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Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais ISSN 2177-6687
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SABORES PERDIDOS: ALGUNS FUNDAMENTOS CULINÁRIOS
PORTUGUESES DO BAIXO MEDIEVO.
MARQUES, Elisa Paula (PPH/UFSC)
INTRODUÇÃO
Rabelais dizia que a gastronomia é uma arte complicada, da qual o estômago é o
pai.1 E podemos considerar que é também um dos melhores reflexos dos hábitos e
costumes de uma época. Sentemo-nos, pois à mesa medieval, acompanhados de dois
manuscritos; O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal e A arte da Cozinha
de Domingos Rodrigues.
O primeiro, que não chegou a ser impresso, trata-se do mais antigo livro de
cozinha portuguesa, conhecido até o momento: o Manuscrito I-E 33 da Biblioteca
Nacional de Nápoles, e temos contato com ele através da edição crítica mais completa:
O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal de Giacinto Manuppella2. Um
códice, que apesar dos problemas paleográficos e cronológicos que levanta, é valioso,
contribuindo não só para o vocabulário histórico da língua portuguesa, como também
mostrando um lado importante da vida social que é a arte de cozinhar e bem comer,
numa época da história gastronômica portuguesa de que muito pouco se conhece.
O segundo é o mais antigo documento impresso de receitas culinárias
portuguesas, e não é anterior a 1680, que é A Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues.
O manuscrito que não chegou a ser impresso, pertenceu a Dona Maria de
Portugal, filha de Dom Duarte, Duque de Guimarães, e neta de Dom Manuel. As casar-
se com Alexandre Farnésio, Duque de Parma, Plâcencio e Castro, a jovem versada em
latim e grego, viajou em 1565 para residir em Parma. O códice, que teria sido levado
pela infanta para a Itália, faz parte de um grupo de cinco tomos3. Os fólios4 reúnem 61
1 BAKKTIN, MiKail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, 1993. 2 MANUPPELLA, Giacinto. Livro de cozinha da infanta D. Maria de Portugal. Códice português I.E.33 da Biblioteca Nacional de Nápoles. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986. 3 O termo tomo se refere a uma divisão bibliográfica que pode ou não coincidir com o volume. 4 Número que indica a paginação.
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receitas, divididas em quatro cadernos; o de manjares de carne (que contabilizam 26
receitas), o de manjares de ovos (4 receitas), de manjares de leite (7 receitas), e das
“coisas de conservas”(24 receitas).
Para G. Manuppella,5 os quatro cadernos que o compõem eram originalmente
separados e independentes, produzido em épocas diferente e por 3 autores,
provavelmente fidalgos. As características ortográficas dos cadernos localizam sua
origem entre fins do século XV e início do século XVI. A data provável em que foi
concebido o manuscrito, (não necessariamente as receitas, que podem ser mais antigas)
é anterior a 1565. Podendo ser enquadrado entre as décadas de 1530 e 1560 também
para o estudioso, pelo menos uma das receitas, intitulada “vinho de açúcar” (que se bebe
no Brasil)’ foi acrescentada posteriormente.
O segundo códice é de autoria de Domingos Rodrigues, nascido em Vila Cova,
norte de Portugal em 1637 e falecido em Lisboa em 17196. Rodrigues ascendeu
hierarquicamente ao ser designado cozinheiro de Dom Pedro II e de sua mulher Dona
Maria Francisca Sabóia, filha do Duque de Nemours, em casa de quem o cozinheiro
La Varenne já havia servido.7 Segundo o historiador e gastrônomo Alfredo Saramago,
a rainha vinha de uma família conhecida por seus bons cozinheiros e era muito
interessada em boa cozinha. Domingos Rodrigues, ao ser contratado para cozinhar,
devia saber da importância que os tratados e compêndios culinários assumiam não só
para a aristocracia como também para a alta burguesia em busca de prestígio social.8
Trata-se pois, de um livro de cozinba voltado para a elite, para as grandes casas, que
mostraria, também, como a alimentação e os modos à mesa serviam para marcar a
diferença entre os grupos sociais.
Um manuscrito culinário por si só não poderia ser considerado um testemunho
das práticas culinárias de seu meio e sua época. Primeiramente porque ele se inspira, na
maioria das vezes em modelos anteriores, datados em alguns casos de séculos.
Constituindo-se não raras vezes numa pura repetição do original. Mas o estudo
minucioso das receitas é muito útil ao historiador da cozinha, desde que possa se separar 5 G. Manuppella. op. cit. p. 05. 6 As poucas referências bibliográficas sobre o autor estão em Alfredo Saramago prefácio de Arte da Cozinha (Sintra Colares 1995, reprodução da edição de 1693) e em Maria da Graça Pericão e Maria Isabel Faria prefácio a Arte de Cozinha (Lisboa : Imprensa Nacional, Casa da Moeda 1987, reprodução da edição de 1732). 7 SARAMAGO, Alfredo. Prefácio a arte de cozinha. op.cit. p.16. 8 Idem.
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a análise em alguns itens principais. O primeiro seria o título da receita, depois os
produtos utilizados e por fim os sabores, as cores e os cheiros que dele possam resultar.9
Um mesmo nome pode indicar pratos muito diferentes, mas o fato do nome
existir já pode ser considerado um indício precioso. Os termos que compõe uma receita
podem identificar heranças ou modificações ao longo do tempo. E mesmo os pratos que
levam o nome de pessoas, personagens ou lugares devem merecer especial atenção, pois
um caldo sarraceno, que leva toucinho e vinho no seu preparo não indica a influência
árabe e seu nome deriva apenas da sua aprecia escura.10
Nas análises atuais11, será útil lançar mão de sabores para indicar os parâmetros
de uma cozinha medieval, reconstruí-los, entretanto, é uma tarefa arriscada já que a
distinção entre eles é uma questão de cunho cultural, variável no tempo e no espaço. As
cozinhas medievais giram em torno de três sabores fundamentais, a partir da
combinação de “grupos” de alimentos ou ingredientes: o uso de especiarias caracteriza o
sabor forte; o açúcar, o sabor doce; e o vinagre e o agraço12 (as frutas cítricas como
limão, na região do mediterrâneo) dão o caráter ácido aos pratos.
Tomando como base apenas um de seus cadernos- o de carne, alimento
considerado fundamental desde a antiguidade, observa-se que o Livro de Cozinha da
Infanta Dona Maria se encaixa nos parâmetros de sabores que o define como um típico
representante da cozinha medieval. E algumas de suas receitas aparecem sem
modificação no Livro de Domingos Rodrigues, quase um século depois13.
Para o antopólogo Claude Lévi-Strausss a cozinha assim como a linguagem é
uma forma de atividade humana universal.14 O ato de comer é comum aos seres
humanos seja por necessidade de sobrevivência, ou pelo aspecto social já que podem
estabelecer realções entre si o mundo qu os cerca. Mas o que interesa nesta projeto é
que o fato de comer não é igual nem em todas as sociedades nem em todas as épocas. O
periodo compreendido como Idade Média ainda é visto como um bloco compacto e 9 FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANAR,I Massimo (org.) São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p.448-460. 10 Idem. 11 Uma destas análises é a da Nova Filologia que não só estuda e interpreta os textos de línguas em termos de seu significado e história das palavras, mas também examina detalhadamente a autenticidade e as origens do material textual. Esta prática constitui uma linha de investigação um tanto diversa da antiga filologia que se preocupa com problemas em torno dos textos ao invés da interpretação dos textos como dados históricos e lingüísticos. 12 Picante ao gosto. 13 Alguns exemplos são as receitas de Galinha Mourisca, Coelho e Perdiz. 14 O triângulo culinário . IN: Levi Strauss. São Paulo; Lare documentos, 1968.
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imutável. E ao procurar analisar os livros de receitas portugueses citados estamos
recorremos ao que havia de diferente na cozinha portuguesa que a diferenciava das
outras cozinhas medievais do mesmo período. Isso pode ser verificado através da
escolha e preparação dos alimentos, reforçada no modo de sevir e de se comportar à
mesa. O que faz deste estudo uma boa possibilidade para se falar, para além da comida,
de símbolos, regras e representação dos grupos para os quais os livros examinados
serviam de manual.
A perspectiova de investigação dos manuscritos culinários, posicionará nossa
pesquisa em uma tradição mais longa de textos referentes ao universo da cozinha. E
podemos observar em várias receitas um caráter de medicina preventiva, própria do
galenismo medieval, mas que segundo Santos e Fagundes15, considerava o corpo
humano um microcosmos, ou seja o espelho do universo, macrocosmo.16 A saúde
resultaria num equilíbrio, numa relação harmonioza dos quatro humores (Teoria
Humoral)17 e de suas qualidades (quente, frio, seco e úmido) no corpo humano. O
desequilbrio interno dos humores e de suas qualidades provocaria a doença. A dietética
sempre teve o homem como centro de sua atenção e isso transparece nas próprias
receitas que as vezes parecem conselhos para uma vida saudável. A manutenção da
saúde corporal era segundo obras médicas medievais mantida por intermédio de práticas
e hábitos alimentares salutares, e isso fica envidente nas receitas culinárias A guisá de
ilustração, citamos:
15 SANTOS, Dulce O. Amarante e FAGUNDES, Maria Daílza da Conceição. Saúde e dietética na medicina preventiva medieval: o regimento de saúde de Pedro Hispano. História, Ciência e Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, 2010.p.333-342 16 Aline Silveira, historiadora do período medieval aponta que ; “De acordo com o sistema associativo e simpático de perceber o mundo natural na Idade Média , o ser humano seria um pequeno mundo, o microcosmos. Os olhos , por, exemplo entendidos como iluminadores da percepção foram associados em tal sistema, no qual o paralelo cósmico-antropológico apresenta o ser em sintonia com o universo percebido como um todo de relações simpáticas.” 17 A teoria humoral ou teoria dos quatro humores constituiu o principal corpo de explicação para a saúde e a doença entre os séculos IV a.C. e o século XVII. Também conhecida por teoria humoral hipocrática ou galénica, segue a teorias segundo a qual a vida seria mantida pelo equilibrio entre quatro humores: sangue, fleuma, bilis amarela e bílis negra procedentes, respectivamente, docoração, sistema respiratório, fígado e baço. Cada um destes humores teria diferentes qualidades: o sangue seria quente e úmido; a fleuma, fria e úmida; a bílis amarela, quente e seca; e a bílis negra, fria e seca. Segundo o predomínio natural de um destes humores na constituição dos indivíduos, teríamos os diferentes tipos fisiológicos: o sanguíneo, o fleumático, o bilioso ou colérico e o melancólico.
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Frango para os Hécticos (tísicos)18. Criem separados uma dúzia de frangos, cujo único alimento consista de titela19 de cágado, cozida ou cevada: esse alimento deverá ser sempre fresco. Diariamente cozinhe-se um frango em pouca água, até desmanchar. Em seguida esprema-se a carne, que saia todo o suco; coem o caldo e levem-no novamente à panela com uma colher de açúcar rosado. Deixe-se ferver um pouco, côa-se novamente, e estará o caldo pronto.20
Podemos perceber que ao mesmo tempo uma receita poderia servir para a
preparação de um alimento e/ou de um remédio. Desde que Galeno afirmou “diet was
the most useful arm of medical science”21, os médicos não cessaram de recomendar
receitas, muitas delas a base de especiarias para prevenir e curar doenças.22
Então compreender um livro de cozinha como registro social e objeto a partir do
qual é possível aprender aspectos da sociedade é um fenômeno historiográfico
relativamente recente23. A necessidade de se utilizar a via da alimentação para estudar a
sociedade introduz novas perspectivas de análises das relações sociais. Para Fernand
Braudel existia a necessidade de se investigar além do evento alimentar e situá-lo num
quadro maior e mais amplo e que desse conta das conjunturas de curta e longa
duração24. Em dois artigos25 Braudel elevou o estatuto da alimentação a objeto “sério”
de estudo e a alimentação passou a ser entendida conjuntamente com o contexto
biológico, econômico, social e cultural do período estudado.
E é dentro deste quadro maior que nossas hipóteses se encaixam. A cozinha
portuguesa do período não era cópia da cozinha francesa, ela tem aspectos bastante
18 Em muitas receitas observa-se o uso de ingredientes cujo poder de sustância dos alimentos preparados remete, por exemplo, a uma estética onde predominava a voluptuosidade das formas corporais. Ao contrário dos tempos atuais que impõe a todos, independentemente de constituição corporal, silhuetas magras; no tempo em que esta receita foi compilada ser esbelto poderia anunciar, ao invés de saúde, a tuberculose. 19 Parte carnuda do peito. 20 Frango para os Hécticos (tísicos). Receita número 12 do Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria. IN: O livro de Cozinha da infanta Dona Maria de Portugal. op. cit.p.24. 21 WILKINS, John M. and HILL, Shaun. Food In the Ancient World. Malden: Blachwell Publishing, 2006. p. 217. 22 A pimenta do reino”mantém a saúde, conforta o estômago, dissipa os gases. Ela faz urinar, cura os calafrios das febres intermitentes, cura também picada de cobra, provoca o aborto de fetos mortos. Quando bebida serve para tosse, mastigada com uvas-passas purga o catarro, abre o apetite”In: FLANDRIN, Jean-Louis ;MONTANARI, Masssimo .Virtudes Medicinais das Especiarias. p.480. 23 Os trabalhos de antropólogos e sociólogos foram anteriores ao dos historiadores. Mas a entrada da história nesse campo foi decisiva para consolidar uma perspectiva teórica interdisciplinar. 24 BRAUDEL,Fernand. Historia e Ciências Sociasi. IN: Escritos sobre a história são Paulo: perspectiva, 20009.p.41-78. 25 Vida Material e Comportamento Biológico e Alimentação e Categorias de Alimentos. Ambos escritos na revista dos Annales v.1.6, 1961.
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originais. O descobrimento das “terras além-mar”, propiciou o aumento da quantidade
de especiarias disponíveis e rapidamente foi incorporado a vida dos portugueses. Os
preparos (receitas) das cozinhas abastadas saiam pelas portas e chegavam mais longe,
numa circularidade propiciada pelos que preparavam os alimentos. Havia uma intenção
na confecção de manuscritos culinários que pretendia tornar imutável o preparo de
determinados alimentos.
Para realizar a tarefa que nos propomos, pretendemos cruzar as informações dos
códices culinários que dispomos com imagens, as iluminuras, e também com as
descrições de banquetes. Como exemplo podemos citar a iluminura extraída do Livro
das Horas26 de D.Manuel fol.V( conservado o original no Museu de Arte Antiga de
Lisboa27) e um banquete descrito pelo cronista Garcia de Resende na Crônica de Dom
João II 28, ambos fontes primárias que nos serão auxiliares.
A DIETÉTICA NA PORTUGAL QUINHENTISTA
Podemos inferir que Portugal, um país independente desde 1143, já possuía
grandes tradições culinárias. Muitas receitas do período medieval e também algumas
que ainda hoje são produzidas baseiam-se em pratos que já existiram em séculos
anteriores29. Mesmo sabendo que algumas receitas foram escritas no século XVI, muitas
delas são cópias de receitas mais antigas. Um livro caseiro de receitas é sempre a
compilação de cópias de receitas que agradaram e foram passadas de uma geração à
outra. Nunca se terá a certeza da época em que primeiro se executou tal receita, pelo
menos com base nesse tipo de livro caseiro.
Comparando-se a alimentação quinhentista com a atual, a partir da leitura de livros
que tratam do assunto como A Arte de Comer em Portugal na Idade Média de Salvador
Dias Arnaut30, podemos dizer-se que a da população em geral era genericamente pobre,
prevalecendo, na maioria das vezes, a quantidade dos alimentos sobre a qualidade. 26 Livro de horas é um tipo de manuscrito comum à Idade Média, continha uma coleção de textos, orações e salmos, acompanhados de belas e ricas ilustrações. 27 Colocamos a imagem no anexo. 28 ARNAUT. op.cit. p. 129-131. 29 É uma pena que o terremoto de 1755, além de ter destruído inúmeras vidas, tenha deixado em suas chamas, as cinzas do passado português, com a destruição dos monumentos e livros sobre os mais variados assuntos, incluindo, com certeza, a culinária. 30 ARNAUT, Salvador Dias. A Arte de Comer em Portugal na Idade média. Lisboa: colares Editora, 1986.
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Naquela época (séculos XIV e XV) se comia basicamente cereais, carne, peixe e vinho.
Sendo a carne a base por excelência da alimentação. Dentre os cereais tem-se o trigo, o
milho, o centeio. As exceções, apontadas por Arnaut, eram os banquetes em que além
da quantidade a qualidade e a excentricidade dos pratos eram elementos de status. Sobre
o banquete podemos citar Bakhtin:
Uma refeição não podia ser triste. Tristeza e comida eram incompatíveis, afinal o banquete celebraria a vitoria sobre a morte. O comer, enquanto enquadramento essencial da palavra sábia, da alegre verdade, reveste-se de uma importância especial. Uma ligação eterna sempre uniu o banquete a palavra simpósio. As conversações à mesa são livres e brincalhonas. Rebelais estava certo de que não se podia exprimir a verdade a não ser no ambiente à mesa. As conversações à mesa misturavam livremente o profano e o sagrado, o superior e o inferior, o espiritual e o material 31
Encontramos nos dois manuscritos receitas especiais para banquetes; no Livro de
Cozinha da Infanta Dona Maria, podemos imaginar pela elegância do prato que este
deveria ser servido em uma ocasião especial. Já em a Arte da Cozinha temos um
capítulo, o de número três, com o título: “Formas de como ham de dar os banquetes em
todos os meses do ano”32, dedicados a sugestões de preparados para as refeições formais
e solenes.
Nestas ocasiões a qualidade e a natureza dos alimentos, as quantidades
consumidas, os modos de preparo, tudo concorre simbolicamente para definir a classe
de pertença, a “qualidade da pessoa”, como se dizia então. Essa expressão já era
empregada nos textos de medicina antiga, mas para indicar as características individuais
do consumidor e suas necessidades alimentares subjetivas, condicionadas ao mesmo
tempo, pelo clima, meio, a estação, o trabalho exercido e claro, pelo sexo, a idade, a
constituição física. Na Idade Média (principalmente entre os séculos VII e IX) a noção
de qualidade da pessoa muda radicalmente de sentido; ela designa não mais a identidade
fisiológica do indivíduo, mas sua pertença social. 33
31 BAKTHIN, Mikhail.op.cit. p.12. 32 RODRIGUES, Domingos.op.cit. p.198. 33 MONTANARI, Masssimo.Os camponeses, os guerreiros e os sacerdotes:imagem da sociedade e estilo de alimentação.IN: FLANDRIN, Jean-Louis ;MONTANARI, Masssimo (Org.). História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.p.296-297.
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A dietética não se define mais apenas como um conjunto de preceitos de higiene,
mas revela-se portadora de uma nova dimensão de norma social, de código de
comportamento, um exemplo dado por Massimo Montanari é o do o monge Alcuin que
apresenta as diversas manifestações possíveis do “pecado da boca”, e não deixa de
condenar a falta comedida por aqueles que se servem de pratos mais refinados do que
seria adequado a sua “qualidade pessoal” 34·.
A culinária revela traços sutis, das pessoas e dos tempos, ou seja, das várias
culturas. Algumas receitas revelam o ciclo de um período onde o “tempo”, grande
velocista de nossa época, se revela cauteloso e moroso. No cotidiano, havia "tempo"
para o preparo demorado dos alimentos, das compotas e assados.
Tomem umas cinco ou seis dúzias de peras, não muito maduras nem muito verdes, e dêem-lhes uns cortes oitavados, lançando-as imediatamente numa vasilha com água fria. Em seguida, ponham água a ferver num tacho, e deitem ali as peras para cozer, perfurando-as antes ao comprido, duas vezes. Para saber se estão cozidas, espetem-nas com um alfinete. Se caírem, estão boas. Tirem então as peras da água, e coloquem-nas em uma peneira, abafando-as com panos de cozinha. A seguir, façam uma calda em ponto regular, e lancem-na morna sobre as peras, que já estarão arrumadas num tacho; a calda deve cobrir as peras, e o tacho há de ficar bem abafado. Durante oito dias seguidos dêem uma fervura na calda, cada dia mais forte, e derramem-na morna sobre as peras que ficaram no tacho. Usem desse processo por mais sete dias, dia sim, dia não. Se no fim desse tempo a compota não estiver no ponto desejado, continuem fervendo a calda e derramando-a morna sobre as peras, por mais dois dias. Finalmente, levem tudo junto ao fogo, peras e calda, acrescentem um pouco de água-de-flor, e deixem ferver regularmente por uma meia hora. Separem novamente as peras de sua calda, a qual, após ser coada, voltará novamente para junto das frutas. Enquanto se fizer a compota, a calda será coada diariamente, antes de se juntar às frutas. E será conveniente clarificar essa calda de dois em dois dias. Se durante o fabrico da compota aparecerem nódoas brancas na calda, levem tudo ao fogo, para uma fervura. Para que as frutas fiquem mais bonitas, cada dia adiciona-se-lhes uma calda nova. (grifos nossos)35
Vemos que alguns pratos levavam dias para serem curtidos e saboreá-los era o
presente pela espera. As receitas de doces abusam da disciplina do leitor: massas
folhadas, biscoitos, compotas, doces de frutas — marmelo, pera, flor-de- laranjeira,
pêssego e limões. Os condimentos apontam para a importância das especiarias vindas
34 Idem. 35 Perinhas Dormideiras. Receita do Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria de Portugal
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do oriente: cravo-da-índia, pimenta, canela, gengibre, cominho, açafrão, ervadoce e o
arbusto almíscar36.
A exemplo das roupas os alimentos também se revestiam de um valor externo e
aparente que se inscrevia na hierarquia social. A linguagem alimentar do seculos XV e
pricipalmente XVI se reveste de um conteudo cada vez mais ostentatório, onde existe
espaço para a produção cenográfica e teatral. O alimento não poderia ser apenas
saboroso, deveria surpreeender os convidados e comensais. assim podemos inserir o que
Lisa M. Hargreaves denominou de ciborgue gastronômico na cozinha medieval, ou seja,
criações híbridas de alimentos que invadem o território do grotesco tão caro a Rabelais.
Os tratados e livros de culinaria constituem fontes fundamentais sobre a
alimentação e a vida cotidiana, entretanto como aponta Vanessa Asforra, à valorização
dos livros de cozinha como fonte para a história, e questões de método envolvendo seu
tratamento parecem pouco discutidas.37 Sobre a alimentação na Idade Média um
trabalho pioneiro parece ser o artigo de Allan Grieco, que levanta um importante
questionamento: somente o fato de uma receita aparecer em um livro de cozinha
significa que ela era realmente, sempre preparada, servida e consumida?38 Esta pergunta
segundo Grieco pode ser respondida pela análise serial da fonte e no cruzamento das
informações ali contidas com outras advindas indiretamente de outras fontes.39
Grieco também levanta outras questões sobre as quais nos debruçaremos no
decorrer do trabalho. Qual a realção entre livros de cozinha e prática culinária? Se as
receitas desses livros eram realmente preparadas, é possivel dizer algo sobre o gurpo
social ao qual elas estavam destinadas? Dentro do conjunto de receitas praticadas, o que
se sabe sobre seu contexto de preparação? Tratas-se de receitas cotidanas, elaboradas
para banquetes ou para tratamento de doentes? Qual a frequência de preparação destas
receitas. Algumas eram prepardas com mais regularidade do que outras?
Se não há respostas definitivas, podemos procurar saída para algumas delas
investigando as obras dentro do contexto em que foram escritas. O historiador Carlo 36 A palavra especiaria não designava qualquer tempero na cozinha, mas apenas os produtos exóticos, vindos de longe. Muitos destes produtos não tinham a função culinária, mas terapêutica. Para saber mais ver. Tempero, Cozinha e Dietética nos séculos XIV, XV e XVI, de Jean-Louis Flandrin. 37 ASFORA, Vanessa. Apício: história da incorporação de um livro de cozinha na Alta Idade Média (séculos VII e IX). Tese de doutorado. São Paulo. USP,2009.p.5 38GRIECO, Allen. Alimentação e classes sociais no fim da Idade média e na renascença. IN: FLANDRIN, Jean-Louis ;MONTANARI, Masssimo (Org.). História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 19996.p.466-477. 39 Idem.
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Ginzburg, interessado em mostrar como os detalhes aparentemente sem importância são
surpreendentemente relevantes à explicação científica propõe encontras as raízes de um
paradigma indiciario estudando sinais e pormenores muitas vezes negliegenciados.”Se a
realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifra-
la.” 40, aponta Ginburg. È isto o que se propõe este projeto, descobrir e confrontar
pistas, traços, resíduos, nessse caso, escondidos entre tampas, panelas temperos e
cheiros.
OBJETIVOS
GERAL
Analisar O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal e A arte da
Cozinha de Domingos Rodrigues, segundo a ótica da longa duração,
verificando as permanências e inovações no Modus operandi culinário
medievo.
ESPECÍFICOS
Identificar os alimentos que compunham a mesa medieval portuguesa e
sua produção.
Discutir a importância que os tratados e compêndios culinários
assumiam não só para a aristocracia como também para a alta burguesia
em busca de prestígio social;
Mostrar as relações existentes entre microcosmos e macrocosmo na
visão das receitas como medicamento;
Relacionar O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal e A arte
da Cozinha de Domingos Rodrigues, com a questão da circularidade
cultural.
Mostrar como os códices culinários analisados podem refletir os hábitos
e costumes de uma elite portuguesa do século XV.
Entender como funcionavam as cozinhas portuguesas no período em que
estas receitas foram compiladas.
40 Sinais: raízes de um paradigma indiciário: IN Carlo Ginsburg. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo; Cia das Letras, 2003 p177.
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Refletir sobre o ritual do banquete medieval português através de seus
símbolos, regras e representação dos grupos dominantes do período;
Perceber o impacto dos Descobrimentos da América na mudança do
“gosto” português, que se revela no acréscimo de novas receitas aos
manuscritos.
Discutir a noção de “tempo” no período Alto Medieval a partir da análise
das receitas apresentadas nos dois manuscritos.
METODOLOGIA
Para este projeto, escolheu-se trabalhar com o Livro de Cozinha da Infanta D.
Maria de Portugal, e a Arte da Cozinha, pois embora o primeiro não tenha sido editado,
receitas encontradas na Arte de Cozinha podem ser cópias do Livro da Infanta D. Maria.
E a importância da arte de cozinha é inegável, pois este livro viajou de Portugal para o
Brasil juntamente com a família real e foi referência primordial para o fazer culinário
das elites portuguesas e das grandes casa brasileiras da época , sendo sua última edição
feita em 1849.
A alimentação no período apontado era a principal oportunidade que tinham as
classes dominantes da sociedade para manifestar a sua superioridade num mundo
essencialmente dominado pelas aparências. O luxo alimentar é o primeiro de todos.
Exibem-se os produtos reservados: a caça das florestas senhoriais, os ingredientes
preciosos, especiarias compradas por alto preço, e os pratos raros, preparados pelos
cozinheiros. As cenas de festim descritas ou retratadas nas iluminuras descrevem os
banquetes onde na mesa senhorial, se apresentava a oportunidade para exibir e fixar as
regras de etiqueta.
Na análise das receitas vamos optar por tratá-las como textos, pois algumas
receitas e procedimentos são bastante longos, então utilizaremos a definição de Halliday
e Hassan, que coloca que:
um texto é bem mais pensado não como uma unidade gramatical, mas antes como uma unidade de tipo diferente: uma unidade semântica. A unidade que o texto tem é uma unidade de sentido em contexto, uma
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textura que expressa o fato de ele se relaciona como um todo com o ambiente no qual está inserido41
Esta definição vai ao encontro do que chamei de novas abordagens entre elas a
“nova filologia”, que propõe justamente entender o texto como algo que extrapola o
fenômeno discursivo- discurso entendido aqui na sua concepção mais genérica
designando simplesmente a linguagem posta em ação ou a seqüencia de frases.42 O texto
visto nesta forma de abordagem interage ativamente com todas as partes que o compõe
(tipo de escrita, decoração, iluminuras, comentários marginais e encadernação). A
inovação de tal perspectiva de trabalho filológico nos abre maiores possibilidades para
pensarmos a relação entre as receitas e o leitor/cozinheiro (medieval ou moderno). Abre
de acordo com Asforra, espaço para refletir como é o texto encarnado como matéria, e
não o texto em uma dimensão inatingível ou que se dá apenas por meio de um processo
especializado, e custoso, de abstração aprendido nas escolas formais e universidades. 43.
A ação prática se dividirá em três eixos, coordenados simultaneamente:
Construções sóciocultural, representações, permanências e inovações.
41 CHARAUDEAU, Patrick;MAINGUENAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. Tradução de Fabina Komesu. São Paulo: Contexto, 2006.p.467. 42 DUBOIS apud ASFORRA, 2008. p. 15 43 Asforra. op. cit . p. 15.