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1º Encontro Nacional da ABRI Segurança Internacional Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi Fabrício Martins Resumo: O presente artigo investiga a visão de segurança internacional no romance Guerra e Paz de Tolstoi. Para tanto, analisamos os comentários do autor acerca da Campanha de 1812 de Napoleão e seus precedentes políticos. O autor se mostrou um exímio conhecedor da história da Europa e da Rússia. Vários são os pesquisadores que recorrem a seus escritos devido à veracidade de seus relatos. De fato, Guerra e Paz mescla personagens fictícios com reais para narrar um dos mais importantes acontecimentos do século dezessete. Paralelo a descrições apuradas, no romance, dos fatos que mudariam o rumo da humanidade, Tolstoi propicia perspicazes análises da política internacional e filosofia política do período e também de estudos estratégicos. Esse artigo almeja iniciar um debate, que preencha um pouco o espaço entre a literatura e as relações internacionais. Em um primeiro momento, apresentaremos uma curta apresentação do autor e de sua conturbada vida. A evolução da vida de Tolstoi torna- se importante para compreendermos melhor o caminho do seu desenvolvimento intelectual e as bases para sua filosofia. Em seguida, apontaremos a perspicácia da visão de Tolstoi do cenário político da época. Esse apresenta um apurado conhecimento do equilíbrio de poder europeu e o papel da Rússia nesse panorama. Além de mostrar os reflexos da guerra na sociedade e política russa. Por último, traçaremos um paralelo do pensamento de Tolstoi com alguns pontos e conceitos utilizados pelos estudos estratégicos, representados por Clausewitz. O autor acredita que a guerra está intrinsecamente marcada pelo fator da

Segurança Internacional Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi ...€¦ · Tolstoi era um mestre na representação romanceada da vida militar e civil. Sua obra descreve, com ricos detalhes,

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1º Encontro Nacional da ABRI Segurança Internacional

Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi Fabrício Martins

Resumo:

O presente artigo investiga a visão de segurança internacional no romance Guerra e

Paz de Tolstoi. Para tanto, analisamos os comentários do autor acerca da Campanha de

1812 de Napoleão e seus precedentes políticos.

O autor se mostrou um exímio conhecedor da história da Europa e da Rússia. Vários

são os pesquisadores que recorrem a seus escritos devido à veracidade de seus relatos. De

fato, Guerra e Paz mescla personagens fictícios com reais para narrar um dos mais

importantes acontecimentos do século dezessete. Paralelo a descrições apuradas, no

romance, dos fatos que mudariam o rumo da humanidade, Tolstoi propicia perspicazes

análises da política internacional e filosofia política do período e também de estudos

estratégicos.

Esse artigo almeja iniciar um debate, que preencha um pouco o espaço entre a

literatura e as relações internacionais. Em um primeiro momento, apresentaremos uma

curta apresentação do autor e de sua conturbada vida. A evolução da vida de Tolstoi torna-

se importante para compreendermos melhor o caminho do seu desenvolvimento intelectual

e as bases para sua filosofia. Em seguida, apontaremos a perspicácia da visão de Tolstoi do

cenário político da época. Esse apresenta um apurado conhecimento do equilíbrio de poder

europeu e o papel da Rússia nesse panorama. Além de mostrar os reflexos da guerra na

sociedade e política russa. Por último, traçaremos um paralelo do pensamento de Tolstoi

com alguns pontos e conceitos utilizados pelos estudos estratégicos, representados por

Clausewitz. O autor acredita que a guerra está intrinsecamente marcada pelo fator da

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imprevisibilidade e dificuldade de obtenção de informações confiáveis. Dessa forma, a

moral dos beligerantes ocuparia um papel central no combate.

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Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi Fabrício Martins

Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi*

Fabrício Martins**

Introdução

Ítalo Calvino disse, entre várias coisas primorosas, que um clássico é um livro que

nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Guerra e Paz de Tolstoi nitidamente se

enquadra nesse conceito. O romance é um dos mais famosos de Tolstoi e é considerado

uma das maiores obras da literatura mundial, sendo para alguns o maior jamais escrito.

Tolstoi era um mestre na representação romanceada da vida militar e civil. Sua obra

descreve, com ricos detalhes, tanto as aspirações sociais e religiosas da alta sociedade russa,

seus saraus, bailes, jantares e costumes, além da vida de senhores e camponeses. Também

demonstra como era o cotidiano dos soldados, suas longas marchas, seus exaustivos

momentos de espera que antecedem o combate e a própria explosão da violência na sua

forma mais intensa. Ele mostrou um profundo talento para representar através da literatura:

a guerra e a paz.

A literatura possui um importante papel na sociedade moderna. Supostamente, de

acordo com Eco (2003), ela não produziria fins práticos (como manter registros, anotar leis

* Esse artigo é o resultado das pesquisas conduzidas durante o segundo semestre do ano de 2005, no âmbito das atividades desenvolvidas pelo programa de Programa de Pós Graduação Santiago Dantas. Gostaria de agradecer a profa. Suzeley Kalil Mathias pelas leituras das versões preliminares e pelas sugestões criticas, ao prof. Hector Saint Pierre e ao Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq. ** Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação Santiago Dantas – PUC-SP, UNESP, UNICAMP.

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e formulas cientificas, fazer atas de sessões ou providenciar horários ferroviários), mas

seria exercida por amor a si mesma e ao seu leitor(a) – trazendo deleite, elevação espiritual,

ampliação dos próprios conhecimentos ou mesmo um puro passatempo. Além disso, ela

“mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo1”. Como

conseqüência, ela ajuda a lapidar a própria identidade nacional. Por exemplo, podemos

considerar a importância da tradução da bíblia para o alemão por Lutero, ou a unificação da

língua italiana fortalecida por Dante.

O trabalho de Tolstoi facilmente se harmoniza com esses preceitos. Nos últimos dias

de sua vida ele já recebia o reconhecimento do mundo inteiro, possuindo uma legião de fãs

e seguidores, inclusive ilustres figuras brasileiras como Monteiro Lobato2. Mas não

somente no talento de romancear reside o valor de Tolstoi.

O autor se mostrou um exímio conhecedor da história da Europa e da Rússia. Vários

são os pesquisadores que recorrem a seus escritos devido à veracidade de seus relatos. De

fato, Guerra e Paz mescla personagens fictícios com reais para narrar um dos mais

importantes acontecimentos do século dezessete: as guerras napoleônicas. Paralelo a

descrições apuradas, no romance, dos fatos que mudariam o rumo da humanidade, Tolstoi

propicia perspicazes análises da política internacional e filosofia política do período e

1 ECO, Umberto, Sobre a literatura. Rio de janeiro, Record, 2003. p 11

2 “O Ana Karenina, que li agora, ponho-o junto de Guerra e paz, Lírio no Vale de Balzac e le rouge et

le noir (O vermelho e o negro) de Stendhal. Como é grande Tolstoi! Como é grande a Rússia!” disse Lobato.

Para saber mais: GOMIDE, Bruno Barreto. Três gênios e um painel do século XIX. Entre Livros , ano 1 no 4.

ed. Ediouro. 2005

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também de estudos estratégicos – que estava para testemunhar um crescimento intelectual e

acadêmico com os trabalhos de Clausewitz e Jonini, entre outros.

Por que então, apesar de toda essa sagacidade de conhecimento do campo das ciências

sociais aplicadas, a literatura tolstoiana (e nas demais) recebe tão pouca atenção pelos

pesquisadores da área? O “espaço vazio” entre a literatura e a pesquisa em ciências sociais,

e em especial das relações internacionais, é colossal. Infelizmente, existem ainda aqueles

que chegam a abandonar quase que inteiramente a literatura devido ao comprometimento

com suas pesquisas cientificas. Para Gillie (1978):

“embora fosse um titã da literatura, Tolstoi não possuía a habilidade para a persuasão

política que, como Platão, não devia ter cultivado. O resultado foi que a riqueza das

verdades entrevistas sob a superfície vibrante de Guerra e Paz e as meias verdades

contidas no dogma de seus ensaios pela paz foram praticamente ignorados pelos

estudiosos das relações internacionais”.

Esse artigo almeja iniciar um debate, que preencha um pouco esse espaço entre a

literatura e as relações internacionais. Em um primeiro momento, apresentaremos uma

curta apresentação do autor e de sua conturbada vida. A evolução da vida de Tolstoi torna-

se importante para compreendermos melhor o caminho do seu desenvolvimento intelectual

e as bases para sua filosofia.

Em seguida, apontaremos a perspicácia da visão de Tolstoi do cenário político da

época. Esse apresenta um apurado conhecimento do equilíbrio de poder europeu e o papel

da Rússia nesse panorama. Além de mostrar os reflexos da guerra na sociedade e política

russa.

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Por último, traçaremos um paralelo do pensamento de Tolstoi com alguns pontos e

conceitos utilizados pelos estudos estratégicos, representados por Clausewitz. O autor

acredita que a guerra está intrinsecamente marcada pelo fator da imprevisibilidade e

dificuldade de obtenção de informações confiáveis. Dessa forma, a moral dos beligerantes

ocuparia um papel central no combate. Ele também critica os historiadores, que centralizam

Finalmente, fica um objetivo paralelo. O de incentivar a leitura dessa admirável obra

prima da literatura. E aqui recorro a ítalo Calvino novamente. “Dizem-se clássicos aqueles

livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma

riqueza não menor para quem se reserva à sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores

condições para apreciá-los3”.

A Vida de Tolstoi

Leon Nicolaievictch Tolstoi4 (1828 – 1910), nasceu em Iásnaia Poliana, propriedade

campestre de sua família. Ele foi portador de um sobrenome tradicional da nobreza Rússia

e herdeiro de uma considerável fortuna de seus pais. Órfão desde muito cedo, perdeu a mãe

ainda antes de completar dois anos e o pai aos nove, foi criado por duas tias idosas. Teve

uma educação francesa que fez com que ele entrasse em contato com a cultura russa

tardiamente. Em 1847, deixou a universidade de Kazan sem concluir o curso de línguas

3 CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo. Companhia das letras, 2000.

4 Em russo; Liev Nikoláievitch Tolstói

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orientais retornando para a fazenda de Iásnaias Poliana, onde passaria a maior parte de sua

vida.

Desgostoso com a vida acadêmica, Tolstoi se alista como junker (gentil homem

voluntário) no corpo de artilharia, onde participaria na guerra da Criméia5 em 1853,

testemunhando o sangrento cerco de Sebastópol6 (1854 – 1855). Foi justamente nesse

período no exército que Tolstoi publicou seus primeiros trabalhos mais importantes, como

as duas primeiras partes de uma trilogia autobiográfica (infância, adolescência e juventude).

Alem disso, durante seu serviço militar na Criméia, Tolstoi se tornou, o que alguns

consideram, “o primeiro correspondente de guerra da história7”, trabalhando para uma

prestigiada revista literária moscovita: o Contemporâneo.

Em 1857 demite-se do exercito e volta para Iásnaia Poliana para dedicar-se na tarefa

de educar os filhos dos seus servos e assumir a função de arbitro da paz de pequenos

conflitos da região. Em 1862, casa-se com Sofia Andrêievna Bers que postergou uma crise

moral. Esse período onde produziu suas maiores obras-primas; Os cossacos (1863), Guerra

5 Desde o fim do século XVIII os russos tentavam aumentar a sua influência nos Bálcãs, região entre o

mar Negro e o mar Mediterrâneo. Em 1853, o Czar Nicolau I invocou o direito de proteger os lugares santos

dos cristãos em Jerusalém, então parte do Império Turco. Sob esse pretexto as suas tropas invadiram os

principados otomanos do Danúbio (na atual Romênia). O sultão da Turquia, contando com o apoio do Reino

Unido e da França, rejeitou as pretensões do Czar, declarando guerra à Rússia.

6 O cerco de Sebastopol, sede da frota russa no mar Negro, dura 340 dias de intensos combates.

Sebastopol cai a oito de Setembro de 1855. Durante o cerco uma grande parte das tropas britânicas e francesas

morreram nos hospitais por enfermidades ou ferimentos de guerra. Fonte;

http://antesdetempo.blogspot.com/2004_08_01_antesdetempo_archive.html

7 Leão Tolstoi/ versão portuguesa de João Maia. Coleção gigantes da literatura universal. Editoria

Verbo, 1972.

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e Paz (1869) e Ana Kariênina (1877). Sonia propiciou uma estabilidade na vida de Tolstoi

que possibilitou a produção dessas obras, além de ser a responsável por copiar os trabalhos

e passar a limpo os rascunhos do marido.

Tolstoi entrou em uma profunda crise existencial pouco antes de completar 50 anos.

Deprimido e com tendências suicidas passou a dedicar-se a estudos filosóficos e criou uma

espécie de seita doutrinaria: o tolstoismo8. Essa defendia uma resistência pacifista e não

violenta além de conter forte caráter social. “Para Tolstoi, todas as formas de violência são

igualmente más. Não só a guerra, mas todas as formas de compulsão inerentes ao estado

são criminosas. O verdadeiro cristão deve abster-se de participar nas funções do estado9”.

Somente nos últimos quinze ou vinte anos de sua vida, Tolstoi teve seu trabalho

devidamente reconhecido. A Europa, na década de 1880, “descobriu” o romance russo

através das primeiras tiragens significativas de edições traduzidas, principalmente as

francesas. Paralelamente, o tolstoismo agregava cada vez mais simpatizantes, que viajavam

de várias partes do mundo para Iásnaia Poliana. Os socialistas o consideravam um modelo

contra a luta ao poder do czar.

Entretanto, se o reconhecimento mundial era cada vez mais evidente, suas relações

com a família deterioravam. Seus familiares abominavam suas idéias de abstinência

material e mal se relacionavam com ele, com exceção de sua filha caçula. Cada vez mais

8 Um conjunto racional de preceitos éticos baseados em textos centrais da filosofia moral e de religião,

notadamente o evangelho cristão. GOMIDE, Bruno Barreto. Três gênios e um painel do século XIX. Entre

Livros, ano 1 no 4. ed. Ediouro. 2005

9 ROLLAND, Romain, Vie de Tolstoi apud TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg.

5ed. São Paulo: Ediouro, 2002.

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distante da condessa, Tolstoi, decide fugir da família e da vida abastada que levavam para

buscar refugio no mosteiro de Optina, onde sua irmã era freira. O autor adoece na estação

de trem de Astapovo, em Riazan, onde morreu no dia sete de novembro de 1910.

Guerra e Paz e a Segurança Internacional

Guerra e Paz foi publicado pela primeira vez em 1865 e levou sete anos para ser

concluído. A obra percorre os anos de 1805 a 1820 e acompanha, essencialmente sob a

visão dos russos, fenômenos crucial para a história da Europa e mundial: a campanha de

Napoleão na Áustria e a invasão da Rússia. O autor pesquisou obras sobre o episódio e

colheu testemunhos de muitos sobreviventes da guerra, muitos dos quais seus próprios

familiares. Esse extenuante trabalho proporcionou uma obra prima da representação

literária da vida civil e militar da época e da política internacional.

A Europa acabara de presenciar a revolução francesa, que fora influenciada pelos

ideais iluministas e pela independência dos Estados Unidos o que afetaria em breve todas as

nações. Ela significou o fim do sistema absolutista e dos privilégios da nobreza. O povo

ganhou mais autonomia e respeito sobre seus direitos sociais, além da efetiva melhora da

vida rupestre e urbana. Com o golpe de 18 de Brumário10, em nove de dezembro de 1799,

Napoleão Bonaparte assumia o poder na França, o qual manteria por quinze anos.

10 18 de Brumário é a (data que corresponde ao calendário estabelecido pela Revolução Francesa e

equivale a 9 de novembro do calendário gregoriano.

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Durante esse período, Napoleão conquistou grande parte do continente europeu e

reformulou o sistema militar. “Motivados inicialmente pelo desejo de levar as liberdades

revolucionárias aos súditos dos reinos vizinhos, os franceses acabaram se comprometendo

com um programa militar permanente de engrandecimento nacional11”. Apesar dos ideais

antimilitaristas, racionais e legalistas da revolução, a França temia uma intervenção dos

demais paises europeus ainda comprometidos com o absolutismo. Assim, “em 1812,

Napoleão tinha mais de um milhão de homens em armas, distribuídos na Espanha à Rússia,

e comandava uma economia e uma administração imperial cujo único objetivo era manter

seus exércitos em campo12”. Temendo essa expansão territorial e militar, a Inglaterra

começou a articular alianças políticas para barrar uma hegemonia francesa, que mudaria

decisivamente as relações de poder na Europa.

Nesse conturbado cenário, Tolstoi desenvolve a narrativa de Guerra e Paz

demonstrando um profundo conhecimento histórico, filosófico, político e de estudos

estratégicos.

Logo no inicio do livro, o temor do crescimento do poder de Napoleão frente às

potencias européias é refletido nos personagens que abrem o romance. Em um sarau da alta

sociedade russa, os assuntos em pauta dizem respeito às novidades políticas da Europa e da

guerra. Ana Pavlovna afirma decididamente que “só a Rússia pode salvar a Europa13”. A

11 KEGAN, John. Uma história da guerra: trad. Pedro Maia Soares. São Paulo. Companhia das letras,

1995. p 359

12 idem.

13 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002. p 30.

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aliança contra a França pouco significa efetivamente contra o poderio militar de Napoleão,

pois de acordo com Tolstoi: a Áustria não quer a guerra; a Prússia declarou Bonaparte

invencível; e não se pode contar com a Inglaterra e seu espírito mercantil. Logo em

seguida, o autor aprofunda o debate dos nobres sobre a balança de poder européia através

de um dos personagens principais do livro: Pedro Bezukhov. Pedro, que assim como o

autor teve uma educação francesa com claras tendências iluministas, discursa com os

presentes, desajeitado e passionalmente como quem abraçou idéias a pouco tempo, que a

paz universal é possível não sendo simplesmente um equilíbrio político (esse juízo pode ser

compreendido como semente do pacifismo anti-militarista que o autor assumiria com idade

mais avançada)14. Já para seu interlocutor, o abade Moria, mais maduro sobre suas idéias, o

equilíbrio da balança de poder só seria mantido pela força, pois seria “ necessário que um

país poderoso como a Rússia, tido como bárbaro, encabece desinteressadamente uma união

com a finalidade de manter o equilíbrio europeu que salvará o mundo”. Com base nessa

linha de pensamento, parece-nos que Tolstoi era familiarizado com o conceito de balança

de poder.

Durante séculos a Balança de Poder providenciou um padrão de comportamento nas

Relações Internacionais. Dentro de sua lógica, o crescimento do poder de um país vizinho

justifica um ataque preventivo a qualquer ação hostil do mesmo. Dessa forma, almeja-se

diminuir os riscos, custos e escalas de uma eventual guerra no futuro. A balança era vista

como um instrumento capaz de manter a ordem e paz no cenário internacional através da

14 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002. cap III e V,

parte um.

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manutenção do equilíbrio de poder. Entretanto para Burke (2000), “a balança de poder, o

orgulho da política moderna... inventada para preservar a paz geral assim como a liberdade

da Europa, somente preservou sua liberdade. Ela tem sido a origem de inúmeras e

infrutíferas guerras15”.

Essa apreciação foi reforçada pela doutrina da Raison d´Etat, vigente na época. Nela,

a guerra se apresentava como um direito soberano do Estado. O cenário internacional era

visto como um anárquico palco de constantes conflitos bélicos julgados necessários. Entre

o século XIX e XX a Raison d´Etat atingiu seu ápice com o preceito do Estado-Potência16.

Os objetivos da política externa dos países eram responsáveis pela deflagração de diversos

conflitos baseados em interesses egoístas violando todos princípios e normas morais e

jurídicas. O aumento do poder de Napoleão era, então, um risco. Tolstoi demonstra através

do manifesto de declaração de guerra que o imperador Alexandre não poderia ignorar o

perigo que ameaçava a Rússia, a segurança do império e das suas alianças: “e é o desejo

que constitui a única finalidade do Imperador, que é estabelecer a paz na Europa sobre

bases sólidas, levou-o a fazer passar uma parte do exercito para o estrangeiro e a enviar

novos esforços para chegar ao fim colimado17”. Com essa declaração, a Rússia envia suas

forças armadas para combater os franceses na Áustria em 1805. Por outro lado, Napoleão

15 BURKE, Edmund. 1760 citado em WALZER, Michael. Just and Unjust War: a moral argument

with historical illustrations. New York, Basic Books, 2000. p.76

16 Os Estados almejavam buscar a consolidação da própria potencia, em detrimento aos demais. O

direito de declarar guerra fazia parte da própria constituição do poder soberano e se imperativo, para o alcance

dos objetivos políticos particulares, era engajada. A guerra era legitima porque era necessária.

17 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002. p 89.

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também desejava o combate, pois “necessitava liquidar o único poder continental que para

ele ainda constituía uma ameaça, antes de enfrentar em instancia final, a Inglaterra18”.

Entretanto, no dia 27 de junho de 1807, Napoleão e Alexandre assinam um tratado de paz

dividindo a Europa oriental entre os dois impérios. Essa aliança chegou, inclusive, a colocar

a Rússia contra seu antigo aliado, a Áustria, quando a França declarou guerra novamente a

esse em 1809. A paz entre os dois impérios duraria até a invasão francesa ao território russo

na campanha de 1812.

É curioso notar os reflexos dos conflitos bélicos na sociedade russa descrita por

Tolstoi. O país era no inicio do século XIX extremamente francófilo. A sociedade russa, em

todas as suas instâncias era influenciada culturalmente e politicamente por Paris. As roupas,

o teatro, a música e até mesmo a língua francesa era preferida à russa nos salões da

nobreza. Tal proximidade psíquica tornava difícil até mesmo imaginar um grande conflito

entre os impérios. Em idos da oitava parte do romance, o patriótico conde Rostoptchine

declara ao príncipe Nicolau Andreievitch Bolkonski:

“Oh! Príncipe, de que forma poderíamos guerrear com os franceses? – disse o conde

Rostoptchine. – Você acha que seria possível nos armarmos? Veja: nossa mocidade,

nossas damas, nossos deuses são franceses; nosso reino celeste: Paris – e levantou a voz

para q todos ouvissem. – Indumentárias francesas, pensamentos franceses, sentimentos

franceses. Eis que o senhor escorraçou Métivier por se tratar de um francês e de um

covarde, e nossas damas de joelhos atrás dele. Ontem eu estava num sarau, quando cinco

damas apareceram: três são católicas e bordam aos domingos com a permissão do papa e,

apesar disso, estavam quase nuas como as figuras de propaganda dos banhos públicos,

18 NICOLSON, Nigel. Napoleão 1812. trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro. Nova

Fronteira, 1987, p 19.

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salvo o respeito q devo a Vossa Excelência. É verdade, príncipe, quando vejo nossa

mocidade tenho ímpetos de arrancar do meu museu o velho bastão de Pedro o grande e

quebrar-lhe as costelas, à moda russa, o que faria desaparecer todas essas tolices19”.

Entretanto, com o avançar da campanha de Napoleão em território nacional, os russos

passam a desprezar gradativamente as particularidades francesas. De inicio, essa

depreciação cultural aparece como joguetes dos salões em bailes e festas, como multas

simbólicas para os nobres que conversassem em francês. Logo a língua natal volta a ser

admirada. Em seguida, surge o boicote ao teatro francês, até culminar com a expulsão de

todos os franceses de Moscou justificado pelo temor de espiões20. A ojeriza a Napoleão

chega a tal ponto, que em vários momentos do romance ele recebe títulos de “inimigo do

gênero humano”. A esse ponto da história, o exercito de Napoleão já se aproximava de

Moscou e, tendo sobrepujado o exercito russo, ameaçava a uma das capitais do país. Cabe

então, algumas observações a respeito das considerações de Tolstoi quanto à guerra em si.

Tolstoi e os Estudos Estratégicos

Por ter participado da guerra da Criméia e já produzido textos a respeito de conflitos

bélicos anteriormente, Tolstoi demonstra possuir um acurado e profundo conhecimento da

gramática da guerra. Todavia, é nítido em sua obra que ele se mostrava receoso quanto a

aceitação de uma teoria universal e infalível da guerra. Tolstoi acreditava que:

19 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002. p 613.

20 Idem. cap VI e XVII, Décima parte.

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“A compreensão verdadeiramente científica de um conflito militar em larga escala

exigiria uma transformação radical da opinião comum sobre sua terminologia, interesse,

pressupostos e perspectivas. Ao invés de encarar a guerra como uma forma planificada e

racionalmente dirigida, deveríamos pensar nela como um aspecto dos movimentos não

planejados, das convergências e conflitos das sociedades humanas operando de acordo

com as então desconhecidas leis da ‘dinâmica social21”.

Essa postura revela-se perante a descrição dos oficiais dos exércitos russos,

essencialmente em Kutuzov – comandante geral das forças armadas russas – e em André

Bonkonski. Ambos acreditam que a guerra segue seu próprio curso e que durante a batalha

seria impossível prever e planejar todos os fatores que interferem em um conflito ou definir

um único fator chave determinante da vitória ou derrota. “Tolstoi ridiculariza... ‘teóricos

persuadidos da existência de uma ciência da guerra, a qual repousa sobre leis imutáveis, tais

como o movimento oblíquo e o envolvimento do inimigo22’”. Nesse ponto é interessante

notar como o pensamento de Tolstoi se aproxima do de Clausewitz.

Ambos os autores acreditam que devido à improbabilidade de previsão do decorrer da

batalha, nenhum comandante por mais experiente, poderia se ater cegamente a

planejamentos prévios, tendo que se adaptar constantemente frente aos acontecimentos. “É

a inteligência do chefe que abrange o conjunto das situações e é a vontade que decide

21 GALLIE, W.B. Os Filósofos da Paz e da Guerra. Trad. Silvia Rangel. Rio de janeiro, ed. Artenova.

1979 p 107.

22 ARON, Raymond. Pensar a Guerra: Clausewitz. Trad. Elisabeth Maria Speller Trajano. Brasília. Ed.

Universidade de Brasília. 1986. Vol. 1, p 354, sobre o conselho de guerra russo descrito no capitulo IX da

nona parte de Guerra e Paz.

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dentro da incerteza e do risco23”. Alem disso, ambos se dedicam a mostrar que a moral dos

beligerantes pode pesar decisivamente em uma batalha. O alcance que a coragem e o

talento terão no campo das probabilidades e do acaso depende do caráter particular do

comandante e do de sua força. O acaso diz respeito aos acontecimentos improváveis e

incertos que podem ocorrer e prejudicar as ações militares.

Em Clausewitz, podemos resumir essas idéias através do conceito de trindade

esquisita24.

“A guerra é um verdadeiro camaleão, que adapta suas características ligeiramente a cada

caso particular. Enquanto fenômeno integral, suas tendências dominantes sempre fazem

da guerra uma trindade esquisita – composta de violência primordial, ódio e inimizade,

que podem ser tratadas como uma força natural, cega; do jogo do acaso e de

probabilidades, onde o espírito criativo pode enveredar livremente; e de seu elemento de

subordinação, de instrumento político, que a faz subordinada apenas à razão.

O primeiro destes três aspectos diz respeito principalmente ao povo; o segundo ao

comandante e à sua força; o terceiro ao governo. As paixões que devem ser inflamadas na

guerra já devem estar presentes no povo; o alcance que a coragem e o talento terão no

campo das probabilidades e do acaso depende do caráter particular do comandante e do

de sua força; mas os objetivos políticos são província exclusiva do governo.

23 ARON, Raymond. Pensar a Guerra: Clausewitz. Trad. Elisabeth Maria Speller Trajano. Brasília. Ed.

Universidade de Brasília. 1986. Vol. 1, p 355.

24 Utilizo aqui a mesma tradução de trindade esquisita utilizada por DINZ. Segue a nota explicativa

dos autores justificando a escolha em DINIZ e Proença – 2004: Parece suficiente reproduzir uma nota de

Diniz (2002), com relação a esta escolha de tradução: “O termo em alemão é wunderliche. A tradução de

Howard e Paret como “paradoxical” é injustificada. Outros autores têm simplesmente modificado a tradução,

mesmo quando citam a edição Howard e Paret. Villacres & Bassford (1995), por exemplo, utilizam o termo

“ remarkable”, que faria mais sentido. Em português, “esquisita” capta a estranheza que Clausewitz quis

salientar.” Diniz (2004): 77, nota a.

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Estas três tendências são como três diferentes fontes do direito, cada uma profundamente

enraizada em seu próprio tema, e ainda assim sensíveis em seu relacionamento recíproco.

Uma teoria que ignorasse qualquer uma delas, ou que ambicionasse fixar arbitrariamente

o seu relacionamento entraria em tal conflito com a realidade que apenas por este motivo

seria totalmente inútil25”.

É o entendimento da guerra como uma trindade esquisita que permite compreender

como os valores morais influenciam a ação dos seus atores. Apesar dos três pontos da

Trindade Esquisita possuírem maior ligação com grupos específicos – a paixão com o povo,

o acaso com o comandante e a força militar e a razão com o governo – eles estão

intrinsecamente ligados e fazem parte do processo de decisão em toda ação na guerra.

Tolstoi por sua fez parece fazer como sua a voz de André Bolkonski ao dizer que:

“Sua experiência militar dera-lhe a convicção de que os planos mais profundamente

refletidos nada significam na guerra (vira na batalha de Austerlitz), que tudo depende da

maneira de responder aos ataques inesperados, impossíveis de prever, que tudo depende

daquele que dirige a refrega e do modo como a dirige26”.

Essa linha de pensamento se mantêm constante por toda narrativa de Guerra e Paz.

Durante a descrição de diversas batalhas ou do testemunho dos personagens a respeito do

teatro da guerra, fica evidente a importância que o autor desloca para a moral, a incerteza

das informações e o acaso. Talvez a melhor amostra disso seja nos capítulos referentes à

batalha de Borodino.

25 CLAUSEWITZ, Carl von. 1984. On War. (translated and edited by Michael Howard and Peter

Paret). 2. ed. Princeton, Princeton University Press. p. 89

26 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002 p 703

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A batalha de Borodino, uma vila localizada próxima a estrada que leva a Moscou, foi

travada no dia sete de setembro de 181227, e é considerada por historiadores como a mais

violenta de toda a campanha napoleônica. Mais de duzentos mil soldados se envolveram na

batalha e teve aproximadamente um terço de casualidades, entre feridos e mortos, em

ambos os lados. Tolstoi enfatiza que o exercito russo seguia a estratégia do tempo e

paciência de Kutuzov – vale notar que este recebera o cargo de comandante chefe que

pertencia a Barclay, pois esse não possuía o fator moral necessário para defender o país já

que era um estrangeiro28. Kutuzov almejava alongar a linha de comunicações do exercito

francês e derrotar o oponente com pequenas e gradativas perdas, ocasionadas devido à

dificuldade de adquirir suprimentos, forragem para os cavalos, a fadiga dos soldados por

extensivas marchas em estradas em condições inadequadas e pelo desgaste moral. Quanto

mais o exercito russo recuava, mais fácil se tornava à reposição de tropas, o suprimento e

mais elevada era à vontade de combater dos soldados para defender suas terras e famílias.

Fenômeno contrario ocorria ao exercito francês. O recuo das forças armadas cessou em

Borodino, pois toda a corte, a nobreza e o exercito pressionavam para que o combate

acontecesse.

A força dos dois exércitos se equivalia, mas para Tolstoi a moral dos russos era

superior. Os russos estavam confiantes que essa seria a batalha definitiva para expulsar os

franceses de suas terras. Pedro Bezukov aparece então como uma testemunha ocular desse

27 Ou dia vinte e seis de agosto de acordo com o calendário russo de então.

28 “Enquanto a Rússia estava forte um estrangeiro podia servi-la, e ele (Barclay) em um hábil ministro

(da guerra), mas agora que ela está em perigo, precisa de um dos seus”. TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad.

Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002 p 854

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fenômeno ao assistir uma “animação uniforme e solidária29” dos soldados de artilharia. Já

do lado oposto, as primeiras dificuldades apareciam ao notar que os canhões da artilharia

francesa estavam longe demais dos alvos propostos. Tolstoi também aponta que o próprio

Napoleão não se encontrava em boas condições, já que estava resfriado e a doença poderia

ter afetado na elaboração dos seus planos de ataque. Para ele, “nos campos de Borodino os

russos não conquistaram a vitória que se caracteriza pelos pedaços de pano amarrados a

hastes de madeira que tem o nome de bandeiras, pela área pela qual as tropas se mantêm,

mas conquistaram uma vitória moral: aquela que convence o inimigo da superioridade

moral do adversário e de sua própria fraqueza”. De fato, o resultado da batalha pode

receber uma interpretação ambígua. Ambos os lados reivindicaram a vitória. Napoleão

dizia ter dizimado seu oponente. O exercito russo, apesar de ter sofrido pesadas baixas, não

cedeu o território decisivamente, e ao fim da batalha Kutuzov pretendia lançar um ataque

contra o oponente no dia seguinte para liquidá-lo30. Porem, a descoberta de que metade do

seu exercito fora devastado tornara a nova batalha materialmente impossível. Nicolson

(1987) defende que a vitória tática pertencia aos franceses, mas que a vitória estratégica

cabia aos russos, pois o resultado do combate inclinou a balança de poder em favor dos

russos.

Dessas considerações à cerca da guerra, Tolstoi desenvolve a critica do que Gallie

(1979) chama de “teoria dos grandes homens da história” aplicada na história militar. Para

o autor, não se deve afirmar que os responsáveis pelo resultado da batalha foram Kutuzov,

29 idem, cap. XXI decima parte.

30 idem, cap. XXXI e XXXVI décima parte.

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Alexandre ou Napoleão. A organização e movimentação coerente de vastos exércitos não

podem ser definidas pela vontade única e exclusivamente de “heróis”. Na descrição da

batalha de Borodino essa idéia, que seria mais trabalhada no epílogo do romance, fica clara.

Ambos comandantes tem sob suas responsabilidades a tarefa de dispor mais de 100.000

homens de acordo com os planos previamente definidos. Todavia, a própria logística da

comunicação com os batalhões não permite uma eficácia. Napoleão “postara-se, o dia

inteiro, à distância de um a meio quilometro da luta, observando-a com uma luneta e

enviando ordens que, ou eram fundadas em informações errôneas, ou chegavam demasiado

tarde para que pudessem ser executadas31”. Tolstoi descreve a quantidade de ajudantes de

ordens que recorriam ao imperador para pedir reforços, demandas e informações sobre os

demais batalhões, enquanto Napoleão simulava manter um controle da situação, mas que

“só dava ordens porque julgava que os outros as esperavam dele32”. Já Kutuzov se

beneficia pela descrição de Tolstoi sendo mostrado como um simpático idoso, um herói

(incompreendido no final na guerra) e um patriota.

“Kutuzov ouvia os relatos que lhe faziam, dava ordens quando seus subordinados as

pediam, mas quando lhes ouvia as comunicações, parecia não se interessar pelo sentido

das palavras que lhe diziam, mas sim por outra coisa na expressão do rosto, no tom

daqueles que lhe falavam. Sabia pela sua longa experiência militar e compreendia com

seu critério de homem idoso, que um homem só não pode guiar cem mil que lutam contra

a morte”.

31 NICOLSON, Nigel. Napoleão 1812. trad. Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro. Nova

Fronteira, 1987, p 121

32 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002 p 901

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“Sabia que não são as ordens do general-em-chefe, que não é o local onde se acham

dispostas as tropas, nem a quantidade de canhões e o numero de homens mortos que

decidem uma batalha, mas essa força indefinível que se chama de espírito do exercito, e

ele acompanhava essa força e guiava na medida do possível33”.

Os argumentos de Tolstoi para justificar tal posição são que nenhum oficial possui

conhecimento do inicio de um evento, de todas suas ramificações e detalhes, e que nenhum

comandante ordena uma ação em larga escala como uma invasão de um país. Para Gallie

(1978), as verdadeiras ordens militares são sempre especificas a determinadas batalhas e

possuem informações detalhadas para suas execução que devem ser continuamente

repetidas e revisadas frente os imprevistos e as ações dos inimigos. Dessa forma, a

operação global de um exercito deveria ser avaliada através da sucessão de ordens locais e

das condições do próprio exercito e do oponente.

33 idem p 889

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Vale salientar uma curiosa passagem do romance que demonstra uma postura de

repudio aos horrores da guerra e que podem ser entendidas como o precedente do pacifismo

antimilitarista da idade avançada do autor. No capitulo vinte e cinco da décima parte, Pedro

Bezukov, curioso para compreender a dinâmica da guerra, parte para o acampamento russo,

um dia antes da batalha de Borodino, e encontra seu amigo André Bolonski. Ao

entabularem uma conversa, André reconhece dois oficiais alemães conversando, um deles

era Clausewitz que participou de fato da Batalha.

Batalha de Borodino. Fonte: www.lafortezzaclub.it/nborodino.html

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- o teatro da guerra deve ser estendido. Falta-me palavras para exprimir minha admiração

por esse conceito – dizia um.

- Isso mesmo. Com a finalidade de enfraquecer o inimigo, não se pode ter em

consideração as perdas individuais – dizia a outra voz.

- Sim sim – repetiu a primeira voz.

- Sim, estender o teatro da guerra... – repetiu o príncipe André resmungando

colericamente depois de eles terem passado. – O teatro da guerra. Eu tenho um pai, uma

irmã, um filho em Lissia-Gori. Isso lhe é indiferente! Eis o que eu te dizia. Esses senhores

alemães não ganharão a batalha de amanha, mas estragarão tudo que puderem porque na

cabeça deles só se desenvolvem raciocínios que não valem a casca de um ovo, e além

disso eles não possuem a única coisa necessária para amanha, e que Timokhine (seu

simplório mas fiel segundo em comando) possui. Entregaram a ele (Napoleão) a Europa

inteira, e estão aqui para nos instruir. Que bons mestres! – rangeu mais uma vez a voz...

Não fazer prisioneiros – prosseguia o príncipe André. – somente isso daria um novo

aspecto à guerra e a tornaria menos cruel e nós brincamos de guerra, eis que está errado;

fomos magnânimos. Essa magnanimidade e essa sensibilidade são do gênero daquelas de

uma senhora que se sente mal quando vê matar uma vitela... mas come com apetite voraz

depois de ensopada. Falam-nos do direito de guerra, do cavalheirismo, do

parlamentarismo, dos sentimentos humanos para com os desgraçados, etc. tudo tolices!

Em 1805, eu vi o cavalheirismo e o parlamentarismo! Fomos enganados e enganamos! ...

- Se a magnanimidade não existisse na guerra, nós só marcharíamos no caso em que fosse

necessário, como agora, ir ao encontro da morte; não haveria guerra porque Paulo

Ivanitch ofendeu Miguel Ivanitch. Mas a guerra como a de agora, isso é que é guerra;

porque então o estado de espírito das tropas seria outro, todos esses westfalianos e

hessianos que Napoleão conduz não o teriam acompanhado até a Rússia; e nós não

teríamos ido combater na Áustria e na Prússia sem querer saber por quê. A guerra não é

uma coisa graciosa, mas a mais horrível das atividades, e é preciso compreender isso para

não fazer dela um brinquedo34.

A opinião do príncipe André não deve ser considerada de forma literal. Gallie (1978)

defende que falar que os homens só devem combater por motivos que fossem “necessário ir

34 TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg. 5ed. São Paulo: Ediouro, 2002 p 901

34 idem p 856

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de encontro à morte” significa que somente devem-se declarar guerras se os motivos fosses

justos. E mais. A guerra só se justificaria se tomasse à forma de um ultimato, uma ultima

opção quando todas as opções diplomáticas falham. “Somente quando se sabe que a guerra

será terrível é que a mera perspectiva de seu desencadeamento serve para inibir as

tradicionais tendências ou desculpas dos homens para declarar guerra35”.

Essas idéias seriam aperfeiçoadas e mais tarde abandonadas por Tolstoi em favor de

um pacifismo antimilitarista. Em trabalhos posteriores ao seu romance, como O reino de

Deus esta dentro de nós36, essa tendência é clara. Ele defende que o continuo crescimento

da capacidade militar da Rússia e dos demais paises europeus era a causa das guerras no

continente. Não somente a violência entre Estados era condenada, mas toda sua

manifestação, inclusive do próprio governo. Para ele, o exército e a policia tinha a função

de manter o povo submisso e explorar o seu trabalho. A sua aversão à violência

manifestada pelo estado chega a tal ponto de transformar em uma espécie de anarquismo

como um dever moral. Todavia, não se percebe esses traços em Guerra e Paz onde a vida

de membros do Estado são mostrados junto com a nobreza russa com simpatia e encanto.

Conclusão

35 GALLIE, W.B. Os Filósofos da Paz e da Guerra. Trad. Silvia Rangel. Rio de janeiro, ed. Artenova.

1979 p 115.

36 Disponível em http://www.ltolstoy.com/etext/index.html

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Apesar da trama de Guerra e Paz contar a trajetória dos seus personagens principais,

vide Pedro Bezukov e Andre Bolonski, durante os anos que vão de 1805 a 1820, não se

pode resumi-lo a isso. Mais que a história dos protagonistas e suas relações com seus

coajuvantes, o livro se debruça sobre a história e a política da Europa e da Rússia e, assim,

narra a evolução dos seus povos.

Na introdução da obra, Roland37 defende que Guerra e Paz consiste na ressurreição

de toda uma época histórica, de suas migrações de povos, de batalhas das nações. Seus

verdadeiros heróis são os povos; e, atrás deles as forças invisíveis que os conduzem e os

fazem colidir uns cons os outros. Esses combates gigantescos, em que um destino oculto

faz entrechocar-se as nações, são de uma grandeza digna de debates e estudos.

Os personagens da trama, nada mais são do que um instrumento para dar voz as

nações envolvidas nas guerras napoleônicas. Suas falas e ações refletem as dos políticos,

pensadores, filósofos, clérigos e demais que viveram nessa conturbada época além, é claro,

de serem porta-vozes do próprio autor. Guerra e Paz se mostra então um fiel retrato das

relações internacionais do inicio do século dezessete e assim um objeto potencial de

pesquisas acadêmicas mais profundas. Por isso cumpre aos pesquisadores da área

remodelar a visão a respeito da literatura e das ciências sociais. As relações internacionais

por ser particularmente um campo de conhecimento multidisciplinar poderiam empregar

essa característica a favor do crescimento conjugado de ambas. Espera-se que com esse

trabalho um passo nesse sentido tenha sido dado.

37 ROLLAND, Romain, Vie de Tolstoi apud TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz; trad. Gustavo Nonnberg.

5ed.. São Paulo: Ediouro, 2002.

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Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi Fabrício Martins

Artigo: Pensar a Guerra e Paz: Tolstoi

Autor: Fabrício Martins

Grau acadêmico: Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós

Graduação Santiago Dantas em Relações Internacionais – PUC-SP, UNESP e UNICAMP.

Bolsista pelo Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq.

Endereço: Rua dos economistas, 341. bairro alípio de melo. Cep: 30 840 330

Tel: 03 3474 6548 / 8888 6548

FAX: 031 3474 6548

E-mail: fabrí[email protected]

Área: segurança internacional

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