31
SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão de um mariachi invisível. A cor desta cena é amarela. Não parecia existir uma única verdade por trás das ondas de calor que emanavam do asfalto sob os pés de Perro e Dumas, tudo se assemelhando a sonho e ilusão. Mas o que estava prestes a acontecer era terrivelmente real. Eles olhavam um para o outro e quem quer que os visse não saberia o que concluir. Poder-se-ia pensar ao mesmo tempo que se despediam ou que se davam as boas vindas. De qualquer maneira, eram estranhos o suficiente para que os motoristas que passavam a mais de cem pela rodovia os olhassem com certa curiosidade. Perro era um velho sem um braço, porém desenvolto e de olhos vivos. O toco de seu braço perdido estava oculto sob a jaqueta comprida de couro marrom e seco. Ostentava muita disposição física e uma postura arrogante. Seus cabelos brancos estavam amarrados em um rabo-de-cavalo comprido, seu bigode ainda era cinzento e quase cobria a boca firme. Tinha o rosto atravessado por aquela amargura típica dos velhos mexicanos herdeiros dos indígenas de pele queimada. Acima de tudo, parecia, à sua maneira, prestes a chorar. Mas se aquela relação momentânea da dupla era tão carregada de estranheza, isso se devia prioritariamente a Dumas. Ele era jovem, vigoroso, forte como um touro, corpo perfeito, trabalhado em cada pequeno músculo,

SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça!

Cidade de Dorados, México - 11 da manhã.

O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão de um mariachi invisível.

A cor desta cena é amarela.

Não parecia existir uma única verdade por trás das ondas de calor que

emanavam do asfalto sob os pés de Perro e Dumas, tudo se assemelhando a

sonho e ilusão. Mas o que estava prestes a acontecer era terrivelmente real.

Eles olhavam um para o outro e quem quer que os visse não saberia o

que concluir. Poder-se-ia pensar ao mesmo tempo que se despediam ou que se

davam as boas vindas. De qualquer maneira, eram estranhos o suficiente para

que os motoristas que passavam a mais de cem pela rodovia os olhassem com

certa curiosidade.

Perro era um velho sem um braço, porém desenvolto e de olhos vivos.

O toco de seu braço perdido estava oculto sob a jaqueta comprida de couro

marrom e seco. Ostentava muita disposição física e uma postura arrogante.

Seus cabelos brancos estavam amarrados em um rabo-de-cavalo comprido,

seu bigode ainda era cinzento e quase cobria a boca firme. Tinha o rosto

atravessado por aquela amargura típica dos velhos mexicanos herdeiros dos

indígenas de pele queimada. Acima de tudo, parecia, à sua maneira, prestes a

chorar.

Mas se aquela relação momentânea da dupla era tão carregada de

estranheza, isso se devia prioritariamente a Dumas. Ele era jovem, vigoroso,

forte como um touro, corpo perfeito, trabalhado em cada pequeno músculo,

Page 2: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

nem baixo, nem alto, nem magro nem gordo, apenas esculpido com a

perfeição do Discóbolo de Míron. Não possuía um único fio de cabelo e sobre

sua cabeça lisa como que envernizada, escorregavam filetes de suor. Trajava

uma camiseta regata preta, calças pretas, enormes e ameaçadores coturnos

pretos. Sua pele não era a pele escura dos mestiços. Era branco. Seu rosto não

traía emoção alguma. Carregava um grande saco plástico preto às costas,

enrolado em barbante.

A alguma distância dali, a cidade acordava rapidamente. Muita gente

caminhava para compromissos inadiáveis. O sol das onze já estava bem

quente. Perro e Dumas, de lados opostos da rodovia, concentravam-se um no

outro.

Por um momento, Dumas desviou o olhar, mirando o chão arenoso.

Perro gritou para ele do outro lado, sem muita convicção:

— Vamos pra casa, Pachuco.

— Vá na frente. Eu alcanço você. – respondeu Dumas virando-se para o

lado e limpando a testa com a mão.

— Isso não vai dar certo, Chiquito.

— Vai dar certo. E você não vai me irritar.

Perro deu uma cuspidela. O sol! O meio braço que lhe restava doía

como o diabo, latejando com o calor infernal.

— Vai dar certo. – repetiu Dumas para si mesmo, em um murmúrio.

Mas algo lhe dizia que tudo ia terminar da pior forma possível.

***

A Zona dos Cães – Cinco dias atrás.

O som é de um grande tambor que ressoa de vez em quando.

Esta cena é de um azul escuro profundo.

Page 3: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

A chuva caía sobre ambos.

— Pachuco! – berrou Perro, ao lado de um vendedor de cachorro-

quente.

Dumas correu para perto de Perro, que comia um cachorro-quente

debaixo do guarda-sol do vendedor. A região dos bares, a Zona dos Cães, era

sempre agitada. Mesmo sob a chuva, os jovens enchiam as ruas como

formigas e carros paravam e andavam por toda parte.

— O que é isso?

— O jantar.

Perro ainda tinha os dois braços. Sua habitual expressão de cafajeste

também estava lá.

— Tome – disse ele, lançando uma moeda para Dumas. – Coma alguma

coisa você também. A noite vai ser difícil.

Ele não estava brincando. A situação nunca mais estivera

completamente fácil desde que a generala decidira ficar na cidade e

atormentar a vida dos génos que ainda restavam. Perro fazia um belo trabalho

atrapalhando a garota em seus planos, mas era apenas um.

Até Dumas ser descoberto.

E que descoberta! Já em sua vida entre os humanos o garoto, filho de

norte-americanos emigrados, mostrava uma séria inclinação para a guerra.

Nunca soubera muito bem para onde dirigir sua belicosidade, aquela vontade

de esmagar completamente o mundo e construir algo novo em seu lugar. O

que desejava mais ardentemente era ter nascido nos tempos da Revolução.

Para fazer a diferença.

Quando Perro o trouxe e lhe mostrou sua verdadeira vida, as poucas

palavras que ele dissera em resposta haviam sido muito promissoras. No lugar

Page 4: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

do espanto e da desolação que os novatos costumam expressar, Francisco

Goldwin mostrou-se incrivelmente sério. E falou pausadamente, duro como

um deserto:

— Então, chegou a hora.

A seguir, escolheu “Dumas” como seu novo nome, sem pensar muito.

A aceitação da amizade de Perro foi muito natural. O velhote era um

pilantra inveterado, grande mentiroso, adepto convicto da tequila como

substituta do café da manhã. E, no entanto, aquele coração de dois séculos de

vida era rico em integridade, em força de espírito, em grandeza, e naquele

crânio tantas vezes partido pelas agruras da guerra estava uma mente vibrante,

sábia, ágil como um gato.

Mas eles se desentendiam, é claro. E a questão era a disparidade de

métodos.

Terminaram de comer os cachorros-quentes e começaram a andar,

passando na frente dos bares e boates, que não acabavam nunca. Garotos

brigavam com garrafas cortadas. Algumas prostitutas faziam propaganda de

seus serviços. Uma noite como todas as outras.

— O que você pretende exatamente, Perro?

— Fazê-la comer na minha mão.

— Vai aprontar uma das suas, não é?

— Uma das nossas.

— Está me incluindo?

— Você, os deuses e meus ancestrais de Tenochtitlan!

O que Dumas disse a seguir não foi produto de sua impulsividade. Ele

pensou bem antes. Era algo que o incomodava e precisava ser exposto:

— Seus antepassados ficariam envergonhados se...

Page 5: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

Não pôde terminar. Perro o agarrou pelo colarinho da camisa, o

empurrou como uma parede e, antes que o garoto respirasse, uma faca saía da

manga da jaqueta de Perro e parava encostada em seus lábios. Ele não se

surpreendeu, mas não pôde evitar que seus olhos se fechassem bem apertados.

— Te arranco a língua, Chiquito. – rosnou o velho. – E enterro no

túmulo dos meus ancestrais pra pagar a ofensa. É só falar deles de novo. É só

tocar no assunto. Me ouviu?

Dumas fez que sim com a cabeça. Esperou a faca voltar para dentro da

manga de novo. Então aplicou um soco no ombro do mestre. Ficaram se

medindo.

— Quando vai lutar como homem, velho? Quando vai agarrar assim a

generala e ameaçar de cortar alguma coisa dela?

Não houve resposta.

— Você deve ter sido bom no passado. Mas agora virou uma espécie de

mendigo louco. Ninguém te respeita. Eu devo estar enlouquecendo também

pra andar do seu lado, o guarda-costas do trapaceiro! Você arranja a encrenca,

eu impeço que te matem, assim está muito bem, ahn?

Perro ajeitou a manga da jaqueta. Depois respirou fundo e voltou a

andar. Não era possível saber o que ele tinha na cabeça. Dumas consertou a

gola da camisa. Permaneceu ali, parado debaixo da chuva. Seu semblante

estava calmo.

Em busca de diversão, e seguindo suas inclinações pessoais, os jovens

entravam nos bares de aspectos os mais estranhos. Eles sabiam, porém, os

lugares que deviam ser evitados, fosse porque haviam ouvido falar de

episódios assustadores, fosse porque algo sombrio se instalava sob suas peles

e os fazia arrepiar quando se aproximavam de certos recônditos de atmosfera

suspeita. Ninguém, absolutamente ninguém, entrava ou saía da estreita porta

Page 6: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

de vidro espelhado com o símbolo do coiote gravado em ouro, espremida

entre uma velha casa abandonada e um bar que tocava música popular. Não se

via nenhum segurança e olhar para ela tinha até mesmo um certo apelo

convidativo. Mas, instintivamente, as pessoas sabiam que algo estava errado.

O velho Perro, o Trapaceiro, já estava completamente calmo quando

parou na frente do coiote. Para acentuar sua tranqüilidade, fez um movimento

com a manga e de lá saltou uma garrafa de tequila prata ainda lacrada, que ele

abriu ali mesmo. Bebeu um longo gole, fez careta, depois sorriu e a garrafa

sumiu de novo dentro da jaqueta, em um rápido gesto de ilusionista.

Entrou.

A escuridão era completa. Perro achou melhor esperar um pouco até

que seus olhos se acostumassem. Eles não tiveram tempo. Metal gelado

escorregava sobre sua garganta. Mesmo em meio às trevas sabia reconhecer a

qualidade de um bom trabalho dos Forjadores. A generala possuía muitos

recursos, inclusive seus próprios Filhos de Hefesto.

Precisava saber com o que estava lidando. A escuridão lhe dava uma

pista. Mas precisava se certificar. Manteve-se imóvel.

— Salve Hermes – anunciou ele, esperando a resposta que sabia que

viria.

— Salve Nix. – respondeu um vulto, orgulhoso.

O velho sorriu consigo mesmo.

— A Sombra, você diz?

Havia desdém em sua voz.

— Não se brinca com alguém que coloca uma espada no seu pescoço,

senhor.

— Certo. Você é novo?

— Perdão, senhor, mas eu devo perguntar primeiro. O que quer?

Page 7: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— A Pequena me aguarda.

Com os olhos já mais adaptados, Perro pôde ver o vulto de um homem

alto que segurava uma bela lâmina e o empurrava.

— Siga, senhor.

Repentinamente, em meio às sombras, Perro se moveu como um

relâmpago, colocando sua faca na virilha do Filho de Nix e cortando o jeans

sem chegar na pele. Por reflexo, a vítima tentou proteger a região delicada

entre suas pernas com as mãos. Foi quando Perro o levantou pelo pescoço. Os

pés do rapaz ergueram-se quase um palmo do chão. Ele sufocou um tempo e

depois o velho o soltou. A faca desaparecera.

— É. –disse o trapaceiro, em tom de constatação. – Você é novo.

O outro estava com a espada em riste, mas Perro o ignorou e

prosseguiu.

À medida que caminhava, se aproximava de um distante foco de luz. Já

se divisava, no largo corredor, o contorno dos sofás e portas fechadas que

davam para outros cômodos luxuosos.

Chegou ao salão principal, parcamente iluminado por um punhado de

castiçais. A mesa estava posta para muitas pessoas. Ainda havia restos de

comida. Perro deduziu que ela conseguira muita companhia nesses últimos

meses. Impressionante para uma renegada.

Pegou uma taça suja, encheu com pêssegos em calda de uma lata aberta,

agarrou um garfo e prosseguiu enquanto comia. Não viu alternativas senão

subir as escadas.

Encontrou-a na sala de reuniões, cercada de asseclas. Todos homens.

“Um festival de idiotas”, pensou Perro. Todos orgulhosos, peitos

estufados. Precisava saber. Olhou para cada um deles, ignorando a presença da

generala sentada à ponta da enorme mesa oval. Saudou, abrindo os braços:

Page 8: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— Salve Hermes!

Perro os contou. Eram onze. Cinco responderam. Nêmesis perto da

porta (não havia como voltar), Pã e Nix próximos às janelas na parede oposta

(uma possível rota de fuga bloqueada), Afrodite sentado ao lado dela (ricaços

manipuladores!), Tânatos sentado à distância de dois passos (a morte estava

presente). Nada de armas. Confiavam na vantagem do número. Os outros eram

humanos que tentavam se fazer passar por detentores - isso Perro notou de

imediato. Iniciados. Eles pensavam que o estavam enganando. A generala

sabia que não; ela nunca o subestimava.

Tratava-se de uma garotinha muito sagaz. Aparentava dez anos. Passava

dos cento e cinqüenta. Adorava maquiagem pesada. Seu rosto era o de uma

gueixa, branco e avermelhado nas bochechas, vermelho fogo nos minúsculos

lábios. Os olhos a traíam, claro. Grandes, úmidos e castanhos. Se tivesse

nascido um animal, seria uma coruja. Os cabelos estavam curtos, penteados

para trás, alisados e brilhantes. Usava um vestido branco grande demais para

ela. À sua frente, sobre a mesa, estava uma espada pequena, mas de lâmina

larga, guardada na bainha. As mãozinhas repousavam sobre a arma. À

primeira vista, era uma pequena boneca de porcelana. Perro sabia que ali

estava um verdadeiro monstro. Ela foi a última a saudar, à maneira dos

antigos:

— Salve Core, a sagrada esposa de Hades. Você envelhece mais a cada

dia, Trapaceiro.

— Fico mais sábio, madame. Quanto à senhorita... Não é possível saber,

não é mesmo? – e enfiou mais um pêssego na boca, mastigando como uma

legítima fábrica de maus modos.

Os asseclas se mexeram, incomodados. Ela comprimiu os lábios.

Page 9: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— Envelhecer significa aproximar-se da morte, velho idiota. A natureza

nos dá essa lição todo dia, mas você foi burro demais pra aprender.

Perro ficou vermelho. Ainda estava com mais de meio pêssego na boca.

Depositou a taça sobre a mesa e apontou o garfo para ela. Sua voz saiu calma

e cadenciada, mas vinha do fundo da garganta:

— Você é mesmo uma bruxinha mal educada. Vou te mostrar o

caminho de saída deste país abençoado, seu pequeno demônio.

Fez um gesto complicado e um punhado de fotos saiu de sua manga. Ele

as segurou entre os dedos e as lançou sobre a mesa. As fotos escorregaram na

madeira e pararam sob a espada.

Ela analisou os instantâneos um a um, sentindo a raiva aumentar a cada

segundo. Eram imagens de bons momentos, momentos de uma felicidade

merecida. Momentos secretos.

— Me considere um guardião dos bons costumes. Seus amigos coiotes

serão devidamente informados desses encontros em três dias.

O ódio tomou a aura da garota. Uma luz cálida da cor do vinho

envolveu seus contornos e inflamou seus grandes olhos. Amassou as fotos em

uma mão. Elas se incendiaram e queimaram até virarem pó.

— Eu gostava dessas cópias. – reclamou Perro, fingindo aborrecimento.

— Você não vai viver três dias. – disse ela, rilhando os dentes.

— Além disso, está desinformado, Trapaceiro. Eu mando agora. Meus

irmãos me deram o posto de ának hoje pela manhã. Sua chantagem não me

assusta. Sua ousadia, por outro lado...

E, para os asseclas:

– Matem!

***

Page 10: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

O Covil dos Coiotes Da Noite - Um ano atrás.

O som é um suave solo de violino.

A cor dessa cena é cinza como as lembranças.

A fúria da pequena Madalena tinha por alicerces dois sentimentos muito

nobres: um era a coragem. O outro era o verdadeiro amor. Poucas coisas na

vida de um detentor têm maior poder para corromper e destruir.

Os dez Coiotes da Noite elegiam seu general.

Eles tinham tido essa idéia: o génos exercia plena hegemonia sobre a

Cidade. Os outros Círculos haviam desistido e debandado. Outros génos da

Neutralidade se curvavam perante seus mais insignificantes caprichos. Os

Coiotes imperavam. Logo, era tempo de eles, que eram estrangeiros vindos do

Norte, voltarem a visitar suas terras natais, abandonadas havia tantos anos.

Para manter a ordem e a garantir a submissão de Dorados, escolheriam um

general encarregado de organizar a liga de génos da Neutralidade que lhes

juravam fidelidade e de cobrar os tributos que estas lhes pagavam. Quando

Madalena foi eleita por unanimidade, ficou inquieta:

— Sou uma renegada. Pertenço a outro Círculo, embora tenha jurado

fidelidade aos Coiotes. Como podem confiar em mim?

O sábio Hastur esperava por aquela pergunta. Afinal, oráculos sabem

dessas coisas.

— Seus irmãos de génos estavam ansiosos por dizer-lhe o porquê dessa

inesperada confiança. Imaginei que quisesse esta resposta, Madalena. Mas

acredito que você possa encontra-la sem ajuda.

Ela se pôs a pensar a respeito. Quando eles partiram, veio falar com

Hastur, pois tinha uma suspeita.

Page 11: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— Fale, Pequena.

Madalena sussurrou uma palavra. Um nome:

— Guzmán.

Hastur a repreendeu por pronunciar o nome do proscrito, levantou a

mala e entrou no carro, deixando-a a sós com uma certeza.

Guzmán e Madalena haviam sido admitidos aos Coiotes juntos e

aproximaram-se como outrora o fizeram seus sagrados pais, Hades e

Perséfone. Cuidavam das costas um do outro e não faziam nada separados.

Para Madalena, era como se ganhasse um irmão mais velho.

Como eram renegados, ninguém realmente esperava a fidelidade cega

que é comum aos integrantes de uma Família. Igualmente, contudo, nenhum

dos veteranos podia cogitar o outro oposto: que a delicada Filha de Perséfone

ou o severo Filho de Hades pudessem apunhalá-los pelas costas. Por isso

Guzmán os impressionou. Em seu primeiro mês de adaptação, quiseram medir

o quanto podiam confiar nele e lhe cederam o encargo de cobrador de

impostos. Hastur o surpreendeu desviando rios de dinheiro em um delicado

período de guerras constantes. O traidor fugiu antes da punição que

certamente seria implacável.

Mas o ódio a Guzmán foi além: os Coiotes eram um génos muito antigo

e, sob certos aspectos, rudimentar. Entre eles, as leis que mais valiam, eram as

jamais escritas, instituídas pelo uso cotidiano. O nome de Guzmán foi

amaldiçoado. Criou-se repulsa pelo som que a palavra “Guzmán” produzia.

Era como dizer uma fórmula de mau agouro. Muitas vezes ficou claro na

Morada que aquele que um dia se encontrasse com o proscrito e não o

matasse, não poderia mais ser tratado como irmão.

Dessa forma, quando os Coiotes da Noite partiram, Madalena percebeu

que fora capturada em uma armadilha. E a armadilha vinha na forma de uma

Page 12: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

pergunta fatal: ainda podiam confiar em um renegado? Seria ela capaz de

suportar o génos nas costas e mantê-lo firme, mesmo sentindo o peso do amor

por Guzmán? Decidiu que tentaria. Que seria como as costas de Atlas.

As coisas foram bem nos primeiros dias. Cuidou de tudo com cautela.

Para conseguir maior influência e atingir os tributários mais distantes, pensou

em um sistema de mensageiros iniciados e passou a arregimentar humanos

que quisessem aprender a manusear armas brancas e a lutar com as mãos nuas.

Foi difícil a princípio, visto que a maioria dos bandoleiros e matadores que

encontrava não estavam dispostos a seguir uma criança. Precisou da ajuda de

génos aliados. Fortaleceu os laços de fidelidade com muitos e se certificou que

os inimigos que ainda restavam temessem os Coiotes mais que a morte.

Estava na Morada, assistindo à execução de um traidor ao lado de seus

asseclas quando um deles lhe trouxe uma carta. Uma Família lhe declarava

guerra.

Os preparativos foram feitos com o máximo de eficiência. Espiões

foram enviados para recolher dados sobre o inimigo. Voltavam desnorteados,

sem nada terem descoberto. O tempo passava e a agitação entre os aliados

começou a desgastar sua fidelidade. Os boatos se sucediam: tinham vindo do

Velho Continente; eram génos antigos; Heróis estavam entre eles; a Tríade

estava por trás do desafio. De tempos em tempos, mais cartas chegavam,

reiterando as ameaças. Com o passar do tempo, a certeza que ia se instaurando

era a de que nunca venceriam.

No começo, o dinheiro gasto com a compra de armas e o pagamento dos

espiões era compensado pelos tributos dos aliados. Porém, à medida que a

batalha contra um inimigo desconhecido e potencialmente poderoso se

aproximava, a liga começou a compreender sua própria importância. Era uma

Page 13: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

boa oportunidade para se livrarem dos impostos. Chegou a ouvir do ának dos

Grandes Predadores – seus maiores tributários:

— Chega, Madalena. Você precisa de nós, mais que nós de você. Por

que não nos paga para combatermos ao seu lado?

A situação se invertera: era preciso pagar se quisesse continuar viva.

Então começou a série de tentativas de avisar os Coiotes no estrangeiro.

A resposta nunca vinha, mas ela continuava tentando. Um dia, quando voltava

de uma reunião com os aliados que queriam saber em vão quem eram os

inimigos que lhes ameaçavam, achou na porta da Morada um monte de cartas

amarradas com elástico. Algumas delas estavam sujas de sangue. Quase

desmaiou quando constatou que eram as cartas que mandara com pedidos de

ajuda aos seus irmãos de génos. Alguém estava matando seus mensageiros.

Madalena vivia um pesadelo em vida.

Mas não desistiu. Chamou seus aliados mais fiéis e começou a perseguir

sem tréguas todos aqueles que ameaçavam parar de pagar os impostos. O

recado surtiu efeito. Sua fúria apavorou a todos e as coisas acalmaram. Os

inimigos invisíveis não se manifestaram mais. Por orgulho, optou por não

comentar nada com seus irmãos Coiotes.

Então, procedeu a aquisição de novos membros para o génos. Pagou

antigos detentores desgarrados para que se unissem a ela. Quando estava

suficientemente forte, começou a convidar detentores de génos aliados a

abandonarem suas famílias e se tornarem Coiotes. Alguns aceitaram.

Ela vencia. As coisas voltavam aos seus eixos.

Depois de passada a nuvem negra, ela preferiu esquecer que, em seu

desespero, tomada por um lapso de fraqueza, marcara um encontro para chorar

nos braços de Guzmán, envolvida pela noite fria. Ele a confortara:

— Não se preocupe, Lena. Ninguém jamais vai saber.

Page 14: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

Atormentada, não notara o flash distante de uma Polaroid.

Perro fizera muito mais depois daquela primeira piada. Mas já não era

mais tão simples. Depois que Madalena retomara o controle, percebeu que

seus escassos aliados já não o apoiavam. Ele tinha o plano definitivo, imagens

que a fariam correr para nunca mais voltar. No entanto, ficar frente a frente

com a generala e fiar-se na chantagem barata não parecia muito saudável aos

poucos detentores do Círculo do Bem que ainda restavam.

— Está louco, Trapaceiro! A brincadeira foi divertida, mas agora ela já

está com as mãos bem firmes nas rédeas!

Restringiu seus atos de terrorismo à satisfação de pequenos prazeres:

depredação de carros que pertenciam a ela; alguns desafios formais a aliados

mais fracos. A generala acabou conhecendo Perro pela fama. Era excelente

guerreiro e esguio como um Filho de Ártemis. Ela nunca soube da

participação do Trapaceiro nos boatos que a levaram aos seus piores dias, mas

às vezes, enquanto observava o teto antes de dormir, parte de seu espírito

desconfiava e, ao adormecer, ela tinha pesadelos. Passou a odiá-lo como

nunca odiara ninguém.

***

De volta ao Covil – Cinco dias atrás.

O som é de uma guitarra pesada e feroz.

Essa cena é de um branco que fere os olhos.

A confiança na chantagem viera com Dumas. Mas o destino queria que

ele entrasse no covil dos Coiotes sozinho e Perro era do tipo que obedecia ao

Page 15: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

destino sempre. Portanto, não estava com medo, embora fosse de seu

conhecimento que quando alguém ordena: “matem!”, a encrenca é certa.

Em primeiro lugar porque implica no mínimo em que a pessoa que deu

a ordem esteja confiante de que ela será cumprida. Em segundo lugar,

“matem” é um verbo do plural, o que leva a crer que é uma ordem dirigida a

mais de um sujeito capaz de matar. Em terceiro lugar, a força de uma ordem

costuma servir como estimulante natural para que um lacaio dê tudo de si para

cumpri-la, diferentemente do que acontece em outras situações, nas quais se

pode usar uma série de subterfúgios no sentido de convencer o indivíduo a não

levar suas ações às últimas conseqüências. Em quarto e último lugar, é preciso

levar em consideração a própria irreversibilidade implícita no sentido do verbo

“matar”.

Ainda assim, Perro só podia agir de uma forma se quisesse honrar seus

ancestrais. Notando que os asseclas de Madalena começavam a se

movimentar, olhou cada um deles e facas desceram das mangas para suas

mãos.

A dança estava prestes a começar quando um ruído reverberou no andar

de baixo. Pela qualidade do som, Perro deduziu que apenas havia duas

possibilidades: ou era um grave acidente de trânsito, ou Dumas estava batendo

em alguém novamente. O gemido de agonia que se seguiu acabou com as

dúvidas.

Todos pararam. A expressão séria de Perro tornou-se radiante, a face do

beduíno que, à beira da morte, se depara com o mais belo oásis. Em segundos,

estavam ele e Dumas, costas contra costas, esperando a investida dos coiotes.

— Vim pra te perguntar, velho... O que diabos “pachuco” significa?

Perro sorriu.

— Ninguém sabe.

Page 16: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

Os adversários hesitaram.

— Vocês ouviram a menina, hombres! – rosnou Perro em grego

arcaico, mas temperado com um forte sotaque mexicano.

Raios luminosos cortaram a sala, queimando, partindo, ricocheteando,

destruindo. Subiu uma cortina de fumaça. Era o ar que aquecera em contato

com a hybris luminosa dos guerreiros. A essa fumaça uniu-se o pó que os

feixes de energia arrancavam das paredes. Perro ergueu o escudo de energia

que os protegeu. Avançaram atrás dessa barreira, mas conseguiram dar apenas

uns poucos passos antes de serem bloqueados pelos corpos compactados que

os empurravam e os cercavam.

Passaram a lutar com suas lâminas, Dumas em movimentos circulares

largos e letais, Perro estocando olhos e gargantas com precisão cirúrgica. O ar

foi tomado de sangue, gritos e suor, e ficou avermelhado, fumacento, uma

pista de dança com luzes e névoa, onde quem dançava era o aço temperado

pelos Filhos dos Deuses.

Ganharam terreno, arremeteram contra a janela que se desfez em

pedaços e estilhaços afiados, foram ao chão que estava distante três andares.

Dumas caiu sobre o teto de um carro velho e vazio. A queda de um

rinoceronte teria causado o mesmo estrago. Ao seu lado apareceu uma teia de

rachaduras no asfalto sob as costas de Perro.

Tinha voltado a chover torrencialmente. Os dois ficaram

temporariamente atordoados na rua vazia, sentindo a água lavar seus

ferimentos e levar embora os pedaços de vidro de sobre seus corpos.

Dumas foi o primeiro a se mover. Ergueu a cabeça e tentou ver se

estava tudo bem com o mestre. A visão não era clara devido ao choque e à

densidade da chuva, mas algo estava muito errado: o trapaceiro continuava

Page 17: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

inerte e se mantinha em posição fetal. Abaixo dele, um rio de sangue escorria

lentamente para a boca de lobo mais próxima.

Dumas não se lembrava de ter visto uma hemorragia tão grande antes.

Saltou para o chão, tentando ignorar a dor. Sentia-se observado. Certamente,

às suas costas, os asseclas de Madalena desciam as escadas, se armando no

caminho. Estariam ali em segundos. Teve alguma dificuldade para acomodar o

velho sobre o ombro.

— É melhor correr, filho.

O som quase não saía. Era a voz de um fantasma.

— Cala a boca.

— Para o Lobo.

— Ele te odeia.

— Mas me deve. Para o Lobo.

— Certo. Agora cala a boca.

Da janela, Madalena o viu se afastar e sumir entre os bares. O rosto da

Filha de Perséfone estava contorcido de ódio e as delicadas mãos limpavam

metodicamente a espada no vestido branco. Quando terminou, foi tomada por

uma súbita sensação de triunfo. O rosto voltou a ser doce e impassível. Depois

de uma rápida olhadela para o braço de Perro que jazia caído aos seus pés, fez

a espada deslizar para dentro da bainha e atravessou os escombros

tranqüilamente, na direção da porta.

***

À beira da Rodovia – 13:00h.

O mariachi acelera o ritmo.

A cor é laranja.

Page 18: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

Agora avaliavam um ao outro, como búfalos que se preparam para lutar

pela fêmea.

— Tudo o que vai conseguir é que a cidade vire um inferno! Nem você

pode ser tão estúpido, Pachuco! Será que não entende? Aceite a porcaria de

destino que os deuses reservaram pra nós!

— Aceite você. Eu fico por aqui.

— Não posso deixar você fazer isso.

— Então nossos próximos momentos serão bem ruins.

Dumas apontou para seu próprio braço direito, o braço que faltava em

seu mestre.

— Lhe falta algo para vencer esta luta.

Perro cutucou a própria cabeça com o dedo.

— Em você também.

Perro atravessou a rodovia. Os olhares que trocavam estavam diferentes

agora. Começaram a andar em círculos. A tensão fervia o sangue em suas

veias.

Dumas abriu o saco preto em suas costas e tirou uma espada de lá. A

mesma que tomara para si depois de vencer o Filho de Nix de Madalena. Era

forjada com precisão e sua lâmina indestrutível podia cortar uma rocha. A

manga de Perro forneceu-lhe sua antiga faca.

O velho trapaceiro aceitou o que estava por vir.

— Posso pelo menos perguntar de onde tirou essa idéia?

— Você me inspirou.

— Imaginei.

Atacaram-se simultaneamente e suas armas colidiram, vibrando.

***

Page 19: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

O Bairro das Tendas – Cinco dias atrás.

O som é de duas teclas agudas de piano que se alternam tristemente.

A cena é negra.

Lobo abandonou o caminho do guerreiro há muitos anos, coincidindo

com o auge do poder dos Coiotes. O Círculo do Bem estava fraco, incapaz de

competir com a astúcia de Hastur e com a habilidade dos aliados da

Neutralidade. O génos de Lobo, o Altar do Sacrifício, abraçou durante muito

tempo os ideais da resistência desesperada, mas logo a tênue linha entre a

coragem e o simples suicídio ficou evidente demais para não ser notada. Seus

membros se foram todos, um a um, alguns caídos nas chamadas Batalhas

Injustas, outros fugidos para o Sul, para os Andes, onde o Bem e o Mal ainda

guerreiam de forma relativamente equilibrada.

Todos menos dois.

O primeiro a decidir ficar foi Lobo. Todos aqueles anos protegendo os

miseráveis desabrigados humanos do Bairro das Tendas lhe trouxeram

reconhecimento. E não só entre os próprios mendigos e sem-tetos, mas

também entre os Filhos de Nêmesis ao lado dos Coiotes, que apreciavam seu

apurado senso de justiça e o respeitavam por isso. Graças a esse respeito, nem

Hastur nem Madalena se importaram com Lobo. Decidiram deixa-lo cuidar

dos pobres e protege-los dos abusos criminosos do mundo humano.

Mantinham com ele um acordo nunca oficializado de trégua eterna.

Mas Lobo sabia que o acordo era frágil como um floco de neve. Por

isso, mantinha-se alheio à guerra. Embora não permitisse que sangue fosse

derramado no Bairro das Tendas e ainda fosse capaz de tratar com muita

aspereza quem o incomodasse, jamais abandonava a região e nunca, em

Page 20: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

hipótese alguma, se misturava à guerra que o circundava. Precisava manter o

comportamento neutro a qualquer custo.

O segundo membro do Altar do Sacrifício que se recusou a fugir foi seu

velho ának, Perro. Ao contrário de Lobo, ele decidiu lutar. “Um dia”, jurava,

“trarei de volta o Altar. Limparei o campo e farei com que voltem.” Lobo ria.

Discutiram e se indignaram um com o outro. Lobo e Perro não se falavam há

catorze anos. O Trapaceiro não podia aceitar a covardia de seu irmão. O

tempo de afastamento apenas aumentara o abismo entre eles.

Portanto, quando Lobo abriu a porta de sua humilde casa e se deparou

com o velho mutilado e banhado em sangue nos braços de Dumas, foi tomado

por inúmeros pensamentos no espaço de um único segundo. Nenhum era

agradável. E um deles até mesmo escapou pela sua boca:

— Eu sabia que um dia isso ia acontecer.

O tom mórbido com que dissera aquilo era perfeito para alguém que,

depois de correr durante tanto tempo da confusão, havia finalmente sido

alcançado.

Perro, que economizara energia até ali, usou-a para falar. Saiu um

sussurro:

— Ei, amigo. Notou alguma coisa de diferente em mim?

— Você, quieto. E você... Ele perdeu muito sangue. Não há tempo.

Lobo tinha o porte mais orgulhoso que Dumas já presenciara em sua

vida. Era um homem incrivelmente alto, que não parecia novo ou velho. Na

verdade, era impossível arriscar um palpite sobre sua idade. Tinha olhos

firmes e finos, cabelos longos e embaraçados, um aspecto sujo e um nariz

enorme. Ainda assim, mantinha a pose. Provavelmente era capaz de liderar um

exército inteiro direto para a morte certa. Difícil crer que ele simplesmente

desistira de lutar.

Page 21: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— Não há tempo? Ele teve todo o tempo do mundo. Mas isso só o

deixou mais idiota. Vá embora. Não posso ser visto na sua presença.

Entrou e bateu a porta. Ainda ouviram, lá de dentro:

— Não voltem. Eu já decidi como viver minha vida, vocês já decidiram

como viver a de vocês.

Perro perdera os sentidos e Dumas agradecia os deuses por isso. Se

estivesse acordado podia estragar tudo. Continuou impassível, como sempre.

— Estou sendo seguido – disse o garoto.

— Mais um motivo, criança. – respondeu Lobo à distância. – Suma!

— Não. Vou ficar e lutar em cima do seu capacho. Vai ser o inferno.

Isso reduz suas opções a cuidar de um homem agora ou cuidar de todos os

sem-tetos chorões da cidade em alguns minutos.

Não demorou muito para que a porta se abrisse. Lobo não parecia

alterado.

— Pelo visto, ele o treinou direitinho. Rápido. Há um colchão nos

fundos.

A Dádiva concedida aos Filhos de Zeus por Asclépio estancou a

hemorragia e fez arrefecer a febre, mas Perro ainda precisava de muito

descanso. Ficou lá, desacordado. Lobo foi lavar as mãos e ficou algum tempo

observando a água vermelha descendo pelo ralo do lavatório. Dumas não sabia

se ele estava se lembrando das batalhas que lutara ao lado do Trapaceiro ou se

apenas se preocupava com a proximidade dos Coiotes.

— Assim que ele estiver melhor, desapareçam. Se eu voltar a vê-los,

cuidarei para que os Coiotes saibam exatamente onde vocês estão. Fui

suficientemente claro?

— Sim.

— Essa guerra não é mais minha. – desabafou, com amargura.

Page 22: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— Tolice. Os Deuses o escolheram. Quando morrer, será punido no

Hades. Os juízes vão mandá-lo para a escuridão.

— Há formas diferentes de combater que vocês, Filhos de Ares jamais

compreenderiam. Além disso, já lutei demais. Meu corpo está cheio de

cicatrizes e nem mesmo me lembro como ganhei cada uma delas. As batalhas

que venci me darão glória no outro mundo. Já não preciso mais da Éride. E ela

não precisa mais de mim.

Respirou fundo, olhando o nada. Tirou o telefone do gancho e falou,

enquanto discava:

— Espero que entenda o caminho que seu mestre trilha, porque vai ser

seu caminho também. Espero que reflita sobre seu destino. Suba as escadas e

tome um banho quente. Vou pedir comida.

Os tacos chegaram frios. Enquanto esperavam que o forno os aquecesse,

a campainha tocou. Os asseclas de Madalena. Dois deles. Lobo deixou que

falassem.

— Nos metemos em encrenca. Veja. – o homem sinistro mostrou um

corte profundo no peito. – Pode me ajudar com isso?

Lobo hesitou. Eles entraram. O Filho de Nêmesis atrás carregava um

pequeno machado. Evidentemente não estavam realmente interessados em

curar ferimentos. Olhavam para os lados, perscrutando, caminhando na ponta

dos pés.

— O que vocês querem?

— Você não esconderia nada de nós, não é mesmo, amigo?

Vasculharam a casa, cômodo a cômodo. Subiram e andaram pelo

corredor, passando por uma ninhada de gatinhos que se enrolavam sobre a

mãe. A aura do Filho de Tânatos fez com que as almas dos filhotes

Page 23: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

abandonassem os corpinhos com um suspiro. Eles continuaram até o quarto

onde se encontrava Perro. Lobo, que os seguia, decidiu fazer algo:

— Não sei o que querem, mas se tentarem abrir essa porta, eu os

impedirei.

Pararam, surpresos. Certamente não podiam acreditar no que ouviam.

O Filho de Tânatos rilhou os dentes.

— Eles estão aqui! Você quebrou a trégua!

— Está louco! – disse o Filho de Nêmesis.

— Não sei do que estão falando. Mas abram essa porta e serei obrigado

a defender meus interesses.

Repentinamente os dois Coiotes se viram num impasse. Se não abrissem

a porta não teriam como afirmar com certeza que ele os estava escondendo,

voltariam para casa e nada poderia ser feito. Se insistissem, teriam de fazê-lo à

força. Isso poderia os indispor com Madalena que concedera o salvo conduto

de Lobo. E pior: poderiam ter de lutar com Lobo, Dumas e Perro, um conflito

de desfecho incerto porque o Filho de Zeus era poderoso e o garoto se

mostrara um legítimo herói. Não sabiam se Perro estava em condições, mas

mesmo ferido, podia ainda guardar um ou outro trunfo. Sem conseguirem

adivinhar que sorte os aguardava e, intimidados pela força de espírito de Lobo,

perderam o chão sob seus pés.

Aproveitando-se da indecisão dos Coiotes, o Filho de Zeus invocou a

Sagrada Palavra que seu pai lhe concedera. Sentindo a Dike arder dentro de si,

ordenou, furiosamente, com os olhos emitindo uma luz branca:

— Saiam!

Os dois obedeceram prontamente, suas vontades partidas em mil

pedaços, dobrados pela autoridade de Zeus. Em segundos estavam entre as

Page 24: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

tendas improvisadas dos indigentes do bairro. Mais alguns minutos e sumiram

na noite.

A porta se abriu. Dumas olhou para ele, sem saber o que dizer.

— Os tacos estão esfriando novamente – murmurou Lobo.

Sua voz voltara a soar serena como as águas calmas de um lago.

Dumas nunca havia tido nenhuma oportunidade de conversar com Lobo

antes e descobriu, com grata surpresa, que o irmão de génos de Perro era uma

pessoa muito agradável e um ótimo anfitrião. Não os queria ali, mas, uma vez

que tivessem entrado, os trataria fantasticamente bem.

— Tenho medo do velho Trapaceiro desistir agora que perdeu o braço.

Aposto que se você tentar convencê-lo a parar pode conseguir agora.

O Filho de Zeus sorriu.

— Você não conhece Perro. Ele vive segundo os preceitos de seus

ancestrais. Sabe o que isso significa, não?

— Um pouco, acho. Ele fala muito dos velhos astecas.

— Ele é um detentor puro. Compreende o termo?

— Não.

— Significa que sua família é tão honrada, forte e sábia que os deuses

escolhem seus guerreiros entre eles há gerações. Perro é filho de detentores.

Quando ele fala de seus ancestrais, está se referindo a gente que conheceu em

carne e osso, em pessoas que o treinaram pessoalmente, isto é, a seus próprios

pais.

— Isso não é possível.

— Pode acontecer. Os avós de Perro acompanharam a chegada dos

espanhóis ao México e a queda de Tenochtitlan sob Montezuma. Ele carrega

consigo a forma de pensar dessas pessoas e acredita no poder do sacrifício.

Page 25: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— Sacrifício?

— Os astecas acreditavam que o Deus Sol devia ser alimentado

constantemente com sangue. Caso contrário, morreria. Eles eram responsáveis

por manter seu mundo vivo. E eles o faziam através do sacrifício no alto da

pirâmide que lhes servia de altar, erguendo o coração ainda pulsante da vítima

na direção dos raios do sol.

Dumas começava a se preocupar com o rumo que aquelas palavras

estavam tomando.

— Era uma grande honra ser sacrificado. Esta é uma crença brutal, mas

também muito bela, pois ela é o que nós, detentores, somos. Para seu mestre,

Dumas, o ato de morrer guarda mais potencial que o ato de viver. Ele

organizou o génos assim. Cedo ou tarde, nos sacrificaríamos todos, mas a

verdade é que não conseguiríamos nada com isso. A guerra continuaria

perdida e a cidade continuaria pertencendo aos Coiotes.

Terminaram de comer em silêncio. Então Lobo levantou-se, foi até uma

pequena caixa na estante e voltou com ela nas mãos. Era cuidadosamente

entalhada. O entalhe mais bonito era o principal, na tampa, a figura do

caduceu de Hermes. Somente um excelente artista podia assumir a autoria da

obra.

— Esta é uma urna funerária esculpida por alguém que Perro amava

muito e que morreu acreditando na resistência. Dentro dela estão as cinzas de

outra pessoa que Perro amava muito e que também caiu graças à sua teimosia.

Se algo no mundo vai ser capaz de fazê-lo parar, então será isto: é um presente

meu para ele. Entregarei amanhã. Ele entenderá o recado. Mas duvido que

pare.

— Mesmo que ele pare, eu continuarei.

Page 26: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— Você viu poucas coisas. A vida vai lhe mostrar o que precisa saber,

direcionar sua força e fazer de você um sábio. Nesse dia, venha me visitar. Aí

sim teremos nossa primeira conversa de homem para homem.

Lobo subiu as escadas e deixou Dumas sozinho, contemplando a

pequena urna.

Pensava no real significado do sacrifício.

Horas depois, naquela mesma madrugada, ele ainda estaria ali. À sua

volta, a sala havia sido revirada. Seu espírito guerreiro acalentava, então, um

plano.

***

À Beira da Rodovia – 13:09h

O som agora é de um chocalho ritmado.

Essa cena tem a cor do vinho tinto.

Após uma tentativa frustrada de resolverem as coisas em uma disputa de

lâminas, tinham voltado a se medir. O fato era que Perro era muito melhor na

lida com armas brancas que Dumas. Tinha muitas dezenas de anos de treino a

mais. No entanto, o garoto era uma máquina incansável, excessivamente forte,

incrivelmente ágil, e jamais errava um golpe. Além disso, a mutilação do

Trapaceiro tinha igualado perfeitamente as chances de ambos. Era preciso

recorrer a outra forma de combate.

Dumas abriu os braços e soltou a espada, que já tinha ganhado alguns

dentes depois de golpear as facas de Perro um punhado de vezes. Sua aura se

tornou visível, vermelha e intensa e piscou à volta de seu corpo bem

Page 27: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

proporcionado. Os olhos brilharam como faróis e a hybris, em sua forma mais

pura e destrutiva passou a correr em suas mãos.

O Trapaceiro exultou. A faca desapareceu dentro da manga. Houve uma

explosão de luz ao seu redor enquanto ele mostrava os dentes como uma fera.

Era algo entre o vermelho e o amarelo, uma cor indefinida, que lembrava o

aspecto do cobre. Seus olhos viraram duas estrelas. Na mão esquerda

carregava o sol. Estava pronto.

— Quer mesmo fazer isso, Chiquito?

— Você me disse que Ares tem uma das Hybris mais poderosas.

— Você vai perceber que depende muito pouco de Ares agora.

Prepararam-se ficando os pés no solo e disparando feixes um na direção

do outro, enormes torrentes de pura hybris que passavam chiando como óleo

fervente. Perro levantava escudos que bloqueavam sem problemas os feixes

do garoto. Dumas preferia não tentar escudos; esquivava-se como podia, pois

descobriu rapidamente, apenas pela observação, que não estava em condições

de competir com a hybris de seu mestre. O primeiro a ser atingido certamente

cairia. Ele esperava. Sem o braço, Perro estava desequilibrado. Podia errar e

de fato o fazia com freqüência. Cedo ou tarde atrasaria a defesa e um feixe

passaria.

Era um jogo destinado a durar.

***

O Bairro das Tendas – 8:10h

Esta cena é embalada por um coro triste que canta em latim.

A cor predominante aqui é um azul muito claro e radiante.

Page 28: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

O Trapaceiro acordou de um pesadelo e logo mergulhou em outro. Lobo

o chacoalhava.

— O efebo vai fazer besteira. Você precisa para-lo.

— Meu braço...

— Não há mais um braço com o que você precise se preocupar, meu

amigo.

— Onde ele está?

— Provavelmente em uma moldura na sala de Madalena.

— Dumas, não o braço. E o piadista aqui sou eu.

— Indo para o centro da Cidade Não tente entender. Eu explico. Ele

ficou acordado durante a madrugada e vasculhou minhas coisas. Encontrou

seu antigo diário de guerra. Lembra-se dele? Pediu para que eu o mantivesse a

salvo.

— Você tem alguma tequila?

Lobo trouxe-lhe uma garrafa com três dedos de tequila prata.

— Continue.

— Havia uma passagem em que você fala do exemplo que

precisávamos seguir.

— E...

— 1993. Atenas. O Filho de Zeus Triton emprega o Sacrifício e explode

um bairro comercial da cidade. Ele chamou a atenção de Cnossos. A Tríade

então puniu o génos que deveria proteger o local. Esse génos era inimigo de

Triton, claro.

— Ele se matou e fez com que os inimigos fossem expulsos. Lembro

disso.

Perro virou a tequila e se pôs de pé com alguns resmungos.

Page 29: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— Explodir o Protetorado dos Coiotes para responsabilizá-los. Por que

acha que o moleque vai tentar fazer isso?

Lobo mostrou a carta.

— Por isso.

— Por que acha que eu devo impedi-lo?

Lobo lhe entregou a urna.

— Porque você não vai querer perder mais ninguém.

O velho trapaceiro ficou paralisado, segurando caixinha, sem dizer uma

palavra. E depois, finalmente:

— Traga minha jaqueta.

— Precisa de ajuda?

— Não. Se alguém pode fazer algo, somos eu, meus antepassados e um

rápido telefonema.

***

A beira da rodovia – 13: 26h

O som dessa cena é o barulho dos ventos dos desertos.

A cor é o vermelho.

— Chega, Pachuco!

Pararam de disparar um contra o outro. Saía fumaça de seus corpos. A

disputa de hybris os trouxera a outro beco sem saída. Perro estaria na

vantagem não fosse por um motivo: sua hybris estava no fim. Dera muito de si

nos últimos meses e ainda não tivera tempo para se recuperar. Se persistisse,

acabaria morto. Dumas não tinha como sabê-lo. Pensava que estava em séria

desvantagem.

Page 30: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

Por isso, quando o Trapaceiro optou por decidir as coisas de outra

forma, agradeceu os deuses e se colocou imediatamente em posição de luta.

Sua técnica de combate com as mãos nuas era inferior à do mestre, mas

possuía a força bruta a seu favor.

— Por que quer me impedir, velhote? Cnossos vai intervir a nosso

favor! Tudo vai mudar! Você vai poder trazer seus irmãos de volta! Seu

sonho, Perro, aquilo por que você lutou todos esses anos! Meu presente para

você! Sou sua vítima no altar do sacrifício! É para isso que eu nasci, não

entende?

Perro enfiou a mão no bolso da jaqueta e remexeu um instante lá dentro.

Tirou a mão, abriu-a na frente da boca e soprou. Um pó fino espalhou-se e

pousou sobre os cactos e sobre o chão, misturando-se à poeira amarela. Cinzas

de guerreiros mortos.

— Que lembrança eles guardam de mim enquanto me esperam no

Hades, Chiquito? E Você? Que lembrança levará?

Dumas não se alterou. Analisou o velho, preparando sua estratégia. Mas

algo estava diferente. Perro não olhava mais para ele e sim para além dele,

para a rodovia. Dumas se virou. Um carro preto parava.

— O que você fez, velho?

Havia ódio em sua voz. O Trapaceiro não respondeu.

Os asseclas de Madalena saíam do veículo. Ela foi a última. Carregava

sua pequena espada já desembainhada.

— O que você fez? – gritou Dumas novamente, a plenos pulmões.

A pequena Madalena se adiantou e parou ao lado de Perro.

— Está pronto?

— Sim. – respondeu o velho, com ar cansado. E, para Dumas:

Page 31: SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! · 2009-04-09 · SACRIFÍCIOS - PARTE 1: Trapaça! Cidade de Dorados, México - 11 da manhã. O som desta cena é o sombrio dedilhar de violão

— Eu trapaceei, Pachuco. Me tornei a vítima no altar do sacrifício antes

de você. Liguei para os Coiotes pela manhã e me entreguei. Em troca, a nossa

amiga aqui sairá do México com seus paus-mandados. Eles provavelmente se

divertirão muito comigo nos próximos dias. Mas essas coisas acontecem.

A generala acenou para seus seguidores. Eles escoltaram Perro até o

carro. Ela esperou que todos estivessem dentro e que o motor roncasse. Sorriu

para Dumas.

— Essa cidade é uma ferida mal-cheirosa na pele do mundo. Nós, os

Coiotes, desistimos de sua posse por enquanto. Mas um dia voltaremos para

reclamá-la. Você será então o primeiro a desaparecer da face da Terra.

Entrou no carro.

Logo Dumas estava sozinho novamente.

Por algum motivo, não conseguia deixar de imaginar um coração vivo,

fora do corpo, pulsando, sangrando e alimentando aquele inclemente sol

mexicano da uma da tarde.