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As perguntas da vida

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Fernando Savater

As perguntas da vida

Tradução MONICA STAHEL

Martins Fontes São Paulo 200 I

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S:lo Paulo : Martin :- Fon ll.:.-.. ::!OO 1.

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ISBN :-15 -336- 1504-J

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Livraria Martins Fontes /:.'ditora Lltfa.

1<110 Co11sl'l/Jl'iro Na111a/ho. 33013..f.O 01325-000 Súo Paulo SP Uras il

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, Indice

Advertência prévia ... ... .................... .... .................................... . Introdução. O porquê da filosofia .... ... ............ .. ... .. .. ... ........ .... .

Capítulo um. A morte, para começar ........ .... ... .. ..... .... ..... ..... .. . Capítulo dois. As verdades da razão ...... .... .. ........ .... .... .. ....... .. . Capítulo três. Eu dentro, eu fora ..... .............. .................... .. .. . .. Capítulo quatro. O animal simbólico ...................................... . Capítulo cinco. O universo e seus arredores ......... ........ ....... .. . Capítulo seis. A liberdade em ação ......... .. ................. ...... ..... .. . Capítulo sete. Artificiais por natureza .... ...... ..... ...... ..... .. ........ . Capítulo oito. Viver juntos ........ .... .. .... .. ... ....... .... .... .. ..... .... .... . . Capítulo nove. O calafrio da beleza ................ .. ..................... . Capítulo dez. Perdidos no tempo .... ........... ... ..... .................. ... .

Epílogo. A vida sem por quê ....................... ..... .. ...... ... ..... .. .. ... . Despedida .... .. .. ................ ......... ...... ...... ......... ..... .. .. ... .. ...... ... ... . Principais estrelas convidadas ...... ........... .. .... ........... ...... ...... ... .

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Aos que não têm tudo claro

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O ponto culminante da vida é a compreensão da vida. G. SANTAYANA

Minha força é não ter encontrado resposta para nada. E. M . CrORAN

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Advertência prévia

O propósito deste livro é, por um lado, muito modesto e, por outro, desmedidamente ambicioso.

Modesto porque se contentaria em servir como leitura inicial para alunos de bachillerato* que devem abordar pela primeira - e talvez última - vez os temas básicos da filosofia ocidental, tratados não de maneira histórica mas como perguntas ou problemas vitais. Nesse sentido, pretende atender fielmente, embora com certo rebel­de viés pessoal, às indicações sobre esta matéria ditadas pelas ad­ministrações educacionais.

E também desmedidamente ambicioso, uma vez que não re­nuncia a servir como convite ou preâmbulo à filosofia para qual­quer profano interessado em conhecer algo dessa venerável tradi­ção intelectual nascida na Grécia. Dirijo-me sobretudo aos que não se preocupam tanto com ela apenas como venerável tradição mas como um modo de reflexão ainda vigente, que lhes pode ser útil em suas perplexidades cotidianas. Trata-se primordialmente de saber, não como Sócrates se arranjava para viver melhor em Atenas há vinte e cinco séculos, mas como nós podemos compreender e des­frutar melhor a existência como contemporâneos da Internet, da Aids e dos cartões de crédito.

Para isso, sem dúvida, teremos que remontar, às vezes, às li­ções de Sócrates ou de outros mestres insignes, porém sem nos li-

*Bacharelado, correspondente ao ensino médio. (N. da T.)

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mitar a lavrar ata mais ou menos crítica de suas sucessivas desco­bertas. A filosofia não pode ser apenas um catálogo de opiniões prestigiosas. Muito pelo contrário, levando-se em conta, desta vez, a opinião prestigiosa de Ortega y Gasset: "A filosofia é idealmente o contrário da informação, da erudição." 1 Sem dúvida a filosofia é um estudo, não um punhado de idéias de tertúlia, e portanto requer aprendizado e preparo. Mas pensar filosoficamente não é repetir pensamentos alheios, por mais que nossas próprias reflexões se apóiem neles e estejam conscientes dessa dívida necessária. Certas introduções à filosofia são como tratados de ciclismo que se limi­tassem a rememorar os nomes e os feitos dos vencedores do Tour de France. Proponho-me aqui tentar ensinar a andar de bicicleta e até dar exemplo pedalando eu mesmo, por mais que minhas capa­cidades estejam longe das de Eddy Mercla ou Miguel Induráin.

Mas o leitor também tem que tentar pedalar comigo ou até contra mim. Nestas páginas não se oferece um guia concludente de pensamentos necessariamente válidos, mas um itinerário válido de busca e sondagem. Ao final de cada capítulo, propõe-se um memo­rando de questões para que o leitor refaça por si mesmo a indaga­ção que acaba de ler, o que talvez o leve a conclusões opostas. Nada mais necessário do que esse exercício, porque a filosofia não é a re­velação feita ao ignorante por quem sabe tudo, mas o diálogo entre iguais que se fazem cúmplices em sua mútua submissão à força da razão e não à razão da força.

Em suma, que se leia o que se segue como um convite a filo­sofar e não como um repertório de lições de filosofia.

Mas não são exatamente essas lições o que cabe dar no bacha­relado? E por acaso não é uma grande ousadia achar que é possível manter o tom acessível de quem pretende ser compreendido por adolescentes sem por isso deixar de tratá-los como iguais e sem re­nunciar, tampouco, a ser útil a outros leitores não menos neófitos mas adultos? Pois essa é minha ousada pretensão, de fato. Conso­lo-me lembrando que, segundo o poeta surrealista René Crevel, "nenhuma ousadia é fatal" .

1. Meditaciones dei Quijote, de J. Ortega y Gasset, Alianza Editorial, Madri. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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Introdução

O porquê da filosofia

Árbol de sangre, el hombre siente, piensa, florece y da frutos insólitos : palabras. Se enlazan lo sentido y lo pensado, tocamos las ideas: sou. cuerpos y sou números.*

ÜCTAVIO PAZ

Tem sentido empenhar-se hoje, no final do século XX ou iní­cio do XXI, em manter a filosofia como uma matéria a mais do ba­charelado? Trata-se de mera sobrevivência do passado, que os con­servadores enaltecem por seu prestígio tradicional mas que os pro­gressistas e as pessoas práticas devem encarar com justificada im­paciência? Podem os jovens, ou adolescentes, inclusive crianças, entender claramente algo que em sua idade deve parecer obscuro? Não se limitarão, na melhor das hipóteses, a memorizar algumas fórmulas pedantes que depois repetirão como papagaios? Talvez a filosofia interesse a alguns poucos, aos que têm vocação filosófi­ca, se é que isso ainda existe, mas esses, de qualquer modo, terão tempo de descobri-la mais adiante. Então por que impô-la a todos no secundário? Não é uma perda de tempo infundada e reacionária, em vista da sobrecarga dos atuais programas de ensino médio? -

O curioso é que os primeiros adversários da filosofia censura­vam-na justamente por ser "coisa de criança", adequada como pas­satempo da formação nos primeiros anos mas imprópria para adul­tos feitos e direitos. Por exemplo, Calicles, que pretende rebater a opinião de Sócrates de que "é melhor sofrer uma injustiça do que a causar". Segundo Calicles, o verdadeiramente justo, digam as leis

* Tradução livre: "Árvore de sangue, o homem sente, pensa, floresce / e dá frutos insólitos: palavras. / Enlaçam-se o sentido e o pensado, I tocamos as idéias: são corpos e são números." (N. da T.)

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o que disserem, é que os mais fortes se imponham aos fracos, os que valem mais aos que valem menos e os capazes aos incapazes. A lei dirá que é pior cometer uma injustiça do que sofrê-la, mas o natural é considerar pior sofrê-la do que cometê-la. Tudo o mais são firulas filosóficas , às quais o já adulto Calicles reserva todo o seu despre­zo: "A filosofia, amigo Sócrates, é certamente uma ocupação grata, se alguém se dedica a ela com moderação nos anos juvenis; mas, quando se dá atenção a ela por mais tempo do que é devido, é a ruí­na dos homens." 1 Calicles aparentemente não vê nada de mau em ensinar filosofia aos jovens, embora considere o vício de filosofar um pecado ruinoso depois que já se cresceu. Digo "aparentemente" porque não podemos esquecer que Sócrates foi condenado a beber cicuta acusado de corromper os jovens seduzindo-os com seu pen­samento e sua palavra. Afinal de contas, se a filosofia desapareces­se completamente, para pequenos e grandes, o enérgico Calicles -partidário da razão do mais forte - não ficaria muito desgostoso ...

Se quisermos resumir todas as repreensões contra a filosofia em quatro palavras, bastarão estas: não serve para nada. Os filóso­fos empenham-se em saber mais do que ninguém de tudo o que se possa imaginar, embora na realidade não sejam mais do que char­latães amigos do palavrório vazio. E então quem sabe de verdade o que é preciso saber sobre o mundo e a sociedade? Pois os cientis­tas, os técnicos, os especialistas, os que são capazes de dar ieforma­ções válidas sobre a realidade. No fundo, os filósofos se empenham em falar do que não sabem: o próprio Sócrates o reconhecia, ao di­zer "só sei que não sei nada". Se não sabe nada, por que vamoses­cutá-lo, quer sejamos jovens ou maduros? O que temos que fazer é aprender com os que sabem, não com os que não sabem. Sobretu­do hoje em dia, quando as ciências avançaram tanto e já sabemos como funciona a maioria das coisas ... e como fazer funcionar ou­tras, inventadas por cientistas aplicados.

Assim, pois, na época atual, a das grandes descobertas técni­cas, no mundo do microchip e do acelerador de partículas, no rei­no da Internet e da televisão digital... que informação podemos re-

1. Górgias, de Platão, 481 e a 484d. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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ceber da filosofia? A única resposta que nos resignaremos a daré a que provavelmente o próprio Sócrates teria oferecido: nenhuma. Somos informados pelas ciências da natureza, pelos técnicos, pelos jornais, por alguns programas de televisão ... mas não há informa­ção "filosófica". Conforme apontou Ortega, anteriormente citado, a filosofia é incompatível com as notícias, e a informação é feita de notícias. Muito bem, mas é só informação que buscamos para en­tendermos melhor a nós mesmos e o que nos rodeia? Suponhamos que recebemos uma notícia qualquer, como por exemplo esta: um número x de pessoas morre diariamente de fome em todo o mundo. E, recebida a informação, perguntamos (ou nos perguntamos) o que devemos pensar desse fato. Pediremos opiniões, algumas das quais nos dirão que essas mortes se devem a desajustes no ciclo macroe­conômico global, outras falarão da superpopulação do planeta, al­guns clamarão contra a distribuição injusta de bens entre possuido­res e despossuídos, ou invocarão a vontade de Deus, ou a fatalida­de do destino ... E não faltará gente simples e cândida, nosso portei­ro ou o jornaleiro, para comentar: "Em que mundo nós vivemos!" Então nós, como um eco mas trocando a exclamação pela interro­gação, nos perguntaremos: "Isso mesmo·: em que mundo vivemos?"

Não há resposta científica para esta última pergunta, pois evi­dentemente não nos conformaremos com respostas do tipo "vive­mos no planeta Terra", "vivemos exatamente num mundo em que x pessoas morrem diariamente de fome", nem sequer com que nos di­gam "vivemos num mundo muito injusto" ou "um mundo amaldi­çoado por Deus por causa dos pecados dos seres humanos" (por que é injusto o que acontece?, em que consiste a maldição divina e quem a atesta?, etc.). Em resumo, não queremos mais informações sob"'re o que acontece, mas saber o que significa a informação que temos, como devemos interpretá-la e relacioná-la com outras informações anteriores ou simultâneas, o que implica tudo isso na consideração geral da realidade em que vivemos, como podemos ou devemos nos comportar na situação assim estabelecida. Essas são precisamente as perguntas das quais se ocupa o que vamos chamar de filosofia . Di­gamos que ocorrem três níveis diferentes de compreensão:

a) a ieformação, que nos apresenta os fatos e os mecanismos primários do que acontece;

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b) o conhecimento, que reflete sobre a informação recebida, hierarquiza sua importância significativa e busca princípios gerais para ordená-la;

c) a sabedoria, que vincula o conhecimento às opções vitais ou valores que podemos escolher, tentando estabelecer como viver me­lhor de acordo com o que sabemos.

Creio que a ciência se move entre o nível a) e o b) de conheci­mento, ao passo que a filosofia opera entre o b) e o c ). De modo que não há informação propriamente filosófica, mas pode haver conhe­cimento filosófico, e gostaríamos de chegar a que houvesse também sabedoria filosófica. É possível conseguir tal coisa? Sobretudo: é possível ensinar tal coisa?

Vamos buscar outra perspectiva a partir de um novo exemplo ou, para dizer mais exatamente, utilizando uma metáfora. Vamos imaginar que estamos no museu do Prado, diante de um de seus qua­dros mais famosos, O jardim das delícias, de Hieronymus Bosch. Que formas de entendimento podemos ter dessa obra-prima? Cabe em primeiro lugar realizarmos uma análise físico-química da textu­ra da tela empregada pelo pintor, da composição dos diversos pig­mentos que se espalham por cima dela ou até utilizarmos raios X para localizar vestígios de outras imagens ou esboços ocultos sob a pintura principal. Afinal de contas, o quadro é um objeto material, uma coisa entre as outras coisas, que pode ser pesada, medida, ana­lisada, esmiuçada, etc. Mas também é, sem dúvida, uma superfície em que, por meio de cores e formas, se representa um certo núme­ro de figuras. De modo que para entender o quadro também cabe realizar o inventário completo de todos os personagens e cenas que aparecem nele, quer sejam pessoas, animais, monstros demoníacos, vegetais, coisas, etc., assim como constatar sua distribuição em ca­da um dos três corpos do tríptico. Porém tantos bonecos e maravi­lhas não são meramente gratuitos nem apareceram um dia por aca­so na superfície da tela. Outra maneira de entender a obra será constatar que seu autor (a quem os contemporâneos também se re­feriam com o nome de Jeroen Van Aeken) nasceu em 1450 e mor­reu em 1516. Foi um pintor de destaque da escola flamenga, cujo estilo direto, rápido e de tons delicados marca o final da pintura medieval. Os temas que representa, no entanto, pertencem ao mun-

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do religioso e simbólico da Idade Média, embora interpretado com grande liberdade subjetiva. Um trabalho paciente pode decifrar -ou tentar decifrar - o conteúdo alegórico de muitas de suas imagens segundo a iconografia da época; o resto bem poderia ser elucidado de acordo com a hermenêutica onírica da psicanálise de Freud. Por outro lado, O jardim das delícias é uma obra do período médio na produção do artista, como As tentações de santo Antônio, conserva­da no Museu de Lisboa, antes de ele mudar a escala de representa­ção e a disposição das figuras em seus quadros posteriores, etc.

Poderíamos imaginar ainda outra via para entender o quadro, uma perspectiva que não ignorasse nem descartasse nenhuma das anteriores mas que pretendesse abrangê-las juntamente na medida do possível, aspirando a compreendê-lo em sua totalidade. Desse ponto de vista mais ambicioso, O jardim das delícias é um objeto material, mas também um testemunho histórico, uma lição de mi­tologia, uma sátira das ambições humanas e uma expressão plásti­ca da personalidade mais recôndita de seu autor. Sobretudo, é algo profundamente significativo que interpela pessoalmente cada um de nós que o vemos tantos séculos depois de ter sido pintado, que se refere ao que sabemos, fantasiamos ou desejamos da realidade e que nos remete às outras formas simbólicas ou artísticas de habitar o mundo, ao que nos faz pensar, rir ou cantar, à condição vital com­partilhada por todos os seres humanos vivos, mortos ou ainda não nascidos ... Esta última perspectiva, que nos leva do que é o quadro ao que somos nós, e depois ao que é a realidade toda para voltar de novo ao próprio quadro, é o ângulo de consideração que podemos chamar filosófico. E, é claro, há uma perspectiva de entendimento filosófico sobre cada coisa, não exclusivamente sobre as obras-pri­mas da pintura.

Vamos mais uma vez tentar precisar a diferença essencial en­tre ciência e filosofia. A primeira coisa que salta aos olhos não é o que as distingue mas o que as aproxima: tanto a ciência como a fi­losofia tentam responder a perguntas suscitadas pela realidade. De fato, em suas origens, ciência e filosofia estiveram unidas, e só ao longo dos séculos a fisica, a química, a astronomia ou a psicologia fo­ram se tomando independentes de sua matriz filosófica comum. Atual­mente, as ciências pretendem explicar como as coisas são constituí­das e como elas funcionam, ao passo que a filosofia se concentra

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antes no que elas significam para nós. A ciência deve adotar o pon­to de vista impessoal para falar sobre todos os temas (inclusive quan­do estuda as próprias pessoas!), ao passo que a filosofia permane­ce sempre consciente de que o conhecimento tem necessariamente um sujeito, um protagonista humano. A ciência aspira a conhecer o que existe e o que acontece; a filosofia põe-se a refletir sobre a im­portância que tem para nós o que sabemos que acontece e o que existe. A ciência multiplica as perspectivas e as áreas de conheci­mento, ou seja, ela fragmenta e especializa o saber; a filosofia se empenha em relacioná-lo com tudo o mais, tentando enquadrar os saberes em um panorama teórico que sobrevoe a diversidade a par­tir dessa aventura unitária que é pensar, ou seja, ser humano. A ciência desmonta as aparências do real em elementos teóricos invi­síveis, ondulatórios ou corpusculares, matematizáveis, em elemen­tos abstratos não percebidos; sem ignorar nem desprezar essa aná­lise, a filosofia resgata a realidade humanamente vital do aparen­te, na qual transcorre a peripécia de nossa existência concreta (por exemplo, a ciência nos revela que as árvores e as mesas são com­postas por elétrons, nêutrons, etc., mas a filosofia, sem minimizar essa revelação, nos faz voltar a uma realidade humana entre árvo­res e mesas). A ciência busca saberes e não meras suposições; a fi­losofia quer saber o que nos faz supor o conjunto de nossos sabe­res ... e até se são verdadeiros saberes ou ignorâncias disfarçadas! Pois a filosofia costuma perguntar-se principalmente sobre ques­tões que os cientistas (e evidentemente as pessoas comuns) já dão como claras ou evidentes. Bem o diz Thomas Nagel, atualmente professor de filosofia em uma universidade de Nova York: "A prin­cipal ocupação da filosofia é questionar e esclarecer algumas idéias muito comuns que todos nós usamos todos os dias sem pensar so­bre elas. Um historiador pode se perguntar o que aconteceu em um determinado momento do passado, mas o filósofo perguntará: o que é o tempo? Um matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: o que é um número? Um fí­sico irá perguntar do que são feitos os átomos ou o que explica a gravidade, mas um filósofo perguntará: como podemos saber que existe algo fora de nossas mentes? Um psicólogo pode investigar como as crianças aprendem uma linguagem, mas um filósofo per­guntará: por que uma palavra significa algo? Qualquer um pode se

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perguntar se é mau furar a fila do cinema sem pagar, mas um fiÍó­sofo perguntará: por que uma ação é boa ou má?" 2

Em todo caso, tanto as ciências como as filosofias respondem a perguntas suscitadas pelo real. Mas a essas perguntas as ciências dão soluções, ou seja, respostas que satisfazem de tal modo à ques­tão colocada que a anulam e dissolvem. Quando uma resposta cien­tífica funciona como tal já não tem sentido insistir na pergunta, que deixa de ser interessante (uma vez estabelecido que a composição da água é H20, deixa de nos interessar continuar perguntando qual a composição da água e esse conhecimento revoga automaticamen­te as outras soluções propostas por cientistas anteriores, embora abra a possibilidade de novas interrogações). Em contrapartida, a filosofia não dá soluções, mas respostas, que não anulam as per­guntas mas nos permitem conviver racionalmente com elas, embo­ra continuemos a formulá-las sempre de novo: por mais respostas filosóficas que conheçamos à pergunta sobre o que é a justiça ou o que é o tempo, nunca deixaremos de nos perguntar o que é o tem­po ou a justiça nem descartaremos como ociosas ou "superadas" as respostas dadas por filósofos anteriores a essas questões. As res­postas filosóficas não solucionam as perguntas do real (embora às vezes alguns filósofos achassem isso ... ) mas antes cultivam a per­gunta, ressaltam o essencial desse perguntar e nos ajudam a conti­nuar nos perguntando, a perguntar cada vez melhor, a nos humani­zar na convivência perpétua com a interrogação. Pois o que é o ho­mem senão o animal que pergunta e que continuará perguntando para além de qualquer resposta imaginável?

Há perguntas que admitem solução satisfatória, e essas são as que mais a ciência se faz; outras achamos impossível que algum dia cheguem a ser totalmente solucionadas, e responder-lhes - sempre insatisfatoriamente - é o empenho da filosofia. Historicamente aconteceu que algumas. perguntas começaram sendo de competên­cia da filosofia - a natureza e o movimento dos astros, por exem-

2. What does it ali mean?, de T. Nagel, Oxford University Press, Oxford. [Para este livro, tradução feita a partir do texto citado pelo autor.] (Trad. bras. Uma breve introdução à filosofia , São Paulo, Martins Fontes, 2001.)

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plo - e depois passaram a receber solução científica. Em outros ca­sos, questões que pareciam cientificamente resolvidas voltaram de­pois a ser tratadas a partir de novas perspectivas científicas, estimu­ladas por dúvidas filosóficas (a passagem da geometria euclidiana para as geometrias não-euclidianas, por exemplo). Deslindar que perguntas parecem hoje pertencer ao primeiro grupo e quais ao se­gundo é uma das tarefas críticas mais importantes dos filósofos ... e dos cientistas. É provável que certos aspectos das perguntas das quais hoje a filosofia se ocupa recebam solução científica amanhã, e com certeza as futuras soluções científicas ajudarão decisivamen­te a reformulação das respostas filosóficas vindouras, e não seria a primeira vez que a tarefa dos filósofos teria orientado ou inspirado alguns cientistas. Não há por que haver oposição irredutível, muito menos menosprezo mútuo, entre ciência e filosofia, tal como acre­ditam os maus cientistas e os maus filósofos. A única coisa de que podemos ter certeza é que nunca nem a ciência nem a filosofia ca­recerão de perguntas às quais tentar responder ...

Hoje, no entanto, há uma outra diferença importante entre ciência e filosofia, que já não se refere aos resultados de ambas mas ao modo de chegar a eles. Um cientista pode utilizar as soluções en­contradas por cientistas anteriores sem necessidade de percorrer por si mesmo todos os raciocínios, cálculos e experimentos que le­varam a descobri-las; mas quando alguém quer filosofar não pode contentar-se em aceitar as respostas de outros filósofos ou citar sua autoridade como argumento indiscutível: nenhuma resposta filosó­fica será válida para ele se não voltar a percorrer por si mesmo o caminho traçado por seus antecessores ou tentar outro novo apoia­do nessas perspectivas alheias que deverá ter considerado pessoal­mente. Em suma, o itinerário filosófico tem que ser pensado indi­vidualmente por cada um, mesmo que parta de uma tradição inte­lectual muito rica. As conquistas da ciência estão à disposição de quem queira consultá-las, mas as da filosofia só servem a quem de­cida meditá-las por si mesmo.

Dito de modo mais radical, não sei se excessivamente radical: os avanços científicos têm como objetivo melhorar nosso conheci­mento coletivo da realidade, ao passo que filosofar ajuda a transfor­mar e ampliar a visão pessoal do mundo de quem se dedica a essa

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tarefa. Uma pessoa pode investigar cientificamente por outra, mas não pode pensar filosoficamente por outra ... , embora os grandes fi­lósofos tanto tenham ajudado todos nós a pensar. Talvez pudésse­mos acrescentar que as descobertas da ciência facilitam a tarefa dos cientistas posteriores, ao passo que as contribuições dos filósofos tornam cada vez mais complexo (embora também mais rico) o em­penho daqueles que se põem a pensar depois deles. Por isso, prova­velmente, Kant observou que não se pode ensinar filosofia, mas apenas a filosofar: pois não se trata de transmitir um saber já con­cluído por outros que qualquer um pode aprender como quem aprende as capitais da Europa, mas de um método, ou seja, um ca­minho para o pensamento, uma maneira de ver e de argumentar.

"Só sei que não sei nada'', comenta Sócrates, e trata-se de uma afirmação que deve ser tomada - a partir do que Platão e Xenofon­te contaram sobre quem a proferiu - de modo irônico. "Só sei que não sei nada" deve ser entendido como: "Não me satisfaz nenhum dos saberes com que vocês tanto se contentam. Se saber consiste nisso, não devo saber nada, pois vejo objeções e falta de fundamen­to nas certezas de vocês. Mas pelo menos sei que não sei, isto é, en­contro argumentos para não me fiar no que comumente se chama saber. Talvez vocês saibam realmente tantas coisas como parece, e, se é assim, deveriam ser capazes de responder a minhas perguntas e esclarecer minhas dúvidas. Vamos examinar juntos o que se cos­tuma chamar de saber e descartar tudo o que os supostos especia­listas não possam resguardar do vendaval de minhas interrogações. Não é a mesma coisa saber de fato e limitar-se a repetir o que co­mumente se admite como sabido. Saber que não se sabe é preferí­vel a considerar sabido o que nós mesmos não pensamos a fundo. Uma vida sem exame, isto é, a vida de quem não pondera as res­postas que lhe são oferecidas para as perguntas essenciais nem ten­ta responder-lhes pessoalmente, não vale a pena ser vivida." Ou seja, a filosofia, antes de propor teorias que resolvam nossas per­plexidades, deve ficar perplexa. Antes de oferecer as respostas ver­dadeiras, deve deixar claro por que as respostas falsas não a con­vencem. Uma coisa é saber depois de ter pensado e discutido, ou­tra muito diferente é adotar os saberes que ninguém discute para não ter que pensar. Antes de chegar a saber, filosofar é defender-se

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dos que acreditam saber e só fazem repetir os erros alheios. Mais importante do que estabelecer conhecimentos é ser capaz de criti­car o que conhecemos mal ou não conhecemos, embora acredite­n_ios conhecê-lo: antes de saber por que afirma o que afirma, o fi­losofo deve saber pelo menos por que duvida do que os outros afir­mam ou por que não se decide a afirmar por sua vez. E essa função negativa, defensiva, crítica, já tem um valor em si mesma mesmo que não se vá além disso e mesmo que no mundo dos qu~ acredi­tam que sabem o filósofo seja o único que aceita não saber mas pelo menos conhece sua ignorância.

Ensinar a filosofar ainda, no final do século XX, quando todo o mundo parece querer apenas soluções imediatas e pré-fabricadas, quando as perguntas que se arriscam ao insolúvel são tão incômo­das? Coloquemos a questão de outra maneira: acaso a principal ta­refa da educação não é humanizar de maneira plena?, há outra di­mensão mais propriamente humana, mais necessariamente humana do que a inquietação que há séculos leva a filosofar?, a educação pode prescindir dela e continuar sendo humanizadora no sentido li­vre e antidogmático necessário à sociedade democrática na qual queremos viver?

De acordo, vamos aceitar que é preciso tentar ensinar filosofia aos jovens, ou melhor, ensiná-los a filosofar. Mas como levar a cabo esse ensino, que só pode ser um convite para que cada um fi­losofe por si mesmo? E, antes de tudo, por onde começar?

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Capítulo um

A morte, para começar

Lembro-me muito bem da primeira vez em que compreendi de verdade que mais cedo ou mais tarde eu tinha que morrer. Eu devia ter por volta de dez anos, talvez nove, eram quase onze horas de uma noite qualquer e já estava deitado. Meus dois irmãos, que dor­miam comigo no mesmo quarto, roncavam tranqüilamente. No quar­to ao lado meus pais falavam sem estridência enquanto se despiam, e minha mãe tinha ligado o rádio, que deixaria tocando até tarde, para prevenir meus pavores noturnos. De repente, sentei-me na cama, no escuro: eu também ia morrer!, era o que me estava reser­vado, o que me cabia irremediavelmente!, não havia escapatória! Não só teria que suportar a morte das minhas duas avós e do meu querido avô, e a dos meus pais, como eu, eu mesmo, não teria ou­tro remédio senão morrer. Que coisa tão estranha e terrível, tão pe­rigosa, tão incompreensível, mas, sobretudo, que coisa tão irreme­diavelmente pessoal!

Aos dez anos, acreditamos que todas as coisas importantes só podem acontecer com os adultos: de repente revelou-se para mim a primeira grande coisa importante - de fato, a mais importante de todas - que sem dúvida nenhuma ia acontecer comigo. Eu ia mor­rer, naturalmente dentro de muitos, muitíssimos anos, depois que ti­vessem morrido meus seres queridos (todos menos os meus irmãos, mais novos do que eu e que portanto sobreviveriam a mim), mas de qualquer modo eu ia morrer. Ia morrer, eu, apesar de ser eu. A mor­te já não era um assunto alheio, um problema dos outros, nem uma

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lei geral que me atingiria quando fosse adulto, ou seja: quando fos­se outro. Porque também me dei conta, então, de que quando che­gasse a minha morte eu continuaria sendo eu, tão eu mesmo quan­to agora que me dava conta disso. Eu haveria de ser o protagonista da verdadeira morte, a mais autêntica e importante, a morte da qual todas as outras mortes seriam apenas ensaios dolorosos. Minha morte, a do meu eu! Não a morte dos "você", por mais queridos que fossem, mas a morte do único "eu" que eu conhecia pessoalmente! Claro que aconteceria dali a muito tempo mas .. . será que já não me estava acontecendo, num certo sentido? O fato de me dar conta de que ia morrer - eu, eu mesmo - também não era parte da própria morte, aquela coisa tão importante que, apesar de ser ainda uma criança, estava acontecendo agora comigo e com ninguém mais?

Tenho certeza de que foi nesse momento que afinal comecei a pensar. Isto é, que compreendi a diferença entre aprender ou repe­tir pensamentos alheios e ter um pensamento verdadeiramente meu, um pensamento que me comprometesse pessoalmente, não um pen­samento alugado ou emprestado como uma bicicleta que nos cedem para dar uma volta. Um pensamento que se apoderava de mim mui­to mais do que eu podia me apoderar dele. Um pensamento que eu não podia pegar ou largar à vontade, um pensamento com o qual eu não sabia o que fazer, mas com o qual era evidente que urgia fazer alguma coisa, pois não era possível ignorá-lo. Embora ainda con­servasse sem crítica as crenças religiosas de minha educação piedo­sa, nem por um momento elas me pareceram alívios da certeza da morte. Um ou dois anos antes eu já tinha visto meu primeiro cadá­ver, por surpresa (e que surpresa!) um irmão leigo recém-falecido exposto no átrio da igreja dos jesuítas da rua Garibay, em San Se­bastián, onde minha família e eu assistíamos à missa dominical. Pa­recia uma estátua cérea, como os Cristos jacentes que eu vira em al­guns altares, mas com a diferença de que eu sabia que antes ele es­tava vivo e agora não mais. "Foi para o céu", disse minha mãe, um pouco incomodada com um espetáculo do qual sem dúvida teriam me poupado de bom grado. E eu pensei: "Bem, pode estar no céu, mas também está aqui, morto. O que certamente ele não está é vivo, em lugar nenhum. Pode ser que estar no céu seja melhor do que es­tar vivo, mas não é a mesma coisa. Viver a gente vive neste mundo,

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com um corpo que fala e anda, cercado de gente como a gente, nao entre os espíritos ... por mais fantástico que seja ser espírito. Os es­píritos também estão mortos, também tiveram que padecer a morte estranha e horrível, ainda a padecem." E assim, a partir da revela­ção de minha morte impensável, comecei a pensar.

Talvez pareça estranho que um livro que pretenda iniciar às questões filosóficas se abra com um capítulo dedicado à morte. Será que um tema tão lúgubre não irá desanimar os neófitos? Não seria melhor começar falando da liberdade ou do amor? Mas já dis­se que proponho convidar à filosofia a partir de minha própria ex­periência intelectual, e em meu caso foi a revelação da morte - de minha morte - como certeza que me fez começar a pensar. E acon­tece que a evidência da morte não só nos deixa pensativos como nos toma pensadores. Por um lado, a consciência da morte nos faz amadurecer pessoalmente: todas as crianças se acham imortais (as muito pequenas até pensam que são onipotentes e que o mundo gira em tomo delas; salvo nos países ou nas famílias atrozes, em que as crianças vivem desde muito cedo ameaçadas pelo extermínio e os olhos infantis surpreendem por seu cansaço mortal, por sua vetera­nice anormal...), mas depois crescemos quando a idéia da morte cresce dentro de nós. Por outro lado, a certeza pessoal da morte nos humaniza, ou seja, nos transforma em verdadeiros humanos, em "mortais". Entre os gregos, "humano" e "mortal" se dizia com a mesma palavra, como deve ser.

As plantas e os animais não são mortais porque não sabem que vão morrer, não sabem que têm que morrer: eles morrem, no entan­to sem nunca conhecer sua vinculação individual, a de cada um de­les, com a morte. As feras pressentem o perigo, se entristecem com a doença ou a velhice, mas ignoram (ou parecem ignorar?) seu abraço essencial com a necessidade da morte. Não é mortal quem morre, mas quem tem certeza de que vai morrer. Embora também possamos dizer que, por isso mesmo, nem as plantas nem os ani­mais estão vivos no mesmo sentido em que nós estamos. Os autên­ticos seres viventes somos só nós, os mortais, porque sabemos que deixaremos de viver e que exatamente nisso consiste a vida. Alguns dizem que os deuses imortais existem, e outros, que eles não exis­tem, mas ninguém diz que estão vivos; só Cristo foi chamado de

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"Deus vivo", e isso porque dizem que ele encarnou, se fez homem, viveu como nós e como nós teve que morrer.

Portanto não é um capricho nem um anseio de originalidade começar a filosofia falando da consciência da morte. Também não pretendo dizer que o tema único, nem sequer principal, da filosofia seja a morte. Pelo contrário, creio antes que a filosofia trata é da vi­da, do que significa viver e de como viver melhor. No entanto é a morte prevista que, ao nos tornar mortais (isto é, humanos), tam­bém nos transforma em viventes. O indivíduo começa a pensar a vida quando se dá por morto. Falando pela boca de Sócrates no diá­logo Fédon, Platão diz que filosofar é "preparar-se para morrer". No entanto, o que pode significar "preparar-se para a vida" a não ser pensar sobre a vida humana (mortal) que vivemos? É justamen­te a certeza da morte que faz da vida - minha vida, única e irrepe­tível - algo tão mortalmente importante para mim. Todas as tare­fas e empenhos da nossa vida são formas de resistência à morte, que sabemos inevitável. É a consciência da morte que transforma a vida em um assunto muito sério para cada um, algo que deve ser pensado. Algo misterioso e tremendo, uma espécie de milagre pre­cioso pelo qual devemos lutar, em favor do qual temos que nos es­forçar e refletir. Se a morte não existisse, haveria muito o que ver e muito tempo para vê-lo, mas muito pouco o que fazer (fazemos quase tudo para evitar-morrer) e nada em que pensar.

Há gerações, os aprendizes de filósofos costumam iniciar-se no raciocínio lógico com este silogismo:

Todos os homens são mortais; Sócrates é homem

logo Sócrates é mortal.

Não deixa de ser interessante que a tarefa do filósofo comece lembrando o nome ilustre de um colega condenado à morte, em uma argumentação que por certo também condena todos nós à mor­te. Pois é claro que o silogismo é igualmente válido se em lugar de "Sócrates" colocamos o seu nome, leitor, ou o meu ou o de qual­quer outra pessoa. Porém seu significado vai além da mera corre­ção lógica. Se dizemos

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Todo A é B CéA logo

CéB,

continuamos raciocinando formalmente bem, no entanto as impli­cações materiais do assunto mudaram consideravelmente. Não me inquieta ser B se sou A, mas não deixa de me alarmar que por ser homem eu deva ser mortal. No silogismo citado em primeiro lugar, além do mais, fica estrita e claramente estabelecida a passagem en­tre uma constatação genérica e impessoal - a de que a todos os hu­manos cabe morrer - e o destino individual de alguém (Sócrates, você, eu ... ) que é humano, o que em princípio parece coisa presti­giosa e sem más conseqüências para depois transformar-se em sen­tença fatal. Uma sentença já cumprida no caso de Sócrates, ainda pendente no nosso. Bela diferença existe entre saber que com todos deve acontecer uma coisa terrível e saber que deve acontecer comi­go! O agravamento da inquietude entre a afirmação geral e a que leva meu nome como sujeito me revela o caráter único e irredutível de minha individualidade, o assombro que me constitui:

Murieron otros, pero ello aconteció en el pasado, que es la estación (nadie lo ignora) más propicia a la muerte. ? Es posible que yo, súbdito de Yaqub Almansur, muera como tuvieron que morir las rosas y Aristóteles? 1

Morreram outros, morreram todos, morrerão todos, mas... e eu? Eu também? Note-se que a ameaça implícita, tanto no silogismo citado anteriormente como nos prodigiosos versos de Borges, apóia­se no fato de os protagonistas individuais (Sócrates, o mouro medie-

1. Cuarteta, de J. L. Borges, em "Obra poética completa", Alianza Editorial, Madri. [Tradução livre: "Morreram outros, mas isso aconteceu no passado,/ que é a estação (ninguém o ignora) mais propícia à morte. / É possível que eu, súdito de Ya­qub Almansur, / morra como tiveram que morrer as rosas e Aristóteles?"]

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val súdito de Yaqub Almansur ou Alamnzor, Aristóteles ... ) já esta­rem necessariamente mortos. Eles também tiveram que considerar para si, em sua época, o mesmo destino irremediável que hoje con­sidero para mim: e nem por o terem considerado escaparam a ele ...

De modo que a morte não só é necessária como é o protótipo mesmo do necessário em nossa vida (se o silogismo começasse es­tabelecendo que "todos os homens comem, Sócrates é homem, etc.", seria igualmente justo de um ponto de vista fisiológico, mas não teria a mesmaforça de persuasão). Pois bem, além de sabê-la necessária a ponto de exemplificar a própria necessidade ("neces­sário" é etimologicamente aquilo que não cessa, que não cede, com que não cabe nenhuma transação nem pacto), que outras coisas co­nhecemos sobre a morte? Certamente bem poucas. Uma delas é que a morte é absolutamente pessoal e intransferível: ninguém pode mor­rer por outro. Isto é, é impossível que alguém, com sua própria morte, possa evitar a outro definitivamente o transe de também mor­rer, mais cedo ou mais tarde. O padre Maximilian Kolbe, que se ofereceu como voluntário num campo de concentração nazista para substituir um judeu que estavam levando para a câmara de gás, só o substituiu diante dos carrascos, mas não diante da própria mor­te. Com seu heróico sacrifício concedeu-lhe um prazo mais longo de vida e não a imortalidade. Numa tragédia de Eurípides, a sub­missa Alceste se oferece para descer a Hades - ou seja, para mor­rer - em lugar de seu marido Admeto, um egoísta perigoso. No fi­nal, Hércules tem que descer para resgatá-la do reino dos mortos e atenuar o desaforo. Mas nem sequer a abnegação de Alceste teria conseguido que Admeto escapasse para sempre de seu destino mor­tal, só teria podido retardá-lo: a dívida que todos nós temos com a morte deve ser paga por cada um com a própria vida, não com ou­tra. Nem sequer outras funções biológicas essenciais, como comer ou fazer amor, parecem tão intransferíveis: afinal, alguém pode consumir minha ração no banquete ao qual eu deveria ter compare­cido ou fazer amor com a pessoa que eu teria podido ou desejado amar também, inclusive poderiam me alimentar à força ou me fa­zer renunciar ao sexo para sempre. Contudo a morte, minha morte ou a de outro, sempre tem nome e sobrenomes insubstituíveis. Por isso a morte é o que há de mais individualizador e ao mesmo tem-

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po de mais igualitário: nesse transe, ninguém é mais nem menos do que ninguém, sobretudo ninguém pode ser outro que não o que é. Ao morrer, cada um é definitivamente ele mesmo e ninguém mais. Do mesmo modo que ao nascer trazemos ao mundo o que nunca antes havia sido, ao morrer levamos o que nunca voltará a ser.

Sabemos mais uma coisa da morte: que além de ser certa ela é perpetuamente iminente. Morrer não é coisa de velhos nem de doentes: desde o primeiro momento em que começamos a viver já estamos prontos para morrer. Como diz a sabedoria popular, nin­guém é tão jovem que não possa morrer nem tão velho que não pos­sa viver mais um dia. Por mais sadios que estejamos, a espreita da morte não nos abandona e não é raro alguém morrer - por aciden­te ou crime - em perfeito estado de saúde. E já disse muito bem Montaigne: não morremos porque estamos doentes, mas porque es­tamos vivos. Pensando bem, sempre estamos à mesma distância da morte. A diferença importante não é entre estar sadio ou doente, em segurança ou em perigo, mas entre estar vivo ou morto, ou seja, en­tre estar e não estar. E não há meio-termo: ninguém pode sentir-se de fato "meio morto", isso é apenas uma simples forma figurada de falar, pois enquanto há vida tudo pode se arranjar, mas a morte é necessariamente irrevogável. Enfim, o que caracteriza a morte é nun­ca podermos dizer que estamos resguardados dela ou que nos afas­tamos, ainda que momentaneamente, de seu império: mesmo que às vezes não seja provável, a morte sempre é possível.

Fatalmente necessária, perpetuamente iminente, intimamente intransferível, solitária ... o que sabemos sobre a morte é muito se­guro (referem-se a ela alguns dos conhecimentos mais indubitáveis que temos) mas não a torna mais familiar nem menos inescrutável para nós. No fundo, a morte continua sendo o que há de mais des­conhecido. Sabemos quando alguém está morto mas ignoramos o que é morrer visto de dentro. Creio saber mais ou menos o que é morrer, mas não o que é eu morrer. Algumas grandes obras literá­rias - como o incomparável relato de Leon Tolstói A morte de Ivan Ilitch, ou a tragicomédia de Eugene Ionesco O rei está morrendo -podem nos aproximar de uma melhor compreensão do assunto, em­bora deixando sempre abertas as interrogações fundamentais. Quanto ao mais, através dos séculos houve muitas lendas sobre a

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morte, muitas promessas e ameaças, muitas fofocas, relatos muito antigos - tão antigos, ao que tudo indica, quanto a espécie humana, ou seja, quanto esses animais que se tornaram humanos ao come­çar a se perguntar sobre a morte - e que constituem a base univer­sal das religiões. Pensando bem, todos os deuses do santoral antro­pológico são deuses da morte, deuses que se ocupam do significado da morte, deuses que distribuem prêmios, castigos ou reencarnação, deuses que guardam a chave da vida eterna em face dos mortais. Antes de tudo, os deuses são imortais: nunca morrem e, quando in­ventam de morrer, depois ressuscitam ou se transformam em outra coisa, passam por uma metamorfose. Em todos os lugares e em to­dos os tempos a religião serviu para dar sentido à morte. Se a mor­te não existisse, não haveria deuses, ou melhor, os deuses seríamos nós, os humanos mortais, e viveríamos no ateísmo divinamente ...

As lendas mais antigas não pretendem nos consolar da morte mas apenas explicar sua inevitabilidade. A primeira grande epopéia que se conserva, a história do herói Gilgamesh, foi composta na Su­méria, aproximadamente 2.700 anos antes de Jesus Cristo. Gilga­mesh e seu amigo Enkidu, dois valentes guerreiros e caçadores, en­frentam a deusa Ushtar, que mata Enkidu. Então Gilgamesh sai em busca do remédio para a morte, uma erva mágica que renova a ju­ventude para sempre, mas perde-a quando está prestes a consegui­la. Depois aparece o espírito de Enkidu, que explica ao amigo os se­gredos sombrios do reino dos mortos, ao qual Gilgamesh se resigna a acorrer quando chega sua hora. Esse reino dos mortos não é mais do que um sinistro reflexo da vida que conhecemos, um lugar pro­fundamente triste. É a mesma coisa que o Hades dos antigos gregos. Na Odisséia de Homero, Ulisses convoca os espíritos dos mortos e, entre eles, apresenta-se seu antigo companheiro Aquiles. Embora sua sombra continue sendo tão majestosa entre os defuntos quanto foi entre os vivos, ele confessa a Ulisses que preferiria ser o último porqueiro no mundo dos vivos a ser rei nas paragens da morte. Os vivos não devem invejar os mortos em nada. Por outro lado, outras religiões posteriores, como a cristã, prometem uma existência ~ais feliz e luminosa do que a vida terrena para quem tenha cumpndo os preceitos da divindade (em contrapartida, garantem urna eterni­dade de torturas refinadas aos que foram desobedientes). Digo

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"existência" porque à tal promessa não cabe o nome de "vida" ver­dadeira. A vida, no único sentido da palavra que conhecemos, é constituída de mudanças, oscilações entre o melhor e o pior, de im­previstos. Uma eterna bem-aventurança ou uma eterna condenação são formas intermináveis de congelamento no mesmo gesto, mas não modalidades de vida. De modo que nem mesmo as religiões com maior garantia post mortem asseguram a "vida" eterna: só pro­metem a eterna existência ou duração, o que não é a mesma coisa que a vida humana, que nossa vida.

Além do mais, como poderíamos "viver" de fato onde faltasse a possibilidade de morrer? Miguel de Unamuno sustentou com fér­reo afinco que saber-nos mortais como espécie mas não querer mor­rer como pessoas é justamente o que individualiza cada um de nós. Repeliu vigorosamente a morte - sobretudo em seu livro a_dmirável Do sentimento trágico da vida - porém, não com menos vigor, sus­tentou que neste mundo e no outro, caso o houvesse,. queria ~o~ser­var sua personalidade, ou seja, não se limitar a contmuar ex1stm~o de qualquer modo, mas como don Miguel de Unamuno y Jugo. P?1s bem, aqui se coloca um sério problema teórico, pois, se nossa m­dividualidade pessoal provém do próprio conhecimento da morte e de sua rejeição, como poderia Unamuno continuar sendo Unamuno quando fosse imortal, ou seja, quando já não houvesse morte a te­mer e repelir? A única vida eterna compatível com nossa persona­lidade individual seria uma vida em que a morte estivesse presente mas como possibilidade perpetuamente adiada, algo sempre te~í­vel mas que de fato nunca chegasse. Não é fácil imaginar tal cotsa,_ nem mesmo como esperança transcendente, daí o que Unamuno chamou de "o sentimento trágico da vida". Enfim, quem sabe ...

Sem dúvida, a idéia de continuar vivendo de algum modo bom ou mau depois de morrer é algo ao mesmo tempo inquietante e con­traditório. Uma tentativa de não levar a morte a sério, de conside­rá-la mera aparência. Inclusive uma pretensão de rejeitar ou disfar­çar de certa maneira, nossa mortalidade, ou seja, nossa própria hu­ma~idade. É paradoxal chamarmos correntemente de "crentes". as pessoas que têm convicções religiosas, pois o qu~ as c~act~nza principalmente não é aquilo em que elas crêem ( cotsas mistenosa­mente vagas e muito diversas) mas aquilo em que não crêem: o

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mais óbvio, necessário e onipresente, ou seja, a morte. Os assim chamados "crentes" são na realidade os "incrédulos", que negam a realidade última da morte. Talvez a forma mais sóbria de enfrentar essa inquietude - sabemos que vamos morrer mas não podemos imaginar-nos mortos - seja a de Hamlet, na tragédia de William Shakespeare, quando diz: "Morrer, dormir ... talvez sonhar!" De fato, a suposição de uma espécie de sobrevivência depois da morte deve ter ocorrido a nossos antepassados a partir da semelhança en­tre alguém profundamente adormecido e um morto. Creio que, se n.ã~ ~onhássemos ao dormir, ninguém jamais teria pensado na pos­s1b1hdade assombrosa de uma vida depois da morte. Mas se, quan­do estamos quietos, com os olhos fechados, aparentemente ausen­tes, profundamente adormecidos, sabemos que em sonhos viajamos por diferentes paisagens, falamos, rimos e amamos ... por que não haveria de acontecer o mesmo aos mortos? Desse modo, os sonhos agradáveis devem ter dado origem à idéia do paraíso, e os pesade­los serviram como premonição do inferno. Se podemos dizer que "a vida é sonho", como Calderón de la Barca em uma famosa obra teatral, com maior razão ainda cabe afirmar que a assim chamada outra vida - a que haveria para além da morte - também é inspira­da por nossa faculdade de sonhar ...

No entanto, o dado mais evidente sobre a morte é que costuma provocar dor quando se trata da morte alheia mas, sobretudo, cau­sa medo quando pensamos em nossa própria morte. Alguns temem que depois da morte haja algo terrível, castigos, alguma ameaça desconhecida; outros, que não haja nada, e esse nada é para eles o mais aterrador de tudo. Ainda que ser algo - ou melhor, alguém -não careça de incômodos e sofrimentos, não ser nada parece muito pior. Mas por quê? Em sua Carta a Meneceu, o sábio Epicuro ten­ta nos co~vencer de qu,e a morte não pode ser nada temível para quem reflita sobre ela. E claro que os verdugos e horrores infernais são apenas fábulas para assustar os rebeldes, as quais não devem in­quietar ninguém que seja prudente, de acordo com Epicuro. Tam­pouco há o que temer na própria morte, por sua própria natureza, pois nunca coexistimos com ela: enquanto nós estamos, a morte não está; quando a morte chega, nós deixamos de estar. Ou seja, segundo Epicuro, o importante é que indubitavelmente nós morre-

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mos, mas nunca estamos mortos. O temível seria ficar consciente da morte, alguém ficar de algum modo presente porém sabendo que já se foi totalmente, coisa evidentemente absurda e contraditória. Essa argumentação de Epicuro é irrefutável e no entanto não chega a nos tranqüilizar totalmente, talvez porque a maioria de nós não seja tão razoável quanto Epicuro desejaria.

Acaso é tão terrível não ser? Afinal de contas, durante muito tempo não fomos, e isso não nos fez sofrer de modo nenhum. De­pois da morte iremos (supondo que o verbo "ir" seja adequado, nes­te acaso) ao mesmo lugar ou ausência de todo lugar onde estivemos (ou não estivemos?) antes de nascer. Lucrécio, o grande discípulo ro­mano do grego Epicuro, constatou esse paralelismo em alguns ver­sos merecidamente inesquecíveis:

Vê também os séculos infinitos que precederam nosso nascimento e nada são para a vida nossa. Natureza neles nos oferece como um espelho do futuro tempo, por último, depois de nossa morte. Há algo aqui de horrível e enfadonho? Não é mais seguro do que um profundo sonho? 2

Preocupar-nos com os anos e os séculos em que já não estare­mos entre os vivos é tão infundado quanto preocupar-nos com os anos e os séculos em que ainda não tínhamos vindo ao mundo. Nem antes nos doeu não estar nem é razoável supor que depois vá nos doer nossa ausência definitiva. No fundo, quando a morte nos fere através da imaginação - coitado de mim, todos tão felizes des­frutando do sol e do amor, todos menos eu, que nunca mais, nunca mais ... ! - é precisamente agora que ainda estamos vivos. Talvez de­vêssemos refletir um pouco mais sobre o assombro de ter nascido que é tão grande quanto o espantoso assombro da morte. Se a mor~ te é não ser, já a vencemos uma vez: no dia em que nascemos. É o

2. De rerum natura, de Lucrécio, livro III, 1336-1344, trad. esp. de José Mar­chena, col. Austral. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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próprio Lucrécio que fala, em seu poema filosófico, da mors aeter­na, a morte eterna do que nunca foi nem será. Pois bem, nós sere­mos mortais, mas da morte eterna já escapamos. A essa morte enor­me roubamos um certo tempo - os dias, meses ou anos que vivemos, cada instante que continuamos vivendo -, e esse tempo, aconteça o que acontecer, sempre será nosso, dos triunfalmente nascidos, e nun­ca seu, apesar de que depois também devamos, irremediavelmente, morrer. No século XVIII, um dos espíritos mais perspicazes que já houve - Lichtenberg - dava razão a Lucrécio em um de seus céle­bres aforismos: "Por acaso já não ressuscitamos? De fato, provimos de um estado em que sabíamos do presente menos do que sabemos do futuro. Nosso estado anterior é para o presente o que o presente é para o futuro."

Mas também não faltam objeções contra a formulação citada de Lucrécio, e algumas justamente a partir do que foi observado por Lichtenberg. Quando eu ainda não era, não havia nenhum "eu" que sentisse falta de vir a ser; ninguém me privava de nada, uma vez que eu ainda não existia, ou seja, não tinha consciência de es­tar perdendo nada não sendo nada. Porém agora já vivi, conheço o que é viver e posso prever o que perderei com a morte. Por isso hoje a morte me preocupa, isto é, me ocupa de antemão com o temor de perder o que tenho. Além do mais, os males futuros são piores do que os passados porque já nos torturam com seu temor desde ago­ra. Há três anos me submeti a uma operação de rim; suponhamos que eu soubesse com certeza que daqui a outros três preciso me submeter a outra semelhante. Embora a operação passada já não me doa e a futura ainda não me doa, o certo é que as duas não me im­pressionam da mesma maneira: a futura me preocupa e me assusta muito mais, pois está se aproximando, ao passo que a outra está se distanciando ... Mesmo que fossem objetivamente idênticas, subje­tivamente não o são, pois uma lembrança desagradável não é tão in­quietante quanto uma ameaça. Nesse caso, o espelho do passado não reflete simetricamente o dano futuro, e talvez na questão da morte também não.

De modo que a morte nos faz pensar, nos transforma à força em pensadores, em seres pensantes, mas apesar de tudo continua­mos sem saber o que pensar da morte. Em uma de suas Máximas,

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o duque de La Rochefoucauld afirma que "nem o sol nem a morte podem ser olhados de frente". Nossa vocação recém-inaugurada de pensar esbarra na morte, não sabe por onde pegá-la. Vladimir Jan­kélevitch, um pensador contemporâneo, nos repreende por não sa­bermos o que fazer diante da morte e, por isso, oscilarmos "entre a sesta e a angústia". Ou seja, por diante dela procurarmos nos atur­dir para não tremer ou tremermos abjetamente. Existe em castelha­no uma quadra popular que também se inclina à sesta, dizendo mais ou menos isto:

Cuando algunas veces pienso que me tengo que morir, tiendo la manta en el suelo y me harto de dormir.*

É um parco subterfúgio, quando a única alternativa é a angústia. Nem sequer há essa alternativa, pois poderíamos muito bem ir cons­tantemente de uma coisa a outra, oscilando entre o aturdimento que não quer olhar e a angústia que olha mas não vê nada. Belo dilema!

Por outro lado, um dos maiores filósofos, Spinoza, considera que esse bloqueio não nos deve desanimar: "Um homem livre em nada pensa menos do que na morte e sua sabedoria não é uma me­ditação da morte, mas da vida." 3 O que Spinoza pretende ressaltar, se não me engano, é que na morte não há nada positivo a ser pen­sado. Quando a morte nos angustia, é por algo negativo, pelos praze­res da vida que perderemos com ela em caso de nossa própria mor­te ou porque ela nos deixa sem as pessoas amadas, no caso da mort~ alheia; quando a vemos com alívio (não é impossível considerar a morte um bem, em certos casos), também é pelo negativo, pelas do­res e preocupações da vida de que sua chegada nos poupará. Seja ela temida ou desejada, em si mesma a morte é pura negação, aves­so da vida que portanto de um modo ou de outro sempre nos reme-

* Tradução livre: "Quando às vezes penso / que tenho que morrer, / estendo a manta no chão / e me farto de dormir."

3. Ética, de B. Spinoza, parte IV, prop. LXVII. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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te à própria vida, tal como o negativo de uma fotografia está sem­pre pedindo para ser positivado para que o vejamos melhor. De modo que a morte serve para nos fazer pensar, mas não sobre a morte e sim sobre a vida. Como num paredão impenetrável, o pen­samento despertado pela morte ricocheteia contra a própria morte, e volta para quicar repetidamente na vida. Além de fechar os olhos para não a ver ou nos deixar cegar estremecedoramente pela mor­te, oferece-se a nós a alternativa mortal de tentar compreender a vida. Mas como podemos compreendê-la? Que instrumento utiliza­remos para começar a pensar sobre ela?

Dá o que pensar ...

Em que sentido a morte nos torna realmente humanos? Há algo mais pessoal do que a morte? Pensar não é, justamente, tor­nar-se consciente de nossa humanidade pessoal? A morte serve como paradigma da necessidade, inclusive da necessidade lógica? Os animais são mortais no mesmo sentido em que nós o somos? Por que se pode dizer que a morte é intransferível? Em que senti­do a morte é sempre iminente e não depende da idade ou das doen­ças? Pode haver ligação entre os sonhos e a esperança de imorta­lidade? Por que Epicuro diz que não devemos temer a morte? E como Lucrécio apóia essa argumentação? Eles conseguem efetiva­mente nos consolar ou buscam apenas nos dar serenidade? Há algo positivo a pensar na morte? Por que a morte pode nos desper­tar para um pensamento que depois irá centrar-se na vida?

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Capítulo dois

As verdades da razão

A morte, com sua urgência, despertou meu apetite de saber coisas sobre a vida. Quero dar resposta a mil perguntas sobre mim mesmo, sobre os outros, sobre o mundo que nos cerca, sobre os ou­tros seres vivos ou inanimados, sobre como viver melhor: pergun­to-me o que significa toda essa confusão em que estou metid? -uma confusão necessariamente mortal - e como posso me virar nela. Todas essas interrogações me assaltam sempre de novo; pro­curo sacudi-las de mim, rir-me delas, aturdir-me para não pensar, mas elas voltam com insistência depois de breves momentos de tré­gua. E ainda bem que voltam! Pois se não voltassem seria sinal de que a notícia de minha morte só teria servido para me assustar, de que em certo sentido já estou morto, de que só sou capaz de escon­der a cabeça debaixo dos lençóis em vez de utilizá-la. Querer saber,­querer pensar: isso equivale a querer estar verd~deiramente, vivo. Vivo em face da morte, não estonteado e a~estesiado,a espera-la:

Bem, tenho muitas perguntas sobre a vida. Mas ha uma antenor a todas elas, fundamental: como responder-lhes, mesmo que de modo parcial? A pergunta anterior a todas é: como responderei às perg~­tas que a vida me sugere? E, se não puder respond~r-lhes convm­centemente, como conseguirei entendê-las melhor? As vezes enten­der melhor o que se pergunta já é quase uma resposta. Pergunto o que não sei, o que ainda não sei, o que talvez nunca chegue a saber, e às vezes até nem sei exatamente o que estou perguntando. Em re-

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sumo, a primeira de todas as perguntas a que devo tentar responder é esta: como chegarei a saber o que não sei? Ou talvez: como pos­so saber o que é que eu quero saber?, o que estou buscando ao per­guntar?, de onde me pode vir uma resposta mais ou menos válida?

Para começar, a pergunta nunca pode nascer da pura ignorân­cia. Se eu não soubesse nada, ou pelo menos não acreditasse saber alguma coisa, nem sequer poderia fazer perguntas. Pergunto a par­tir do que sei ou acredito saber, porque me parece insuficiente e du­vidoso. Imaginemos que debaixo da minha cama exista, sem que eu saiba, um poço cheio de raras maravilhas: como não tenho nem idéia de que haja um tal esconderijo, é impossível eu me perguntar quantas maravilhas há, em que consistem e por que são tão maravi­lhosas. Por outro lado, posso perguntar-me de que são feitos os len­çóis da minha cama, quantos travesseiros tenho nela, como se cha­ma o marceneiro que a fabricou, qual é a posição mais cômoda para descansar nesse leito e talvez se devo compartilhá-lo com alguém ou é melhor dormir sozinho. Sou capaz de me colocar essas ques­tões porque ao menos parto da base de que estou numa cama, com lençóis, travesseiros, etc. Até poderia também me assaltar a dúvida de que esteja realmente numa cama e não dentro de um crocodilo gigante que me devorou enquanto eu fazia a sesta. Todas essas dú­vidas sobre se estou numa cama ou como é minha cama só são pos­síveis porque pelo menos creio saber aproximadamente o que é uma cama. A respeito do que não sei absolutamente nada (como o suposto buraco cheio de maravilhas debaixo da minha cama) nem sequer posso duvidar ou fazer perguntas.

De modo que devo começar por submeter a exame os conhe­cimentos que creio ter. E sobre eles posso me fazer pelo menos ou­tras três perguntas:

a) como os obtive? (como cheguei a saber o que sei ou creio saber?);

b) até que ponto tenho certeza deles?;

e) como posso ampliá-los, melhorá-los ou, se for o caso, subs­tituí-los por outros mais fiáveis?

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Há coisas que sei porque os outros me disseram. Meus pais me ensinaram, por exemplo, que é bom lavar as mãos antes de comer e que minha cama tem quatro cantinhos e quatro anjinhos que aguar­dam. Aprendi que as bolas de gude de vidro valem mais do que as de barro porque os meninos da minha classe me disseram no re­creio. Um amigo muito sedutor me revelou na adolescência que, quando você se aproxima de duas garotas, deve falar primeiro com a mais feia, para que a bonita vá reparando em você. Mais tarde ou­tro amigo, que viajava muito, informou-me que o melhor restauran­te de Nova York se chama Four Seasons. E hoje li no jornal que o presidente russo Iéltsin é muito afeiçoado à vodca. A maioria de meus conhecimentos provém de fontes como essas.

Há outras coisas que sei porque as estudei. Das vagas lembran­ças da geografia da minha infância tenho a informação de que a ca­pital de Honduras se chama, espantosamente, Tegucigalpa. Meus sumários estudos de geometria me convenceram de que a linha reta é a distância mais curta entre dois pontos, enquanto as linhas para­lelas só se encontram no infinito. Também creio me lembrar de que a composição química da água é H20 . Como aprendi francês quan­do pequeno, posso dizer ''j 'ai perdu ma plume dans le jardin de ma tante" para informar a um parisiense que perdi minha caneta no jar­dim da minha tia (coisa que, na verdade, nunca me aconteceu). Pena que nunca fui muito estudioso, pois poderia ter obtido muito mais conhecimentos pelo mesmo método.

Mas também sei muitas coisas por experiência própria. Assim, comprovei que o fogo queima e que a água molha, por exemplo. Tam-_ bém posso distinguir as diferentes cores do arco-íris, de modo que, quando alguém diz "azul", imagino determinado tom que vi com freqüência no céu ou no mar. Visitei a praça de San Marco, em Ve­neza, e portanto creio firmemente que ela é maior do que a queri­da praça De la Constitución de minha San Sebastián natal. Sei o que é dor porque tive várias cólicas de rim, o que é sofrimento por­que vi meu pai morrer, e o que é prazer porque certa vez recebi um beijo estupendo de uma moça numa certa estação. Conheço o calor, o frio, a fome, a sede e muitas emoções, para algumas das quais nem sequer tenho nome. Também conservo experiência das mudan­ças que produziu em mim a passagem da infância à idade adulta e

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de outras mais alarmantes que vou padecendo ao envelhecer. Por experiência sei também que quando estou dormindo tenho sonhos, sonhos que se parecem assombrosamente com as visões e sensa­ções que me assaltam diariamente durante a vigília .. . de modo que a experiência me ensinou que posso sentir, padecer, gozar, sofrer, dormir e às vezes sonhar.

Pois bem, até que ponto tenho certeza de cada uma dessas coi­sas que sei? Evidentemente, não acredito em todas com o mesmo grau de certeza e nem todas me parecem conhecimentos totalmen­te fiáveis. Pensando bem, qualquer uma delas pode suscitar dúvidas em mim. Acreditar em alguma coisa só porque me foi dita pelos ou­tros não é muito prudente. Eles mesmos poderiam estar equivocados ou querer me enganar: talvez meus pais me amassem demais para sempre me dizer a verdade, talvez meu amigo viajante soubesse pouco de gastronomia ou o sedutor nunca tenha sido um verdadeiro perito em psicologia feminina ... Das notícias que leio nos jornais, nem é preciso falar: é só comparar o que se escreve em uns com o que contam os outros para colocar tudo um pouco em dúvida. Em­bora ofereçam maiores garantias, as matérias de estudo também não são completamente confiáveis. Muitas coisas que estudei quando jo­vem são, hoje, explicadas de outra maneira, as capitais dos países mudam de um dia para outro (será que a capital de Honduras con­tinua sendo Tegucigalpa?) e as ciências atuais descartam inúmeras teorias dos séculos passados: quem pode me afirmar que o que hoje é dado como certo também não será descartado amanhã? Nem se­quer o que eu mesmo posso experimentar é fonte segura de conhe­cimento: quando introduzo um bastão na água, parece que o vejo quebrar-se sob a superficie, embora o tato desminta essa impressão; e eu quase poderia jurar que o sol se desloca ao longo do dia ou que ele não é muito maior do que uma bola de futebol (deitado no chão, consigo tapá-lo apenas levantando um pé!), ao passo que a astrono­mia me dá informações muito diferentes a esse respeito. Além dis­so, às vezes também sofri alucinações e vi miragens, sobretudo de­pois de ter bebido demais ou quando estava muito cansado ...

Tudo isso quer dizer que nunca devo confiar no que me dizem, no que estudo ou no que experimento? De modo nenhum. Mas pa­rece imprescindível revisar, de vez em quando, algumas coisas que

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acredito saber, compará-las com outros conhecimentos meus, sub­metê-las a exame crítico, debatê-las com outras pessoas que pos­sam me ajudar a entender melhor. Em suma, buscar argumentos pa­ra assumi-las ou refutá-las. Esse exercício de buscar e ponderar ar­gumentos antes de aceitar como correto o que creio saber é o que em termos gerais costuma-se chamar de utilizar a razão. Claro que ara­zão não é algo simples, não é uma espécie de farol luminoso que te­mos dentro de nós para iluminar a realidade, nem nada parecido. As­semelha-se antes a um conjunto de hábitos de dedução, sondagens e cautelas, em parte ditados pela experiência e em parte baseados no modelo da lógica. A combinação de tudo isso constitui "uma facul­dade capaz - pelo menos em parte - de estabelecer ou captar as re­lações que fazem com que as coisas dependam umas das outras e se­jam constituídas de uma determinada forma e não de outra" (plagio esta definição - modificando-a a meu gosto - de um filósofo do sé­culo XVII, Leibniz). Ocasionalmente, posso lançar mão de algumas certezas racionais que me servirão como critério para fundamentar meus conhecimentos: por exemplo, a de que duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si ou a de que algo não pode ser ou não ser ao mesmo tempo quanto a um mesmo aspecto (uma coisa pode ser branca ou preta, branca e preta, cinza, mas não ao mesmo tem­po totalmente branca e totalmente preta). Em muitos outros casos devo me conformar com estabelecer racionalmente o mais provável ou verossímil: dados os inúmeros testemunhos que coincidem em afirmá-lo, posso aceitar que na Austrália há cangurus. Não parece insensato assumir que o aparelho com que eu esquento as pizzas na minha cozinha é um forno microondas e não uma nave extraterres-­tre; posso, de algum modo, acreditar que o porteiro da minha casa (que se chama João como ontem, que tem a mesma aparência e a mesma voz que ontem, me cumprimenta como ontem, etc.) é efeti­vamente a mesma pessoa que vi ontem na portaria. Mesmo não es­perando que nenhum acontecimento altere minha crença racional nos princípios da lógica ou da matemática, devo admitir, por outro lado - também por cautela racional -, que em outros campos o que hoje é verossímil ou provável sempre pode estar sujeito a revisão ...

De modo que a razão não é algo que os outros me contam, nem fruto de meus estudos ou de minha experiência, mas um procedi-

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mento intelectual crítico que utilizo para organizar as informações que_ recebo, os estudos que realizo ou as experiências que tenho, aceitando algumas coisas (pelo menos provisoriamente, à espera de n~vos argumentos) e descartando outras, tentando sempre vincular minhas crenças entre si com uma certa harmonia. E a primeira coi­sa que a razão tenta harmonizar é meu ponto de vista meramente pes~o~l ou subjetivo com um ponto de vista mais objetivo ou inter­subjetivo, o ponto de vista a partir do qual qualquer outro ser racio­nal pode consi~erar_ a realidade. Se uma crença minha se apóia em argumentos ~ac10nais , eles não podem ser racionais só para mim. O q~e caractenza a razão é nunca ser exclusivamente a minha razão. Disso ~rovém a universalidade essencial da razão, na qual os gran­de~ füosofos, como Platão ou Descartes, sempre insistiram. Essa umversalidade significa, primeiro, que a razão é universal no senti­ª? de que todos os homens a possuem, mesmo os que fazem dela 0

p10r ~so (os ~ai~ bobos, falando claramente), de modo que com atençao e paciencia todos poderíamos convir nos mesmos argumen­tos sobre ~lgun:as questões; e, segundo, que a força de convicção d?s rac10~mios ~ compreensível para qualquer um, contanto que de­~ida segmr o metodo racional, de modo que a razão pode servir de arbitro para resolver muitas disputas entre os homens. Essa facul­dade (esse ~onjunto de faculdades?) chamado razão é justamente 0

que todos nos , os humanos, temos em comum, e nisso se baseia nos­s~ humanidade cor~1partilhad_a. Por isso Sócrates previne o jovem Fedon contra se deixar mvadir pelo ódio aos raciocínios "como al­guns chegam a odiar os homens. Porque não existe um mal maior do que se tornar ?re~a desse ódio aos raciocínios" (Fédon , 89c-9 l b ). Detestar a razao e detestar a humanidade, tanto a própria quanto a dos outro~, ~enfrentá-la sem remédio como inimigo suicida ...

O objetivo do método racional é estabelecer a verdade isto é a maior concordância possível entre o que acreditamos e o' que d~ fato ocorre na realidade da qual fazemos parte. "Verdade" e "ra­z~o'.' compart~lham a mesma vocação universalista, o mesmo pro­pos1to de vahdez tanto para mim mesmo quanto para o resto de meus semelhantes, os humanos. Antonio Machado muito bem 0 ex­pressou concisamente nestes versos:

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Tu verdad, no: la Verdad. Y ven conmigo a buscaria. La tuya, guárdatela. *

Buscar a verdade por meio do exame racional de nossos co­nhecimentos consiste em tentar nos aproximar mais do real: serra­cionalmente verazes deveria equivaler a chegar a ser o mais realis­tas possível. Mas nem todas as verdades são do mesmo gênero, por­que a realidade abrange dimensões muito diferentes. Se, por exem­plo, digo a minha namorada "sou o pombinho do seu coração" e ao amigo no bar "sou engenheiro de estradas" , posso estar afirmando a verdade nos dois casos, embora poucos pombos tenham chegado a ser engenheiros. As cidades medievais costumavam ter em seus arredores uma esplanada chamada "campo da verdade'', onde se travavam os combates que dirimiam agravos e litígios: supunha-se que o vencedor -Oa luta fosse o detentor da verdade de acordo com o ordálio ou juízo de Deus. Pois bem, uma das primeiras missões da razão é delimitar os diversos campos da verdade em que se divide a realidade da qual fazemos parte. Consideremos, por exemplo, o sol: podemos dizer que ele é uma estrela de magnitude média, um deus ou o rei do firmamento. Cada unla dessas afirmações corres­ponde a um campo diferente de verdade: a astronomia no primeiro caso, a mitologia no segundo e a expressão poética no terceiro. Ca­da uma em seu campo, as três afirmações sobre o sol são racional­mente verdadeiras, mas o equívoco ou engano provém de se mistu­rarem os campos (dando a resposta própria a um campo em outro campo diferente) ou, pior ainda, de não se distinguirem os campos, de se achar que há um só campo para todos os tipos de verdades. Faz tempo ouvi um catedrático de fisica, com a melhor das inten­ções de divulgação, explicar a alguns jornalistas a complexa teoria do big bang como origem fisica do universo. Impaciente, um deles o interrompeu: "De acordo, muito bem, mas ... existe ou não existe um Deus criador?" É um caso flagrante de confusão entre campos de verdade diferentes, porque Deus não é um princípio fisico.

*Tradução livre: "Tua verdade, não: a Verdade./ E vem comigo buscá-la. / A

tua, guarda-a para ti."

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Também os tipos de veracidade a que se pode aspirar variam conforme os campos de realidade que se pretendem conhecer Em matemática, por exemplo, devemos exigir exatidão nos cálcul~s ao passo~que, ~rigor nos ~a.ciocínios é tudo o que podemos esperar, em q~e~toes etica,s ou pohticas (conforme bem observa Aristóteles no m1c10 de sua Etica a Nicômaco ). Em se tratando de poesia, teremos que tentar alcançar a expressividade emocional (mesmo que tão modesta quanto a de nos proclamarmos pombinhos para nossa amada!) ou uma verossimilhança bem fundamentada se tivermos a intenç,ão de compreender o que aconteceu em um período históri­co. Ha verdades meramente convencionais (como a de que 0 fogo pode ser c?amado de "fogo'', ''fire" ou "feu") e outras que provêm de nossas impressões sensoriais (como a de que o fogo queima, seja como for que se chame): muitas verdades convencionais mudarão se mudarmos de país, mas outras não. Às vezes a fiabilidade neces­sá~ia ~ ~uficiente em um campo de verdade é impossível em outro, e e ate mtelectualmente prejudicial exigi-la nele. Enfim, nossa vida abra~ge formas de realidade muito diferentes, e a razão deve nos servir para passar convenientemente de umas para outras.

Ortega Y Gasset distinguiu idéias de crenças: são idéias nossas construções intelectuais - por exemplo, a função fanerógama de cer­t:s plantas ou a teoria da relatividade -, ao passo que nossas crenças sao aquelas certezas que damos por favas contadas, a ponto de nem s~quer pensar nelas (por exemplo, a de que ao transpor o nosso por­tao daremos numa rua conhecida e não numa paisagem lunar ou a de que o ônib~s que esta~os vendo de frente tem outro par de 'rodas na pai:e de tr~s). Temos tais óu tais idéias, em contrapartida estamos em t~rs ou tais crenças. Talvez a estranha tarefa da filosofia seja questionar de vez e~. ~ua~do nossas crenças (daí o incômodo que ~os, causam ~o~ frequencra as perguntas filosóficas!) e tentar subs­trtm-~as por ideias argumentalmente sustentadas. Por isso Aristóte­l~s disse que o com~ço da filosofia é o assombro, ou seja, a capa­cidade de nos maravilharmos diante do que todos à nossa volta con­sideram óbvio e seguro. No entanto, até o mais obstinado dos filó­sofos precisa, para viver cotidianamente, apoiar-se em crenças úteis de senso comum (o que não quer dizer que sejam irrefutavelmente verdadeiras!) sem as colocar constantemente em dúvida ...

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De acordo: a razão nos serve para examinarmos nossos supos­tos conhecimentos, resgatar deles a parcela que tenham de verdade e, a partir dessa base, buscar novas verdades. Passamos assim de crenças tradicionais, meio inadvertidas, para outras racionalmente comprovadas. Mas e a crença na própria razão, que alguns conside­raram "uma velha fêmea enganadora", como Nietzsche dizia da gramática? E a crença na verdade? Por acaso também não poderiam ser ilusões nada fiáveis e fontes de outras ilusões perniciosas? Mui­tos filósofos se fizeram essas perguntas: longe de serem todos eles racionalistas resolutos, ou seja, crentes na eficácia da razão, são muitos os que levantaram sérias dúvidas sobre ela e sobre a própria noção de verdade que ela pretende atingir. Alguns são cépticos, ou seja, colocam em dúvida ou negam redondamente a capacidade da razão para estabelecer verdades conclusivas; outros são relativistas, ou seja, acreditam que não há verdades absolutas mas apenas rela­tivas, conforme a etnia, o sexo, a posição social ou os interesses de cada um, e que portanto nenhuma forma universal de razão pode ser válida para todos; há também os que invalidam a razão por seu avanço trabalhoso, cheio de erros e hesitações, para declarar-se par­tidários de uma forma de conhecimento superior, muito mais intui­tiva ou direta, que não deduz ou conclui a verdade mas a descobre por revelação ou visão imediata. Antes de irmos adiante, devemos considerar sucintamente as objeções desses dissidentes .

Vamos começar pelo cepticismo, que põe em dúvida todos e cada um dos conhecimentos humanos; mais ainda, que duvida até mesmo da capacidade humana de chegar a ter algum conhecimen­to digno desse nome. Por que a razão-não pode dar conta nem dar­se conta de como é a realidade? Suponhamos que estejamos ouvin­do uma sinfonia de Beethoven e que, com papel e lápis, tentemos desenhar a harmonia que ouvimos. Faremos diversos traços, talvez à maneira de picos quando a música for mais intensa e linhas para baixo quando ela se tornar mais suave, círculos quando nos envol­ver de modo agradável e dentes de serra quando nos desassossegar, florzinhas para indicar sons líricos e botas militares ao troar das trombetas, etc. Depois, muito satisfeitos, consideraremos que nes­se papel está a "verdade" da sinfonia. No entanto, haverá alguém ca­paz de saber realmente o que é a sinfonia sem outra ajuda além des-

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ses rabiscos? Pois, d~ mesmo modo, talvez a razão humana fracas­:: ª~-tentar reproduzIT e captar a realidade, de cujo registro ela está ao istante q~anto o desenho da música ... Para o céptico, todo o su­

posto conhecimento humano é pelo menos duvidoso e no final das c~ntas, re:ela-nos pouco ou nada do que pretendem;s saber Não hda conh~c1mento verdadeiramente seguro nem sequer fiável q. uan-

o exammado a fundo.

ra se A prim~i,ra resposta ao cepticismo é óbvia: o céptico conside­" , g~ra e fi:vel ~elo menos sua crença no cepticismo? Quem diz so se1 que nao sei nada" não aceita pelo menos que conhece uma

~e~dade, a de se,u não saber? Se nada é verdade, pelo menos não é ver­a e qu.e ?~da e verdade? Em suma, censura-se o cepticismo or ser

contraditono consigo mesmo: se é verdade que - nh p d d nao co ecemos a

ver a e, pelo menos já conhecemos uma verdade logo n- , d d - · · · ao e ver -

a _e que nao conhecemos a verdade. (A essa objeção o cé tico o-dena resp_o~der ~ue não duvida da verdade, e sim de que :Ossad:os s~m~re d1stmgm-la fiavelmente do falso .. .) Outra contradição· o c~ptico pod~ dar bons argumentos contra a possibilidade de conhe­cu~1ento rac10nal, mas para isso necessita utilizar a razão argumen­tati~a: tem que r~ci?cinar para nos convencer (e convencer a si mes­mo.) de que rac10cmar não serve para nada Pelo v1.sto

d d - · , nem sequer ~~ P_~ ~ escartar a razao sem a utilizar. Terceira dúvida diante da uv~ a. podemos sustentar que cada uma de nossas crenças concre­

:as edfald1vel (ontem acreditávamos que a Terra fosse plana hoie que e re on a e amanhã b ') ' J se ... ~uem sa e. 'mas se nos equivocamos deve-

entender que podenamos acertar, pois, se não há possibilidad de acerto - ou seia d nh · e

~ ' e co ec1mento verdadeiro, embora ainda n~ca tenha_ ~cornd~ -: também não há possibilidade de erro. O p10r do cepti_c1smo_nao e ele nos impedir de afirmar algo verdadei­~~ m_as ~os im~edIT de dizer o que quer que seja falso. Quarta re-

açao, o ma10r mau gosto: quem não crê na verdade de nenhu­ma de nos.sas crenças não deveria ter muito inconveniente em sen-tar-se na linha d tr , d , . o em a espera do próximo expresso ou em saltar

e um setimo an?ar, pois pode ser que o temor inspirado por essas conbd~tas se ba~ere em simples mal-entendidos. Trata-se de um gol­pe a1xo, eu sei.

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De todo modo, o cepticismo aponta uma questão muito inquie­tante: como pode ser que conheçamos algo da realidade, seja pou­co ou muito? Nós, os humanos, com nossos toscos meios sensoriais e intelectuais ... como podemos alcançar o que a realidade é verda­deiramente? É chocante que um simples mamífero possa ter algu­ma chave para interpretar o universo! O físico Albert Einstein, tal­vez o maior cientista do século XX, certa vez comentou: "O mais incompreensível da natureza é que nós possamos compreendê-la, pelo menos em parte." E Einstein não tinha dúvida de que a com­preendemos pelo menos em parte. A que se deve esse milagre? Será porque há em nós uma centelha divina, porque temos algo de deu­ses, mesmo que seja de série Z? Mas talvez não seja nosso paren­tesco com os deuses o que nos permite conhecer, e sim o fato de pertencermos àquilo mesmo a que aspiramos conhecer: somos ca­pazes - pelo menos parcialmente - de compreender a realidade por­que fazemos parte dela e somos constituídos de acordo com princí­pios semelhantes. Nossos sentidos e nossa mente são reais e por isso conseguem, bem ou mal, refletir o resto da realidade.

Talvez a resposta mais perspicaz até hoje ao problema do co­nhecimento tenha sido dada por Immanuel Kant em sua Crítica da razão pura. Segundo Kant, o que chamamos de "conhecimento" é uma combinação do que traz a realidade com as formas de nossa sensibilidade e as categorias de nosso entendimento. Não podemos captar as coisas em si mesmas mas apenas tal como as descobrimos por meio de nossos sentidos e da inteligência que ordena os dados fornecidos por eles. Ou seja, não conhecemos a realidade pura mas apenas como é o real para nós. Nosso conhecimento é verdadeire mas não vai além de onde permitem nossas faculdades. Daquilo de que não recebemos informação suficiente através dos sentidos -que são os encarregados de trazer a matéria-prima de nosso conhe­cimento - não podemos saber realmente nada, e, quando a razão especula no vazio sobre absolutos como Deus, a alma, o Universo, etc., ela se atrapalha em contradições insuperáveis. O pensamento é abstrato, ou seja, ele procede à base de sínteses sucessivas a partir de nossos dados sensoriais: sintetizamos todas as cidades que co­nhecemos para obter o conceito "cidade'', ou das mil formas imagi­náveis de sofrimento chegamos a obter a noção de "dor", agrupan-

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do as características intelectualmente relevantes do diverso. Pensar consiste, portanto, em voltar a descer da síntese mais longínqua aos dados concretos particulares até os casos individuais e vice-versa sem nunca perder o contato com o experimentado nem nos limita; ap~nas à restritiva dispersão de suas anedotas. Essa explicação já esta, de algum modo, presente em Aristóteles e, sobretudo, em Locke. Sem dúvida, a resposta de Kant é muitíssimo mais complexa do que o esboçado aqui, mas o notável de seu genial esforço é ele tentar sal­var ao mesmo tempo os receios do cepticismo e a realidade efetiva de nossos conhecimentos tal como se manifestam na ciência moder­na, que para ele representava o grande Newton.

Também o relativismo coloca em questão que sejamos capazes de alcançar a verdade por meio de raciocínios. Como já foi dito na argumentação racional deve-se conciliar o ponto de vista subje;ivo e.Pessoal com o objetivo ou universal (sendo este último o ponto de v~sta de qualquer outro ser humano que, por assim dizer, "olha por cima d~ ~eu ombro" enquanto estou raciocinando). Pois bem, para os relativistas tal coisa é impossível e meus condicionamentos sub­jetivos sempre se impõem a qualquer pretensão de objetividade uni­versal. Na hora de raciocinar, cada um o faz segundo sua etnia, seu sex~, sua classe social, seus interesses econômicos ou políticos, in­clusive seu caráter. Cada cultura tem sua lógica diferente e cada um sua forma de pensar idiossincrática e intransferível. Portanto, há t~n~as verdades quantas culturas, quantos sexos, quantas classes so­c~ais, quantos interesses ... quantos caracteres individuais! Os que nao falam de verdades mas de verdade e sustentam a pertinência dos versos de Antonio Machado citados anteriormente costumam ser considerados pelos relativistas diversas coisas feias: etnocêntri­cos, logocêntricos, falocêntricos e em geral concêntricos em torno de si mesmos; isto é, gente distraída ou autoritária que toma seu próprjo ponto de vista como perspectiva da razão universal.

E impossível (e sem dúvida indesejável) negar a importância de nossos condicionamentos socioculturais ou psicológicos quando no~ pomos a raciocinar, mas ... será que podemos dizer que eles in­validam totalmente o alcance universal de certas verdades obtidas a partir deles e apesar deles? As descobertas científicas da única mu­lher ganhadora de dois prêmios Nobel, Madame Curie, serão váli-

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das só para as madames e não para os monsieurs? Os japonese~ do século XX deverão desconfiar do valor que tenha para eles a lei da gravidade descoberta no século XVII por um inglês de peruca cha­mado Newton? Nossos antepassados renascentistas europeus terão cometido um equívoco ao mudar a numeração romana, tão própria de sua identidade cultural, pelos algarismos arábicos, muito ma~s operacionais? Terão utilizado uma lógica e uma .ºb~ervação expen­mental da natureza muito diferente da nossa os mdigenas peruanos que descobriram as propriedades febrífugas da quinina .sécul~s ~n­tes dos europeus? As análises de Marx sobre o proletanad.o sa,o m­validadas pelo fato indubitável de ele próprio ter pertenci?o a pe­quena burguesia? Martin Luther King, por ser ~e~ro, ?evena ter re­nunciado a reivindicar os direitos de cidadama iguais para todos, estabelecidos pelos fundadores da Constituição dos Estados Uni­dos, que foram todos brancos, sem exceção? Fin~lme~te, será ur~a verdade racional universal e objetiva a de que nao existem ou nao podem ser alcançadas pelos humanos as verdades universais racio-nalmente objetivas? . .

Parece evidente que o peso dos condicionamentos subjetivos varia grandemente conforme o "campo da verdade'.' que .estejamos considerando em cada caso: quando falamos de mitologia, de gas­tronomia ou de expressão poética, o peso de nossa cultura ou nos­sa idiossincrasia pessoal é muito mais concludente do que quando nos referimos a ciências da natureza ou a princípios da convivência humana. Seja como for, também para determinar até que p.onto nos­sos conhecimentos estão tingidos de subjetivismo necessitamos de um ponto de vista objetivo do qual possamos comparar uns com õs outros ... e todos com uma certa realidade além deles à qual se refe­rem! Enfim, até para desconfiar dos critérios universais de razão e de verdade necessitamos de algo como uma razão e uma verdade que sirvam de critério universal. No entanto, ª. contri~u~~ão mais valiosa do relativismo consiste em sublinhar a impossibilidade de estabelecer uma fonte última e absoluta da qual provenha todo co­nhecimento verdadeiro. E isso não se deve às insuficiências aciden­tais de nossa sabedoria que o progresso científico poderia remediar, mas à própria natureza de nossa capacidade de conhecer. Talvez por isso um teórico importante de nosso século, Karl R Popper, tenha

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insistido em que não existe nenhum critério para estabelecer se al­cançamos a verdade, sem encarregar o tempo de conservar para a epistemologia um critério último e definitivo de verdade (a noção tarskiana

1 de verdade). A única coisa que está a nosso alcance na

maioria dos casos, segundo Popper, é descobrir os sucessivos erros que existem em nossas colocações e purgar-nos deles. Desse modo, a tarefa da razão seria antes negativa (apontar os múltiplos equívo­cos e inconsistências em nosso saber) do que afirmativa (estabele­cer a autoridade definitiva da qual provém toda verdade).

Sejamos modestos: dizer que algo "é verdade" significa que é "mais verdade" do que outras afirmações concorrentes sobre o mes­mo tema, mesmo que não represente a verdade absoluta. Por exem­plo, é "verdade" que Colombo descobriu o continente americano pa­ra os europeus (embora sem dúvida navegantes vikings tenham che­gado antes, mas sem dar a mesma publicidade a sua realização nem tentar a colonização) e é "verdade" que o vinho de Rioja é um ali­mento mais saudável do que o arsênico (embora também possa ser l~tal se tomado em doses excessivas, ao passo que pequenas quan­tidades de arsênico são utilizadas na farmacopéia para fabricar re­médios), etc. Como resumiu muito bem outro grande filósofo con­temporâneo, George Santayana: "A posse da verdade absoluta não se encontra apenas por acaso além das mentes particulares; é in­compatível com o estar vivo, porque exclui toda situação, órgão, in­teresse ou data de investigação particulares: a verdade absoluta não se pode descobrir justamente porque é uma perspectiva." 2 Mas o fato de toda verdade que alcançamos racionalmente responder a uma certa perspectiva não a invalida como verdade, só a identifica como "humana".

Os adversários da razão (ou antes do raciocinar argumental­mente) pertencentes ao último grupo não o são também da verda­de, como acontecia nos dois casos anteriores. Pelo contrário, estes

!. A proposta pelo lógico AJfred Tarski , segundo a qual - por exemplo - "o enunciado 'a neve é branca' é verdadeiro se e apenas se a neve é branca".

2. Los reinos dei ser, de G. Santayana, Prefácio, trad. Francisco González Aramburo, Pondo de Cultura Económica, México. [Traduzido a partir do texto ci­tado pelo autor.]

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crêem na verdade, inclusive na Verdade com maiúscula, eterna, res­plandecente, sem nada a ver com as construções trabalhosas que mediatizam o conhecimento humano: em suma, esta Verdade abso­luta e indiscutível não nos deve nada. Eles também não pensam que se pode chegar a ela pelo laborioso e vacilante método racio~al, mas que é uma Verdade que se revela a nós, quer porque nos .se~a m.os­trada por alguns mestres sobre-humanos (deuses, ancestra~s .ms~1ra­dos, etc.), porque se manifeste a nós em alguma .form~ pn~1~egia~a de visão ou porque apenas seja acessível por me10 de mtmço.es, ~ao racionais, sentimentos, paixões, etc. O curioso é que os parti~anos desses atalhos sublimes para o conhecimento costumam fustigar o "orgulho" dos racionalistas (quando justarr.iente a racio~alidade se caracteriza pela humilde desconfiança de s1 mesma, e dai suas son­dagens, suas laboriosas deliberações, suas provas ~ contra~rov~s) ou ridicularizam sua fé na "onipotência da razão", disparate irrac10-nal no qual jamais acreditou nenhum racionalista em s~u. pl~n? juí~ zo. É claro que a verdade assim revelada - a Verdade v1s10nana - e irrefutável, porque qualquer tentativa de questioná-la derr.ionstra justamente que o incrédulo carece da iluminação necessána para seu desfrute, seja por sua impiedade diante dos Mestre~ ad~quados, seja pelo embotamento das emoções necessária.s p~ra m~1-l~.

E nisso mesmo se baseia, no entanto, a pnnc1pal obJeçao que se pode fazer a ela. Porque essa forma de acesso à Verdade maiús­cula é como que um privilégio de alguns, que os menos ~Afor~a­dos só conseguiriam compartilhar indiretamente por obediencia m­telectual aos iniciados ou ficando à espera de uma revelação seme­lhante. Mas de modo nenhum podem repetir por si mesmos o cami­nho do conhecimento, que se apresenta como inefável e repentino. A Verdade assim alcançada deve ser aceita em bloco, inquestiona­da não submetida ao processo de dúvidas e objeções que são fruto do' exercício racional. O método da razão, por outro lado, é comple­tamente diferente. Para começar, está aberto a qualquer um e não faz distinção entre as pessoas: no diálogo Ménon, Sócrates demons­tra que também um jovem escravo sem nenhuma instrução pode chegar por suas próprias deduções a avançar no. campo da g,eome­tria. A razão não exige nada especial para func10nar, nem fe, nem preparação espiritual, nem pureza de alma ou de sentimentos, nem

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pertencer a determinada linhagem ou a determinada etnia: só pede r:~a ser usada. A revelação escol~e alguns; a razão pode ser esco-

1 a por qu~lquer um, por todos. E o comum da condição humana. Pode-:e fingzr uma. re~elação sublime ou uma intuição emocional m~ nao s~ pode fmgtr o exercício racional, porque qualquer ~ po e repeti-lo conosco ou em nosso lugar: não há conclusão racio­na: se outro (qual~uer outro com vontade de raciocinar) não está fa­cu tado para seguir pelo menos nosso raciocínio e compartilhá-lo ou apontar s~us erros. Diante de tantos veículos particulares supos­tan:_en~e muito ~elozes mas que talvez não saiam de onde ~stão a razao e um serviço público intelectual: um ônibus '

Nesse sentido, a razão não só é um instrumen~o para conhecer c?~º tem relevantes conseqüências políticas. O processo de racio­c1mo - ~rgumentos, dados, dúvidas, provas, contraprovas er -tas ca~c10s~s, refutações, etc. - é tomado do método que ~e~ui~s para d.1scuttr com. no~s.os ~emelhantes os temas que nos interessam. ~u Seja, todo rac10cm10 e social, porque reproduz o procedimento e pergunt~s e re.spostas que empregamos para o debate com os ou­

tros. ~ssa ~ pr~c1sam~n;~ a ?rigem da razão, levando-se em consi­deraça,o .G1org10. Colh: Muitas gerações de dialéticos elaboraram na Grec1a um sistema da razão, do logos, como fenômeno vivo c~n~reto, p~amente oral. ~videntemente, o caráter oral da discus~ s~~ e essencial nela: uma discussão escrita, traduzida em obra lite­ran~, como ~ q~e encontramos em Platão, é um pálido substituto do fenomeno on?mal, seja porque carece da mais ínfima imediatez da presença dos mt.erlocutores, da inflexão de suas vozes, da alusã~ de s:us olhares, Seja porque descreve uma emulação pensada por um s~ homem ~ exclusivamente pensada, por isso carecendo do arbí­tno, da novidade, do i~p.rev.isto, que podem surgir unicamente do encontro verbal de dois md1víduos de carne e osso " 3 R . .

- ' l · ac10cmar nao e a go qu~ aprendemos em solidão, mas algo que inventamos ~o nos comunicar e nos confrontar ~om os semelhantes: toda razão e fundamentalmente conversação. As vezes os filósofos modernos parecem esquecer esse aspecto fundamental da questão.

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"Conversar" não é o mesmo que ouvir sermões ou atender a vo­zes de comando. Só se conversa - sobretudo só se discute - entre iguais. Por isso o hábito filosófico de raciocinar nasce na Grécia, junto com as instituições políticas da democracia. Ninguém pode discutir com Assurbanipal ou com Nero, e ninguém pode conversar abertamente em uma sociedade em que existem castas sociais ina­movíveis. Sem dúvida a Grécia clássica não foi uma sociedade ple­namente igualitária (alguma já o foi, alguma o será algum dia?) e as mulheres ou os escravos não tinham os mesmos direitos de cidada­nia que os varões livres: mas no Banquete platônico Diotima inter­vém como interlocutora, e no Mênon Sócrates ajuda o escravo a ra­ciocinar. E raciocinar conseqüentemente exige a universalidade hu­mana da razão, o não excluir ninguém do diálogo em que se argu­menta. De modo que a razão esteve acima, na Grécia, de seu próprio sistema social, e está sempre acima dos sistemas sociais desiguais que conhecemos, no sentido da verdadeira comunidade de todos os seres pensantes. Afinal de contas, a disposição a filosofar consiste em decidir-se a tratar os outros como se também fossem filósofos: oferecendo-lhes razões, ouvindo as deles e construindo a verdade, sempre em dúvida, a partir do encontro entre umas e outras.

Atualmente difundiu-se uma versão, que me parece errônea, da relação entre a capacidade de argumentação e a igualdade demo­crática. Dá-se por certo que cada um tem direito a suas próprias opiniões e que tentar buscar a verdade (não a sua nem a minha) é uma pretensão dogmática, quase totalitária. No fundo, não há colo­cação mais diretamente antidemocrática do que essa. A democracia se baseia na suposição de que não há homens que nascem para mandar nem outros que nascem para obedecer, mas todos nós nas­cemos com a capacidade de pensar e, portanto, com o direito polí­tico de intervir na gestão da comunidade de que fazemos parte. No entanto, para que os cidadãos possam ser politicamente iguais, é imprescindível que, por outro lado, nem todas as suas opiniões o sejam: deve haver algum meio de hierarquizar as idéias na socieda­de não hierárquica, potencializando as mais adequadas e descartan­do as errôneas ou daninhas. Em resumo, buscando a verdade. Essa é justamente a missão da razão cujo uso todos nós compartilhamos (antigamente, quem estabelecia as verdades sociais eram os deuses,

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a tradição, os soberanos absolutos, etc.). Na sociedade democráti­ca, as opiniões de cada um não são fortalezas ou castelos para que neles nos encerremos como forma de auto-afirmação pessoal: "ter" uma opinião não é "ter" uma propriedade que ninguém tem o direi­to de nos arrebatar. Oferecemos nossa opinião aos outros para que a debatam e por sua vez a aceitem ou a refutem, não simplesmente para que saibam "onde estamos e quem somos". E é claro que nem todas as opiniões são igualmente válidas: valem mais as que têm melhores argumentos a seu favor e as que melhor resistem à prova de fogo do debate com as objeções que lhes sejam colocadas.

Se não quisermos que sejam os deuses ou certos homens privi­legiados que usurpem a autoridade social (ou seja, que decidam qual é a verdade que convém à comunidade), não restará alternativa a não ser submetermo-nos à autoridade da razão como caminho para a verdade. Mas a razão não está situada como um árbitro semidivino acima de nós para resolver nossas disputas; ela funciona dentro de nós e entre nós. Não só temos que ser capazes de exercer a razão em nossas argumentações como também - e isso é muito importan­te e, talvez, mais difícil ainda - devemos desenvolver a capacidade de ser convencidos pelas melhores razões, venham de quem vie­rem. Não acata a autoridade democrática da razão quem apenas sabe manejá-la a favor de suas teses mas considera humilhante ser persuadido por razões opostas. Não basta ser racional, ou seja, apli­car argumentos racionais a coisas ou fatos; não é menos imprescin­dível ser razoável, ou seja, acolher em nossos raciocínios o peso ar­gumental de outras subjetividades que também se expressam racio­nalmente. A partir da perspectiva racionalista, a verdade buscada é sempre resultado, não ponto de partida: e essa busca inclui a con­versação entre iguais, a polêmica, o debate, a controvérsia. Não como afirmação da própria subjetividade, mas como caminho para alcançar uma verdade objetiva através das múltiplas subjetividades. Se sabemos argumentar mas não nos sabemos deixar persuadir, é preciso um chefe, um Deus ou um Grande Especialista que final­mente decida o que é o verdadeiro para todos. Provavelmente mais adiante teremos que voltar a essa questão do racional e do razoável.

Por enquanto, creio que é suficiente o que foi dito. Vamos re­capitular. Acossados pela morte, devemos pensar a vida. Pensá-la

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quer dizer conhecê-la melhor, quanto ao que contém e ao que sig­nifica. Temos múltiplas fontes de conhecimento, mas todas devem passar pelo crivo crítico da razão, que verifica, organiza e busca a coerência no que sabemos ... mesmo que seja provisoriamente. Po­rém a vida está cheia de perguntas. Por qual começar, depois de nos perguntarmos como responder a elas? A primeira de todas bem pode ser esta: quem sou eu? Ou talvez: o que sou eu?

Dá o que pensar ...

Qual é a pergunta anterior às demais perguntas da vida? De onde nos vem o que acreditamos saber? Podemos estar mediana­mente certos desses conhecimentos? O que chamamos de razão? Qual é a relação entre a razão e a verdade? Quanto há de subjeti­vo e quanto há de objetivo na razão? Pode-se compartilhar a razão e a verdade com os outros, talvez com todos? Quais são os argu­mentos dos cépticos e como se pode responder a eles? Em que con­siste o relativismo? Se tudo é relativo, será que o relativismo tam­bém é relativo? Será possível chegar à Verdade sem utilizar a ra­zão, por fé ou por intuição, talvez por um pressentimento? Por que não pode haver uma razão muda e o que tem a ver "conversar " com "raciocinar"? O método racional de chegar à verdade tem im­plicações políticas? Para utilizar corretamente a razão basta ser racional, ou é preciso também ser razoável? Posso ser racional contra meu próximo mas ser razoável contra os outros? A democra­cia consiste no direito de defender publicamente as próprias op i­niões ou na obrigação de considerar todas elas igualmente váli­das? É irracional ou humilhante deixar-se convencer pelos argu­mentos racionais?

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Capítulo três

Eu dentro, eu fora

Muito bem, vamos raciocinar o quanto quisermos mas ... pode­mos realmente ter certeza de alguma coisa? Os cépticos de pura es­tirpe voltam à carga sem se dar por vencidos (afinal, o que caracte­riza o bom céptico é nunca se dar por vencido ... muito menos por convencido!). No capítulo anterior tentamos explicar como chega­mos a sustentar racionalmente certas crenças, mas o céptico radical - talvez escondido dentro de nós mesmos'- continua grunhindo suas objeções. Bem, ele nos diz, de acordo, vocês se conformam em sa­ber por que crêem o que crêem, no entanto, podem me explicar por que não crêem o que não crêem? E se fôssemos apenas cérebros flu­tuando num frasco de algum líquido nutritivo, submetidos por im­piedosos sábios marcianos a um experimento virtual? E se os extra­terrestres nos estivessem fazendo perceber um mundo que não exis­te, um mundo inventado por eles para nos enganar com falsas con­catenações causais, com falsas paisagens e falsas leis aparentemente científicas? E se nos tivessem criado em seus laboratórios, há cinco minutos, com as lembranças aparentes de uma vida anterior inexis­tente (como os replicantes do filme Biade Runner)? Por mais fantás­tica que seja essa hipótese, pelo menos é possível imaginá-la e, se fosse certa, também explicaria tudo o que acreditamos ver, ouvir, apalpar ou lembrar. Podemos então ter certeza de alguma coisa, se nem sequer somos capazes de descartar a falsificação universal?

René Descartes, o grande pensador do século XVII, é conside­rado, plausivelmente, o fundador da filosofia moderna justamente

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por ter sido o primeiro a se colocar uma dúvida de tal dimensão e também por sua forma de superá-la. É claro que Descartes não mencionou os extraterrestres (muito menos populares em seu sécu­lo do que no nosso) nem falou em cérebros artificialmente conser­vados em frascos. Por outro lado, levantou a hipótese de que tudo o que consideramos real pudesse ser simplesmente um sonho - o fi­lósofo francês foi mais ou menos coetâneo do dramaturgo espanhol Calderón de la Barca, autor de A vida é sonho - e que as coisas que acreditamos perceber e os fatos que parecem acontecer fossem ape­nas incidentes desse sonho. Um sonho total, interminável, no qual sonhamos que dormimos e, às vezes, também que despertamos (por acaso não acontece às vezes em sonhos acreditarmos que acorda­mos e rimos de nosso sonho anterior?), cheio de pessoas sonhadas e paisagens sonhadas, um sonho em que somos reis ou mendigos, um sonho extraordinariamente vívido ... mas no final das contas ape­nas um sonho. Não contente com essa suposição alarmante, Descar­tes propôs outra, muito mais sinistra: talvez sejamos vítimas de um gênio maligno, uma entidade poderosa como um deus e má como um demônio, dedicada a nos enganar constantemente, fazendo-nos ver, tocar e cheirar o que não existe, com o único propósito de se di­vertir com nossos permanentes equívocos. De acordo com a primei­ra hipótese, a do sonho permanente, nós nos enganamos sozinhos; de acordo com a segunda, a do gênio malvado, alguém poderoso (alguém parecido com um extraterrestre, embora não o possamos chamar assim uma vez que a própria terra seria um engano) nos en­gana de propósito: em ambos os casos teríamos que nos equivocar irremediavelmente e tomar constantemente o falso por verdadeiro.

Para uma pessoa comum, essas dúvidas gigantescas são muito estranhas: será que Descartes não estava um pouco louco? Como vamos estar sonhando sempre, se a noção de sonho só tem sentido por contraste com os momentos em que estamos acordados? E, além do mais, só sonhamos com coisas, pessoas ou situações co­nhecidas durante os períodos de vigília: sonhamos com a realidade porque de vez em quando temos contato com realidades não sonha­das. Se sempre estivéssemos sonhando, seria igual a não sonhar nunca. Além disso, de onde Descartes foi tirar seu gênio maligno? Se existe um tal deus ou demônio constantemente dedicado a urdir

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uma realidade coerente para nós, por que não o chamamos de "rea­lidade" e pronto? Como ele vai nos enganar se nada nunca é verda­de? Se sempre nos engana, em que seu engano se diferencia da ver­dade? E que diferença faz conhecer um mundo real em que há mui­tas coisas ou conhecer muitas coisas fabricadas por um demônio brincalhão mas real?

Sem dúvida Descartes não estava louco nem desvairava arras­tado por uma imaginação transbordante. Como todo bom filósofo , ele se dedicava nada mais (e nada menos!) do que a formular para si mesmo perguntas aparentemente muito chocantes, mas destina­das a explorar o que consideramos mais evidente, para ver se é tão evidente quanto acreditamos ... à maneira de quem dá muitos pu­xões na corda que deve sustentá-lo para saber se está bem segura antes de se pôr a subir confiantemente por ela. Pode ser que a cor­da pareça estar devidamente amarrada a algo sólido, pode ser que todo o mundo nos diga que podemos confiar nela, mas ... é nossa vida que está em jogo, e o filósofo quer garantir-se o mais possível antes de iniciar sua escalada. Não, esse filósofo não é um louco nem um extravagante (pelo menos não costuma ser, na maioria dos casos!) : só é um pouco mais desconfiado do que os outros. Preten­de saber por si mesmo e comprovar por si mesmo o que sabe. Por isso Descartes chamou de "metódica" sua forma de duvidar: trata­va-se de encontrar um método (palavra que, em grego, significa "caminho") para avançar no conhecimento fiável da realidade. Seu cepticismo queria ser o começo de uma investigação, não a recusa de toda forma de investigar ou conhecer.

Bem, suponhamos que tudo o que eu creio saber não seja mais do que um sonho ou a ficção produzida por um gênio maligno para me enganar. Nesse caso, não me restaria alguma certeza em que fir­mar o pé, apesar de meus intermináveis equívocos? Não haverá algo tão certo que nem o sonho nem o gênio possam transformar em falso? Pode ser que não haja árvores, nem mares, nem estrelas, pode ser que não haja no mundo outros seres humanos semelhantes a mim, pode ser que eu não tenha o corpo nem a aparência fisica que creio ter ... mas sei pelo menos uma coisa com toda a certeza: eu existo. Tanto se engano como se acerto, pelo menos tenho certe­za de que existo. Se duvido, se sonho, indubitavelmente devo exis-

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tir para poder sonhar e duvidar. Posso ser alguém muito enganado, mas também para que me enganem preciso ser. "De modo que, de­pois de ter pensado bem - diz Descartes na segunda de suas Medi­tações - e depois de ter examinado cuidadosamente todas as coisas finalmente devo concluir e ter por constante que esta proposição: e~ sou, eu existo é necessariamente verdadeira, todas as vezes que a pronuncie ou a conceba em meu espírito." Cogito, ergo sum: penso, logo existo. E, quando diz "penso", Descartes refere-se não só à fa­culdade de raciocinar mas também a de duvidar, equivocar-se, so­nhar, perceber ... a tudo o que ocorre mentalmente ou me ocorre. Tu­do podem ser ilusões minhas, salvo que existo com ilusões ou sem elas. Se digo "estou vendo uma árvore diante de mim", posso estar sonhando ou sendo enganado por um extraterrestre brincalhão; mas, se afirmo "creio que estou vendo uma árvore diante de mim e portanto existo", tenho que estar certo, não há deus que possa me enganar nem sonho ou coisa que o valha. Então a corda está bem amarrada e posso começar a escalar.

Quem ou o que é esse "eu" de cuja existência já não cabe duvi­dar? Para Descartes, trata-se de uma res cogitans, uma coisa que pen­sa (entendendo "pensar" no sentido amplo anteriormente menciona­do). Talvez traduzir a palavra latina res por "coisa" não seja muito adequado e fosse melhor traduzi-Ia por "algo" ou até por "assunto", no sentido genérico que também tem em res publica (o assunto ou as­suntos públicos, e Estado): o eu é algo que pensa, um assunto men­tal. Seja como for, por aqui, depois, vieram a Descartes as mais sé­rias objeções à sua colocação. Por que essa "coisa que pensa" e que portanto existe sou eu, um sujeito pessoal? Não poderíamos sim­plesmente dizer "pensa-se" ou "existe-se'', de modo impessoal, como quando afirmamos "chove" ou "é de dia"? Por que o que pen­sa e existe deve ser uma coisa, um algo subsistente e estável, em vez de ser uma série de impressões momentâneas que se sucedem? Exis­tem pensamentos, existe o existir, mas ... por que Descartes chama de "eu" o suposto sujeito que sustenta esses pensamentos e essa existên­cia? Vejo árvores, noto sensações, raciocino e calculo, desejo, sinto medo ... mas nunca percebo uma coisa à qual possa chamar "eu".

Cem anos depois de Descartes, o escocês David Hume diz em seu Tratado da natureza humana: "Quanto a mim, quando penetro

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mais intimamente no que chamo 'eu mesmo', sempre tropeço em uma ou outra percepção particular, de frio ou de calor, de luz ou de sombra, de dor ou de prazer. Nunca posso captar um 'eu mesmo' sem encontrar sempre uma percepção, e nunca posso observar nada mais do que a percepção." Segundo Hume, também aqui existe uma miragem, apesar dos esforços de Descartes para evitar o engano. Assim como creio "ver" um bastão quebrado ao introduzi-lo na água - por causa da refração da luz -, também creio "sentir" uma substância interrompida e estável à qual chamo "eu" depois de uma série sucessiva de impressões diversas que percebo: como sempre noto algo, creio que há sempre um algo que está notando e sentin­do. Mas esse mesmo sujeito pessoal que Descartes parece dar por descartado - perdão por esse trocadilho horrível -, eu não o perce­bo nunca e portanto não é mais do que outra ilusão.

Ou pode ser que não seja uma ilusão, mas uma exigência da linguagem que manejamos. Talvez a palavra "eu" não seja o nome de uma coisa, pensante ou não pensante, mas uma espécie de loca­lizador verbal, como os termos "aqui" ou "agora". Por acaso acha­mos que haja um lugar, fixo e estável, chamado "aqui"? Ou um mo­mento especial, identificável entre todos os outros, chamado "ago­ra"? Dizer "eu penso, eu percebo, eu existo" é como afirmar "pen­sa-se, percebe-se, existe-se aqui e agora". Segundo Kant, a fórmula "eu penso" pode acompanhar todas as minhas representações men­tais, mas o mesmo se poderia dizer de "aqui" e "agora". Não posso expressar-me de outro modo e sem dúvida estou expressando algo ao falar assim, no entanto é um engano supor que essas palavras r;e­velem uma coisa ou pessoa fixa, estável e duradoura. Nesse caso, como em tantos outros, talvez filosofar consista em tentar esclare­cer as confusões produzidas pela linguagem que manejamos. Um deles é supor que a cada palavra deva corresponder no mundo "algo" substantivo e tangível, quando muitas palavras designam apenas po­sições, relações ou princípios abstratos. Outro desvario lingüístico consiste em considerar que todos os verbos são nomes de ações e buscar por isso, em todos os casos, o sujeito que as realiza. Se digo, por exemplo, "eu existo", o verbo existir funciona em minha ima­ginação como se indicasse algum tipo de ação, tal como quando

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digo "eu passeio" ou "eu como". No entanto, e se existir não fosse absolutamente nada que se parecesse com uma ação nem, portanto, necessitasse de um sujeito concreto para realizá-la? E se "existir" funcionasse antes como "é de dia" ou "está chovendo", ou seja, como algo que acontece mas que ninguémfaz?

Provavelmente, ao colocar como irrefutável a existência de seu eu (que também é o nosso, não vamos achar que ele fosse egoísta), Descartes estava pensando em sua alma. Sem dúvida, a alma é uma noção carregada de referências religiosas - cristãs, é claro, mas tam­bém anteriores ao cristianismo - muito respeitáveis e interessantes, embora não tão indubitáveis quanto exigia o filósofo francês ao buscar a certeza definitiva por meio de seu procedimento dubitati­vo. Embora Descartes tente colocar tudo em dúvida, parece admi­tir de supetão e sem maior crítica a noção de "alma" ou "eu" pes­soal, sobre cuja certeza tanto cabe duvidar, seguindo seu próprio método. Os cépticos mais ferrenhos dirão que Descartes não foi de fato um deles, mas apenas um falso céptico, por demais interessa­do em sair de dúvidas o quanto antes ... Segundo Descartes, a alma é uma realidade separada e totalmente distinta do corpo, o qual ela controla de uma cabine de comando situada na glândula pineal (um adminículo de nosso sistema cerebral do qual, em seu tempo, ain­da não se havia descoberto nenhuma função fisiológica concreta). Os neurologistas e psiquiatras atuais sorriem diante desse ponto de vista, mas também suas explicações sobre a relação entre nossas funções mentais e nossQs órgãos fisicos nem sempre são claras nem totalmente convincentes. As pessoas comuns, vocês ou eu (vocês, cada um dos quais também diz "eu"), por acaso renunciaram de fato a acreditar que somos "alma" num sentido bem parecido com o de Descartes?

Voltemos à questão do "eu". Será que podemos despachá-lo como um mero erro de linguagem? Cada um de nós está convenci­do de que de algum modo possuímos uma certa identidade, algo que permanece e dura através do turbilhão de nossas sensações, de­sejos e pensamentos. Estou convencido de que sou eu, em primei­ro lugar para mim, mas também para os outros. Sou eu porque me mantenho através do tempo e porque me diferencio dos outros.

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Creio ser o mesmo que fui ontem, inclusive o mesmo que era há quarenta anos; mais ainda, creio que continuarei sendo eu .enq~an­to viver, e; se a morte me preocupa, é justamente porque s1gmf1ca­rá o final do meu eu. Mas como posso ter tanta certeza de que con­tinuo sendo o mesmo que aquele menino de cinco ou dez anos, imensamente diferente do meu eu atual, fisica e espiritualmente? Será que a memória é que explica essa continuidade? Mas a verda­de é que esqueci a maioria das sensações e incidentes de minha vida passada. Suponhamos que alguém me mostre uma foto minha de décadas atrás, tirada numa festa infantil da qual não me lembro de absolutamente nada. Vejo-a e digo, contente, "sim, sou eu", ape­sar de meu esquecimento radical: embora não me lembre de nada, tenho certeza de que então me sentia tão eu quanto agora e de que essa sensação não se interrompeu. Também creio ter continuado sendo sempre eu todas as noites, enquanto durmo, apesar de raras vezes me lembrar do que sonho - e nunca por muito tempo - ou até durante a completa inconsciência produzida pela anestesia. Mesmo supondo que um acidente me deixasse completamente amnésico, incapaz de me lembrar de coisa alguma de minha vida passada, nem sequer do que me aconteceu ontem, provavelmente continua~ rei pensando - com algumas dúvidas, quem sabe? - que sempre fm o mesmo "eu" que sou agora .. . embora não lembre. .

O psiquiatra Oliver Sacks, em seu livro O homem que confun­diu sua mulher com um chapéu, conta o caso de um paciente seu -um tal Mr Thomson - cuja memória fora destruída pela síndrome de Korsakov e que se dedicava a inventar constante e freneticamen: te novos passados para si . Era sua maneira de poder continuar con­siderando-se "o mesmo" através do tempo, tal como acontece com você e comigo. "O mesmo" quer dizer que, embora evidentemente mudemos de um ano para outro, de um dia para outro, algo conti­nua permanecendo estável sob as mudanças (para que uma coisa mude é necessário que, em certo aspecto, continue sendo a mesma: se não, em vez de mudar, se destrói e é substituída por outra). Mas quantas mudanças uma coisa pode S?frer para continuarmos dizen­do que é a mesma que era, embora transformada? Se a lâmina de uma faca se quebra e eu a troco por outra, continua sendo a mesma

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faca; se troco seu cabo por outro, também é a mesma; mas, se tro­quei a lâmina e o cabo, ela continuará sendo a mesma, embora eu a continue chamando de "minha" faca? E quanto ao futuro? Como posso estar tão convencido de que continuarei sendo "eu" também amanhã e no ano que vem, se ainda estiver vivo, sejam quantas fo­rem as transformações que me ocorram, mesmo que o mal de Alz­heimer destrua minhas lembranças e me faça esquecer até meu nome ou o de meus filhos? E por que estou tão preocupado com esse eu futuro que se parecerá tão pouco comigo?

Em defesa do "eu" cartesiano, no entanto, também se podem ob­jetar certas coisas aos que pensam como Hume. Diz o filósofo es­cocês que, quando entra em seu foro interno para buscar seu eu (para se buscar?) só encontra percepções e sensações de tipo dife­rente: dá com conteúdos de consciência, nunca com a própria cons­ciência. Mas quem ou o que realiza essa importante comprovação? Sem dúvida nem a percepção nem a sensação são o mesmo que comprovar que alguém tem uma sensação ou uma percepção. Uma coisa é notar o frio, por exemplo, e outra é dar-se conta de que se está com frio 1

, ou seja, classificar essa sensação desagradável, ima­ginar seus possíveis efeitos negativos, buscar remediá-la rapida­mente. Há em mim uma sensação de frio e também algo que se dá conta de que estou sentindo isso (não outra coisa) e o relaciona com tudo o que lembro, desejo ou temo, ou seja, com minha vida em seu conjunto. O que sinto ou percebo nesse exato momento não está va­gueando desligado de toda referência ao complexo formado por mi­nhas outras lembranças e expectativas, mas aloja-se imediatamente de maneira mais ou menos estruturada entre elas. Nisso me parece consistir que eu possa chamar de minhas as minhas sensações e percepções: na adesão especial que tenho a elas e também na ne­cessidade de levá-las em conta vinculando-as com outras não me­nos minhas. Se eu notar uma dor de dente, por exemplo, não pode­rei me desinteressar dela ou ignorar suas implicações dizendo: "Puxa, parece que há uma dor de dente por aqui. Espero que não

1. Certamente há um sentido de "dar-se conta" que é equivalente a "notar" - e talvez o mais comum, também em filosofia-, mas aqui quero dizer tornar explícitas as conexões de uma experiência com outras anteriores.

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seja minha!" De um modo ou de outro, não só a notarei como de­verei levá-la em conta. E esse levá-la em conta não é, na maioria dos casos, uma simples reação reflexa, mas uma reflexão pela qual me aproprio do que me ocorre e o conecto ao resto de minhas expe­riências. Em suma, não só tenho consciência - como qualquer ou­tro animal - como também autoconsciência, consciência da minha consciência, a capacidade de objetivar aquilo de que sou consciente e situá-lo em uma série com cuja continuidade me vejo especial­mente comprometido. Não só sinto e percebo como também posso me perguntar o que estou sentindo e percebendo, assim como inda­gar o que significa para mim o que estou sentindo e percebendo.

Talvez a primeira vez que em nossa tradição ocidental aparece um testemunho literário dessa reflexão seja quando, no final da Odisséia, depois de errar longamente, Ulisses chega enfim a seu palácio de Ítaca. Ao ver sua mulher acossada pelos pretendentes despudorados, que estão comendo e bebendo do que é seu, Ulisses se inflama de cólera vingativa. Não avança imprudentemente sobre eles, mas se contém, dizendo: "Paciência, coração meu!" Essa bre­ve recomendação que o herói faz a si mesmo, ao mesmo tempo constatando e acalmando o ardor de sua ira, talvez seja o início de toda nossa psicologia, a primeira amostra culturalmente testemu­nhada de autoconsciência, segundo indicou muito bem Jacqueline de Romilly em um livro precioso, que tem por título justamente as palavras citadas de Ulisses.

Não será a algo semelhante que Descartes se refere quando fala de um eu como res cogitans, ou seja, como uma coisa pensan­te ou conjunto de assuntos pensados, que posso englobar na fórmu- · la "eu sou, eu penso"? E a que se refere, talvez equivocado, cha­mando-lhe "alma", embora essa alma possa ter muito mais buracos e sobressaltos do que sua visão substancialista supõe?

Em todo caso, meu "eu" não só é formado por esse foro inter­no ou mental do qual vimos falando. Essa dimensão interior ou ín­tima também é acompanhada por uma exteriorização do eu no mundo do percebido, fora do âmbito do que percebe: meu corpo. Do mesmo modo que considero minha a minha consciência, embo­ra nela haja lacunas de esquecimento ou interrupções inconscien­tes, também considero meu o meu corpo, mesmo que sofra trans-

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formações, pe;ca_ o cabelo, as unhas ou os dentes, até mesmo que lhe amputem orgaos e membros. Meu corpinho infantil e meu cor­po ~dulto,, crescido ou envelhecido, têm para mim uma continuida­de mefutavel, nem sempre fácil de explicar mas da qual não duvi­do, a não ser co~o experimento teórico .. . desses que a filosofia costuma fazer. Pois bem, o que é meu corpo?

Suponhamos que um daqueles extraterrestres dos quais já fa­lamos antes (só que deste não teremos suspeitas de más intenções apenas curiosidade) venha a nosso mundo e comece a nos estudar' a v.ocê e a mim. Tem à sua frente um ser vivo, talvez até o conside~ re mtehgente ,(~ejamos otimistas!), mas uma das primeiras pergun­tas ~ue ,se fara e: o~de c~meça e onde acaba esse bicho? A pergun­ta nao e absurda: ha mmta gente que, ao ver um bernardo-eremita den~ro de sua concha, não sabe se esta faz parte ou não do caran­gueJ o, n~m é fácil determinar se o casulo da crisálida também deve ser considerado crisálida como o resto do animal que 0 segregou. D? mesmo modo, o extraterrestre pode achar que eu também sou minha casa e que acabo na porta da rua, ou que pelo menos minha poltrona favorita e meu avental fazem parte de mim, ou que 0 ci­~ar:o ~ue estou !llm~ndo é um de meus apêndices e a fumaça cons­ti~i mmha resprraçao malemolente. Você, que tem carro e passa 0 dia de~tro dele, certamente seria classificado pelo marciano entre os terncolas de qu.atro rodas. Mas, se o forasteiro interplanetário chegar a se comumcar conosco, explicaremos a ele que está enga­nado, que nossas fronteiras são estabelecidas por nosso tecido ce­lular e que -por mais que amemos nossas posses e nosso alojamen­to urbano -:- nosso eu vivente só chega até onde abrange a nossa pele ... Ou seja, noss? corpo. Ao que o marciano poderia nos respon­der: Tudo bem, e isso, como vocês chegaram a saber?"

_ Respo?der-lhe adequadamente não é tão óbvio como parece. Nao pode~ran:os explicar-lhe que quando falo em corpo estou me refermdo aqmlo que sempre vai comigo, diferentemente de outras ~osses~ões, pois meu cabelo, minhas unhas, meus dentes, minha sa­liva, ?'1inha urina, meu apêndice, etc., são partes do meu corpo, mui­to minhas, mas apenas transitoriamente. Cedo ou tarde deixam de se: eu sem que eu deixe de ser eu, tal como a serpente se desfaz na pnmavera da roupa velha que é sua pele usada. Nem sequer pode-

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ria mos afirmar para o curioso interplanetário que o corpo é tudo 11q uilo de que não podemos prescindir para continuar vivos, uma vez que às vezes é preciso trocar meu coração por outro para eu não morrer, e certos doentes dependem dos aparelhos de diálise que substituem seus rins, para não falar no ar ou no alimento, que me são corporalmente tão imprescindíveis quanto os pulmões ou o es­tômago e no entanto não fazem parte do meu eu.

Se o extraterrestre estivesse estudando uma mulher grávida, o problema se complicaria mais ainda, pois não é fácil resolver se o fe to é simplesmente uma parte de seu corpo ou algo distinto dele. Quanta complicação! O perspicaz Lichtenberg, no final do século XVIII, disse em um de seus aforismos que "meu corpo é a parte do mundo que meus pensamentos podem mudar". Uma idéia engenho­sa, porque para realizar a maioria das modificações da realidade -mudar uma poltrona de lugar, fazer um carro arrancar, trocar de roupa - preciso agir através de meu corpo, ao passo que me basta desejar ou pensar para levantar o braço ou abrir a boca. E, no en­tanto, não parece ser meu pensamento que me faz respirar ou dige­rir, tampouco minha vontade pode me devolver o cabelo e os den­tes perdidos ... para não falar em mudar a cor de minha pele ou meu sexo! As metamorfoses de Michael Jackson ou dos transexuais ne­cessitam de intervenções externas para serem realizadas. Franca­mente, satisfazer à curiosidade do extraterrestre pode nos colocar numa situação comprometedora ...

No entanto, minha convicção profunda é a de que eu começo e acabo em meu corpo, sejam quais forem os embrulhos teóricos que essa certeza me traga. Talvez, vendo meu nervosismo, o amá-. vel marciano aceite esse ponto para não me irritar mais; então, ele poderia me fazer a pergunta do milhão: "De acordo, você começa e acaba em seu corpo, mas ... devo assumir que você tem um corpo ou que você é um corpo?" Uma tal interrogação poderia ser causa jus­tificada de uma guerra interplanetária! Provavelmente Descartes, que supunha que a alma fosse um espírito e o corpo uma espécie de máquina (segundo ele, os animais - que não têm alma - são meras má­quinas ... que nem sequer podem experimentar dor ou prazer!), res­ponderia ao extraterrestre que eu - o espírito - tenho um corpo e me arranjo com ele o melhor que posso. Segundo uma certa visão

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popular, estamos dentro do nosso corpo à maneira de fantasmas en­cerrados em uma espécie de robôs que devemos dirigir e mover. Até há místicos que acham que o corpo é quase tão ruim quanto um cár­cere e que sem ele nós nos moveríamos com muito maior ligeireza. Na Grécia antiga, os órficos - seguidores de uma religião mitoló­gica muito antiga - faziam um jogo de palavras tenebroso: soma (o corpo)= sema (o sepulcro). A alma está encerrada num zumbi, num cadáver vivo! De modo que a morte definitiva do corpo, que deixa a alma voar livremente (a palavra grega para alma,psiche, também significa "borboleta"), é uma autêntica libertação. Sócrates talvez tenha se referido a isso em suas últimas palavras, conforme nos são citadas por Platão, em Fédon, quando, ao notar que o efeito da ci­cuta estava chegando a seu coração, disse a seus discípulos: "Deve­mos um galo a Esculápio." Havia o costume de oferecer um animal como sacrifício de gratidão a Esculápio, deus da medicina, quando alguém se curava de uma doença: talvez Sócrates achasse que o ve­neno assassino estava prestes a livrá-lo da doença da alma que con­siste em suportar um corpo. A verdade é que, com um sujeito tão irônico, nunca se sabe ...

Mas será que acreditamos realmente estar montados em nosso corpo, e ao volante, como quem pilota um veículo? Se é assim, onde nos localizamos, em que parte do corpo? Descartes falou da glândula pineal, mas a maioria das pessoas não sabe onde fica esse traste. Quando dizemos "eu", costumamos apontar para nosso pei­to, mais ou menos na altura do coração. Se refletirmos um pouco mais, talvez cheguemos à conclusão de que estamos em nossa ca­beça, em um ponto situado no cruzamento da linha que pode ser traçada entre os dois olhos com a que vai de uma orelha a outra. Por isso meu amigo Rafael Sánchez Ferlosio - que às vezes pode ser tão irônico quanto Sócrates - um dia comentou comigo sobre o quanto são insuportáveis as dores de dente, otites, enxaquecas, etc.: "São muito ruins. São tão perto de nós!" Mas não conheço nin­guém que esteja convencido de habitar no dedão de seu pé esquer­do, por exemplo. Em geral, as pessoas que acreditam ter um corpo e estar dentro dele referem-se a um "dentro" que não é o interior da bolsa corporal, cheia de órgãos, veias e músculos, mas a uma inte­rioridade diferente, que está em todas as partes do corpo e em ne-

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nhuma, cuja sede privilegiada só o cérebro poderia aspirar a ser. Além disso, se eu não sou meu corpo, de onde vim para finalmen­te ir parar dentro dele?

Por outro lado, há quem acredite que não temos, mas somos nosso corpo. Aristóteles achava que a alma é a forma do corpo, en­tendendo por "forma" não a figura externa mas o princípio vital que nos faz existir. E a neurobiologia atual pensa quase unanime­mente que os fenômenos mentais de nossa consciência são produ­zidos por nosso sistema nervoso, cujo centro operacional é o cére­bro. De modo que, quando falamos da "alma" ou do "espírito", es­tamos nos referindo a um dos efeitos do funcionamento corporal, assim como quando falamos da luz emitida por uma lâmpada nos referimos a um efeito produzido pela lâmpada e que cessa quando ela se apaga .. . ou queima. Seria ingênuo achar que a luz está den­tro da lâmpada como algo distinto e separado dela, e mais ainda nos perguntar para onde a luz vai quando a lâmpada se apaga. Mas tam­bém parece evidente que a luz da lâmpada traz algo à própria lâm­pada e tem propriedades diferentes das dela: não há luz sem lâmpa­da, mas a luz não é a mesma coisa que o vidro da lâmpada, que seu filamento elétrico, que o fio que a une à tomada da corrente geral, etc. Seria injusto, pelo menos, dizer que a luz não é mais do que a lâmpada ou a central elétrica que a alimenta. Do mesmo modo, em­bora o pensamento seja produzido pelo cérebro, ele não é idêntico ao cérebro. A essa atitude de afirmar que algo - a luz, a mente ... -"não é mais do que" a lâmpada ou o cérebro geralmente é chama­da de reducionismo. Alguns reducionistas estariam de acordo em aceitar que a mente (luz) é um estado do cérebro (lâmpada), ou seja, o primeiro é um "modo" em que está o segundo. Contudo, eles parecem simplificar demais uma realidade que é mais complexa.

Em um romance do escritor inglês Aldous Huxley podemos ler este parágrafo: "O ar em vibração havia sacudido a membrana tympani de lord Edward; a cadeia de ossinhos - martelo, bigorna e estribo - se pôs em movimento, agitando então a membrana da ja­nela oval e levantando uma tempestade infinitesimal no líquido do labirinto. As extremidades filamentosas do nervo auditivo treme­ram como algas em um mar revolto; um grande número de milagres obscuros se efetuaram no cérebro e lord Edward murmurou em êx-

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tase: Bach!"2 Sem dúvida, lord Edward percebeu a música graças aos mecanismos de seu ouvido e às terminações nervosas de seu cé­rebro; se fosse surdo ou se lhe tivessem extirpado determinadas zo­nas da córtex cerebral, teria sido inútil a orquestra se esforçar para tentar lhe agradar. Mas o próprio desfrute da música que estava ou­vindo, sua capacidade de apreciá-la e de identificar seu autor, o sig­nificado vital que tudo isso encerrava para o ouvinte não pode ser reduzido ao simples mecanismo auditivo e cerebral. Não teria ocor­rido sem ele, não existiria sem ele, mas não se reduz meramente a ele. Assim como a luz produzida pela lâmpada não é a mesma coi­sa que a lâmpada, o desfrute musical de Bach não é a mesma coisa que o sistema corporal que capta os sons, embora não ocorresse sem essa base material. Às vezes o produzido tem qualidades dis­tintas, que emergem a partir daquilo que o produz. Por isso Lucré­cio, o grande materialista da antiguidade romana, embora estando convencido de que somos um conjunto de átomos configurados desta ou daquela maneira, observa que os átomos não podem rir, ao passo que nós sim. Somos um conjunto constituído por átomos ma­teriais, mas esse conjunto tem propriedades que os próprios átomos não têm. Somos nosso corpo, não podemos rir nem pensar sem ele, mas o riso e o pensamento têm dimensões acrescidas - espirituais? - que não conseguiremos entender completamente sem ir além das explicações meramente fisiológicas que dão conta de seu funda­mento material imprescindível.

Eu dentro, eu fora . Sou um corpo em um mundo de corpos, um objeto entre objetos, e me desloco, me choco ou esbarro neles; mas também sofro, gozo, sonho, imagino, calculo e conheço uma aven­tura íntima que sempre tem a ver com o mundo exterior, mas que não figura no catálogo da exterioridade. Porque, se alguém pudesse anotar em um livro (ou melhor, em um CD-Rom) todas as coisas que têm volume e ocupam lugar na realidade, até o último de meus átomos figuraria na lista, junto com o Amazonas, os grandes tuba­rões brancos e a estrela Polar ... mas não o que sonhei esta noite ou o que estou pensando agora. De modo que há duas formas de ler

2. Ponto e contraponto, de A. Huxley. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor: Contrapunto, Planeta, Barcelona.]

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111 inha vida e o que sou: por um lado - o lado de fora - pos,so :er julgado por meu funcionamento, avaliando se todos ~s meus o~gaos funcionam devidamente (tal como observamos o piloto lummoso de um eletrodoméstico para saber se está ligado ou desligado), de­terminando quais são minhas capacidades físicas ou mi_nha compe­tência profissional, se me comporto como manda a lei ou co_meto malfeitorias, etc. ; por outro lado - o de dentro - sou um experzn:en­to sobre 0 qual só eu mesmo, em minha interioridade, posso opmar, ponderando 0 que obtenho e o que perco, compar~ndo o que ~ese~ jo com 0 que rejeito, etc. E sem dúvida _meu func10namento mflm decisivamente em meu experimento, e vice-versa.

Quanto ao velho debate entre as relações de minha alma - mas de onde pode brotar a alma a não ser do corpo? - com meu corpo _ acaso posso chamar meu um corpo sem alma? -, talvez eu deva desviar-me por um momento dos filósofos e recorrer aos poetas:

El alma vuelve al cuerpo se dirige a los ojos y choca. - i Luzi Me invade todo mi ser. iAsombro!*

JORGE GUILLÉN,

"Más allá", em Cántico

Assim eu me encontro, invadido e possuído por todo o m_eu ser, que é tanto o olhar interior da alma como a luz do mundo, m­separáveis, indubitáveis. Será essa a certeza que buscou o mestre Descartes?

Depois de tentar explorar meu eu, o que sou, assalta-me outra dúvida: há alguém aí fora? Estou sozinho? Existe algum outr? "eu" além do meu? Evidentemente, constato que ao meu redor ha seres aparentemente semelhantes a mim, mas dos qu~is conheço apenas suas manifestações exteriores, gestos, exclamaçoes, etc. Como pos­so saber se eles também gozam e padecem realmente de uma mte-

*Tradução livre: "A alma volta ao corpo I dirige-se aos olhos I e choca. - Luz!

Invade-me I todo o meu ser. Assombro!"

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rioridade como a minha, se também para eles existem dores, praze­res, sonhos, pensamentos e significados? A pergunta parece arbitrá­ria, até demente - já vimos que muitas perguntas filosóficas soam estranhas em primeira instância! -, mas não é nada fácil de respon­der. Aquele que chega à conclusão de que no mundo não há outro "eu" além do seu - pois de todos os outros só conhece comporta­mentos e aparências que não atestam o respaldo de uma visão inte­rior como a sua própria - é chamado, na história da filosofia, de "solipsista". E houve muitos, acreditem, pois não é fácil refutar essa convicção extravagante. Afinal, como saber que os outros tam­bém têm uma mente como a minha, se por definição minha mente é aquilo a quem só eu tenho acesso direto? O assunto é tão sério que um dos maiores filósofos do século XX, o inglês Bertrand Russel, conta que em certa ocasião ele recebeu uma carta de um solipsista explicando-lhe sua posição teórica e estranhando que, sendo tão ir­refutável, não houvesse mais solipsistas no mundo ...

Na minha opinião, o argumento anti-solipsista mais sólido foi fornecido por outro grande pensador contemporâneo - além do mais, amigo e discípulo de Bertrand Russel -, o austríaco Ludwig Witt­genstein. Segundo Wittgenstein, não pode haver uma linguagem privada: todo idioma humano, para sê-lo, precisa poder ser com­preendido por outros e tem como objetivo compartilhar com eles o mundo dos significados. Em meu interior, desde que começo a re­fletir sobre mim mesmo, encontro uma linguagem sem a qual não saberia pensar, nem mesmo sonhar: uma linguagem que não inven­tei, uma linguagem que, como todas as linguagens, tem que ser for­çosamente pública, ou seja, eu a compartilho com outros seres ca­pazes como eu de entender significados e manejar palavras. Termos como "eu", "existir", "pensar", "gênio maligno", etc., não são pro­dutos espontâneos de um ser isolado, mas criações simbólicas que têm seu lugar na história e na geografia humanas: dez séculos an­tes ou numa latitude diferente ninguém teria feito as perguntas de Descartes. Por meio da linguagem que dá forma a minha interiori­dade posso postular - devo postular - a existência de outras interio­ridades entre as quais se estabelece o vínculo revelador da palavra. Sou um "eu" porque posso me chamar assim diante de um "tu" em uma língua que, depois, permite ao "tu" falar do lugar do "eu". Es-

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tabelecer o âmbito das significações lingüísticas compartilhadas é marcar as fronteiras do humano: não será precisamente aí, no hu­mano, no que compartilho com outros semelhantes capazes de fa: lar e portanto pensar, que poderei encontrar uma resposta melhor a pergunta sobre o que ou quem sou eu?

Dá o que pensar ...

Posso ter certeza realmente de algum de meus conhecimentos? É imaginável que esteja perpetuamente sonhando ou que seja en­ganado por alguma entidade poderosa e maligna? Por que De~c~r­tes formulou essas hipóteses e as, c~nsiderou pm:te ~e uma ~uvzd~ metódica? Ele foi o maior dos ceptzcos ou o przmezr~ ~os zn~e,stz­gadores modernos, em busca ~a certez_a ~ac'.onal~, E z~~ubztavel que "eu" existo ou só é indubita~e_l a exzstencza de "al~? , que po­deria ser impessoal e fragmentarzo? O que era o eu para Des­cartes? O que ele entendia porres cogitans? O "eu"~ uma s~bs­tância estável e pessoal ou poderia ser apenas um efeito localzza­dor da linguagem? Quando pratico a introspecção, encontro um "eu" como Descartes ou apenas percepções, como afirma Hume? Ser consciente é o mesmo que ser autoconsciente? Meu corpo é pura mente que percebe ou também tem um prolo~ga~ento_ n? mundo dos objetos percebidos? Vendo-se de fora, quazs sao os lzmz­tes do meu "eu"? Por que chamo o corpo de "meu"? Sou meu cor­po ou tenho um corpo? Se a alma tem um corpo mas não é o cor­po, que lugar ocupa nele? De onde che_go~ a ~le? Se a alm_a ou ~ . mente é o cérebro, podemos dizer que nao e mazs do que o cerebro. Embora não haja consciência sem cérebro, o cérebro tem as mes­mas propriedades que a consciência? C~mo_ posso estabe_lecer _se há outras mentes no mundo semelhantes a mznha? O que e o solzp­sismo? Poderíamos ser todos solipsistas? Eu inventei a linguagem que encontro em mim? Poderia haver uma linguagem para meu us~ pessoal exclusivo, sem referência a outras mentes semelhantes a

minha?

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Capítulo quatro

O animal simbólico

As sondagens exploratórias em busca de algum conhecimento sólido a respeito do meu eu, da minha mente e/ou do meu corpo me trouxeram muito mais perplexidades do que certezas. Porém, pelo menos minhas poucas certezas deixaram de ser ingênuas rotinas ir­refletidas, ao passo que minhas perplexidades são agora dúvidas fi­losóficas, ou seja, suficientemente estimulantes para que não tenha pressa em me desfazer delas. O mais certo que sei a meu respeito é que sou um ser falante, um ser que fala (consigo mesmo, para co­meçar!), alguém que possui uma linguagem e que portanto deve ter semelhantes. Por quê? Porque não inventei a linguagem que falo -ela me foi ensinada, inculcada - e porque toda linguagem é pública, serve para objetivar e compartilhar o subjetivo, é necessariamente aberta à compreensão de seres inteligentes ... feitos à minha imagem e semelhança. A linguagem é o certificado de pertencimento à mi-· nha espécie, o verdadeiro código genético da humanidade.

Calma, não vamos nos embalar, não queiramos saber rápido demais. Vamos voltar mais uma vez à questão inicial (a filosofia avança em círculos, em espiral, está sempre disposta a reincidir nas mesmas perguntas, mas tomadas uma volta à frente): o que ou quem sou eu? Vamos experimentar outra resposta: sou um ser humano, um membro da espécie humana. Ou, como afirmou o dramaturgo roma­no Terêncio, "sou humano e nada do humano me é alheio". De acor­do - provisoriamente, é claro -, mas então o que significa ser hu­mano? Em que consiste esse "humano" com que me identifico?

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Uns quinhentos anos antes de Jesus Cristo, o grande trágico grego Sófocles inclui em sua obra Antígona uma reflexão do coro sobre o humano a qual merece ser citada por extenso: "Muitas coi­sas existem e, contudo, nada mais assombroso do que o homem. Ele se dirige ao outro lado do mar espumante com a ajuda do tem­pestuoso vento sul, sob as ondas que rugem avançando, e à mais poderosa das deusas, à imorredoura e infatigável Terra, ele trabalha sem descanso, fazendo girar o arado ano após ano, a ará-la com mulos. O homem que é hábil na caça, envolvendo-os com os laços de suas redes, à espécie dos pássaros aturdidos, e aos rebanhos de agrestes feras, e à família dos seres marinhos. Em suas manhãs apo­dera-se do animal do campo que vai através dos montes, e unge com o jugo que rodeia a cerviz o cavalo de espessas crinas assim como o incansável touro selvagem. Ensinou a si mesmo a lingua­gem e o alado pensamento, e também, fecundo em recursos, apren­deu a esquivar sob o céu os dardos dos rudes gelos e os das chuvas inclementes. Nada do porvir o encontra carente de recursos. Só da Morte não terá escapatória. De enfermidades que não tinham remé­~io já cogitou possíveis evasões. Possuindo uma habilidade supe­nor ao que se pode imaginar, a destreza para engenhar recursos al­gumas vezes ele encaminha para o mal e outras para o bem." 1

Nessa célebre descrição acumulam-se todas as características distintivas da espécie humana: a capacidade técnica de controlar as forças naturais, colocando-as a nosso serviço (a navegação, a agri­cultura, e hoje acrescentaríamos as viagens interplanetárias, a ener­gia elétrica e nuclear, a televisão, os computadores, etc.); a habili­dade para caçar ou domesticar a maioria dos outros seres vivos (mesmo que alguns micróbios e bactérias resistam); a posse da lin­guagem e do pensamento racional (Sófocles insiste em que a lingua­gem foi inventada pelos próprios seres humanos para se comunica­rem entre si, não lhes vem de fora como presente de nenhuma di­vindade); o engenho para se guardar das inclemências climáticas (com habitações e roupas); a previsão do futuro e suas ameaças, preparando de antemão remédio contra elas; a cura de muitas doen-

1. Trad. esp. de Asseia Alamillo, levemente modificada pelo autor. Em Trage­dias, de Sófocles, Gredos, Madri. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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ças (embora não da morte, para a qual não temos escapatória possí­ve l); e sobretudo a faculdade de utilizar bem.o~ ma~ tantas destrezas (o que supõe previamente disposição para dis~mgmr o bem_e o mal nas ações ou propósitos, assim como capacidade de opçao entre ·lcs, ou seja: a liberdade). Mas o verdadeiramente mais humano tal­vez seja o próprio assombro do coro sofocli~~ diante d~ humano, essa mescla de admiração, orgulho, responsabihdade e ate de temor que as façanhas e malfeitos humanos (a estes últimos Sófocles não se refere muito aqui, limita-se a dizê-lo, mas não nos esqueçamos de que o fragmento corresponde à narração de uma tragédia estre­mecedora) despertam nos homens. O principal destino dos huma­nos parece ser nos assombrarmos - bem ou mal! - uns aos outros.

Também essa condição de pasmo do homem é destacada, e em tom mais jubiloso ainda, em Oratio pro hominis dignitate ("Discur­so sobre a dignidade humana"), composto no século XV pelo flo­rentino Pico della Mirandola, e que alguns consideram algo como o manifesto humanista do Renascimento. Mas Pico não só confir­ma

0 ponto de vista de Sófocles como acredita ter encontrado a au­

têntica raiz da razão por que o homem é tão portentoso: "Pare~e-1?e ter entendido por que o homem é o ser vivo mais ditoso, o mais dig­no, por isso, de admiração, e qual é a sua condição que .lhe ~ou~e por sorte no conjunto do universo, capa~ d~ de~per~ai:_ a i.nveJa nao só dos brutos como dos astros, das propnas mtehgencias supra­mundanas. Incrível e admirável!"2 A que capacidade portentosa re-

fere-se o entusiasmado humanista? O ponto de vista de Pico é certamente original. Até então, os

filósofos afirmavam que o mérito dos humanos provinha de nossa condição racional, de sermos feitos à imagem e sem~lhança d.e Deus de sermos capazes de submeter os demais seres vivos, e coi­sas p~recidas. Ou seja, enalteciam o homem por ser algo mais que

0 resto do mundo. No entanto, segundo Giovanni Pico, a dignidade

de nossa condição nos vem do fato de sermos algo menos do que os demais seres criados. Com efeito, tudo o que existe, desde o ar-

2. Oratio de hominis dignitate [Oração sobre a dignidade do homem], de Pico della Mirandola. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor: De la dignidad hu-

mana, Editora Nacional, Madri .]

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canjo até a pedra - passando pelas bestas mais ou menos despertas, as plantas, a água, o fogo, etc.-, tem seu lugar pré-fixado por Deus ~a ordem do universo, que deve ocupar sempre, seja alto ou baixo. As coisas deste mundo só resta serem o que são, ou seja, o que Deus, que as fez, quis que fossem. Todas as coisas, todos os seres, estão assim fixados de antemão ... menos o homem.

Quando dispôs ordenadamente todo o universo, o Supremo Autor dirigiu-se ao primeiro homem e - segundo Pico della Miran­dola! - assim lhe falou: "Não te demos nenhum lugar fixo, nenhu­ma fisionomia própria, nenhum oficio peculiar, ó Adão, para que possas ter e possuir por tua própria decisão e escolha o lugar, a ima­gem e os empregos que desejes para ti. Para os demais, uma natu­reza limitada dentro de certas leis que lhes prescrevemos. Tu, não submetido a nenhuma norma estrita, irás defini-la para ti conforme teu arbítrio, ao qual te entreguei. Coloquei-te no centro do mundo, para que mais comodamente olhasses a teu redor e visses tudo o que existe. Não te fizemos nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal, para que tu, como modelador e escultor de ti mesmo, mas a teu gosto e honra, forjes a forma que preferires para ti. Pode­rás degenerar para baixo, com os brutos; poderás alçar-te para jun­to das coisas divinas, por tua própria decisão.'' 3

De modo que, segundo Pico, o assombroso do homem é que se mantenha aberto e indeterminado em um universo no qual tudo tem seu lugar e deve responder sem excentricidades ao que marca sua natureza. Deus criou tudo o que existe mas deixou o homem, por assim dizer, criado pela metade: concedeu-lhe a possibilidade de concluir em si mesmo a obra divina, autocriando-se. De modo que o homem é também um pouco Deus, pois lhe foi outorgada a facul­dade de criar, pelo menos aplicada a si mesmo. Ele pode fazer mau uso dessa discricionariedade e rebaixar-se até o vegetal ou o pétreo; mas também pode se elevar até o angélico, até a própria imortali­dade. Não há dúvida de que Pico della Mirandola é bem mais oti­mista do que Sófocles quanto às capacidades humanas! Mais adian­te (nos capítulos seis e sete deste livro) teremos que voltar a refle-

3. Ibidem, trad. esp. ligeiramente modificada pelo autor. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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tir sobre alguns dos problemas desta visão renascentista do huma­no, tão decidida e até arrogantemente moderna. Mas por enquanto basta-nos aqui destacar a contribuição de Pico à colocação feita, em sua época, pelo coro de Antígona. Segundo o trágico grego, o ad­mirável do homem - para "admirável" ele utiliza um termo que também se pode ler como "estremecedor", "terrível" - é o que o ho­mem pode chegar afazer com o mundo, seja por meio da técnica, da astúcia ou da linguagem racional; mas o humanista florentino destaca sobretudo o que o homem pode fazer consigo mesmo, se­gundo a escolha divinamente livre de seu arbítrio ou sua vontade. E notemos de passagem que, para Pico, a dignidade do homem vem do fato de que ele é o ser mais "ditoso" ou "afortunado" da cria­ção .. . algo, sem dúvida, que Sófocles jamais se atreveria a afirmar!

Em todo caso, parece que sempre se tentou definir o humano por contraposição (e também por comparação) com o animal e com o divino. É humano quem não é nem animal nem deus. Em nossos dias, é bastante evidente que deuses nós não somos, em parte por nossas patentes deficiências e em parte também porque agora se crê nos deuses ou em Deus bem menos do que em outras épocas. Mas, por outro lado, há sérias dúvidas quanto a não sermos animais, e mesmo animais tão especiais ou diferentes dos outros como gosta­ríamos de supor. Que entre os animais e os seres humanos existem semelhanças e até uma certa forma de parentesco, isso é evidente, ainda que apenas pelo esbanjamento de eloqüência que se fez atra­vés dos séculos para deixar claro que não somos animais. Em com­pensação, nunca ninguém se preocupou em provar que não somos pedras ou plantas ... Por outro lado, nas fábulas tradicionais de qua- · se todos os países aparecem os animais exemplificando certas vir­tudes que nós, humanos, gostaríamos de ter: coragem, fidelidade, prudência, astúcia, etc., por exemplo, o touro, o cão, o lince, a águia, etc. E também se manifesta reprovação aos viciosos insultando-os com nomes de animais: o ignorante é chamado de "asno", o sujo ou lascivo de "porco", o covarde de "galinha" e os inimigos de "cachor­ros" ou "ratazanas". Essas comparações positivas ou negativas são uma forma de reconhecer similaridades reveladoras (embora em boa parte imaginárias!), ao mesmo tempo que expressam o temor sempre latente de sermos confundidos com os outros animais.

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No entanto, desde que Darwin tornou pública sua teoria da evolução do homem a partir de outras formas de vida animal, nos­sa filiação zoológica se transformou em doutrina científica acatada quase universalmente. Digo "quase" porque ainda há obstinados que, por razões religiosas, se negam a assumir essa origem pouco ilustre. É curioso constatar que na maioria das crenças religiosas ocorre sempre uma mescla de humildade e orgulho: devemos nos submeter a Deus, mas essa submissão nos vincula à divindade e nos eleva acima dos demais seres naturais. Na época moderna, nós, hu­manos, tivemos de assumir três grandes humilhações teóricas, as três vinculadas à ciência e as três frontalmente opostas a dogmas re­ligiosos. A primeira teve lugar nos séculos XVI e XVII, por obra de Copérnico, Kepler e Galileu: a Terra, o planeta humano, foi deslo­cada do centro do universo e perdeu sua majestosa imobilidade pri­vilegiada para se pôr a girar em torno do Sol. A segunda ocorreu no século XIX: Darwin demonstrou de maneira bastante convincente que nossa espécie é mais uma no conjunto dos seres vivos e que não fomos criados diretamente por nenhum Deus à sua imagem e seme­lhança, mas proviemos por mutações casuais de uma longa série genética de mamíferos antropóides. A terceira humilhação nos foi infligida por Sigmund Freud, no final do século XIX e início do XX, ao transformar nossa própria consciência ou alma em algo com­plexo e nada transparente, traspassado por impulsos inconscientes dos quais não somos donos. Nos três casos perdemos alguma carac­terística de excepcionalidade que nos orgulhava e para a qual se ha­viam buscado fundamentos teológicos: cada vez nos parecemos mais com o que não queremos ser ...

No entanto, por mais que aceitemos hoje a indubitável conti­nuidade entre o animal e o humano, nem por isso parecem ter-se apagado - muito pelo contrário - as diferenças fundamentais que justificam ainda esse "assombro" diante do homem, expressado pelo coro de Sófocles ou por Pico della Mirandola. Conforme mos­tramos no capítulo anterior, uma coisa é dizer que algo - uma ca­pacidade, um ser - provém ou emerge de outro algo - um processo fisiológico, um antropóide -, outra coisa muito diferente é afirmar que ambos são idênticos, que o primeiro não é mais do que o se­gundo ou se reduz a ele. O fato de que nós, seres humanos, somos

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também animais e de que, como espécie, devemos buscar nossos parentes entre as bestas e não entre deuses ou anjos (não caímos do céu, mas brotamos do solo, como já indicaram algumas mitologias) não impede que constatemos traços característicos no humano que determinam um autêntico salto qualitativo com relação a nossos an­tepassados zoológicos. Apontá-los com precisão é importante (em­bora não seja nada fácil), não por anseio de continuar perpetuando assim pedaços de nossa danificada superioridade excepcional do passado, mas para - bem ou mal - compreender melhor o que efe­tivamente somos. De modo que agora as perguntas serão: se não basta nos classificar simplesmente como animais, o que mais nós somos? Há algo que diferencie radicalmente, em profundidade, o animal humano do resto dos animais?

Tradicionalmente tem-se falado do ser humano como "animal racional", ou seja, o bicho mais inteligente de todos. Não é fácil de­finir de forma elementar o que entendemos por razão (embora te­nhamos tentado um pouco no capítulo dois), de maneira suficiente­mente ampla para que os animais não fiquem excluídos dela de an­temão. Conforme muito bem mostrou o filósofo inglês Roger Scru­ton, "as definições da razão e da racionalidade variam grandemente; variam a ponto de sugerir que, enquanto pretendem definir as dife­renças entre homens e animais em termos de razão, os filósofos es­tão na verdade definindo a razão em termos da diferença entre ho­mens e animais"4

• Digamos como primeira abordagem que a razão é a capacidade de encontrar os meios mais eficazes para alcançar os fins que nos propomos. Neste sentido, é evidente que também os animais têm suas próprias razões e desenvolvem estratégias inteli~ gentes para conservar suas vidas e reproduzir sua espécie. É claro que nenhum animal fabrica bombas atômicas nem maneja compu­tadores, mas será por falta de inteligência ou porque não precisam? Podemos dizer que é mostra de pouca inteligência fazer apenas o imprescindível para viver, sem buscar maiores complicações? Eis uma primeira diferença entre a inteligência dos animais e a dos se­res humanos: nos animais, a inteligência serve para obterem o que

4. An Intelligent Person s Guide to Philosophy, de R. Scruton, Duckworth, Londres. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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necessitam; em contrapartida, nos humanos serve para descobrir­mos necessidades novas. O homem é um animal insatisfeito, inca­paz de satisfazer algumas necessidades sem que veja outras surgi­rem no horizonte de sua vida. Em outras palavras: a razão animal busca os melhores meios para alcançar certos fins estáveis e deter­minados, ao passo que a razão humana busca meios para alcançar determinados fins e também novos fins , ainda incertos e indetermi­nados. Talvez seja esta a característica para a qual apontava Pico della Mirando la em sua descrição da dignidade humana ...

Nos animais a inteligência parece estar exclusivamente a ser­viço de seus instintos, que os dirigem para suas necessidades ou fins vitais básicos. Ou seja, sua conduta só responde a um quadro de situações que voltam sempre de novo - necessidade de alimen­to, de acasalamento, de defesa, etc. - , cuja importância provém da vida da espécie e não da escolha de cada um dos indivíduos. A in­teligência a serviço dos instintos funciona com muita eficácia, mas nunca inventa nada de novo. Sem dúvida, alguns primatas desco­brem truques engenhosos para conseguir comida ou se proteger do inimigo e até chegam a difundi-los por seu grupo. Mas a base de seus desejos se atém invariavelmente à pauta instintiva elementar. Os humanos, em contrapartida, utilizamos a inteligência tanto para satisfazer nossos instintos como para interpretar as necessidades instintivas de novas formas : da necessidade de alimento derivamos a diversidade gastronômica, do acasalamento chegamos ao erotis­mo, do instinto de defesa desembocamos na guerra, etc. Nos ani­mais conta muito a espécie, o beneficio da espécie, a experiência geneticamente acumulada da espécie, e muito pouco ou nada os ob­jetivos particulares do indivíduo ou sua experiência privada. Os animais parecem nascer sabendo já muito mais do que aprenderão em sua vida; quanto a nós, humanos, dir-se-ia que aprendemos qua­se tudo e não sabemos quase nada no momento em que nascemos. Para marcar essa diferença, alguns falam em "conduta" animal (pre­determinada) em contraposição a "comportamento" humano (inde­terminado, livre), embora provavelmente essas distinções termino­lógicas não sejam muito esclarecedoras.

A verdade é que os animais acertam com grande freqüência no que fazem sempre que não lhes apresente grandes novidades, ao

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passo que os humanos hesitam e se enganam muito mais, no entan­to sabem responder melhor a mudanças radicais das circunstâncias. Se um determinado animal obtém maus resultados com o instinto de sua espécie, dificilmente consegue substituí-lo por algo que ele mesmo tenha aprendido ou inventado. Isso é exemplificado com muita graça pelo humorista galego Julio Camba, que fala da pesca do "linguarudo", um marisco parecido com a navalha. O linguaru­do vive enterrado na areia das praias, deixando um buraquinho como saída de seu esconderijo. Quando a maré sobe, ele sai da areia para se alimentar. Para pescá-lo, põe-se um grão de sal no bu­raco no qual ele está à espera, fazendo-o acreditar que já está co­berto pela água do mar e provocando sua saída. Conta Julio Cam­ba: "Eu cheguei a desconcertar de tal modo um pobre linguarudo que, quando a maré subia, o infeliz achava que eu lhe tinha coloca­do um grão de sal, e, quando eu colocava um grão de sal, achava que a maré tinha subido. Perdida a confiança em seu instinto, aque­le pobre linguarudo tinha se transformado quase num ser pensante e não acertava nem por acaso."5 Brincadeiras à parte, a verdade é que - diante do dificil aperto daquele linguarudo, para quem Cam­ba foi uma espécie de "gênio maligno" cartesiano - um ser huma­no teria inventado alguma coisa para verificar a subida da maré ... ou teria dado um jeito de mudar de hábitos e de dieta alimentar.

Até aqui estamos comparando animais e humanos do ponto de vista antropocêntrico. Mas o que dizem os que consideram uns e outros de uma perspectiva zoológica? Embora sempre tenhamos gostado de nos auto-elogiar, chamando nossa espécie primeiro de Homo habilis e depois de Homo sapiens, o certo é que nem nossas. habilidades técnicas nem nossa sabedoria são adotadas como crité­rio diferencial por aqueles que nos têm estudado como mais uma variedade de mamíferos superiores. Afinal de contas, compartilha­mos com os chimpanzés noventa e tantos por cento de nossa dota­ção cromossômica! Em 1991, uma equipe de primatólogos (ou seja, estudiosos dos primatas) estabeleceu uma série de características que distinguem os grupos humanos dos nossos mais próximos pa-

5. La casa de Lúculo, de J. Camba, col. Austral , Madri. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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rentes zoológicos6• A primeira delas é que, quer abandonem ou não

seu grupo familiar e quer sejam machos ou fêmeas, os humanos adultos conservam ao longo de toda a vida laços afetivos com seus parentes mais próximos. Os demais primatas, em contrapartida, só permanecem ligados a seus consangüíneos quando continuam fa­zendo parte do mesmo grupo, e essa ligação só existe entre os indi­víduos de mesmo sexo. Entre os primatas, a organização social ou se baseia no casal monogâmico - é o caso dos gibões e dos orango­tangos - ou no bando, em que todas as fêmeas são monopolizadas pelo macho que ocupa a chefia, como entre os gorilas (talvez a úni­ca exceção sejam os inteligentes chimpanzés bonobos, que segundo dizem conseguem desenvolver uma vida tribal de invejável promis­cuidade sexual). Mas só os humanos fazem a monogamia ser com­patível com a vida em grupo, provavelmente porque mantêm rela­ções com seus filhos de ambos os sexos mesmo depois de atingida a maturidade. Também estabelecem relações de cooperação inter­grupal e de especialização para busca de alimentos, defesa, etc., des­conhecidas entre os outros primatas. Porém o mais característico é serem os únicos capazes de conservar relações significativas mesmo na ausência daqueles com quem se relacionam, ou seja, além dos li­mites efetivos do grupo ou tribo. Em suma, são capazes de lembrar­se socialmente dos outros, mesmo que não vivam com eles.

Que conclusões podemos tirar de tudo isso? Tudo indica que os demais primatas - e mais ainda outros animais - vivem como que incrustados ou fundidos no meio que lhes é próprio (George Bataille, em sua Teoria da religião, diz que eles são "como a água na água"). Permanecem como que irremediavelmente aderidos aos semelhantes com quem convivem e ao objetivo de seus instintos, ao que necessitam buscar para sobreviver e se reproduzir. Não são ca­pazes de se distanciar dos que os rodeiam nem do que faz parte das necessidades de sua espécie. Constituem um contínuo com o que necessitam e querem, inclusive com aquilo de que fogem porque os ameaça: não podem ver nada objetivamente, desligado dos anseios

6. De CurrentAnthropology, de Rodseth, Wrangham, Harrigan e Smuts, cita­dos por Adam Kuper em The Chosen Primate, Harvard University Press, Harvard, Mass. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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próprios de sua espécie. O biólogo Johannes von Uexküll dizia que no mundo de uma mosca encontramos só "coisas de mosca" e no mundo de um ouriço do mar só "coisas de ouriço do mar". Em con­trapartida, nós, humanos, parecemos ter a capacidade de nos distan­ciar das coisas, de nos descolar biologicamente delas e vê-las como objetos com suas próprias qualidades, que muitas vezes em nada se referem a nossas necessidades ou temores. Por isso alguns filóso­fos contemporâneos (Max Scheler, entre outros, em seu importan­te livro O lugar do homem no cosmo) distinguem o meio em que habitam os animais do mundo em que vivem os humanos (do qual tentaremos nos ocupar mais no próximo capítulo). No meio animal não há nada neutro, tudo é a favor ou contra o que a espécie requer para se perpetuar; no mundo humano, em contrapartida, cabe qual­quer coisa, até o que nada tem a ver conosco, ou o que já não tem a ver, o que perdemos, o que ainda não conseguimos. Mais ainda, a possibilidade de ver as coisas objetivamente, como reais em si mes­mas (um pensador espanhol contemporâneo, Xabier Zubiri, define o homem como "um animal de realidades"), estende-se até o pon­to de objetivar nossas próprias necessidades e reinterpretar as exi­gências biológicas de nossa espécie ... ou seja, até o ponto de nos distanciar de nós mesmos! Nós, humanos, podemos estudar as coi­sas do mundo em si mesmas e nossa própria condição objetiva como ingredientes do mundo real, ao passo que não parece que seja possível haver animais zoólogos ...

Em alguns zôos há uma parte especial dedicada aos animais que desenvolvem sua atividade durante a noite. Em terrários espe­cialmente condicionados foram recriadas suas condições de vida e, · por meio de jogos de luz, inverteu-se o tempo real, de modo que os bichos acham que é dia quando é noite e vice-versa. Desse modo, os visitantes podem observar os morcegos, corujas e outros seres semelhantes em ação. Pois bem, em um ensaio que adquiriu certa notoriedade, Thomas Nagel se pergunta "como será sentir-se mor­cego"7. Claro, o que intriga Nagel não é o que sentiria ele, ou você ou eu, que somos humanos, voando velozmente, às cegas, com a

7. Incluído em Cuestiones mortales, Fondo de Cultura Económica, México.

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boca aberta, dirigindo-nos por um radar de ultra-som, pendurados num teto pelos pés, de cabeça para baixo, ou nos alimentando de in­setos. A essa pergunta trivial, a resposta não menos óbvia é que nos sentiríamos muito estranhos. Mas essa estranheza viria do fato de não sermos morcegos e, no entanto, agirmos como tais. O que Na­gel se pergunta não é o que pode sentir um humano transformado em morcego, mas como é ser morcego ... para os morcegos (também poderíamos perguntar, por exemplo, o que se sente sendo linguaru­do, sobretudo antes de um Julio Camba chegar e nos enganar). É impossível responder à pergunta, pois para isso deveríamos não apenas ter a dotação sensorial peculiar de morcegos ou linguarudos como tam~ém compartilhar seu meio. E, embora estejamos juntos, nossos me10s são radicalmente diferentes. Em outras palavras: nós estamos presentes em seu meio como interf erências, sem outro sig­nificado além da repulsa ou do obstáculo que implicamos para suas vidas, ao passo que eles habitam nosso mundo como seres indepen­dentes e, portanto, distintos das reações (medo, agrado, etc.) que despertam em nós. O certo, em todo caso, é que nos seria impossí­vel reproduzir em um zoológico imaginário as condições de vida do Homo sapiens, seu meio natural. Nosso meio natural é o conjunto de todos os meios, um mundo feito com tudo o que há e também co?1 o que j.á não há e com o que ainda não há. Um mundo que, alem do mais, muda a cada momento. O modo de vida não só dos morcegos e dos linguarudos, mas também dos chimpanzés e de ou­tros animais que se parecem muito mais conosco, é essencialmente o mesmo, ainda que vivam separados por milhares de quilômetros; em contrapartida, algumas centenas de metros bastam para mudar notoriamente os comportamentos dos grupos humanos, ainda que pertençamos todos à mesma espécie biológica. Por quê?

Sobretudo pela existência da linguagem. A linguagem humana (qualquer linguagem humana) é mais profundamente diferente das chamadas linguagens animais do que a própria fisiologia humana da fisiologia dos outros primatas ou mamíferos. Graças à lingua­gem, para os seres humanos entram em conta as coisas que já não existem ou que ainda não existem ... até as que não podem existir! As chamadas linguagens animais sempre se referem às finalidades biológicas da espécie: a gazela adverte seus semelhantes da aproxi-

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mação do leão ou de um incêndio, os volteios da abelha informam a suas companheiras de colmeia onde e a que distância se encon­tram as flores que devem libar, etc. Mas a linguagem humana não tem um conteúdo previamente definido, serve para falar de qual­quer tema - presente ou futuro - , assim como para inventar coisas que ainda não aconteceram ou referir-se à possibilidade ou impos­sibilidade de que aconteçam. Os significados da linguagem huma­na são abstrações, não objetos materiais. Em uma de suas viagens imaginárias, Gulliver, de Jonathan Swift, encontra um povo cujos habitantes querem ser tão precisos que, em vez de falar, levam em um saco todas as coisas a que querem referir-se e vão tirando-as diante dos outros para comunicar seu pensamento. Esse procedi­mento não deixa de apresentar um problema, pois, como disse o grande lingüista contemporâneo Roman Jakobson, suponhamos que quem vai se referir a todas as baleias do mundo consiga carregar num saco tantos cetáceos; ainda assim, como poderá dizer que são "todas"? No terreno emocional, as dificuldades não são menores: o antílope que faz vigília num rebanho pode alertar os outros da pre­sença temível de um leão, mas como poderia lhes dizer, na ausên­cia do predador, que ele tem medo de leões ou que acha que o leão não é tão feroz como o pintam? Como poderia pregar-lhes a peça de anunciar um leão que não existe ou lembrar o quanto parecia fe­roz o leão da semana passada? No entanto, reflexões desse tipo são parte essencial do que chamamos de o "mundo" dos humanos.

As chamadas linguagens animais (tão radicalmente diferentes da nossa, que, francamente, parece errado chamá-las também de "linguagens") mandam avisos ou sinais úteis à sobrevivência do grupo. Servem para dizer o que precisa ser dito, ao passo que o que caracteriza a linguagem humana é servir para dizer o que queremos dizer, seja o que for. Esse "querer dizer" é justamente o essencial de nossa linguagem. Quando ouvimos uma frase em um idioma desconhecido, nós nos perguntamos o que quererá dizer. Pode ser que não saibamos essa língua, mas sabemos muito bem que esses sons ou essas letras escritas revelam uma vontade de comunicação que os irmana com a língua que nós mesmos manejamos . O fato de compartilhar a posse de uma linguagem (de um querer dizer sem referência vital fechada, que pode falar do possível e do impossí-

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vel, do atual, do passado ou do futuro, que pode tratar inclusive da própria fala - como estamos fazendo aqui, como nenhum outro ani­mal pode fazer - e serve para debater argumentos, ao passo que os animais avisam ou ameaçam, mas não "discutem") é a característi­ca mais própria de nossa condição (ao lado de nos sabermos mor­tais): tem muito mais importância isso que nos assemelha a qual­quer outro ser humano, a capacidade de falar, do que o que nos se­para, a utilização de idiomas diferentes.

Esse "querer dizer" é decisivo até na aprendizagem da própria linguagem. Os estudiosos que tentaram ensinar a chimpanzés rudi­mentos de comunicação lingüística por meio de cartões com dese­nhos (às vezes com resultados notáveis, como os obtidos pelos Pre­mack com sua famosa macaca Sarah) mostram sempre a falta de iniciativa simbólica dos primatas e seu desinteresse pelo que são trabalhosamente forçados a aprender. Chegam a dizer coisas apesar de si mesmos, estimulados por recompensas, mas sem mostrar ne­nhum gosto pessoal pela habilidade adquirida. O que lhes interessa não é se comunicar, mas o que lhes é dado para se comunicarem. As crianças, em contrapartida, se lançam sobre a possibilidade de co­municação que as palavras lhes abrem, não aprendem de maneira meramente receptiva, mas participam ativa e atropeladamente de seu próprio adestramento verbal, como se estivessem já fervilhando de coisas para dizer e lhes faltasse tempo para saber como. Diferen­temente de ler ou escrever, nenhuma criança resiste a aprender a fa­lar nem é preciso lhe oferecer nenhum prêmio por realizar o que, pensando bem, não é uma proeza pequena. Na primeira oportuni­dade vê-se despertar nas crianças a intenção de falar, que é exata­mente o que falta aos outros primatas, por mais espertos que sejam.

Dir-se-ia que o ser humano tem o propósito de comunicar-se mesmo antes de dispor dos meios. Talvez o único exemplo relativa­mente contrário seja o menino criado entre animais no Aveyron, que Jean Itard, pedagogo do século XVIII, tentou ensinar a falar, o que pode indicar que a primeira vontade de comunicação humana é recebida pelo fato de crescer entre humanos. Nada mostra melhor esse entusiasmo pela linguagem por parte das crianças quando co­nhecem o mundo comunicável que lhes abre a palavra do que os próprios erros cometidos na aprendizagem, os quais não demons-

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tram falta de memória ou atenção mas, pelo contrário, uma vee­mência espontânea que se adianta ao que lhes é ensinado demasia­do lentamente. Sánchez Ferlosio conta que sua filha, quando pe­quena, ao abrir uma maçã perfurada por bichos, disse que ela tinha "tubulações". Essa ingenuidade não revela um equívoco torpe, mas a associação brilhante entre significados que tenta abrir caminho expressivo a uma velocidade maior do que a que se emprega para aprender o vocabulário ...

Como já dissemos, o que caracteriza a linguagem humana não é permitir expressar emoções subjetivas - medo, ira, prazer e outros movimentos anímicos que também costumam revelar-se por gestos e atitudes, como pode fazer qualquer outro animal-, mas objetivar um mundo comunicável de realidades determinadas em que outros participam junto conosco. Às vezes se diz que um muxoxo ou um en­colhimento dos ombros podem ser mais expressivos do que qualquer mensagem verbal. Talvez sejam mais expressivos daquilo que nos acontece interiormente mas nunca comunicam melhor o que ocor­re no exterior. A principal tarefa da linguagem não é revelar meu eu para o mundo mas ajudar-me a compreender e participar do mundo.

Graças à linguagem, nós, humanos, não habitamos simples­mente um meio biológico mas um mundo de realidades indepen­dentes e significativas mesmo quando não se encontram efetiva­mente presentes. Como esse mundo que habitamos depende da lin­guagem que falamos, alguns lingüistas (Edward Sapir e Benjamin L. Whorf são os que mais se destacam) supuseram que cada um dos idiomas abre um mundo diferente, donde alguns relativistas atuais deduzem que cada grupo de falantes tem seu próprio universo, mais ou menos fechado para quem não conhece sua língua. Mas parece que eles exageram bastante. O antropólogo Rosch nos traz a esse respeito um experimento interessante em seus trabalhos sobre os dani da Nova Guiné. Esse povo fala um idioma em que há apenas dois termos para cor: um nomeia os tons intensos e quentes, outro os pálidos e frios. Rosch submeteu-os a uma prova, que consistia em identificar quarenta amostras de cor e claridade diferentes, pri­meiro nomeando cada uma delas e depois voltando a identificá-las entre as outras, após um breve intervalo. Os dani tiveram dificulda­de em nomear cada um dos matizes que lhes eram apresentados,

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mas não tiveram problema na hora de voltar a reconhecê-los entre os ou_tros. A linguagem - toda linguagem, qualquer idioma - nos penmte ter um mundo, mas uma vez adquirido esse mundo ela não o fecha às contribuições de nossos sentidos e muito menos à vonta­de de compreender e nos comunicar com nossos semelhantes. Por isso o que há de mais humano em um idioma é que o essencial de seus ~onteúdos pode ser traduzido para qualquer outro: não há que­rer dizer sem querer entender e fazer-se entender. ..

Sem dúvida a linguagem humana também é cercada de enig­mas ... como tudo o que nos interessa de verdade! O primeiro deles é a própria origem da linguagem. Se o que distingue os seres huma­nos é a palavra, como chegamos a obtê-la? A linguagem foi inven­tada pelos primeiros humanos? Ou então já eram humanos desde antes de tê-la, mas humanos sem linguagem, o que contradiz tudo o que sabemos hoje sobre nossa espécie. Foram primatas pré-huma­nos os mventores da fala? Mas como poderiam esses animais de­senvolver um mundo simbólico tão distante da animalidade como tal, façanha que parece requerer a inteligência plenamente evoluída que supomos brotar justamente do intercâmbio lingüístico? Enfim ~e é a lingua~em que nos faz humanos, os humanos não podem te;. mve~tado a linguagem ... mas é mais incrível ainda que ela tenha sido mventada por outros animais, ou que nos tenha sido ensinada por extraterrestres chegados há milênios (como esses extraterres­tres teria~ começado a falar?) ou deuses com gosto pela gramáti­ca! O mais sensato - embora também não seja muito esclarecedor - é supor que tenha ocorrido uma interação entre começo da lingua­gem e começo da humanidade: alguns gritos semi-animais foram se tra~sformando em palavras e ao mesmo tempo certos primatas su­penores foram se humanizando cada vez mais. Uma coisa influiu s~bre a outra e vice-versa. No final do século XIX, o grande lin­gmsta Otto Jespersen supôs que, no princípio, o que houve foram exclamações e~otivas ou talvez frases rítmicas, musicais, que ex­pressavam sentimentos ou anseios coletivos (Jean-Jacques Rous­sea~, . no século XVIII, já havia insinuado algo parecido): 0 passo dec1s1vo, segundo Jespersen, foi quando "a comunicação prevale­ceu sobre a exclamação". Caberia perguntar: "E como isso aconte­ceu? Pois é justamente isso que gostaríamos de saber .. . "

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Em todo caso, fica evidente que tinha razão Ernst Cassirer -outro pensador contemporâneo dos mais notáveis - ao afirmar que "o homem é um animal simbólico" 8

• O que é um símbolo? É um signo que representa uma idéia, uma emoção, um desejo, uma for­ma social. E é um signo convencional, combinado por membros da sociedade humana, não um sinal natural que indica a existência de outra coisa, como a fumaça indica onde há fogo ou as pegadas de uma fera indicam a fera que passou por ali. Nos símbolos os ho­mens entram em acordo para referir-se a alguma coisa ou comuni­car algo, por isso devem ser aprendidos e por isso, também, mudam de um lugar para outro (o que não acontece com sinais, como a fu­maça ou as pegadas). As palavras ou os números são os exemplos mais claros de símbolos, mas de modo nenhum são os únicos. Tam­bém certos seres ou objetos podem ser carregados de valor simbó­lico pelo homem : a árvore de Guernica, por exemplo, é uma plan­ta como as outras e, além disso, o símbolo dos direitos do povo bas­co; a luz verde e a luz vermelha de um semáforo representam a au­torização para atravessar a rua ou a ordem de esperar; a falecida Lady Di transformou-se, para muitos, num símbolo de diversas vir­tudes, etc. Qualquer coisa natural ou artificial poderá ser um sím­bolo se quisermos que o seja, mesmo que não haja nenhuma rela­ção aparente nem semelhança direta entre o que simboliza material­mente e o que é simbolizado: o fato de uma flecha indicar o cami­nho a seguir talvez pudesse ser deduzido por quem soubesse como as flechas voam, mas ninguém será capaz de adivinhar por si só que o preto é a cor do luto (com efeito, em alguns países orientais é o branco) ou que "cão", "chien" e "dog" são nomes para a mesma es­pécie animal. Os símbolos referem-se apenas indiretamente à reali­dade física e, no entanto, apontam diretamente para uma realidade mental, pensada, imaginada, feita de significados e de sentidos, na qual os humanos habitam exclusivamente como humanos e não <eomo primatas mais dotados ou menos dotados. Os mitos, as reli­giões, a ciência, a arte, a política, a história, por certo também a fi­losofia ... tudo são sistemas simbólicos, baseados no sistema simbó-

8. Antropologia filosófica, de E. Cassirer. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor: Antopologíafilosófica, Pondo de Cultura Económica, México.]

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lico por excelência, que é a linguagem. A própria vida, que tanto apreciamos, ou a morte, que tanto tememos, não são apenas aconte­cimentos fisiológicos, mas também processos simbólicos: por isso alguns se dispõem a sacrificar sua vida fisica em defesa de seus sím­bolos vitais, e há mortes simbólicas que tememos ainda mais do que o mero falecimento de nosso corpo. Como disse um poeta, Charles Baudelaire, habitamosforêts de symboles*: as selvas humanas nas quais vagamos são feitas de símbolos.

Nossa condição essencialmente simbólica é também a base da importância da educação em nossas vidas. Há coisas que podemos aprender por nós mesmos - por exemplo, que o fogo queima, que a água molha -, mas os símbolos nos têm que ser ensinados por ou­tros humanos, nossos semelhantes. Talvez por isso sejamos os pri­matas com infância mais prolongada, porque precisamos de muito tempo para conhecer todos os símbolos que depois irão configurar nosso modo de existência. De certo modo, sempre continuamos sendo crianças, porque nunca deixamos de aprender símbolos no­vos .. . E o desenvolvimento da imaginação simbólica determina nossa forma de ver tudo, a ponto de às vezes acreditarmos desco­brir símbolos até onde nenhum acordo humano pôde estabelecê­los. Como nossa principal realidade é simbólica, às vezes somos tentados a acreditar que todo o real é simbólico, que todas as coi­sas se referem a um significado oculto que só podemos vislumbrar. Em Moby Dick, a obra-prima de Herman Melville, quando um membro de sua tripulação repreende o capitão Ahab por perseguir o cachalote branco como se este fosse a encarnação do Mal, apesar de se tratar apenas de um animal sem desígnio racional, Ahab res­ponde: "Todos os objetos visíveis, homem, não são mais do que máscaras de papelão, mas em todo acontecimento, no fato vivo, há sempre algo desconhecido, embora raciocinante, que projeta sua sombra de trás das máscaras que não raciocinam. Se o homem quer golpear, que golpeie através da máscara! Como pode o prisioneiro abrir caminho se não através da parede? Para mim, o cachalote branco é essa parede, que se encontra diante de mim. Às vezes pen­so que ela é a única coisa que existe ... " Para os ouvidos sensatos do

* Em francês no original: "florestas de símbolos". (N. da T.)

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contramestre Starbuck, essas palavras de Ahab soam como loucu­ra. E esse é o grande problema: será que podemos chegar a saber totalmente o que é simbólico e o que não é, até onde chega a con­venção, onde acaba o que tem significado interpretável e onde co­meça o que não pode ter mais do que simples descrição ou explica­ção? Pois em delimitar bem esses campos pode estar a diferença en­tre o sensato e o demente ou alucinado.

Voltaremos adiante mais extensamente às questões colocadas por esse animal simbólico a cuja estranha espécie pertencemos (ca­so você, leitor, seja também humano como eu, o que deduzo do fato de me estar lendo agora). Mas talvez antes seja preciso perguntar­se por esse próprio mundo em que vivemos simbolicamente. De­pois de ter tentado responder dubitativamente às perguntas "quem sou?, quem somos?", às quais teremos que voltar, vamos passar por um momento a outras interrogações: onde estamos?, como chega­mos aqui?, o que é o mundo?

Dá o que pensar ...

Por que a linguagem é a prova de que não sou o único ser pen­sante que existe? O que quero dizer ao afirmar que pertenço à es­pécie humana? Em que sentido Sófocles diz que o homem é o mais admirável que existe sobre a terra? Jiócê acha o homem só algo es­tupendo, ou também algo terrível e trágico? Qual é a originalidade do humanismo de Pico della Mirando/a? O homem é grande pelo que tem de mais ou pelo que tem de menos em comparação com es outros seres vivos? Nós, humanos, tememos que nos confundam com os animais? Quais são os argumentos que demonstram nosso parentesco com eles? A zoologia basta para compreender o huma­no? Em que nossa inteligência difere da inteligência dos outros bi­êhos? Somos mais inteligentes do que eles? Estamos mais satisfei­tos do que eles com o que obtemos? Há diferença entre "conduta" animal e "comportamento" humano?, entre habitar em um "meio" e ter um "mundo"? Podemos ter idéia do que seja ser um morcego ou um linguarudo? Se no meio animal só há seres ou coisas presen­tes, cabem no mundo humano os seres e as coisas ausentes, as pro-

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váve~s, as impossíveis? Em que a linguagem humana se diferencia das lzngu,agens animais? Uma e as outras são "linguagens " no mes­mo .se.ntido da palavra? Por que o que os humanos "querem dizer" é m.azs zmporta.nte do que o que eles dizem? O que caracteriza a apren­dizagem da lzngu,agem pelas crianças? Por que somos "animais sim­bólicos "? Os símbolos são naturais ou convencionais? "Símbolo" e "palavra" são a mesma coisa? A linguagem serve para nos expres­sarmos ou para nos comunicarmos? Cada linguagem tem seu mun­do próprio, incomp.reensível para os outros? Podemos achar que talvez todas as realzdades que existem no mundo sejam símbolos?

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Capítulo cinco

O universo e seus arredores

Ao homem não basta fazer parte da realidade: ele precisa tam­bém saber que está em um mundo e se pergunta imediatamente como será esse mundo em que não só habita mas do qual também faz parte. Pois em certo sentido esse mundo me pertence (é meu mundo) mas também eu lhe pertenço, a espécie humana inteira lhe pertence e brotou dele como qualquer outro de seus componentes. O que é um "mundo"? Um entorno de sentido, um contexto dentro do qual tudo mantém uma certa relação e é relevante de modo ex­plicável. Para começar, a idéia de "mundo" tem vários níveis, des­de o mais próximo e aparentemente trivial até o mais opressivo e cósmico. No degrau mais baixo está o que cada um de nós costuma chamar coloquialmente de "meu mundo" ou até "meu mundinho", ou seja, o âmbito da família, o grupo de amigos, os lugares de tra­balho e os de diversão, os rincões que nos são mais usuais ou mais queridos, o lar. Um degrau acima está meu ambiente social e cultu­ral, os que são "como eu", embora eu mal os conheça ou não os co­nheça absolutamente. Continuo subindo e passo a meu país, a co­piunidade nacional à qual pertenço, a área internacional na qual mi­nha comunidade se integra, inclusive a humanidade cuja condição simbólica eu compartilho, o mundo do humano. Depois já saio do mundo afetivo, sociológico, especificamente humanista e passo à escala planetária: meu "mundo" é esta Terra na qual nascemos e morremos, o planeta azul de mares e florestas no qual convivemos com tantos outros seres vivos ou inanimados, o que o bom E. T. te-

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ria chamado (caso fosse "T." e não "E. T.") comovedoramente de "minha casa!". E, mais além, nosso mundo também é o sistema so­lar, já parcialmente visitado por exploradores ou instrumentos hu­manos, e a _\'ia Láctea, na qual nosso sol está incluído. Depois o mundo contmua transbordando para o gigantesco, o remoto e o des­conhecido, carrega-se de novas estrelas, galáxias, nebulosas, bura­cos negros, matéria e antimatéria ... até deixar de ser "mundo" e se ~ran~formar em universo. O lugar em que estão todos os lugares, o amb1to que abrange tudo o que existe, sobre cuja imensa maioria por certo nada sabemos.

Não é vertiginosa essa sucessão de "mundos", cada um dos quais está dentro de outro mais amplo, como as bonecas russas ou as caixas chinesas? Da minha sala de estar ou da cafeteria onde tomo café da manhã até os confins do espaço sideral, cujo suposto silêncio espantava Pascal, conforme confessou esse atormentado pensador do século XVII! Do meu "mundinho" ao universo de to­dos e de tudo! E o mais notável dessa sucessão de mundos, diga-se de passagem, é que os mais estreitos e reduzidos são, no entanto, os que mais me importam. Preocupa-me muito mais o vazamento de gás em minha casa ou o terremoto em meu país do que as colossais co?flagrações d,o~ astros cujo resplendor levará séculos para chegar a~e os observatonos da Terra ... se é que algum dia irá chegar! Po­re1?, apesar dessa perspectiva irremediavelmente provinciana, não deixo de ter consciência também de que faço parte do Universo com maiúscula. E não menos irremediavelmente me pergunto coi­sas sobre ele: do que é feito?, é finito ou infinito?, como começou?, algum dia irá acabar?, estava previsto que nós, os humanos, e por­tanto eu mesmo, fôssemos aparecer um dia em tão fabuloso cená­rio? Etc., etc.

As interrogações sobre o universo são, sem dúvida, as primei­ras que se fizeram os filósofos mais antigos (que ainda nem sabiam em que consistia ser "filósofo"!). Certamente eles não começaram perguntando-se por seu "eu" como se fez neste livrinho culpavel­mente moderno, pela mesma razão por que as crianças começam perguntando quanta água há no mar ou por que as estrelas não caem, e não "quem sou eu?". A curiosidade assombrada, que se­gundo Aristóteles é o primeiro incentivo para filosofar, é desperta-

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da antes pelo mundo do que pela questão sobre que diabo estou fa­zendo nele. Nos velhos tempos, as explicações sobre o universo vi­nham sempre em forma de mitos: os astros eram deuses, a Terra também, e os vulcões, os mares ou os animais provinham sempre de seres fabulosos. O trovão dos céus era um gongo tangido por um gigante invisível... Não devemos crer que essas respostas legendá­rias a perguntas concretas indiquem apenas uma lamentável supers­tição, incapaz de raciocínio. As divindades e os ancestrais míticos representavam também idéias, no sentido em que são definidas por Spinoza em seus Pensamentos metafisicas: "As idéias não são ou­tra coisa senão narrações mentais da natureza." E tais idéias míti­cas são às vezes profundas, muito sugestivas e sem dúvida capazes de nos ajudar a melhor dar conta do que o mundo significa mental­mente para nós. O que os primeiros filósofos fizeram foi substituir essas idéias míticas por outra forma de narração mental da nature­za. Suas idéias foram menos antropomórficas e recorreram a ele­mentos impessoais para explicar a realidade. Quando Tales de Mi­leto quis mostrar que a realidade universal é basicamente úmida e fluida, não falou de Oceano ou Tétis - as divindades aquáticas -, mas disse "tudo é feito de água". Uma afirmação literalmente "des­mistificadora" e de conseqüências revolucionárias. Por quê?

Sem dúvida, não porque seja muito mais verdadeira que as his­tórias contadas pelos mitos. Se queremos ser melindrosos, é tão fal­so que o mundo seja feito de água como que tenha sido fabricado por Caos, filho rebelde de Crono, etc. Além do mais, já no capítu­lo dois dissemos que existem diversos campos de verdade, cada um . deles aceitável dentro de seus próprios limites. No entanto, apesar de tudo, as idéias filosóficas têm uma série de vantagens sobre as idéias míticas. Para começar, não são meras repetições de uma tra­dição, mas propõem um ponto de vista pessoal sobre o existente: digamos que as idéias filosóficas têm assinatura, seja a de Tales, a de Heráclito ou a de Anaximandro. Em segundo lugar, recorrem ge­ralmente a elementos materiais não antropomórficos ou a formas intelectuais despersonalizadas (a Inteligência cósmica proposta por Anaxágoras carece de namoros e outras peripécias biográficas como as que se contam de Afrodite ou Zeus). Note-se o paradoxo: os mitos são anônimos mas contam o mundo através de nomes pró-

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prios e figuras pessoais, ao passo que as idéias filosóficas são im­pessoais (a água, o fogo, o apeiron , os átomos ... ), embora estejam ligadas à personalidade de quem as sustentou (Diógenes Laércio escreveu sua Vida dos filósofos mais ilustres, ao passo que ninguém sabe nada de quem inventou os mitos). Daí provém, em terceiro lu­gar, a maior objetividade ou realismo da filosofia, entendendo-se por isso aceitar que o mundo não é feito por seres que pelo menos se parecem conosco espiritualmente em suas paixões, lutas e ocu­pações (embora sejam imortais e de escala sobre-humana), mas por princípios alheios ao subjetivo e que têm pouco a ver com nossos anseios característicos. Em quarto lugar, as propostas filosóficas sempre fazem uma distinção fundamental entre as aparências ofe­recidas pelos sentidos e a realidade que sustenta essas aparências, que só pode ser descoberta utilizando-se a razão ou "ouvindo-se o logos", como disse o pré-socrático Heráclito.

Mas, sobretudo e finalmente, os mitos têm que ser aceitos ou rejeitados coletivamente, todavia não admitem ser argumentados ou debatidos por quem os assume. A um mito não se podem colo­car objeções, é preciso dar-lhe crédito ilimitado. Por isso, fora da comunidade cultural em que eles nascem, são considerados arbitrá­rios ou absurdos. O grego que fala da deusa Gaia e o babilônio que conta a história de Tiamat têm pouco a discutir entre si. O máximo que se pode pedir a eles é que concedam que o mundo grego vem de Gaia e o mundo babilônio de Tiamat, e ponto final. Em contra­partida, as idéias filosóficas nascem por e para a controvérsia. A maioria dos gregos aceitava a idéia de um universo finito, mas Ar­quitas de Tarento, contemporâneo de Platão, colocou a seguinte dú­vida: "Se eu me encontrasse no limite extremo do céu, poderia es­tender a mão ou um bastão para fora? Certamente, seria absurdo não poder fazê-lo; mas, se consigo, isso deve implicar que haja algo fora, seja um corpo ou um lugar." De modo que o finito deve ser menos finito do que parece ... ou não? Seria ridículo colocar uma tal objeção a um mito (assim como parece inoportuno censurar em Cervantes os disparates cometidos por Dom Quixote), no entanto é perfeitamente razoável a contestação quando se trata de uma idéia filosófica ou científica, que estão aí para ser discutidas, não para serem reverenciadas ou desfrutadas sem mais aquela.

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E tanto faz que os implicados pertençam a comunidades cultu­rais distintas, porque "raciocinar filosoficamente" consiste em ten­tar estender pontes dialéticas entre os que pensam outra coisa ou de outro modo ... mas pensam. Bertrand Russell conta o caso de um guru indiano que fez uma palestra em Oxford sobre o universo. Ele afirmava que o mundo é sustentado por um grande elefante que apóia as patas nas costas de uma tartaruga enorme. Uma senhora da audiência perguntou-lhe como a tartaruga se sustentava e o sábio esclareceu que ela se apóia numa aranha gigantesca. A senhora in­sistiu, indagando o que sustentava a aranha, e o guru - meio irrita­do - disse que ela se firma numa rocha colossal. Naturalmente, a senhora voltou a perguntar sobre o apoio da pedra, e o sábio, exas­perado, respondeu aos gritos: "Minha senhora, eu lhe garanto que há rochas até embaixo!" O problema não era o guru ser indiano e a senhora perguntadeira ser inglesa, porém o fato de um falar a lin­guagem do mito (em que as coisas são "narradas" mas não "pensa­das" argumentadamente) e a outra ter uma curiosidade filosófica autêntica e impertinente, de modo que ambos devem ter saído mui­to irritados da reunião ...

Os filósofos e os cientistas levantaram, ao longo dos séculos, tantas perguntas sobre o universo (ou seja, sobre o conjunto da rea­lidade, desde a que nos é mais próxima e conhecida até a mais dis­tante e ignorada) quantas merece a enormidade do tema. Algumas questões concretas, por exemplo a composição química da água ou a órbita da Terra em torno do Sol, receberam respostas suficiente­mente válidas, mas outras mais gerais continuam abertas apesar do que costumam crer alguns cientistas, tão distraídos quanto otimis­tas. Refiro-me às perguntas cosmológicas, aquelas que tentam de­cifrar o o que, o como e o para que do universo em seu conjunto. Sob o r~co de simplificar, creio que são principalmente três, em­bora cada uma delas possa subdividir-se em muitas outras:

a) O que é o universo? b) O universo tem alguma ordem ou desígnio? c) Qual é a origem do universo?

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Nem é preciso dizer que não tenho resposta definitiva (ou mes­mo provisória!) para nenhuma delas, mas em contrapartida ousarei tentar uma análise das próprias perguntas.

O que é o universo? A tarefa de responder a essa pergunta de­veria começar por esclarecer o que entendemos por "universo". Di­gamos que há dois sentidos do termo, um heavy e o outro mais light. De acordo com o primeiro deles, o universo é uma totalidade nitida­mente delineada e distinta da soma de suas diferentes partes, sobre a qual cabe fazer indagações específicas. De acordo com o segundo, não é mais do que o nome que damos ao conjunto ou coleção inde­terminada de tudo o que existe, uma espécie de abreviatura semân­tica para o acúmulo inumerável e interminável de coisas grandes e pequenas, sem nenhuma entidade especial, sobre o qual podemos teorizar isoladamente. O primeiro conceito de universo é o que pa­rece contar com nosso maior apoio intuitivo: se existem partes ou in­gredientes, como pode não haver um todo definido no qual encon­trem, de um modo ou de outro, sua acomodação? A maior parte dos filósofos gregos acreditou em um universo desse tipo, um grande Objeto do qual todos os outros objetos não são mais que componen­tes que dele recebem sua coordenação. É claro que para eles esse ob­jeto devia ser finito (por acaso podemos imaginar algum objeto in­finito?; e se é infinito como podemos saber que é uno? Ou como essa infinitude poderia servir para relacionar as partes finitas entre si, inteligivelmente?), no entanto de uma finitude tão especial que não deixasse nada fora dela mesma. Esse paradoxo da finitude sem exterior é o que Arquitas de Tarento quis destacar pondo - imagina­riamente - a mão para fora do universo, como quem deseja averi­guar se está chovendo ou não ... fora do cosmo! Porque, se aceitamos intuitivamente que todos os objetos devem ser finitos, também de­vemos aceitar então que todos os objetos têm um exterior. Se há um objeto que não tem exterior, por que dizemos que é finito? Se não é finito, por que dizemos que é um objeto?

A dificuldade que aqui se coloca - a mesma que se colocou para os gregos e, depois, para todos os seus herdeiros atuais - está vinculada à tendência a formular sobre o imenso as mesmas per­guntas que têm sentido em uma escala mais reduzida ... e talvez só nessa escala! Por exemplo, sabemos que cada coisa ocupa um lugar

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e, portanto, podemos ser tentados a nos perguntar "que lugar ocu­pará então o conjunto de todas as coisas?". Sabemos que um filme começa a uma determinada hora e acaba tantos minutos depois, o que nos leva a supor que o universo - que sem dúvida é uma super­produção bem maior do que E o vento levou - também tenha come­çado num certo momento e que deverá acabar em outro. Mas, como observou Bertrand Russell, embora todo ser humano tenha mãe, isso não autoriza a supor que a humanidade inteira seja obrigada a ter mãe também.

Vemos que todos os objetos que conhecemos são formados de partes e que eles mesmos são partes de objetos maiores (pedras, ter­ra e vegetação formam uma montanha, que por sua vez está inte­grada numa cordilheira, que é parte de um continente, que por sua vez faz parte de nosso planeta, etc.), donde nos parece plausível su­por um objeto colossal formado por todos os objetos que houve e que haverá. E sobre ele começamos a nos fazer as mesmas pergun­tas que estamos acostumados a formular sobre as coisas que nos ro­deiam, mas com resultados profundamente desconcertantes. Come­çando pelas complicações que traz concebê-lo seja como finito ou como infinito e que já foram estudadas pelo sábio Kant no final de sua Crítica da razão pura.

E se não houvesse uma coisa como a supercoisa-universo? E se só houvesse coisas, inumeráveis coisas que se sucedem umas às outras, se juntam e se separam, acabam e começam, mas não hou­vesse nenhuma grande Coisa formada por todas as coisas? Por que então sentimos quase a necessidade de acreditar em tal coisa uni-. versal? O poeta português Fernando Pessoa, que também foi filó­sofo, aventura uma explicação digna de ser levada em conta: "A matéria é constituída por objetos, coisas ... A consciência não o é. Só o conjunto (por assim dizer) da consciência é 'real'; na matéria, o c~njunto não é real, não há conjunto; há partes, objetos somente. A idéia de que há um Universo, um conjunto da matéria, é uma aplicação à matéria do que é característico da consciência." Cada um de nós considera-se uno, um sujeito: talvez por isso tenhamos necessidade de unificar nossa experiência da realidade em objetos e todos os objetos em um único grande Objeto que os reúna com­pletamente diante da consciência.

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Desde a Antiguidade, a negação do universo como objeto úni­co está ligada à filosofia materialista, exposta insuperavelmente por Lucrécio em seu longo poema cosmológico De Rerum Natura. Sem dúvida, o materialismo filosófico nada tem a ver com certos usos vulgares da palavra, segundo os quais ser "materialista" signi­fica ânsia de riqueza e de excessos sensuais junto com carência de ideais ou de generosidade. Em filosofia, o materialismo é uma perspectiva caracterizada basicamente por dois princípios comple­mentares: primeiro, não existe um Universo, mas uma infinita plu­ralidade de mundos, objetos ou coisas que nunca se podem conce­ber sob o conceito de unidade; segundo, todos os objetos ou coisas que percebemos são compostos de partes e, mais cedo ou mais tar­de, irão decompor-se em partes. As últimas partes imperceptíveis de todo o real são chamadas pelos materialistas clássicos de "áto­mos", ou seja, o que já não pode ser dividido em partes menores. Mas trata-se de uma suposição metafisica, não de uma observação fisica (não se devem confundir os átomos de Leucipo, Demócrito ou Lucrécio com os da fisica contemporânea!).

O universo tem alguma ordem ou desígnio? Quer aceitemos que existe o universo em seu sentido "forte'', como um objeto úni­co de que tudo faz parte, quer o tomemos apenas na acepção mais "leve" do termo, como abreviatura para nos referir a todas as coi­sas reais, é inevitável perguntar se nele há alguma forma de ordem que nossa razão possa compreender. De fato, tanto em grego como em latim, as palavras que o nomeiam indicam ordenamento e har­monia: o cosmo é o bem organizado e disposto (daí a palavra "cos­mética", que indica a arrumação adequada da própria aparência), do mesmo modo que mundus em latim, cujo oposto é "imundo'', para sujo e desarrumado. Mas, segundo a mitologia grega, tal como narrada por Hesíodo em sua Teogonia, a origem de todos os deuses, assim como dos mortais, está em uma divindade primogênita cha­mada Caos, o Abismo, o grande Bocejo, o sem forma e para sem­pre ininteligível a partir de modelos ordenados. E aquele que foi, talvez, o mais enigmático e profundo dos primeiros filósofos, He­ráclito, afirma em um de seus fragmentos aforísticos que dele ain­da se conservam: "Tal como um turbilhão de refugos jogados ao

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acaso é a ordem mais bonita, também assim é o cosmo" (fr. 124 Diels-Kranz). Cabe, pois, indagar se no princípio era a ordem - o cosmo - ou a desordem caótica. Ou será - como parece sugerir iro­nicamente Heráclito - que a ordem cósmica se parece mais com a de um amontoado de coisas acumuladas ao acaso e, assim, coinci­de exatamente com o que os outros chamam de "caos"?

Antes de prosseguir, teríamos que tentar esclarecer o que en­tendemos por "ordem", uma noção filosoficamente crucial, mas nada óbvia. Neste exato momento, sobre a mesa em que estou es­crevendo, amontoam-se papéis, apontamentos, fichas , clipes, cha­ves e mais uma infinidade de outras coisinhas que formam um amontoado aparentemente tão casual como o mencionado por He­ráclito. Mas, se alguma mão bem intencionada, com intenção de me ajudar, guardar as chaves na gaveta e mudar os clipes de lugar, sem dúvida sairei gritando aos quatro ventos: "Quem mexeu na minha mesa? Agora não consigo encontrar nada!" Na aparente desordem anterior, eu me movia com familiaridade, localizando quase sem olhar aquilo de que precisava em cada ocasião; agora, a ordem alheia que me impuseram me priva de meus pontos de referência habituais e se transforma para mim num verdadeiro caos. Meu impertinente benfeitor (ou benfeitora!) exporá com paciência seus motivos para a nova disposição das coisas: as fichas devem ficar com as fichas, os apontamentos não devem ficar misturados com os clipes, é me­lhor as chaves não ficarem rolando de um lado para outro, agora há muito mais espaço livre na mesa, etc. E eu continuarei protestando que para mim tudo isso não importa, que quem tem que lidar com essas coisas sou eu, que não estou nem aí para o aspecto do meu es­critório desde que eu ache o que estou procurando. As fichas esta­vam esparramadas mas eu tinha perto de mim as que estava utili­zando no momento e um pouco mais longe as que ia usar depois, sabia muito bem que embaixo das fichas estavam estes ou aqueles apontamentos e as chaves me serviam de peso de papéis para que não voasse nenhuma anotação importante, etc. Moral da história: minha desordem estava bem ordenada para meus fins, mas eu me perco na ordem atual. Então quando posso dizer que, de fato, mi­nha mesa estava em ordem, antes ou agora? Pergunto a você, leitor, que é neutro.

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Voltemos ao espaço sideral. Na noite clara de verão, descubro as estrelas da Ursa Maior e também identifico algumas outras cons­telações, Cassiopéia, etc. Como tantos milhões de homens ao lon­go dos séculos, observo e reverencio a ordem majestosa dos céus. Mas, se falar com um amigo meu, astrônomo profissional, ele zom­bará de minha ignorância. Esses agrupamentos estelares são mera­mente casuais, para não falar das supostas formas que eles configu­ram, e não há Ursa Maior nem Menor ou coisa que o valha. O cos­tume aliado à fantasia são as únicas bases dessa ordenação do céu em constelações, que só serve para dar motivo para os sussurros dos namorados e as fraudes dos astrólogos. Se você vier comigo ao observatório, diz meu amigo, vou lhe mostrar o perfil de nossa ga­láxia e de outras que nos rodeiam, vou lhe mostrar os principais sis­temas estelares e você vai ver - um tanto nebulosamente, claro - as nebulosas, explicarei o que é um buraco negro e por que estimamos que 95% da massa de nosso universo é invisível, em suma, você terá uma idéia mais correta da verdadeira ordem cósmica.

E eu o acompanho ao observatório, agradeço sua aula genero­sa e não ouso formular para ele a minha suspeita: será que a ordem que agora me é revelada também não é uma certa maneira de ver o complexo sideral, tal como a ingênua e tradicional distribuição em constelações, outra maneira de ver que serve a certos interesses teó­ricos mas que não pode aspirar a descobrir a verdade astral "em si mesma'', se é que tal coisa existe? Sem dúvida, a perspectiva cien­tífica costuma ser mais rica e, no fim das contas, mais sugestiva em muitos aspectos do que o ponto de vista comum, mas talvez não seja o espelho necessário da ordem do mundo e, sim, uma ordena­ção.a mais, entre as muitas possíveis, de uma realidade em si mes­ma bastante caótica. O namorado que quer desfrutar com sua ama­da a noite clara de verão ordena as estrelas em figuras lendárias ar­bitrárias, e talvez seu cosmo não seja para ele pior do que o dese­nhado pelo astrofisico. Certamente o zoólogo tem boas razões para classificar a baleia entre os mamíferos e não entre os peixes, mas também as tem o marinheiro que a considera o maior dos peixes, e não outra coisa: por que respirar com os pulmões e não com as guelras é um critério de ordenação melhor do que o fato de ser um animal que vive no mar?

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O conceito de "ordem" é sempre uma tentativa de pôr unidade e articular relações em uma multiplicidade de elementos, quer essa unidade seja inerente às próprias coisas ou provenha de nossa forma de pensar. Porém não é fácil mostrar urna unidade inerente às coisas que nada tenha a ver com nossa forma de pensar. Conforme expôs Kant em sua Crítica da razão pura, "somos nó~ mesmos que intro­duzimos a ordem e a regularidade nos fenômenos que chamamos de Natureza ... o próprio entendimento (humano) é a legislação para a Natureza ... sem entendimento em lugar nenhum haveria Natureza, isto é, unidade sintética dos diversos fenômenos seguindo regras". Ou seja, chamamos de "ordem do mundo" nossa forma de conhecer o mundo e de dispor dele, assim como chamo de "ordem" o caos que reina no meu escritório e considero "bem ordenadas" as estrelas nas velhas constelações que deleitam meu fantástico capricho. Pois bem, que alcance objetivo podemos dar às características dessa "or­dem" cujo princípio subjetivo é inocultável? Sem dúvida existem regularidades observáveis nos processos do universo, e os cientis­tas podem fazer previsões sobre eles que se cumprem de modo sa­tisfatório , sejam quais forem os interesses ou caprichos subjetivos dos observadores. Somos quase tentados a sugerir que a objetivida­de da ordem cósmica é demonstrada pela validade de um mesmo determinismo causal em tudo o que conseguimos conhecer dela.

Mas será que essas leis causais de alcance universal são nor­mas estabelecidas por Deus "como um rei estabelece as leis de seu reino" - conforme disse Descartes - ou simples pactos ou alianças episódicos (foedera) surgidos ao acaso, como supôs Lucré,ci.o? Esse determinismo menos rígido e com um componente aleatono pare ce coincidir mais com os que diz a física quântica em nosso sécu­lo, segundo um Werner Heisenberg ou um Niels Bohr: .. Embora fosse possível que a incerteza causal dessa colocação estivesse ape­nas em nossa nova forma de observar a natureza de acordo com . ' . essa fisica e não na propna natureza.

Ousemos dar mais um passo em nossas perplexidades. Pode­mos ter certeza de que todo o universo é ordenado da mesma ma­neira que a porção dele na qual nos encontramos e que nossos meios de conhecimento alcançam? Não será possível que vivamos em um fragmento cósmico ordenado por acaso de forma que nos

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seja acessível, ao passo que muitas de suas províncias desenvolvem fórmulas distintas que nos estarão vedadas para sempre e que para nós seriam mero caos? Não poderia ocorrer que a ordem que com­provamos ao nosso redor fosse justamente a que nos permitiu exis­tir, e que as demais ordens ou desordens possíveis nos excluíssem não apenas intelectualmente, mas tambémfisicamente como espé­cie? Essa vinculação intrínseca entre nossa forma de conhecer e nossa possibilidade de existir é o que levou alguns astrofisicos atuais a formular o que denominam princípio antrópico (princípio que aponta ou se encaminha para o homem) do cosmo, que admite duas formulações, uma mais cautelosa e outra muito mais "forte". A primeira, do início dos anos sessenta, deve-se a Robert Dicke (mais tarde foi subscrita também por Stephen Hawking, em sua Breve história do tempo) e diz aproximadamente o seguinte: "Uma vez que há observadores no universo, este deve ter as propriedades que permitem a existência desses observadores." Colocada dessa maneira, a coisa é óbvia: o fato de haver observadores no cosmo quer dizer, sem dúvida, que no cosmo pode haver observadores. Mas o que mostra esse aparente truísmo é que as regularidades causais que observamos no universo têm que estar ligadas ao nosso próprio surgimento nele como estudiosos do real. Conforme já dissemos no capítulo dois, se somos capazes de refletir, em certa medida com objetividade, como é o mundo (ou pelo menos como é a parte do mundo que nos "cabe") é porque fazemos parte dele ... e porque, se fôssemos totalmente incompatíveis com sua compreensão, não o saberíamos, pois nem sequer teríamos tido ocasião de existir.

Anos mais tarde, Brandon Carter reformulou o princípio an­trópico de uma maneira muito mais comprometedora, embora sem dúvida também mais sugestiva: "O universo deve estar constituído de tal forma em suas leis e em sua organização que não poderia dei­xar de algum dia produzir um observador." Aqui já parece que as coisas são levadas, descaradamente, longe demais. É indubitável que a existência do homem no universo é possível (porque de fato ele existe!), mas supor que um acontecimento tão faustoso fosse inevitável encerra um excesso de autocomplacência. A não ser que sustentemos que as possibilidades, quando cumpridas, transfor­mam-se obrigatoriamente em necessidades ... Essa convicção mega-

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lômana nos coloca a um passo de nos vangloriar supondo que o fru­to maduro que o universo se propôs em seu desenvolvimento somos justamente - oh, que casualidade! - nós. Não é que as condições cósmicas sejam tais que permitam nosso surgimento (e, uma vez surgidos, nos permitam entendê-lo em parte objetivamente), mas que seriam tais a fim de que surgíssemos. Mas a modéstia (e a sen­satez!) nos deveriam proibir aspirar a tanto.

Supor que o projeto universal exige nosso surgimento como espécie implica que esse infinito cenário seja feito (pelo menos em boa medida) para nossa complacência. Em versos eloqüentes de sua De rerum natura (no livro V, 195 a 234), Lucrécio acumula argu­mentos contra essa suposição. E Michel de Montaigne também re­jeita vigorosamente essa pretensão: "Quem o fez (o homem) acredi­tar que esse admirável movimento da abóbada celeste, a luz eterna dessas luminárias que giram tão acima de sua cabeça, os movimen­tos admiráveis e terríveis do oceano infinito, tenham sido estabele­cidos e prossigam ao longo de tantas idades para seu serviço e con­veniência? Pode-se imaginar algo mais ridículo do que essa mise­rável e frágil criatura, que, longe de ser dona de si mesma, se acha submetida à injúria de todas as coisas, chame a si mesma dona e imperatriz do mundo, quando carece de poder para conhecer a par­te ínfima e o que dirá para governar o conjunto?" 1 Embora tenha­mos a capacidade de conhecer de certo modo algumas partes do cosmo e, também, embora renunciemos à pretensão de governá-lo, não é exorbitante crer que sejamos seu objetivo (ou um de seus ob­jetivos) necessário?

Qual é a origem do universo ? A terceira grande pergunta refe.-re-se à causa inicial dessa realidade universal, seja ela una e finita ou infinitamente plural, tanto se ordenada em si mesma como se apenas em parte ou se somos nós a ordená-la a nosso modo ao ob­servá-la. Voltam a ocorrer neste caso os paradoxos que acarreta for­mular sobre c~njuntos enormes ou sobre o infinito as perguntas que são perfeitamente assumíveis em menor escala. Estamos acostuma-

1. Ensaios, de M. de Montaigne. [Para este livro, tradução feita a partir do texto citado pelo autor: Ensayos, cap. XII, trad. esp. de Eugenio lmaz.] (Trad. bras. Os ensaios , São Paulo, Martins Fontes, 200 1.)

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do~ a perguntar pela causa ou causas originais dos seres que nos ro­deiam e a responder de modo bastante aceitável: a origem causal d~s Meninas é Velázquez, esta árvore provém da semente que plan­tei há anos, a mesa foi feita por um marceneiro e eu mesmo fui en­gendrado pela fecundação de um óvulo da minha mãe por um es­per?1atozóide d~ meu pai. A pergunta pela origem causal de algo po­dena ser transcrita grosseiramente assim: de onde vem isso que está aí? O que queremos saber é a partir do que chegou a ser o que an­tes não era: buscamos o objeto ou ser anterior sem cuja intervenção nunca se teria dado o que agora temos diante de nós. Damos por cer­to que tud? deve ter uma "razão suficiente" para chegar a existir, usan­do a termmologia de Leibniz. Pois bem, se tudo tem sua causa, não deveria haver também uma Causa de Tudo? Se parece sensato per­guntar-se o porquê da existência de cada coisa, não será também sensato indagar o porquê do conjunto da existência universal de coisas? Ou, para dizê-lo da maneira pela qual Heidegger o colocou no século XX, por que existe algo e não, antes, nada? Qual é a cau­sa da existência em geral?

Como em outras ocasiões em que formulamos sobre o Todo a pergunta que estamos acostumados a responder sem dificuldades sobre a parte, a busca da Causa de todas as causas nos faz cair ime­diatam~n~e na vertigem intelectual. Em geral consideramos que, por defm1ção, as causas têm que ser distintas de seus efeitos e an­teriores a eles. De modo que a Primeira Causa do universo tem que ser distinta do universo e anterior a ele. Pois bem, o que entende­mos por universo é exatamente o conjunto de tudo o que existe na realidade. Se a Causa Primeira existe na realidade, deve fazer par­te do universo (e portanto cabe perguntar também a respeito dela: qual é sua causa?); se não existe na realidade, como pode atuar? É claro que renunciar a uma causa primeira também não nos deixa sa­tisfeitos. Podemos racionalmente assumir que o universo (ou seja, o encadeamento perpétuo de causas e efeitos) sempre existiu e por­tanto não começou nunca. À pergunta por que existe "algo" e não, antes, "nada"? responderemos tranqüilamente: e por que o "nada" deveria existir antes do "algo"?, por acaso conhecemos alguma ocasião em que houvesse "nada"?, de onde tiramos que possa algu­ma vez não ter havido "nada"? No início da filosofia o grego Par-

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mênides compôs um poema que talvez continue sendo a reflexão mais profunda e enigmática da qual temos notícia. Diz que sempre há, houve e haverá algo, ou seja, que o "há" é único para tudo o que existe e nem se faz nem se destrói, diferentemente das coisas que há, todas as quais - grandes ou pequenas - aparecem e desapare­cem. Esse "há" (traduzido pelos comentadores como "ser" ou "o ser") não é nenhuma das coisas que há nem pode ser pensado sem elas mas que permite pensar em cada uma porque é o que todas têm em comum: um perpétuo aparecer e desaparecer que nunca desapa­receu nem desaparecerá. O ser não é nada sem as coisas mas as coi­sas não "são" sem o ser. As implicações e interpretações do poema de Parmênides ocuparam todos os metafisicos desde então até nos­sos dias .. . e certamente continuará ocupando enquanto os homens continuarem sendo capazes de refletir. Mas essa reflexão não des­vanece e, sim, agrava nossas perplexidades. Porque, se cada coisa existente tem sua origem em outra e, por sua vez, é causa de outras mais, num processo infinito, isto é, que não tem começo, como pode ter chegado até nós? Como pode ter efeitos agora uma série causal que não começou propriamente nunca? Somos capazes de conceber o tempo sucessivo da causalidade "menor" que conhece­mos dentro da duração infinita da causalidade universal que nem

começa nem acaba? Em nossa tradição cristã, a resposta mais popular a essa em-

brulhada é recorrer a um deus criador. Deixando de lado a respei­tável religiosidade de cada um, trata-se de tentar explicar algo que entendemos pouco por meio do que não entendemos nada. O uni­verso e sua origem são dificílimos de compreender, mas e Deus, então ... ! A eternidade e a infinitude de Deus provocam o mesmb desconcerto que a eternidade e a infinitude do universo : se à per­gunta sobre por que há universo respondemos que Deus o fez, a pergunta seguinte inevitável é por que há Deus ou quem fez Deus. Se formos aceitar que Deus não tem causa, também poderíamos ter aceitado antes que o universo não tem causa e nos pouparíamos dessa viagem. Alguns teólogos sustentam que Deus é causa sui, ou seja, uma causa que causa a si mesma, o que contraria as duas ca­racterísticas que definem o que normalmente entendemos por cau­sa: não é distinta de seu efeito mas idêntica a ele e não é anterior mas simultânea a ele. Podemos então continuar chamando de "cau-

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sa" algo que é oposto por definição ao que habitualmente entende­mos por "causa"?

O argumento intuitivo mais comum em favor de um Deus cria­dor é a ordem do cosmo, a qual supomos que só pode provir de uma Inteligência ordenadora. Dissemos anteriormente que essa "ordem" bem pode provir da inteligência do observador e não de um criador. Desde o século XVIII já se repetiu muitas vezes a metáfora do re­lógio: se ao sair de casa encontramos um relógio, supomos que não tenha sido feito pelo acaso mas que deve ter sido fabricado por um relojoeiro; do mesmo modo, ao comprovar as assombrosas engre­nagens da maquinaria universal, devemos supor que tenha sido fa­bricado por um fazedor de mundos, de inteligência semelhante à humana, embora infinitamente superior. Mas o certo é que temos experiência de que os relógios são feitos por uma inteligência se­melhante à nossa, ao passo que não temos experiência nenhuma de alguém que faça árvores, mares e muito menos mundos. Por isso é irrefutável o protesto de David Rume em seus magníficos Diálogos sobre a religião natural: "Alguém vai me dizer seriamente que um universo ordenado tem que provir de algum pensamento e alguma arte semelhantes aos do homem porque temos experiência dele? Para confirmar esse raciocínio seria preciso que tivéssemos expe­riência da origem dos mundos, e sem dúvida não é suficiente que tenhamos visto que os barcos e as cidades procedem da arte e da in­venção humanas."2 E outro pensador do século das luzes, Lichten­berg, também se indigna veementemente contra essa suposição: "Nas interpretações comuns sobre o Criador do mundo com fre­qüência se intromete a insensatez santarrona e afilosófica. A excla­mação 'como será quem criou tudo isto!' não é muito superior a 'como será a mina onde se encontrou a lua!', pois para começar se­ria preciso perguntar-se se o mundo alguma vez foi feito e depois se o ser que o fez teria condições de construir um relógio de repe­tição de lata ... creio que não, isso só pode ser feito por um homem. [ .. . ].Se nosso mundo alguma vez foi criado, quem o fez foi um ser

2. Diálogos sobre a religião natural, de David Hume. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor: Diálogos sobre la re/igión natural, trad. esp. de A. J. Capel­letti e Horacio López, Sígueme, Salamanca.]

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tão semelhante ao homem quanto a baleia às calhandras. Por con­seguinte, não deixa de me assombrar que homens famosos d~g~m que uma asa de mosca encerra mais sabedoria do que ~ rdogi~. A frase não diz mais do que isto: a maneira de fazer relog10s nao serve para fazer uma asa de mosquito; mas,ª ~orma de fa~e~ ª~,:s de mosquito também não serve para fazer relog10s de r~pet~çao .

Dizer "Deus criou o mundo do nada" é tão explicativo quanto afirmar "não sabemos quem fez o mundo, nem sabemos como pôde fazê-lo". Mas, quando se referem ao tema da origem, os cienti~t~s costumam incorrer em paradoxos não muito diferentes dos teologi­cos . Segundo a teoria do big bang, por exemplo, o ~ivers? se e~­pande a partir de uma explosão inicial, uma singulandade mepetl­vel que não se deu em um ponto do espaço e um momento do tem­po e, sim, a partir da qual começou a se abrir o espaço e.a correr o tempo. Bem, pois também não é muito claro. Para que haJa uma ex­plosão inicial, por mais metafórica que seja, algo deve explodir,n~la; talvez a explosão desse "algo" seja a origem das nebulosas, galaxi~s, buracos negros e demais objetos que bem ou mal conhecemos (m­cluindo no lote nós mesmos), mas então de onde saiu esse "algo"?;

) " 1 " se sempre esteve aí (ou seja, em lugar nenhum , por que esse ª. go explodiu quando explodiu, e não antes ou depois? ~te., etc. Vistos os resultados dessas indagações, não será melhor deixarmos de nos fazer essas perguntas ou voltarmos aos mitos para lhes responder poeticamente? No entanto, por acaso podemos de~xar de fazê-las?

Em seu romance El resto es silencio, o escntor guatemalteco Augusto Monterroso cria o perfil humorístico de um pensador dad.o às mais graves meditações. Uma delas diz o seguinte: "Poucas cõi­sas como 0 universo!" De fato, o que parece evidente é que, se há algo como uma Coisa-Universo, ela é extremamente singular en~e

0 resto das coisas. No entanto sem dúvida é justamente aí, no um­verso, que nós humanos somos e atuamos. Talvez devamos descer do cósmico e voltar a nos ocupar de nossos pequenos afazeres en-

tre o zero e o infinito ...

3. Aforismos, de G. Ch. Lichtenberg, trad. esp. de J. Villoro, Fondo de Cultura Económica, México. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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Dá o que pensar ...

Por que nós, humanos, necessitamos um "mundo" no qual vi­ver e não só a realidade? Quais são os diferentes tipos de "mun­do" em que habitamos? Como se ascende de um ao outro? Quais foram as primeiras respostas dadas à questão sobre o "universo" e o que existe nele? Os mitos são meras superstições ignorantes? Em que os mitos se parecem com os princípios propostos pelos primei­ros filósofos? Que características vantajosas a narração filosófica apresenta com relação à narração mítica? Quais são as três gran­des perguntas básicas sobre o universo que se fazem os filósofos? Quais são as duas acepções principais do conceito de "universo"? Que dificuldades teóricas cada uma delas apresenta? Que parado­xos encerra fazer sobre o imenso as perguntas que fazemos sobre aquilo que podemos alcançar? Em que consiste o "materialismo" entendido filosoficamente? O universo é antes de tudo "cosmo" ou "caos"? Existe uma "ordem" no universo? Podemos desligar o con­ceito de "ordem" de nossas necessidades e interesses? O que chama­mos de "ordem " do universo pode ser determinado por nossa forma de conhecer ou também por nossa forma de existir? O que é o ''prin­cípio antrópico" e quais são suas duas formulações? A causali­dade que nos diz de onde provém cada objeto a nosso alcance po­de se aplicar ao universo inteiro? É inexplicável que haja "algo" e não "nada"? Recorrer a Deus resolve nossas inquietudes teóricas sobre a origem da realidade universal? O universo é semelhante a um relógio, que necessita de seu relojoeiro? O big bang ou as ou­tras respostas dos astrofisicos resolvem o problema da origem do universo? Se o universo é uma grande Coisa, por que não pode ser como o resto das coisas que conhecemos?

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Capítulo seis

A liberdade em ação

O homem habita no mundo. "Habitar" não é o mesmo que es­tar incluído no repertório de seres que há no mundo, não é simples­mente estar "dentro" do mundo como um par de sapatos está den­tro de sua caixa nem ter um mundo biológico próprio como o mor­cego ou qualquer outro animal. Para nós, humanos, o mundo não é simplesmente a trama total dos efeitos e causas, mas a palestra cheia de significado na qual atuamos. "Habitar" o mundo é "atuar" no mundo; e atuar no mundo não é apenas estar no mundo, nem se mover pelo mundo, nem reagir aos estímulos do mundo. O morce­go ou qualquer outro animal responde a seu mundo de acordo com um programa genético próprio das necessidades evolucionais de sua espécie. Nós, os humanos, não só respondemos ao mundo que habitamos como também o vamos inventando e transformando de uma maneira não prevista por nenhuma pauta genética (por isso as ações dos aborígenes australianos não são iguais às dos astecas ou às dos vikings). Nossa espécie não está "fechada" pelo determinis­mo biológico, mas permanece "aberta" e incessantemente criando a si mesma, conforme anunciou Pico della Mirandola. Quando falo em "criar", não estou me referindo a "tirar algo do nada", como um prestidigitador tira um coelho do chapéu aparentemente vazio (digo "aparentemente" porque se trata de um truque, um engano: ilusio­nismo), mas refiro-me a "atuar" no mundo e a partir das coisas do mundo ... porém em certa medida mudando o mundo!

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A questão importante agora é determinar o que é a ação e o que significa atuar. Tarnbérn urn rnovirnento corporal não é o mes­mo que uma ação: não é o rnesrno "estar andando" e "sair para dar um passeio". De rnodo que as perguntas vitais a que devemos ten­tar responder, a seguir, são: o que significa "atuar"?, o que é urna ação humana e corno ela se diferencia de outros movimentos que os outros seres fazem, assim corno de outros gestos que também nós, humanos, fazemos?, não será uma ilusão ou um preconceito imagi­nar que somos capazes de verdadeiras ações e não de simples rea­ções diante do que nos rodeia, nos influencia e nos constitui?

Suponhamos que eu tenha tomado um trem e comprado o bi­lhete correspondente. Durante o trajeto, estou distraído, pensando em minhas coisas, e sem me dar conta vou brincando com o peda­cinho de papelão, que eu enrolo e desenrolo, até jogá-lo descuida­damente pela janela. Então aparece o fiscal e me pede o bilhete: de­solação! E, provavelmente, multa. Só posso murmurar, para medes­culpar: "Eu o joguei fora ... sem rne dar conta." O fiscal, que tam­bém é um pouco filósofo , comenta: "Bem, se não estava se dando conta do que fazia, também não se pode dizer que o jogou fora . É como se o tivesse deixado cair." Mas não estou disposto a aceitar esse álibi. "Desculpe, mas uma coisa é deixar o bilhete cair, outra é jogá-lo fora, mesmo que o tenha feito inadvertidamente." O fiscal parece achar mais divertido discutir do que me aplicar uma multa: "Veja bem, 'jogar' o bilhete é uma ação, algo diferente de deixar cair, que é só uma dessas coisas que acontecem. Quando alguém faz uma ação é porque quer fazê-la, não é mesmo? Em contrapartida, as coisas acontecem sem a gente querer. De modo que, como o se­nhor não queria jogar fora o bilhete, podemos dizer que na verdade o deixou cair." Eu me rebelo contra essa interpretação mecanicista: "De jeito nenhum! Poderíamos dizer que deixei o bilhete cair se eu tivesse adormecido, por exemplo. Ou então se uma rajada de vento o tivesse arrancado da minha mão. Mas eu estava bem acordado, não havia vento e o que aconteceu foi que joguei o bilhete sem in­tenção." "Ahá!", diz o fiscal, batendo com o lápis em seu bloqui­nho, "se não tinha intenção, como sabe então que foi o senhor, exa­tamente o senhor, quem o jogou fora? Porque 'jogar' uma coisa é

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fazer algo, e ninguém pode fazer algo se não se propõe fazê-lo ." "Pois sabe de uma coisa? Joguei a droga do bilhete fora porque me deu vontade!" Multa na certa.

A verdade é que há uma diferença entre o que simplesmente me acontece (esbarro a mão num copo e o derrubo na mesa quando vou pegar o sal), o que faço sem me dar conta e sem querer (o tal bilhe­te jogado pela janela!), o que faço sem me dar conta mas conforme uma rotina adquirida voluntariamente (enfiar os pés no chinelo ao me levantar da cama meio adormecido) e o que faço me dando con­ta e querendo (jogar o fiscal pela janela para que ele vá buscar o maldito bilhete). Parece que a palavra "ação" é um termo que só convém à última dessas possibilidades. Claro que também há outros gestos dificeis de classificar, mas que sem dúvida parecem qual­quer coisa menos "ações": por exemplo, fechar os olhos e levantar os braços quando alguém me atira alguma coisa no rosto ou procu­rar um apoio quando estou caindo. Não, decididamente uma "ação" é só o que eu não teria feito se não quisesse fazê-lo: chamo de ação um ato voluntário. O "falecido" fiscal, portanto, tinha razão ...

Como saber, no entanto, se um ato é voluntário ou não? Por­que, antes de realizá-lo, talvez eu delibere entre várias possibilida­des e finalmente me decida por uma delas. Claro que não é o mes­mo "decidir fazer alguma coisa" e "fazê-la". "Decidir" é pôr fim a uma deliberação mental sobre o que eu realmente quero fazer. Po­rém, uma vez decidido, ainda tenho que fazê-lo . O que decido é o objetivo ou fim de minha ação, mas talvez não a própria ação. Por exemplo: decido pegar o copo e estico o braço para pegá-lo. O que eu realmente decidi fazer: pegar o copo ou esticar o braço? Minha deliberação teve a ver com o copo ou com meu braço? E qual é a verdadeira ação: pegar o copo ou esticar o braço? Se eu estico o braço e derrubo o copo, posso dizer que atuei ou não? Ou atuei "pela metade"?

A noção de "voluntário" também não é tão clara como parece. Em sua Ética a Nicômaco , Aristóteles imagina o caso de um capi­tão de navio que deve levar uma certa carga de um porto para ou­tro. No meio da travessia despenca uma enorme tempestade. O ca­pitão chega à conclusão de que só pode salvar o barco e a vida de

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seus tripulantes se jogar a carga pela borda para equilibrar a embar­cação. De modo que ele a joga na água. Pois bem, ele a jogou por­que quis? É evidente que sim, pois poderia não se ter livrado dela e arriscar-se a morrer. Mas é evidente que não, pois o que ele queria era levá-la até seu destino final, caso contrário teria ficado sosse­gado em casa, sem zarpar! De modo que a jogou querendo ... mas sem querer. Não podemos dizer que a tenha jogado involuntaria­mente, nem que jogá-la fosse sua vontade. Às vezes poder-se-ia di­zer que atuamos voluntariamente ... contra a nossa vontade.

Voltemos por um momento ao gesto muito simples do qual fa­lávamos antes: movo meu braço. Eu o movo voluntariamente, ou seja, não o agito em sonhos nem o levanto para proteger meu rosto em um gesto reflexo ao ver uma pedra vir contra mim. Pelo contrá­rio, anuncio a quem me quiser ouvir: "Vou levantar o braço daqui a cinco segundos." E cinco segundos depois, de fato, levanto o braço. Mas o que fiz para levantá-lo? Pois limitei-me a querer levantá-lo e, como se vê, o levantei. Suponhamos que então você me diz: "Ouvi-o dizer que ia levantar o braço e depois, de fato, vi seu bra­ço levantado, mas isso só mostra que você é capaz de dizer ao cer­to quando vai levantar o braço, não que o tenha levantado volunta­riamente." Insistirei em que sei muito bem que quis levantá-lo e que por isso o braço se levantou. Mas a verdade é que, pensando bem, não sei o que fiz para mover meu braço: simplesmente o movi e pronto. Digo que eu "quis" movê-lo e depois ele se moveu, de modo que, ao que parece, fiz duas coisas: uma, querer mover o braço; ou­tra, movê-lo. Mas em que se diferencia "querer" mover o braço de "movê-lo"? Se não estou amarrado nem sou paralítico, é de imagi­nar que eu quisesse mover meu braço e ele não se movesse? Teria sentido dizer "estou desejando com todas as minhas forças mover o braço, de modo que daqui a pouco espero que meu braço acabe se movendo"? Em suma, já que nada me impede, externa ou fisio­logicamente, de mover o braço, não é o mesmo querer mover obra­ço e movê-lo efetivamente? São duas coisas ou uma só? Wittgen­stein refere-se a algo assim, em suas Investigações filosóficas (§ 621 ), quando se pergunta: "Este é o problema: o que resta se sub­traio o fato de meu braço se levantar do fato de eu levantar o bra-

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ço?" Onde está meu "querer-levantar-o braço" a não ser nesse pró­prio braço levantado? Há algo mais?

Volto a considerar o assunto, desta vez um pouco mais caute­losamente, e concluo que sim, que há algo mais: quando afirmo que meu braço se move voluntariamente, porque eu quero, o que estou indicando é que também poderia não o ter movido. Não sei como eu movo o braço quando quero, não sei se há diferença entre que­rer mover meu braço e movê-lo efetivamente, mas sei, por outro lado, que, se eu não quisesse movê-lo, ele não se teria movido. Os especialistas nas relações entre o sistema nervoso e o sistema mus­cular podem explicar como acontece que eu mova o braço quando decido movê-lo, mas para mim o que conta fundamentalmente - o que transforma esse gesto trivial em uma verdadeira "ação" - é que sou tão capaz de movê-lo como de não o mover. De modo que "fiz voluntariamente tal ou tal coisa" significa: sem minha permissão, tal ou tal coisa não teria acontecido. É ação minha tudo o que não aconteceria se eu não quisesse que acontecesse. A essa possibilida­de de fazer ou de não fazer, de dar o "sim" ou o "não" a certos atos que dependem de mim, é o que podemos chamar de liberdade. E é claro que, chegando à liberdade, não resolvemos todos os nossos problemas, mas tropeçamos em indagações mais dificeis ainda.

Para começar, podemos suspeitar que essa história de "liberda­de" talvez seja simplesmente uma ilusão que tenho sobre minhas possibilidades reais. Afinal de contas, tudo o que acontece tem sua causa determinante de acordo com as leis da natureza. Abro um pouco a torneira e vejo sair dela alguns pingos de água: se eu sou­besse de antemão em que lugar do encanamento estavam esses pi11-gos, e levando em conta a lei da gravidade, os padrões que sempre segue o movimento dos líquidos, a posição do orificio da torneira, etc., certamente eu poderia determinar qual pingo deveria sair em primeiro lugar e qual em quarto. O mesmo ocorre com todos os acontecimentos que observo à minha volta e até com a maior parte do que acontece em meu corpo (respiração, circulação sangüínea, tropeção na pedra que não vi, etc.). Em cada caso posso remontar a uma situação anterior que faz com que seja inevitável o que acon­teceu depois. Só minha ignorância de como estão as coisas no mo­mento A justifica que eu me surpreenda com o que acontece depois

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no momento B. A doutrina determinista (um dos pontos de vista fi­losóficos mais antigos e persistentes) estabelece que , se eu soubes­se como estão dispostas todas as peças do mundo agora e conheces­se exaustivamente todas as leis da fisica, poderia descrever sem erro tudo o que vai ocorrer no mundo dentro de um minuto ou den­tro de cem anos. Como também sou uma parte do universo, devo estar submetido à mesma determinação causal que os outros. Onde fica então o "sim ou não" da liberdade? Não será o ato livre aque­le que não posso prever nem mesmo conhecendo completamente a situação anterior do universo, ou seja, um ato que invente sua pró­pria causa e não dependa de nenhuma precedente?

Deixemos de lado, agora, a questão sobre se uma doutrina "de­terminista" estrita é realmente compatível com as colocações da fí­sica quântica contemporânea. O princípio de incerteza de Heisen­berg parece implicar uma visão muito mais aberta das determina­ções causais no universo material... ou pelo menos da forma pela qual nós podemos estudá-lo. O prêmio Nobel de fisica Ilya Prigo­gine e o grande matemático René Thom polemizaram há alguns anos sobre esse assunto, o primeiro advogando por um certo inde­terminismo e o segundo sustentando um certo determinismo mais semelhante ao tradicional. Falta-me a mais leve competência para interferir no debate, mas acredito ser pelo menos possível afirmar que nem o determinismo "forte" de um Laplace duzentos anos atrás nem o indeterminismo relativo de Heisenberg ou Prigogine hoje podem responder à pergunta sobre a liberdade humana. Porque a questão da liberdade não se coloca no terreno da causalidade física - ninguém supõe que os atos humanos careçam de causas que pos­sam explicar as leis da ciência experimental, por exemplo a neuro­fisiologia -, e sim no da ação humana como tal, que não pode ser vista apenas de fora, como seqüência de acontecimentos, mas deve também ser considerada de dentro, com a intervenção de variáveis dificeis de manejar, como a "vontade", a "intenção", os "motivos", a "previsão", etc.

A mera indeterminação científica não equivale à "liberdade": os elétrons podem ser imprevisíveis, mas não "livres'', em nenhum sentido relevante da palavra. E também ao inverso: o física ou fisio­logicamente determinado não tem por que excluir a emergência da

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ação livre. Se ninguém discute que a vida provém do que não está vivo e a consciência do que carece dela, por que a liberdade não po­deria provir daquelas formas materiais estritamente determinadas?

Vamos tentar definir um pouco melhor a noção que para nós se transformou em problemática (o que por certo será sempre o pri­meiro passo de qualquer análise filosófica que não queira deslum­brar ou surpreender mas entender, ou seja, da filosofia honrada). Para começar, digamos que a liberdade não parece supor um ato sem causa prévia, um milagre que interrompe a cadeia dos efeitos e suas causas (segundo a expressão de Spinoza, um novo "império dentro do império geral" do mundo), mas outro tipo de causa que também deve ser considerado junto com o resto. Falar de liberda­de não implica renunciar à causação, mas ampliá-la e aprofundar­se nela. A "ação" é livre porque sua causa é um sujeito capaz de querer, de escolher e de pôr em prática projetos, ou seja, de realizar intenções. Nesse sentido, o simples ato de levantar o braço, que co­mentamos antes, dificilmente pode ser considerado uma "ação", a não ser que venha inserido num quadro intencional mais amplo: le­vanto o braço para pedir a palavra em uma assembléia, para tocar a campainha ou chamar um táxi ... ou até para provar, numa discussão filosófica, que sou livre dono de meus atos! Por outro lado, os de­sejos e projetos desse sujeito capaz de atuar intencionalmente tam­bém têm, sem dúvida, suas próprias causas antecedentes, sejam "apetites", "motivos" ou "razões". Voltaremos a falar sobre isso. Por ora, basta deixar definido que a liberdade não é uma ruptura na cadeia da causalidade, mas uma nova linha de consideração prática que a enriquece. Dizer "fiz livremente esta ação" não equivale a · "esta ação não é efeito de nenhuma causa", mas a "a causa desta ação sou eu como sujeito".

O termo "liberdade" tem geralmente três usos diferentes, que freqüentemente se confundem nos debates sobre o tema e que con­viria tentar distinguir pelo menos na medida do possível.

a) A liberdade como disponibilidade para atuar de acordo com os próprios desejos ou projetos. É o sentido mais comum da pala­vra, ao qual nos referimos a maioria das vezes em que aparece o tema em nossa conversação. Faz alusão a quando carecemos de im­pedimentos fisicos, psicológicos ou legais para agir como quere-

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mos. Segundo esta acepção, é livre (para se mover, para ir e vir) quem não está amarrado ou encarcerado nem sofre de nenhum tipo de paralisia; é livre (para falar ou calar, mentir ou dizer a verdade) quem n~o se acha ameaçado, submetido a torturas ou drogado; tam­bém é hvre (para participar da vida pública, aspirar a cargos políti­cos) quem não está marginalizado nem excluído por leis discrimi­natórias, quem não padece dos excessos atrozes da miséria ou da ignorância, etc. Na minha opinião, esta perspectiva da liberdade implica não só poder tentar o que se quer como também uma certa possibilidade de consegui-lo. Se não há nenhuma perspectiva de êxito, também não diríamos que há liberdade: diante do impossível ninguém é realmente livre.

b) A liberdade de querer o que quero e não só de fazer ou ten­tar fazer o que quero. Trata-se de um nível mais sutil e menos ób­vio do conceito de "liberdade". Mesmo que eu esteja amarrado e encarcerado, ninguém poderá me impedir de querer realizar uma determinada viagem: só podem impedir-me de realizá-la efetiva­mente. Se eu não quero, ninguém pode me obrigar a odiar meu tor­turador nem a crer nos dogmas que ele tenta me impor pela força. A espontaneidade de meu querer é livre mesmo que as circunstân­cias façam com que as possibilidades de colocá-lo em prática sejam nulas. Os sábios estóicos insistiram orgulhosamente nessa liberda­de invulnerável da vontade humana. O curso dos acontecimentos não está em minhas mãos (uma simples pedra no sapato pode inter­rom~er meu caminho) mas a retidão de minha intenção (ou sua per­versidade!) desafia as leis da fisica e do estado. Um exemplo entre mil nos é dado pelo estóico Catão, na Roma antiga, ao apoiar os re­publicanos sublevados contra César. Depois que os rebeldes foram derrotados, ele comentou, segundo Plutarco: "A causa dos vencidos desagr~dou aos deuses mas foi do agrado de Catão." Os deuses (a necessidade, a história, o irremediável) podem vencer os propósi­tos humanos mas não podem impedir que os humanos tenham es­ses propósitos e não outros.

e) A liberdade de querer o que não queremos e de não querer o que de fato queremos. Sem dúvida, a mais estranha e dificil tan­to de explicar como de compreender. Para abordá-la, observemos que nós, humanos, sentimos não apenas desejos como também de-

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sejos sobre os desejos que temos; não só temos intenções como também gostaríamos de certas intenções ... mesmo que de fato não as tenhamos! Suponhamos que eu passe por uma casa em chamas e ouça uma criança chorar lá dentro: não quero entrar para tentar sal­vá-la (me dá medo, é muito perigoso, para isso existem os bombei­ros ... ) mas ao mesmo tempo eu gostaria de querer entrar para sal­vá-la, porque me agradaria não ter tanto medo do perigo e viver em um mundo em que os adultos ajudassem as crianças em caso de in­cêndio. Sou o que quero ser mas ao mesmo tempo gostaria de ser de outra maneira, de querer outras coisas, de querer melhor. Qual­quer um pode fugir do perigo, mas ninguém quer ser covarde; às ve­zes tenho vontade ou interesse em mentir, mas não gostaria de me considerar um mentiroso; gosto de beber mas não quero me trans­formar num alcoólico. O que "quero fazer agora" não é idêntico ao que "quero ser". Quando me perguntam o que quero fazer, expres­so meu querer imediato, direto, mas quando me perguntam o que quero ser (ou como quero ser) respondo expressando o que gosta­ria de querer, o que creio que me conviria querer, o que me faria não só "querer" livremente como também "ser" livremente. O poeta la­tino Ovídio expressou essa contradição entre formas de querer em um verso: "Vídeo meliora proboque, deteriora sequor" (vejo o que é melhor e o aprovo, mas continuo fazendo o pior: ou seja, conti­nuo querendo o que eu gostaria de não querer). Esse tipo de liber­dade nos aproxima de uma vertigem infinita: porque eu poderia querer querer o que não quero, querer querer o que não quero que­rer. Querer querer querer o que quero ou o que não quero de fato querer, etc. Onde estabelecer a última fronteira do querer, isto é, de minha vontade livre como sujeito?

Um grande pensador moderno da vontade, Arthur Schopenhauer, negou no início do século XIX a existência de liberdade na tercei­ra acepção do termo aqui apresentada. Segundo ele, nós, humanos - como os demais seres, em um grau ou outro -, somos formados basicamente de vontade, de "querer" (querer viver, querer devorar ou possuir, etc.). Para ele, literalmente, somos o que queremos, não no sentido de nos termos configurado de acordo com nossos dese­jos, mas de sermos intimamente constituídos por eles. De modo que, sem dúvida, pode-se afirmar que temos "liberdade" no segun-

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do sentido anteriormente explicado. Nada pode impedir-me de "querer" o que quero assim como nada pode me vetar "ser o que sou", uma vez que sou precisamente o que quero (não o objetivo re­sultante de meus desejos - infinitos, inaplacáveis segundo Schopen­hauer - mas o próprio conjunto de tais desejos, sua incessante ati­vidade). No entanto também não posso realmente querer ou deixar de querer o que quero. Ou seja, sou o que quero mas inevitavelmen­te também quero o que sou, quero os quereres que me fazem ser. Posso escolher o que quero fazer a partir de minha vontade ( conce­bida como meu "caráter", como o modelo de indivíduo que sou, que sempre se inclinará diante de um tipo de motivos e rejeitará ou­tros, etc.) porém não é possível escolher minha própria vontade nem modificá-la conforme meu arbítrio. Não posso optar sobre o que me permite querer. De modo que, segundo Schopenhauer, é compatível a mais radical das liberdades ("sou o que quero ser") com o mais estrito determinismo ("não tenho outro remédio além de ser o que sou"). Podemos ter ilusões sobre o que gostaríamos de ser até que um motivo irresistível nos demonstra o que realmente somos e o que queremos. Por isso, observa Schopenhauer, rogamos na oração do pai-nosso "não nos deixes cair em tentação, não nos induzas à tentação: meu Deus, não permitas que eu conheça o pior do que livremente quero fazer, ou seja, não me reveles como sou!''. Será preciso dizer que Sigmund Freud, inventor da psicanálise, compartilhou a partir de sua doutrina do inconsciente grande parte da perspectiva schopenhaueriana?

Em contrapartida, no século XX, o francês Jean-Paul Sartre formulou toda uma metafísica radical da liberdade de acordo com a terceira acepção do conceito. Foi chamada de "existencialismo", visto que, segundo ele, o primordial no homem é o fato de que exis­te e deve inventar a si mesmo, sem estar predeterminado por ne­nhum tipo de essência ou caráter imutável. O lema que melhor con­densa o pensamento de Sartre é uma frase extraída de Hegel - um contemporâneo de Schopenhauer essencialmente odiado por este último - segundo a qual "o homem não é o que é e é o que não é". Esse aparente trava-línguas pode ser racionalmente esclarecido: nós, os humanos, não somos algo dado previamente de uma vez por todas, algo "programado" de antemão, nem sequer esse "algo" que

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cada um de nós pretende estabelecer como sua verdadeira identida­de - nossa profissão, nossa nacionalidade, nossa religião, etc. -, mas somos o que não somos, o que ainda não somos ou o que de­sejamos ser, nossa capacidade de nos inventarmos permanentemen­te, de transgredir nossos limites, a capacidade de desmentir o que fomos antes. Para Sartre, o homem não é nada senão a disposição permanente para escolher e revogar o que quer chegar a ser. Nada nos determina a ser isto ou aquilo, nem de fora nem de dentro de nós mesmos. Apesar de às vezes tentarmos nos refugiar no que es­colhemos ser como se constituísse um destino irremediável - "sou engenheiro, espanhol, monógamo, cristão, etc." - , o certo é que sempre estamos abertos a nos transformar ou a mudar de caminho. Se não mudamos, não é porque "temos" que escolher como esco­lhemos e ser o que somos, mas porque "queremos" ser desta ou da­quela maneira e não de outra.

Mas e as determinações que provêm de nossa situação históri­ca de nossa classe social ou de nossas condições físicas ou psíqui­ca~? E os obstáculos que a realidade opõe a nossos projetos? Para Sartre, tudo isso também não impede o exercício da liberdade por­que sempre se é livre "dentro de um estado de coisas ~ diante des­se estado de coisas''. Sou eu que escolho me resignar a minha con­dição social ou me rebelar contra ela e transformá-la, sou eu que descubro as adversidades de meu corpo ou da realidade ao me pro­por objetivos que as desafiam. Até os obstáculos que bloqueiam o exercício de minha liberdade provêm de minha determinação de ser livre e de sê-lo desta ou daquela maneira que nada me impõe! A ga­gueira só era impedimento para Demóstenes porque ele havia deci­dido livremente ser orador ... A liberdade humana, entendida no sen­tido radical que Sartre lhe outorga, é a vocação de negar tudo o que nos rodeia na realidade e de projetar outra realidade alternativa a partir de nossos desejos e paixões livremente assumidos. Podemos fracassar na tentativa (de fato, sempre fracassamos, sempre nos chocamos de alguma maneira contra o real, "o homem é uma pai­xão inútil"), mas não podemos deixar de tentá-lo nem renunciar a tal empenho pretextando a necessidade invencível das coisas. A única coisa que nós, humanos, não podemos escolher é entre ser e não ser livres: estamos condenados à liberdade, por mais paradoxal

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do sentido anteriormente explicado. Nada pode impedir-me de "querer" o que quero assim como nada pode me vetar "ser o que sou", uma vez que sou precisamente o que quero (não o objetivo re­sultante de meus desejos - infinitos, inaplacáveis segundo Schopen­hauer - mas o próprio conjunto de tais desejos, sua incessante ati­vidade). No entanto também não posso realmente querer ou deixar de querer o que quero. Ou seja, sou o que quero mas inevitavelmen­te também quero o que sou, quero os quereres que me fazem ser. Posso escolher o que quero fazer a partir de minha vontade ( conce­bida como meu "caráter", como o modelo de indivíduo que sou, que sempre se inclinará diante de um tipo de motivos e rejeitará ou­tros, etc.) porém não é possível escolher minha própria vontade nem modificá-la conforme meu arbítrio. Não posso optar sobre o que me permite querer. De modo que, segundo Schopenhauer, é compatível a mais radical das liberdades ("sou o que quero ser") com o mais estrito determinismo ("não tenho outro remédio além de ser o que sou"). Podemos ter ilusões sobre o que gostaríamos de ser até que um motivo irresistível nos demonstra o que realmente somos e o que queremos. Por isso, observa Schopenhauer, rogamos na oração do pai-nosso "não nos deixes cair em tentação, não nos induzas à tentação: meu Deus, não permitas que eu conheça o pior do que livremente quero fazer, ou seja, não me reveles como sou!''. Será preciso dizer que Sigmund Freud, inventor da psicanálise, compartilhou a partir de sua doutrina do inconsciente grande parte da perspectiva schopenhaueriana?

Em contrapartida, no século XX, o francês Jean-Paul Sartre formulou toda uma metafisica radical da liberdade de acordo com a terceira acepção do conceito. Foi chamada de "existencialismo'', visto que, segundo ele, o primordial no homem é o fato de que exis­te e deve inventar a si mesmo, sem estar predeterminado por ne­nhum tipo de essência ou caráter imutável. O lema que melhor con­densa o pensamento de Sartre é uma frase extraída de Hegel - um contemporâneo de Schopenhauer essencialmente odiado por este último - segundo a qual "o homem não é o que é e é o que não é". Esse aparente trava-línguas pode ser racionalmente esclarecido: nós, os humanos, não somos algo dado previamente de uma vez por todas, algo "programado" de antemão, nem sequer esse "algo" que

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cada um de nós pretende estabelecer como sua verdadeira identida­de - nossa profissão, nossa nacionalidade, nossa religião, etc. -, mas somos o que não somos, o que ainda não somos ou o que de­sejamos ser, nossa capacidade de nos inventarmos permanentemen­te, de transgredir nossos limites, a capacidade de desmentir o que fomos antes. Para Sartre, o homem não é nada senão a disposição permanente para escolher e revogar o que quer chegar a ser. Nada nos determina a ser isto ou aquilo, nem de fora nem de dentro de nós mesmos. Apesar de às vezes tentarmos nos refugiar no que es­colhemos ser como se constituísse um destino irremediável - "sou engenheiro, espanhol, monógamo, cristão, etc." -, o certo é que sempre estamos abertos a nos transformar ou a mudar de caminho. Se não mudamos, não é porque "temos" que escolher como esco­lhemos e ser o que somos, mas porque "queremos" ser desta ou da­quela maneira e não de outra.

Mas e as determinações que provêm de nossa situação históri­ca, de nossa classe social ou de nossas condições físicas ou psíqui­cas? E os obstáculos que a realidade opõe a nossos projetos? Para Sartre, tudo isso também não impede o exercício da liberdade por­que sempre se é livre "dentro de um estado de coisas é\ diante des­se estado de coisas". Sou eu que escolho me resignar a minha con­dição social ou me rebelar contra ela e transformá-la, sou eu que descubro as adversidades de meu corpo ou da realidade ao me pro­por objetivos que as desafiam. Até os obstáculos que bloqueiam o exercício de minha liberdade provêm de minha determinação de ser livre e de sê-lo desta ou daquela maneira que nada me impõe! A ga­gueira só era impedimento para Demóstenes porque ele havia deti­dido livremente ser orador ... A liberdade humana, entendida no sen­tido radical que Sartre lhe outorga, é a vocação de negar tudo o que nos rodeia na realidade e de projetar outra realidade alternativa a partir de nossos desejos e paixões livremente assumidos. Podemos fracassar na tentativa (de fato, sempre fracassamos, sempre nos chocamos de alguma maneira contra o real, "o homem é uma pai­xão inútil"), mas não podemos deixar de tentá-lo nem renunciar a tal empenho pretextando a necessidade invencível das coisas. A única coisa que nós, humanos, não podemos escolher é entre ser e não ser livres: estamos condenados à liberdade, por mais paradoxal

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que possa soar esta fórmula sartriana, já que é a liberdade que nos define como humanos.

A noção de "liberdade" tem uma ampla gama de aplicações teóricas, e pode-se muito bem aceitá-la em um de seus sentidos e rejeitá-la em outros. Em todas as suas formas, reconhecer-nos "li­vres" supõe admitir que nós, humanos, orientamos nossa atividade de acordo com "intenções" que agrupam uma série de ações conca­tenadas. Por exemplo, tenho intenção de tomar o trem de manhã: com esse fim, na noite anterior ponho o despertador para uma de­terminada hora, levanto cedo, tomo banho, me visto, desço de ele­vador até a rua, chamo um táxi, peço que ele me leve até a estação, etc. Onde está o peso de minha ação livre, na intenção de tomar o trem ou em cada um dos passos necessários para esse fim? Alguns filósofos, como Donald Davidson, afirmam que as únicas verdadei­ras ações que existem são as mais simples e primitivas, ou seja, os movimentos corporais voluntários. Esses gestos podem ser "narra­dos" de acordo com diversas histórias, algumas das quais estarão centradas em meus projetos ou intenções e outras em lógicas nar­rativas diferentes (por exemplo, as que incluem os efeitos não de­sejados de minhas ações intencionalmente desejadas) .

Por outro lado, salvo algum sartriano ultra-radical, não creio que alguém negue que nós, os humanos, temos apetites instintivos que em muitas ocasiões nos impelem a atuar. Mas também parece evidente que não somos simplesmente arrastados pelos objetos de nosso instinto mas que, ao mesmo tempo, permanecemos em nós mesmos, sabendo-nos agentes e estilizando as satisfações instinti­vas de acordo com diferentes projetos vitais. Embora alguns de nos­sos fins sejam irremediáveis e não escolhidos {nuhição, sexo, auto­conservação, etc.), tentamos cumpri-los de modos não irremediá­veis, optativos. Daí que, além de apetites, possamos apontar também como causas de nossas ações "motivos" a mais longo prazo e tam­bém "razões", ou seja, considerações que buscam ser compartilha­das por nossos semelhantes. Lembre-se do que dissemos no capítu­lo dois sobre o "racional", a busca dos melhores instrumentos para lidar com os objetos, e o "razoável", o procedimento de tratar com sujeitos que supomos tão dotados de intenções respeitáveis quanto nós mesmos. Sem considerar os dois tipos de motivos racionais é

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dificil, para não dizer impossível, compreender verdadeiramente a ação humana. Os instintos e as demais forças da natureza bastam para explicar os acontecimentos protagonizados por humanos, as­sim como se pode explicar o comportamento dos animais, o cresci­mento das plantas ou a queda dos sólidos na direção do planeta que os atrai. Mas a compreensão total da atividade humana exige além disso uma perspectiva interna ao sujeito agente que reconheça as conexões entre o que pensamos e o que fazemos, entre nosso uni­verso simbólico e nosso desempenho vital no mundo fisico.

Seja como for, por que é tão importante para nós a questão da liberdade, seja para afirmá-la com arroubo entusiasmado e orgu­lhoso, seja para negá-la com não menor energia? O céptico David Hume, que era fundamentalmente determinista, sustentou que a idéia de liberdade é compatível com o determinismo porque não se refere à casualidade física mas à causalidade social. Temos neces­sidade de acreditar em certa medida na liberdade para poder atribuir cada um dos acontecimentos protagonizados por humanos a um su­jeito responsável, que possa ser elogiado ou censurado - e castiga­do, se for o caso - por sua ação. A liberdade é imprescindível para estabelecer responsabilidades, porque sem responsabilidade não se pode articular a conveniência em nenhum tipo de sociedade. Mas esse ser livre não só é um motivo de orgulho como também de so­çobra e até de angústia. Assumir nossa liberdade supõe aceitar nos­sa responsabilidade pelo que fazemos, inclusive pelo que tentamos fazer ou por algumas conseqüências indesejáveis de nossos atos.

Ser livre não é responder vitorioso "eu fui!" na hora da distri­buição de prêmios, mas é também admitir "fui eu!" quando se pro­cura o culpado por um malfeito. Para o primeiro sempre há volun­tários, porém no segundo caso o mais comum é refugiar-se no peso esmagador das circunstâncias: o trapaceador de viúvas atribuirá seus delitos ao abandono precoce dos pais, às tentações da sociedade de consumo ou aos maus exemplos da televisão .. . ao passo que quem recebe o prêmio Nobel só falará de seu esforço diante do destino adverso e de seus méritos. Ninguém quer ser simplesmente reduzi­do ao catálogo de suas más ações: a quem nos repreende por uma grosseria, respondemos "não pude evitar, queria ver você no meu lugar, eu não sou assim, etc.", tentando ao mesmo tempo transferir

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~ culpa para a sociedade em que vivemos ou para o sistema capita­lista, porém mantendo aberta a possibilidade de sermos limpos, de­sinteressados, valentes, melhores. Por isso a liberdade não é algo como um galardão, mas também uma carga, e muitas pessoas duvi­dosamente maduras - ou seja, pouco autônomas, pouco conscien­tes de si mesmas - preferem renunciar a ela e passá-la para um lí­der social que ao mesmo tempo tome as decisões e carregue o peso das culpas. O psicanalista Erich Fromm escreveu um livro intitula­do O medo da liberdade, em que ele analisava a partir dessa óptica os fervores maciços que o totalitarismo nazista ou o bolchevique despertaram em nosso século.

Mas a questão da "responsabilidade" provém de muito antes. Na tragédia grega, por exemplo, a responsabilidade se transforma às vezes ,no destino inevitável do personagem, que - como aconte­ce com Edipo nas tragédias de Sófocles Édipo rei e Édipo em Ca­fona - tem que cumprir, mesmo sem querer nem saber, as ações à que está predestinado, mas ao mesmo tempo sem deixar de com­preender os dispositivos voluntários que o enredam na máquina fa­tal. Nosso querer nos arrasta ao irremediável, mas depois o irreme­diável deve ser assumido como a parte cega de nosso querer: acei­tar que devíamos ser culpados nos abre os olhos sobre o que somos e assim purifica o que podemos vir a ser. Os gregos não conhece­ram a noção de "liberdade" no segundo e no terceiro sentidos ex­plicados anteriormente, portanto também não tiveram uma noção de responsabilidade realmente "personalizada", ou seja, ligada à in­tenção subjetiva do agente e não à objetividade do fato realizado. A maldição do culpado recai sobre Édipo por crimes que ele ignora ter cometido (matar o pai, deitar-se com a mãe) e que depois deve assumir como parte do destino que lhe pertence ... e ao qual ele per­tence. Segundo Sófocles, o que nos torna responsáveis não é o que projetamos fazer nem o que fazemos efetivamente, e sim a reflexão sobre o que fizemos.

No início da modernidade, foi sem dúvida outro grande trági­co - Shakespeare - quem melhor esmiuçou os segredos contraditó­rios da liberdade em ação. Seus personagens são lúcida e terrivel­mente conscientes da vertigem em que oscila quem deseja o que a ação promete mas treme diante da cadeia culpabilizadora com a

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qual nos amarra. Assim por exemplo Macbeth, quando vacila na noite atroz antes de assassinar o rei Duncan - o que lhe outorgará a coroa que ele deseja - , ponderando abalado a responsabilidade ine­vitável que cairá sobre ele: "Se fazendo-o estivesse feito!. .. O me­lhor então seria fazê-lo sem demora. Se o assassinato solucionasse todas as conseqüências e com sua cessação o êxito estivesse asse­gurado! ... Se esse golpe fosse o todo, só o todo, sobre o banco de areia e o baixio deste mundo, saltaríamos para a vida futura! Mas nesses casos somos julgados aqui mesmo; damos simplesmente li­ções sangrentas que, aprendidas, voltam-se para atormentar seu in­ventor" (ato 1, cena VI1)1. Macbeth quer a ação (o assassínio de Duncan) e quer o que irá conseguir por meio dessa ação (o trono), mas não quer ficar vinculado para sempre à ação, ter que se respon­sabilizar por ela diante dos que lhe peçam prestação de contas ou extraiam a lição terrível de seu crime. Se apenas se tratasse de fazê­lo e isso fosse tudo, ele o faria sem escrúpulos; mas a responsabili­dade é a contrapartida necessária da liberdade, seu avesso, talvez -como diz Hume - o próprio fundamento da exigência de liberdade: as ações devem ser livres para que alguém responda por cada uma delas. O sujeito é livre para fazê-las, embora não para desprender­se de suas conseqüências ...

Sófocles ou Shakespeare costumam falar de uma responsabili­dade "culpada" e não simplesmente por gosto sensacionalista: o vínculo entre liberdade e responsabilidade torna-se mais evidente quando a primeira nos apetece e a segunda nos assusta. Ou seja, quan­do estamos diante de uma tentação. Em nossa época, são abundan­tes as teorias que pretendem nos desculpar do peso responsável da liberdade quando nos é fastidioso:· o mérito positivo de minhas ações é meu, mas minha culpa eu posso dividir com meus pais, com a ge­nética, com a educação recebida, com a situação histórica, com o sistema econômico, com qualquer uma das circunstâncias que não está em minhas mãos controlar. Todos nós somos culpados de tudo, logo ninguém é principal culpado de nada. Em minhas aulas de éti­ca costumo colocar o seguinte caso prático, que eu adorno confor-

1. Macbeth, de W Shakespeare, trad. esp. de Astrana Marín. [Traduzido a par­tir do texto citado pelo autor.]

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me a inspiração do dia. Suponhamos uma mulher cujo marido em­preende uma longa viagem; a mulher aproveita essa ausência para ir ao encontro de um amante; de um dia para outro, o marido des­confiado anuncia sua volta e exige a presença da esposa no aero­porto para recebê-lo. Para chegar ao aeroporto, a mulher precisa atravessar um bosque onde se esconde um terrível assassino. Assus­tada, ela pede ao amante que a acompanhe, mas ele se nega, pois não quer enfrentar o marido; então pede proteção ao único guarda que há no povoado, que também diz que não pode ir com ela, pois deve atender com o mesmo zelo aos outros cidadãos; recorre a di­versos moradores e moradoras do povoado, mas todos se recusam, alguns por medo, outros por comodismo. Finalmente ela faz a via­gem sozinha e é assassinada pelo criminoso do bosque. Pergunta: quem é responsável por sua morte? Costumo receber respostas para todos os gostos, conforme a personalidade do interrogado ou da in­terrogada. Há quem culpe a intransigência do marido, a covardia do amante, a falta de profissionalismo do guarda, o mau funcionamen­to das instituições que nos prometem segurança, a falta de solida­riedade dos moradores, até a má consciência da própria assassina­da ... Poucos respondem o óbvio: que o Culpado (com maiúscula de principal responsável pelo crime) é o próprio assassino que a mata. Sem dúvida, na responsabilidade de cada ação intervêm numerosas circunstâncias que podem servir de atenuantes e às vezes diluir ao máximo a culpa como tal, mas nunca ao ponto de "desligar" total­mente do ato o agente que o realiza intencionalmente. Compreen­der todos os aspectos de uma ação pode levar a perdoá-la mas nun­ca a apagar completamente a responsabilidade do sujeito livre: caso contrário, já não se trataria de uma ação mas de um acidente fatal. No entanto não será justamente a própria liberdade o acidente fatal da vida humana em sociedade?

Uma das reflexões mais enigmaticamente sugestivas sobre o vínculo entre ação e responsabilidade é a que se encontra no "Bha­gavad Gita", ou "Canção do Senhor", um longo poema dialogado composto provavelmente no século III a. C., incluído no Mahabha­rata , a grande epopéia hindu. O herói Arjuna avança em seu carro de guerra contra as tropas inimigas e dispõe as flechas com que irá exterminar todos os que puder. Mas entre os adversários que deve

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tentar matar ele distingue vários parentes e amigos (trata-se de uma guerra civil, fratricida) e isso o angustia a tal ponto que considera seriamente abandonar o combate. Então o auriga que dirige seu car­ro de combate, e que não é outro senão o deus Krishna, identifica­se e lhe faz uma preleção sobre seu dever. Segundo Krishna, o es­crúpulo que Arjuna sente diante da tarefa de matar é infundado, porque "nem dos mortos nem dos vivos se compadecem os sábios" . No mundo das aparências enganosas em que nos movemos, o ver­dadeiramente substantivo (Brahma, o Absoluto incriado e imorre­douro) não pode ser destruído por dardos nem modificado por ne­nhuma operação humana. A cada um cabe atuar como o que é - no caso de Arjuna, que é um guerreiro, lutando no campo de batalha -, mas a sabedoria consiste em não ter nenhum apego aos frutos ou conseqüências da ação: "Na ação está teu empenho, não em seus frutos, jamais: não tenhas como fim os frutos da ação nem tenhas apego à inação." Todos somos obrigados a atuar pelas circunstân­cias naturais em que transcorre nossa vida: "Ninguém, nem por um momento, jamais está sem agir; é levado à Ação, mau grado seu, pelos fios nascidos da Natureza." O segredo está em agir como se não se agisse, em realizar as ações que nos cabem sem deixar que nosso ânimo se perturbe pelo desejo, pela ira, pelo temor ou pela esperança. "Por isso sem apego sempre a Ação que há de fazer-se faz; se realiza a Ação sem apego, o mais alto alcança o homem." 2

Para nossas mentalidades cristãs (por mais que nos considere­mos leigos ou até ateus), esse deus que tranqüilamente recomenda ao homem que pratique a matança como se não estivesse fazendo nada - ou como se estivesse fazendo qualquer outra coisa! - é difi­cil de entender. A própria idéia de que devemos resignar-nos à ação como parte da ordem da natureza mas nos entregando a ela com pleno "desinteresse" pelo que promete é contrária a tudo o que sig­nifica "projeto", "intenção", assim como ao "êxito" ou "fracasso" do que é empreendido. Mas o peso da responsabilidade da ação -que não é mero projeto ocidental, uma vez que o próprio Arjuna o experimenta quando está prestes a massacrar seus parentes, tanto

2. Canción dei Seíior, em Atma y Brahma, trad. esp. de F. Rodríguez Adrados, Editora Nacional, Madri. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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quanto Macbeth antes de se decidir pelo assassinato de Duncan -alivia-se com o chocante raciocínio de que é preciso perpetrar o evitável como se fosse inevitável. No fundo , atuar "conscientemen­te" nada mais é do que compreender de que modo todos nós somos atuados pelo aparente e reconhecer nossa identidade com o que sempre é mas nunca faz. Podemos encontrar paralelismos entre essa perspectiva oriental e a forma de pensar dos estóicos ou de Spino­za, embora premissas semelhantes desemboquem em regras práti­cas muito diferentes: no pensamento ocidental, a consideração ob­jetiva da rede causal dentro da qual atuamos permite "entender" melhor a ação, mas nunca "nos desinteressar" dela, isto é, de seus objetivos e conseqüências. Assim é possível compreender melhor as respeitosas repreensões que um grande admirador da sabedoria hin­du, Octavio Paz, formula (em seu livro Vislumbres de la Jndia) con­tra essa doutrina do Bhagavad Gita: "O desprendimento de Arjuna é um ato íntimo, uma renúncia a si mesmo e a seus apetites, um ato de heroísmo espiritual e que, no entanto, não revela amor ao próxi­mo. Arjuna não salva ninguém exceto a si mesmo ... o mínimo que se pode dizer é que Krishna prega um desinteresse sem filantropia."

Ser livre é responder por nossos atos e sempre se responde diante dos outros, com os outros como vítimas, como testemunhas e como juízes. No entanto, todos parecemos buscar "algo" que nos alivie a pesada carga da liberdade. Não podemos supor que nossa natureza humana seja livre mas que dentro dessa liberdade "neces­sária" atuamos tão inocentemente como crescem as plantas ou se desenvolvem os animais? Se somos livres "por natureza", será que a própria natureza não marca o âmbito de eficácia de nossa liber­dade? Em que se distingue o irremediavelmente livre de nossa con­dição natural do simplesmente irremediável de outros seres natu­rais? Talvez um indício de resposta nos seja oferecido por este belo poema da polonesa Wistlawa Szymborska:

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A águia ratoeira não costuma censurar-se nada. Carece de escrúpulos a pantera negra. As piranhas não duvidam da honradez de seus atos. E a cascavel à constante auto-aprovação se entrega. A lagosta, o caimã, a triquina e a mutuca

vivem satisfeitos por ser como são. { . .} No terceiro planeta do sol, a consciência limpa e tranqüila é um sintoma primordial de animalidade. 3

O homem parece ser o único animal que pode ficar desconten­te consigo mesmo: o arrependimento é uma das possibilidades sem­pre abertas à autoconsciência do agente livre. Mas, se somos natu­ralmente livres, como podemos nos arrepender daquilo que fazemos com nossa liberdade natural? Como pode o desenvolvimento do que naturalmente somos trazer-nos conflitos íntimos? Devemos então, agora, elucidar qual é nossa natureza e que sentido tem a noção de "natureza" para nós, os animais capazes de consciência pesada.

Dá o que pensar ...

O que significa "habitar" o mundo? Trata-se simplesmente de estar contido nele ou de fazer parte dele? O que é "atuar "? "Fa­zer algo" é o mesmo que "executar uma ação"? Pode haver "ações involuntárias"? Como sabemos que estamos fazendo algo volunta­riamente? Há coisas que fazemos voluntariamente mas também "sem querer"? "Decidir fazer algo" é o mesmo que ''jazê-lo"? "Querer mover meu braço" e "movê-lo " são duas ações ou apenas uma? Quando se pode dizer que estou atuando livremente? Se não o faço livremente, é possível dizer que "atuo"? O que diz a teoria determinista? Podem ser compatíveis um certo determinismo e um certo tipo de liberdade? A fisica contemporânea é "determinista" no mesmo sentido em que o foi a fisica clássica? O determinismo da fisica tem algo a ver - muito ou pouco - com o problema da li­berdade humana? Quais são os diferentes usos que se fazem da no­ção de "liberdade"? Podemos aceitar ser livres em um deles e não em outro ou outros? Qual a relação entre a liberdade e as exigên-

3. Extraído de Paisaje con grano de arena, de W. Szymborska, trad. esp. de A. M. Moix e J. Slawomirski, Lumen, Barcelona. [Tradução livre a partir do texto cita­do pelo autor.]

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cias da vida em sociedade? O que significa "ser responsável" ou "fazer-se responsável" por uma ação? Pode haver ações pelas quais, sejamos todos responsáveis ou pelas quais ninguém seja res­ponsavel? Como a responsabilidade da ação é entendida pela tra­gédia grega, por Shakespeare e pelo Bhagavad Gita? Poderíamos nos arrepender do que fazemos se não fôssemos livres para fazê-lo ou não? Se somos livres por natureza, é antinatural ter consciência pesada pelo que fizemos livremente?

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Capítulo sete

Artificiais por natureza

No capítulo quatro fizemos um esboço genérico do homem como "animal simbólico", mostrando as características que o defi­nem com relação a outros seres vivos com os quais - quanto ao mais - ele também tem um parentesco indubitável. Os símbolos são convencionais, portanto o homem é um animal "convencional", um ser vivo capaz de estabelecer, aprender e praticar acordos de signi­ficado com seus semelhantes. Mas agora deveríamos nos perguntar se existe uma natureza humana, se nós, humanos, somos feitos pela natureza e fazemos parte dela, se também somos "seres naturais" além de - apesar de? - sermos "convencionais", se há contradição ou incompatibilidade entre uma coisa e outra. Essas perguntas nos interessam porque talvez conhecer nossa natureza ou nossa relação com a natureza possa nos orientar a respeito de como atuar e como empregar convenientemente nossa liberdade. Afinal, quando que~e­

mos aprovar ou desculpar um comportamento, costumamos dizer que é "natural" agir assim; e também reprovamos algumas condu­tas dizendo que são "antinaturais" ou contrárias à natureza. O que queremos dizer quando fazemos esses comentários?

Em nossa época ouve-se falar muito da "natureza". As atitudes ecológicas nos previnem contra certas formas de agir que represen­tam ameaças contra o "natural", uma vez que põem em perigo a "natureza" por meio de abusos técnicos, poluição industrial, supe­rexploração dos recursos, aniquilamento de espécies vivas, manipu­lações genéticas, etc. Alguns afirmam que muitos de nossos males

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provêm de se ter voltado as costas para o "natural" e recomendam que voltemos à "natureza", que nos consideremos parte dela e não seus donos tirânicos, deixando-nos, de certo modo, guiar por ela. Segundo esse ponto de vista bastante difundido, deveríamos mane­jar fontes de energia e consumir produtos "naturais". Outros acre­ditam que tais atitudes nos devolvem à barbárie, a épocas primiti­vas, que nos fazem voltar atrás no caminho do progresso científico, o qual nada pode nem deve deter. Mostram que a suposta norma do "natural" também serve para desqualificar repressivamente como "antinaturais" certas reivindicações sociais, como por exemplo as do feminismo ou as dos homossexuais. Vamos indagar de novo: de que estamos falando tão apaixonadamente?

Como já disse em várias ocasiões ao longo dos capítulos ante­riores, nossa primeira tarefa filosófica - embora evidentemente não seja a única! - deverá consistir em definir o mais possível os usos da noção sobre a qual se estabelece a controvérsia, neste caso "na­tureza" ou "natural". Só a má filosofia começa inventando novos termos retumbantes que ninguém entende em vez de propor-se es­clarecer o que entendemos pelas palavras comuns que utilizamos habitualmente. Evidentemente, não parece que estejamos nos refe­rindo à mesma coisa quando dizemos que a gravidade é uma lei da Natureza descoberta por Newton, que é natural que as mães gostem de seus filhos , que a natureza é muito bonita, que naturalmente o agredido reage contra seu agressor, que os seres humanos são iguais por natureza e que o mais natural é descer pela escada ou pelo elevador e não saltar do sexto andar para a rua. Examinemos tudo isso wn pouco mais detidamente.

Quais são os principais usos do termo "natureza"? O primeiro é o adotado no título do famoso poema de Lucré­

cio, De rerum natura ou Da natureza das coisas. Cada uma das coi­sas que existem no universo tem sua própria natureza, ou seja, sua própria/arma de ser. No século XIX, uma das pessoas mais lúci­das e honestas que se dedicou à filosofia - John Stuart Mill - es­creveu uma obra breve, intitulada justamente A natureza, que co­meçava assim: "O que queremos dizer quando falamos na 'natu­reza ' de um objeto particular, tal como o fogo, a água, ou qualquer planta ou animal? Evidentemente, o conjunto ou agregado de seus poderes ou propriedades; os modos pelo qual tal objeto atua sobre

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outras coisas (incluindo-se entre elas os sentidos do observador) e os modos pelos quais outras atuam sobre ele." 1 Talve~ também d~­vêssemos acrescentar explicitamente a essas caractensticas - p01s caso contrário Lucrécio não nos perdoaria - a composição física e a gêneses desse objeto ou coisa. A natureza de alguma coisa é sua forma de ser, de chegar a ser e de operar no conjunto ~o rest~ do que existe. De modo que a Natureza com mai~scula sera o conJun~ to dos poderes ou propriedades de todas ~s c01sas, t~nto das que .h~ como das que poderia haver, conforme d~z, ~om raz~o, Stuart Mil!. "Assim, 'Natureza', em sua acepção mais simples, e o nome cole­tivo para todos os fatos, tanto os que ocorrem como os meramente possíveis; ou (para falar mais precisament~) um nom,e para o modo, em parte conhecido e em parte desconhecido para nos, pelo qual as

coisas acontecem." . Claro que estamos nos referindo realmente a tu~o º. que exis-

te no universo, ou que pode existir, seja animado ou mam.i:iad?, ra­cional ou irracional, inclusive as mesas, os castelos, os av10es ~nter­continentais e demais artefatos que nós, humanos, produzimos. Qualquer uma das coisas feitas pelo homem também t~m sua nat~­reza tal como uma flor ou um rio, e responde a propnedades físi­cas ~u químicas que compartilha com muitos seres não humana­mente fabricados. Nesse sentido, nada do que o homem faça pode ir contra a natureza, nem destruí-la ou prejudicá-la, pois os produ­tos do homem também fazem parte dela (não está nas mãos do ho­mem "violar" a natureza, mas apenas utilizar de um modo ou de ou­tro os seus padrões). Um pesticida não é mais nem menos "na~ral:' dó que a água clara da fonte, a bomba atômica. res~onde a prmci­pios tão naturais quanto o amanhe~er ou. a fabncaça? ~e ~avos pe,~ las abelhas, o incêndio provocado mtenc10nalmente e tao ~atura! quanto a floresta devastada por ele. O home~ pode destrmr certos objetos naturais ou prejudicar out~os seres ;iv?s, mas sempre s~­guindo procedimentos que se baseiam na propna ~atu_reza das c01-sas. Neste primeiro sentido do termo há uma contmmdade natural entre tudo o que existe ou acontece na realidade.

l. A natureza , de John Stuart Mil!. [Traduzido a p.artir do texto citado pelo au­

tor: La naturaleza, trad. esp. C. Mellizo, Alianza Editorial, Madn.]

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Mas há outro sentido da palavra "natureza" segundo o qual é natural tudo o que aparece no mundo sem intervenção humana. No livro X de sua Física, Aristóteles estabelece que são seres naturais os que têm seu princípio e finalidade em si mesmos, ou seja, os que são espontaneamente o que são e como são. Pelo contrário, uma cama ou um computador têm seu princípio na capacidade de produ­ção do homem e respondem a fins que os homens se propuseram. De um lado, então, estão os seres naturais, brotados de uma espon­taneidade criadora que chamamos, em seu conjunto, de "natureza"; de outro, os objetos artificiais, fruto da arte ou da técnica humana (a palavra grega techné, donde provém nossa "técnica", também signi­fica "arte"). Mas a distinção entre uma coisa e outra deixa preocu­pantes zonas de penumbra. Em 1826 foi sintetizada pela primeira vez em laboratório a uréia, uma substância que também existe es­pontaneamente na natureza: o produto assim obtido deve ser consi­derado natural, artificial... ou artificialmente natural? As diversas raças de cães, os porcos Duroc-Jersey ou os cavalos de corrida são naturais ou artificiais? E as variedades de flores conseguidas por en­xertos? O reflorestamento é natural ou artificial? A maioria das paisa­gens que nos cercam são inseparáveis da ação humana, seja porque ela tenha interferido ativamente em sua configuração, seja por­que tenha deixado de intervir, embora pudesse fazê-lo. Essa evi­dência transforma em "artificial" todo o nosso entorno? Claro que a questão mais dificil é colocada pelo próprio ser humano, que não chegaria a existir sem a intervenção de outros seres humanos que o engendrassem fisica e culturalmente. Segundo afirma Lévi-Strauss em sua Antropologia estrutural, "os homens não fizeram menos a si mesmos do que fizeram as raças de seus animais domésticos". Nós, humanos, somos naturais, artificiais ... ou artificiais por natureza?

Quando o aplicamos ao caso do homem, o termo "natureza" se contrapõe em primeiro lugar a "cultural": o natural é o inato, o bio­logicamente determinado, o que não se escolhe nem se aprende, mas se padece; em contrapartida, é cultural o aprendido, o que re­cebemos por bem ou por mal de nossos semelhantes, o que esco­lhemos ou imitamos, tudo o que fazemos deliberadamente. Volte­mos a consultar o antropólogo Lévi-Strauss: "Digamos que tudo o que é universal no homem provém da ordem da natureza e se carac-

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teriza pela espontaneidade, ao passo que tudo o que é submetido a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos do relativo e do particular (As estruturas elementares do parentesco). Quanto à primeira parte dessa afirmação - o universal no homem é natural-, convém assinalar que seu contrário não é verdadeiro: o inato ou na­tural em cada ser humano concreto tem múltiplas particularidades, algumas genéricas e compartilhadas com muitos outros (o sexo, por exemplo, ou a cor da pele e dos olhos, certas malformações, etc.), mas outras únicas e irrepetíveis (impressões digitais, dotação gené­tica, salvo em gêmeos univitelinos, etc.). Também poderíamos con­siderar parte 'natural' de cada um as mudanças acidentais que sua estrutura fisica vai sofrendo, por exemplo as seqüelas deixadas pela poliomielite ou o simples e universal fenômeno do envelhecimen­to, uma vez que não há pessoas que envelheçam de maneira exata­mente igual. Nem, certamente, que morram de maneira exatamen­te igual. Por certo também cabe discutir esse último ponto: se fico manco depois de ser atropelado por um carro, trata-se de um per­calço 'natural' ou 'cultural'? Ou de um percalço 'cultural' que afe­ta minha parte 'natural'? Lembro agora o velho chiste: 'Do que morreu o Fulano? De morte natural. Como foi? Um piano caiu do oitavo andar em cima dele. E você chama isso de morte natural? Ora, se você não acha natural que alguém morra quando um piano lhe cai em cima .. .' "

Acontece que, em cada um de nós, qualquer característica "na­tural" está sempre contaminada pela cultura, e vice-versa. Nada mais natural e universal nos humanos - como nos outros animais - do que a necessidade de comer, mas ninguém come sem se submeter a normas culturais, reverenciar modas gastronômicas, escolher ou r~­jeitar alimentos de acordo com hábitos adquiridos: é natural ter que se alimentar mas sempre nos alimentamos culturalmente. Perg1:111te­se aos sobreviventes daquele acidente aéreo nos Andes, que tiveram que optar entre devorar os cadáveres de outras vítimas ou morrer de inanição enquanto esperavam ser resgatados! Inclusive se tivessem sido obrigados a finalmente sacrificar algum deles para continuar se alimentando, certamente teriam feito um sorteio, em vez de es­colher o mais gordinho, como seria "natural" ... Também é natura­líssimo, ao que parece, o instinto sexual, mas não o tabu do inces-

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to, o casamento, o amor romântico, os Vinte poemas de amor e uma canção desesperada de Pablo Neruda, etc. É "natural" querer pro­teger-se das inclemências do tempo, mas não o é construir palácios ou casas geminadas, nem mesmo decorar as cavernas com pinturas rupestres ... E o que dizer do poder? Provavelmente é muito natural que os mais fortes dominem os fracos, como Calicles lembra a Só­crates no Górgias de Platão, mas isso nunca acontece entre os hu­manos sem um complicado aparato político e jurídico. E muitas ve­zes acontece o caso assombroso de que os física ou naturalmente mais fortes obedeçam a um velho ou até a uma criança por razões culturais cuja "artificialidade" foi destacada por um amigo de Montaigne, Étienne de la Boétie, em seu Discurso sobre a servidão voluntária. A "força" com que alguns homens se impõem a outros quase nunca é mera superioridade muscular ou numérica, sempre precisa passar ao simbólico, ou seja, "artificializar-se" ...

E também se pode contar a história a partir do outro lado. Nas sofisticadas conferências de política internacional vêem-se de vez em quando brilhar as garras e as presas da fera "natural" que talvez sejamos, os ouropéis do desfile de modas se explicam, afinal de contas, pela cobiça carnal de nosso instinto, e Proust não foi o pri­meiro nem o último homem que, em sua hora derradeira, esqueceu o prestígio das convenções para morrer, muito naturalmente, cha­mando a mãe. Como entender tudo isso? Diremos que o homem é composto de camadas superpostas, como uma cebola, e que as mais básicas ou íntimas são naturais enquanto sobre elas foi se deposi­tando o estrato da educação, da sociabilidade, dos artifícios, etc.? Agora lembro que nos romances de Tarzã - que tanto contribuíram para a felicidade de minha adolescência - , quando o significativa­mente assim chamado "homem-macaco", muito depois de ter aban­donado a selva, enfrentava seus inimigos, o começo de sua ira jus­ticeira costumava expressar-se mais ou menos assim: "Então rom­peu-se a fina crosta de civilização que o cobria e ... " E os malvados podiam pôr-se a tremer! Será a cultura simplesmente uma capa ou mão de pintura que recobre nossa natureza intacta? Parece antes que a impregnação transforma uma coisa e outra em inseparáveis, tal como escreve em sua Fenomenologia da percepção um filósofo contemporâneo, Maurice Merleau-Ponty: "É impossível sobrepor

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no homem uma primeira capa de comportamentos que chamaría­mos 'naturais' e um mundo cultural ou espiritual fabricado. Tudo é fabricado e tudo é natural no homem, diga-se o que for, no sentido de que não há uma palavra nem uma conduta que não deva algo ao ser puramente biológico e que ao mesmo tempo não se furte à sim­plicidade da vida animal, não desvie de seu sentido as condutas vi­tais, por uma espécie de escamoteio por um gênio do equívoco que poderia servir para definir o homem." Por mais que mergulhemos no fundo natural do humano, sempre encontramos o carimbo da cultura mesclando o adquirido com o inato; do mesmo modo, não há como isolar uma atitude ou perspectiva cultural que não cheire a zoológico, a condicionamento simiesco. O mais natural nos ho­mens é nunca o ser totalmente.

Aplicado à conduta humana, o termo "natural" também tem ou­tros usos comuns que vale a pena pelo menos mencionar de passa­gem, pois ilustram o que se mostrou até aqui. Por exemplo, dizemos que um comportamento é "natural" quando corresponde ao que é habitual ou costumeiro. Já se disse, com razão, que o costume é uma segunda natureza... que muitas vezes substitui ou desloca a primeira! Assim, é "natural" na Espanha começar uma refeição to­mando sopa, para depois continuar com o prato principal, ao passo que os chineses ou os japoneses consideram "natural" tomá-la mais adiante ou no final da refeição. É "natural" o mais antigo, o habi­tual, o de sempre ... razão pela qual alguns consideram "antinatural" todo elemento modernizador que rompa as rotinas estabelecidas: com essa dificuldade esbarraram os que quiseram abolir a escravi­dão ou a pena de morte, assim como os defensores da igualdade ji.i­rídica e trabalhista entre homens e mulheres ou os que lutam con­tra a discriminação ao homossexualismo.

Também se costuma chamar de "natural" o comportamento dos que atuam de maneira não premeditada, impulsiva: é "natural" , por exemplo, a pessoa se zangar muito quando é insultada ou co­meçar a rir quando vê alguém escorregar numa casca de banana. Mas por acaso a educação recebida ou a experiência social de cada um não tem a ver com essas reações supostamente espontâneas? Quem acaba de fraturar uma perna num escorregão, por exemplo, não costuma rir quando vê outra pessoa cair, mas acode mancando

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para ~jud~-la ~se levantar ... Se o homem, por mais animal que seja, ta~b~m e racional, por que não seria tão "natural" pensar o que se vai dizer ou fazer quanto reagir sem pensar? Finalmente, dizemos que uma pessoa deixa de se comportar "naturalmente" - de acordo com seu "modo de ser" - quando ela muda de atitude ou de condu­ta por influência de alguma causa exterior: por exemplo, Fulano era "naturalmente" alegre até que seu filho morreu ou era pacífico até que o provocaram. Mas também não é "natural" mudar quando mu­dam as circunstâncias? Esses estímulos externos não revelam uma "forma de ser" mais verdadeira - ou igualmente verdadeira - do que a demonstrada até então? Lembremos o que dizia Schopen­hauer sobre o "não nos deixes cair em tentação" ...

Afinal de contas, dá a impressão de que os próprios termos "natural" ou "natureza humana" encerram aspectos fortemente cul­turais. Até parecem inventados para servir de contrapeso à cultura e ao mesmo tempo de parâmetro para avaliá-la e talvez orientá-la. l'.m pensad~r do século XVIII ao qual geralmente se atribui espe­cial nostalgia pelo primitivo "estado de natureza" humano, Jean­Jacques Rousseau, reconhece em seu prefácio ao Discurso sobre a origem e fundamento da desigualdade entre os homens: "Não é em­preitada fácil desenredar o que há de original e de artificial na Na­ture~~ ªU:ªl do. homem e conhecer bem esse estado (o de Natureza), que Jª nao existe, que talvez nunca tenha existido, que provavel­~ente nunca ex~stirá, do qual no entanto é necessário ter noções Justas para bem Julgar nosso estado presente." Precisamos do natu­ral ou do ~stado de natureza para valorar adequadamente a situação atual (social, moral, etc.) em que vivemos. Precisamos dele mesmo que, como honrosamente Rousseau reconhece, nunca tenha existi­do e nunca venha a existir! Temos que comparar esse ideal chama­do "Natureza" com a realidade humana em que vivemos atualmen­te, para determinar se nos afastamos de sua perfeição ou se cami­nhamos para ela. A resposta de Rousseau (e de quase todos os que propõem esse exercício de valoração) é que nossa sociedade atual está se distanciando do ideal da Natureza, e tanto mais quanto mais "moderna" é a instituição concreta que consideramos (embora Rousseau ache que não se deve chorar pela inocência perdida mas tratar de reconstruir algumas de suas melhores realizações igualitá-

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rias por meio de um novo contrato social). Atualmente, certos eco­logistas radicais chegam a defender os "direitos" inalienáveis da Natureza acima dos mesquinhos e depredadores direitos humanos. Inevitavelmente, a pergunta é: por quê?

Os que tomam um certo ideal chamado "natureza" como me­dida ou padrão para valorar a realidade humana parecem entender por "Natureza" o estado original em que todas as coisas, esponta­neamente ou por desígnio de seu divino Criador, ainda eram como deve ser. Depois os homens surgiram, cresceram, se multiplicaram e sobretudo "pecaram" (ou seja, inventaram artifícios não previstos no plano natural), o que os condenou a uma forma de vida "antina­tural" e má, que acabou contaminando seu próprio meio natural. Pois bem, de onde eles tiram que a Natureza é o ideal do que "deve" ser? Entendida no primeiro sentido comentado anteriormente - o conjunto das propriedades e "forma de ser" de todas as coisas exis­tentes-, a Natureza tem a ver apenas com o que as coisas são, nun­ca com o que "deveriam" ser ... a não ser que decidamos que as coi­sas sempre devem ser o que são, o que acaba com qualquer "valo­ração" imaginável! Justamente o que parece que nunca encontra­mos no mundo natural são "valores", ou seja, o Bem e o Mal em suas manifestações mais indiscutíveis. Em todo caso, podemos mostrar coisas naturalmente "boas" ou "más" de acordo com a for­ma de ser de cada um dos elementos que existem. Por exemplo, para o fogo a água é algo muito "mau", pois ela o apaga. Em con­trapartida, é uma coisa muito "boa" para as plantas, que necessitam dela para crescer. O leão é muito "mau" para os antílopes e as ze­bras, porque os devora. No entanto, na opinião do leão, os "maus" seriam os antílopes e as zebras que se esforçassem por correr tanto que ele nunca pudesse caçá-los, pois o condenariam a morrer de fome. Os antibióticos são muito "bons" para o homem porque ma­tam os micróbios que o fazem adoecer, embora sejam "péssimos" para os próprios micróbios que eliminam. Etc., etc.

Quer dizer que, conforme já observaram Spinoza e alguns ou­tros sábios que houve no mundo, o naturalmente "bom" para cada coisa é o que lhe permite continuar sendo o que é, e o "mau" é aqui­lo que coloca obstáculos a sua forma de ser ou a destrói. Mas, como na Natureza há muitíssimas - infinitas? - coisas diversas, cada uma com interesses correspondentes ao que ela é por natureza, é inevitá-

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vel que não haja um Bem nem um Mal válidos para todo o real, mas uma pluralidade de "bons" e "maus", tão numerosos quanto as coi­sas diferentes que há na realidade. O "bom" para esta é "mau" para aquela e vice-versa. De modo que os que pretendem estabelecer um ideal "natural" para julgar a conduta e o devir humanos terão primei­ro que determinar não o que os homens são agora, nem o que fo­ram ontem ou há mil anos, mas o que são "por natureza", ou seja, o que são, foram ou serão quando cumprirem sua "forma de ser" própria, quando foram, forem ou chegarem a ser "como deve ser". Para isso deveríamos separar claramente o "natural" do "cultural", o plano da "natureza" dos projetos culturais realizados pelo homem consigo mesmo, o que não é precisamente uma tarefa fácil, confor­me o próprio Rousseau se viu obrigado a reconhecer. E, além do mais, como ter certeza de que a própria "cultura" não é o desenvol­vimento mais "natural" do que convém ao homem? Se não há ho­mens sem "cultura'', como poderia a "cultura" não ser algo natural, que corresponde a nossa forma de ser em qualquer tempo e lugar?

Mais ainda: poderíamos dizer que o artificial é algo melhor do que o natural e que sua utilidade consiste justamente em nos prote­ger da natureza. Os remédios são artificiais mas servem para nos curar das doenças, que são naturalíssimas; a calefação artificial nos protege do frio natural e o artificio do pára-raios nos livra do raio natural. O artificial não só nos protege como também nos potencia: permite-nos viajar até a Lua, descobrir seres microscópicos, comer presunto delicioso, ouvir música sem que haja nenhuma orquestra presente e está me servindo agora para me comunicar com você, leitor, por meio destas páginas impressas (mesmo que talvez você não esteja disposto a considerar esta última como uma grande van­tagem do artificio!). Se não houvesse cultura artificial, dizem al­guns otimistas, viveríamos menos, nos moveríamos mais devagar, seríamos muito mais ignorantes, teríamos que nos alimentar de tu­bérculos e carne crua, perderíamos tempo lutando aos socos com os ursos e não nos deleitaríamos com Shakespeare, Mozart ou Hitch­cock. Mas os pessimistas nos lembram que sem tantos artificios não teríamos que padecer a contaminação dos mares nem das flo­restas por substâncias fabricadas pelo homem, não morreriam mi­lhões de pessoas em tiroteios e bombardeios, não haveria acidentes de automóvel nem de avião, os governantes não poderiam nos vi-

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giar eletronicamente e nunca cairíamos na tentação de nos embru­tecer vendo concursos na televisão.

O bom Stuart Mil! protestava, amargurado: "Se o artificial não é melhor do que o natural, que finalidade há em todas as artes da vida? Cavar, arar, construir, vestir-se são violações diretas do man­damento de seguir a Natureza." Alguns lhe responderão que melhor seria e melhores seríamos se seguíssemos tais mandamentos natu­rais. Mas o problema fundamental continua sendo o mesmo: por aca­so sabemos o que a Natureza manda? Podemos dizer que nos "man­da" morrer quando pegamos algum micróbio e que ela nos "proí­be" de usar óculos ou voar? Por acaso sabemos o que a Natureza quer - se é que existe uma senhora tão importante - de nós ou em nós?

Dos acontecimentos naturais podem-se tirar lições morais mui­to diferentes. Por exemplo, os filósofos estóicos, no início da era cris­tã, recomendavam viver de acordo com a Natureza e entendiam que esse acordo consistisse em refrear as paixões instintivas, ser verda­deiros e abnegados, cumprir honrosamente os deveres de nossa si­tuação social, etc. Mas Nietzsche zomba assim de suas pretensões: "Vocês querem viver ' de acordo com a Natureza'? Ó nobres estói­cos, que engano o seu! Imaginem uma organização como a Nature­za, pródiga sem medida, indiferente sem medida, sem intenções e sem considerações, sem piedade e sem justiça, ao mesmo tempo fe­cunda, árida e incerta; imaginem a própria indiferença erigida em poder: como seria possível viver de acordo com essa indiferença? Viver não é justamente a aspiração a ser diferente da Natureza? Pois bem, admitindo que seu imperativo 'viver conforme a Natureza' sig­nificasse no fundo o mesmo que 'viver conforme a vida', não po­deriam vocês viver assim? Por que fazer um princípio do que vocês mesmos são, do que não podem deixar de ser? De fato, é o contrá­rio: pretendendo ler com avidez o cânone de sua lei na natureza, vo­cês aspiram a outra coisa, assombrosos atores que enganam a si mesmos. Seu orgulho quer impor-se à Natureza, fazer penetrar nela a moral e o ideal de vocês."2

2. Para além do bem e do mal, F. Nietzsche. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor: Más aliá dei bien y del mal, § 9, trad. esp. de E. Ovejero y Maury, Agui­lar, Madri .]

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Os que recomendam comportar-se "de acordo com a Nature­za" selecionam alguns aspectos naturais e descartam outros. Os es­tóicos queriam ser "naturais" controlando suas paixões e respeitan­do o próximo, ao passo que, por exemplo, o marquês de Sade esta­va convencido de que não há nada mais "natural" do que fazer tudo aquilo que nos apetece, doa a quem doer e por mais dano que se cause aos outros. Ou será que vemos a Natureza preocupada com o sofrimento de tantos milhões de seres vivos que padecetn para que os outros satisfaçam seus apetites à sua custa? Em sua disputa com Sócrates (no Górgias de Platão), Calicles também sustenta que a primeira "lei" da Natureza diz que os mais fortes e inteligentes têm direito a dominar o resto dos homens e a possuir as maiores rique­zas, e por isso considera "antinaturais" e portanto "injustas" as leis democráticas que estabelecem a igualdade de direitos na pólis, as quais protegem os fracos e difundem uma moral semelhante à de Sócrates, segundo a qual é preferível padecer um apuro a causá-lo. Hoje não faltam cientistas sociais ou políticos que dêem razão mais ou menos explicitamente a Calicles em nome da teoria da evolução de Charles Darwin: se a Natureza vai selecionando os indivíduos mais aptos de cada espécie (as espécies mais aptas entre as que competem em um mesmo território) por meio da "luta pela vida", que elimina os mais frágeis ou os que pior se adaptam às circuns­tâncias ambientais, não deveria a sociedade humana fazer o mesmo e deixar que cada um demonstrasse o que vale, sem levantar os caí­dos nem subvencionar os torpes? Assim a sociedade funcionaria de modo muito mais "natural" e se favoreceria a multiplicação da raça impiedosa mas eficaz dos triunfadores ...

No entanto, esses Calicles modernos não leram Charles Dar­win com muita atenção. As doutrinas que eles professam devem-se mais a alguns "hereges" do darwinismo, como Francis Galton (um primo de Darwin que inventou a eugenia, segundo a qual a repro­dução da espécie humana deve ser orientada como a dos animais domésticos, a fim de produzir os melhores exemplares, teoria que os nazistas puseram em prática de maneira atroz) e Herbert Spen­cer, filósofo social partidário de um ultra-individualismo radical. Em contrapartida Darwin, em A ascendência do homem (seu se­gundo grande livro, depois de A origem das espécies), sustenta algo

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muito diferente e bem mais sutil. Segundo ele, foi a própria seleção natural que favoreceu o desenvolvimento dos instintos sociais - em especial a "simpatia" ou "compaixão" entre os semelhantes - nos quais se baseia a civilização humana, ou seja, o êxito vital de nos­sa espécie. Para Darwin, é a própria seleção natural que desembo­ca na seleção de uma forma de convivência que aparentemente con­tradiz a função da "luta pela vida" em outras espécies, mas que apresenta vantagens de ordem já não meramente biológica, mas so­cial. Ao contrário do que supõem Calicles e seus discípulos, o que nos faz "naturalmente" mais fortes como conjunto humano é a ten­dência instintiva a proteger os indivíduos fracos ou circunstancial­mente desfavorecidos em face dos biologicamente mais potentes. A sociedade e suas leis "artificiais" são o verdadeiro resultado "natu­ral" da evolução de nossa espécie! De modo que o "antinatural" para nós será recair da "luta pela vida" nua e crua, na qual prevale­ce a simples força biológica ou seus equivalentes modernos: por exemplo, a habilidade de alguns para acumular em suas mãos os re­cursos econômicos e políticos que deveriam estar distribuídos de modo socialmente mais equilibrado. Dessa questão teremos que fa­lar no próximo capítulo.

Afinal de contas, será preciso dar razão ao velho Galileu quan­do, no início do século XVII, ele confessa numa carta a Grienber­ger que "a natureza não tem nenhuma obrigação para com os ho­mens nem firmou nenhum contrato com eles". Porém o contrário também é verdade? Podemos dizer que nós, os homens, não temos nenhuma obrigação para com a natureza, uma vez que os únicos contratos que nos obrigam sempre são firmados com humanos como nós? Muitas pessoas acham que temos um certo tipo de 'de­veres para com os seres naturais, como por exemplo não poluir os mares, não atentar contra a biodiversidade do mundo exterminando espécies vegetais ou animais, não destruir as paisagens bonitas, não fazer sofrer outros seres vivos capazes de sentir dor, etc. Para aten­der a uma distinção que já utilizamos anteriormente, sem dúvida é "racional" pôr os elementos naturais a nosso serviço para melhorar nossa vida, prolongá-la e torná-la mais interessante, mas também parece "razoável" respeitar e conservar determinados aspectos da natureza com os quais nos achamos especialmente vinculados ou

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que não poderemos substituir se forem destruídos. Afinal nossa própria vida como seres humanos - não só em seus aspect;s estri­tamente bio~ógicos como também em sua vertente simbólica que nos caractenza como espécie - se nutre permanentemente de acon­tecimentos "naturais", em qualquer sentido que demos à palavra.

Se não me engano, quando falamos de certas obrigações hu­manas para com a natureza, queremos dizer que, embora nela não haja valores propriamente ditos, pode ser justificado nós conside­rarmos valiosas algumas de suas realidades. Novamente mesclam­se assim o "cultural" e o "natural", porque atribuir valor é a tarefa cultural por excelência, a dimensão menos "natural" .. . de nossa própria "natureza"! O funcionamento geral da natureza, tal como podemos observá-lo, é regido pela mais estrita neutralidade ou in­diferença: a natureza não tem preferências entre os seres, destrói e engendra com perfeita imparcialidade, não parece mostrar nenhum "respeito" especial por suas próprias obras. Como o mar vê se su­cederem suas ondas que se desmancham umas às outras sem pre­tender conservar nenhuma delas em especial, assim age a Natureza com relação às criaturas. Entre as falias* de Valência sempre há ~ma que se salva da queima, por aclamação do povo, que a prefere as outras, mas a Natureza nunca indulta nenhum de seus ninots** ...

N_ão podemos afirmar que a "natureza" sente mais simpatia pe­los peixes do mar do que pelas substâncias químicas que os dizi­mam, nem mais pela floresta do que pelo fogo que a destrói, nem q~e ela mostra mais interesse por qualquer um de nós do que pelo vrrus da AIDS que nos mata. Milhares de espécies vivas, a começar pelos veneráveis dinossauros, foram destruídas "naturalmente" an­tes que o homem surgisse sobre a terra; os astros explodem nos céus longínquos em conflagrações monumentais que deixam no chinelo a maior de nossas bombas nucleares com a mesma "naturalidade" com que aparecem novos sóis, etc. Mas "valorar" é justamente fa­zer diferenças entre umas coisas e outras, preferir isto a aquilo, es-

. *Alusão à_ festa popular valenciana, na véspera de São José, em que as/atlas, figuras de madeira e papelão em geral alusivas a acontecimentos da atualidade são queimadas em praça pública. (N. da T.) '

**Bonecos que são levados às ruas por ocasião das/atlas de Valência. (N. da T.)

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colher o que deve ser conservado porque tem mais interesse do que o mais. A tarefa de valorar é o empenho humano por excelência e a base de qualquer cultura humana. Na natureza reina a indiferença, na cultura a diferenciação e os valores. Então devemos nos pergun­tar que critérios de valoração podemos ter para fundamentar nossas supostas "obrigações" para com os elementos naturais. Deixando claro de antemão que, sejam quais forem esses critérios, sempre se­rão "culturais" e nunca propriamente "naturais" ...

Na minha opinião, poderiam ser de três classes: uns descobri­riam o valor intrínseco de certas coisas naturais (ou de todas!), ou­tros atenderiam à utilidade dos elementos naturais para nós e, final­mente, os estéticos, que se baseariam na beleza do natural. Vejamos brevemente cada um desses modelos de valoração:

- O valor intrínseco da natureza me parece o mais difícil de ar­razoar, a não ser que se adote uma perspectiva religiosa segundo a qual tudo o que existe é sagrado porque foi criado por um Deus sá­bio e bom, etc. Ainda assim, não é fácil sustentar esse ponto de vis­ta, pois algumas das religiões que conhecemos melhor (por exem­plo, a judaica e a cristã) sustentam que as coisas naturais foram pos­tas por Deus a serviço do homem e não descartam o sacrifício do gado para homar a divindade ou cortar milhares de flores para ofe­rendá-las à Virgem de Pilar. Evidentemente, todas as igrejas conhe­cidas bendizem explodir as rochas de uma montanha para construir ali um belo templo ou um mosteiro. Na verdade, o "sagrado" con­siste em apontar certos lugares ou certas coisas mais valiosas e res­peitáveis do que outras semelhantes (uma árvore que não é como as outras árvores, uma fonte que não é como as outras fontes, etc., por causa de alguma presença divina ou santa), o que vai diretamente de encontro à suposição do valor intrínseco das realidades naturais . Em resumo: se todo o natural é "puramente" natural, nada tem pro­priamente mais valor do que qualquer outra coisa, ou seja, nada tem valor próprio; se há algo de "sobrenatural" no natural, seu valor deve provir desse acréscimo divino, e não dele mesmo.

Só poderia haver uma relativa exceção: a obrigação de respei­tar a vida, porque se trata de uma condição que nós também com­partilhamos. Poderíamos dizer que temos a obrigação de respeitar todos os seres vivos, pois são nossos "irmãos" vitais . Mas, como a caridade bem entendida começa por si mesmo, respeitar "nossa" vi-

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da nos obriga a inevitavelmente sacrificar outras: os animais e ve­getai~ que com_emos (ninguém pode alimentar-se só de minerais), os m1croorgamsmos que eliminamos para nos curar de nossas doenças, as pragas que exterminamos para conservar nossas plan­tações, etc. Até os jainistas (que colocam um véu diante da boca para não respirar insetos sem se dar conta) "matam" umas alfaces de vez em quando para se alimentar. Em contrapartida, talvez pos­samos dizer que há algo intrinsecamente valioso em evitar sofri­mentos desnecessários aos animais dotados de um sistema nervo­so capaz de sentir dor. O difícil é então esclarecer o que é "desne­cessário", pois o parâmetro só pode ser estabelecido por nossas ne­cessidades humanas: parece evidente que é "desnecessário" torturar um animal pelo mero prazer de vê-lo sofrer, mas é necessário ou desnecessário alimentar monstruosamente os gansos para obter foi e gras, caçar baleias, tourear, matar o porco, etc.? Isso nos leva ao ponto seguinte.

- O valor utilitário de certas coisas naturais é o mais fácil de arg~e~tar. A obrigação de não poluir o ar, as florestas, ou as águas denva d!retamente do fato de que nos são úteis. Faremos mal se de­teriorarmos nosso meio pela mesma razão pela qual faremos mal se pusermos fogo na nossa casa .. . ou na do vizinho! Se destruímos ho­je por torpeza ou cobiça aquilo de que necessitaremos amanhã es­~an:os agindo de ~aneira suicida; se pelas mesmas más razões ~re­JUd1camos o ambiente de outros seres humanos ou mesmo aquilo de que podemos supor que nossos filhos irão necessitar, estamos agin­do de maneira criminosa. Segundo esse critério, é valioso na natu­reza tudo o que nos é imprescindível ou benéfico e que não sería­mos capaz de substituir se desaparecesse. Por isso é imprescindível tentar encontrar caminhos que tornem os benefícios do desenvolvi­mento industrial compatíveis com a economia de energias não re­nováveis e de outros recursos naturais, tal como propõe de manei­ra engenhosa e sugestiva um filósofo suíço com muito senso práti­co - Suren Erkman - em um livro recente, cujo título já encerra todo o seu programa: Por uma ecologia industrial: como colocar em prática o desenvolvimento duradouro numa sociedade hiperin­dustrial. Os enfoques atuais do que vem a se chamar "sustentabili­dade", embora variados, estariam nesse contexto.

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O critério estético é ao mesmo tempo convincente e também muito complexo. A contemplação de certas formas da natureza nos é prazerosa: nós as consideramos "bonitas" (no capítulo nove des­ta obra tentaremos abordar as perguntas suscitadas pela questão ge- · ral da beleza). Os animais, as flores e florestas, os mares, o céu es­trelado, etc., alimentam nossa imaginação e suscitam em nós senti­mentos de serenidade e satisfação. Mas esses sentimentos nem sempre são compartilhados universalmente: os pescadores têm uma visão "estética" do mar muito diferente de nós, que não temos que enfrentar seus temporais, e os pastores apreciam os lobos menos do que alguns ecologistas da cidade. Às vezes talvez seja conveniente lembrar o ditado cheio de bom senso embora um pouco cínico de Jules Renard em uma anotação de seu Diário (21 de fevereiro de 1901): "Sim, a natureza é bela. Mas não te enterneças demais com as vacas. Elas são como todo o mundo." Porque, além do mais ova­lor estético da natureza que nos obrigará a respeitar as paisagens às vezes colide com outros valores, quer utilitários, quer também es­téticos: por exemplo, a polêmica despertada pelo projeto do escul­tor Eduardo Chillida de vazar a montanha canária de Tindaya para transformá-la em uma grande obra de arte. Devemos preferir a es­tética "espontânea" da natureza ou a estética do artista, dotada de um significado humano?

Possivelmente é razoável resumir o sentido de nossas "obriga­ções" para com a natureza numa fórmula que um filósofo contem­porâneo, Hans Jonas, denominou imperativo ecológico: "Age de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a perma­nência de uma autêntica vida humana sobre a terra" (em O princí­pio de responsabilidade) 3

• E nem assim acabamos com as dúvidas incômodas, pois como determinar de modo inequívoco e universal­mente válido o que é uma "autêntica" vida humana?

A relação característica do homem com o acontecer natural sempre se baseou na técnica. Ao lado da linguagem simbólica, a técnica é a capacidade ativa mais distintiva de nossa espécie. O que

3. Evidentemente, a fómula de H. Jonas parafraseia o imperativo categórico que condensa a norma moral segundo Kant: "Age segundo aquela máxima que ao mesmo tempo possas querer que se transforme em norma universal."

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é a técnica? Não só o manejo de instrumentos para realizar certas operações vitais (usar um pau para alcançar uma fruta que está mui­to no alto), pois isso também fazem vários primatas e alguns inse­tos sociais, como também criar instrumentos por meio dos quais se possam fazer outros instrumentos: pegar uma pedra dura e afiá-la para cortar galhos de árvores, poli-las e transformá-las em paus com os quais se alcancem frutas que estejam muito no alto .. . Em suma, há técnica não só quando se dá um uso instrumental aos ob­jetos como também quando existem procedimentos para transfor­mar os objetos em instrumentos. Por extensão, chama-se "técnica" a todos os procedimentos necessários para fazer bem alguma coisa: a dança tem sua técnica, assim como o toureio ou a argumentação. Nesse sentido, a "técnica" nunca designa um comportamento oca­sional, único (por mais genial que seja), mas implica um conjunto de modos e regras que se transmitem, que podem ser aprendidos e reproduzidos: uma certa tradição eficaz.

Diferentemente da ciência, que pode ser meramente contem­plativa ou "desinteressada" - embora quase nunca o seja por muito tempo ... - , a técnica responde sempre à vocação do homem para a ação, a seus interesses vitais, a seu anseio de produzir, conseguir, acumular, conservar, controlar, resguardar... ou agredir! Resumin­do: o anseio construtivo ou destrutivo de domínio . Na época moder­na, a proliferação assombrosa da técnica (diz-se que em nosso sé­culo foram patenteados noventa por cento de todas as invenções da humanidade ao longo de sua história) produziu dois sentimentos contraditórios. Por um lado, entusiasmo transbordante: os avanços técnicos - o progresso! - resolverão as doenças, a morte, a pobre­za, a ignorância, nos permitirão conquistar os céus e viver sob o mar, etc. Por outro, temor e hostilidade: a técnica chegou a tal pon­to que já somos capazes de exterminar "industrialmente" nossos se­melhantes, de assassinar multidões em poucos segundos e até de aniquilar toda forma de vida em nosso planeta. Graças à técnica, multiplicaram-se enormemente os recursos humanos e o próprio número de indivíduos da nossa espécie, mas também se destruíram os postos de trabalho de populações inteiras, aumentou o abismo que separa os povos desenvolvidos industrialmente daqueles que continuam conhecendo apenas as técnicas mais primitivas, aumen-

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tou exponencialmente a poluição do ambiente, e alguns até acredi­tam que estejamos ameaçados pelo esgotamento de certos elemen­tos naturais básicos. Hoje, qualquer ser humano de um país mode­radamente industrializado conta com possibilidades de conforto e entretenimento inauditos há poucas décadas: mas talvez sua vida esteja cada vez mais condicionada ao mero consumo de novidades que o cega para o conhecimento sossegado de si mesmo e dos ou­tros. Então a técnica é "boa" ou "má"? Provavelmente ambos os juí­zos se justifiquem, mas em todo caso em nada adiantam pois a téc­nica, ao que parece, se amplia e se multiplica apesar de nós, ainda que impulsionada por nossos anseios e cobiças. É como se caval­gássemos um tigre do qual já não poderemos saltar sem que seja­mos imediatamente devorados por ele ...

Talvez a visão mais feroz e depredadora do fenômeno técnico tenha sido esboçada em nosso século por Oswald Spengler, um pensamento de tom intensamente pessimista (sua obra mais conhe­cida intitula-se A decadência do Ocidente) . Para Spengler, "a técni­ca é a tática da vida inteira. É a forma íntima de se lidar com a luta, que é idêntica à própria vida ... Sem dúvida existe um caminho que, da guerra primordial entre os animais primitivos, conduz à atuação dos modernos inventores e engenheiros, e igualmente da arma pri­mordial, a cilada, conduz à construção das máquinas, com a qual se desenvolve a guerra atual contra a natureza e com a qual a nature­za cai na cilada do homem" 4

• Essa perspectiva da técnica como "guerra" contra a natureza contrasta com a visão clássica e renas­centista do mesmo assunto (até Francis Bacon, por exemplo), se­gundo a qual só é possível dominar a natureza obedecendo a ela, ou seja, prolongando sabiamente seus próprios procedimentos. Porêm o mais significativo em Spengler é sua insistência em que, uma vez empreendido o caminho da técnica, nunca mais poderemos nos de­ter, pois alimentando-nos com máquinas desperta nosso apetite por outras novas e devemos nos resignar a que "cada invenção contenha a possibilidade e necessidade de novas invenções, a que cada <lese-

4 O homem e a técnica, de O. Spengler. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor: El hombre y la técnica, trad. esp. de M. García Morente, col. Austral, Madri.]

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jo cumprido desperte outros mil desejos e cada triunfo obtido sobre a natureza estimule a novos e maiores êxitos. A alma desse animal de rapina é insaciável, sua vontade nunca pode ser satisfeita; essa é a maldição que pesa sobre esse tipo de vida, mas também a gran­deza de seu destino". Segundo Spengler, a técnica nasce como táti­ca vital do feroz depredador que há dentro de cada ser humano; mas não poderíamos dizer também que é o próprio desenvolvimento da técnica, cada vez mais acelerado, que fomenta nosso lado insacia­velmente depredador?

Um dos pensadores mais controvertidos de nosso século, e sem dúvida o de maior influência, Martin Heidegger, adotou uma visão da técnica - entendida como culminância da "vontade de po­der" nietzschiana - que se apóia claramente na perspectiva de Spengler. Mas para Heidegger não há nenhuma "grandeza" no des­tino que nos espera, mas antes o desespero de esquecer na socieda­de massificada e consumista as perguntas essenciais da vida. Ques­tões, por certo, que com a ressaca de nossa embriaguez tecnológica ainda teremos, mais cedo ou mais tarde, que voltar a nos formular: "Quando o mais longínquo rincão do globo tiver sido tecnicamen­te conquistado e economicamente explorado; quando um aconteci­mento qualquer for rapidamente acessível em um lugar qualquer e num tempo qualquer; quando se puderem 'experimentar' simulta­neamente o atentado a um rei na França e um concerto sinfônico em Tóquio; quando o tempo for apenas rapidez, instantaneidade e simultaneidade, ao passo que o temporal, entendido como acontecer histórico, tiver desaparecido da existência de todos os povos; quan­do o boxeador reger como o grande homem de uma nação; quando, em número de milhões, as massas triunfarem reunidas em assem­bléias populares, então, justamente então, voltarão a atravessar toda essa festa das bruxas, como fantasmas, as questões: para quê? para onde? e depois?"5

É preciso assinalar o toque elitista - despótico, talvez - de Hei­degger, mesclando o protesto diante do império vazio da técnica com

5. Jntrodução à metafisica, de M. Heidegger. [Traduzido a partir do texto cita­do pelo autor: lntroducción a la metafisica, trad. esp. de E. Estiú, Editorial Nova, Buenos Aires.]

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a denúncia dessas "assembléias populares" multitudinárias, ou seja, refutando a técnica junto com a democracia. De acordo com isso, o aristocrata do espírito possui o sentido artesanal do que importa de fato, ao passo que a massa se alimenta das aparências vulgarizado­ras de sabedoria proporcionadas pelos meios tecnicamente ultrade­senvolvidos de comunicação. Cabe indagar se às vezes as reservas à técnica entendida como produção insaciável de meios sem aten­ção aos fins não provém de uma concepção antidemocrática que re­pudia a difusão para a massa do que antes era apenas privilégio cul­tural e hierárquico de alguns. Em todo caso, as objeções de Heideg­ger são sérias demais para poderem ser desenvolvidas com uma ca­netada. Porém, será que a técnica é obrigatoriamente insaciável por provir de nossa índole de animais ferozes em luta contra o natural ou, antes, por responder a uma organização industrial sem nenhu­ma meta mais elevada do que o lucro privado dos investidores? Se­rão inimagináveis formas técnicas de reconciliação com a nature­za, da qual todos dependemos, não exclusivamente baseadas em

seu saque ilimitado? Seja como for, surpreende a mescla de "ad~ração" e desdém

que em nosso tempo se dispensa à tecnologia. E freqüente ouvir que as máquinas são inumanas e os romances de ficção científica exploraram de maneiras alarmantes e muitas vezes aterradoras essa "inumanidade". Mas o certo é que as máquinas podem ser qualquer coisa - má ou boa! - menos, justamente, "inumanas". Ao contrário, elas são completamente "humanas", pois são fabricadas de acordo com nossos projetos e nossos desejos. Segundo mostrou muito bem Karl Marx no primeiro livro de O capital, o que distingue a ca~a construída por um arquiteto da colméia feita pelas abelhas é que o arquiteto tem um "projeto" prévio da casa, fruto de sua imaginação colocada a serviço de seus desejos. A abelha não tem outro remé­dio senão fazer colméias, ao passo que nós podemos fazer casas, palácios, choças, sobrados geminados, ou sabe-se lá o quê. Nossas obras - quer sejam máquinas ou qualquer outro tipo de produto -, além de serem plenamente "humanas", são até mais humanas do que nós mesmos ... uma vez que, por outro lado, cada um de nós de­pende de um programa biológico não inventado pela mente huma­na. As máquinas são humanas, e demasiado humanas, porque pro-

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vêm apenas do cálculo humano, ao passo que nós somos também filhos do acaso ou do irremediável, em todo caso do que escapa a qualquer cálculo. Essa é a principal razão pela qual são eticamente questionáveis certos projetos de manipulação genética ou as formas de reprodução por clonagem que privariam o novo ser humano de uma parte de sua dotação genética casual, transformando-o em ma­nufatura de seus semelhantes. O que finalmente nos decepciona e em parte irrita nos produtos técnicos (mesmo nos mais imprescin­díveis) é que sabemos "tudo" o que eles são - e portanto não admi­timos que possam voltar-se contra nós -, mas o que nos fascina, as­susta e dá esperança quanto a nossos semelhantes humanos é que ninguém - nem eles mesmos! - pode saber inteiramente o que é e o que há de ser.

Justamente por isso, entre todas as técnicas há uma que é mais essencial, aquela da qual todas as outras dependem e sem a qual nada se poderia fabricar, a grande obra de arte dos humanos: nossa sociedade, o artefato que todos juntos formamos, vivendo em co­mum de acordo com determinadas normas .. . e em freqüente desa­cordo sobre elas! Dedicaremos o próximo capítulo a comentar di­versos aspectos dessa máquina social.

Dá o que pensar ...

, O que quer dizer que o homem é um "animal convencional"? E a mesma coisa que dizer que ele é um animal "simbólico"? É in­compatível sermos convencionais com termos "natureza"? Os ter­mos "natural" e "natureza "são usados sempre da mesma maneira? O que queremos dizer quando falamos da "natureza" das coisas? Todas as coisas que existem na realidade têm "natureza" ou só al­gumas? A "natureza " refere-se apenas ao que existe ou também ao que pode existir? E'!1 que outro sentido costuma-se empregar a pa­lavra "natureza"? E "natural" tudo o que existe sem intervenção do homem ou só o que não é "artificial"? Nós, homens, somos "natu­rais ", "artificiais" ... ou meio a meio? Pode-se separar, no homem, o natural do cultural? "Natural" e "natureza" são termos culturais ... ou naturais? O costume equivale a uma segunda natureza? Por que

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haveria de ser mais "natural" o arrebatamento instintivo do que o cálculo racional? Existem valores "naturais"? O que é o "bem" e o "mal " de acordo com a natureza? A "natureza" pode servir de ideal para julgar a realidade social humana? Temos obrigação de ser "naturais"? O que é moralmente melhor: o "natural" ou o "artifi­cial"? Nossos valores morais respondem ao que a Natureza orde­na? O que a Natureza quer de nós? O "artificial" ou cultural ser­ve para remediar os males da Natureza, pelo menos no que se refe­re a nós? Temos obrigações para com os seres naturais? Em caso afirmativo, por quê? O que é a técnica e como ela nos relaciona com a Natureza? Qual é a visão da técnica que tem Oswald Spen­gler? Quais são as limitações da sociedade tecnológica segundo Martin Heidegger? As máquinas são "inumanas"? Nós somos mais "inumanos" do que as máquinas ... felizmente? Qual é a obra-pri­ma e fundamental da capacidade técnica humana?

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Capítulo oito

Viver juntos

Ninguém chega a se tomar humano se está sozinho. Nós nos fa­zemos humanos uns aos outros. Fomos "contagiados" por nossa hu­manidade: é uma doença mortal que nunca teríamos desenvolvido se não fosse pela proximidade de nossos semelhantes! Foi-nos pas­sada boca a boca, pela palavra, mas antes ainda pelo olhar: quando ainda estamos muito longe de saber ler, já lemos nossa humanida­de nos olhos de nossos pais ou de quem cuida de nós em seu lugar. É um olhar que contém amor, preocupação, censura ou zombaria: ou seja, significados. E que nos tira de nossa insignificância natu­ral para nos tomar humanamente significativos. Um dos autores contemporâneos que tratou do tema com maior sensibilidade, Tzve­tan Todorov, expressa-o assim: "A criança procura captar o olhar de sua mãe não só para que esta acuda para alimentá-la ou reconfortá­la, mas porque esse olhar em si mesmo lhe traz um complement0 indispensável: confirma-a em sua existência. [ ... ] Como se soubes­sem a importância desse momento- embora não seja assim-, o pai ou a mãe e o filho podem olhar-se nos olhos longamente; essa ação seria completamente excepcional na idade adulta, quando um olhar mútuo de mais de dez segundos não pode significar mais do que duas coisas: que as duas pessoas vão brigar ou fazer amor." 1

1. A vida em comum, T. Todorov. [Traduzido a partir do texto citado pelo au­tor: La vida en común, trad. esp. de H. Subirats, Taurus, Madri.]

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Sendo como somos, como humanos, fruto desse contágio so­cial, à primeira vista é surpreendente que suportemos nossa socia­bilidade com tanto desassossego. Não seríamos o que somos sem os outros, mas custa-nos ser com os outros. A convivência social nun­ca é indolor. Por quê? Talvez justamente porque é importante de­mais para nós, porque esperamos ou temos medo demais dela, por­que nos incomoda precisar tanto dela. Durante um período de tem­po muito breve, cada ser humano acredita ser Deus ou pelo menos rei de seu minúsculo universo conhecido: o seio materno aparece para acalmar a fome (quase sempre em forma de mamadeira), mãos carinhosas respondem a nosso choro para nos secar, refrescar ou aquecer, para nos oferecer companhia. Falo dos felizes , pois há crianças cujo destino atroz lhes nega até esse primeiro paraíso de onipotência ilusória. Mas nosso reinado acaba logo, mesmo nos ca­sos menos infelizes. Logo temos que assumir que esses seres de quem tanto dependemos têm sua própria vontade, que nem sempre consiste em obedecer à nossa. Um dia choramos e a mamãe demo­ra para vir; isso nos anuncia e nos prepara à força para outro dia mais distante, o dia em que choraremos e a mamãe não virá mais.

A filosofia e a literatura contemporâneas estão repletas de la­mentos sobre a carga que nos impõe viver em sociedade, as frustra­ções que acarreta nossa condição social e os preservativos que po­demos usar para padecê-las o menos possível. Em seu drama Huis elos [Entre quatro paredes] , Jean-Paul Sartre cunhou uma sentença célebre, depois mil vezes repetida: "O inferno são os outros." Isso significa que o paraíso seria a solidão ou o isolamento (que por cer­to estão muito longe de ser a mesma coisa). O tema da "incomuni­cação" aparece também das mais diversas maneiras em obras de pensamento, romances, poemas, etc. Às vezes é uma queixa pela perda de uma comunidade de sentido que supostamente existia nas sociedades tradicionais e que o individualismo moderno destruiu; mas em outros casos parece provir antes desse próprio individualis­mo, que se considera incompreendido pelos outros no que tem de único e irredutivelmente "especial". Outros autores deploram ou se rebelam contra as limitações que a convivência em sociedade im­põe à nossa liberdade pessoal: nunca somos o que realmente quere­mos ser, mas o que os outros exigem que sejamos! Alguns formu-

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lam estratégias vitais para que o coletivo não devore totalmente nossa intimidade: colaboremos com a sociedade enquanto nos for vantajoso e saibamos nos dissociar dela quando nos parecer opor­tuno. Afinal de contas, como disse em certa ocasião a empreende­dora Mrs Thatcher, a sociedade é uma enteléquia e os únicos que existem realmente são os indivíduos ...

A favor desses protestos e receios há uma infinidade de argu­mentos aceitáveis. As modernas sociedades de massas tendem a des­personalizar as relações humanas, tornando-as apressadas e burocrá­ticas, isto é, muito "frias" em comparação com a "calidez" imedia­ta das antigas comunidades, menos reguladas, menos populosas e mais homogêneas. Em contrapartida, cresce a possibilidade de con­trole governamental ou simplesmente social sobre as condutas in­dividuais, cada vez mais vigiadas e obrigadas a submeter-se a cer­tas normas comuns ... embora esta última forma de tirania também nunca tenha faltado nas pequenas comunidades pré-modernas! Ape­sar de tanto controle, demasiados cidadãos conhecem muito poucas vantagens da vida em comum e padecem miséria e abandono. So­bretudo, nosso século conheceu exemplos pavorosos do terror tota­litário que os coletivismos ditatoriais podem exercer sobre as p~s­soas. Tantas adversidades podem levar a esquecer o quanto a socm­bilidade não é simplesmente um fardo alheio que se impõe a nossa autonomia mas uma exigência de nossa condição humana sem a qual nos seria impossível desenvolver essa própria autonomia da q~al nos sentimos tão justificadamente zelosos. Sem querer contranar Mrs Thatcher, parece evidente que as sociedades não são simples­mente um acordo mais ou menos provisório, mais ou menos conve­niente, ao qual chegam indivíduos racionais e autônomos, mas que, pelo contrário, os indivíduos racionais ~ autônomos sã? produtos excelentes da evolução histórica das sociedades, para cuJa transfor­mação eles, por sua vez, depois contribuem. Como poderia ser de

outro modo? Os outros são o inferno? Só na medida em que podem tornar­

nos a vida infernal ao nos revelar - às vezes com pouca conside­ração - as fissuras do sonho libertário de onipotência que nossa imaturidade autocomplacente gosta de imaginar. Vivemos neces­sariamente incomunicados? Sem dúvida, se por "comunicação"

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entendemos que os outros nos interpretem espontaneamente de modo tão exaustivo quanto nós mesmos acreditamos nos expressar; mas só muito relativamente, se assumimos que não é a mesma coisa pedir compreensão e fazer-se compreender e que a boa comunica­ção tem por primeiro requisito fazer um esforço para compreender esse outro de quem pedimos compreensão. Os outros e as institui­ções que compartilhamos com eles limitam nossa liberdade? Talvez a pergunta devesse ser formulada de maneira diferente: tem sentido falar em liberdade sem referência à responsabilidade, ou seja, à nos­sa relação com os outros?, não são justamente as instituições - a co­meçar pelas leis - que nos revelam que somos livres para obedecer­lhes ou desafiá-las, assim como para estabelecê-las ou revogá-las? Mesmo os abusos totalitários ou simplesmente autoritários servem para compreendermos melhor - na resistência contra eles - as im­plicações políticas e sociais de nossa autonomia pessoal.

Por mais justificados que sejam os protestos contra as formas efetivas da sociedade atual (de qualquer sociedade "atual"), conti­nua sendo igualmente certo que somos humanamente configurados para e por nossos semelhantes. É nosso destino de seres lingüísti­cos, ou seja, simbólicos. Ao nascer, somos "capazes" de humani­dade, mas não atualizamos essa capacidade - que inclui entre suas características a autonomia e a liberdade - até gozar e sofrer a re­lação com os demais. Que, por certo, nunca são "demais", ou seja, nunca são supérfluos ou meros impedimentos para o desenvolvi­mento de uma individualidade que na realidade só se afirma entre eles. Para conhecermos a nós mesmos, necessitamos primeiro ser reconhecidos por nossos semelhantes. Por pior que eventualmente possa ser para nós a relação com os outros, nunca será tão irrevo­gavelmente aniquiladora quanto seria a ausência total de relação, ser plena e completamente "desconhecidos" por quem deve nos re­conhecer. Expressou-o muito bem o grande psicólogo William Ja­mes: "O eu social do homem é o reconhecimento que este obtém de seus semelhantes. Além de sermos animais gregários, gostando da proximidade com nossos companheiros, também temos uma ten­dência inata a nos fazer conhecer, e conhecer com aprovação, pelos seres de nossa espécie. Não se poderia conceber nenhum castigo mais diabólico, se fosse fisicamente possível, do que nos ver lança-

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dos na sociedade e permanecer totalmente despercebidos por todos os membros que a compõem." 2 Ninguém chegaria à humanidade se não fosse contagiado pela dos outros, pois tornar-se humano nunca é coisa de um só mas tarefa de vários; mas, uma vez humanos, a pior tortura seria que ninguém nos reconhecesse como tais ... nem sequer para nos aborrecer com suas censuras!

Voltemos por um momento ao tema da natureza e da cultura, que tratamos no capítulo anterior. É "natural" a necessidade impe­riosa de ser reconhecidos por nossos semelhantes, a qual por sua vez abre caminho para todos os nossos empenhos propriamente "culturais"? Em A f enomenologia do espírito, indiscutivelmente uma das peças-chave da filosofia moderna, Hegel narra esse trân­sito por meio de uma espécie de mito especulativo conhecido como "O senhor e o servo" (ou, mais dramaticamente ainda, "O amo e o escravo"). Partamos do princípio de que pelo mundo vagueia um ser dotado de consciência, o qual ainda não sabemos se é animal ou humano. Tem apetites (fome, sede, abrigo, sexo ... ) que procura sa­tisfazer de modo imediato, assim como rivais e inimigos com os quais deve lutar ou dos quais tem que fugir. Para essa consciência o mundo não é mais do que um lugar onde se suscitam e se satisfa­zem seus apetites, o âmbito em que ocorre sua busca a todo custo de sobrevivência biológica. Existe plena continuidade entre o mun­do e a consciência que se move nele ou, para usar a expressão de George Bataille em sua Teoria da religião, a consciência vital - zoo­lógica - ainda se encontra no mundo "como a água na água". De modo que, na realidade, não há "mundo" como algo independente e separado da consciência, portanto também não há realmente "cons, ciência" como uma vontade autônoma para si mesma. Mas agora suponhamos que a consciência se transforme em autoconsciência, em consciência de si mesma, e comece a valorar a própria indepen­dência de seus desejos com relação ao mundo circundante. Imedia­tamente o mundo também se transforma em algo "alheio", que re­siste ou se opõe a seus apetites, que parece "querer" por sua conta contrariando o que a autoconsciência tem como seu querer próprio.

2. Citado porTodorov, na obra mencionada.

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A autoconsciência, então, já não se conforma simplesmente com a sobrevivência biológica que lhe bastava enquanto se achava em plena continuidade com o resto do mundo. Agora a autocons­ciência quer antes de tudo seu próprio querer, sua vontade autôno­ma distinta do mundo que se lhe opõe. De certo modo isso a situa à margem da vida, do simples durar "como a água na água", e a de­fronta com a morte. De consciência da vida passa a transformar-se em autoconsciência que assume e desafia a certeza de sua própria morte. Nesse mundo que se opõe e resiste à realização de seus ape­tites, a autoconsciência começa a ser cada vez mais capaz de valo­rar, de escolher, de hierarquizar seus desejos de acordo já não ape­nas com a sobrevivência, mas com a afirmação autônoma de seu querer. Mais cedo ou mais tarde, a autoconsciência terá que defron­tar com outra autoconsciência aparentemente semelhante a ela mes­ma. ~~s de c~ofre não está disposta a aceitar esse parentesco: pelo contrano, a~pira a ser reconhecida como única pela outra e a que esta renuncie a suas aspirações a se considerar sua igual. Então ocorre a luta mortal pelo reconhecimento entre ambas, uma batalha na qual se mesclarão as armas físicas e também as simbólicas.

Como poderá uma autoconsciência afirmar-se triunfalmente diante da outra? Por meio do mais universal dos instrumentos o medo da morte. Uma vez que ambas estão conscientes de sua m~r­talidade, deverão provar até que ponto estão "acima" do mero instin­to de sobrevivência que ainda as entronca com a zoologia, da qual se empenham em se safar para consolidar sua autonomia. O com­bate pelo reconhecimento será ganho então pela autoconsciência mais capaz de se sobrepor ao terror de morrer: vence o temerário, capaz de combater com a frieza implacável de alguém que já esti­v~sse I?orto, diante do timorato, ainda por demais apegado ao pal­pitar VItal e que nunca renuncia a se defender ou retroceder a tem­po. A situação é semelhante à daquele jogo incrível que há poucas décadas fez furor nos Estados Unidos, uma de cujas versões apare­ce ?o filme de Nicholas Ray, Rebelde sem causa: os competidores dmgem os automóveis lançados a toda velocidade um contra o ou­tro, ou ambos em paralelo na direção de um precipício. O primeiro que breca ou desvia por instinto de sobrevivência é o "frouxo" e

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perde. O outro - quando salva a pele! - é reconhecido como o va­lente, ou seja, o que vale mais, aquele cujo desprezo pela morte o coloca mais longe da animalidade (por certo, a maioria dos animais, quando lutam com seus semelhantes e estão perdendo, se oferecem rendidos ao adversário antes que a briga tenha um resultado fatal).

A autoconsciência vencida - vencida sobretudo pelo medo de morrer - submete-se às ordens do vencedor (que não reconhece ou­tro "amo" senão a própria morte). Porém o derrotado não se trans­forma em um mero animal: para servir ao senhor vê-se obrigado a trabalhar, o que o afasta da simples imediatez dos apetites zooló­gicos. Por meio do trabalho o mundo deixa de ser apenas um obs­táculo ou um inimigo e se converte em material para realizar trans­formações , projetos, tarefas criadoras. A longo prazo, o amo, cujos desejos se vêem imediatamente satisfeitos por seu escravo, recai pouco a pouco na animalidade e já não lhe resta outro entreteni­mento "humano" além de, uma vez ou outra, contemplar seu rosto no espelho da morte, até se identificar com ela. Em contrapartida, o servo se torna depositário da mais duradoura autoconsciência, não limitada ao desafio estéril diante da morte, mas dedicada à criação de novas formas para racionalizar a vida. Finalmente, cada uma das autoconsciências representa apenas uma metade da vonta­de autônoma do homem: a afirmação de sua independência como valor superior à mera sobrevivência biológica e o empenho técnico de chegar a viver mais e melhor. Mais um passo ainda e cada uma das autoconsciências reconhece a validade da outra: a validade do Outro. Já no plano de igualdade, o indivíduo admite a dignidade hu­mana dos outros não como simples instrumentos - de morte ou•de criação - mas como fins em si mesmos, cujos direitos serão reco­nhecidos num contexto social de cooperação.

Até aqui minha paráfrase libérrima - Hegel que me perdoe! -da dialética mitológica entre o senhor e o servo, que também inspi­rou talentos melhores que o meu, como os de Karl Marx ou de Ale­xandre Kojeve. Para esta fábula especulativa podem-se buscar di­versas ilustrações antropológicas ou históricas. O que me parece mais significativo dela - seria absurdo levá-la ao pé da letra - é o esforço por narrar de maneira inteligível uma perspectiva do trân-

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sito entre natureza e cultura, entre a consciência da morte e a von­tad~ de ass,egur~r a vi~a: do rebanho submetido ao despotismo do mais forte a sociedade Igualitária que divide as tarefas sociais. Ten­do-se c?egado ao pl~no ~~ sociedade humana - ao mesmo tempo submetida a valoraçoes etzcas e a considerações políticas _ a per­gunta ~assa~ ser esta: como organizar a convivência? Essa pergun­ta contmua vigente mesmo que já se tenha superado a oposição bru­tal entre amos e escravos. Porque cada um dos diversos "sócios" que fazem parte da ~omun~dade mantém seus próprios apetites e in­teresses, sua necessidade mcansável de reconhecimento pelos ou­tr?s, :eus enfrentamentos em torno da maneira como devem ser dis­tribut?os os bens que admitem divisão e quem deve possuir aqueles que so podem ter um dono. Em suma, a questão é como a discórdia humana se transforma em concórdia social.

Por que exi~te a d~scór?ia? Sem dúvida, não é porque nós, se­~es human?s, sejamos IrraciOnais ou violentos por natureza, como a.s vezes dizem os pregadores de trivialidades. Muito pelo contrá­no. Grande pa~te de nossos antagonismos provêm do fato de ser­mos seres decididam~nte "racionais", ou seja, muito capazes de calcul:r nos.so beneficiO e decididos a não aceitar nenhum pacto do ~ual. nao. ~~Iamos claramente ganhadores. Somos suficientemente raci~n~Is pelo menos para nos aproveitar dos outros e desconfiar

do proximo (supondo, com bons argumentos, que ele se portará co­n?sco, se possível, como nós tentamos nos portar com ele). Tam­bem usamos .a razão suficientemente para nos dar conta de que nada nos n:ana tanto beneficio como viver numa comunidade de pessoas leais e solidárias diante da desgraça alheia porém nos p _

t . "E . ' er gun an:os;, se os outros amda não se deram conta disso?", para conclutr: Eles que comecem, e eu me comprometo a lhes pagar na ~esma moeda." Tudo muito racional, como se vê. A esta altura do hvro espe~o não ter que lembrar ao leitor a diferença já reiterada en­tre o "racwnal" e o "razoável". Se preciso, observem a realidade que os cer~a (na qual. al.gumas poucas centenas de privilegiados p~ssuem a Imensa mawna das riquezas, ao passo que milhões de cnaturas morrem de fome) e poderão concluir que vivemos em um mundo tremendamente racional mas pouquíssimo razoável...

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Também não é verdade que sejamos espontaneamente "violen­tos" ou "anti-sociais". Claro que em todas as sociedades existem pessoas assim, que padecem de alguma alteração psíquica ou que foram tão maltratadas pelos outros que depois lhes pagam na mes­ma moeda. Não podemos, legitimamente, esperar que aqueles a quem o resto da comunidade trata como se fossem animais, utili­zando-os como burros de carga e não se interessando por sua sorte, depois se comportem como verdadeiros cidadãos. Mas não há tan­tos casos como seria de esperar (é surpreendente, de fato, o quanto se empenham em continuar sendo sociáveis até aqueles que menos proveito tiram da sociedade) nem rompem a convivência humana tanto quanto outras causas que diríamos opostas. Com efeito, os grandes enfrentamentos coletivos geralmente não são protagoniza­dos por indivíduos pessoalmente violentos, mas sim por grupos for­mados por indivíduos disciplinados e obedientes, que foram con­vencidos de que seu interesse comum depende de que lutem contra certos adversários "estranhos" e os destruam. Não são violentos por razões "anti-sociais", mas por excesso de sociabilidade: têm tanto anseio de "normalidade", de se parecer o mais possível com o res­to do grupo, de conservar sua "identidade" com ele a todo custo, que estão dispostos a exterminar os diferentes, os forasteiros, os que têm crenças ou hábitos estranhos, os que se considera que ameacem os interesses legítimos ou abusivos do próprio rebanho. Não, não são abundantes os lobos ferozes e os que há não represen­tam o maior risco para a concórdia humana; o verdadeiro perigo provém, em geral, das ovelhas raivosas ...

Desde muito antigamente vem-se tentando organizar a socie­dade humana de modo que ela garanta o máximo de concórdia. Por certo para consegui-lo não podemos confiar simplesmente no ins­tinto social de nossa espécie. É verdade que ele nos faz ter necessi­dade da companhia de nossos semelhantes, mas também nos põe em confronto com eles. As mesmas razões que nos aproximam dos outros podem fazer com que eles se tornem nossos inimigos. Como isso pode acontecer? Somos seres sociáveis porque nos parecemos muito uns com os outros (muito mais, sem dúvida, do que a diver­sidade de nossas culturas e formas de vida levam a supor) e em ge­ral queremos todos aproximadamente as mesmas coisas essenciais:

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reconhecimento, companhia, proteção, abundância, diversão, segu­rança ... Porém somos tão parecidos que freqüentemente desejamos ao mesmo tempo as mesmas coisas (materiais ou simbólicas) e as disputamos uns com os outros. É até muito freqüente desejarmos certos bens só porque vemos que outros também os desejam: a tal ponto somos gregários e conformistas!

De modo que a mesma coisa que nos une também nos opõe. A palavra "interesse" vem do latim inter esse, o que está no meio, en­tre duas pessoas ou grupos: mas o que está entre duas pessoas ou dois grupos às vezes serve para uni-los e outras vezes se interpõe para separá-los e torná-los hostis um ao outro. Às vezes aproxima os dis­tantes (só junto de você posso obter o que busco) e outras vezes co­loca em oposição os diferentes (quero o que você quer e, se for pa­ra você, não poderá ser para mim). A mesma "sociabilidade" indu­bitável dos interesses humanos faz que tenhamos necessidade de viver em sociedade, mas também, em muitas ocasiões, que a con­córdia social seja impossível.

Como fazer para organizar o que Kant chamou, com acerto e uma ponta de ironia, "nossa insaciável sociabilidade"? Os filósofos elucubraram sobre este ponto, assim como sobre as demais ques­tões de alcance e profundidade semelhante. Mas com uma notável diferença, que Hannah Arendt notou com perspicácia. A filosofia do conhecimento não quer que o conhecimento acabe, nem a filo­sofia cosmológica pretende abolir o universo, em contrapartida a filosofia política parece supor que só terá êxito autêntico quando a política for suprimida. Ou seja, de Platão em diante, os filósofos sempre trataram a política como um conflito indesejável que é pre­ciso corrigir, não como uma expressão de liberdade criadora que deve ser protegida e canalizada. Porque a política é colisão de inte­resses, ensaios no sentido de uma harmonia sempre precária, achar para os velhos problemas soluções parciais que inevitavelmente criam dificuldades novas e não menos desconcertantes. Ao falar de política, a maioria dos filósofos está desejando colocar um ponto final em tanta confusão. Eles sonham com uma fórmula definitiva que acabe de uma vez por todas com as rivalidades, discórdias e aporias da vida comum, em suma: uma solução que nos permita vi­ver sem política. E portanto tatnbém sem história; só a um filóso-

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fo pode ocorrer falar com um certo discreto alívio do "final da his­tória" como ocorreu há não muito tempo a Fukuyama. O que a maioria dos demais filósofos que o denunciaram com veemência censuravam era apenas o fato de acreditar que esse momento jubi­loso já havia chegado, pois cada um deles tinha seu próprio :inal da história que ainda esperava se realizar. Mas eles compartilhavam com Fukuyama o desejo de que a história acabasse de uma vez por todas junto com a política, essa enfadonha e confusa dor.

Por essa razão tantos grandes filósofos, desde o grego de nos­so início, foram críticos e até adversários declarados das idé~as de­mocráticas. Essa animadversão não deixa de ser um verdadeiro pa­radoxo, porque a filosofia nasce com a democracia e em certo sen­tido essencial é inseparável dela: há democracia quando os humanos assumem que suas leis e projetos políticos não provêm dos deuses ou da tradição, e sim da autonomia de cidadão de cada um, h~rm~­nizada polêmica e transitoriamente com as dos outros, com 1gums direitos de opinar e decidir; há filosofia quando os humanos ass~­mem que devem pensar por si mesmos, sem dogmas preestabele~I­dos, suportando a crítica e o debate com seus semelh~ntes ,r~Cio­nais. No fundo, o projeto da democracia é no plano socwpohtlco _o mesmo que o projeto filosófico no plano intelectual. ~ dem~cr~c1a implica que sempre haverá política (no sentid? de ~1s~ord~nc1a e conflito que vimos), pela mesma razão que a filosofia 1mphca q~e sempre haverá pensamento, ou seja, dúvida e disputa s?bre o mms essencial. A isto os filósofos costumam se entender mms ou menos a contragosto (que grande filósofo não gostaria que os grandes pro­blemas fossem definitivamente resolvidos por ele?), mas no que ,se refere aos fundamentos da política todos coincidem em querer dei­xá-los resolvidos de uma vez por todas. O pensamento autônomo acabar representa uma desgraça até mesmo para o pensad9r mais arrogante; mas cancelar de uma vez por todas a a~tonomia s?,cial discordante dos indivíduos seria visto como um tnunfo deseJavel por muitos grandes teóricos da sociedade... . , ,

Suponho que daí provenha o gosto de tantos f1losofos da poh­tica pelas utopias. Embora atualmente se use a palavr~ :'utopia" e o adjetivo "utópico" em um sentido muito vago e genenco, para al­guns significando "absurdo" ou "irrealizável", ao passo que para

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outros equivale ao ímpeto racional de transformar o mundo positi­~amente_e acabar com as i~ustiças, o termo deveria ser empregado

e maneira u~ P?uco mais precisa. Ele provém, como se sabe de ~ relato fantastico que tem justamente esse título - U.t . ' cnto em 1516 Th opw - , es-

. . por ornas Morus, personagem realmente notável que r~unm ~tn_butos ,muito pouco conciliáveis, como ser pensador e~tadista; martlr da fe e santo da Igreja católica. Num filme biográ~ ~Icofn~~avel em sua época, excelentemente interpretado por Paul

co Ie, . ele era cha~~do de "um homem para todas as ocasiões" sem ,d~vida ur~a qualificação merecida. Seu relato Utopia tem al ~ de satlra e mmto de experimento mental· "C . . g se " Desde , · , . . · orno senam as coisas d

.. . o propno titulo, a Iroma de Morus joga com ambigüi-ades calculadas porque d . . . . . " ' ' segun o sua etimologia grega "u-topia"

Sigmftca lugar que não está em lugar nenhum" (ou sej~ u -lugar), mas também tem um som parecido com "eu-t '. '~tao­~o~~~- ~ ' ~ vr . Mu~tas ~as car~~terísticas das utopias já se encontram nesse li-

o. um amblto pohhco fechado e sem escapato'ri·a ("Ut . , , "lli) · · ~e~ I_ a ' a~tontansmo supostamente benevolente baseado 1. çao estr t d · , · . na ap Ica-

. . I a e cntenos racwnais, regulamentação minuciosa da vida cot:diana ~e. todo o mundo (inclusive os momentos de ócio as re­~açoesbfat_ml:ares ou a sexualidade), abolição da propriedad; priva-a, su missao absoluta de cada indivíduo ao bem comum (as pes­

soas pod~m ser deslocadas de um lugar para outro de acordo com ~s ~ec_essid~?es ger~is!, _igualdade econômica, abolição da com e­t~çao, Imobihdad~ histonca (as leis foram ditadas pelo ancestral ~í­hco Utop~s~ havia ~ovecentos anos!), etc. Morus também incluía em se~ O~Igmal pro~eto alguns elementos que se chocavam contra sua propr~a ortodoxia eclesiástica, como a tolerância religiosa (tal­vezb um :~na: para seu amigo Erasmo?) ou a eutanásia voluntária em o~a m~ mente ele reconhecesse que seguir a verdade revelad~ pela fe podia ser uma "utopia" ainda melhor Sem du' v·d . . d d 1 · I a, sena ma-

equa o er esse relato como um programa poli'ti"co o Ih f I' f · , u me or an­Ip,o I_Ico, Ignorando seu c~mponente lúdico, de jogo teóric~. O ~~pno aut?r s: neg~u, no _fmal da vida, que fosse traduzido do la­

para o mgles, .!?oi~ temia que servisse para corromper os incul­tos."Um t_emo~ mmto JUStificado, quando se vêem alguns dos efei­tos utopistas postenores.

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Uma vez assim estabelecido o modo "utópico" como gênero literário, podemos estender o conceito para trás - à República de Platão - e vê-lo prosseguir em obras como a Nova Atlântida de Francis Bacon, a Cidade do sol de Campanella, outras de Charles Fourier ou Robert Owen, e um extenso etcétera, que chega até as ficções de H. G. Wells em nosso século, sem esquecer algumas per­versões do modelo, como os Cento e vinte dias de Sodoma do mar­quês de Sade. Em linhas gerais, os aspectos positivos das utopias são a proposta de uma alternativa global para as sociedades real­mente existentes (modificando o modo de ver rotineiro que consi­dera "inevitável" tudo o que de fato é vigente) e na maioria dos ca­sos a proposta de uma harmonia social baseada na renúncia à cobi­ça e aos abusos do interesse econômico privado. Mas também são abundantes outras características seriamente negativas: autoritaris­mo claustrofóbico, conversão dos ideais humanos abertos (liberda­de, justiça, igualdade, segurança ... ) em regulamentos asfixiantes, suposição de que basta o cálculo racional - sempre exercido por al­guns poucos ilustrados - para determinar a vida melhor de "todos"

. os cidadãos, desaparecimento da espontaneidade e da inovação (as "utopias" costumam propor-se para o futuro, no entanto nenhuma de­las admite o futuro desconhecido como prolongamento de si mes­ma), regulamentacionismo que atinge até os recônditos mais ínti­mos da privacidade, etc.

A realização efetiva de projetos que em sua época podem ter parecido legitimamente "utópicos" (começando pelos Estados Uni­dos e prosseguindo com a União Soviética, o Estado de Israel ou até o Terceiro Reich de Hitler) nos tornaram muito mais receosos ,do que foram seus pioneiros quanto às coisas boas do gênero como guia de organização política. Até nos melhores casos, os bens so­ciais conseguidos nunca deixam de ter sérias contrapartidas que o mero planejamento racional não previa. Daí a ficção científica con­temporânea estar repleta de "distopias", ou seja, "utopias franca­mente detestáveis propostas como modelos a não serem seguidos, assim como Admirável mundo novo de Aldous Huxley ou Nós de Zamiatin. Apesar das boas intenções filosóficas que inspiraram a maioria delas, as tentativas de cunhar uma concórdia pré-fabricada

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e sem resquícios como sonho de alguns se transforma ao realizar­se historicamente no pesadelo de todos os outros.

Alguns utopistas e quase todos os políticos totalitários de nos­so século reclamaram um "homem novo" como matéria-prima dis­posta a submeter-se a seus projetos. Mas, felizmente, não pode ser "novo" sem deixar de ser propriamente humano uma vez que sua própria substância simbólica é composta com uma tradição de co­nhecimentos adquiridos, experiências históricas, conquistas sociais, memória e lendas. As pessoas nunca podem ser lousas recém-apa­gadas - e que métodos terríveis se utilizaram nas últimas décadas para apagar das mentes o que merece ser lembrado e defendido! -nas quais se escreva arbitrariamente a nova lei social, por melhor que seja a letra que o legislador se proponha a fazer. Também não é factível purgar os homens do apego racional a seus próprios inte­resses encontrados para submetê-los a um interesse global ou bem comum determinado por alguma sabedoria situada acima de suas cabeças. Não, é preciso forjar a política de concórdia a partir dos seres humanos realmente existentes com suas razões e paixões, com suas discórdias, com sua tendência ao egoísmo depredador ~as ta~bém com sua necessidade de ser reconhecido pela simpa­tia social dos outros. Pelo que sabemos, essa concórdia sempre será frágil e padecerá mil ameaças: segregará seus próprios venenos, às vezes a partir de suas melhores conquistas. Como orientar a refle­xão sobre tantos paradoxos, sobre esse drama coletivo de nossa vida em comum?

Há dois enfoques principais, cada um com matizes muito di­versos. O primeiro pensa a organização política da comunidade hu­mana a pa~tir de um contrato social entre os indivíduos (não é pre­Ciso acreditar que tenha ocorrido como acontecimento histórico basta aceitar o ponto de partida teórico "como se" tivesse aconteci~ do), que planejam em comum suas leis, suas hierarquias, a distri­buição do poder e a melhor forma de atender às necessidades pú­blicas. Além de se preocupar com seus interesses privados, os membros compreendem também que é imprescindível organizar determinados aspectos políticos que redundam em beneficio para todos e sustentam a própria viabilidade do grupo como tal. Os in­teresses de cada um podem opor-se aos de outros, mas não ao qua-

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dro comunitário que lhes dá sentido: são "particulares" porém não "anti-sociais", pois se o fossem deixariam de funcionar como pro­priamente "humanos". Portanto, é possível decidir em co~um o que concerne a todos e rever periodicamente as normas assim estabe­lecidas: também será necessário que os governantes intervenham periodicamente para corrigir disfunções que resultem da mera l~ta entre os interesses particulares ou proteger os que, por alguma .cir­cunstância, se vejam incapacitados para atender a suas necessida­des mais básicas.

A segunda perspectiva, por outro lado, desconfia da capacida­de deliberativa dos membros no que se refere ao melhor para a co­munidade. o poder político deve estabelecer apenas um contexto o mais flexível e menos intervencionista possível, dentro do qual se movam livremente as liberdades dos sócios em busca de satisfazer seus interesses. Cada um é muito capaz de buscar o melhor para si mesmo, ainda que não o seja para planificar o que deve se~ preferí­vel para todos. Acontece, no entanto, que justamente o ~awr b.e~e­ficio público surgirá da interação entre os que busca~ mcondici~­nalmente seu proveito particular, por causa da men~wnad~ condi­ção "social" de nossos. interesses aparent~ment~ mais parti?u.lares. Na busca de seu própno bem, cada um nao tera outro remed10 se­não colaborar, ainda que não se proponha a isso, com o dos outros, pois sempre obtemos mais dos outros beneficiando-~s d~ que o~ prejudicando. Uma espécie de "mão invisível" harmomzara o qu~ e aparentemente discordante, reforçará os me~hores p~anos de VIda comunitária e condenará ao fracasso as soluçoes capnchosas ou er­rôneas. O poder político deve abster-se o mais_pos.sí~el de inter; ir nesse jogo entre as artimanhas privadas para nao VICiar ?. re~u.lt~â?, final e causar dano ao conjunto, buscando um excesso artificial de perfeição.

Em resumo, empregando as palavras de ~oger Scrut?~: "O de­fensor da decisão coletiva busca uma sociedade explicitamente consentida por seus membros: isto é, que eles mesmos façam a es­colha quanto às instituições e às condições materiais. O defe_nsor da mão invisível busca uma sociedade que resulte do consentimento, mesmo que nunca tenha sido explicitamente consentida em conjun­to, uma vez que as escolhas de seus membros individuais recaem

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sobre que~tões q~e ~ada têm a ver com o resultado global.") Em li­nh~~ gerais, a P~~meira das duas perspectivas políticas é considera­da .de esquerda e a segunda "de direita"; mas creio que a marcha e~etlva de quase todas ~s sociedades que conhecemos atualmente na? po?~ ~er compreendida sem aplicar em maior ou menor grau os dois cntenos.

.o grande pr~blema é que - diferentemente do que ocorre nas utopias - nas ~o~Iedades existentes nem todos os ideais são plena­mente com~~tiv.eis. Por exemplo, as liberdades públicas são extrema­mente des,eJa~eis, ma~ às vezes vão contra a segurança do cidadão, que tambem e um pnncípio digno de ser considerado. Em muitos casos ocorre~ ~onflitos semelhantes e ainda piores: é importante d~fender os direit~s humanos das mulheres nas sociedades _ como a Imp,osta pelo Tahban no Afeganistão - que não os respeitam mas tambem merece respeito o direito de cada comunidade hum~na a d~sen~olver suas próprias interpretações de valores sem ingerên­~Ias vw~en:a~ de o~tras nações, a liberdade de comércio e empresa e ~ pn~ciplO mmto respeitável mas entre suas conseqüências in­dese~avets parece ~s~a~ a miséria crescente de grande parte da hu­mamdade, etc. No Imcw do nosso século, Max Weber falou das "ba­talhas entre. deu.ses" que representam, na realidade histórica, esses c~oques de Idems contrapostos. São como licores fortes e puros que ~ao podem ser tomados sem serem misturados. Talvez a arte polí­tica por excelênci~ seja acertar a dosagem do coquetel que integre todos eles sem deixar de ser socialmente "digerível"

D d Pl ... . es e . atão, a virtude que melhor expressa essa concórdia social a. pa~tlr de ele~entos discordantes da qual vimos falando se chamaJ,ustzça. Na ~mha opinião, estamos por demais acostumados ~ enfoca-la de maneira meramente distributiva (dar a cada um 0 que e .seu,. a cada ~m segundo o que merece ou o que necessita) ou re­tnb.utiva (castigar os maus e premiar os bons). Mas há definições ~ms amplas e que me parecem preferíveis. A que mais me agrada e a de um pensador anarquista do século XIX, Pierre-Joseph Prou-

. 3. Modern Philosophy, de R. Scruton, Mandarin Books Grã-Bretanha Esse hvro oferece uma excelente (e muitas vezes polêmica) visão de síntese de todos os campos do pensamento filosófico atual. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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dhon, e diz o seguinte: "A justiça é o respeito, espontaneamente ex­perimentado e reciprocamente garantido, à dignidade humana, em qualquer pessoa e em qualquer circunstância em que esteja com­prometida, e seja qual for o risco a que nos exponha sua defesa" (Da justiça na revolução e na Igreja). O conceito de dignidade hu­mana em sua forma contemporânea (embora no capítulo três já te­nhamos visto que o renascentista Pico della Mirandola também o empregava) começa a se generalizar a partir do século XVIII, quan­do entra em crise revolucionária o sistema de honras próprio da aristocracia - reservado a uma minoria - para dar lugar à exigência do reconhecimento da qualidade de cada um como homem e como cidadão. Então aparece o conceito político de "direitos humanos", que se incorporam às constituições democráticas e vão se fortale­cendo teoricamente - embora nem sempre, infelizmente, cumpri­dos na prática - durante os últimos duzentos anos. Implicam uma verdadeira subversão das sociedades tradicionais, tanto em sua ori­gem (na América apareceram depois de uma guerra de independên­cia e na Europa impuseram-se depois de uma revolução que deca­pitou reis) como agora, quando se tenta defendê-los de fato. Os di­reitos humanos ou direitos fundamentais são como que uma decla­ração mais detalhada do que implica essa "dignidade" que é justo os homens reconhecerem uns nos outros.

O que implica a dignidade humana? Em primeiro lugar, a invio-labilidade de cada pessoa, o reconhecimento de que não pode ser utilizada ou sacrificada pelos outros como um mero instrumento para a realização de fins gerais. Por isso não há direitos "humanos" coletivos, assim como não há seres "humanos" coletivos: a pessoa humana não pode ocorrer fora da sociedade mas não se esgota no serviço a ela. Daí a segunda característica de sua dignidade, o n:\co­nhecimento da autonomia de cada um para traçar seus próprios pla­nos de vida e seus próprios parâmetros de excelência, sem outro li­mite que não o direito semelhante dos outros à mesma autonomia. Em terceiro lugar, o reconhecimento de que cada um deve ser tra­tado socialmente de acordo com sua conduta, mérito ou demérito pessoais, e não segundo os fatores aleatórios que não são essenciais a sua humanidade: raça, etnia, sexo, classe social, etc. Em quarto e último lugar, a exigência de solidariedade para com a desgraça e sofrimento dos outros, o manter viva e ativa a cumplicidade com os

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outros. A sociedade dos direitos humanos deve ser a instituição na qual ninguém seja abandonado.

Esses fatores da dignidade humana individual tropeçaram, nos tempos modernos, com presunções supostamente "científicas" que tendem a "coisificar" as pessoas, negando sua liberdade e sua res­ponsabilidade e reduzindo-as a meros "efeitos" de circunstâncias genéricas. O racismo é o exemplo mais notável dessa negação da dignidade humana, mas atualmente está sendo substituído por ou­tro tipo de determinismo étnico ou cultural, segundo o qual cada um se deve exclusivamente à configuração inevitável que recebe de sua comunidade. Supõe-se assim que as culturas são realidades fe­chadas sobre si mesmas, insolúveis umas para as outras e incompa­ráveis, cada uma delas sendo portadora de um modo completo de pensar e de existir que não deve ser "contaminado" pelas outras nem alterado pelas decisões individuais de seus membros. Esses dispositivos fatais "programam" suas crias, às vezes para opô-las irremediavelmente aos de outras culturas (o "choque de civiliza­ções" de que fala Samuel Huntington) ou pelo menos para fechá­las ao intercâmbio espiritual com essas culturas. Oxalá dentro de cinqüenta ou cem anos as invocações à hoje sacrossanta "identida­de cultural" dos povos, que segundo alguns deve ser preservada po­liticamente a todo custo, sejam vistas com o mesmo receio hostil com que a maioria de nós acolhe as menções ao Rh do sangue ou à cor da pele! Pois sem dúvida no fundo elas encerram uma vontade não menos "injusta" de atentar contra o pressuposto essencial da dignidade humana de cada um: o de que nós, homens, não nasce­mos para viver formando batalhões uniformizados, cada um com sua própria bandeira à frente, mas para nos mesclarmos uns com os outros sem deixar de reconhecer, apesar de todas as diferenças cul­turais, uma semelhança essencial entre nós e a partir dessa mescla inventar-nos sempre de novo (veja-se o que dissemos a respeito dis­so na última parte do capítulo quatro).

A obsessão característica dos nacionalismos, essa doença maior do século XX, glorifica o necessário "pertencimento" de cada ser humano a sua terra natal e o transforma em fatalidade cio­sa de si mesma. No fundo trata-se apenas da detestável mentalida­de possessiva que quer pôr o carimbo do dono não só nas casas e

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nos objetos como até nas terras ou paisagens. O. imbecil "aqui n_ós somos assim" e a mitificação das "raízes" própnas - co~o se nos, seres humanos, fôssemos vegetais - bloqueiam a verdadeira neces­sidade humana de hospitalidade que devemos uns aos ou~ros de acordo com o que chamamos de "dignidade". Para qu_em e capaz de refletir, somos todos estrangeiros, judeus err~ntes, viemos tod~s de não se sabe onde e vamos para o desconhecido (os desconheci­dos?), todos temos uns para com os outros dever de hospeda~e~ em nosso breve trânsito por este mundo comum a todos, nossa un~­ca verdadeira "pátria". Isso foi muito bem formulado por um e~cn­tor judeu contemporâneo, George Steiner: "As árvores têm rmz~s; os homens e as mulheres, pernas. E com elas atravessam ~ barreira da estultice delimitada com alambrados, que são as ~ronteiras; co~ elas visitam e nelas habitam entre o resto da humamdade na quah­dade de convidados. Há um personagem fundamental nas lendas, numerosas na Bíblia, mas também na mitologia grega e em outras mitologias: o estrangeiro à porta, o visitante que chama. ao e~tarde­cer, depois de sua viagem. Nas fábula~, e~~e c~a~ado e m~It~s ve­zes 0 de um deus oculto ou de um emissano dlV_I~o que poe a pro­va nossa hospitalidade. Quisera pensar nesses visltantes com~ nos autênticos seres humanos que devemos propor-nos a ser, se e que desejamos sobreviver."4

• • •

Conforme diz Sigmund Freud - fundador da psicanahse e um dos maiores espíritos de nossa época - em sua obra O mal-est~r da civilização, o sofrimento humano tem três f~ntes:_ "~supremacia da natureza, a caducidade de nosso corpo e a msuf~~wncm de nossos métodos para regular as relações humanas na famiha, no Estad? e na sociedade." Mas nenhuma dessas três desgraças pode ser considf~a­da propriamente o pior do que nos assedia: para o ser que nec~sslta do olhar compreensivo e confirmador do outro para con~egmr ser ele mesmo "o mal é, originalmente, aquele pelo qual se e a~eaça­do com a perda do amor". Nada nos deixa mais inermes, mms d_es­validos mais ameaçados do que a perda do amor, este _entendido tanto n~ sentido mais literal (entre pais e filhos ou erótico) como

4. Errata, de G. Steiner, Siruela, Madri. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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também no mais geral, que os gregos denominavamfilia: a amiza­~~ entre os que se escolhem mutuamente como complementares ( porq~e el~ e~a .ele, porque eu e,ra eu", com estas belas palavras ~?~t~Igne juAstiflca suafilia por Etienne de la Boétie) e a simpatia Civil - cortes e vagamente Impessoal mas solidária de modo nada

irrelevante - que os concidadãos têm que mostrar cotidianamente uns pelos outros para que a vida em sociedade seja gratificante. Sem amor nemfilia a humanidade se atrofia e ficamos nas mãos de uma inóspita lei da selva. Com razão Goethe disse que "saber-se amado dá mais força do que se saber forte."

, . Como ~~demos merecer o amor dos outros? Grande parte dos codigos de etlca em todas as culturas dedicaram-se a nos dar instru­ções para consegui-lo. Isaac Asimov, escritor de ficção científica q~e na minha opinião também é um bom filósofo, inventou as "três lets da robótica" gravadas na programação das criaturas mecânicas que pr~tag?nizam Eu, robô e outros relatos seus. São as seguintes:

Pnmeira: Não prejudicarás nenhum ser humano. Seg~da:. Aj~darás os seres humanos o máximo possível ( des­

de que nao seja vwlando a primeira regra). . !erceira: C~nservarás tua própria existência (sempre que não

seja a custa de vwlar as duas leis anteriores). C~mo não somos robôs, a maioria das morais passadas e pre­

sentes mvertem a ordem desses três preceitos mas, quanto ao mais, suas normas estão bem resumidas na tríade de Asimov. Sem dúvi­da, .sempre houve, há e haverá conselheiros provocativamente desi­ludidos q~e nos recomendem aproveitar-nos o máximo possível dos q~e r~s~elta~ a moralidade para obter outras vantagens. Graças a tais sabws vivemos rodeados de polícias, cárceres, miséria e aban­do~o. S~rá? que ~sses conselheiros cínicos são tão espertos quanto se Imagma. Sera que valem mesmo a pena as vantagens ocasionais que obtemos pessoalmente ao lhes dar ouvidos em comparação com o que todos perdemos em geral? Será prudente você leitor e eu renunciarmos a tentar merecer o amor de nossos semelhantes ~té que o último dos distraídos ou dos maus tenha se convencido de que necessitamos é de fi lia e nada mais?

As m~nifestações humanas mais características só podem ser compreendidas em um contexto social: são coisas que fazemos pen-

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sando nos outros e chamando-os por meio delas quando não estão presentes. Por exemplo, rir. O humor é um aceno e~ busca de au­tênticos "companheiros vitais" que possam compartilhar ~onosco o surgimento prazeroso e às vezes demoli~or do sem-~en!Ido n~. or­dem rotineira dos significados estabelecidos. Nada e tao sociavel nem une tanto como o senso de humor: por isso, quando numa reu­nião de amigos se ouvem muitas risadas ou se trocam sorrisos em profusão dizemos que estão "se divertindo". Ou seja, estão se dan­do bem ;econhecendo-se uns aos outros. Até quem ri sozinho na verdade está rindo à espera das almas gêmeas que podem unir-se a ele para rir. E muitas amizades- e não poucos amores!- começam quando duas pessoas entendem um chiste que escapa aos outros ...

A criação estética e seus prazeres também não podem ser en­tendidos adequadamente se não são compartilhados. Quando des­cobrimos algo bonito, a primeira coisa que fazemos é procurar al­guém que possa desfrutá-la conosco: junto com ele ou com ela ta:n­bém nós desfrutaremos mais. As crianças pequenas passam a vida puxando os adultos pela manga para lhes mostrar ~equenas ma~a­vilhas que às vezes os grandes são estúpidos demais para aprecmr

0 quanto valem. Mas o que é a beleza? Por que é tão i~por~an~e para nós descobri-la, criá-la e compartilhá-la? P?r que ate o few. as vezes tem que se virar para aparecer como bomto para que a vida

não deixe de nos apetecer?

Dá o que pensar ...

Podemos nos fazer "humanos" por nós mesmos, sem neces.~i­dade de ninguém mais? Começamos a nos huma~izar com a pala­vra ou já antes, com o olhar dos semelhantes? E inevitável que a convivência com os outros nos seja "dolorosa"? Justifica-se pro­testarmos contra os resultados efetivos dessa sociedade da qual, por outro lado, tanto necessitamos? Não seria pior o inferno ~~ ser ignorado pelos outros do que o de viver entre eles? ~o mos mco.­municados " ou será que não devemos esperar nunca nos comunz­car" totalmente? Nós, humanos, entramos em confronto na socie­dade porque não somos suficientemente racionais ou porque não

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s?mos razo~v~is? É possível obter algum modo de concórdia a par­tzr da dzscordza produzida pelas razões contrapostas dos homens? Como Hegel explica a passagem de nossa animalidade "natural" par~ nossa "humani,d~de " histórica e cultural? Os filósofos que re­fletzram sobre a polztzca querem compreendê-la melhor ou aboli-la de uma vez? Pode haver "política" sem conflito nem enfrentamen­tos? Pode haver democracia sem política? Em que a essência dafi­~~sofi~ s~, parece com a essência da democracia? O que são as , utopzas ? Por que os filósofos costumam gostar delas? "Utopia" e o mesmo que "ideal"? Há "utopias" abomináveis ou pelo menos perzgosas? Alguma "utopia" se realizou historicamente? Nós, hu­manos, estabelecemos um "contrato social" ou somos antes 0 re­sult~do d~ es~olha~ ?rivadas q~e determinam o melhor para to­do~. Os zde~zs P_Olz~zcos na so~zedade efetiva são todos compatí­vezs? O que e a;ustzça? Qual e sua relação com a "dignidade hu­mana"? Qual é a relação entre a "dignidade" humana e os "~ireitos humanos "? Pode haver "direitos humanos" coletivos?

Nos, humanos, somos inexoravelmente determinados por nossa raça ou nossa cultura? Quais são os princípios mais gerais das mo­razs humanas? O riso é um argumento a favor da vida em comum dos homens?

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Capítulo nove

O calafrio da beleza

Nas Leis, seu último diálogo, o velho Platão comenta que nós, humanos, estamos submetidos à inevitável pedagogia de dois mes­tres inteligentes: o prazer e a dor. Eles nos ensinam com suas coa­ções - gratas ou terríveis - a viver e a sobreviver. Como a maior parte do que faz os humanos gozarem ou sofrerem é comum a to­dos, o prazer e a dor são fortes braçadeiras da irmandade universal entre nós; mas, como ninguém desfruta ou padece exatamente com os mesmos matizes nem foi submetido aos mesmos estímulos ao longo da trajetória de sua vida, também são prazeres e dores que nos conferem uma biografia irrepetível, que traçam o perfil da au­têntica individualidade de cada um. O prazer e a dor nos ensinam que somos "iguais" quanto ao geral mas ao mesmo tempo "diferen­tes" quanto ao particular. Novamente se comprova que o que nos une - nossos "interesses" - é também o que nos separa, nos pen;o­naliza e mais cedo ou mais tarde, talvez, nos opõe.

Examinemos um pouco mais de perto o que, em termos muito amplos, poderíamos chamar de "prazer". Não me refiro apenas ao que nos produz uma sensação fisicamente grata, mas a tudo aquilo - seja coisa, pessoa, produto, comportamento, etc. - diante do que sentimos claramente aprovação: "isso sim!", "disso, mais!", "isso, de novo!". Por exemplo, um delicioso prato de comida ... (deixo a cada um preencher as reticências com o nome de sua especialidade culinária favorita), que nos dá prazer porque é muito agradável ao

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paladar. Ou talvez um banho de chuveiro refrescante no calor do verão, também enormemente prazeroso. Essas sensações "gratifi­cantes" são muito importantes na vida de todos nós, humanos, mas também o são para qualquer animal dotado de um sistema nervoso passavelmente desenvolvido. Outro exemplo diferente: a satisfação que nos causa ver alguém realizar uma ação generosa e valorosa ou melhor ainda, nós mesmos a realizarmos. "Veja só - suspiramo~ contentes -, isso sim que é bom! Assim deveríamos nos comportar sempre!" O apreço pelo "bom" é próprio dos seres dotados de ra­z~o, que.' ao refletirmos, nos damos conta do quanto essa droga de vida sena m,elhor se todos nós fôssemos capazes de tais condutas excelentes. Ultimo exemplo: vejo um pôr-do-sol flamejante no mar ou _ouço uma polonaise de Chopin bem interpretada ao piano. E mms uma vez me surge a aprovação prazerosa: "Que beleza!"

No entanto, esse caso é diferente dos outros dois: sem dúvida não poderia desfrutar do "belo" se não fosse pelos meus sentidos, mas a razão também interfere nesse gozo, pois não se trata de uma satisfação meramente sensorial. Os prazeres da beleza são os me­nos "zoológicos" de todos. Porém o que sinto diante da beleza tam­bém. não é algo. que se assemelhe ao respeito moral ou ao aplauso suscitado_ em mim por um gesto virtuoso; inclusive é possível que eu prefensse, por razões éticas, que no mundo não houvesse esta ou aquela coisa bonita ... embora nem por isso deixe de achá-la bonita! Suponhamos que estou com um amigo diante da grande pirâmide egípcia de Quéops e lhe confesso que a acho muito bonita. "Boni­t~? A que você está se referindo? Devo supor que você gostaria de VIver dentro desse túmulo escuro? Ou que você acha um lugar 'agradável' para ficar fora, sentado, em pleno sol do deserto?" Res­pondo que a simples idéia de morar numa pirâmide ou de me enca­rapitar nela para tomar sol me é perfeitamente desagradável. '~lém do mais - continua maldosamente meu amigo - , por acaso você não sabe como ela foi construída? Milhares de escravos arrastando pe­dras enormes, sob chicotadas, para construir uma tumba suntuosa para o tirano que pisoteava seus direitos! É isso que você acha tão bonito? Por acaso quer que se volte a construir pirâmides como essa a esse preço?" Admito que não, muito pelo contrário : até preferiria que a pirâmide não existisse se desse modo se tivesse poupado os

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que a construíram daquele sofrimento injusto. E, é claro, não tenho o menor desejo de que se volte a empreender uma obra semelhante com aqueles procedimentos inumanos. No entanto, não posso deixar de reconhecer que acho a grande pirâmide muito bonita, apesar de não ver nela nada de "agradável" e de não achar moralmente "bom" que algum dia tivesse sido construída. E já não sei o que mais diz~r diante das alfinetadas de meu amigo, porque não sou capaz de di­zer claramente o que eu extraio disso que chamo de "beleza" para que ela me seja prazerosa apesar de tudo: é dificil dizer por que ela me "interessa" tanto.

Kant, de quem até aqui parafraseei à minha maneira algumas colocações em a Crítica do juízo, afirma que o deleite produzido pela beleza é o único verdadeiramente desinteressado e livre. Com efeito nossas demais satisfações provêm dos interesses necessários de no~sos sentidos ou de nossa razão. O "agradável" nos atrai por­que cumpre os anseios primordiais de comida, bebida, abrigo, con­forto, recompensa sexual, etc. O "bom" impõe-se a nós porque nos­sa razão não tem outro remédio senão aceitar que a vida humana é mais digna de ser vivida quando qualquer um de nós faz o que é de­vido e reconhece os outros como verdadeiros semelhantes, não me­ros instrumentos manipuláveis. Mas o anseio de beleza não parece responder a nenhuma necessidade concreta nem sensorial nem ra­cional. Sabemos por que os homens primitivos fizeram vasilhas de barro cozido para satisfazer sua fome e sua sede com maior confor­to. Podemos supor que também as tenham utilizado para alimentar seus filhos ou dar de beber a seus companheiros sedentos, uma vez que somos seres necessariamente sociais. Mas por que os enfeita­ram com uma barra de figuras geométricas ou de motivos florais? Essa decoração não serve para nada, não cumpre, aparentemente, nenhuma função: nenhum chimpanzé teria perdido tempo acrescen­tando essa futilidade a um objeto cuja utilidade, quanto ao mais, poderia até entender. No entanto, esses motivos ornamentai~ reve­lam que os homens não só buscam satisfazer suas necessidades como também têm interesse em que as coisas sejam bonitas ou que lhes pareçam bonitas. Que tipo de "interesse"? Sem recuar diante do paradoxo, Kant diz que se trata de um interesse desinteressado. Isso, francamente, não nos ajuda muito a resolver essas dúvidas ...

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Mas vamos continuar um pouco mais na companhia de Kant que nunca é uma companhia totalmente má. Segundo Kant, "é bel~ o que agrada universalmente, sem conceito". As duas característi­cas são importantes. Dizer que uma flor é "bonita" ou que um poe­m~ é ':belo" não é a mesma coisa que afirmar "gosto de paella": no pnmeiro caso, consideramos que a beleza está na flor ou no poema e que qualquer um poderá vê-la se a olhar de maneira adequada (e não apenas do nosso ponto de vista pessoal e intransferível!); no se­gundo, admitimos que - como se costuma dizer - "o gosto é meu" e "sobre gostos não há nada escrito" (ou seja, não há nenhuma lei escrita que nos obrigue a compartilhá-los, pois quanto ao mais es­creve-se muitíssimo sobre gostos ... talvez mais do que sobre qual­quer outra coisa). Ao dizer que o belo agrada "universalmente" Kant não quer dizer que "de fato" todos coincidimos em considera; "bel~s" as mesmas coisas, mas que só chamamos de "belo" o que consideramos que tem direito e mérito suficiente em si mesmo para ser considerado assim por todo o mundo, ao passo que não exigi­mos tanto ao proclamar outro tipo de gostos: seria de uma ridícula falsa modéstia dar a entender que algo é "belo" só para mim, ao passo que seria admissível - embora profundamente errôneo! -considerar um traço original e muito pessoal do meu caráter meu gosto pela paella.

Igualmente interessante é a afirmação kantiana de que o belo "não tem conceito". De acordo com o uso que Kant faz do termo o conceito é o que nos permite identificar inequivocamente algum~ coisa e, além disso, nos fornece uma regra prática para construí-la ou julgá-la. Mas, mesmo que possamos identificar conceitualmen­te que tal coisa é um amanhecer e tal outra é uma catedral, carece­mos de uma regra ou modelo determinante que estabeleça necessa­riamente quando uma coisa e a outra merecem o atributo de "bele­z~"· Só o pedantismo ou o academicismo estéril acreditam poder ditar normas segundo as quais certas coisas serão obrigatoriamente belas e outras não. Kant até vai além e distingue a beleza propria­~ente "livre" ou "vaga" da beleza "aderente" (embora já nos tenha dito que o contentamento produzido por todo tipo de beleza é de­s.interessado e livre). A beleza "aderente" é a das coisas cujo obje­tivo conhecemos ou cuja perfeição funcional podemos, mais ou

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menos, definir: por mais "desinteressado" que seja nosso apreço estético por um palácio ou um cavalo de corrida, nunca pode se desligar totalmente do fato de sabermos "para que eles servem". O mesmo acontece com as obras de arte baseadas na representação fiel do real ou em refinadas análises morais e psicológicas, cuja beleza sempre está ligada também à interpretação precisa do que existe ou deveria existir. Em contrapartida, a beleza "vaga" é a que corresponde às flores, às conchas que encontramos na praia, ao jogo das sombras numa tarde de verão, aos intrincados hieróglifos ornamentais da arte islâmica, ao desenho de uma tapeçaria ou a al­go que Kant não pôde conhecer porque surgiu no mundo mais de um século depois de sua morte: a pintura abstrata (Mondrian, Jack­son Pollock ... são exemplos que o velho filósofo talvez tivesse considerado com atônito apreço). Segundo Crítica do juízo, todos esses tipos de beleza "sem sentido" nem "conceito" são os que sus­citam com maior clareza e nitidez o prazer mais indiscutivelmente "estético" ... embora Kant não costumasse empregar essa palavra em seu uso atual!

Mas podemos realmente separar a beleza completamente de outros valores humanos, utilitários ou morais? Em sua origem, como sempre costuma acontecer com termos laudatórios, essas for­mas de apreço deviam estar muito mais misturadas do que hoje, se a etimologia não nos engana. A palavra que nos é imediatamente mais familiar- "belo", do latim bellus- parece ser um diminutivo de "bom" - bonus, bonulus -, como também ocorre, obviamente, com o termo "bonito": algo bastante bom, superior à média, embo­ra não excelente, mas antes "agradável". Também o grego kalos, termo para o qual Platão busca ou imagina uma etimologia que sig­nifica "atraente", está semanticamente ligado ao vocábulo "bom" -agathos - e às vezes forma compostos muito comuns, como kalo­kagathos, qualificação habitual do homem exemplar, perfeitamen­te bem-posto fisica e civicamente. Observemos de passagem que em grego moderno kalos significa propriamente bom. Também em chinês, o ideograma para "belo" - miei, que representa um grande cordeiro - está diretamente ligado ao ideograma para "bom" ou "bem" (shan, que, a não ser que eu esteja mal informado, represen­ta a mãe com a criança nos braços). Quanto a "formoso", vem do

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latim formosus, ou seja, aquilo que conserva adequadamente sua "forma", de maneira harmônica e de acordo com a devida propor­ção entre suas partes. Remo Bodei, de quem tomo estes dados eti­mológicos, observa que o apreço pela idéia de "forma" provém pri­mordialmente, talvez, do contraste com o horror provocado pelo desfazer-se dos organismos corroídos pelo tempo e pela morte1:

amamos o bem formado porque amamos antes o que está bem vivo. Resumindo: parece indubitável que, originariamente, a idéia

do belo (não ainda da própria Beleza), formulada de modo mais in­tuitivo do que reflexivo, esteve ligada à noção do bom (ainda não do Bem), ou seja, o melhor para a vida. Tanto o belo como o bom e obviamente o agradável, as categorias que Kant distingue e - até certo ponto - separa, derivam provavelmente de um núcleo comum centrado em um mesmo objetivo: tornar a vida humana melhor, ou seja, mais cooperativa e solidária, mais rica em experiências, mais cheia de imaginação, mais confortável e refinada, em suma, menos submissa à escuridão devoradora e insensível da morte. Resumo dos resumos: o belo compartilha com o bom e o delicioso a tarefa de conseguir que haja mais vida e menos morte ... para os mortais. Um dos filósofos contemporâneos que mais e melhor insistiram nessas perspectivas é Jorge Santayana (pensador de origem espa­nhola e existência ditosamente errante que escreveu toda a sua obra em inglês).

Para Santayana, os valores estéticos nunca podem ser "separa­dos" do resto dos valores vitais humanos, embora devam ser distin­guidos dos demais em certos aspectos. Não são "desinteressados" - o valor sempre demonstra "interesse" apaixonado por um aspec­to positivo da vida - mas exploram e ampliam o campo possível de nossos interesses. Sempre se trata de alargar a finitude estreita da vida para diminuir o quanto se possa a largueza angustiante da mor­te. Mais ainda, segundo Santayana, a arte jamais precisou de uma base ou motivo prático nem de uma função intelectual, social ou re­ligiosa. Em sua obra principal sobre esse tema, O sentido da bele­za, ele afirma que "nada a não ser o bom da vida entra na textura do belo. O que nos encanta no cômico, o que nos incita no sublime

I. Le forme de! bel! o, de R. Bode i, I! Mulino, Bolonha.

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e o que nos comove no patético é o vislumbre de algum bem; a im­perfeição só tem valor como uma perfeição incipiente". Em outro livro seu, Reason in art [Razão na arte], ele afirma taxativamente que "é pura barbárie acreditar que uma coisa é esteticamente boa mas moralmente má, ou moralmente boa mas odiosa à percepção. As coisas parcialmente boas ou parcialmente feias podem ter sido escolhidas sob a coerção de circunstâncias desfavoráveis, antes que chegasse algo pior; mas, se uma coisa é feia, por isso mesmo não pode ser completamente boa, e, se é completamente boa, forçosa­mente também deve ser bonita". E transforma os antigos gregos em uma cópia do paraíso e um cânon, para assim refutar aos que se afastam deles na direção dos aspectos bárbaros do que chamamos de "modernidade" (sobre o "feio" na arte contemporânea teremos, sem dúvida, que falar mais adiante: "Entre os gregos a idéia de fe­licidade era estética e a beleza era moral; e não porque os gregos estivessem confusos, mas porque eram civilizados" (The Mutability of Aesthetics Categories).

No entanto, os gregos da época clássica também não conside­raram o assunto da beleza de modo nítido e uniforme. O mais ilus­tre protagonista de nossa tradição filosófica, Platão, distingue a be­leza propriamente dita - que efetivamente coincide com o bom e o verdadeiro - do tipo de beleza a que os artistas aspiram. Ele vê esta última como prescindível por sua inautenticidade e por ser até pe­rigosa para uma ordem política bem concebida. Em sua República, o diálogo em que ele descreve como deveria ser uma pólis organi­zada de acordo com a mais reta justiça nos informa que, se à sua ci­dade ideal chegasse um poeta dramático, ele seria acompanhado com firmeza cortês à fronteira e mandado de volta para casa, sem mais trâmites. Em outras passagens da mesma obra dá-se a enten­der que um tratamento parecido também seria reservado a outros artistas ... começando por certos arquitetos de tendências "moder­nas" para sua época. E o que para nós, hoje, é mais escandaloso ain­da: em As leis, não só se preconiza a censura de obras de arte por razões políticas como até se dão normas bastante detalhadas para aplicá-la do modo mais eficaz. Será preciso lembrar que quando Platão fala de poetas e outros artistas não está se referindo a gente medíocre ou movida apenas por baixos interesses comerciais - como

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os que hoje se denunciam tão reiteradamente -mas a gênios como Homero, Ésquilo, Sófocles, Fídias, Policleto, etc., ou seja, aos cria­dores que formaram o que, com a perspectiva dos séculos, nos pa­rece uma Idade de Ouro artística da humanidade?

Não foi Platão o único apaixonado pela beleza (e de certo modo, sem dúvida, ele mesmo também artista, pois seus diálogos são obras-primas da literatura universal cujo prestígio foi constan­te desde vinte e tantos séculos atrás) que fustigou, ou pelo menos menosprezou, as realizações da beleza artística, a primeira em que provavelmente nós pensamos agora quando se diz que alguém é "amante da beleza" ou que tem "bom-gosto estético". Também para Kant o protótipo da verdadeira beleza é o espetáculo do natural, e ele vê os artistas com certa desconfiança, no máximo concedendo que alcançam de vez em quando essa "beleza aderente" ou acres­centada, de categoria nitidamente inferior. Rousseau detestava o teatro, que ele gostaria de ter visto completamente erradicado dare­pública de Genebra na qual vivia, e em certas ocasiões parece con­siderar todas as artes uma forma de decadência da qual os cidadãos com melhor saúde democrática fariam bem em se afastar. E um ar­tista tão excepcional do romance como Leon Tolstói escreveu pági­nas violentas contra ninguém menos do que Shakespeare (do qual por certo Wittgenstein também não gostava), considerando-o repre­sentante de um tipo de arte que corrompe a retidão moral e religio­sa de suas vítimas. Inclusive um esteta tão refinado como Santaya­na observou em sua última obra, Dominations and Powers [Domi­nações e poderes], que "um genuíno amante do belo poderia nunca entrar em um museu".

Vamos nos concentrar, porém, nos argumentos antiartísticos de Platão, os mais importantes não apenas pela excepcionalidade incomparável do personagem como também porque, de um modo ou de outro, Rousseau, Tolstói e os demais - inclusive os nazistas que perseguiram as obras de arte "degeneradas", o Taliban que proíbe no Afeganistão a música e quase todo o cinema americano, ou aqueles que exigem menos violência e maior moralidade nos programas de televisão - repetem, sabendo ou sem saber, boa par­te da argumentação platônica. Por que Platão queria desterrar os ar­tistas de sua cidade ideal? Essa pergunta serve de subtítulo a um li-

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vro maravilhoso, O fogo e o sol, em que a notável romancista e pen­sadora irlandesa Iris Murdoch estuda com argúcia o "caso" platôni­co. Em seguida acompanharemos em parte sua análise, citando em certos momentos alguns trechos relevantes dessa obra2

Vamos começar esclarecendo que Platão desconfia dos artistas e nos previne contra ele porque está convencido de sua força, ou seja, de sua capacidade de sedução. Se a arte fosse apenas uma tri­vial perda de tempo, Platão provavelmente não lhe teria dedicado a menor atenção crítica. Onde reside a "força" dos artistas? Sem dú­vida em sua habilidade de produzir prazer, que, ao lado da dor­como já dissemos -, é o instrumento por excelência da formação social das pessoas. Quem é dono dos mecanismos de prazer tam­bém controla, pelo menos em grande parte, a educação da cidada­nia: portanto, é melhor que esses instrumentos estejam em boas mãos. Nesse sentido, Platão não acha que os artistas sejam candi­datos idôneos a educadores. Os mais perigosos de todos são os que se ocupam em descrever os sentimentos, paixões e destinos huma­nos, ou seja, os poetas épicos ou os dramaturgos (sem a menor dú­vida, hoje em dia Platão incluiria nessa categoria os romancistas e os criadores do cinema), uma vez que nada exerce maior sedução sobre os seres humanos do que a representação, por mais fictícia e caprichosa que seja, do comportamento vital de nossos semelhan­tes. Qualquer pessoa minimamente adestrada no uso da razão pode descobrir as falhas ou as armadilhas de uma argumentação teórica (se a maioria parece incapaz de fazê-lo é simplesmente porque não presta atenção aos raciocínios), mas por outro lado um bom artista pode tornar "credível" e até admirável qualquer tipo de vida, até para o mais sofisticado dos espectadores ... sem falar de sua influên­cia sobre o vulgo!

Mas por que os dramatizadores artísticos da vida humana exer­cem, em geral, uma influência mais perniciosa do que benéfica? Porque, segundo Platão, a arte costuma aceitar acriticamente as aparências, em vez de questioná-las: ou seja, porque o artista gosta sobremaneira dessas aparências que também fascinam o público em geral, em vez de apreciar e promover as verdades racionais sub-

2. El fuego y el sol, de I. Murdoch, Fondo de Cultura Económica, México.

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jacentes a elas e que as desmentem, verdades das quais só se ocupam os filósofos ... isto é, os autênticos educadores. Fantasiar sobre coi­sas inverossímeis é muito mais "divertido" do que estudar a essên­cia imutável do real, sóbria e rigorosa como a geometria. Mais gra­ve ainda: como o poeta ou o dramaturgo (em nossos dias também o romancista, o diretor de cinema, etc.) querem antes de tudo agradar a sua clientela e causar prazer à maioria, eles se concentram com deleite nas biografias de pessoas más "porque o homem mau é múl­tiplo, divertido e extremo, ao passo que o homem bom é tranqüilo e sempre o mesmo". Em matéria de diversão, a ética está em des­vantagem diante da estética. Por quê? Ora, porque sabemos de an­temão como devem ser as pessoas decentes - sua atuação é regida por princípios, ou seja, por normas que conhecemos mesmo antes de conhecer essas pessoas - , ao passo que os maus são variados em sua transgressão e surpreendentes. Só há algumas maneiras de se portar bem, ao passo que as maneiras de se comportar mal são inu­meráveis; essa é a razão pela qual a ética - que não faz outra coisa senão lembrar sempre de novo o que é fundamental - é "chata", ao passo que a estética - que pretende antes de tudo a novidade e o in­sólito - é moralmente suspeita. Tal como resume Murdoch, "o ar­tista não pode representar nem elogiar o bom, mas apenas o demo­níaco, o fantástico e o extremo; ao passo que a verdade é tranqüila, sóbria e limitada; a arte é falseamento, na melhor das hipóteses uma mimese (imitação) irônica, cuja falsa 'veracidade' é um astuto inimigo da virtude".

Para Platão, há uma clara contraposição entre a arte e o verda­deiro conhecimento, ou seja, a filosofia. Na arte, predomina antes de tudo a personalidade feiticeira do artista, ao passo que a filosofia aspira à realidade impessoal tal como é em si mesma, para além dos arrebatamentos e caprichos humanos. Os artistas conseguem, graças à sua capacidade de sedução, objetivar universalmente sua mera sub­jetividade, ao passo que a tarefa do filósofo é apropriar-se subjetiva­mente, por meio do conhecimento, da universalidade objetiva. A be­leza a que o filósofo aspira é a alegria que produz em nós a realida­de quando a compreendemos com precisão matemática depois de nos termos purificado de nossos desejos, não o estremecimento doen­tio que embala nossas paixões. Platão também não descarta todo tipo

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de arte, só se opõe à arte demasiado individualista e pessoal, à dos grandes criadores; em contrapartida não faz objeções ao que hoje chamaríamos de arte "popular", os artesanatos tradicionais e a mú­sica tonificante que desperta sadias emoções patrióticas ou religio­sas - ou seja, as manifestações nas quais o coletivo prima sobre a idiossincrasia subversiva de algumas subjetividades com tendência à introspecção. Em nome da harmonia unânime da sociedade deve­se censurar o que um certo tipo de arte tem de desagregador. Será preciso sublinhar que em nosso século também existiram e existem afirmações semelhantes, embora sempre a serviço de doutrinas po­líticas pouco desejáveis pelos partidários da liberdade pessoal?

Mas a pretensão platônica de opor a beleza do fingimento ar­tístico à beleza da verdade filosófica não é de modo algum inatacá­vel. Embora Platão tenha tido seguidores de destaque, Aristóteles e outros muitos filósofos também consideráveis pensaram de modo muito diferente, sustentando que as obras dos grandes artistas não são um obstáculo para se chegar ao verdadeiro conhecimento da realidade, mas, ao contrário, são imprescindíveis para desenvolvê­lo integralmente. Com efeito, a seu modo os artistas também explo­ram novas vias de compreensão do que existe. Sem dúvida, partem de sua maneira peculiar de sentir e dos fantasmas de sua interiori­dade, mas será que podemos excluir o subjetivo da compreensão to­tal da realidade, como se se tratasse meramente de uma ilusão su­pérflua? Mesmo as obras de arte que apostam no fantástico também desenvolvem nossa percepção das possibilidades do real e ofere­cem suas alternativas ao que é vigente.

Não é verdade que os melhores artistas pretendem apenas di­vertir ou agradar às paixões menos nobres do público: antes de tudo, aspiram a ajudá-lo a melhorar seu conhecimento. Leonardo da Vinci disse que a missão da pintura e da escultura era chegar a saper vedere, a saber ver melhor. E por acaso, de fato, não desco­brimos novos matizes das coisas, das formas e das cores graças ao próprio Leonardo, a Michelangelo, a Velázquez ou a Picasso? Por acaso os poetas, dramaturgos e romancistas não enriqueceram de­cisivamente a compreensão da vida humana, do que significa habi­tar como humanos a complexidade do mundo? Sem dúvida essa vi­são que eles nos proporcionam nem sempre é plácida e tranqüiliza-

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dora, mas nisso mesmo reside seu maior mérito. Eles nos desassos­segam porque nos abrem os olhos, não por simples desejo de nos ofuscar. Como observa acertadamente Iris Murdoch, "o bom artis­ta nos ajuda a ver o lugar da necessidade na vida humana, o que se deve suportar, o que fazer e desfazer, e a purificar nossa imagina­ção até contemplar o mundo real (geralmente velado por medos e ansiedade), incluindo o terrível e o absurdo". Às vezes também o obsceno, o contraditório e o sinistro, embora isso geralmente abor­reça os bem-intencionados guardiães da decência pública.

Talvez o pensador que se opôs mais decisivamente às teses pla­tônicas (embora, diga-se, cerca de vinte e quatro séculos mais tar­de!) tenha sido Friedrich Schiller. Em suas Cartas sobre a educa­ção estética do homem, esse discípulo pouco ortodoxo de Kant rei­vindica com ardor romântico a importância de cultivar a sensibili­dade estética para conseguir cidadãos autênticos, capazes de viver e participar numa sociedade moderna não autoritária. No fim das contas, para Schiller "a obra de arte mais perfeita possível é o esta­belecimento de uma verdadeira liberdade política"3, projeto que sem dúvida só teria contado com a aprovação de Platão depois de infinitas reservas e ressalvas ... se é que teria a felicidade de a ob­ter! Para Schiller, a formação estética complementa decisivamente o preparo moral e intelectual do cidadão e o dispõe para decidir li­vremente por si mesmo como possuidor não apenas de razão como também de sentidos corporais não menos nobres do que ela. A arte certamente não nos indica o que temos que fazer - nesse caso seria mera sucursal plástica ou narrativa da moral -, mas nos agita e pu­rifica tonificantemente, para que sejamos o que queremos chegar a ser. Pegando o touro pelos chifres, Schiller responde vigorosamen­te a Platão, assim: "É preciso dar razão aos que dizem que o belo e o estado em que o belo põe o espírito são inteiramente indiferentes com relação ao conhecimento e à convicção moral. Eles têm razão, de fato: a beleza absolutamente não produz um resultado particular e não realiza nenhum fim, nem intelectual nem moral; não nos re­vela uma verdade, não nos ajuda a cumprir um dever; e, numa pa-

3. La educación estética dei hombre, de F. Schiller, trad. esp. de M. García Morente, co!. Austral, Madri. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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lavra, ela também é incapaz de afirmar o caráter e de iluminar o in­telecto. A cultura estética, pois, deixa na mais completa indetermi­nação o valor de um homem ou sua dignidade, na medida em que esta só pode depender dele mesmo; a única coisa que a cultura es­tética consegue é colocar o homem, por natureza, em situação de fazer por si mesmo o que queira, devolvendo-lhe completamente a liberdade de ser o que deva ser." A função da beleza, quer provenha da admiração da natureza ou da criação artística (especialmente es­ta última), é puramente emancipadora: serve para revelar ao ho­mem o que há de aberto e até o que há de terrível em sua liberdade.

A grande originalidade de Schiller é relacionar a vocação artís­tica com urna dimensão da atividade humana habitualmente consi­derada trivial e de categoria inferior: o jogo*. Só alguns pré-socráti­cos, como Heráclito (veja-se capítulo cinco), ousaram comparar a suposta "ordem" do universo como os resultados de um jogo infan­til, embora nesse caso as "crianças" que jogam pudessem ser os deu­ses ou o acaso. A atividade lúdica não tem outro objetivo, não se propõe outro modelo nem obtém outro proveito além de seu próprio cumprimento: assim também o mais grave, isso que chamamos de "cosmo". Certamente Platão desconfiava dessa metáfora perigosa­mente anárquica. Schiller volta a ela, situando a diferença específi­ca do humano justamente na capacidade de jogar: "O homem só joga quando é homem no pleno sentido da palavra, e só é plenamen­te homem quando joga." Os filhotes dos animais superiores e as crianças muito pequenas, mais do que "jogar" propriamente, entre­têm-se prazerosamente na realização dos gestos e movimentos cor­porais que depois irão necessitar para cumprir as tarefas da vida adulta. O verdadeiro "jogo" começa quando se constitui um mundo , simbólico auto-suficiente e auto-referente no qual se desenvolve uma atividade que dá a si mesma as devidas normas e sanções. Esse mundo tem a ver, é claro, com o da vida cotidiana, que de certo modo ele imita e reflete, mas também desvencilha-se de suas nor­mas e descarta as premências mortíferas da necessidade. Segundo

* Em espanhol, juego e o verbo correspondente jugar incluem todas as acep­ções de "jogo" e "jogar" no português. Neste caso, no entanto, o sentido se aproxima

mais do sentido de "brincar". (N. da T.)

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Schiller, nesse âmbito do jogo é que se move o artista: joga com a beleza do real e transforma em realidade primordial a própria bele­za como tesouro que vai descobrindo e ao mesmo tempo forjando nossa liberdade. O jogo da arte nos converte em donos de um mun­do próprio e assim torna manifesto para nós um destino social e tam­bém pessoal para além das coações naturais ou legais, no qual tere­mos que decidir sem culpas nem desculpas o que queremos vir a ser.

Em várias ocasiões nos referimos anteriormente aos artistas, sobretudo aos maiores, chamando-os de criadores. É um termo que não se costuma aplicar aos cientistas ou aos esportistas, por mais notáveis que sejam. Por que essa diferença de tratamento? Em que sentido dizemos que um artista é um "criador"? Sem dúvida, não parece que seja "criador" tal como se supõe que Deus o seja, pois nem o maior artista pode tirar sua obra do nada. Eles sempre utili­zam materiais prévios (tintas, mármore, uma língua, as notas musi­cais ... ) e se apóiam mais ou menos no que fizeram seus antecesso­res, mesmo que seja para rejeitá-lo e buscar novos caminhos. Mas um pouco "divinos" eles são, pois sua obra não explica sem eles -sem sua vocação e personalidade -, ou seja: se cada um deles não tivesse existido, o que fizeram nunca teria chegado a ser. Explico: se Colombo não tivesse chegado em 1492 ao continente americano, cedo ou tarde outro teria feito essa viagem partindo da Europa, as­sim como os vikings a realizaram em épocas mais remotas; se Ale­xander Fleming não tivesse descoberto a penicilina, cedo ou tarde outro sábio teria descoberto as propriedades curativas do fungo mi­lagroso; e o recorde dos cem metros rasos foi batido muitas vezes e sem dúvida o será de novo, mais cedo ou mais tarde. O descobri­dor, o cientista e o campeão desportivo são os primeiros a chegar onde ainda não se havia conseguido ... mas em terrenos já existen­tes que se oferecem previamente à curiosidade e à habilidade de qualquer um. Em contrapartida, se Mozart ou Cervantes tivessem morrido no berço, ninguém teria composto A flauta mágica nem contado a história de Dom Quixote. Não nos faltariam músicas ou romances, mas não teríamos essa música ou esse romance. Pode­mos imaginar o telefone sem Graham Bell ou a teoria da relativida­de sem Einstein, mas não As meninas sem Velázquez. Dizemos que é "criador" quem fabrica algo que sem ele nunca teria chegado a

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ser, quem traz ao mundo algo - grande ou pequeno - que sem ele nunca poderia ter existido exatamente desse modo e não de outro mais ou menos parecido. As obras de arte não são possibilidades ou qualidades realizadas do que já existe previamente, mas brotam da própria personalidade dos artistas que as realizam. Parecem-se com eles, refletem tanto a forma de ser de quem as faz como a realida­de do mundo de que passam a fazer parte. O artista não é o primei­ro a descobrir ou conseguir algo, mas é o único que poderia "criá­lo" a seu insubstituível modo e maneira ...

Mas a obra realizada pelo artista tem que ser sempre "bela" no sentido de "bonita", ou seja, o contrário de "feia"? Tem que ser fun­dada explicitamente na harmonia e no equilíbrio entre as partes, na perfeição do conjunto, ou pode também acolher o dissonante e até o disforme? A santíssima trindade platônica é formada pelo Bem, pela Verdade e pela Beleza e pertence a uma ordem ideal que está além deste mundo; mas a tríade infernal que, por outro lado, parece pre­sidir a nossos conflitos terrenos é constituída pelo Mal, pelo Falso e pelo Feio. É obrigação do artista aspirar apenas a mostrar-se devoto da primeira trindade ou sua tarefa também inclui dar-se conta e nos dar conta da segunda? Tomemos por exemplo o caso de Giorgione, um dos pintores mais excelsos do Renascimento italiano. Em mui­tas ocasiões ele reproduziu a formosura de figuras humanas bonitas, no entanto também pintou o retrato implacavelmente fiel de uma velha desdentada e decrépita que devia ter sido bonita na mocida­de, pois o quadro se intitula Cal tempo ("Com o tempo"). É um quadro que representa não a beleza mas o que o tempo costuma fa­zer com a beleza. E a velha assim representada não é "bela" sob ne­nhum ponto de vista, nem tem nada de bonito ou harmonioso a des­trutiva passagem dos anos que a reduziu a tão triste estado físico. Então Giorgione traiu seu compromisso artístico com a "beleza" pintando algo que produz em nós quase repulsa e que pode suscitar sombrios temores se refletirmos sobre ele? No entanto, eu me atre­veria a dizer que o quadro é artisticamente "bonito", até infinita­mente mais belo do que tantas reproduções já batidas de paisagens melosas ou de alguma Miss Universo na flor da idade. Por quê?

Porque talvez o que em arte se pode chamar de "beleza" - se é que admitimos que o que a arte pretende é produzir beleza a todo

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custo - tenha pouco a ver, em muitas ocasiões, com o sentimento de agrado ou com a placidez do decorativo. O poeta Rainer Maria Rilke era da opinião de que a beleza "é aquele grau do terrível que ainda podemos suportar". A atração da arte não nos chega sempre como uma suave carícia, mas sim, muitas vezes, como uma unha­da. Alain, um pensador contemporâneo que escreveu muito sobre o processo artístico, observa que "o belo não agrada nem desagrada, mas nos detém". O efeito estético primordial é fixar a atenção dis­traída que resvala sobre a superfície das coisas, das formas, dos sentimentos ou dos sons sem lhes prestar mais do que uma consi­deração rotineira. Segundo esse critério, é realmente bonito tudo aquilo em que não há como deixar de nos fixar. Mais do que bus­car nossa complacência ou nosso acordo, a arte reclama nossa aten­ção. E ficar atentos pode ser o oposto a nos deixar invadir pelo ime­diatamente gratificante, como quem entra, depois de um longo dia de esforços, num banho bem quente. É antes o contrário, se damos razão a outro pensador atual - Theodor W. Adorno -, que em sua Estética afirma que "o êxito estético poderia ser definido como a capacidade de produzir algum tipo de calafrio, como se a pele de galinha* fosse a primeira imagem estética". Impressiona-nos o que não nos permite passar ao largo, o que nos agarra, nos submete e nos sacode: a evidência do real, deslumbrante e atroz, que talvez nunca tivéssemos percebido antes em sua pureza e nudez implacá­veis. Paradoxo da beleza, que às vezes pode ser experimentada como beatitude e outras vezes coino calafrio ...

A trajetória da arte moderna, sobretudo a mais contemporânea, nos confunde com distorções do som e da forma, nos confronta com o monstruoso, nos familiariza com os dilaceramentos de almas sem esperança. No entanto, também através dela podemos sentir o frêmito comovedor da beleza e às vezes conseguimos, até a partir de um radical desassossego, vislumbrar certas formas de serenida­de. Traição à beleza? Talvez muito ao contrário: uma tentativa de não a oferecer muito barata, fácil e acessível, ou seja, enganosa. O romancista Stendhal disse, memoravelmente, que "a beleza é uma

* No espanhol, piei de gallina, expressão correntemente empregada para de­signar "arrepio". (N. da T.)

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promessa de felicidade". Porém manter viva a aspiração à harmo­nia que encerra essa promessa nos obriga a nos comprometermos até o final com o mau, o falso e o feio da realidade ainda não re­conciliada em que vivemos. Na denúncia do que falta vislumbra-se à contraluz a possibilidade futura do que poderia ser a plenitude. Sem dúvida o perigo dessa trajetória é cair no meramente chocan­te ou em formas tão abstrusas de representação estética que requei­ram a aceitação de dissertações teóricas para digerir o que é senso­rial ou emocionalmente arbitrário, provocando além do mais uma confrontação radical entre os produtos artísticos populares - que o mercado se encarrega de vulgarizar cada vez mais - e a chamada "grande arte", cada vez mais reservada a uma elite que pode ser tanto de entendidos como de simples pedantes.

Esse caminho é reversível? Será que podemos, sem renunciar ao que sabemos, aspirar à volta nostálgica a uma harmonia perdi­da, que talvez nunca tenha sido como hoje a imaginamos, a partir de nosso desencanto? Certamente Giorgione tinha razão: também para a beleza, assim como para cada um de nós, assim como para todo o real, o tempo passa e se nega a retroceder ou a se deter. O tempo .. . mas o que é o tempo? Bem poderia ser essa a questão que encerrasse nossa trajetória teórica pelas perguntas da vida.

Dá o que pensar ...

Quais são os dois instrumentos fundamentais que condicio­nam socialmente a nós, os humanos? Por acaso temos outra bio­grafia que não a de nossos prazeres e dores? Em que consiste o "prazer", além da mera sensação fisica agradável? Além dos evi­dentes prazeres da sensação e da satisfação de necessidades fisi­cas, há também prazeres da razão? Podemos dizer que prazeroso não é apenas o confortável ou o útil mas também o "bom"? Que tipo de prazer produz a beleza e em que se diferencia dos outros prazeres mencionados? A beleza é prazerosa por ser "útil" ou "boa"? Por que Kant disse que o apreço da beleza é um "interes­se desinteressado"? Qual é a diferença kantiana entre a beleza "vaga ou livre" e a beleza "aderente"? Os valores estéticos sem-

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pre estiveram radicalmente separados dos valores da vida? Qual é a posição de Santayana sobre a relação entre o belo e o bom? É possível valorizar a beleza e desconfiar da "beleza" produzida pe­los artistas ou menosprezá-la? Ocorreu que grandes artistas des­confiassem das obras de arte? Por que Platão quis desterrar os poetas e demais artistas de sua cidade ideal? Platão diria que um "bom" artista é o mesmo que um artista "bom "? Qual é a diferen-ça platônica entre a tarefa educacional do artista e a do filósofo? Qual foi a resposta de Schiller às teses platônicas? Em que o jogo e a arte se parecem? A educação artística pode favorecer a prepa­ração do cidadão para a liberdade política? Por que chamamos de "criadores" os artistas e não os cientistas? O artista deve sempre buscar a beleza ou às vezes também tem que representar a feiúra e até o mal? É 'feio" ou "mau", esteticamente falando, representar o "mau" ou o 'feio "? Por que a arte moderna e contemporânea parecem ter abandonado o conceito tradicional de "beleza"? Em que sentido a beleza pode ser uma promessa de felicidade? Como a beleza nos "detém " e que tipo de "calafrio" ela produz?

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Capítulo dez

Perdidos no tempo

Perguntemos a qualquer um como é sua vida cotidiana. Talvez ele opte por responder enumerando suas diversas atividades: "Às oito, me levanto; às oito e meia, tomo café da manhã; às nove, co­meço a trabalhar, etc." Outro pode preferir um estilo mais impres­sionista: "Não tenho tempo para nada!" Haverá os que preferem a confidência: "Estou saindo com uma garota há dois meses e, ago­ra, finalmente sou feliz ." Com certeza também ouviremos alguns nostálgicos: "Não faço outra coisa senão lembrar de quando éramos pequenos e brincávamos na praia." Se o interrogado for um velho, deveremos nos preparar para o suspiro: "Eu levo a vida sem pressa, para o tempo que me resta!. .. " E sempre: "Há dez anos não tenho aumento de salário, desde que o Franco morreu a gente está respi­rando melhor, já não somos tão jovens como antes, amanhã come­ça a primavera!, etc." Ninguém conseguirá falar de si mesmo, de sua vida, do que quer ou teme, do que o cerca, sem se referir ime­diatamente ao tempo. Sem indicações cronológicas de algum tipo somos ininteligíveis e inexpressáveis.

Portanto, seria de supor que nada nos é tão conhecido e fami­liar quanto o tempo, do qual lançamos mão constantemente para fa­lar de nós mesmos, do que fazemos e do que acontece conosco. No entanto, com o tempo acontece o mesmo que com o computador, o fax, o vídeo e tantos outros aparelhos que temos em casa: sabemos como utilizá-los e já não podemos viver sem eles, mas se alguém nos perguntar por que funcionam e em que consistem (o que são)

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só nos restará encolher os ombros. No entanto, diferentemente de nossa ignorância eletrodoméstica, o desconcerto quanto ao tempo vem de muito antigamente ... como não poderia deixar de ser! Tal­vez tenha sido uma mente tão preclara e tão sincera como a de san­to Agostinho, por volta do início do século V de nossa era, que o expressou de um modo que continua sendo estritamente válido: "O que é, pois, o tempo? Sei bem o que é, se não me perguntam. Mas, quando quero explicá-lo a quem me pergunta, não sei. Porém me atrevo a dizer que sei com certeza que se nada acontecesse não ha­veria tempo passado. E, se nada existisse, não haveria tempo pre­sente" (Confissões, XI, 14).

Diz Agostinho de Hipona: se me perguntam. Mas neste como em tantos outros casos da reflexão filosófica é preciso entender "se me pergi.mto", pois o diálogo com os outros não é mais do que a ocasião ou a provocação para dialogar consigo mesmo, ou seja, pensar. Dentro de cada um estão todas as vozes, e também é certo que pensamos entre todos (lembre-se do que já dissemos no capítu­lo segundo). Pois bem: de modo que eu sei o que é o tempo enquan­to não me perguntam nem me pergunto, ou seja, enquanto não pre­ciso demonstrar que o sei. Depois começam as dificuldades e o grande enigma.

O que o tempo tem de "enigmático"? Por que ele é tão difícil de pensar? Porque para pensar alguma coisa é preciso fixar-se nela e fixá-la, mas o tempo não se deixa fixar, ele é inapreensível, não há maneira de vê-lo "quieto" ... nem mesmo imaginariamente! Su­ponhamos que tento me fixar no tempo conforme ele passa, deten­do o momento transitório tal como o Fausto de Goethe quis orde­nar um dia a um certo instante: "Detém-te, és tão bonito ... !" Mas em que momento poderei me fixar? Pois neste mesmo: agora! No entanto, esse "agora" já passou, já não é "agora" mas "antes", "um instante atrás". Em suma, trata-se de um "agora" velho, no qual sem dúvida nasceram e morreram milhares de pessoas, carícias se fizeram, sonhos foram sonhados, promessas foram trocadas, co­nhecimentos foram adquiridos e esquecidos, etc. Foi mas já não é: passou. Em que outro "agora" eu poderia me fixar? No que está prestes a chegar? Mas esse ainda não é e seria insólito tentar agar­rá-lo antes que ele chegasse. Quando pretendo "fixar" o tempo em

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seu "agora", o que consigo é comemorar um "agora" que já não está ou prevenir um "agora" que ainda não está. Paradoxalmente, o momento passado que já não é e o momento futuro que ainda não é parecem mais manejáveis do que o instante presente, que se des­vanece enquanto se apresenta, ou melhor, enquanto tento me fixar nele. Vemos o presente vir e o vemos afastar-se mas nunca o vemos estar. E como podemos determinar o que "é" o que nunca "está"?

Vamos tentar de novo. O tempo é um potro selvagem, difícil de montar, porque mal queremos nos dar conta ele nos derruba e o ve­mos afastar-se corcoveando. Mas não nos devemos deixar enganar pela redução ao infinitesimal da atualidade vivida. Segundo Zenão de Eléia, o veloz Aquiles nunca poderá alcançar a vagarosa tartaru­ga, por menor que seja a vantagem que ele lhe conceda: se a distân­cia que os separa é, por exemplo, de vinte centímetros, Aquiles le­vará um tempo curtíssimo para percorrê-los; nesse tempo, a tarta­ruga irá um pouco adiante, estabelecendo uma nova separação en­tre eles; Aquiles também a percorrerá com extrema velocidade, mas sempre empregará nessa viagem tão curta alguma fração de tempo, aproveitada pelo quelônio obstinado para se distanciar rastejando: tão perto, tão longe, o animal fugitivo permanece lentamente ina­cessível... E, no entanto, maldição, sabemos que Aquiles alcança a tartaruga, embora não consigamos explicar de maneira convincen­te como ele se vira para cumprir essa façanha. Do mesmo modo, sa­bemos que vivemos o presente e que "agora" é exatamente agora, nem antes nem depois. Sabemos, é claro; por outro lado, "pensá-lo" já é mais complicado ... como reconhecia o bom santo Agostinho.

É surpreendente, conforme Hegel já disse muito bem, que aqui­lo de que aparentemente podemos ter mais certeza, o que temos mais à mão, o que desafia o cepticismo, o que somos tentados acha­mar de "concreto"- "agora", "aqui", "isto" ... - esvazia-se comple­tamente de conteúdo quando tentamos submetê-lo ao pensamento. Temos absoluta certeza de estar aqui, mas acontece que todos os "aqui" se parecem tanto que logo necessitam ser mais bem defini­dos. À pergunta "onde?" não basta responder "aqui", pois essa res­posta é uma indicação subjetiva, e - como já dissemos no capítulo segundo - a tarefa racional consiste em tentar combinar o ponto de vista meramente subjetivo com o objetivo. Portanto, terei que ten-

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tar responder alguma coisa mais: "Estou aqui, no meu quarto, em tal rua de tal cidade, em tal país, em tais coordenadas, etc." Confor­me for ganhando conteúdo, a ampliação de meu "aqui" irá perden­do certeza: talvez eu me engane de rua ou de província, de latitude ou de longitude, mas nunca poderei me enganar ao dizer simples­mente "aqui". O mesmo acontece quando afirmo "isto", enquanto, por exemplo, aponto com o dedo ou- melhor ainda - dou umas ba­tidinhas no objeto indicado. Não há dúvida de que "isto é isto"; mas, para pensar adequadamente o que é isto e por que não é aqui­lo outro, devo dizer que se trata de uma mesa, feita de nogueira, fei­ta há cinqüenta anos por um artesão chamado ... etc., uma série de noções que vão enchendo "isto" de conteúdo, embora também au­mentando as possibilidades de dúvida ou erro. Nunca irei falhar se, por querer ser concreto, disser o mais abstrato: "Isto é isto." Mas, quando quero ser concreto de verdade para explicar a alguém au­sente o que tenho diante de mim, aí é que são elas.

Seja como for, pelo menos "aqui" ou "isto" continuam em seu lugar enquanto procuro passar da mera subjetividade ao intersubje­tivo objetivado. O "agora", em contrapartida, resiste a essa determi­nação, perdendo-se imediatamente quando pretendo dar conta dele. Para fixar tanta mobilidade, deverei vincular o instante buscado a outro movimento de tipo diferente que sirva como referência para meu interlocutor: "Quando será agora?" Resposta: "Quando eu bai­xar o braço, quando o ponteiro do relógio chegar ao doze, quando avistarmos o barco que está voltando de Delfos (assim foi determi­nado o 'agora' da execução de Sócrates), quando o cavalo cruzar aquele poste, quando a menina tiver sua primeira menstruação, quando o ditador morrer, etc." Como Aristóteles já viu em sua Físi­ca, a noção de tempo está intrinsecamente ligada à do movimento dos seres, entendendo-se esse termo em toda a sua extensão: deslo­camento de um lugar para outro, mudança de estado (por exemplo, alta ou baixa de temperatura, mudanças de cor), nascimento e mor­te, envelhecimento, aumento ou redução, etc. O tempo passa por­que as coisas passam ou às coisas acontecem outras coisas. Onde nada possa acontecer não se poderá falar de "tempo". Por exemplo, na aritmética: à pergunta "quando?" não podemos responder "quan­do dois mais dois forem quatro", porque essa relação existe sempre,

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sem que nenhuma mudança possa afetá-la. Diremos que é eterna? Para evitar essa palavra de linhagem teológica, talvez seja melhor dizer que ela é "intemporal". As verdades lógicas ou matemáticas estão "fora" do tempo, embora delas se ocupem seres com os quais o tempo tem muitíssimo a ver. Demais, como diremos em seguida.

Conscientes do tempo e da dificuldade para pensá-lo, nós, hu­manos, concebemos maneiras muito diversas de estabelecer esse passar que nunca se detém. Ou seja, diversas formas de medir o tem­po. Mas o que estamos "medindo" quando medimos o tempo? Co­mo "medir" algo que nem mesmo sabemos o que é? Medir o tem­po equivale mais ou menos a determinar o prazo das mudanças que nos afetam, a nós, a nossas atividades e ao mundo em que habita­mos. Mas, como essas mudanças podem ser de muitos tipos e como as medidas que lhes aplicamos correspondem a critérios muito di­ferentes, é impossível, na verdade, falar de um só "tempo": teremos que nos resignar a que haja diversos "tempos", conforme as mudan­ças observadas e os padrões de medição utilizados. E também con­forme a urgência social de controlar certas mudanças acima de to­das as outras.

Os filósofos, e junto com eles as pessoas comuns, tendemos a pensar que a intuição do tempo que passa é algo "natural" que ocor­re do mesmo modo em todos os seres humanos. É uma forma de pensamento "atemporal", "a-histórica", que peca justamente contra o próprio conceito que tenta estabelecer. Um autor que se dedicou profundame"nte a refletir sobre a antropologia e a sociologia dos costumes, Norbert Elias, demonstra de maneira convincente que costumamos absolutizar como "naturais" as formas de temporali­dade que na realidade correspondem a nossa cultura e a nossa épo­ca histórica1

• Os grupos humanos se orientaram temporalmente de maneira muito diferente. Estabelecer os ritmos e prazos do tempo não responde a uma curiosidade meramente teórica, mas à necessi­dade de marcar claramente o momento oportuno de realizar certas atividades sociais (colheitas, caçadas, rituais religiosos) e também ao desejo de sincronizar tarefas que devemos executar em comum com os outros. A rede de precisões temporais em que nos movemos

l. Sobre e/ tiempo, N. Elias, Fondo de Cultura Económica, México.

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hoje tem a malha muito fina, mas para Aristóteles ou santo Agosti­nho coisas como os minutos ou os segundos não contavam intelec­tualmente ... sem falar dos nanossegundos da física atual!

Para determinados grupos humanos se orientarem temporal­mente bastou dizer "quando fazia frio"; outros falam de "inverno" e depois de '~aneiro" ou "fevereiro", de meses, dias, etc. Certas co­munidades orientaram-se pelas fases da lua (suponho que a alter­nância "dia" e "noite" seja a mais comum e antiga de todas as re­gras temporais), pela chegada das chuvas, pela subida das águas fluviais ou das marés, até chegar aos atuais cronômetros de preci­são. Às vezes, um acontecimento histórico (uma batalha, o nasci­mento de Jesus Cristo) basta para estabelecer um sinal indicativo no fluxo temporal. Depende das atividades que o grupo deva cumprir, da memória compartilhada que ele guarde de seu passado ou do ní­vel científico das observações que realize no mundo natural. O camponês ou o caçador não necessita da mesma exatidão na deter­minação do instante que o operário industrial da sociedade moder­n<;t. A medida do tempo é sempre um ponto de encontro social no qual membros do grupo se harmonizam de acordo com determina­dos objetivos compartilhados: às vezes basta que os campos flores­çam ou que os pássaros voltem (o que nem sempre ocorre em pra­zos idênticos), outras vezes devem estabelecer recorrências preci­sas que tenham a ver com mecanismos abstratos e não admitam al­teração ou exceções, como o tempo de nossos relógios mecânicos.

Em todo caso, as formas de medir o tempo são convenções ne­cessárias para estabelecer determinadas unanimidades socialmente imprescindíveis. Sem medidas de tempo comuns (assim como sem parâmetros comuns para medir comprimentos, quantidades ou pe­sos) o funcionamento do grupo social - baseado na cooperação e no intercâmbio - se torna impossível. Certos grupós só requerem medidas temporais muito frouxas, em outros exige-se a maior exa­tidão; nas sociedades tradicionais, o importante é determinar os mo­mentos de reunião de toda a coletividade, nas modernas importa so­bretudo a forma pela qual cada um organiza suas atividades parti­culares. Sem dúvida esses padrões de medida caracterizam o tom particular da relação com o tempo dentro de um grupo. Nas socie­dades tecnicamente desenvolvidas, por exemplo, vivemos em um

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tempo de precisão angustiante mas também muito mais "privatiza­do" do que em outras coletividades. Não são tanto os marcos cole­tivos mas as relações entre particulares que se vêem submetidas a horários estritos. Quanto ao mais, cada um se orienta temporalmen­te a seu gosto: quanto mais moderna é uma grande cidade, tanto mais fácil, por exemplo, é comer ou fazer compras a qualquer mo­mento. Mesmo assim, persistem alguns marcos coletivamente sig­nificativos, como o final do ano ou o início das férias de verão, e certas convenções são carregadas de significados transcendentes: basta pensarmos nas elucubrações que se têm feito em torno de uma vicissitude do calendário tão fortuita como a próxima mudan­ça de milênio* ...

Sejam quais forem as medidas de tempo que adotemos, não podemos deixar de pensar que existe, além e à margem delas, um tempo independente de qualquer convenção humana. Isto é, certas mudanças naturais cumprem seus prazos seja qual for nossa forma de nos orientarmos socialmente no temporal. Os astros levam um determinado tempo para percorrer suas órbitas e as células têm ins­crita sua própria data de caducidade, embora ninguém a possa esta­belecer precisamente: não é por carecer de uma medida exata da volta da Terra em torno do Sol que nenhum homem chega a viver mil anos ... Por mais arbitrários que sejam nossos padrões de orien­tação temporal, em todos eles certos acontecimentos sempre e irre­versivelmente precedem outros, como o nascimento de um pai pre­cede o de seus filhos ou a semeadura precede a colheita. Embora a cosmologia atual relativize nossas formas de medir o tempo a esca­la cósmica e até se fale de uma "criação" constante de espaço e tempo de acordo com a expansão do universo, ninguém sustenta'em favor dessa perspectiva que o surgimento do Sol tenha sido poste­rior ao do resto dos planetas ou que os mamíferos tenham antece­dido os dinossauros na evolução. Além do tempo "social", estabe­lecido por nossas necessidades coletivas e pelas formas de medição que correspondem a elas, deve haver algo como outro tempo "na­tural" que às vezes serve como orientação do primeiro mas que, seja como for, transcorre de modo independente às normas huma-

*Cabe lembrar que este livro é de 1999. (N. da T.)

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nas. Só em fantasias subversivas, como Do outro lado do espelho, de Lewis Carroll, acontece que primeiro se grite de dor, depois se comece a sangrar e finalmente se sofra a picadura em um dedo ...

Conforme já dissemos no início, o "agora" que responde à per­gunta "quando?" pode ser registrado em qualquer uma das três gran­des zonas que dividem nossa compreensão do tempo: passado, pre­sente e futuro. Mas, das três, duas - o passado e o futuro - têm ape­nas uma realidade, digamos, "virtual". A vida sempre ocorre no pre­sente, e fora do presente nada é inteiramente real, nada tem efeitos diretos: nenhuma das balas disparadas na segunda guerra mundial irá me ferir nem posso me bronzear ao sol do verão do ano 2005. O trocista Lewis Carroll inventou uma deliciosa geléia que se podia comer qualquer dia, menos hoje: isso equivale a nos deixar literal­mente com água na boca, pois o que não posso comer "hoje"- qual­quer que seja a data no calendário desse "hoje"- não poderei sabo­rear nunca. Deveríamos então nos desinteressar do passado e do fu­turo para nos concentrar exclusivamente no presente? Fazemos mal em encher nosso presente com as sombras do passado e as promes­sas do futuro? Essa é a opinião de Pascal, severo e lúcido moralis­ta: "O passado não nos deve preocupar, porque dele só podemos la­mentar nossas faltas. Mas o porvir deve nos afetar ainda menos, porque nada tem a ver conosco e talvez nunca cheguemos até ele. O presente é o único tempo verdadeiramente nosso e que devemos usar conforme Deus manda ... No entanto, o mundo é tão inquieto que não se pensa quase nunca no presente e no instante que vivemos, mas no que viveremos. De modo que sempre estamos empenhados em viver no vindouro e nunca em viver agora" (carta a Koannez, dezembro de 1656). Não é só em nível individual que os remorsos do passado ou o desânimo do futuro podem nos estragar o presen­te em que efetivamente vivemos: também vemos que povos, nações ou coletividades sacrificam o presente "agora" empenhando-se em vingar ou reparar agravos passados ou sacrificam as gerações atuais em nome do bem-estar das futuras (por que esse bem-estar incerto deveria ser preferível ao de nossos contemporâneos?).

Se o passado e o futuro oprimem de tal modo nosso presente, talvez devamos pensar que não são tão "passado" e "futuro" como parecem. Ora, o presente também é a zona temporal em que passa-

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do e futuro são reais, ou seja, onde podem ter algum tipo de efeitos (creio que podemos chamar de "real" apenas o que afeta de algum modo outras realidades, nunca aquilo de que não saberíamos mos­trar o modo pelo qual sua existência modifica de fato qualquer ou­tra coisa existente). Novamente é santo Agostinho que aborda o as­sunto de maneira mais competente: "Também não se pode dizer com exatidão que os tempos sejam três: passado, presente e futuro. Dever-se-ia dizer mais propriamente que há três tempos: um presen­te das coisas passadas, um presente das coisas presentes e um pre­sente das coisas futuras. Essas três coisas existem de algum modo na alma, mas não vejo que existam fora dela. O presente das coisas idas é a memória. O das coisas presentes é a percepção ou a visão. E o presente das coisas futuras a espera." 2 Tanto o passado como o futuro têm efeitos presentes porque estão presentes em nosso pre­sente. Mutilar o presente da lembrança do passado e da expectativa do futuro é deixá-lo sem densidade, sem "substância" ...

No entanto, nossa relação com o passado não é simétrica à que temos com o futuro. Diríamos antes que o que já ocorreu nos afeta no presente de modo oposto ao que vai ocorrer, desde que caracte­rizemos o presente como o momento em que a vida sucede e temos que atuar. No passado situa-se o conhecido, que já não podemos modificar; no futuro está o desconhecido ainda modificável. Ne­nhuma de nossas ações pode mudar o passado, embora todas pos­sam levá-lo em conta; em contrapartida, nada do futuro podemos dar como favas contadas, ainda que qualquer uma de nossas ações vá influir em seu devir. Diríamos que as coisas passadas já temos nas mãos - embora intangíveis -, ao passo que as futuras estão en­volvidas na escuridão do mistério, mas admitem e até exigem, para se fazer presentes, nossa intervenção. Se nossa condição humana é antes de tudo ativa, parece que o futuro deve contar em nosso pre­sente mais do que o passado.

Contra essa opinião também se podem levantar reservas: à mais dogmática chamaremos doutrina do destino, e à mais hipoté-

2. Confissões, de santo Agostinho. [Traduzido a partir do texto citado pelo au­tor: Confesiones, de Agustín de Hipona, trad. esp. de P Rodríguez de Santidrián, Alianza Editorial, Madri.]

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tica costuma-se denominar teoria dos futuros contingentes. Os crentes no destino -os filósofos estóicos, por exemplo - sustentam que todos os acontecimentos futuros estão rigorosamente determi­nados desde sempre, assim como o estiveram os passados. Segun­do Crisipo (século III a. C., citado por Áulio Gélio, Noites áticas, VII), "o destino é uma disposição natural de tudo, desde a eternida­de, de como cada coisa segue e acompanha cada outra coisa, e essa disposição é inviolável". Portanto, o porvir "já está escrito", como se costuma dizer: na realidade não há futuro, porque não há novi­dade nem incerteza no que há de ocorrer, só ignorância de nossa parte para prevê-lo. A ordem universal se desdobra como uma tela pintada que vai se desenrolando paulatinamente mas em que nada pode aparecer, a não ser o que já sabemos que está previamente re­presentado nela. Nesse quadro que vai se desvendando pouco a pouco também está cada um de nós, com todos os incidentes que irão ocorrer na vida: portanto, não só nossa liberdade como nossa própria capacidade de ação (se por "ação" entendemos a possibili­dade de intervir no curso do real e não de simplesmente o seguir) continuam seriamente em dúvida. Podem-se aplicar aqui mutatis mutandis algumas das reflexões que fizemos no capítulo sexto. Agora observemos apenas que quando o futuro desaparece - por ser predeterminado, seja por disposição de Deus ou da Natureza­asfixia-se a liberdade, que só pode respirar ares de porvir.

Mais sutil é a colocação aristotélica (no capítulo IX do tratado Da interpretação), dirigida justamente à defesa da possibilidade de um futuro propriamente futuro, ou seja, aberto, diante de quem, por razões estritamente lógicas, possa inclinar-se a negá-lo. Suponha­mos que estejamos aparentemente às vésperas de uma grande bata­lha naval. Sobre essa eventualidade, são possíveis duas proposi­ções: "amanhã haverá uma batalha naval" ou "amanhã não haverá uma batalha naval". Uma e só uma dessas duas afirmações é certa já hoje, embora ainda não saibamos qual. Mas o que é verdade é verdade in aeternum, pode lembrar-nos um lógico implacável (há gente para tudo!): portanto, em algum lugar deve estar escrito esse futuro que toma verdadeira ou falsa cada uma das proposições. Com um senso comum racionalista que dá alívio, Aristóteles sustenta, por outro lado, que a única coisa hoje verdadeira é que "amanhã ha­verá ou não haverá uma batalha naval", ao passo que ainda não pode

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ser verdade nem que "amanhã haverá uma batalha" nem que "ama­nhã não haverá uma batalha" 3

• Ou seja, o verdadeiro "para amanhã" é a dúvida entre duas ou mais possibilidades, não a certeza proféti­ca de uma ou outra. O futuro é "contingente" -pode ser assim ou de outro modo -, não fatal nem necessário. O que ocorrer amanhã te­rá, sem dúvida, suas próprias causas, entre as quais bem pode estar nossa efetiva decisão humana de agir, que só intervirá no real quan- . do a pusermos em prática e nunca antes. Certamente, pode haver fu­turos contingentes que não dependam em nada de ações humanas. Não nos limitamos pois a "ler" um futuro já escrito e, sim, colabo­ramos para escrevê-lo. Obrigado, Aristóteles.

Talvez essas formas de negação do futuro se devam em gran­de medida a uma concepção espacial do tempo. Quando tentamos pensar o tempo começamos por "imaginá-lo", e é dificil- impossí­vel? - ter "imagens" que não sejam espaciais. "Vemos" o tempo passar como algo que se desloca no espaço: o tempo "corre", é muito "longo", "avançamos" para o ano 2000, estamos a uma "dis­tância" de dois séculos do Iluminismo, e o poeta Jorge Mairinque disse que "nossas vidas [isto é, o transcurso temporal de nossas vi­das, F. S.] são os rios que vão dar no mar que é o morrer" ... A com­paração do tempo com um "rio" é particularmente repetida: é habi­tual nos referirmos a um "lapso" de tempo, palavra cuja etimologia nos remete ao latim labi, "fluir". Mas o tempo também pode ser uma espécie de "vento" que sopra nas velas da história para nos le­var para o futuro; e Walter Benjamin, comentando o quadro de Paul Klee Angelus novus - que representa um anjo voando para trás - , imagina-o antes como uma autêntica tormenta que "desce do Paraí­so, se renioinha em suas asas e é tão forte que o anjo não consegue movê-las. Essa tempestade o arrasta irremediavelmente para o fu­turo, para o qual ele volta as costas, enquanto o acúmulo das ruínas sobe diante dele para o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso" 4

• A concepção judaico-cristã do tempo apresenta-o co-

3. Atualmente é tema de discussão se Aristóteles diz isso ou quer dizer ama­nhã "necessariamente" ...

4. Tese de filosofia da história, de W Benjamin, em Ensayos escogidos, trad. de H. Murena, Ed. Sur, Buenos Aires. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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mo mna flecha que avança do paraíso ao Juízo Final de modo irre­versível; na versão laica desse mito, à qual Benjamin se refere, esse avanço é um "progresso", ou seja, viaja do pior para o melhor; não faltam pessimistas que o vêem como uma perpétua decadência de

sinal contrário. Muitas outras culturas - e alguns autores dentro da nossa, co-

mo Giambattista Vico ou Nietzsche - preferiram imaginar um tem­po cíclico, que se desloca girando como uma roda ou que roda per­manentemente sobre si mesmo, trazendo sempre de novo o mesmo cenário do presente. Um rio, uma flecha, mna roda, mna tempesta­de, sempre algmn tipo de energia motriz que nos transporta de um ponto a outro seguindo uma trajetória que se parece demais com as que realizamos através do espaço. Por certo, a ficção científica con­temporânea deu de, literalmente, "viajar pelo tempo" e compôs vá­rios romances sobre o tema, desde o magnífico A máquina do tem­po, de H. G. Wells, até as invenções de Poul Andersen, Ray Brad­bury, os filmes do tipo De volta para o futuro e muitas outras va­riantes cada vez mais sofisticadas que continuam se acrescentando à lista (lembro também um ingênuo seriado de televisão de minha adolescência, que me encantava, protagonizado por David Hedison e chamado O túnel do tempo ... em cuja homenagem privada escre­vi este capítulo, pois, para refletir sobre o tempo, me parece obri­

gatório partir da memória). Diversos pensadores protestaram contra essa "espacialização"

do temporal. No primeiro terço de nosso século, Henri Bergson contrapôs o tempo "exteriorizado" da visão cientificista e raciona­lista à durée, a duração intimamente vivida e contínua que resiste a qualquer fragmentação espacializante. Segundo Bergson, o "tempo" dos físicos é algo parecido com o "movimento" reproduzido pelo cinema: uma série de fotogramas ou "instantâneos" sucessivos que o olho humano capta como gestos, corridas, explosões, etc. Mas nós, que estamos dentro do filme, sabemos que o movimento não é verdadeiramente uma sucessão de instantes estáticos - a armadilha de Zenão! - e, sim, uma "continuidade" que só depois de assassi­nada pode ser dissecada como a soma rapidíssima de muitas para­das; do mesmo modo, o transcurso do tempo não percorre uma sé­rie de estações intemporais - aqui, lá e mais para lá ainda, sempre

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na mesma estrada -, mas flui sem trajeto prévio, aparecendo no mesmo instante em que desaparece através de nós: não nos trans­porta, mas nos transpõe.

Há muitas outras diferenças essenciais entre o movimento no espaço e o passar do tempo. ~ mais notável é que em cada lugar do es­paço só se pode encontrar um corpo, ao passo que em cada instan­te do tempo acham-se todos os corpos contemporâneos, desde a es­trela mais remota até a formiga que sobe no nosso sapato. Em cada ponto do espaço só cabe esta ou aquela coisa definida, ao passo que qualquer subdivisão do tempo, por menor que seja, abarca o inume­rável... ou o infinito. Sem dúvida, a velocidade de nossas viagens pela superfície terrestre nos habituaram a supor que, em certa me­dida, elas também nos transportam pelo tempo: o avião que parte de Madri para Nova York "ganha" horas em seu trajeto, de modo que, quando chegamos à cidade norte-americana e telefonamos pa­ra nossa família, seus relógios estão marcando várias horas mais do que o nosso (lembremos a surpresa final de A volta ao mundo em oitenta dias, de Júlio Veme, quando o aventureiro Phileas Fog des­cobre que, no final das contas, conseguiu ganhar sua aposta graças às mudanças de horário devidas à rotação da Terra). Mas esses "ga­nhos" ou "perdas" de horas o são apenas quanto à medição conven­cional do tempo, não quanto ao próprio tempo: o instante que eu vi­vo enquanto falo pelo telefone com minha mulher através do Atlân­tico é o mesmo que ela vive, embora ... aos olhos de quem? Também "viajar" pelo tempo nunca poderia ser como se deslocar espacial­mente para frente ou para trás, por mais que os escritores de ficção científica nos entretenham engenhosamente especulando sobre essa possibilidade. O problema não está apenas nos diversos absur­dos que seriam propiciados (volto ao passado para me asfixiar no berço e me impedir de crescer, assim nunca chegando à idade de empreender minha viagem; ou viajo para o futuro para me encontrar comigo mesmo e revelar a meu "eu" o porvir dessa travessia crono­lógica, que já deveria conhecer por tê-la efetuado "antes" de chegar a esse encontro, etc.). Todas essas contradições mostram que os su­cessivos "lugares" do tempo não são simplesmente justapostos como os "lugares" do espaço, mas têm uma concatenação interna que não pode ser invertida sem destruir o propriamente "temporal" do pró-

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prio tempo. Além do mais, qualquer "deslocamento" temporal tam­bém implicaria um lapso de tempo, por mais breve que fosse, que não saberíamos se pertence ao passado ou ao futuro nem como com­putá-lo. Ou seja, quando viajamos pelo espaço, sempre podemos sa­ber onde estamos, mas durante a viagem temporal não estamos tem­poralmente em lugar nenhum. É que, ao que parece, o tempo não "es­tá aí", já dado, como o espaço, para que o percorramos, mas nós o carregamos. Um pouco adiante voltaremos a essa questão.

Há mais uma diferença importante entre espaço e tempo, na qual insiste o pensador contemporâneo Cornelius Castoriadis. No espaço nos é oferecido o distinto, mas é no tempo que pode apare­cer o radicalmente outro, a verdadeira alteridade. Abarcadas pelo espaço se reproduzem as diversas formas da identidade, mas o es­pírito criador amadurece com o passar do tempo e se ergue de re­pente trazendo a autêntica novidade do não-idêntico, do literalmen­te "nunca visto": trata-se de um poema, uma ferramenta, uma des­coberta científica, uma sinfonia, uma lei ou uma revolução. Os an­tigos gregos falavam do kairós, o momento propício no qual se pode realizar o que antes era impossível e no qual aparece por obra do ânimo humano a nova "idéia" que antes faltava no mundo real. O que conta de fato na temporalidade é a possibilidade sempre aberta do kairós, o instante futuro que rompe a rotina e o previsível para inaugurar uma perspectiva inédita de vida consciente no uni­verso: o momento em que a imaginação se põe em prática. No es­paço podemos explorar o desconhecido e encontrar o que ainda não sabíamos que estava ali, mas é no tempo que podemos dar à luz aquilo que imaginamos em ruptura com o meramente constatável.

Em 31 de dezembro de 1902, Jules Renard anota em seu diário: "Ano, uma rodela cortada do tempo e o tempo continua inteiro." Além das constatações antropológicas sobre a forma de medir o tempo e os diferentes papéis da temporalidade nas culturas, além das elucubrações dos fisicos sobre o tempo no universo, o que pasma vi­vencialmente a nós, humanos, é que o tempo - esse algo inapreen­sível que escapa perpetuamente - permaneça, em certo sentido, completo e intacto enquanto somos tragados por seu remoinho. É o tempo que é fugaz ou o somos nós nele? A resposta do poeta Pierre de Ronsard (século XVI) certifica nossa mais profunda convicção:

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Le temps s'en va, le temps s'en va, ma Dame, Las!, !e temps non, mais nous nous en allons.

(O tempo se vai, o tempo se vai, minha senhora, Ai!, o tempo não, mas nós nos vamos.)

Queremos supor que o tempo passa, mas na realidade sabemos que o tempo está sempre aí, fluindo, embora sem diminuir nem au­mentar: o que transcorre e diminui incessantemente não é o tempo, é o nosso tempo. Pois bem, se a natureza do tempo é esse passar ir­remediável que, considerado em termos absolutos, não afeta o pró­prio tempo mas em contrapartida, concerne antes a nós, não será o tempo nada mais, nada menos do que nossa dimensão essencial? O lúcido Agostinho já em sua época suspeitou algo assim: "Parece­me que o tempo não é outra coisa senão uma certa extensão. Mas não sei de que coisa. Pergunto-me se não será da própria alma." Não medimos o tempo, medimos a nós mesmos no tempo ... a não ser que seja o tempo que nos mede!

Talvez então seja preciso recolocar a questão do tempo, vincu­lando-o de maneira muito mais direta a nossa condição humana (ou pelo menos à nossa condição "humana" tal como a entendemos os ocidentais da modernidade). Isso é justamente o que faz Martin Heidegger no livro de filosofia mais celebrado e discutido do sécu­lo XX, Ser e tempo (1927). Já três anos antes de publicar sua obra máxima, Heidegger concluía uma conferência intitulada "O concei­to de tempo", formulando de outro modo a velha pergunta: "O que é o tempo? transformou-se em: quem é o tempo? Mais exatamente: o tempo somos nós mesmos? Ou mais precisamente: meu tempo sou eu?" A resposta de Heidegger é afirmativa: o que ele chama de Dasein, o existente humano, consiste precisamente em "tempo", essa inconsistência transitória. Sua colocação coincide substancial­mente com a formulação ao mesmo tempo poética e reflexiva com que Jorge Luis Borges conclui seu ensaio significativamente intitu­lado Nova refutação do tempo (um propósito metafisico que, sem dúvida, ele não consegue levar a cabo): "O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, infelizmente, é real; eu, infelizmente, sou Borges."

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E desse modo voltamos a esbarrar na realidade inevitável da morte, da qual partimos, no primeiro capítulo. Para Heidegger, tal como para Borges (por isso ele queria refutar o tempo!), ser feitos de tempo significa estar no rumo da morte, deslizar sem trégua para ela. Como nos importaria pouco o tempo, em qualquer uma de suas formas ou medidas, se nos acreditássemos imortais! Não prestaría­mos atenção a ele, como as crianças pequenas, que nos dizem "lem­bra ontem ... ?" e estão se referindo ao verão passado .. . ou a hoje de manhã! A temporalidade é a consciência de nosso trânsito para a morte e do trânsito do fim ou da ruína das coisas que mais amamos. Por isso ela nos urge, por isso nos angustia, por isso nos impele à melancolia ... ou ao desafio. A esse respeito, tanto faz vivermos muitos. ou poucos anos. Segundo conta Baltasar Gracián, em El cri­ticón, um certo rei se dispunha a construir um grande palácio mas, antes de começar, quis saber quanto ia viver, para ter certeza de que o investimento valia a pena. Seus astrólogos lhe disseram que ele viveria mil anos, e, então, o rei renunciou ao projeto, dizendo que para um prazo tão curto qualquer choça lhe bastaria. Ser temporais (saber-nos temporais) é sempre viver "pouco", mas também confe­re um gosto forte, intenso, à brevidade da vida que saboreamos. A vida nunca nos pode deixar indiferentes, pois sempre está acaban­do: e a espreita da morte torna arrebatadoramente interessante o mais insípido dos momentos.

O que nos ata definitivamente ao tempo e, portanto, à imorta­lidade é nosso corpo. Em suas células esconde-se o veneno de re­lojoaria que pouco a pouco vai nos corroendo. Podemos supor, com fundamento, que esse tempo mortal que "somos" é um requisito fi­siológico dos órgãos que, evolutivamente, cabem a cada um dos membros da nossa espécie. Enquanto "produto" material, temos a data de caducidade inscrita em nossos genes. É o que nos garantem os especialistas: tenho sobre a mesa, por exemplo, um estudo cien­tífico sobre o processo de envelhecimento chamado El relo} de la edad [O relógio da idade] (de John J. Medina, Ed. Crítica), no qual se explicam os diversos passos bioquímicos desse processo irrever­sível. Somos "programados" para envelhecer e morrer. Submetidos aos achaques do corpo, constantemente também sentimos medo, seja um temor vago e inconcreto ou premente (talvez mais vago e

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inconcreto no início de nossa vida consciente, para tornar-se mais premente com os anos). Esse medo é o eco da consciência tempo­ral de nosso destino de seres arrastados para seu fim, conforme ex­plica muito bem Marcel Conche em sua obra Tempo e destino : "Um Medo difuso é o fundo afetivo de nosso ser, a tonalidade afetiva fundamental. O medo sempre está presente. Uma ninharia e temos medo, pois essa 'ninharia', quem sabe?, talvez não seja uma ninha­ria, talvez já seja a morte."5 E, como é o corpo que constantemente nos expõe sem proteção à morte por sua própria natureza, em todas as épocas cultivou-se entre os humanos a idéia de que há em nós algo não-corporal, portanto não-temporal, inatingível aos ferimen­tos e invulnerável diante dos processos letais da biologia, algo inex­tenso, inexpugnável, oposto em tudo às características corporais, imorredouro. E Marcel Conche observa: "A noção de espírito puro ou de alma, como substância incorporal, indivisível, etc., parece fruto do Medo. O homem tem um medo tão profundo diante da morte que forjou uma idéia de si mesmo como homem-sem-corpo = alma, para escapar a seu destino, à morte." Assim a alma seria consciente do tempo apenas como algo que acontece ao corpo, mantendo-se ela mesma a salvo de seu perpétuo desgaste ...

No entanto, pode estar realmente vivo o que não deve morrer? Talvez nascer e morrer não sejam apenas o começo e o final de nos­so destino, mas um componente que se repete incessantemente ao longo de toda a nossa existência. Em cada trajetória de vida a mor­te da criança dá lugar ao jovem, a perda de um amor ou o término de uma tarefa nos impelem para novas empreitadas, o que se vai é condição do que vem, não poderíamos nos abrir para o inédito -seja terrível ou prazeroso - se não fôssemos despojados do antigo. O futuro se lança na nossa direção trazendo nosso fim mas também é a região desconhecida na qual sempre estamos entrando como ex­ploradores inevitáveis para descobrir armadilhas e tesouros. Vamos novamente recorrer ao ditame de um poeta, um desses grandes orientadores do pensamento. Diz William Butler Yeats que "o ho­mem vive e morre muitas vezes entre suas duas eternidades". Essa

5. Temps et destin, de M. Conche, PUF, Paris. [Traduzido a partir do texto ci­tado pelo autor.]

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alternância de vida e morte é justamente aquilo que, sem renunciar a nossa liberdade, podemos chamar de "destino humano", em face da eternidade que nos exclui.

Dá o que pensar ...

Poderíamos dar conta - ou nos dar conta - de nossa vida sem recorrer a referências temporais? Por acaso há algo que nos seja mais "familiar" do que o tempo? No entanto, sabemos realmente o que é o tempo? Em que consiSte a dificuldade para pensar o tempo? Podemos "fixar" o agora, o momento presente? Por que é mais fá­cil falar do "agora" no tempo passado ou na expectativa do futuro? Por que recorremos a movimentos para tentar determinar o instan­te temporal? As formas de medir o tempo são algo intrínseco à con­dição humana ou elas têm a ver com as diversas culturas e as si­tuações históricas das sociedades? Por que cada sociedade estabe­lece medidas unânimes do tempo para todos os seus membros? Por que o tempo do homem atual é ao mesmo tempo mais angustiante e mais "privado " do que em outras culturas ou épocas? Pode exis­tir um tempo que esteja além das formas humanas de medi-lo ou de empregá-lo socialmente? O passado e o futuro têm a mesma "rea­lidade " que o presente? O passado e o futuro são igualmente rele­vantes para o homem como sujeito ativo? Em que sentido o futuro nega a teoria fatalista do destino? Por que nossas "imagens" do tempo são quase todas de tipo espacial? Qual é a diferença entre os instantes do tempo e os lugares do espaço? Poderíamos "viajar" através do tempo? É realmente o próprio tempo que passa ouso­mos nós que passamos temporalmente? O ser humano é "feito" es­sencialmente de tempo? Qual a relação que existe entre nosso in­teresse pelo problema do tempo e nossa preocupação com a mor­te? O corpo é a única "parte" de nós submetida ao desgaste do tempo? O medo da morte influi em nossa tendência a imaginar "algo " incorporal em nós? O que não pode morrer está realmente vivo? De que maneira nascimento e morte são ingredientes cons­tantes de nossa existência temporal?

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Epílogo

A vida sem por quê

Soy, más, estoy. Respiro. Lo profundo es e! aire. La realidad me inventa. Soy su leyenda. jSalve!*

JORGE GUILLÉN

Tão antigo quanto a filosofia é o costume de rir dos filósofos. Do primeiro deles, Tales de Mileto, conhecemos a anedota de que caiu num poço porque ia olhando para o firmamento, o que provo­cou as gargalhadas das criadas que passavam por ali. Os humoristas também se aproveitaram desses personagens tão espontaneàmente cômicos. Em As nuvens, Aristófanes zomba com desabrida cruelda­de de seu contemporâneo Sócrates: parodia sua índole intelectual até o galimatias e o apresenta em uma cena da comédia pendurado numa cesta bem no alto para estudar melhor as estrelas. Também lhe atribui ensinar os jovens a dar pauladas nos pais, brincadeira bem mais perigosa do que as demais, em vista das acusações de corrup­tor da juventude que serviram para condenar Sócrates. O arguto sa­tírico Luciano de Samosata (século II d. C.) escreveu um diálogo muito engraçado, intitulado Leilão de filósofos: o próprio Zeus, ajudado por Hermes, oferece em público remate aos principais lu­minares da filosofia, como se fossem escravos ou prostitutas. Os com­pradores pagam de acordo com a utilidade das doutrinas dos leiloa­dos - comicamente resumidas - para guiar suas vidas. Os mais co­tados são Sócrates e Platão, a dois talentos cada um; o lance mais alto para Aristóteles não vai além de vinte minas (cada talento são

*Tradução livre: "Sou, mais, estou. Respiro. / O profundo é o ar. / A realidade me inventa. / Sou sua lenda. Salve!" (N. da T.)

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sessenta minas) e Epicuro, verdadeira pechincha, acaba sendo re­matado por apenas dois. Heráclito e Demócrito, incompreendidos, são retirados por falta de comprador! Moliere, é claro, também apresenta em suas peças vários sábios ridículos, um deles, por exemplo, empenhado em explicar os efeitos soníferos do ópio por uma "qualidade oculta" chamada vis dormitiva (ou seja, pontifican­do que o ópio faz dormir porque tem uma qualidade que se chama "força-para-fazer-dormir"), etc.

Às vezes o sorriso à custa dos filósofos tem um tom de irôni­ca simpatia ou, pelo menos, de comiseração por eles. A ópera Ce­nerentola (Cinderela) de Rossini oferece uma variante "ilustrada" do conto clássico devida ao libretista Giacomo Ferretti, na qual a fada madrinha que protege a menina desafortunada e propicia sua ligação com o príncipe é substituída pelo filósofo Alidoro. O sábio senhor transforma-se assim numa figura benfazeja mas irreal, do gênero "bom-demais-para-ser-verdade", ao qual também perten­cem suas primas, as fadas. E há pouco tempo foi publicado um en­genhoso romance de Tibor Fischer, The Thought Gang (em espa­nhol, Filosofia a mano armada, ed. Tusquets), protagonizado pelo professor de filosofia Eddie Féretro, fracassado e beberrão, que se dedica a planejar assaltos a bancos seguindo as pautas dos mais fa­mosos sistemas de pensamento. O filosófico gângster anota de vez em quando suas profundas reflexões, uma das quais tem muito a ver, por certo, com o tema deste livro: "Avançamos com dificulda­de através de perguntas e respostas que nos chegam até a cintura; inundaram o mundo, há tantas que, se conseguimos alcançar umas poucas, já é um bom avanço ... " O certo é que, como método para assaltos, os sistemas filosóficos mostram-se, no romance, muito mais úteis do que costumam ser em outros campos.

Por que tão freqüentemente os filósofos são risíveis para aque­les que não gostam deles e até para muitos que gostam? Em primei­ro lugar, provavelmente, pela mistura característica que há neles de ambição teórica desmedida (querer perguntar tudo, sempre "por quê?" e mais "por quê?") e resultados práticos escassos (quase to­das as suas respostas são tão inquietantes quanto as perguntas e em geral não servem para fazer nada "eficaz" a partir do que afirmam). Além disso, com freqüência os filósofos se chocam contra as evi-

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dências do senso comum ou as respeitáveis tradições que as pes­soas decentes nunca criticam. Mais ainda, em geral eles utilizam um jargão incompreensível - com abundância de termos obsoletos ou estrangeiros, quando não diretamente inventados para a circuns­tância - e não aceitam discutir com as pessoas que argumentam em linguagem coloquial, olhando-as por cima do ombro. Eles podem, eventualmente, ser modestos - "só sei que não sei nada"-, mas por baixo da túnica transparece a arrogância disparatada: "Ninguém sabe tanto quanto eu!" Alguns não se privam de dar lições sublimes de moral, mas raramente os vemos viver de acordo com o que pre­gam (embora nem todos cheguem, é claro, aos extremos de Eddie Féretro!). Para culminar, se dão muito mal uns com os outros e de­sacreditam seus colegas com autêntico ódio. Em poucas palavras: são pedantes, pomposos, inúteis, irreverentes, hipócritas e egocên­tricos. Há quem dê mais ... por menos?

Embora haja muito exagero e generalização injusta nessas acu­sações, é preciso admitir que, em grande parte, não deixam de ter grande parte de razão. E nós, professores de filosofia, com freqüên­cia, infelizmente, agravamos esses defeitos já presentes nos gran­des mestres. Há mais de quarenta anos Jean-François Revel escre­veu um contundente libelo intitulado Pourquoi des philosophes? (Filósofos para quê?), muito discutido e discutível, mas que convi­ria voltar a ler hoje. Ele apontava alguns males que continuam afli­gindo em grande medida o ensino da filosofia. Por exemplo, a sa­cralização de nossa linguagem especializada e a recusa em discutir com quem não a domine: "Vá estudar Kant ou Hegel e depois con­versaremos." Embora supérflua em muitas ocasiões (e, é claro, sempre que se recorre sem outro motivo que não o exibicionismo de erudição a palavras estrangeiras, como se só fosse possível ques­tionar a realidade em alemão ou em grego), a decantação de uma linguagem técnica para a filosofia pode afinar nossos instrumentos de compreensão e tornar os debates mais precisos. Afinal, filosofar é uma tradição antiga e certos termos são contribuições muito va­liosas que nos permitem pensar a partir do já pensado e não come­çar do zero a cada momento. Mas isso não quer dizer que o filóso­fo ou o professor de filosofia devam se fechar com desdém às ques­tões colocadas pelo profano inteligente. É provável que palavras

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mais adequadas e carregadas de sentido pela reflexão do passado melhorem nossa discussão do real, mas o que conta é justamente o real e não as palavras com que tentamos entendê-lo. Com razão, Kierkegaard aconselha a desconfiar de qualquer suposto pensa­mento que só se pode "dizer" de uma maneira determinada e acon­selha, como sinal de honradez, a eventualmente mudar de expres­são: uma idéia não é o mesmo que uma "fórmula verbal". Às vezes é muito mais interessante analisar as expressões da linguagem co­mum que manejamos quase automaticamente do que substituí-las de repente por termos mais especializados que matam a curiosida­de fingindo satisfazê-la e costumam se transformar em fetiches. Os filósofos devem tentar responder às perguntas e inquietudes dos hu­manos, e não se fechar em discussões melindrosas de terminologia só com os de seu grupo.

Já comentamos na introdução deste livro as diferenças que há entre a indagação propriamente filosófica e a científica. Mas não se trata de modo algum de dois mundos totalmente alheios e muito menos opostos. Não há nada mais justificadamente risível em nos­sos dias do que esses metafísicos que desprezam com arrogância os cientistas, por seu apego "empírico" ao meramente "positivo". O pior é que em geral o fazem invocando a defesa da educação "hu­manista", como se o humanismo consistisse tanto em saber Cícero de cor como em ignorar meticulosamente a física quântica. O cer­to é que a filosofia é uma atividade intelectual que vem "depois" da informação positiva nos diversos campos do saber humano, não "antes". O filósofo carece de qualquer ciência infusa que lhe per­mita falar do homem em geral sem ter o mínimo conhecimento de antropologia ou psicologia, aprofundar-se na linguagem sem saber uma palavra de lingüística ou razoar sobre estética sem visitar mu­seus, ler romances ou ver filmes. Um pensador que hoje tentasse fazer-se perguntas filosoficamente sérias sobre a matéria ignoran­do tudo da física ou da química atuais seria um xamã ou um necro­mante, nunca um filósofo. Por essa via a filosofia se transforma em verbosidade obscurantista, o mais oposto que se cabe imaginar a seu verdadeiro desígnio ilustrado. A tarefa da filosofia é refletir so­bre a cultura em que vivemos e seu significado não só objetivo como também subjetivo para nós: para isso, obviamente, é necessá-

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rio ter a melhor formação cultural possível. Nem todas as pessoas cultas são filósofos, mas não há filósofos declaradamente incul­tos ... e as ciências são parte imprescindível da cultura, não um des­vio de interesse puramente instrumental. Sem preparo cultural pré­vio a filosofia chega no máximo a fórmulas totalmente irrelevantes mas bastante limitadas, do tipo do "não somos ninguém" que se costuma pronunciar na hora dos pêsames nos enterros ou às consi­derações tumultuosas sobre a justiça e a verdade que abundam nas tertúlias radiofônicas.

Filosofar não deveria ser sair de dúvidas, mas entrar nelas. É claro que muitos filósofos - e até dos maiores! - cometem às vezes formulações peremptórias que dão a impressão de já ter encontra­do respostas definitivas às perguntas que nunca podem nem devem "fechar-se" por inteiro intelectualmente (veja-se a introdução deste livro). Vamos agradecer-lhes suas contribuições, mas não seguir seus dogmatismos. Há quatro coisas que nenhum bom professor de filosofia deveria esconder de seus alunos:

- primeira, que não existe "a" filosofia, mas "as" filosofias e, sobretudo, o filosofar: "A filosofia não é um longo rio tranqüilo, em que cada um pode pescar sua verdade. É um mar no qual mil ondas se defrontam, em que mil correntes se opõem, se encontram, às vezes se misturam, se separam, voltam a se encontrar, opõem-se de novo ... cada um o navega como pode, e é isso que chamamos d filosofar." 1 Há uma perspectiva filosófica (em face da perspectiva científica ou da artística), mas felizmente ela é multi facetada;

- segunda, que o estudo da filosofia não é interessante porqu a ela se dedicaram talentos extraordinários como Ari stóteles ou Kant, mas esses talentos nos interessam porque se ocupara m dessas questões de amplo alcance que são tão importantes para nossa pró­pria vida humana, racional e civilizada. Ou seja, o empenho de fi ­losofar é muito mais importante do que qualquer uma das pessoas que bem ou mal se dedicaram a ele;

- terceira, que até os melhores filósofos disseram absurdos no­tórios e cometeram erros graves. Quem mais se arrisca a pensar

1. La sagesse des modernes, de A. Comte-Sponville e L. Ferry, Laffont, Paris. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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fora dos caminhos intelectualmente trilhados corre mais riscos de se equivocar, e digo isso como elogio e não como censura. Portan­to, a tarefa do professor de filosofia não pode ser apenas ajudar a compreender as teorias dos grandes filósofos, nem mesmo contex­tualizadas em sua devida época, mas sobretudo mostrar como a in­telecção correta dessas idéias e raciocínios pode nos ajudar hoje a melhorar a compreensão da realidade em que vivemos. A filosofia não é um ramo da arqueologia e muito menos simples veneração de tudo o que vem assinado por um nome ilustre. Seu estudo deve nos render alguma coisa mais do que um título acadêmico ou um certo verniz de "cultura elevada";

- quarta, que em determinadas questões extremamente gerais aprender a perguntar bem também é aprender a desconfiar das res­postas demasiado taxativas. Filosofamos partindo do que sabemos para o que não sabemos, para o que parece que nunca poderemos saber totalmente; em muitas ocasiões filosofamos contra o que sa­bemos, ou melhor, repensando e questionando o que acreditávamos já saber. Então nunca podemos tirar nada a limpo? Sim, quando pelo menos conseguimos orientar melhor o alcance de nossas dú­vidas ou de nossas convicções. Quanto ao mais, quem não for ca­paz de viver na incerteza fará bem em nunca se pôr a pensar.

Um dos motivos de ridículo mais justificado em que os filóso­fos costumam incorrer é pretender competir com a religião na bus­ca redentora do sentido da vida. Acontece que a pergunta por esse "sentido" já é religiosa por si só, e a única coisa que a filosofia pode fazer com relação a ela é mostrar - como estou tentando fazer agora- essa religiosidade e tentar reformulá-la de outro modo para que se torne filosoficamente válida. Quando dizemos estar buscan­do - ou ter encontrado! - o sentido da vida, a que tipo de "sentido" estamos nos referindo? Dizemos que tem "sentido" aquilo que quer significar algo por meio de outra coisa ou que foi concebido de acordo com determinado fim. O sentido de uma palavra ou de uma frase é o que ela quer dizer; o sentido de um sinal é o que ele quer in­dicar (uma direção, o escalão de uma pessoa, etc.) ou o que quer avisar (um perigo, a hora de levantar, a passagem de pedestres, etc.); o sentido de um objeto é aquilo para que ele quer servir (tomar a sopa, matar o inimigo, falar com alguém que está longe, etc.); o

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sentido de uma obra de arte é o que seu autor quer expressar (uma forma de beleza, a representação do real, a insatisfação diante do real, a ilusão do ideal, etc.); o sentido de uma conduta ou de uma ins­tituição é o que se quer conseguir por meio dela (amor, segurança, diversão, riqueza, ordem, justiça, etc.).

Em todos os casos, o que conta para determinar o sentido de alguma coisa é a intenção que a anima. Os símbolos, obras, condu­tas e instituições humanas estão carregados dos sentidos que nos­sas intenções lhes concedem, tal como os comportamentos dos ani­mais ou até os tropismos das plantas ou dos ciliados. Em todos os casos, a intenção está ligada à vida, a conservá-la, reproduzi-la, di­versificá-la, etc. Onde não há vida também deixa de haver intenção e, portanto, sentido: podemos explicar as causas de uma inundação, de um terremoto ou de um amanhecer, mas não seu "sentido". Por­tanto, se as intenções vitais são a única resposta inteligível à per­gunta pelo sentido, como poderia a própria vida ter "sentido"? Se todas as intenções remetem como última referência à vida, que "in­tenção" poderia ter a própria vida em seu conjunto?

É próprio do "sentido" de alguma coisa remeter intencional­mente a outra coisa que não a si mesma: aos propósitos conscien­tes do sujeito, a seus instintos, em última instância à autoconserva­ção, auto-regulação e propagação da vida. Mas, se nos perguntamos "o que a vida quer?", as únicas respostas possíveis - viver, viver mais, etc. - nos levam de volta à própria vida sobre a qual estamos perguntando. Para encontrar o sentido da vida devemos buscar "ou­tra coisa", algo que não seja a vida nem esteja vivo, algo além da vida. Suponhamos que nossa resposta seja "o sentido da vida orgâ­nica é o perpétuo desdobramento do universo inorgânico do "qual brotou". Conceder "intenções" ao inorgânico parece bastante enga­noso, só se pode fazê-lo estendendo o significado da palavra "in­tenção" a ponto de se desmontar, mas vamos admiti-lo por um mo­mento. A pergunta imediata é: e qual é o sentido do universo inor­gânico? Para responder a isso de modo não auto-referente ( evitan­do dizer "a intenção do universo é continuar sendo universo cada vez mais", por exemplo) devemos referir-nos a algo que não faça parte do próprio universo, ou seja, da natureza tal como a conhe­cemos: algo "sobrenatural", o que é apelar autenticamente para o

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desconhecido, porque ninguém sabe realmente como seria algo "so­brenatural". Wittgenstein disse, com razão, em seu Tractatus logico­philosophicus, outra das obras-primas da filosofia deste século: "O sentido do mundo deve-se encontrar fora do mundo" (6, 41). Mui­to bem, mas onde? O mundo tem um "fora"? (Veja-se o capítulo cinco.) A pergunta sobre o sentido termina onde termina o mundo ou podemos continuar perguntando pelo sentido "mais além"?

O que caracteriza a mentalidade religiosa (por oposição direta à filosófica) não é responder "Deus" à questão sobre o sentido ou a intenção do universo: propriamente religioso é crer que, uma vez dada uma resposta tão sublime, já está justificado deixar de pergun­tar. Graças a Deus as coisas têm sentido, mas seria ímpio perguntar que sentido, então, tem Deus. No entanto, de um ponto de vista fi­losófico, a pergunta que indaga pelo sentido de Deus é tão razoável e urgente quanto a que pretende desvendar o sentido do mundo ou o sentido da vida. Se essa pergunta não pode ser feita ou em nome do Grande Enigma Divino é suportável não lhe responder ("Deus é o sentido e além Dele a pequenez humana nada pode saber" , etc.), teria dado no mesmo nos conformar muito antes. Poderíamos ter aceitado de início, por exemplo, a lição daqueles versos de O guar­dador de rebanhos, de Fernando Pessoa:

As cousas não têm significação: têm existência, As cousas são o único sentido oculto das cousas.

Aceitar que Deus seja o Sentido Supremo, o que dá Sentido a todos os Sentidos, é um pacto mais conformista ainda com a escu­ridão do que responder que o sentido de todos os sentidos é a inten­cionalidade vital ou a intenção humana. Pelo menos existem razões filosóficas para não ampliar para além da vida a pergunta sobre o sentido, ou seja, para além do uso habitual da palavra "intenção": uma vez transposta essa barreira, não há por que se deter nem se contentar, nunca. O religioso não é tanto querer ir além quanto crer que depois seja justificado "frear". Alguns filósofos tentaram, com grandes respostas sistemáticas, justificar também uma "freada" se­melhante à da religião, seja recorrendo ao sobrenatural, seja sem chegar a ele. E com freqüência tomaram suas respostas de modo tão

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dogmático quanto qualquer pontífice ou inquisidor (embora em ge­ral com menos forças repressoras a seu serviço para castigar os he­reges) . Merecem o que Cioran anota em seus Cahiers, publicados postumamente: "Um sistema filosófico é como uma religião, mas mais bobo."

Se a vida não tem "sentido" (pela mesma razão por que todos os demais "sentidos" remetem mediata ou imediatamente à vida), devemos concluir desoladamente que a vida é absurda? De modo algum. Chamamos de "absurdo" o que deveria ter sentido mas não tem, não o que - por cair fora do âmbito do intencional - não "deve" ter sentido. Do mesmo modo, dizemos que um homem ou um animal é "cego" quando não vê, mas não podemos dizer, a não ser metaforicamente, que uma pedra seja "cega": porque o homem ou o animal "deveriam" ver de acordo com sua condição natural, ao passo que a visão não faz parte do que poderíamos pedir a uma pe­dra. Não é absurdo que a vida em seu conjunto não tenha sentido, porque não conhecemos intenções fora das vitais, e mais além do âmbito do intencional a pergunta pelo sentido ... carece de sentido! Realmente "absurdo" não é a vida carecer de sentido, mas nos em­penharmos em que ela deva tê-lo.

Na realidade, a busca de um "sentido" para a vida não se preo­cupa com a vida em geral nem com o "mundo" em abstrato, mas com a vida humana e com o mundo em que habitamos e sofremos. Ao perguntar se a vida tem sentido, o que queremos saber é se nos­sos esforços morais serão recompensados, se vale a pena trabalhar honradamente e respeitar o próximo ou daria na mesma entregar-se a vícios criminosos, em suma, se nos espera algo além e fora da vida ou _só a tumba, como parece evidente. Um dos pensadores que colocou a questão com maior crueza foi justamente alguém geral­mente muito pouco truculento: Kant. No final da Crítica do juízo2

fala do homem reto (dá como exemplo, nada casual, Spinoza) que tem convicção de que não há Deus nem vida futura. Como se arran­jará então para justificar seu próprio compromisso moral? Por mais que mostre boa vontade, suas realizações sempre serão limitadas e

2. Crítica dei juicio, de I. Kant, apêndice da 2 ~ parte, § 87, trad. esp. de M. García Morente, col. Austral, Madri. [Traduzido a partir do texto citado pelo autor.]

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nunca evitarão totalmente que o engano, a violência e a inveja con­tinuem agindo livremente entre os homens. Tanto ele como os de­mais homens justos que houver - por mais dignos que sejam de ob­ter a felicidade - serão tratados pela imparcial natureza do mesmo modo que os maus e estarão submetidos "a todos os males da mi­séria, das doenças, de uma morte prematura, exatamente como os outros animais da Terra, e continuarão a estar até que a terra pro­funda abrigue a todos (retos ou não, dá no mesmo) e os volte a afundar, a eles que podiam crer ser o fim final da criação, no abis­mo do caos informe da matéria de onde foram tirados". Ao consta­tar esse panorama tão pouco alentador, a única defesa - segundo Kant - que resta à pessoa decente para salvaguardar sua retidão e não a considerar um empenho estéril é aceitar a existência de um Deus que seja o criador moral do mundo, garantindo assim um "sentido" ultramundano feliz para a boa vontade, tão tristemente re­tribuída aqui embaixo.

Não serei eu, é claro, quem tomará levianamente o que pensou sobre essa questão uma inteligência tão lúcida e um espírito tão res­peitável como Kant. Só me atrevo a indicar a possibilidade de uma linha de reflexão alternativa, que também conta com adeptos . ilus­tres (creio que majoritários na filosofia posterior a Kant). Com efeito, não é por se comportar eticamente e lutar para que haja mais solidariedade e justiça no mundo humano que nenhum homem ou nenhuma mulher consegue escapar ao destino comum que nos re­serva nossa condição de mortais. Nenhum esforço, tampouco, por mais reto que seja, isentará definitivamente nossa convivência de engano e violência, possibilidades sempre abertas à liberdade de cada um e, muitas vezes, favorecidas por estruturas socioeconômi­cas aberrantes. Mas isso implica necessariamente que o projeto mo­ral seja um sem-sentido supérfluo, a não ser que alguma sanção so­brenatural o referende contra a própria morte? O homem reto (e sensato!) quer viver melhor, não escapar à sua condição de mortal: tenta fazer o que é bom não só apesar de ter consciência de que sempre existirá o que é mau, mas justamente por isso, para defen­der contra o irremediável a fragilidade preciosa do que considera preferível. Não se conduz eticamente a fim de conseguir algum prê­mio ou retribuição, mas chama de "ética" a maneira de agir que o

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recompensa em sua própria atividade, fazendo com que ele se sai­ba mais razoavelmente humano e livre. Em suma, ele não vive para a morte ou a eternidade, mas para alcançar a plenitude da vida na brevidade do tempo. Pelo menos creio que Spinoza teria respondi­do algo assim a Kant.

Vamos dizê-lo de outro modo. O homem se sabe mortal e é esse destino que o desperta para a tarefa de pensar. Sua primeira reação diante da certeza da morte (caso opte por não a negar e re­nuncie a se refugiar na ilusão de algum tipo de existência no além) é de angustiado desespero, pelas razões bem expostas anteriormen­te por Kant. Que conduta o desespero irá lhe ditar? Sem dúvida, medo diante de tudo o que ameaça acelerar seu fim (privações, hos­tilidade, doença, etc.), junto com avidez por acumular tudo o que parece lhe oferecer resguardo da morte (riqueza, segurança, proe­minência social, fama, etc.) e ódio contra aqueles que disputam es­ses bens com ele ou parecem obrigá-lo a compartilhá-los: quem teme o nada, tem necessidade de tudo. O medo, a avidez e o ódio são as características de viver no desespero: naturalmente, também não conseguem salvar ninguém de seu destino fatal, mas, em con­trapartida, dão um jeito de introduzir o mal-estar da morte em cada momento da vida, inclusive em seus maiores prazeres.

Quando consegue sobrepor-se ao desespero, o ser humano constata que tão certo quanto o fato de que vai morrer é o de que agora está vivo. Se a morte consiste em não ser nem estar de ne­nhum modo em nenhum lugar, todos já derrotamos a morte uma vez, a decisiva. Como? Nascendo. Não haverá morte eterna para nós, uma vez que já estamos vivos, ainda vivos. E a certeza glorio­sa de nossa vida não poderá ser apagada nem obscurecida pela cer­teza da morte. De modo que temos direito a perguntar, como no li­vro sagrado: "Morte, onde está tua vitória?" A morte poderá um dia impedir que continuemos vivendo, nunca que agora estejamos vi­vos nem que já tenhamos vivido. Pode transformar em cinzas nos­so corpo, nossos amores e nossas obras, mas não a presença real de nossa vida. Por que deveria a morte futura diminuir a importância da vida, uma vez que a vida presente já se impôs à obscura morte eterna? Por que para nós deveria contar mais a morte em que não somos do que a vida que somos? Cada um pode repetir, com o poe-

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/,

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ta Lautréamont: "Não conheço outra graça que não a de ter nasci­do. Um espírito imparcial a acha completa."

Quando constata sua presença na vida, o ser humano se exal­ta. E essa constatação exaltada é o que podemos chamar alegria. A alegria afirma e assume a vida em face da morte, diante do deses­pero. A alegria não celebra os conteúdos concretos da vida, com freqüência atrozes, mas a própria vida, porque não é a morte, por­que não é "não" mas "sim'', porque é tudo em face de nada. Mas a alegria não é puro êxtase e, sim, atividade e ainda mais: luta contra o mal-estar desesperado da morte que nos infecta de medo, de avi­dez e de ódio. Nunca a alegria poderá triunfar completamente so­bre o desespero (dentro de cada um de nós coexistem o desespero e a alegria), mas também não se renderá a ele. A partir da alegria tentamos "aliviar" a vida do peso opressor e nefasto da morte. O desespero só conhece o nada que ameaça cada um, ao passo que a alegria busca apoio e estende sua simpatia ativa a nossos semelhan­tes, os mortais vivos. A sociedade é o laço formado por milhares de cumplicidades que une os que sabem que vão morrer para afirmar juntos a presença da vida.

Se a morte é esquecimento, a sociedade será comemoração; se a morte é igualação definitiva, a sociedade estabelecerá as diferen­ças; se a morte é silêncio e ausência de significado, o eixo da so­ciedade será a linguagem que transforma tudo em significativo; se a morte é debilidade completa, a sociedade buscará a força e a ener­gia; se a morte é insensibilidade, a sociedade inventará e potencia­rá todas as sensações, o esbanjamento "sensacional"; como a mor­te é o isolamento final, a sociedade instituirá a companhia do afeto e a ajuda mútua na desventura; se a morte é imobilidade, a socieda­de humana premiará as viagens e a velocidade que nada consegue deter; se a morte é repetição do mesmo, a sociedade tentará o novo e amará como algo sempre novo os velhos gestos da vida, os novos seres como nós, a progênie indomável dos mortais; contra a putre­fação informe cultivará a beleza, o jogo em que se pode morrer e ressuscitar várias vezes, as metamorfoses do significado. Cada so­ciedade é uma prótese de imortalidade para mortais, os que conhe­cem a morte mas desacatam suas lições desesperadamente aniqui­ladoras. Certo, todas as empreitadas sociais dos humanos também

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são marcadas pelo medo, pela avidez e pelo ódio do desespero. No entanto não é o desespero que cria, mas a alegria. Lembrar isso constitui a única lição da ética. Por isso Spinoza chamou o homem reto de "alegre". E sábio.

Em si mesmo, o mundo em que nós, humanos, nos movemos carece de qualquer sentido ou significado próprio. A prova? Que re­siste a todos, por mais diversos que sejam. Como observou Casto­riadis, "só pelo fato de não existir um significado intrínseco ao mun­do, os homens precisaram e souberam atribuir-lhe essa variedade extraordinária de significados extremamente heterogêneos" 3

• O sen­tido é algo que nós, humanos, damos à vida e ao mundo, em face do abismo insignificante do caos ao qual vencemos brotando e ao qual nos submetemos morrendo. Vitória significativa e derrota insignifi­cante porque morre o indivíduo mas não o sentido que quis dar à sua vida ... esse fica para nós, seus companheiros de humanidade. Mas o abismo caótico também está oculto em todos os nossos significados, como seu avesso, como sua densidade. Vivemos sobre o abismo e conscientes dele. Por isso a razão humana não é uma simples fábri­ca de instrumentos nem se contenta com encontrar soluções a per­guntas ainda não definitivas. E por isso também a filosofia não é só razão mas imaginação criadora: "Foi a mediação do imaginário, do inverificável (o poético), foram as possibilidades da ficção (menti­ra) e os saltos sintáticos para amanhãs sem fim que transformaram homens e mulheres, mulheres e homens, em charlatães, em murmu­radores, em poetas, em metafisicos, em planejadores, em profetas e em rebeldes em face da morte" (George Steiner, em Errata) .

A religião promete salvar a alma e ressuscitar o corpo; em con­trapartida a filosofia nem salva nem ressuscita mas apenas preten­de levar até onde possível a aventura do sentido do humano, a ex­ploração dos significados. Nem rechaça a realidade da morte -como o mito - nem se deixa impregnar desesperadamente pelo medo e pelo ódio que brotam dela: tenta pensar os conteúdos da vida e seus limites ... como se a própria vida nos fosse nisso! E o faz com tal denodo que às vezes provoca zombaria ou sorriso.

3. Las creaziones dei tempo, de C. Castoriadis, Volontà , 1195, Milão.

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Esbocei o índice deste livro há um par de anos, durante um vôo entre Bogotá e Lima com escala em Quito, no qual já não me res­tavam revistas para ler. O resultado definitivo acabou sendo sur­preendentemente fiel ao esquema inicial. Comecei a escrever em maio deste ano e levei a cabo a maior parte da obra durante o ve­rão, em San Sebastián. Todos os dias, de manhã cedo, enquanto passeava por La Concha, a caminho de Peine de los Vientos*, eu planejava a parte que deveria desenvolver à tarde. Certo dia, um tu­rista me abordou e me perguntou onde ficava o "Peine del Tiem­po" * *; enquanto eu desfazia seu engano e lhe indicava o caminho, pensei que aquele pente é o que deixa todos nós calvos ... Terminei os três últimos capítulos durante o outono, em Madri, onde coloco ponto final hoje, 10 de dezembro de 1998 e 50? aniversário da De­claração dos Direitos do Homem. Oxalá o leitor possa sentir, em al­guns momentos, o mesmo prazer com que foram escritas muitas destas páginas.

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*Tradução literal, "Pente dos Ventos". **Tradução literal, "Pente do Tempo" .

Despedida

E não deixamos de nos perguntar, uma vez e mais outra, até que um punhado de terra nos cale a boca ... Mas será isso uma resposta?

HEINRICH REINE, "Lázaro"*

*Tradução livre do texto citado pelo autor.

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