitas vezes eram calçados com angústias e revoltas, pois, mesmo sabendo que

não poderia correr esse risco ele foi inevitável.

Esses sentimentos afetivos com a cidade e seus moradores, por outro lado,

contribuíram para me aproximar ainda mais das pessoas, dos seus múltiplos lugares culturais

e assim, entender suas formas de vidas e seus sentimentos pela cidade e da cidade por eles; as

razões que os colocam nesses trânsitos cidade, florestas, rios e os significados que esses

lugares assumem na vida dos moradores.

Enveredar por esses caminhos insertos, complexos, tortuosos é conhecer outras

geografias que estão latentes no cotidiano da cidade e ao mesmo tempo, corroborar com o que

Trindade Jr. (2003) caracteriza que “a cidade é um conjunto de lugares apropriados e

produzidos pelos grupos sociais experienciando tempos e ritmos diferentes”. Contudo, são

geografias que vão além da conceituação de conjuntos, se entrelaçam por relações culturais e

sociais complexas, imprimindo na paisagem não somente um tempo e um ritmo lento de

cidade ribeirinha, mas, diria, próprio e articulado, como retrata a fotografia 15 de uma das

principais ruas do centro da cidade.

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Fotografia 15 - Rua Marechal Rondon

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2014.

Trabalhadores urbanos, migrantes ribeirinhos transportando a lenha produzida nas

áreas rurais e vendida nas padarias da cidade. Daí, origina-se os carreteiros formados tanto

pelos que chegam, quanto por aqueles que nasceram e construíram suas vidas na cidade,

fazendo dessa atividade, formas de trabalho e sobrevivência. Outros se tornam moto taxista.

Nesta fotografia está o registro da inversão que os “sujeitos cartógrafos” realizam no espaço.

O moto táxi é um migrante ribeirinho e o carreteiro é um filho nato da cidade que não sabe

dirigir nenhum veiculo motorizado.

Esses sujeitos descendentes de espaços rurais/urbanos, reproduzem, circulam e

fazem dos espaços públicos, o lugar de encontro entre a tradição e a modernidade construindo

um jeito de ser próprio do lugar, articulado com os meios de transportes globais, a moto. As

vias públicas que, normalmente, estão congestionadas por veículos assumem outros ritmos e

outras dinâmicas que articulam os diferentes modos e cotidianos de vida dos melgacenses. A

rua é o espaço de funcionalidades simultâneas entre os animais, trabalhadores e os veículos

automotivos.

A mobilidade da cidade dilui a clássica urbana, o trânsito não é regido por sinais

eletrônicos, mas pelos códigos que o uso e consumo do espaço exigem. Entre eles, o assovio,

a buzina da moto, a voz do carreteiro ou simplesmente a travessia de um cachorro, gato, porco

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e outros animais é que ditam as regras das passagens nos cruzamentos. Para eles, essas formas

e práticas cotidianas é um dos diferenciais da cidade, em relação aos demais centros urbanos

do país. Vejamos o que diz esse morador quando perguntei o que fazia permanecer mais de

quatro décadas habitando na cidade.

Olhe eu praticamente nasci e me criei nesta Melgaço, há muitos anos atrás, isso não

tinha um carro, nem moto, a primeira moto que chegou em Melgaço foi do filho do

Borges, rapaz, era uma novidade, ele fazia pinta na cidade, só ele tinha moto, então

na rua podia tudo, a gente criava galinha, pato, porco, cachorro esses animais

andavam tudo solto na rua, os quintais eram aberto, não tinha quase quintal cercado,

não tinha precisão, então o movimento nas ruas da cidade era assim, hoje não, tem

muita “mota”, acho que tem mais de trezentas motas, então não dar mais pra criar

animais na rua, mas a gente ver muito cachorro (sorrindo), mesmo ficando mais

perigoso, mas ainda é tranquilo a gente anda na rua tranquilo, graças a Deus60

.

Enquanto muitos espaços urbanos são marcados pela velocidade da modernidade,

a cidade de Melgaço não conhece essa velocidade dos tempos em que a transformação

espacial é submetida. A memória dos moradores e os cotidianos da cidade retratam uma

cidade vivida pela interseção entre a modernidade e a tradição.

As formas espaciais da cidade são reproduzidas a partir desses cotidianos, entre

elas, estão os trapiches, as formas de ocupação das ruas e os usos que os moradores atribuem

nos espaços, como, tipos de moradias, entre outras que serão apresentadas neste capítulo.

Sobre esse processo de ocupação e produção do espaço, a geografia vem avançando de

maneira mais crítica sobre a materialidade do espaço. Carlos (2003) considera que existem na

geografia muitas dificuldades em superar o clássico conceito de materialidade do espaço, para

pensar enquanto “produção social”.

A superação de “materialidade pura” para uma “produção social” torna a

interpretação espacial mais plural e menos homogênea e dando saltos significativos para o

embarque, numa geografia marajoara que está à margem desta materialidade clássica da

literatura geográfica. A produção do espaço melgacense não é fruto da dinâmica unicamente

capitalista, o cotidiano dos moradores é o melhor espelho dessa realidade. Há um capitalismo

adaptado, diluído aos tempos de consumo da cidade, que ao mesmo tempo é driblado e

articulado pelos “tecidos rurais”, por modos de vidas próprios que fazem parte do cotidiano da

cidade, sem negar a condição de mercadoria que o espaço vem assumindo nos últimos anos.

Nesse processo vem se configurando a cidade de Melgaço, produzida por

migrantes ribeirinhos que foram arquitetando o espaço sob as formas e conteúdos dos tecidos

rurais. Os moradores foram produzindo relações espaciais que sinalizam uma cidade que

60

Trecho da entrevista com marajoara Edimilson Moreira, realizada em 2013.

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constrói sua sobrevivência ora pelo rio, ora pela floresta. Um dos pescadores narrou a luta dos

moradores em produzir clareiras na vegetação ciliar para praticarem a pesca e deslocarem-se

até os canteiros de madeiras e, aos palmitais nos rios do entorno da cidade, nos finais dos anos

de 1960 e na década de 1970.

Quando nós chegamos pra cá, pra cidade de Melgaço, existia duas ruas só, era a rua

da frente que nós chamava e essa que é da delegacia, que é a doze de outubro e tinha

esse campo que era de aviação, era duas ruas e esse campo de aviação e a frente de

Melgaço era só um bambu, era um bambu e a gente tinha que encostar num

miritizeiro, a gente derrubava vários miritizeiros e ia emendando um com o outro até

encostar na beira da terra e era uma boa lonjura, aí nós saia por cima do miritizeiro

até chegar na terra, lá na frente da prefeitura (...)61

As duas ruas citadas pelo morador aparece em todas as narrativas da década de

1960, que Pacheco (2006) diz que eram caminhos que tinham a função de levar os

agricultores até suas roças que foram paulatinamente sendo ocupados e se configurando como

ruas, mas, o que nos chama atenção é a “peleja” dos moradores em vencer o bambu e através

de um miritizeiro e outro, produziam “formas” espaciais que conectavam terra e água, que

refletem a cotidianidade do espaço melgacense.

Nesse período da história, a produção o espaço da cidade era muito mais coletivo

que nos tempos atuais. A produção das pontes e trapiches tinha significado coletivo na vida da

comunidade. Os portos de miritizeiro eram o resultado das coletividades dos moradores e a

condição social em que estava inserido e, a cidade era dinamizada pelo tempo da moradia e do

trabalho doméstico. A vida na cidade acontecia pelo intenso processo de relação com as

atividades rurais e essa relação estava refletida nas formas espaciais de produção comunitária.

No sistema urbano de Lefèbvre (2001), os valores de uso e troca é uma

especificidade do cotidiano da cidade dinamizada pela riqueza, onde as corporações são quem

“dinamizam e regulamentam os atos e as atividades no espaço urbano”. Neste pensamento, a

cidade é constituída pela industrialização e reescreve o cotidiano em urbano.

Na “Amazônia Marajoara” (PACHECO, 2010) a teoria do pesquisador francês,

não ganha materialidade. A vida urbana melgacense se expressa pelas relações materiais e

simbólicas materializada pelas dinâmicas das águas e das florestas, onde em determinados

períodos, o rio imprime os movimentos das cidades e a floresta imprime as “formas”,

relacionadas pelos trabalhos de agricultores, caçadores e pescadores que continuam, como na

década de 1960, na nascente, “cidade-floresta” (PACHECO, 2006), a construir “sistemas de

61

Trecho da entrevista com o marajoara José Moraes Urbano, realizada em 16 de janeiro de 2014.

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objetos” (SANTOS, 1996) que cartografam a pluralidade e a complexidade do urbano

marajoara apresentada pela fotografia 16, de uma das áreas de ocupação recente da cidade.

Fotografia 16 - Estiva na Estrada do Moconha.

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2014.

Essas formas espaciais expressam um cotidiano, que no plano do habitat elucida

uma cidade na qual o processo de reprodução adquiriu importância nas formas espaciais, em

condições ideais de refletirmos que o espaço urbano melgacenses, se supera e se refaz em

temporalidades distintas e plurais, exigindo da geografia uma releitura dos clássicos

conceitos. Oportunamente, Trindade Jr. (2005) discute essas formas da seguinte maneira, “nas

margens da cidade se produz uma situação sócio-espacial intermediária, criando-se um entre-

meio (...) um entre-lugar”.

O pesquisador indiano, Homi Bhabha (2003), uma das importantes figuras

contemporâneas dos estudos pós-coloniais, faz a seguinte análise sobre esses momentos de

trânsitos em que o espaço se encontra, afirmando que são complexidades de diferenças e

identidades.

(...) Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de

subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e

postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de

sociedade. (BHABHA, 2003. p.20).

A noção de produção do espaço requer dos geógrafos esta sensibilidade

metodológica e conceitual, considerando, “os níveis de realidade enquanto momentos

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diferenciados da produção geral da sociedade e sua complexidade” (CARLOS, 2003). Se

historicamente viemos admitindo que o espaço seja, antes de qualquer coisa, uma relação

social, necessariamente precisamos discuti-lo a partir dos múltiplos conceitos de sociedade,

como propõe Bhabha (2003), questionando o próprio sentido homogêneo e estruturante que

este conceito impõe historicamente ao espaço.

Na cidade de Melgaço, a produção do espaço recai sobre conteúdos e formas que

se encontram em tempos do presente e do passado, do interior e do exterior, da tradição e da

modernidade, “formando”, culturalmente, relações que extrapolam a clássica geográfica e

histórica. Primeiro, porque a cidade não abstrai uma lógica estruturante, os ritmos que levam a

produção, ocupação e uso daqueles espaços estão no trânsito desses “entre-lugares”, não são

nem modernos, nem puramente tradicionais. Não há nessas relações sociedade natureza, a

definição dos tempos históricos, eles se confundem entre passado e presente e ao mesmo

tempo, dialogam com o futuro. Um dos moradores da cidade descreve formas espaciais de

Melgaço, na década de 1960.

(...) quando nós chegamos aqui, fomos morar lá naquele mesmo lugar onde hoje é a

delegacia (rua 12 de outubro), tinha uma casa velha lá, aí o finado Marcílio tinha

conhecimento aqui com o Prefeito e conseguiu essa casa pra nós ficar até fazer o

nosso tapiri, passemos lá uns dias, aí depois comecemos a roçar lugar pra casa, só

sei que foi rápido que fizemos uma casinha lá naquela rua do Osvaldino (Rua

Antônia Nogueira), foi nós que abrimos aquela rua lá, aí o compadre “Grosso”

arrumou aí na pista (atual rua São Miguel) lugar pra fazer roça é bem aqui onde hoje

mora o pastor Júlio, bem aí perto dessa caixa d’água, aí era só uma roça nossa.62

A narrativa descreve as formas de produção e consumo do espaço da cidade,

fundamentadas em lugares, como “o acontecer solidário” de Santos (1994) que entende o

conceito de solidariedade, como sinônimo do viver junto e coletivo. A década de 1960,

período de fundação da cidade, externada na memória e nas imagens do lugar não nos remete

somente ao passado, como nos possibilita ao entendimento da permanência de técnicas

espaciais presente que não há como impedir as suas existências.

Assim como a produção do espaço, aparece em muitas literaturas das ciências

humanas, como resultado da “mão invisível do mercado”, ela não pode ser interpretada, alheia

às práticas espaciais construídas em outros códigos de relações culturais, que movem e

dinamizam a relação sociedade-natureza.

Por outro lado, essas “formas” e “conteúdos” revelam cotidianos que

historicamente se reproduzem nas “brechas das cartografias cadastrais, construídas de cima

62

Trecho da entrevista com Manoel Rufino, morador da cidade desde meados da década de 1960. Pesquisa

realizada na residência do morador em 2014.

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(...) (Martin-Barbero) que as marginalizam, através dos mapas estatísticos hegemônicos que

os estruturam como periferia que causam os problemas aos centros da cidade”.

A cidade de Melgaço, conduzida pelas estivas, pontes, caminhos e outras formas

materiais não é somente uma questão socioeconômica, como uma relação histórica que aquela

sociedade mantém com as formas rurais, registrada na fotografia 17 de uma área produzida

por migrantes ribeirinhos a partir do ano 2001.

Fotografia 17 - Beira-Rio.

Fonte: Arquivo da pesquisa 2014.

A área Beira-Rio é uma denominação atribuída pelos moradores que habitam o

lugar. Oficialmente, a prefeitura municipal denomina como área integrante do Bairro

Miritizal63

. Durante a pesquisa de campo constatou-se a existência de doze moradias,

construídas por migrantes ribeirinhos que fixaram suas vidas na cidade a partir de 2001,

caracterizando-a como uma das áreas de produção recente. Habitam nessas moradias setenta e

duas pessoas de todas as faixas etárias, três estão trabalhando com carteira assinada em uma

construtora que está construindo uma creche escolar, os demais, vivem de bico64

na cidade ou

nas áreas rurais, extraindo palmito, pesca e agricultura. As mulheres ocupam-se nos afazeres

63

Em 2013, a cidade foi regionalizada em quatro bairros e a lei nº 624 de 13 de dezembro de 2013, cria o Bairro

do Miritizal na cidade de Melgaço. 64

O termo bico, é utilizado com muita frequência pelos moradores, para se referirem ao desemprego, significa

que não tem trabalho certo, ao amanhecer, os moradores buscam na cidade uma forma de trabalho para garantir

o alimento daquele dia.

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domésticos e duas lavam roupas como fonte de renda familiar. As dezesseis famílias que

moram no lugar todas estão inseridas em programas de distribuição de renda do governo

federal, a bolsa família.

A forma espacial dessa área desenha o espaço cultural daqueles homens e

mulheres que percorrem rios e florestas marajoaras e, ancoraram seus “corpos culturais” na

terra dos Guarycurus, socializando com os povos pré-existentes do lugar, seus saberes

arquitetônicos e de sobrevivências naquelas Amazônias. O trapiche é um dos fixos de maior

significado daquelas pessoas e sobre ele, as mulheres preparam comidas, lavam roupas e

louças, os homens ancoram suas rabetas, cascos e outras embarcações de pequeno porte, as

crianças, transformam em espaço de lazer, o varal de secar as roupas e o ponto de encontro

para conversar sobre a vida da cidade, a política, a caçada, a pescaria e planejar as atividades

que serão realizadas no dia seguinte, fisgada pelas lentes da câmera do fotógrafo da UOL em

um dos trapiches da Beira-Rio, no Bairro do Miritizal, na cidade de Melgaço.

Fotografia 18 - Vida noturna na área Beira-Rio.

Fonte: Alex Almeida/UOL – 2013

As “Amazônias” (GONÇALVES, 2001) se revelam “nos Marajós” (PACHECO,

2006). A imagem reflete essas pluralidades das cotidianidades melgacenses e as formas

espaciais “rurbanas” (FREYRE, 1982) rompem as fronteiras de uma reprodução material e, se

contextualiza como parte da vida das pessoas, conforme define Carlos (2012).

Nesse contexto, a reprodução continuada do espaço se realiza como aspecto

fundamental da reprodução ininterrupta da vida. Nessa perspectiva, revela-se uma

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prática social que é e se realiza espacialmente, o que implica pensar na relação

dialética sociedade/espaço (um se realizando no outro e através do outro) e as

mediações entre eles. Esse caminho indica a imanência da produção do espaço no

processo de constituição da sociedade. (CARLOS, 2012. p. 53).

Nesse sentido, o cotidiano melgacense é o lugar de reprodução contraditória da

vida humana e amplia os horizontes geográficos de interpretação da realidade daqueles

moradores, onde as formas espaciais da cidade extrapolam o significado material do mundo e

adentram num universo de afetividades e práticas socioculturais, transformando-se em si

mesmo, como um movimento ininterrupto da geografia marajoara. São práticas espaciais

calcadas em “modos de vida e de luta afroindígena” (PACHECO, 2012), são heranças

culturais que vieram historicamente reafirmando as identidades espaciais daquela Amazônia

em, “tempos de globalização contemporânea” (PACHECO, 2012), reforçando a teoria da

pluralidade espacial como um processo sociocultural construído, a partir das múltiplas formas

de lutas que diferentes sujeitos imprimem no espaço.

Pacheco (2012) analisa esse processo, como resultado histórico das múltiplas

relações culturais vivenciadas entre nativos marajoaras, brancos europeus e africanos que

foram construindo e reconstruindo os cenários amazônicos contemporâneos.

No tempo presente, mesmo entre perdas e desusos, as persistentes recriações e

readaptações vividas pelo patrimônio material e imaterial dessas populações de

tradições orais, rurais e ribeirinhas amazônicas, são provas cabais de que a chegada

das novas mídias e suas tecnologias não é suficiente para convencê-los no palco da

luta cultural nos variados territórios amazônicos. (PACHECO, 2012. p.5).

As influências dos estudos culturais levam os pesquisadores entenderem as

ruralidades marajoaras, nessas relações de conflitos e negociações com as urbanidades e

fazem nas “formas” e “conteúdos” da cidade de Melgaço “pontos de encontros”, das lutas

entre o local e o não local dinamizados pelos “corpos culturais” dos moradores da cidade que,

cotidianamente, fazem o percurso nos “entre-lugar” (BHABHA, 2003) da clássica dicotomia

rural-urbano. Para Pacheco, o legado dos saberes-ribeirinho é externado nas construções de

práticas humanas, na paisagem melgacense.

São geografias que saem de “sujeitos cartógrafos” (MARTIN-BARBERO, 2003),

que margeiam a urbanização econômica como processo da negação de sua condição

sociocultural e imprimem no espaço “urbano” formas de sobrevivências ribeirinhas

contradizendo as lógicas das urbanidades. Por outro lado, é necessário pensar, que essas

geografias não estão desconectadas das influências exógenas que se adaptam aos modos do

fazer urbano melgacense. Há uma pluralidade de formas espaciais se entrelaçando pelos

saberes ribeirinhos, que fazem nas margens da cidade seus cotidianos, suas ruralidades em

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estreita relação com as urbanidades, mediadas pelas telecomunicações (celular, televisão e

internet) que refazem as relações entre tempo e espaço do cotidiano dos moradores,

registradas na fotografia 19, flagra moradores aproveitando o final de tarde num dos inúmeros

trapiches da cidade planejando as atividades do dia seguinte, assim como as crianças

aproveitando as últimas horas do dia, numa divertida forma de tomar banho, brincando de

“pira ajuda” 65

.

Fotografia 19 - O Rio como Espaço de Lazer das crianças e Planejamento dos adultos

Fonte: Alex Almeida/UOL, 2013.

O trapiche como já afirmamos anteriormente é uma das formas espaciais de

grande importância aos moradores, seja de madeira, estivas, pontes improvisadas por troncos

de açaizeiros e miritizeiros é um espaço que desde a formação da aldeia vem fazendo parte do

cotidiano daqueles homens e mulheres, que entre uma tarde e outra, fazem o principal “ponto

de encontro” da cidade, para apreciar o término de um dia e planejar o próximo, além de

muitas outras funcionalidades que ele exerce na vida dos moradores, está o espaço de lazer

das crianças.

As formas espaciais que fazem e refazem o cotidiano marajoara e melgacenses,

com forte presença dos “tecidos rurais”, revelam geografias que estão passando despercebidas

pelas clássicas abordagens geográficas. A pesquisadora Becker (1998) advoga a tese, que a

Amazônia é uma fronteira que já nasce urbana. Os indicadores demográficos, em cada

65

Pira-ajuda é uma brincadeira muito antiga praticada, segundo os registros das memórias de moradores que

chegaram, ainda crianças na cidade, que as crianças praticavam, durante as horas que passavam se lançando

nas águas da baia. Através de um sorteio (par ou ímpar) escolhe-se uma mãe que tem a missão de tocar nos

demais, aqueles que são tocados pela mãe, ajudará a mãe a “pegar” os outros, até ficar somente um que será

“perseguido” pelos demais, normalmente, o último é aquele com maior resistência de fôlego que consegue

passar mais tempo emergido nas águas e driblar a mãe e seus filhos que o procuram.

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período censitário elevam os índices de moradores, residindo nas cidades e simultaneamente,

declinando os índices das populações rurais. Por outro lado, essas referências quantitativas

não são suficientes para pensar a região como urbana.

A cidade de Melgaço e tantas outras nas Amazônias estão ampliando o

quantitativo demográfico e, consequentemente, intensificando o processo de uso e ocupação

do solo, no entanto, os saberes ribeirinhos, rurais não ficaram nos lugares de onde os

moradores se deslocaram, pelo contrário, vieram em seus “corpos culturais” e estão sendo

(re)significados nas pontes, nas estivas, nas formas de moradias, nas práticas de trabalhos, nas

práticas de mariscos, nas relações interpessoais e outras expressões daquelas ruralidades que

(re)produzem essas espacialidades rurbanas.

Existe uma rede densa e complexa de cidades marajoaras, que tramitam entre dois

e três séculos de formação histórica que não estão incluídas nos “circuitos espaciais”

(SANTOS, 1994) de produção, estimulado pelo governo federal e, suas populações, formadas,

por migrantes ribeirinhos buscam aqueles espaços, a procura de alguns serviços básicos como

educação e saúde que estão ausentes ou são ineficientes em muitas comunidades. Ao

chegarem à cidade negociam as formas de trabalhos rurais, com práticas da cidade e das

florestas, transitando cotidianamente naquelas “cartografias” amazônicas, são sujeitos que

refazem formas espaciais tidas como urbanas em fixos híbridos e em espaços “rurbanos”.

4.3 A CIDADE E OS SUJEITOS DA “BEIRA DO RIO”: Dinâmicas de Produção e

Consumo do Espaço

Os indicadores populacionais amazônicos nos dois últimos períodos censitários

(2000 e 2010) contabilizaram no ano de 2000, 638 cidades com população inferior a 20.000

habitantes, aproximadamente 85% do total das sedes municipais. Em 2010, esse percentual

caiu para 64%. O estado do Pará em 2013, segundo o IBGE, 104 sedes municipais continham

menos de 50.000 habitantes, 72% do total e dos 16 municípios marajoaras 12 (75%), tem

população inferior a 30 mil habitantes.

Por outro lado, são mais de 4 milhões de amazônicos vivendo em áreas fora dos

limites urbanos, que estão em constantes relações socioeconômicas e socioculturais com as

sedes municipais mais próximas de suas residências. Esses moradores rurais possuem relações

de parentescos, políticas e econômicas com as cidades, assim como, entre os 12 milhões de

moradores dos espaços urbanos, a maioria veio dos rios, igarapés e florestas amazônicas e, se

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imprimem nos espaços, dessas cidades, formas de consumo e produção espacial ribeirinha que

entram em conflitos com as “normas” e “controles” do gestar e consumir os espaços urbanos.

Neste cenário construído por sujeitos ribeirinhos que baixam os rios, furos e

igarapés nas suas “bajarinhas”66

, em direção as pequenas cidades regionais para construírem

outras formas de vida, motivadas pelos precários serviços de educação e saúde e a

inexistência de uma política fundiária adequada que garantisse acesso aos serviços e ao

mesmo tempo oportunizando-os na geração de renda, tentam suprir essas carências nas

cidades.

4.3.1 As áreas inundáveis da cidade e os modos de produção do espaço

As condições físicas do solo melgacense constituem formas muito irregulares, que

permitem a cidade conviver com várias áreas que sofrem cotidianamente, interferências das

águas dos rios, constituindo em terrenos alagados, avaliado pelo Plano Diretor da cidade,

como área inadequada para habitação humana.

A Rua Orlando Amaral, antiga ponte de madeira construída no início da década de

1990 que interliga o porto do Moconha à cidade, localizada na parte Sul da cidade, iniciou seu

processo de povoamento no final dos anos 90, com a construção de três moradias que

margeavam o início da pequena ponte. Como esse registro não foi possível encontrar no setor

de terras da prefeitura municipal, localizou um dos primeiros moradores da rua que fez o

seguinte registro.

Irmão eu já morei em quase todas essas ruas, nasci e me criei em Melgaço, quando

me ajuntei com esta mulher, cuidei de fazer meu tapiri porque nunca gostei de morar

junto com ninguém, nem com minha mãe. Então, fiquei procurando um lugar que

pudesse fazer a minha casa e a mulher disse que queria que nós fizesse nossa casa

numa área que ela queria criar e eu também queria uma casa perto do rio, como na

época eu pescava e caçava muito, como você sabe, o emprego aqui na nossa cidade é

difícil e todo tempo a gente tem que se virar por aí por essas beradas e por essas

matas pra ver se pega um peixe ou mata uma caça pra comer ou vender pra gente

defender o boião. Então viemos pra cá não tinha ninguém aqui, aí falemos com o

prefeito ele disse rapaz faz a tua casa lá, não ti preocupa não, nós escolhemos uma

área enorme, tinha muito açaí e eu foi alimpando aí que foi dando e a mulher criava

e era uma vida muito boa, então naquela época era somente três casas, a minha,

depois e de dois compadres, muito depois que veio o pastel, então era assim, não era

como hoje que está desse jeito. Na época não tinha quem quisesse morar aqui irmão,

isso era só um tabocal, era muito feio e também por ser igapó, as pessoas não

queriam morar pra cá, agora veja como está (...)67

.

66

Bajarinhas é a denominação dos moradores melgacenses para as pequenas embarcações e cascos motorizados. 67

Trecho da entrevista com o marajoara Benedito Nogueira, segundo ele, o primeiro morador da atual rua

Orlando Amaral. Entrevista realizada na residência do morador em julho de 2013.

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A memória do morador descreve fatos importantes que nos lembram as formas e

as funcionalidades daquela área. O trapiche municipal da cidade, o histórico “trapichão”,

como até hoje é conhecido pelos moradores de Melgaço, não ancoram embarcações de grande

porte, devido a cidade ficar por trás de um banco de areia, que impossibilita a navegação

dessas embarcações. Esse fato dificultava o embarque e o desembarque de mercadorias e

pessoas que chegavam e saiam da cidade e, como forma de facilitar o acesso, a prefeitura

construiu no início da década de 1990, o porto do Moconha, onde as embarcações e os navios

ancoravam para desembarcar mercadorias que abasteciam algumas mercearias locais, mas, o

maior fluxo era da prefeitura municipal.

O porto do Moconha passa a ser muito visitado pelos moradores da cidade,

principalmente nos dias de domingo quando os navios vinham de Portel e faziam escala em

Melgaço. Dezenas de pessoas iam ao Moconha para tomar banho e ver a chegada e a saída

dos navios levando marajoaras à capital do Estado do Pará. A ponte era o espaço por onde os

moradores se deslocavam a pé e de bicicleta ao porto que dista 1.700 metros da cidade. Com a

falta de manutenção ela foi se deteriorando e com o tempo restou somente alguns sinais

envolvidos pela vegetação, ficando o transporte das pessoas e de mercadorias feitos pelas

embarcações de pequeno porte do trapiche do Moconha até o trapiche municipal da cidade.

Assim, as atividades de lazer dos dias de domingo dos melgacenses não foram mais praticadas

pela precariedade da estrutura do trapiche e falta de manutenção das plataformas que davam

acesso ao rio onde os frequentadores se divertiam.

A partir de meados da década de 1990, ribeirinhos foram chegando à cidade e

passaram a construir suas moradias nas margens da antiga ponte, era uma área que os

moradores da cidade não queriam morar pelas condições físicas do terreno e pela dificuldade

de acesso a água de poço que ainda é a principal fonte de abastecimento da cidade. Outro

fator que não despertava interesse dos moradores era a dificuldade de acesso causado pelas

condições precárias da ponte e a ausência de energia elétrica.

Os migrantes não se importavam com essas dificuldades, o importante era um

lugar próximo ao rio para construir um trapiche e agasalhar suas embarcações, lavar roupas,

tomar banho e praticar as atividades cotidianas dos espaços rurais. Assim, a Rua Orlando

Amaral foi constituindo “formas” e “conteúdos” com muito mais características rurais que

urbanas.

Durante o levantamento de campo constatou-se através de croquis da Secretaria

Municipal de Finanças, que a rua está inserida no bairro centro e possui 54 lotes do lado

direito e 42 do lado esquerdo, todos medindo em média 10 metros de frente por 30 metros de

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comprimento. Entre os 96 lotes, 8 não possui nenhuma construção, conforme, retrata o quadro

7 sobre as formas de ocupação do espaço da rua Orlando Amaral.

Quadro 2 - Uso e Ocupação do solo da rua Orlando Amaral

Moradias Mercearias Bar Oficina

bicicleta/moto

Salão

cabelereiro

Igrejas Trapiche Lotes

vazios

Lotes

com

armações

66 04 03 01 01 04 02 08 09 Fonte: Dados da pesquisa de campo, 2013/14

Nas 66 moradias da rua, habitam em média 400 pessoas que “baixaram”68

dos rios

Pacajá, Camarapi, Carutá, Mapari, Laguna, Tajapuru, Cararijós, Caqualino e outros que

ancoraram suas vidas nos espaços daquela cidade, desde os finais dos anos 1990. As razões

que desterritorializaram aqueles homens e mulheres de seus lugares geográficos e culturais

são diversos, pois, 12% das famílias, afirmaram que no interior não tinham terra própria para

trabalhar e isso começou a causar confusões entre eles, então decidiram “tentar a sorte” em

outros lugares. 66% disseram que vieram para Melgaço por causa da educação dos filhos.

Esses moradores acreditam que a educação da cidade é melhor que a do espaço rural,

principalmente, por falta de professores e, 22% vieram para a cidade em busca de emprego e

melhores condições de vida.

Nesses anseios socioculturais acontece a ocupação e a malha espacial da cidade e

a dinâmica da “cartografia” (MARTIN-BARBERO), dos modos de vidas tidos pela clássica

geografia, como urbanos e rurais que são rompidos pelo entrelaçamento desses espaços no

espaço da cidade de Melgaço, caracterizados por múltiplos sujeitos que transitam entre o estar

e o ser daqueles homens e mulheres, numa condição social e afetiva com a cidade e a vida

ribeirinha e florestal.

Suas condições de cidadãos, contudo, encontram-se fragilizadas, pela ausência de

serviços básicos como água e energia que os colocam na condição de desigualdade social em

relação às outras poucas áreas da cidade. Por outro lado, aqueles moradores encontram formas

e mecanismos adquiridos nos seus lugares culturais de outrora e constroem a interface do

urbano, através do enfrentamento e as negociações culturais entre esses modos de vidas, que

“ancoraram” em lugares ignorados pela “cartografia oficial” da cidade.

68

O descimento do rio é uma expressão usada desde o período de aldeamento quando os índios desciam as

cabeceiras dos rios para ocuparam sua foz. Atualmente os moradores daqueles “Marajós”, continuam

utilizando com muita frequência a expressão “baixar’ e “subir” o rio, onde baixar significa vir em direção a foz

e subir é ir em direção a nascente.

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Faz onze anos que chegamos pra cá, meu pai separou da minha mãe, lá no município

de Portel, no rio Camarapi e depois que acabou a roça que ele deixou passamos a

enfrentar muita dificuldade, somos, três filhas, nenhum homem, mesmo nós

ajudando a mamãe, mas, não tinha como, no mato, sustentar a família. Então nós

tem uma tia que mora em Portel e um dia viemos na cidade e fomos lá com ela e ela

animou minha mãe pra vim embora para Portel e viemos, mas fomos morar junto

com ela e depois de alguns dias não ficou muito bem, foi aí que conhecemos um

(prefeito daqui – grifo nosso), ele conhecia meu pai e quando soube do que havia

acontecido disse pra minha mãe vir embora pra cá que ele dava emprego pra ela, foi

assim que viemos, mas, nós que mora aqui no Moconha, a gente é abandonado, eu

sempre digo, eu não me sinto moradora da cidade. A cidade já é pobre e nós aqui

não partilhamos nem dessa pobreza da cidade, parece que nós não existe (...)69

Diante desse contexto, 26% das pessoas da rua, declararam sentimentos de não

pertencimento à cidade, não se sentem moradores da cidade, se intitularam com identidade

rural, justificando que o abandono das autoridades locais para o acesso a energia, água e

pavimentação os colocam na condição de ruralitas (FREYRE, 1982), usando muitos objetos

atípicos de áreas urbanas, como lamparinas, pote de cerâmicas para armazenar água, além das

práticas de trabalhos que quase nada modificou em relação aos espaços rurais.

Com o aumento demográfico da rua, os impactos socioambientais foram

inevitáveis. A política de aterramento do governo municipal, dos últimos anos e a implantação

da rede elétrica foi decisiva para o crescimento demográfico da rua. Com isso, as residências

passaram a lançar diretamente no solo todos os dejetos sólidos e líquidos, humanos e

industriais. Esses fatores associados à falta de infraestrutura e saneamento básico contribuem

para o baixíssimo nível de qualidade de vida, daqueles moradores.

No prolongamento da Rua Orlando Amaral, está a Estrada Melgaço-Moconha que

dá acesso ao porto do Moconha, área de embarque e desembarque de mercadorias e pessoas

da cidade. No ano de 2003, a administração municipal iniciou a abertura da estrada que estava

intrafegável devido a antiga ponte de madeira ter se deteriorado. Nesse novo projeto, a ponte

em madeira foi substituída por aterros, facilitando o acesso ao porto através de veículo

motorizado. Essas melhorias elevaram as disputas do espaço, ocasionando a valorização dos

terrenos.

Nesse mesmo período, implantou-se a sede da colônia dos pescadores na estrada

e, tanto a colônia, quanto a prefeitura local estava com processo judicial empreitado, por uma

antiga indústria de palmito que se instalou na década de 1970 e entrou em decadência em fins

dos anos 1980, contudo a empresa buscou junto à justiça, o embargo da estrada e a

69

Esta narrativa é de uma das filhas que ancoraram em Melgaço há onze anos e em respeito pela sua história de

vida, decidir não revelar sua identidade, continuar com ela no anonimato, não sei se com isso, ajudo ou

prejudico, mas, estou primando pelo fundamento ético, como pesquisador de não expor alguns sujeitos desse

trabalho seja por sua história ou por seus pontos de vistas políticos, contudo, essas falas já havia ouvido por

outros homens e mulheres daquela rua.

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implantação da sede da colônia, alegando ser proprietária da área por onde passava a estrada.

Como estratégia da prefeitura e a colônia, estimularam moradores ribeirinhos e da cidade,

associados na colônia a construírem casas e povoarem a rua.

As estratégias e os movimentos dos moradores conseguiram vencer o direito de

fixarem suas moradias, nas margens da estrada e, a prefeitura concluiu o aterro. Esses fatores

foram decisivos para o processo de povoamento da estrada do Moconha. Contudo, ainda

existem muitos lotes vazios, como propriedades de famílias da cidade que ainda não

construíram, esperando a rede elétrica e outras melhorias em infraestrutura para valorizarem

as propriedades. O quadro 8 simplifica o processo de ocupação da área.

Quadro 3 - Uso e Ocupação do solo da estrada Melgaço-Moconha

Moradias Mercearias Bar Balneário Residências

fechadas

Igrejas Trapiche Lotes

vazios

Lotes

com

armações

47 02 02 01 11 02 15 9 06 Fonte: Dados da pesquisa de campo, 2013/14

Atualmente, a rua vivencia intenso fluxo de veículos automotores com

passageiros e cargas que chegam e saem da cidade, mas, a maioria dos moradores que residem

na margem da estrada pratica modos de vidas e atividades vinculadas aos espaços rurais.

Esses fatores não nos permitiram precisar a quantidade de pessoas que residem na área, no

entanto, quantificou-se aproximadamente 280 moradores de todas as faixas etárias,

distribuídas em 52 famílias, entre elas estão 17% constituídas por não migrantes, 21%

migrantes de outros municípios e 62% migrantes da bacia hidrográfica melgacense. As 11

residências que estavam fechadas durante a pesquisa, segundo os moradores do entorno, são

famílias que durante a ocupação da área fizeram suas casas, mas não moram na cidade,

utilizam alguns dias do mês, normalmente, quando vêem para reunião da colônia dos

pescadores ou durante o recebimento da bolsa família, encostam as “bajarinhas” e as rabetas

nos trapiches, nas pontes e estivas que estão por toda parte na estrada e em toda a frente da

cidade.

Constatou-se índice muito alto de desemprego, tanto nos habitantes da Rua

Orlando Amaral, quanto nos da Estrada Melgaço-Moconha. Entre a PEA (População

Economicamente Ativa) local, 89% não têm renda fixa, esse indicador contribui para aqueles

moradores não se desvincularem das formas de trabalhos rurais e do mercado informal, que

vem crescendo a cada ano na cidade.

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Entre as atividades rurais, as que aparecem com maior frequência estão a extração

da madeira, palmito, açaí e a pesca. 25% da população, economicamente ativa que trabalham

na prefeitura ou em comércios e lojas da cidade, buscam na pesca e na extração do açaí uma

forma de complementar a economia familiar. Durante os finais de semana, esses moradores

realizam as investidas nas águas e nas florestas, em busca de um dos principais cardápios das

famílias melgacenses que é o peixe e o açaí. Com o auxílio do “casco rabeta”, passaram a

deslocar-se com maior número de vezes entre a cidade e as áreas rurais, conforme relato de

um desses moradores.

Trabalho como ajudante na prefeitura, nosso horário é das sete da manhã às duas da

tarde, mas é difícil ter um dia na semana para nós trabalhar esse horário, então

quando chego em casa, pego a malhadeira e vou bater água por aí por esses garapé e

a gente ainda pega, a gente pega a rabeta e já leva a peconha e o paneiro ou uma

saca e já traz o açaí e isso ajuda bastante, porque a gente ganha pouco, temos

empréstimo se for viver só do salário vai passar fome. Hoje em dia tudo tá caro, um

quilo de peixe do gelo que o pessoal vende lá na frente está oito reais, o litro do açaí

já chegou a dar quinze reais, então a gente tem que ir dando um jeito pra viver e

ainda bem que moramos num lugar que dar pra fazer isso, porque a gente assiste na

televisão que tem lugar que não tem como o pobre viver, né? (...)70

Constatou-se que a maioria dos moradores, que não possuem renda fixa, desloca-

se aos rios e florestas para extraírem madeira e palmito. Esses trabalhadores narraram que

praticam o extrativismo por não haver outra opção de trabalho, mas, financeiramente ela não

garante as necessidades básicas da família. Os extratores da floresta, ainda são vitimas de um

sistema de aviamento realizado pelos comerciantes locais que financiam mercadorias sobre a

condição de juros altos, que inviabiliza o saldo das dividas.

Nossa vida é assim, eles vão para o interior, trabalhar em madeira, não tem prazo pra

vortar, eles dexam uma despesa e levam outra parte e nós fica tariando com o bolsa

família pros meninos não passar fome, então é por isso que já dissemos que não dar,

mas é pior se não for, mas ruim fica.71

Outros buscam a sobrevivência na própria cidade, fazendo o que eles chamam de

bico. O bico são trabalhos que não obedece a uma regularidade na ocupação dos

trabalhadores, entre elas, a mais comum, está a capina de quintal e ajudante de carpinteiros. A

limpeza do quintal é valorizada conforme o tamanho e o estado de sujeira, ou matos que se

encontra o terreno variando entre 30 a 60 reais. Outros 2% são moto-táxi na cidade que

alugam motos por 20 e 25 reais a diária e realizam viagens dentro da cidade, cobrando dois

70

Trecho de uma conversa informal que tive com um morador da rua Orlando Amaral, que o encontrei chegando

de uma de suas investidas na floresta e fiz o percurso com ele entre a ponte onde vinha caminhando até a sua

residência que ficava aproximadamente uns quinze minutos de uma lenta caminhada. 71

Esta informação foi obtida de duas senhoras de aproximadamente 30 anos que moram próximas uma da outra

na estrada do Moconha, durante a “Geoetnografia” realizada no mês de janeiro do ano de 2014.

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reais para dentro da cidade, saindo para a estrada dos agricultores varia entre cinco e dez reais

e ao porto do Moconha é 5 reais a corrida de uma pessoa. Somente 1% dos moradores sem

emprego fixo faz carreto. Esse percentual de carreteiros nos surpreendeu, por acreditarmos

que esta atividade poderia ser uma das mais praticadas pelos moradores da área.

Os moradores afirmaram que abandonaram o carreto por dois motivos, primeiro,

com o surgimento de moto-táxi as pessoas que entram e saem da cidade levam suas coisas na

própria moto. Segundo, os maiores comerciantes estão comprando caminhão que fazem o

transporte de suas mercadorias e os comerciantes menores estão fazendo seus próprios carros

de mão e transportam suas mercadorias com os funcionários dos comércios. Essas foram as

razões que encontramos nos moradores da estrada do Moconha e na Rua Orlando Amaral para

o baixo percentual da atividade de carreteiros.

Além da estrada do Moconha e a Rua Orlando Amaral, a Rua do Matadouro,

localizada na parte Norte da cidade, possui condições físicas parecida com as duas primeiras,

construída sobre ponte de madeira, com precária infraestrutura de energia elétrica, sem rede

de esgoto e água, estão 44 moradias. Desse total, somente uma casa é propriedade de um

morador que foi nascido e criado na cidade, juntamente com a esposa, as demais,

aproximadamente 98% são de famílias que migraram das áreas rurais do município e dos

circunvizinhos. Nessas áreas, o uso e ocupação do solo é basicamente residencial conforme

traz o quadro 9.

Quadro 4 - Uso e Ocupação do solo da Rua do Matadouro

Moradias Mercearias Estaleiro

de

fabricar

rabeta

Matadouro Residências

fechadas

Igrejas Trapiche Lotes

vazios

Lotes

com

armações

44 01 01 01 03 01 08 11 04 Fonte: Dados da Pesquisa de campo, 2013.

A política local de substituição das pontes de madeira por aterramento das ruas,

ainda não contemplou a totalidade dos moradores, a maior extensão ainda encontra-se

articulada por pontes que durante a pesquisa estavam em precárias condições de usos,

causando alguns transtornos aos aproximadamente 260 moradores.

A ocupação dos moradores da rua está vinculada ao que Santos (2009) o

caracteriza como “circuito inferior” da produção, muito comum em países considerados

subdesenvolvidos ou de economias em desenvolvimento. Ribeirinhos migrantes, por não se

enquadrarem nas “especialidades” de trabalho ofertado pelo setor público, maior posto de

trabalho da cidade, pluralizam as fronteiras do trabalho e se tornam moradores com múltiplas

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identidades funcionais, transitando espaços da cidade, rios e florestas em atividades múltiplas,

como, tirador de palmito, madeira, produtor de farinha, capina de quintal, pescador, ajudante

de carpinteiro, vendedor ambulante (picolé, sorvete, chope e lanches) e outras atividades

braçais.

Essas pluralidades funcionais corroboram com a tese das rurbanidades, o espaço

da cidade não vivencia a especialidade da vida urbana, o cotidiano dos moradores

melgacenses desconstroem esses conceitos que vieram erroneamente, tentando afirmar as

dualidades campo x cidade.

A beira-rio é uma área localizada na porção Norte da cidade, construída por

moradores migrantes que vem ampliando o quantitativo demográfico da cidade e

consequentemente, a disputa pelo espaço da cidade. As condições financeiras desses

moradores, associadas aos aspectos da cultura ribeirinha ocupam terrenos alagados e

próximos ao rio que pertenciam às terras do patrimônio municipal. A beira-rio é um espaço da

cidade totalmente sobreposta as águas da baia, as residências ficam todas em cima da praia

que durante o período de maré alta, parece que as residências estão flutuando sobre as águas.

O Quadro 10 descreve numericamente o uso e ocupação do espaço.

Quadro 5 - Uso e Ocupação do solo da rua Beira-Rio

Moradias Mercearias Matadouro Residências

fechadas

Igrejas Trapiche Lotes

vazios

Lotes

com

armações

12 -- -- -- -- 06 -- 03 Fonte: Dados da Pesquisa de Campo, 2013.

Habitam nessa área, aproximadamente 80 pessoas, todas migrantes do espaço

rural dos municípios de Melgaço e Portel. As ocupações dos moradores correspondem em 4%

na construção civil com carteira assinada; 1% empregada doméstica com renda inferior a um

salário mínimo e a grande maioria se declarou agricultores, pescadores, carpinteiros, tendo

como única fonte de renda fixa o Programa Bolsa Família do governo federal.

Durante as semanas que a maré amanhece cheia, os homens saem para suas

ocupações e as mulheres com as crianças animam aquela franja espacial da cidade. As donas

de casas vêem para os trapiches lavar roupas e colorir os varais dos trapiches que são

animados pelas brincadeiras das crianças, que agitam o cotidiano daqueles moradores.

Nos finais da manhã ou do dia, os pescadores, começam a chegar com os “cascos

rabetas” cheios de isopor e os apetrechos de pesca, (re)significando as funcionalidades dos

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trapiches, onde as mulheres passam horas cuidando peixe e as crianças saem para

comercializar esses pescados pelas ruas da cidade.

Esses indicadores de ocupação e uso do solo das áreas que margeiam a baia de

Melgaço, refletidas pelas práticas dos sujeitos que o produz, constituem as materialidades

espaciais intimamente vinculadas às condições socioeconômicas e socioculturais das

populações que o produzem e dinamizam as funcionalidades do lugar, vinculadas pelas

práticas de vidas, tanto urbanas quanto rurais, caracterizando outras “formas” e “conteúdos”

que entrelaçam com as urbanidades a partir das teias espaciais de consumo, como, a televisão,

a internet e a telefonia móvel.

4.3.2 Entre estivas e lamas percorrem os moradores no “escuro” da cidade

A consideração de Lefebvre (1969) sobre urbanização elimina a dualidade campo-

cidade de maneira contraditória e, que faz permanecer as “ilhas de ruralidades”. Nesse

sentido, considera-se que essas ruralidades estabelecem relações socioculturais, sociopolíticas

e socioeconômicas com as urbanidades e ao invés de desaparecer, uma ou outra, elas se

intensificam e mantêm-se visíveis no espaço.

Por outro lado, o espaço é uma produção social desigual e contraditória que na

cidade se manifesta como foco desta relação. Percebendo as formas e os fluxos, como

elementos fundamentais para entender o espaço na sua condição social e cultural, Endlich

(2010), problematiza a questão com a seguinte pergunta: “serão as favelas espaços

mediadores entre o campo e a cidade, ou espaços que expressam a contradição existente no

processo de urbanização precária em países como o Brasil?”

Nossa fundamentação é que o espaço das cidades marajoaras, tendo como foco de

discussão a cidade de Melgaço se contextualiza não apenas na mediação, mas, ela é tanto rural

quanto urbana pelos modos de trabalhos, práticas de produção, uso e consumo do espaço

expressado no cotidiano dos sujeitos sociais que produzem as “formas” e “conteúdos”

(SANTOS, 1994) da “cidade-floresta” (PACHECO, 2006).

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Fotografia 20 - Cotidiano dos moradores da estrada do Moconha.

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 2014.

No entanto, os sujeitos que (re)produzem a “malha espacial” (SANTOS, 1994) da

cidade, lançam mão dos saberes arquitetônicos adquiridos pelo intenso processo histórico e

cultural do “saber-fazer72

” e, passam a construir formas espaciais que não expressa somente

uma periferia, mas, ao mesmo tempo, significados culturais de fazer o espaço através dos

recursos que estão acessíveis às suas condições culturais e econômicas. Assim os moradores

que sonham com uma vida melhor na cidade reconstroem o espaço numa lógica deslocada do

rural e distante do urbano, conforme retrata a Figura 22 do espaço da estrada do Moconha.

Valdenora e Pautauá relatam as experiências que eles vivenciam na estrada do

Moconha e os desafios que precisam enfrentar todos os dias, pela falta de infraestrutura na

cidade. Contudo, além desses sujeitos identificamos dezenas de homens, mulheres e crianças

que, cotidianamente, experimentam o peso de habitar áreas urbanas com precárias ou quase

nenhuma infraestrutura.

72

O conceito do “Saber-Fazer”, foi chamado por JARDIN (2013) de arte, fundamentado em dois principais

autores, PAREYSON (1997) que atribui toda prática do fazer como uma arte e WILLIAMS (2000)que advoga

o saber como pluralidades de formas sociais. Nesta pesquisa, seguimos o “Saber-Fazer” sob as orientações de

WILLIAMS fundamentadas pelas pluralidades das formas sociais, seguida da categoria geográfica “espaço”.

As formas hibridas do que seria rural e urbano se refazer por práticas de vidas e trabalhos de sujeitos sociais

que se apropriam de saberes historicamente acumulados e apreendidos numa intensa convivência de relações

familiares e comunitárias e deslocam ao espaço da cidade como “forma social e cultural” presentes nas

urbanidades amazônicas no século XXI.

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Ah irmão a vida aqui não é nada fácil, como você pode ver, é o dia inteiro este

movimento de moto aqui, por aqui, passa toda a riqueza que chega na cidade, mas,

nossa realidade é esta, não temos água, nem luz, não digo nem do asfalto, porque,

isso, basta jogar seixo com areia e já cobre esta lama, mas nem isso é feito. Em

primeiro lugar precisamos da luz, a gente não tem como gelar uma água, assistir

uma televisão, carregar um celular, ligar um ventilador, nada disso podemos usar,

porque não temos luz na nossa rua. Depois da luz, o que mais, abala nossa vida é a

dificuldade de água, aqui não dar pra fazer poço, o terreno é alagado e torneira nem

se fala, temos que pegar água do rio e não temos condição de tratar então a vida fica

muito difícil, parece que nós não moramos na cidade.73

A narrativa da sustentação ao título deste tópico. As áreas do Moconha,

Matadouro e Tucumã são vivenciadas por seus moradores na “peleja” por acesso a água e luz.

A ausência desses serviços nos faz recorrer ao campo teórico de Santos (2012) que advoga a

tese, de que nessas áreas há um espaço sem cidadãos, se referindo, principalmente, ao papel

do estado de direito, onde a falta de cidadania ao homem do campo brasileiro os empurra para

as periferias das cidades, que passa a sobreviver de maneira muito mais subalternizada,

devido não apenas as limitações econômicas, mas, principalmente, espacial em que esses

indivíduos se encontram.

Valdenora, moradora da estrada do Moconha descreve a realidade em que está

inserida e justifica a necessidade de sobreviver na cidade.

Já pensei em vender nossa casa, lá no interior é muito melhor pra nós, mas, nós

pensa no estudo dos meninos, a educação no interior é difícil e chega um momento

que acaba, não tem mais as outras séries e é por isso que nós ainda não vendemos

aqui, mas, se tivesse quem comprasse nós vendia pra comprar ao menos um terreno

aí pra terra, aqui é muito bom por uma parte, é mesmo que nós está lá no interior, é

assim, alegre, bonito, venta, a gente tem onde lavar uma roupa, tomar banho, a gente

tem onde agasalhar nossa rabeta, até colocar um matapi e pegar camarão, tem nosso

açaizal aí pra trás, tem como a gente plantar, mas, a falta de luz é muito ruim, os

meninos tem que sair pra assistir televisão lá pra cidade e fica pela rua e nós não

gosta, quando chega a noite é aquela escuridão, se a gente adoecer de noite é

arriscado morrer, se tivesse esses serviços aqui, como luz e água, era uma maravilha

e outra coisa, quando chove ou quando é época de lançante que a água passa por

cima da rua, a gente não consegue ir pra cidade andando, nós vai de rabeta, além

disso, não dar pra fazer poço e a gente tem que pegar água do rio e nós tem medo, de

pegar doença. Lá no interior a gente também pega água do rio, mas, a água não

como da cidade, então essas são nossas dificuldades aqui.74

As limitações vivenciadas por esses moradores são inúmeras, contudo, nas

narrativas e em conversas informais com outros moradores da cidade o que mais aparece é a

falta de energia e água nas áreas de expansão e nas demais a pavimentação das vias públicas.

Além disso, constatamos que esses ribeirinhos não deixam seus lugares no “interior” por

vontade própria. Eles realizam o que Santos (2012) o caracteriza como “migração forçada”,

73

Trecho da narrativa com o marajoara Patauá, realizada em sua residência em janeiro de 2014. 74

Trecho da entrevista com a marajoara Valdenora, realizada na sua residência em janeiro de 2014.

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causadas pela carência, nos serviços de educação e saúde dos espaços rurais. Essa

desterritorialização ribeirinha não acontece em sua totalidade, pois, os migrantes que estão

fixando moradia nas áreas de expansão da cidade, nos últimos dez anos, não se desfizeram de

suas casas na área rural.

Esse indicador sinaliza a forte resistência que os sujeitos mantêm pelos modos de

vida urbanos e, isso se justifica com a presença das ruralidades, conduzidas ou construídas por

eles nas residências da cidade.

A “peleja” daqueles homens, mulheres e crianças para viver na cidade, exige as

constantes travessias nas estivas improvisadas em busca de água, lavagem de roupas e outras

atividades domésticas e práticas de mariscos e, do extrativismo vegetal da madeira e do

palmito. Toda a extensão da Rua Orlando Amaral, estrada do Moconha, rua do matadouro,

invasão da nova aliança, vala da Wilson Ribeiro e Beira-Rio, são áreas de igapó75

, inundadas

periodicamente pelo movimento das águas (enchente e vazante) da baia de Melgaço e estão

sofrendo forte processo de ocupação humana.

A ocupação antrópica dessas áreas causa danos ao ambiente físico e,

principalmente, humano que os habitam. Na cidade de Melgaço, essa realidade não é diferente

e, ao mesmo tempo é dinamizada por muitos significados na vida dos moradores. Quando os

questionamos sobre a escolha daquelas áreas para morar, 68% afirmaram que fizeram suas

moradias em uma das referidas ruas por estar próxima do rio e facilitava o agasalho dos

barcos, rabetas e cascos. Em segundo lugar, com 32% foi a facilidade de adquirir um terreno

de graça ou mais barato para comprar. Esses indicadores confirmam a definição de Oliveira

(2011) que “a cidade ribeirinha é aquela, cujas práticas interativas e o próprio modo de vida

estão intimamente ligados com o rio.”

No entanto, essas ocupações têm um preço significativo aos próprios moradores.

As áreas citadas anteriormente, não possuem abastecimento de água, saneamento básico,

energia elétrica, aterro, esgotamento superficial e sanitário, nem pavimentação e, aparenta alto

nível de poluição com a presença de uma carga significativa de resíduos sólidos flutuando nas

águas paradas que envolvem as moradias e dejetos sanitários a céu aberto.

75

Segundo as pesquisas do Mestre em ecologia aplica (USP), Luiz Felippe Salemi, conclui que, várzea e igapó,

são ecossistemas amazônicos que sofre influências das águas, inundados periodicamente pela ação dos rios,

principalmente durante o período mais chuvoso. A principal diferença é a coloração das águas dos rios, ou seja,

os rios de águas brancas como o caso do Amazonas que carrega grandes cargas de sedimentos em suspensão, o

ecossistema é de várzea. O igapó são ecossistemas inundados pelos rios que carregam alto teor de material

orgânico dissolvidos, como é o caso do rio Negro e da baia de Melgaço que é formada pela desagua dos rios de

“agua preta”, entre eles, então, Anapú, Camarapi, Pacajá e Acutipereira.

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Esses desafios são enfrentados pelos moradores com fraca mobilização popular,

mesmo reconhecendo a fragilidade de políticas públicas locais para amenizar os problemas

acima citados. Durante a geoetnografia realizada nas áreas do Moconha, Beira-Rio,

Matadouro, Vala da Wilson Ribeiro e Invasão da Nova Aliança, não identificaram nenhum

morador que demonstrasse satisfação pela ação dos governantes locais, em relação aos

principais desafios que eles vivenciam nessas áreas.

Com isso, os moradores empreitam, cotidianamente sobre estivas o transporte de

água retirada da baia para as atividades diárias da família, inclusive ao consumo humano.

Outros enfrentam as filas nas torneiras das escolas públicas e carregam centenas de metros de

distancias em recipientes conduzidos sobre o corpo ou em carros de mão, dezenas de baldes

com água, todos os dias. Esta atividade envolve homens, mulheres e crianças que, diariamente

fazem de seus corpos a marca do enfrentamento dos problemas que a cidade lhes impõe.

Fotografia 21 - Mulher melgacense no ofício de carregar água.

Fonte: Alex/UOL, 2013

A dura realidade enfrentada por esses sujeitos faz parte do possível “padrão

espacial” amazônico classificado por Trindade Jr. Silva e Amaral (2008), como o “padrão

ribeirinho” que orienta tanto o processo de produção e consumo, quanto pelas relações que

esses moradores estabelecem em muitas etapas da vida social, vinculadas direta ou

indiretamente com o rio.

Os desníveis nos padrões espaciais apresentados pela fragilidade das políticas

públicas não estão no foco de nossas discussões. Assim, como outros pesquisadores das

cidades amazônicas, compreendemos que a sociedade contemporânea, por si só, não nos

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permite interpretar a Amazônia apenas relacionando-a com suas crises, mas também com as

virtualidades e características que as “cidades da floresta” (TRINDADE Jr. 2008) apresentam.

As dinâmicas dos transportes fluviais, afirmação de cotidianos marcados pelas

relações, diretamente vinculadas com a natureza e pelas práticas da cultural local em dialogar,

resistir e negociar com as formas espaciais das urbanidades contemporâneas, afirmam não

somente uma pluralidade espacial do urbano brasileiro, mas, traz a tona outras geografias que

estão latentes no cotidiano das cidades, que as lentes da cartografia oficial ainda não têm

alcançado ou ignora.

Por outro lado, as práticas de ocupação espacial das pequenas cidades amazônicas

são historicamente, marcadas pela ausência e precariedades de serviços básicos de

infraestrutura, que são motivados pelas dificuldades dos gestores locais, em materializar

políticas urbanas conectadas ao contexto sociocultural dos moradores, além da forte

dependência que aquelas sedes municipais apresentam em relação as suas vidas econômicas,

junto ao governo estadual e federal.

O relatório de estatística dos municípios paraenses cita as principais fontes de

transferência dos recursos financeiros, do município de Melgaço: transferência do ICMS

(Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços); FPM (Fundo de Participação dos

Municípios); IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados); FUNDEB (Fundo Nacional de

Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de

Educação) e IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores), onde os valores

agregados dessas fontes não ultrapassam a 20 milhões de reais/ano.

Essas dependências financeiras e o histórico padrão oficial, imposto para todas as

regiões do país fazem da “Amazônia Marajoara” uma vítima dessas padronizações, tentando

colocar a margem práticas e modos de vidas que poderiam estar sendo mais bem conhecido

pelos órgãos nacionais, Estadual e municipal, responsáveis pelas políticas de gestão e

planejamento das cidades.

Diante desse contexto, os moradores da cidade de Melgaço, “formados” nas

trilhas das seringueiras, nos bancos dos cascos e nos movimentos dos remos, nas subidas e

descidas das palmeiras do açaí, aprenderam independentemente da idade e do gênero, a

exercitar seus corpos como forma de superação das dificuldades que a modernidade lhes

impôs. Por isso, que cada vez mais articulam suas vidas aos saberes historicamente

acumulados com os rios e a floresta, para compensar as dificuldades que eles vivenciam em

seus cotidianos.

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Essa forma de vida praticada nos espaços da cidade, não transforma a natureza em

recursos de bens e serviços que existem pelas necessidades de valores econômicos, mas em

formas espaciais construídas por populações que aprenderam a lidar com essas naturezas, não

somente como sinônimo de lucros, mas, como modos de suprir suas necessidades,

apreendidas com seus antepassados ainda hoje visíveis no espaço e na memória dos

moradores.

Não tenho medo de cair dessas pontes, o que pode acontecer é uma tábua dessa

quebrar ou arrancar uma dessas travessas, mas de cair assim de ir andando e cair

(sorriu) mas quando, sou acustumada, desde criança nós sempre andemos por cima

de açaizeiro, rolos de madeira, hum! miritizeiro que o papai tirava pra fazer o

trapichu, quando a água tava grande era engraçado, aqueles enorme de miritizeiro e

a gente andava por cima dele e era aqui e a colá que tinha uma vara afincada e nós

disputava pra ver quem ia lá no fim e voltava sem cair na água e quem dera que o

miritizeiro ficasse firme, ele ficava rolando na água, então desde criança foi

acostumada. A dificuldade é a distância pra gente buscar água, isso cansa muito, tem

dia que a gente carrega muita água, o meus braços fica doído, porque a gente tem

que encher o balde e colocar na cabeça então isso dói muito no fim do dia o braço da

gente.76

Nesse sentido, Carlos (2008) analisa o espaço urbano “dentro da perspectiva

aberta pelo materialismo dialético”, ressaltando que não se trata de transpor as categorias

marxistas para as interpretações geográficas, mas, “entender a relação homem-natureza num

outro patamar, o que significa repensar o lugar do homem dentro da geografia e, o significado

do espaço” como processo que supera o conceito marxista de trabalho, entendendo a

significância do cotidiano dos habitantes do espaço urbano como revelador de uma cidade que

se constrói e reconstrói pelos processos socioculturais e não como fábrica. Através do

cotidiano, as interpretações geográficas da cidade compreendem o espaço na sua totalidade e

identificando as relações sociais, culturais, políticas e econômicas que comandam o processo

de determinada parcela da cidade.

Os moradores da estrada do Moconha, Rua do Matadouro, Beira-Rio, Invasão da

Nova Aliança e do bairro do Tucumã, por não terem energia elétrica adotam o sistema de

vizinhança, entre grupos de três e quatro famílias que compartilham energia de uma das casas,

cujo proprietário conseguiu trazer a centenas de metros distantes da residência cabos elétricos

improvisados, seguros por pequenas varas de madeiras que retiram da floresta ou improvisam

fixando vários pedaços até formar um “poste”, sobre um quintal e outro, transportam energia

elétrica de determinado lugar onde a fornecedora de energia disponibiliza o acesso ao serviço.

76

Conversa informal com a morada da Figura 20, realizada em agosto de 2013, na frente da sua residência na rua

Orlando Amaral.

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Esta luta por acesso à energia construiu em vários pontos da cidade, aglomerados

dos medidores de energia fixados em quadrados de madeiras por onde se distribui até as

residências que estão a centenas de metros distantes, como mostra a fotografia 22 de um

desses pontos de concentração da cidade.

Fotografia 22 - Estação 1 – Bairro Tucumã.

Fonte: Arquivo particular de Luiz Renato Dias da Silva, 2013.

Estamos chamando de “estação” para esclarecer que neste bairro existem cinco

estações, todas com a mesma característica. Os moradores afirmaram que esta é a única

maneira que eles têm de obter um “bico de luz” nas suas residências. Contudo, alguns

aspectos vieram nos despertando para essa dinâmica espacial. Um deles está nas formas

espaciais77

produzidas pelos moradores da cidade, fundamentada na relação de trabalho que

supera a clássica geográfica da dualidade sociedade-natureza e constitui a tese que o espaço é

a própria relação estabelecida pelas sociedades, mediadas pelo trabalho78

.

Adentrar esses espaços é identificar outras geografias e compreender o urbano,

pelas linhas da escrita de Carlos (2008) que desafia a ciência geográfica a “emergir de uma

reflexão dos dados postos pela vida cotidiana”, afirmando que o homem é o maior sujeito de

construção do espaço, como uma extensão de reprodução da própria vida, onde os bens

materiais e simbólicos resultam nas identidades de seus meios de subsistências.

O transporte de energia elétrica em cabos e postes improvisados, percorrendo

sobre florestas e águas até as residências mais distantes, transforma o espaço urbano muito

77

Carlos 2008, considera o espaço como o ponto central da geografia. 78

O conceito de trabalho utilizado neste trabalho está fundamentado nas abordagens teóricas de Ana Fani A.

Carlos (2008) que considera o trabalho como um meio pelo qual o indivíduo se relaciona com outras pessoas,

produz seus meios de subsistência, materializa seus modos de vida e constitui o espaço geográfico.

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mais que um pedaço de terra escolhido pelo indivíduo para construir a sua residência, é o

lugar da vida, como afirma Carlos (2008).

(...), não é a produção de bens para a satisfação de suas necessidades materiais, e

também a produção de sua humanidade, através da produção de relações (sociais,

econômicas, políticas, ideológicas, jurídicas, etc.). Por outro lado, a articulação

dessas relações tende a individualizar-se espacialmente, dando singularidade às

parcelas do espaço, articuladas numa totalidade espacial (como produto histórico).

(CARLOS, 2008.p.23).

A escuridão dessas áreas não é somente física, mas, também cultural, política e

econômica. Os moradores das ruas e bairro em questão expressam o descontentamento das

precárias condições de infraestrutura que vive as ruas e pontes por onde moram e transitam.

Eu morava no rio Quaquajó e algumas coisas por lá passaram a não dar certo, como

meu pai tinha dois terrenos aqui, ele me deu um e vim pra cá fiz minha casa,

matriculei os meninos. Quando cheguei aqui era uma ponte muito ruim, as crianças

caiam muito, era escuro não tinha luz, depois de uns dois anos a prefeitura mandou

aterrar, ficou bom, graças a Deus, mesmo não tando até lá no fim, mas melhou

muito, principalmente, porque a energia aproximou mais e aqui onde é aterrado

afincaram os postes e colocaram lâmpadas e ficou 100%, mas, meu amigo, quando

passa dias sem chuver é um pueral medonho que a casa tem que tá todo tempo

fechada e quando chove é a lama, muita vez eu carrego os meninos até lá onde passa

o asfalto pra eles irem pra escola, porque não tem condição, então nessa parte eu

acho que nossas autoridades podia cuidar melhor da cidade, é muito ruim, você sair

da porta da sua casa e pisar na lama (...)79

A narrativa revela sujeitos que transitam entre as formas e conteúdos culturais,

políticos e econômicos desses “Marajós” (PACHECO, 2006) que é florestas, águas, vilas,

espaços menos aglomerados da calmaria ribeirinha e das cidades que também é tudo isso.

Essas pluralidades conduzem homens, mulheres e crianças pelo embalo das águas escuras e

barrentas da rede hidrográfica melgacense “que cortam teus solos em todos os sentidos”80

movidos pelas embarcações, bajarinhas e rabetas, ancorando nos portos da cidade e trazendo

consigo, a esperança de uma vida melhor. Esses sonhos são motivados pelos exemplos

daqueles que em outros tempos, também chegaram e foram alcançando um dos objetivos que

“era continuar os estudos dos filhos”.

Por outro lado, “o mito da cultura urbana” (LEFEBVRE, 2002), que garante o

exercício dos direitos pleno da cidadania não está pronto, a cidade é uma eterna construção

individual e coletiva. “O direito à cidade” (LEFEBVRE, 2001), quanto à infraestrutura,

serviços estão muito distantes do cotidiano daquelas ruas e bairros melgacense.

79

Essa narrativa foi obtida durante o período de uma semana de observação participativa realizada na rua do

matadouro de um morador que encontramos transitando por aquelas pontes, denominado de Paulo Sergio, em

janeiro de 2014. 80

Trecho de uma das estrofes do hino do município escrito pelo memorialista, morador melgacense, hoje

falecido, Francisco Mamede, popularmente conhecido como “Chico Mamede”.

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4.3.3 Espaço e Cultura na Margem da Baia de Melgaço

O objetivo deste tópico na discussão conceitual das “rurbanidades” é apresentar os

processos socioculturais e socioeconômicos, que orientam a produção e uso do espaço da

cidade que está voltada à margem da Baia e das áreas próximas que são inundadas pelos

movimentos das águas, do referido acidente geográfico. Além de identificar os principais

sujeitos de produção do espaço das referidas áreas e contextualizar os aspectos sociais,

históricos e culturais que motivam as ocupações próximas ao rio do perímetro urbano

melgacense.

Fotografia 23 - Vista panorâmica da frente da cidade de Melgaço – 1968.

Fonte: Arquivo pessoal Ana Kelly Amorim

A cidade de Melgaço, historicamente apresenta um padrão de ocupação espacial

vinculado ao rio, a fotografia 23 confirma este padrão, sete anos após a oficialização do

município. Os percursos dos rios orientaram e continuam orientando a produção e o consumo

do espaço das cidades da “Amazônia Marajoara”. A gênese espacial daquelas cidades,

afirmam os rios como principal via de acesso de pessoas, produtos e mercadorias que vieram

historicamente orientando a produção e a expansão urbana regional.

Nesse contexto sociocultural, Melgaço identifica-se como uma cidade ribeirinha,

pelas históricas relações que estabelece com os espaços rurais/ribeirinhos e vice-versa. É

possível registrar em todos os bairros e ruas da cidade, modos de vidas da cultura material e

sensível presentes no cotidiano da maioria dos habitantes da cidade.

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As décadas de 1960 e 197081

a população urbana melgacense era de 364

habitantes. Esses moradores produziram o espaço das tradicionais “rua da frente e rua de

trás”, atuais Avenida Senador Lemos e Rua 12 de Outubro, respectivamente. Durante os

decênios de 1980 e 1990 a população urbana passou para 2.302 habitantes, esse quantitativo

demográfico ocasionou significativas alterações na malha espacial da cidade, entre eles, o

prolongamento da Avenida Senador Lemos e da Rua 12 de outubro e abertura das ruas 1º de

maio, 31 de março, 7 de setembro, São Miguel, Marechal Rondon, Antônia Nogueira e

Francisco Leite. Neste período acontecem as primeiras ocupações em áreas alagadas e a

construção das primeiras ruas sobre ponte, 1º de maio e parte da Rua 31 de Março.

Os primeiros cinco anos do século XXI (2000 e 2005) a população urbana atinge a

casa dos 4 mil habitantes (4.227), ampliando significativamente a malha espacial da cidade. O

prolongamento das ruas preexistentes e a produção do espaço das ruas do Matadouro, Invasão

da Nova Aliança, Estrada do Moconha, Maromba e Beira-Rio marcaram a maior ocupação de

áreas alagadas da cidade.

Esses espaços foram produzidos a partir da migração de famílias ribeirinhas que

vieram dos municípios de Melgaço, Breves e Portel, principalmente. A localização nas

referidas ruas é a garantia da continuidade dos modos de vidas e práticas de trabalhos rurais

que aquelas áreas oferecem aos sujeitos, a realizarem atividades vinculadas aos rios

marajoaras.

O embarque nesses cotidianos, no entanto, nos permite adentrar em práticas

sociais, modos de vidas, crenças e costumes que movem e orientam as vidas daquelas

populações, em intenso processo de negociação com as urbanidades. Nesse percurso

metodológico, Carlos (2012) conceitua o espaço “como aspecto fundamental da reprodução

ininterrupta da vida”. A narrativa de Manoel Maria, morador da Rua do Matadouro, confirma

esse conceito espacial na cidade de Melgaço.

A moradia aqui é muito boa, a gente que foi acostumado a morar no interior, não

gosta do barulheiro da cidade, mesmo Melgaço sendo pequena, mas, tem rua pra ir

que eu não me acostumava a morar, primeiro, porque não me sinto bem morar

encostadinho no outro, outra coisa, aqui nós planta nosso tempero, nós cria, nós

temos nossa planta medicinal, então, pra mim este lugar me ajudou muito porque

nesses aspectos é mesmo que teja lá no mapari. Olha, temos nosso casco,

malhadeira, remo, quando o negoço pega a gente põe uma rede de malha, pega dois

81

A década de 1960 é o marco histórico da oficialização do município de Melgaço e a afirmação da cidade como

a sede municipal, por isso que estamos partindo desse período, o quantitativo demográfico das bases de dados

do IBGE estão disponíveis a partir deste período.

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três peixe, tira o açaí aí no quintal, manda bater e já tá feito a comida. O que ainda

dificulta é que nós não tem uma máquina de bater açaí, quando nós tiver pronto82

.

Por outro lado o espaço urbano melgacense, mesmo sendo produzido por sujeitos

que descendem de matrizes culturais fundamentadas em códigos das oralidades, ao fixarem

suas moradias nos territórios da cidade não se desprendem de práticas de trabalhos, formas de

morar, práticas de curas, práticas alimentares e religiosidades características de seus lugares

culturais, tornam-se sujeitos responsáveis pela construção de outras identidades urbanas que

entrecruzam dinâmicas espaciais e culturais antagônicas e desconexas, pluralizando e

diversificando as “formas” e “conteúdos” do espaço. A Fotografia 24 registra a presença dos

saberes medicinais espacializados, nos quintais dos moradores da cidade.

Fotografia 24 - Horta caseira urbana

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 2013.

Esses espaços são construídos normalmente, pelas mulheres com a ajuda das

crianças e estão mais presentes na porção territorial que fica ao Norte e ao Sul da área central

da cidade.

A frente da cidade de Melgaço se caracteriza por duas formas paisagísticas bem

distintas. No centro está a área mais antiga, retratada na Fotografia 24, construída desde o

século XVII com a chegada dos padres jesuítas, iniciando as formas de aldeamento no lugar.

82

Conversa informal realizada com o morador Manoel Maria, migrante do rio Mapari, município de Melgaço,

realizada em dezembro de 2013.

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Atualmente, é a parte da cidade mais urbanizada com formas e conteúdos

característicos de ambientes urbanos, moradias em alvenarias e outras infraestruturas urbana

como, cais de arrimo, pavimentação das vias públicas e a maior concentração comercial

registrada na Fotografia 25.

Fotografia 25 - Vista da frente da cidade (2006)

Fonte: Plano Diretor Participativo – 2006.

Esta área compreende o espaço mais antigo da cidade que tem como marco

inicial, ao Norte o complexo estrutural da igreja católica e ao Sul o trapiche municipal e a

Praça João XXIII. Neste perímetro estão residindo famílias mais antigas da cidade, os

comerciantes e os centros dos poderes legislativo, executivo e judiciário.

Além dessas funcionalidades de comércio e serviços públicos, a frente de

Melgaço é o espaço onde se realizam as maiores festas populares da cidade. No período de

comemoração do carnaval e frente da cidade se transforma em corredor da folia melgacense

por onde desfilam os blocos carnavalescos. No mês de julho, os moradores e visitantes

apreciam os finais de semana divertindo-se com as programações do festival de verão que

vem sendo realizado há 22 anos. Na semana da pátria acontecem o desfile de rua das escolas

municipais e uma estadual, que concluem seus desfiles temáticos com apresentações na frente

da cidade onde estão as autoridades municipais e a população em geral, esperando a

apresentação das escolas e, no dia 30 de dezembro comemora-se o aniversário do município

com a escolha da “miss Melgaço”, programação que se desdobra para o dia 31, festejando a

chegada do ano novo.

Ao Norte da igreja católica, encontram-se as áreas das ruas Francisco Leite,

denominada de Maromba, Beira-Rio, Vala da Wilson Ribeiro, Matadouro e Nova Aliança.

Nesses espaços, há outra realidade estrutural e socioeconômica em intenso processo de

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ocupação. A maioria dos moradores dessas ruas são migrantes ribeirinhos que chegaram à

cidade e foram construindo suas residências sem nenhuma intervenção municipal.

Essas áreas têm como característica física terrenos inundáveis, diariamente pelos

movimentos de maré, típicos dos rios e baias da “Amazônia Marajoara”. Ribeirinhos

migrantes ao chegarem à cidade, trouxeram consigo, não apenas uma relação com os rios e as

florestas, mas, principalmente, uma identidade com esses espaços e, foram se fixando nessas

áreas por estarem mais próximas à baia. Neste sentido é que procuramos abordar a relação

identidade e espaço, a partir de uma discussão urbana e cultural.

O primeiro suporte metodológico, para relacionarmos a identidade com o espaço é

a certeza que a primeira necessita de uma porção física à sua existência e reprodução. Neste

contexto sociocultural e socioespacial, Santos (1997) afirma que, o espaço é um híbrido

constituído pela intercessão de dois principais sistemas, os de objetos e os de ações. Esses

sistemas são dinamizados por sujeitos sociais que, historicamente, constituem processos de

identidade que expressam as subjetividades individuais e coletivas produzidas por uma série

de sensações produzidas, a partir dos encontros que eles realizam entre si e com o espaço.

A geoetnografia realizada na cidade constatou no cotidiano dos moradores,

práticas socioespaciais e socioculturais que confirmam a existência dos “sistemas de ações e

objetos” (SANTOS, 2004.) que afirmam identidades ribeirinhas em diálogo e negociação com

as urbanidades.

Nessas áreas residem, principalmente, trabalhadores rurais que buscam na

atividade da pesca, a principal fonte de subsistência da família. Esses moradores produzem

formas espaciais na cidade, fundamentadas em suas raízes culturais e nos símbolos

econômicos que dinamizam suas vidas. A ausência de maiores acessos de renda leva aqueles

sujeitos se apropriam dos saberes que trouxeram dos espaços rurais e, construírem suas

moradias de acordo com a arquitetura ribeirinha, produzindo uma pluralidade de

“microgeografias” (COSTA, 2005) dinamizadas por uma diversidade de pequenos territórios

que intensificam os “fixos” e as formas de consumo do espaço da cidade.

A expansão do espaço urbano melgacense é uma extensão dos tecidos rurais que

adentram a cidade a medida que moradores ribeirinhos são desterritorializados das margens

dos rios da região. A arquitetura dessas áreas é principal materialidade das ruralidades

imprimidas na malha espacial urbana. A fotografia 26 de uma das residências da Rua do

Matadouro nos subsidia na tese, que o espaço urbano melgacense reflete as características

culturais ribeirinhas.

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Fotografia 26 - Residência da Rua do Matadouro

Fonte: Arquivo pesquisa, 2013

Essas diversidades de formas espaciais, que a cidade de Melgaço vem

configurando em seu espaço, Costa (2005) atribui como resultado de uma centralidade

econômica que reconstroem no espaço, “ora centralidades, ora periferias de forma aleatórias”.

Por outro lado, a cidade não pode ser entendida apenas pela perspectiva socioeconômica,

obviamente que na cidade atual, o fator econômico, assume papel importante no processo de

segregação espacial urbano, no entanto, há que considerar o espaço urbano como uma rede de

relações que “rasgam” as fronteiras econômicas através das diversidades sociais produzidas

nos constantes encontros com o outro e o espaço, constituindo as “microgeografias”.

Nessas “microterritorialidades” (COSTA, 2005) estão latentes, as práticas de

curas e pesca. A maioria dos moradores busca a cura de determinadas doenças, através de

benzedores e chá de folhas e raízes que cultiva nos quintais ou tomam emprestadas das

vizinhanças. A pesca artesanal constitui a base de sustentação familiar. Os ribeirinhos

rurbanos praticam a pesca com utensílios como, malhadeira, linha de mão e o espinhel,

fabricados, artesanalmente na comunidade. Essas atividades materializam na cidade, a

construção de vários trapiches de pequeno porte construídos em madeiras ou por troncos de

palmeiras amazônicas (açaizeiro e buritizeiro).

Essas práticas de mariscos e outros hábitos como, tomar banho no rio, lavar e

secar roupas, preparar comidas e o uso de pequenas embarcações e cascos rabetas como, o

principal meio de transporte que conduz esses moradores entre a cidade e as áreas fora do

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perímetro urbano, associada às práticas de assistir TV, antenas parabólicas, comunicação com

celular, uso da bicicleta e moto, registra a identidade rurbana vivenciada pelos habitantes

dessas áreas e as condições socioeconômicas que estão submetidas, registrada na fotografia

28.

Fotografia 27 - Rua Beira Rio

Fonte: Arquivo da pesquisa – 2014.

Nesse encontro das ruralidades com o urbano, o espaço materializa as múltiplas

formas e conteúdos produzidos pelos sujeitos, solidificando o campo de relações, signos e

valores constituintes das identidades rurais/ribeirinhas e urbanas que disputam lugar no

espaço, se territorializando de acordo com os códigos de vivências dos sujeitos sociais.

As condições ambientais que esses moradores estão inseridos são muito

degradantes. Sem abastecimento de água tratada, infraestrutura de energia elétrica (poste e

fiação), rede de esgotamento sanitário e ausência de coleta pública de resíduos sólidos,

associado ao processo de ocupação das áreas alagadas, são os principais fatores que

contribuem para a produção de ambientes considerados em risco sanitário. Entre os moradores

da área, não identificamos nenhuma preocupação com a ausência dessas infraestruturas

urbanas que ameaçam à qualidade de vida. As famílias demonstraram preocupação com esses

fatores e disseram que pretendem construir banheiros e sanitários com fossas sépticas. Por

outro lado, identificamos várias residências com construções de banheiros, mas, os moradores

afirmaram que as obras estão mais de ano paradas sem serem concluídas. Constamos a

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existência desse convênio entre a prefeitura local e o governo federal, numa placa fixada na

entrada do trapiche municipal da cidade, distante aproximadamente um quilômetro das

moradias contempladas, conforme Fotografia 28.

Fotografia 28 - Placa de melhoria sanitária da cidade.

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2013

Diante desta realidade socioespacial vivenciada pelos moradores da frente da

cidade de Melgaço, Costa (2005) concebe a identidade como um processo que ao mesmo

tempo em que é construída pelas relações sociais sofrem interferências exógenas, tanto para

somar com as pluralidades culturais, quanto pelas manipulações de direitos dos indivíduos.

Nesse processo o espaço, passa a ser tanto o suporte quanto a expressão das

identidades culturais e políticas dos sujeitos que o constitui. O não cumprimento das etapas do

programa de melhoria sanitária na Rua Beira-rio e no Matadouro reflete a fragilidade política

dos moradores da área e os históricos processos de manipulação de direitos em que foram

submetidos.

Além da ausência de esgotamento sanitário, os moradores não disponibilizam de

outros serviços básicos como água encanada, aterramento e pavimentação das principais vias

públicas e quase inexistência de energia elétrica. Para isso, precisam improvisar por conta

própria a condução do sistema elétrico, por vários metros de uma determinada área até suas

residências como mostra a fotografia 29.

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Fotografia 29 - Medidores de energia da Rua do Matadouro

Fonte: Arquivo pessoal de Marciano Silva, 2014.

Além desses desafios, as práticas rurais/ribeirinhas de não se importar com o

destino do lixo e ao mesmo tempo, por manterem consumo de produtos alimentícios

industrializados em menor proporção que os moradores dos espaços urbanos, os ribeirinhos

migrantes acabam destinando, principalmente, os plásticos diretamente no entorno das

residências. Atitude que, segundo, os moradores, não sofrem nenhuma interferência por

nenhum programa municipal.

Diante das precárias condições físicas e dos desafios socioambientais que os

moradores estão submetidos, questionou-se, quais motivações em permanecerem habitando

aquelas áreas? As justificativas se fundamentaram em dois principais eixos: cultural e

econômico. Entre as 96 residências contidas nessas áreas, 65% das famílias afirmaram que

escolheram a área para morar por estar próxima ao rio, facilitando o “agasalho” e o

acompanhamento de cascos, barcos e rabetas; 8% escolheram a área por gostar das condições

naturais da “beiro do rio”, como ventilação e acesso ao rio, principalmente, para as atividades

domesticas; 27% fixaram moradias nas áreas por não ter condições de comprar um terreno em

outras áreas da cidade.

Esses fatores impactam, significativamente, os espaços da cidade, as cargas de

resíduos sólidos e líquidos lançados diretamente ao solo e entram em contato com os

moradores, através das práticas cotidianas de tomar banho no rio, consumo e preparação de

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alimentos. Segundo, os apontamentos de Guimarães (2003) “a sociedade de consumo (...),

vem acompanhada de um empobrecimento da diversidade cultural...”. O significado que as

embalagens plásticas assumem no cotidiano ribeirinho, não acontece com a mesma

intensidade pelos moradores da cidade de Melgaço.

A insustentabilidade ambiental, contudo, não é uma especificidade melgacense,

no entanto, ela reflete os conflitos entre a tradição e a modernidade, onde a capacidade de

absorver os detritos do sistema industrial pelos modos de vidas e práticas locais representa a

difusão de modos de vidas globais, sob a lógica de um mercado que procura articular, formas

de consumos globais, entre os emaranhados de identidades espaciais particulares que estão

impregnados de riscos que a sociedade moderna imprime no espaço.

As formas espaciais ribeirinhas, associadas à fragilidade financeira dos moradores

que habitam as áreas inundáveis da cidade de Melgaço, manifestadas pelas descargas dos

dejetos sanitários das residências, construídas a céu aberto, expostas à superfície dos quintais

das moradias retrata muito bem a fragilidade das políticas nacionais, em relação aos

ambientes urbanos ribeirinhos da Amazônia. Essas realidades socioambientais, em que se

encontram os moradores de áreas alagadas, foram constatadas nas ruas de terra firme da

cidade, expondo crianças, jovens e adultos em riscos ambientais, afetando a qualidade de vida

dos melgacenses.

O site de notícias da UOL, publicado em 29 de julho de 2013, ao noticiar sobre a

divulgação do IDH de Melgaço retrata numericamente as profundas desigualdades sociais

existentes entre os vários “Brasis” em que 12 mil brasileiros ainda não tiveram acesso aos

padrões dos códigos da cultura letrada, por não se encaixarem nos tempos escolares

verticalizados pelo Plano Nacional de Educação até a “Amazônia Marajoara”.

A análise espacial dessas realidades intermediadas pela técnica e pelo trabalho

expressa as complexas combinações de formas e conteúdos espacializados, de maneira

heterogênea em diferentes tempos históricos. Com base nessas pluralidades espaciais e os

indicadores da cidade de Melgaço que os colocam em condição de habitantes de uma cidade,

que durante décadas se arrasta em incômodas colocações das estatísticas oficiais, ao mesmo

tempo, margeiam com práticas, saberes e modos de vida materializada em formas, que

caracterizam o mundo rural que foram e continuam sendo ignorados pelas políticas públicas

locais, estaduais e nacionais.

As condições ambientais vivenciadas pelos moradores da cidade de Melgaço,

através da proliferação de resíduos sólidos e das formas de dejetos humanos, inadequados

para espaços que possuem maiores densidades demográficas e a inexistência de abastecimento

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de água apropriada para o consumo humano, associados às dificuldades de acesso à renda e

aos altos índices de analfabetismo de jovens e adultos, explicam a baixa qualidade de vida da

maioria dos moradores melgacenses. Contudo, o deslocamento de sujeitos “formados” em

matrizes culturais ribeirinhas em direção à cidade, continua desafiando as políticas urbanas do

país, do Estado do Pará e dos governos municipais. A ocupação de áreas próximas aos rios e

igarapés que cortam as cidades amazônicas é um processo histórico e cultural que jamais

deixará de ocorrer, esta afirmativa está fundamentada nos dados e registros levantados na

pesquisa de campo da cidade de Melgaço.

4.4 A CIDADE E O TRÂNSITO ENTRE RIOS E FLORESTAS

A discussão deste tópico identifica modos de vidas, práticas de trabalhos e saberes

relacionados aos espaços de rios e florestas e suas estratégias de negociação com as

urbanidades presentes na contemporaneidade marajoara e melgacense, relacionando essas

estratégias e negociações com o processo de produção, consumo e dinâmica do urbano da

cidade de Melgaço, nos últimos dez anos.

No trânsito desses cotidianos identificaram-se homens e mulheres que

construíram suas vidas por outras cartografias, fugindo das crises da farinha, da inexistência e

precárias políticas públicas de educação e saúde, dos conflitos de terras entre as famílias nas

áreas rurais, tomaram suas “bajarinhas” (pequenas embarcações) e se aventuraram, a fixarem

suas moradias no perímetro urbano melgacense.

Identificamos agricultores que chegaram à cidade na década de 1960, e que

continuam trabalhando em seus “centros”, plantando mandioca, tirando açaí e cultivando em

menor quantidade outras frutas como goiaba, abacaxi, ingá, etc. Essas são suas principais

razões de continuarem praticando as atividades, por mais de meio século.

Augusto Ribeiro é um desses migrantes que chegou à cidade em 1963, período da

primeira administração municipal. Este agricultor/pescador participou diretamente da

construção da primeira caixa d’água e da pista de pouso da cidade, juntamente com outros

moradores. Cortador de seringa, remador de barco dos regatões que andavam pelos rios da

“Amazônia Marajoara”, trabalhador da floresta ao chegar à cidade tornou-se funcionário

público e foi trabalhar nas primeiras obras da nascente “Cidade-Floresta” (PACHECO, 2006).

O vínculo com os rios e a floresta desse morador não se perderam, além de

trabalhador urbano, continuou pescando e fazendo roça. Essas múltiplas atividades fez desse

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homem “corpos culturais” que historicamente vieram vivenciando modos de vidas múltiplos e

plurais que estão entre o cortar de machado, terçado, andar em pequenos cascos nos igarapés

caçando e pescando, deslocar-se sobre bicicleta, tornaram-se prática de cotidianos que

percorrem e entrelaçam as fronteiras do rural e o urbano desse morador e de sua família.

Descer e subir os rios em busca de seringueiras, roçados e madeiras foram às

razões que fizerem desse morador dialogar com diferentes modos de vidas, praticados desde a

década de 1960 na cidade de Melgaço. Nesse contexto, configuram-se práticas espaciais em

perímetro urbano com identidades rurais. Pois, as experiências de trabalhos dos universos

rurais marajoaras vieram e se materializaram na produção do espaço da cidade de Melgaço,

dinamizado pelas práticas de pesca, caça e agricultura.

O que me fez vim pra Melgaço foi quando me casei, deixei papai, mamãe, meus

ermãos e vim pra cá, naquela época era muito difícil, transporte era só de casco,

barco era muito difícil, nós ia daqui pro Aranaí de remo e olhe que não tá perto,

minha vida aqui foi marcada por muita dificuldade, isto aqui era muito atrasado, se

alguém adoecia a gente tinha que ir de casco a remo pra Breves ou Portel. Naquela

época o camarada tinha que aprender de tudo e eu foi uma pessoa que fiz tudo, cortei

arroz, serrei madeira desde criança, tirava lenha, tapava garapé, fiz roçado, pesca,

caça, tudo. Quando cheguei aqui foi ser vigia da prefeitura, quando levantaram essa

caixa d’água, no tempo do Alacid Nunes e o prefeito era o Amorim, quando

terminemos fiquei trabalhando de encanador, mas nunca deixei de pescar, tenho até

huje minha rede, meu caniço, meu espinhel, minha arma, meu casco, remo, tudinho

tá aqui em casa guardado e também sempre tenho minha roça pra fazer minha

farinha83

.

Esses moradores fixaram suas moradias e construíram práticas de trabalhos que

“borraram” as fronteiras campo-cidade desde a década de 1960, período em que se oficializa a

municipalidade melgacense. Nos fins da década de 1960 e início dos anos de 1970, a crise da

farinha do rio Ituquara expulsou uma família de quatro irmãos, cada um com suas esposas e

filhos e um amigo/compadre com a mulher e os filhos para a cidade de Melgaço.

Ao ancorarem suas vidas em Melgaço encontraram uma cidade muito atrasada,

com três ou quatro mercearias que eles denominam de “baiúca” e a relação comercial

acontecia em sistema de aviamento, onde os donos da baiúca vendiam mercadorias fiado para

receber com a produção dos moradores, semanalmente descrito por um desses moradores que

vieram do município de Breves fugindo da crise da farinha.

A gente comprava fiado e pagava com a produção de farinha, palmito madeira, nós

trabalhava muito, nós abrimos de mais pouco rego nesta mata. Nós tirava madeira,

(...) nessa época nós fazia muita farinha, nós vendia pros comerciantes daqui e eles

entregavam pra essas bandas de Breves. A gente não pegava dinheiro, a gente tinha

que vender fazendo rolo, a gente trocava com “peixe velho”, camarão, a gente

colocava no “bagaço” pra saldar um poquinho pra ver se eles traziam roupa pros

83

Trecho da entrevista realizada com o marajoara Augusto Ribeiro, na sua residência no dia 13 de abril de 2014.

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meninos, se não saldasse podia encomendar que eles não trazia, a gente não

“levantava a cabela”.84

A chegada desses moradores ampliou as extensões das ruas da antiga vila e

abriam novos caminhos que levariam as roças. Como a cidade tinha poucas famílias, a malha

espacial era muito pequena, o espaço construído estava vinculado aos tempos das atividades e

às práticas de trabalho da floresta. Havia aí uma atividade administrativa, constituída pela

prefeitura municipal e a câmara de vereadores e alguns serviços de segurança, educação e

saúde, o que não constituía um espaço urbano, por ter a maioria da população com dedicação

exclusiva nas atividades da floresta e das águas. Portanto, um espaço rural ainda muito

presente na memória daqueles moradores.

(...) quando nós chegamos aqui, fomos morar lá naquele mesmo lugar onde hoje é a

delegacia (rua 12 de outubro), tinha uma casa velha lá, aí o finado Marcílio tinha

conhecimento aqui com o Prefeito e conseguiu essa casa pra nós ficar até fazer o

nosso tapiri, passemos lá uns dias, aí depois comecemos a roçar lugar pra casa, só

sei que foi rápido que fizemos uma casinha lá naquela rua do Osvaldino (Rua

Antônia Nogueira), foi nós que abrimos aquela rua lá, aí o compadre “Grosso”

arrumou aí na pista (Rua São Miguel) lugar pra fazer roça é bem aqui onde hoje

mora o pastor Júlio, bem aí perto dessa caixa d’água, aí era só uma roça nossa. Essa

área aí era só roça, várias pessoas tinham roça aí, essa dona Sarita mãe do Tustão

tinha roça também aí, ela deu pra nós um pedaço de terra e nós fizemos uma roça

“monstra” e foi dessa roça que o “Grosso” me deu essa ilha do meu centrinho, aqui

onde eu moro hoje (Rua Raimundo Anacleto) não tinha nada, nada era só mato, o

que tinha era caminho (...)85

Esses moradores constituíram uma relação tempo-espaço, característico aos

modos de vidas e as práticas de trabalhos da época. Produziam uma cidade a partir das

ruralidades de trabalho, dos meios de transportes, na arquitetura das moradias, vinculados aos

modelos econômicos dos patrões da borracha que estabeleciam a relação verticalizada entre

patrão e freguês. O acervo documental de José Aldrin, filho de uma das famílias mais antiga

da cidade, a família “Mamede”, estão contidos dezenas de escrituras públicas reconhecendo

grandes extensões de terras sob o controle dos comerciantes rurais, desde o século XIX até as

duas primeiras décadas do século XX.

84

Trecho da entrevista do marajoara Manoel Rufino, realizada em sua residência no dia 05 de maio de 2014. 85

Continuação da entrevista do marajoara Manoel Rufino, realizada em 05 de maio de 2014.

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Imagem 1 - Escritura pública de compra e venda de terras em Melgaço – 1899.

Fonte: Arquivo pessoal de José Aldrin de Souza.

Esses comerciantes detinham o controle de grandes extensões de terra, que

herdaram da economia gomífera e com isso ampliaram suas propriedades, recebendo terras de

posseiros como pagamento de dívidas daqueles que não conseguiam saldar os financiamentos

emitidos pelos barracões da borracha. Além disso, iam se promovendo, politicamente, na

nascente municipalidade, tendo o voto dos fregueses como uma espécie de pagamento por

morarem em uma de suas dezenas de propriedades. Os fregueses eram obrigados a votarem no

candidato do patrão, práticas ainda muito comuns naquela região entre as prefeituras e o

funcionalismo público.

Os maiores estabelecimentos comerciais estavam fixados nas áreas rurais do

município. Na cidade, havia pequenas tabernas que eram aviadas pelos comerciantes das áreas

rurais. Os moradores da cidade se aviavam (compravam) ou dos pequenos comerciantes da

cidade, ou dos grandes comerciantes rurais. Esses rastros, ainda estão muito presentes nas

formas de compra e venda da cidade. Mesmo com a informatização, pequenos e médios

comerciantes ainda utilizam o fiado (crediário) como modelo de venda aos moradores da

cidade e as compras são registradas em um caderno, que fica em cima do balcão das

mercearias e lojas.

A esposa de um dos sujeitos da pesquisa, apresentados no tópico “cartografias dos

sujeitos da pesquisa”, ao comentar sobre os desafios financeiros da família faz uma afirmativa

que consideramos importante para afirmarmos que, os resíduos de exploração dos antigos

proprietários de terras e donos dos barracões da borracha, continuam presentes no cotidiano

melgacense, conforme relato da moradora que neste caso, optamos em preservar sua

identidade por conta da gravidade que apresenta na sua narrativa.

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Aqui nós tem que fazer milagre, o marido é empregado, mas temos empréstimo,

então o salário é praticamente só para pagar o empréstimo, aí nós pega o bolsa

família e deixa no supermercado pra poder comprar as coisas, aí quando chega o

período do pagamento eles tiram o dinheiro pra pagar a compra e a gente faz outra

compra pra ser paga no outro pagamento, assim nós vai levando, não dar pra

comprar quase nada, porque eles vendem mercadoria cara, mas é obrigado, porque a

gente precisa das coisas. (...) se não deixar o cartão e a senha eles não vendem, então

um dia desse eu reclamei, porque que eles colocam juros na compra já que temos

que deixar o cartão então é a mesma coisa que ser avista. (...)

Diante desse contexto recorre-se aos apontamentos de Spivak (2012) que denota

como uma das principais preocupações em “desafiar os discursos hegemônicos e também

nossas próprias crenças como leitores e produtores de saber e conhecimento”, diante de uma

de suas principais interrogações que é: o subalterno como tal, pode, de fato, falar? Para a

autora, o termo subalterno não se refere apenas aos grupos ou pessoas marginalizados, mas,

também ao sujeito proletariado ou aqueles cuja, voz não pode ser ouvida.

As condições em que estão submetidos moradores urbanos e rurais, beneficiários

de programas federais e servidores municipais assalariados da prefeitura municipal,

representam bem o sistema de exploração e domínio financeiro e políticos que comerciantes

locais e muitos gestores municipais impõem aqueles subalternos que negociam por razões de

sobrevivência, sua cidadania, em troca de um contrato temporário ou silenciado seus desejos e

vontades próprias de não votar no candidato do patrão que (re)significaram as formas de

exploração dos descendentes, daqueles que vivenciaram algo parecido, durante a ditadura da

borracha, liderada pelos coronéis da Amazônia.

Os “rastros” no espaço da sociedade melgacense não estão visíveis somente nos

modelos de exploração é possível seguir as “pegadas”, nos hábitos e costumes presentes na

vida de muitos moradores, de diferentes faixas-etárias. Esses moradores possuem múltiplas

identidades funcionais, os mais idosos, se declararam como agricultores ou pescadores que

complementam a renda com o pescado e a agricultura, através de aposentadorias como

agricultoras e agricultores, os de menor idade, se declararam como desempregados,

pescadores, funcionários públicos, caçadores e trabalhadores de bico (trabalho informal).

Nesses ambientes urbano, constituídos por sujeitos com múltiplas identidades,

também se reconhecem como cidadãos ribeirinhos por acreditarem que o rio faz parte de sua

história de vida e, consequentemente, de suas identidades.

Essas práticas de trabalhos constituem uma das marcas indenitária dos moradores

da cidade, essas identidades vieram atravessando os tempos históricos e chegaram a gerações

mais jovens, nos filhos daqueles migrantes dos anos de 1960 e 1970. Esses sujeitos

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repassaram através da prática e da observação cotidiana aos filhos os caminhos da roça, da

caça e da pesca, juntamente com outras práticas e saberes como as plantas medicinais, criação

de xerimbabos, conhecimentos sobre os movimentos das marés e associação das fazes da lua

com as atividades cotidiana de trabalho, nos levando a discutir o espaço melgacense por

dentro dessas identidades, percorrendo as subjetividades culturais de sujeitos que constituíram

vidas, traçando experiências e repassando às futuras gerações.

Edivaldo Costa é um desses moradores filho de migrantes da década de 1960,

nascido e criado na cidade de Melgaço, desde os doze anos de idade, aprendeu a caçar e

atribui essa prática às dificuldades financeiras que vivenciava sua família. Para o morador,

essas foram às razões de ter abandonado a escola e não conseguir concluir seus estudos para

ajudar no sustento da família.

Eu comecei a caçar, aprendi com o meu pai, comecei a caçar com a idade de 12

anos, já caçava sozinho e tudo o que eu aprendi a caçar eu aprendi com ele, eu

caçava não por vontade de caçar, eu caçava por necessidade que nós não tinha

emprego nenhum, no meu tempo eu não tive muito tempo pra estudar, porque o

papai era só ele, se ele ia fazer uma farinha ficava difícil dele fazer só, eu tinha que

ajudar, aí ficava difícil pra mim trabalhar com ele e vim estudar, naquele tempo, não

dava pra mim estudar de noite que eu era de menor, (...) Com isso eu tava caçando

pra mim tava uma maravilha, eu não queria nem saber depois como era que ia ficar

(sorriu).

As décadas de 1980 e 1990 diferem das de 60 e 70 no quantitativo demográfico,

mas, as relações de trabalho e os modos de vida vinculados à floresta e aos rios

permaneceram. As práticas de caçar, pescar, trabalhar, lazer, curas, alimentar e outras,

continuaram presentes no espaço de vida desses moradores e constituíram nas formas e nos

fluxos espaciais da cidade. Essas práticas de fazer, dinamizadas pelas ruralidades,

permanecem presentes na cidade, convivendo com as novas tecnologias e as outras práticas de

vidas modernas.

Os enfrentamentos com as mudanças funcionais vivenciadas, atualmente, pelos

tempos da informática, inserem a cidade de Melgaço na rota desses ambientes de trabalho e,

consequentemente de hábitos de vidas urbanos. A literatura geográfica é quase unânime ao

discutir a inserção dos espaços nos circuitos espaciais de produção, como elemento que

desarticula e corroem as tradições, mesmo sabendo que a inserção tecnológica altera

significativamente os modos de vida de uma sociedade, onde não podemos deixar de perceber

no espaço os “rastros”, os “resíduos” dessas tradições que dinamizam a vida de muitos

moradores e se espacializam na cidade.

Edmilson Moreira, funcionário público municipal, é um desses moradores que não

se desvincula das práticas de “mariscos” que aprendeu desde criança nas décadas de 60 e 70,

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através da observação e da convivência com seu pai. Diante de alguns desafios

contemporâneos que esta atividade estabelece aos praticantes, entre eles, a escassez de

animais na floresta do entorno da cidade, provocado pelo aumento da população urbana e a

dificuldade de obter uma arma de fogo pela proibição com a Lei do desarmamento, os

moradores recriaram a técnica milenar da armadilha, com a construção de “baladores” (arma

artesanal), que funciona como uma arma de fogo, que fica camuflada com folhas sobre as

trilhas das caças que andam no período noturno para se alimentarem.

A técnica de construção e armamento desses baladores não é de fácil domínio,

constatamos essa complexidade durante o acompanhamento do itinerário de um desses

caçadores na floresta marajoara, dependendo do tipo da caça, exige do caçador o domínio

matemático, cuidadosamente calculado, da altura em que vai ficar a pontaria da arma. Esse

conhecimento é fundamental para o sucesso desse tipo de caça, caso contrário o insucesso é

inevitável, como retrata a Fotografia 30, deste processo.

Fotografia 30 - O Balador na trilha do tatu.

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 2014.

Esses modos de vidas definem a heterogeneidade e as rurbanidades dos espaços

amazônico, caracterizada pela “diversidade socioespacias hierarquizadas” (COSTA, 2005),

constituindo emaranhados processos conduzidos pelas subjetividades de saberes que

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disseminam inúmeras possibilidades identitárias86

, confundindo e desagregando social,

cultural e espacialmente os indivíduos. As formas de relacionar-se com a natureza e a

materialização desses saberes tornam-se significativo para a discussão “identidade e espaço”.

Esses moradores aprenderam a viver com a floresta e essas vivências construídas histórica e

culturalmente, estão presentes nas “formas e conteúdos” da cidade. A fabricação de armas

caseiras e as práticas de colocar as armadilhas dinamizam a relação espaço-tempo desses

sujeitos, como descreve o morador Edmilson Moreira.

Na verdade, nós aqui em Melgaço, nunca deixamos o trabalho do mato, olhe, por

exemplo, eu sou guarda municipal, mas eu não consigo na minha folga ficar em

casa. Por isso, tenho minha arma, tenho meu casco, remo, tenho minha lanterna,

tenho todo os meus apreparos da caça, não gosto de pescar, mas gosto de mariscar.

Me dar uma agonia, tenho que ir no mato, lá a gente tira o estresse da cidade, as vez

a mulher começa “encher o saco”, eu pego a minha espingarda vou embora pro

mato, lá a gente fica pensando na caça e esquece dos problemas daqui. Ainda vou

lhe dizer mais, aqui na cidade é muita gente que pesca, caça, trabalha no centro é

quantidade. Você vê pessoas trabalhando na cidade, andando pela rua e nunca

imagina que aquela pessoa tem na casa seus apreparos de caça, pesca e trabalho na

agricultura, a nossa vida aqui nesta cidade é assim é conduzida por tudo isso. Quanto

a maneira como eu aprendi a consertar arma e produzir meus baladores é que nossa

cidade não tem oficina e nem loja para vender esses apreparos e com a Lei do

desarmamento ficou mais difícil ainda, então é aquele ditado que diz: “quem não

tem cachorro, caça com gato”, eu passei a me dedicar a consertar as minhas armas e

as pessoas foram descobrindo e passaram a trazer arma pra mim consertar que hoje

eu não dou conta de consertar tanta arma que aparece.87

As “ruralidades” (LEFEBVRE, 2001) causam desconforto conceitual sobre o

binômio urbano e rural, os traçados da cidade acabam sendo orientadas por essas formas de

vidas, elas não são simples arranjos espaciais, são “formas” e “conteúdos” que identificam os

melgacenses, e se declaram como moradores que vivenciam e praticam os dois espaços, rurais

e urbanos. Todos afirmaram que gostam de Melgaço porque é “uma cidade sem caquiado”88

.

Essa expressão reflete a mobilidade das fronteiras territoriais, experienciadas pelas práticas de

trabalhos e por outros modos de vidas dos moradores, que expressam tanto o rural, quanto o

urbano.

A Fotografia 31 registra essas formas de vidas múltiplas que fizeram das gerações

das décadas de 1960 e 1970, a principal fonte de sobrevivência e, que chegou às gerações dos

anos 1980 e 1990, não como a principal fonte econômica, mas, uma prática de vida que

identifica e singulariza o significado do urbano na “Amazônia Marajoara”.

86

O conceito de identidade espacial está fundamentado no campo teórico do pesquisador Benhur Pinós da Costa

que concebe a identidade como um processo reflexivo construídos por relações sociais, onde o espaço torna-se

suporte para a manutenção deste campo relacional. (COSTA, 2005. p.81-2). 87

Parte da entrevista com o marajoara Edmilson Moreira realizada no dia 22 de fevereiro de 2014. 88

Fala do agricultor marajoara Francisco Alves em entrevista realizada no dia 12 de abril de 2014.

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Fotografia 31 – Trapiche da igreja

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2014.

As razões que os colocam nesses trânsitos entre rios e florestas fazem dos espaços

da cidade pluralidades de “formas” e “conteúdos” que refletem a vida cotidiana dos

moradores de Melgaço construída pelos tecidos da tradição e da modernidade. A presença de

cascos rabetas ancorados e suspensos em estruturas de madeiras, sob as plataformas das

dezenas de trapiches existentes na cidade são a maioria de funcionários públicos, que no

contratempo das atividades como servidores municipais, “descem” os rios em seus cascos

rabetas em busca de peixe, ora para alimentação familiar, ora para a comercialização e

complementação do orçamento da casa.

O Marajoara Edmilson Moreira, em suas narrativas, externa as razões que tanto

faz permanecer, mesmo na escassez da caça, realizando cotidianamente as investidas na

floresta em busca de uma “embiara” (denominação que os caçadores dão as suas caças), “se

eu tivesse um lugar que fosse farto, largava meu emprego e ia viver só do marisco, porque,

você tendo a caça você vende e é dinheiro certo e como empregado não, se você não tiver o

patrão você tá lascado”89

.

Como podemos perceber as práticas de vidas na cidade de Melgaço está muito

atrelada aos tempos da floresta e dos rios, paralelo aos tempos sistemáticos e do cronômetro

da gestão pública, dos serviços e comércios funciona as temporalidades das marés e da lua

que orientam as práticas de curas, de plantar, colher, trabalhar e mariscar.

Desde criança, quando passei a me entender, foi aprendendo com meu pai, minha

mãe que é a natureza que movimenta nossa vida, tudo isso que vou lhe contar é

verdade, aqui em Melgaço, as pessoas são pobres, tem pouca iscondição, então, a

maioria cobre casa com palha, se cortar a palha de luar, ela abre todinha, com a

89

Edmilson Moreira justifica uma das condições que o faz estar em práticas de mariscos, mesmo sendo servidor

público municipal.

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primeira chuva, chove tudinho. Pra você caçar, tem que saber a lua e o horário desse

sentar e sair da lua. A cabeça de maré venta muito e não presta pra caçar, a gente

não escuta nada é só aquela ventania na mata e não adianta ir que não mata nada.

Aqui nós sabe tudinho quando a maré tá boa pra pescar em determinado lugar ou

não e o tipo de peixe. Então é por isso que eu digo que a natureza é que regulamenta

nossa vida.90

Esses saberes das florestas e dos rios e as práticas de trabalhos vinculados as

“ruralidades” estão refletidas no espaço melgacense, os quintais da maioria das residências

contém práticas espaciais vinculadas a “formação cultural” dos moradores. A presença de

xerimbabos e plantas medicinais, de temperos e decorativas, convivem e resistem com

medicamentos e temperos industrializados presentes nas prateleiras dos supermercados e

mercearias da cidade, exemplificado nas fotografias 32 e 33.

Fotografia 32 – Hortas na Estrada Melgaço-Moconha

Fonte: Arquivo da Pesquisa, 2014.

90

Trecho da entrevista com o marajoara Edivaldo Costa, realizada em 23 de julho de 2013.

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Fotografia 33 – Fogão à lenha

Fonte: Arquivo da pesquisa, 2014.

Atualmente, os arquitetos e urbanistas vem se esforçando para verticalizar junto

com as edificações urbanas elementos da natureza física, como arranjos paisagísticos das

grandes cidades mundiais e brasileiras. Os arquitetos das florestas se esforçam para driblar

práticas de consumo industrializadas em razões das dificuldades econômicas que se

encontram, mas ao mesmo tempo, em dispor de condições espaciais que permitem a

permanência de hábitos tradicionais que, historicamente, foram submetidos por práticas

afetivas e culturais que tem com a natureza, além da importância que esses elementos

assumem na vida dos moradores da cidade.

Além das práticas de trabalho e das práticas de “mariscos” realizadas pelos

moradores melgacenses, identificamos no espaço da cidade grande consumo de temperos

plantados nos “tendais”, construídos nos quintais das residências e, os moradores declararam

gostar mais de tempero caseiro do que industrializado e, quando alguma pessoa da família

adoece buscam primeiro os remédios da terra e os benzedores. Esses hábitos herdados dos

antepassados daquelas populações justificam a construção das inúmeras fileiras de hortas e

fogões à lenha, em praticamente, todos os quintais das moradias melgacenses.

O uso do fogão a lenha, pela maioria dos moradores da cidade de Melgaço

assume, ao mesmo tempo vários significados, entre eles está o econômico e cultural. As

mulheres declararam como sonho de consumo, ter em suas cozinhas fogões industrializados e

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modernos, mas, ao mesmo tempo, não abre mão de terem o fogão à lenha, feito de madeira e

barro pelos próprios moradores. Percebendo números significativos de residências na cidade

com fogão a lenha, indagou-se aos moradores sobre as razões que levavam eles

permanecerem utilizando aquela prática antiga de preparar alimento? As principais

justificativas foram três: a) economia do gás; b) a comida na lenha é mais gostosa que no

fogão a gás e; c) no fogão a lenha dar para assar comida e no gás não.

Os fatores econômicos da vida urbana tende a deslocar formas espaciais do

ambiente cultural dos moradores, na cidade de Melgaço, contudo, os objetivos de consumo

são driblados pelos modos de vidas rurais que, ao mesmo tempo em que são motivados em

consumirem os produtos industrializados, lançam mão de práticas tradicionais para

economizar o gás e garantir maior durabilidade ao bem de consumo industrializado, assim

como, garantir os hábitos e costumes da vida rural em perímetros urbanos, como narra

Edivaldo Costa.

Desde criança foi acostumado ver minha mãe fazer comida no fogão de lenha e me

criei assim, via também, meu pai fazendo aqueles fogão e ia aprendendo, assim, que

a gente ia crescendo um pouco, já ia assumindo alguma atividade na casa, uma

delas, era tirar lenha no mato, fazer o fogo no fogão. Daí ia aprendendo e ao mesmo

tempo me acostumando com esse tipo de alimentação e assim como eu é toda essa

gente aqui em Melgaço, por isso, vamos ver praticamente em cada casa um fogão de

lenha, acho que são bem poucas as casas que não tem um e também porque o gás é

muito caro e a lenha é barata, a gente tem o fogão a gás, mas, se for fazer tudo nele o

gás acaba rápido e o cara tá lascado (sorriu).91

A presença expressiva de fogão a lenha, trapiches, paneiros e “tendais” com horta

e plantas medicinais constituem a identidade espacial ribeirinha, materializada no espaço da

cidade, desde os moradores mais antigos até aqueles que ora se identificam como cidadãos

urbanos, por terem nascidos e se criados na cidade, mas, foram educados no intenso contato

com esses modos de vidas que vieram na bagagem cultural de seus pais e, repassados através

da observação e da prática aos filhos e, assim sucessivamente.

Diante desse contexto sociocultural vivenciados no espaço da cidade de Melgaço

e as formas que esse espaço constitui esses tecidos urbanos e rurais, constituídas por Lefebvre

(1991) como “ilhas de ruralidades” principalmente em espaços onde a industrialização, ainda

não orienta as dinâmicas de produção e consumo, se espraiam intenso “rebatimento de um

processo (...) em que o homem do campo desempenha um misto de atividades para sobreviver

na cidade” (MONTE-MÓR, 2006).

91

Trecho da narrativa com o marajoara Edivaldo Costa, registrada em entrevista no dia 23 de julho de 2013.

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As pluralidades identitárias que esses sujeitos desempenham, cotidianamente, no

espaço constituem em “fluxos” e “fixos” confusos que diluem as fronteiras de ser urbano e ser

rural. As práticas de trabalho e os modos de vidas que eles realizam nos permite dizer que

existem “inter-espaços” e “entre-lugares”, que se confrontam pelas tradições e pelas

modernidades, formando espaços “rurbanos” e desconstruindo o clássico binômio campo-

cidade ou rural-urbano, exigindo outras categorias de pensar as políticas públicas de gestão do

espaço urbano, na “Amazônia Marajoara”.

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5 O DESEMBARQUE

O percurso foi longo, a viagem continua, mas precisamos desembarcar. O

desembarque não significa a saída, mas, uma pausa para colocar em cima da “ponte

acadêmica” os registros, narrativas, imagens, observações particulares e coletivas de homens

e mulheres que nos levaram por suas próprias rotas de navegação a conhecer parte de uma

Amazônia que até o momento foi vista pelos meios de comunicação como subversiva, isolada

e miserável.

A subversão está registrada nos arquivos das emissoras de televisão nacional e

regional, quando no dia 13 de agosto de 1996, os moradores da cidade se rebelaram contra os

descasos do governo municipal pelos constantes atrasos de pagamento salariais dos servidores

e atearam fogo no prédio onde funcionava a prefeitura municipal, a câmara de vereadores e a

agência dos correios.

O isolamento está na voz do Centro-Sul do Brasil, quando se referem às

populações que habitam as margens dos rios e igarapés da Amazônia brasileira e marajoara.

Esta visão preconceituosa e estereotipada vinda de “lá pra cá” é reforçada pelos dados

estatísticos oficiais, construídos a partir de padrões socioeconômicos que homogeneízam a

condição social do território brasileiro e, ao mesmo tempo, particularizam olhares, a partir de

rótulos históricos como tradicionais e atrasados para populações amazônicas e marajoaras.

O PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) divulgou em

2013, os dados do IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios) onde os

municípios marajoaras aparecem sob as condições de piores lugares para se viver do país e

entre esses está Melgaço, como o município com menor IDH-M do Brasil.

Ao ancorarmos nesses portos, desembarcamos por trapiches, estivas e pontes que

nos levaram a entender que, o espaço de cidades marajoaras produz “formas” e “conteúdos”

tecidos por homens e mulheres que, historicamente aprenderam a driblar e ao mesmo tempo

dialogar com a presença e a ausência dos padrões de vida modernos.

O encontro com moradores melgacenses nos colocou em diálogos desde 2003,

quando pesquisamos o processo de migração das famílias ribeirinhas para a cidade e o

surgimento de áreas periféricas no entorno das áreas mais antigas de Melgaço.

Durante esses dez anos, viemos acompanhando e observando que os moradores

garantiam suas sobrevivências através da agricultura familiar de subsistência, produzindo

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farinha de mandioca. A produção acontecia nas “casas de fornos” localizadas no “centro”92

de

propriedade da família. A técnica de transformação da matéria prima, mandioca, em farinha,

no início da década de 1990, era toda artesanal, desde a derrubada da floresta até o transporte.

A produção da roça era feita no terçado e no machado; o preparo do solo era através do fogo e

da “coivara”; o plantio era manual com auxílio da enxada; a produção da farinha, acontecia

com o uso da “tarisca” para triturar as batatas da mandioca, utilizando três pessoas, duas

movimentavam a tarisca e uma (normalmente mulher) empurrava as batatas no “catitu”; a

retirada do tucupi normalmente acontecia com o “tipiti” que era fixado no “espremedor”.

Após esse processo, a massa era coada numa peneira, fabricada em tala de “arumã” e torrada

em forno aquecido com fogo a lenha93

.

Na caça, os moradores utilizavam várias técnicas como, arapuca, mutar de espera,

mundé, armadilha com balador, passarinhavam (caçar durante o dia) com espingarda durante

o dia e lanternavam (caçada durante a noite com uso de lanterna) na varrida com espingarda

durante a noite. A captura de peixe era feita com as técnicas do caniço (uma vara com anzol),

linha de mão, cacuri (cercado de tala fixado na margem de rios e igarapés), uso do timbó

(veneno extraído de uma raiz nativa da floresta amazônica), espinhel, piraqueira (matar peixe

com auxílio de lamparina), zagaia, malhadeira; e no início do inverno amazônico, quando

chovia saiam com paneiro, terçado e zagaia para as nascentes de pequenos cursos d’água

matar peixes que subiam para a desova.

A cidade era dinamizada por esses cotidianos da roça, da extração da madeira, do

palmito e das práticas de mariscos. Havia poucas bicicletas e nenhum transporte motorizado,

o meio de comunicação utilizado para se comunicar com pessoas de outros lugares era a carta,

o recado e as mensagens por meio das emissoras de rádio AM da cidade de Breves e entre os

moradores da cidade era feito através do recado ou da ida diretamente na residência da

pessoa.

Até o ano 2000, período de transição entre os séculos XX e XXI, havia somente

um posto telefônico que tinha uma única linha que atendia primeiramente as autoridades

92

O centro é a área onde está localizada a “cozinha de forno”, ou seja, a área que em outros lugares se denomina

de sítio, retiros e outras denominações para os lugares que estão fora do perímetro urbano. Os centros dos

melgacenses estão localizados na estrada Melgaço-Jangui. 93

As expressões “coivara” é uma técnica de preparo do solo realizado após a queima que é a retirada daquelas

vegetações que o fogo não conseguiu destruir. A “tarisca” e o “catitu” são parte do sistema de transformação da

batata da mandioca em massa, esse sistema é constituído de uma roda de madeira (tarisca) fixada em uma base

que é anexada através de uma correia de coro de boi até um pedaço de madeira arredondado envolvido com

lâminas de serra (catitu) fixado em uma mesa de madeira onde é triturada a batata, o catitu é movido por energia

humana que é aplicada na tarisca. O arumã é uma pequena palmeira típica de áreas de igapó amazônico que os

artesões fabrico entre outros objetos a peneira utilizada na cozinha de forno para coar a massa que foi exprimida

no tipiti que também é feito de tala extraído da árvore do buriti.

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constituídas dos poderes executivos e legislativos e depois a população. Este serviço era

prestado por uma empresa estatal, denominada de “Telepará”. Neste posto telefônico

trabalhavam normalmente dois funcionários que eram remunerados pela prefeitura local, uma

telefonista (normalmente mulher) e um mensageiro (adolescente – homem), este último tinha

a função de chamar ou avisar as pessoas em suas residências, para atender ligação de algum

parente que morava em outra cidade ou Unidade da Federação.

Com a “geoetnografia” desta pesquisa de mestrado, realizada interruptamente

durante os anos de 2013 e 2014, vivenciando cotidianos de fazer farinha, caça e pesca,

constamos que o quantitativo de famílias que trabalhavam na roça no início da década de

1990 foi reduzido significativamente. Os “centros” que os donos já faleceram ou que por

conta da idade não conseguem mais realizar as atividades de outrora, estão abandonados. Os

filhos justificam que fazer farinha não dar pra sustentar a família, o tempo de espera de a roça

ficar madura (um ano) e o trabalho que dar não é compensado pelo preço que é pago no

mercado local. Segundo aqueles moradores não compensa continuar investido nessa atividade

como fonte de sobrevivência. Outra justificativa narrada pelos moradores é falta de incentivo

local para a agricultura. Esses fatores contribuíram para a improdutividade dos antigos e

dinâmicos centros. Os filhos, não deram continuidade na tradição familiar e nesta fuga muitos

se tornaram servidores públicos, outros vendedores de bombons (banqueiros), carpinteiros,

pedreiros, contudo, não perderam a identidade com as florestas e os rios, “nas horas vagas

vamos lá tirar açaí, armar o balador, pescar e, assim a gente mantém nossa vida até hoje”,

afirma o marajoara Edmilson Moreira.

Identificamos na estrada dos agricultores, muitas pessoas transitando pela estrada

Melgaço-Jangui conduzindo carro de mão, paneiros, feixe de lenha, maniva (árvore de

mandioca), sacos com grão de açaí, caças, sempre ao final da tarde. Uns utilizando como

meios de transportes a bicicleta e moto e outros transitando a pé. Além disso, constatamos

algumas alterações nas técnicas de produção da farinha. Atualmente, a maioria dos

agricultores utiliza máquinas para triturar a mandioca e na limpeza das plantações, colocando

em desuso, principalmente, a tarisca. No entanto, as alterações foram poucas, a maioria dos

centros continua utilizando técnicas arcaicas e tradicionais nas atividades da floresta.

Esses fluxos vivenciados no cotidiano da estrada adentram nas ruas da cidade. Os

moradores que realizam as atividades de trabalho na estrada, saem de todos os lados da cidade

e transitam pelas ruas e avenidas com seus paneiros, lenhas, grãos de açaí, feixes de maniva e

caças, disputando espaço com os carros, motos, bicicletas e, as formas de trabalho da cidade.

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A parte da cidade que está diretamente vinculada ao rio, mede, aproximadamente,

três quilômetros de extensão. Nesta área está o centro tradicional da cidade, formado por uma

arquitetura mais urbanizada, tendo como característica a ocupação mista do espaço, no térreo

funciona estabelecimentos comerciais e nos andares superiores, residências dos proprietários

das lojas e restaurantes. Os finais de semana é a parte da cidade onde dinamiza a vida noturna

funcionando bares, lanchonetes, bancas ambulantes de alimentos e bombons.

Durante o dia, a dinâmica daquela área continua dinamizada pelo comércio de

lojistas, camelôs, feirantes e moto taxistas que fazem ponto próximo ao trapiche municipal

para transportar ribeirinhos e moradores da cidade que chegam e saem às áreas rurais e para

as cidades de Breves e Portel. Nesta área portuária costuma-se aglomerar grupos de pessoas

conversando sobre uma pluralidade de assuntos referentes a vida da cidade. Entre esses temas

está a vida política local, onde os moradores versam críticas aos governantes e outros

defendem, formando um verdadeiro território partidário, disputado entre os pros e os contras

ao grupo político que esteja exercendo a administração local. Esta área, os moradores chamam

de “frente da cidade”.

Saindo tanto para o Norte quanto para o Sul nos deparamos com outros “fixos”,

entre eles, estão as dezenas de trapiches, alguns bastante antigos, como, o “trapiche da igreja”,

outros construídos mais recente pelos moradores. Nesses “fixos” estão ancorados dezenas de

cascos dos moradores da cidade, utilizado para as práticas de pesca artesanal. Esta atividade,

assim como a agricultura, é uma das principais identidades dos moradores melgacenses, por

ser uma prática que remonta a história do lugar.

O trânsito pelo rio acontece por pequenos cascos, que até alguns anos eram

movidos pela energia humana com o auxilio do remo. Atualmente, esses meios de transportes

estão todos adaptados para receber motor de popa, popularmente conhecido como “rabudos”.

Essa denominação acontece pela própria característica desta máquina que possui um eixo

alongado, onde está fixado a hélice, responsável pelo deslocamento do casco. Esses cascos

são produzidos por artesãos locais que constroem de acordo com a procura local.

As técnicas de pesca também sofreram pouca interferência, os moradores

continuam utilizando as mesmas técnicas, a única alteração aconteceu com a técnica de

mergulho introduzida na cidade, por funcionários de um circo de diversão que ficou alguns

meses funcionando na cidade. A interação daqueles trabalhadores com alguns moradores da

cidade fez muitos pescadores jovens praticarem essa atividade. Eles utilizam um instrumento

que chamam de “arma”, produzido artesanalmente pelos próprios pescadores.

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Além da pescaria de mergulho, outra alteração foi o uso do remo nos cascos, eles

se deslocam com motores rabudos. Com o uso do motor no deslocamento, os moradores

afirmam que realizam mais vezes a pesca, o deslocamento ficou mais rápido entre a cidade e o

rio. Portanto, com a presença do motor, o contato dos moradores com o rio ficou muito mais

intenso, as investidas passaram a acontecer todos os dias e em muitos casos mais de uma vez

por dia, reforçando ainda mais as características de uma cidade que recria e negocia com a

globalização, a permanência das identidades espacial “rurbana”.

As práticas de caçar dos anos de 1960 ainda permanecem muito frequente no

cotidiano dos moradores melgacenses. Identificaram-se funcionários públicos praticando

investidas cotidianas nas florestas e nos rios, caçando com as mesmas técnicas daqueles que

caçavam na década de 1960. Mesmo com a Lei do desarmamento (Lei 10.826/2003), vigente

a dez anos no país, os moradores melgacenses encontraram mecanismos de resistências e

vieram clandestinamente utilizando a espingarda como um das técnicas de captura de animais

na floresta. Esses melgacenses, cartografam uma geografia da floresta, através de códigos e

sinais que passam despercebidos aos olhos e códigos das cartografias oficiais.

Essas práticas de trabalhos e mariscos (caça e pesca) estão diretamente refletidas

nos “fixos” e “fluxos” do espaço da cidade de Melgaço. As formas de morar, as construções

de trapiches e pontes ligadas ao rio onde ancoram dezenas e o deslocamento desses meios de

transportes transitando sobre carros de mão pelas ruas e avenidas da cidade, são rastros que

nos levaram ao entendimento que a relação dos moradores com o rio e a floresta não acontece

somente por aqueles e aquelas que habitam as áreas próximas ao rio, elas também estão

presentes nos moradores das ruas e bairros mais afastados do rio.

A construção de “tendais” suspensos para o plantio de plantas medicinais e

temperos, juntamente com as “formas” das moradias, normalmente com piso suspenso e uma

escada suspensa na porta principal, uma placa fixada na frente com letreiro denominando a

casa em meio aos modelos desenhados pela arquitetura moderna das residências e prédios

públicos, tecidos por estabelecimentos comerciais e lojas climatizadas e informatizadas em

meio as mercearias e bancas de camelôs estão constituídos os arranjos espaciais da cidade de

Melgaço, fundamentados na existência de paisagens híbridas, desenhadas pelas cartografias

de homens e mulheres que entrelaçam as fronteiras do rural e o urbano.

Essas fronteiras confusas e complexas são mediadas tanto pelas ruralidades

quanto pelas urbanidades, praticadas pelos moradores da cidade de Melgaço que com suas

ações plurais no espaço dinamizadas, tanto pelas atividades de trabalhos como pelos modos

de vidas, desenham a “cartografia social” das “rurbanidades” sem com isso, deixarem de

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serem cidadãos urbanos ou rurais, mas homens e mulheres que cruzam essas fronteiras e

vivenciam os dois mundos através de suas práticas cotidianas.

Por outro lado, a “geoetnografia” nos trouxe uma pluralidade de “Melgaços”. Há

uma cidade que envolve as áreas mais antigas da cidade que datam desde a colonização, onde

estão fixadas as residências daquelas famílias anfitriãs e dos comerciantes. Nessas áreas

constatou-se uma precária rede de esgoto superficial que são deslocadas para o rio, através de

dois subsistemas, um deles deságua no igarapé do quartel que corta a cidade no sentido Leste-

Oeste e o outro é jogado diretamente na frente da cidade, nas águas baia de Melgaço, sobre a

praia que serve como espaço de lazer dos moradores. Os dois subsistemas, não possuem

nenhum tipo de tratamento e atende número muito reduzido de residências.

A cidade contém aproximadamente 1.300 edificações entre moradias, prédios

públicos e estabelecimentos comerciais, segundo as informações obtidas no DICATRI

(Divisão de Cadastros e Tributos)94

da Prefeitura Municipal, deste total, somente 4% possuem

escoamento de esgoto sanitário adequado (IBGE/2010). Como o processo de segregação

espacial da cidade ainda não está tão intenso, esse percentual está disperso no espaço da

cidade e quase nada contribuem para a qualidade ambiental e de vida da população urbana.

Percorremos algumas “Melgaços” que o sentimento dos habitantes é de abandono.

Como a taxa da população da cidade apresentou crescimento no período de 2000 a 2010,

segundo o IBGE/2010, passando de 15,09% para 22,18% o processo de produção e consumo

do espaço intensificou. Estas populações estão se territorializando em áreas de menor valor

econômico e, consequentemente, convivem com baixo poder aquisitivo. A maioria é migrante

das comunidades rurais, refletida no atual estágio de ocupação de ruas como Orlando Amaral,

Estrada do Moconha, Matadouro, Vala da Wilson Ribeiro, Ponte da Invasão Nova Aliança e

Maromba. Essas áreas, por serem alagadas estão em situação de riscos sanitário muito grande

devido ausência total de infraestrutura urbana que garanta o fornecimento de água de

qualidade, sistema de esgoto sanitário, coleta de resíduos sólidos, iluminação pública,

aterramento e pavimentação das principais vias de acesso.

Constatou-se uma completa ausência de políticas públicas voltadas para a

educação dos populares, sobre as práticas seletivas dos resíduos sólidos consumidos na

cidade. Não identificamos nenhum programa nas secretarias de saúde, meio ambiente,

94

Fizemos visita nesta divisão para solicitarmos uma planta da cidade e nesta visita dialogamos com o chefe do

órgão que nos mostrou na tela de um computador esse quantitativo de prédios e nos disse que no momento

ainda não era possível fazer a distinção de uso e ocupação do solo, devido a prefeitura estar implantando este

sistema somente a partir do segundo semestre de 2013. Segundo o servidor, não havia essa política tributária

nas outras administrações.

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179

educação e obras que zelasse pela produção de um ambiente limpo da cidade. O resultado

dessa fragilidade é o convívio em uma cidade suja, com alta carga de resíduos sólidos nas vias

públicas e os moradores transitando em vias que estão envolvidas por capins e outros tipos de

vegetação, esburacadas e escuras dificultando o tráfego, principalmente, das pessoas que

necessitam transitar em meio à lama, o mato e a escuridão.

Essas formas de “cuidar” da cidade causam significativas revoltas aos moradores

locais. Os populares não acreditam que “uma cidade tão pequena possa viver em tão

abandono”. Essas vozes são motivadas, principalmente, por aqueles que necessitam transitar

durante a noite nas ruas da cidade, entre eles estão os estudantes, professores e aqueles que

utilizam dos espaços noturnos da cidade para sobreviver como, os vendedores de bombons e

lanche na frente das escolas e nos finais de semana, em frente das danceterias.

A partir deste contato com os populares e a visualização dessas problemáticas, in

loco, passamos a acompanhar as sessões ordinárias da câmara municipal. Ao todo,

acompanhamos doze reuniões e não houve nenhuma pauta voltada ao processo de

esgotamento sanitário, muito menos sobre a limpeza das vias públicas em debate nos

parlamentares, inclusive, houve duas sessões que foram suspensas por falta de pauta para

discutir nas reuniões. Durante esse contato, ficou explicito que as pautas das reuniões

dependem dos encaminhamentos do executivo e ao mesmo tempo, justifica-se a ausência dos

parlamentares de muitas áreas da cidade, apresentadas nas falas dos moradores, significando,

o desconhecimento dos vereadores da ausência de limpeza das ruas e, as consequências, que

essas inoperâncias apresentam aos moradores locais.

As formas de ocupação e consumo do espaço da cidade de Melgaço é um retrato

da mesorregião que são produzidos por populações que migram dos espaços rurais e ocupam

áreas próximas aos rios e igarapés, por uma questão cultural de manter-se vinculados aos rios

e outra, por não dispor de condições financeiras suficientes para adquirir um lugar em outras

áreas da cidade. Essas ocupações espaciais não estão contempladas por políticas locais da

cidade, levando os moradores a improvisarem seus acessos a energia, água e esgoto.

Essas precariedades das políticas territoriais urbanas podem ser explicadas ao

mesmo tempo por desconhecimentos que o poder público tem das matrizes culturais, políticas

e econômicas, que motivam a produção da malha urbana melgacense e marajoara. Nesta

dissertação trouxemos elementos como narrativas, dados estatísticos e imagens que

subsidiaram a tese de uma paisagem dinamizada, por práticas de consumo e produção do

espaço que não se configuram como urbana nem rural, mas espaços rurbanos praticados na

cidade de Melgaço.

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187

APENDICES

APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO SOCIOECONÔMICO E CULTURAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PESQUISA E EXTENSÃO – PPGE

PROGRAMA DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

URBANO – PPDMU

INSTRUMENTO DE PESQUISA DE CAMPO

O objetivo deste instrumento é fazer o levantamento quantitativo e qualitativo de moradores da cidade de

Melgaço que realizam práticas de trabalho na floresta como: agricultura, extrativismo, pesca e caça. Outro

interesse é saber das famílias as razões que os colocaram na cidade e como foram inseridas as práticas de

trabalho nos rios e na florestas e o que fazem se manter em 2014 atrelados nesses territórios.

Com essas informações teremos, além das entrevistas, o levantamento de hábitos alimentares, utilidade de

objetos de caça, pesca e extrativismo vegetal que podem confirmar a hipótese que Melgaço é uma cidade de

vivências rurais e urbanas – é um espaço rurbano.

Nome da rua: ________________________________________________________________

Nº da casa: _____ Situação da residência: ( )própria ( )cedida ( )alugada R$___________

Quantas pessoas moram na casa?______

Tempo de moradia na rua: ____________________

I – Infraestrutura da moradia

1.1 Tipo de construção: ( )madeira; ( )alvenaria; ( )açaizeiro; ( )madeira e alvenaria

1.2 Tipo de cobertura: ( )palha; ( )telha de barro; ( )telha de brasilit.; ( )mista

1.3 Número de compartimentos da moradia:_____

1.4 Condições sanitárias da moradia: ( )fossa céu aberto; ( )fossa séptica

1.4.1 Abastecimento de água: ( )poço sem tratamento; ( )rede pública sem tratamento;

( )rio sem tratamento; ( )consumo de água totalmente tratada.

1.5 Destino do lixo: ( )coletado para coleta pública; ( )queimado no quintal; ( )lançado

diretamente na rua ou no quintal.

1.5.1 A coleta pública acontece: ( )todos os dias; ( )uma vez na semana; ( )não passa a

coleta pública.

1.6 Outras instalações: ( )energia elétrica; ( )lamparina; ( )estiva; ( )trapiche;

II – Práticas socioculturais da família

2.1 A família tem hábitos de tomar banho no rio? ( )sim ( )não

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2.1.1 Porque razões buscam o rio para tomar banho?

2.2 Criam cachorro? ( )sim ( )não

2.2.1 Porque razões criam cachorro?

2.3 Criam galinha? ( )sim ( )não

2.3.1 Porque razões vocês criam galinha?

2.4 Criam pato? ( )sim ( )não

2.4.1 Porque razões vocês criam pato?

2.5 Criam animal silvestre (papagaio, periquito, macaco, etc.)? ( )sim ( )não

2.5.1 Porque razões vocês criam esses animais?

2.6 Criam porcos? ( )sim ( )não

2.6.1 Porque razões vocês criam esse animal?

2.7 Tem horta caseira no quintal e planta medicinais? ( )sim ( )não

2.7.1 Quais as razões de vocês cultivarem essas plantas?

2.8 Extraem açaí da floresta? ( )sim ( )não

2.8.1 Quais as razões de irem até a floresta em busca desse fruto?

III – Elementos da cultura material em uso cotidiano dos moradores (pode ser assinalado mais de

um elementos ou todos)

a) Fogão à gás; b) fogão a lenha; c) antena parabólica; d) TV de assinatura; e) aparelho TV; f)

aparelho celular; g) rádio; i) bicicleta; j) moto; k) motor rabudo; l) casco; m) remo; n)

lanterna; o) machado; p) terçado; q) computador; r) acesso à internet; s) geladeira ou

Prosdócimo.

IV – Procedência da família

4.1 De outra cidade? Qual? __________________

4.2 De outro Estado? Qual? __________________

4.3 Do espaço rural de outro município? Qual? _________________________

4.4 Do espaço rural de Melgaço? Qual? ___________________________________________

Informações sobre o (a) responsável pelas informações

Sexo: ________________

Escolaridade: _________________________________

Idade: _______________

Data da pesquisa: ______/_________/_______

___________________________________________

Responsável pelas informações

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APÊNDICE B - ROTEIRO DE ENTREVISTA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PESQUISA E EXTENSÃO – PPGE

PROGRAMA DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

URBANO – PPDMU

INSTRUMENTO DE PESQUISA DE CAMPO

O objetivo deste instrumento é conhecer com maior profundidade a história de vida dos moradores da cidade de

Melgaço, as razões que os colocam nesses trânsitos cidade-florestas, percebendo o processo de construção da

identidade socioespacial e sociocultural dessas populações com o lugar onde vivem.

I – IDENTIFICAÇÃO

Nome:_________________________________________________________________

Endereço:______________________________________________________________

Nº da casa: ________ fone: ______________

Escolaridade: _________________ data de nasc. ____/____/_____ Idade: ______

II – QUESTÕES NORTEADORAS

a) Quais os motivos que fizeram você escolher esta cidade pra morar?

b) Como era a cidade quando você chegou para morar aqui?

c) Quais foram suas primeiras experiências de trabalho na cidade?

d) Porque razão você permanece exercendo essas atividades por todos esses anos?

e) O que faz você permanecer todos esses anos nesta cidade?

f) Quais são os maiores desafios/dificuldades que você enfrenta em Melgaço?

g) Você tem alguma crítica sobre a cidade?

h) Que outras atividades vocês desenvolvem para garantir a sobrevivência da família?

i) Porque você escolheu esta rua para morar?

III – Outros Registros que considerar importante:

IV – Descrição do ambiente da rua e da moradia do entrevistado.

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ANEXOS

1 Parecer consubstancial do CEP (Comitê de Ética e Pesquisa) que aprovou a realização da

pesquisa com seres humanos na cidade de Melgaço.