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Carlos Aurélio Mota de Souza Professor Adjunto de Introdução à Ciência do Direito, na Faul- dade de História, Direito e Serviço Social da UNESP - Campus de Franca (SP) SEGURANÇA JURÍDICA e JURISPRUDÊNCIA Um enfoque filosófico-jurídico São Paulo 1996

Seguranca Juridica e Jurisprudencia, Um - Carlos Aurelio Mota de Souza

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Carlos Aurélio Mota de Souza

Professor Adjunto de Introdução à Ciência do Direito, na Faul-dade de História, Direito e Serviço Social da UNESP -

Campus de Franca (SP)

SEGURANÇA JURÍDICA e

JURISPRUDÊNCIA

Um enfoque filosófico-jurídico

São Paulo 1996

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II

A Deus, por me haver iluminado e

permitido viver este momento. À Terezinha Ana, esposa paciente e

dedicada, pela unidade e sacrifício na a-juda, e aos queridos filhos Andréa, San-dra, Adriana e João Emanuel.

Aos meus amigos, pelas idéias e pe-

lo incentivo ao estudo do tema, notada-mente Juan Berchmans Vallet de Goytiso-lo e Pe. Luis Vela Sanchez, S.J., de Madrid.

Aos meus colegas de Magistério,

Advocacia e Magistratura. Ao CNPq pela bolsa de estudos em

pós-doutorado, que possibilitou esta pes-quisa.

In Memoriam: aos meus professores

de Filosofia, Mário Ferreira dos Santos e Stanislaus Ladusãns, S.J. Ao amigo maior José Pedro Galvão de Sousa, jusnaturalista clássico.

Agradecimentos

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III

O que faz bela a Catedral do Direito ?

Imaginou-se o Ordenamento jurídico

como pirâmide perfeita, sem fissuras; mas, assim, semelha-se melhor ao túmulo do Direito, pelo arcabouço estático e impermeável que se arquitetou.

Na verdade, o Ordenamento é qual bela

e vetusta Catedral, construída, desde os alicerces, pela história de um povo, erguendo-se majestosa e intocável no centro das decisões do país.

Renova-se às vezes uma torre, outras o

zimbório, uma que outra ogiva ou contraforte, mas a estrutura, sua essência, resta intocada e imperecível.

Assim é a Ordem jurídica de cada nação:

conjunto de normas e posturas que se erigem entrelaçadas, construídas pelo Legislador para durar e dar aos cidadãos Segurança jurídica e pelo julgador para lhes dar a Certeza do que é Justo.

Mas, o que faz tão bela a Catedral não é

a visão externa de seus arcos e agulhas, em dias luminosos, e sim a luz que côa dos vitrais, cujo esplendor só por dentro plenamente se aprecia.

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IV

É onde pulsa a vida nacional, a cultura e a fé de um povo e toda a trama social se desenvolve, fonte perene de renovação da mesma ordem do Direito.

Frente ao colosso, qual a postura do

Juiz? Uma adesão exterior de reverência ao sólido e grandiloqüente monumento? Ou o ingresso no âmago do Templo, para lhe sentir a beleza que por alí filtra e mantê-lo arejado, vivo e acolhedor? Pois o sol da vida sempre reluz, refratando, por entre os vitrais, coloridos irrepetíveis.

Penetrar no Ordenamento jurídico,

templo sagrado da Lei, para dele extrair - qual Moisés no Sinai - a determinação vívida do Justo, de maneira particular, individual e concreta é, para o Juiz, momento supremo de Humanização da Justiça.

Decisão tal nunca perderá sua

Segurança ou Certeza, pois sempre estará protegida sob as naves do Templo da Justiça.

Nunca será fruto de uma visão estática e

exterior da Catedral do Direito, embora bela, mas luz nova, servindo, de forma dinâmica e renovada, à Pessoa humana, particular e concreta.

Porque a Catedral tem vitrais por onde

jorra a luz da Justiça ideal, que se traduz por princípios gerais, direitos humanos, conceitos-válvulas, módulos de valor, eqüidade na irredutível natureza do homem e das coisas.

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V

Por isso que a sagrada função de julgar invoca, nesse Templo, a necessidade de clareza e de frescor, que se expressam nos ditames da Jurisprudência, sempre renovadora do Ordenamento jurídico.

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V

SEGURANÇA JURÍDICA E JURISPRUDÊNCIA Apresentação .......................................................................................I Índice....................................................................................................V Prefácio ............................................................................................... X

Introdução ............................................................................................1

1. Qual a natureza da Segurança Jurídica ..................................................... 3 2. Que objetivos se pretende alcançar ........................................................... 4 3. Os trabalhos doutrinários mais importantes ............................................... 4 4. Doutrina utilizada........................................................................................ 6

I. Segurança Jurídica e Certeza do Direito ...............................................9

1. Dimensões da Segurança Jurídica............................................................. 9 2. Significados fundamentais da Certeza do Direito ..................................... 12 3. A Certeza como garantia objetiva do conhecimento................................. 13 4. A Certeza como segurança subjetiva do conhecimento .......................... 14 5. A Certeza jurisprudencial ......................................................................... 19 6. A determinação do Justo, da Sentença à Jurisprudência......................... 20 7. Segurança e Certeza; Coisa julgada e Jurisprudência ............................. 22 8. Conclusões .............................................................................................. 26

II. O que é a Certeza .........................................................................................27

1. A Evidência objetiva................................................................................. 28 2. Significado do termo Certeza ................................................................... 29 3. Classificação dos tipos de Certeza .......................................................... 32

a) Certeza necessária.........................................................................32 b) Certeza livre....................................................................................33 c) Certeza natural...............................................................................34 d) Certeza científica............................................................................34 e) Certeza metafísica..........................................................................35 f) Certeza física..................................................................................36 g) Certeza moral..................................................................................36 h) Certeza jurídica...............................................................................38

4. Conclusões .............................................................................................. 40

III. O que é Verdade ..........................................................................................43 1. A Verdade como Correspondência ou Relação........................................ 44 2. A Verdade como Revelação ou Manifestação.......................................... 48 3. A Verdade como Conformidade ............................................................... 51 4. A Verdade como Coerência ..................................................................... 53

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VI

5. A Verdade como Utilidade........................................................................ 53 6. Verdade e Conjetura ................................................................................ 54 7. A Verdade no direito................................................................................. 55 8. Conclusões .............................................................................................. 57

V. Segurança e o Valor Justiça .......................................................59

1. Teoria da Justiça...................................................................................... 59 2. Elementos da Justiça ............................................................................... 62 3. A Justiça como valor ................................................................................ 63 4. Necessidade de Segurança ..................................................................... 64 5. Segurança, Justiça e Bem Comum.......................................................... 65 6. Requisitos da Segurança ......................................................................... 67 7. Conclusões .............................................................................................. 68

VI. A Segurança Jurídica na Constituição Federal ............................70

1. A Segurança como Príncipio................................................................... 70

2. A Segurança como valor..........................................................................72 a) Valor-meio b) Valor-necessário c) Valor-adjetivo

3. A Segurança como Direito fundamental..................................................74 a) Como Garantia b) Como Tutela c) Como Proteção

4. Conclusões..............................................................................................76 a) Aspectos positivos b) Aspectos negativos

VI. Dogmática e Segurança Jurídica ........................................................80

1. Os cinco aspectos do Direito.................................................................... 80 2. A importância da Dogmática .................................................................... 81 3. Justiça versus Segurança ........................................................................ 82 4. O Direito como valoração do Justo .......................................................... 83 5. A Segurança no Direito ............................................................................ 84 6. Dogmática e segurança ........................................................................... 86 7. O valor da Jurisprudência ........................................................................ 87 8. A Dogmática doutrinária........................................................................... 88 9. Conclusões. ............................................................................................. 94

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VII

VII. A Segurança como Fundamento e Garantia da Justiça .............96

1. Relação dialética entre Segurança e Justiça............................................ 96 2. As opiniões de Carnelutti e Lopez de Oñate ............................................ 99 3. Legislação versus Jurisdição.................................................................. 101 4. Sentenças relevantes e irrelevantes ...................................................... 103 5. Direito passado, futuro e presente (ou atual) ......................................... 104 6. Momento gerador e momento aplicativo da norma................................. 105 7. Segurança dos bens jurídicos ................................................................ 109 8. Conclusões ............................................................................................ 112

VIII. Sistema cautelar e Medidas assecuratórias ...............................115

1. Segurança Jurídica e direito líquido e certo ........................................... 115 2. O Juiz e a Lei ......................................................................................... 119 3. Decisão individual e decisões coletivas.................................................. 121 4. Quando são certas as decisões dos Tribunais?..................................... 123 5. A Eqüidade como resultado da aplicação da Lei.................................... 124 6. O Bem Comum, Unidade na Multiplicidade........................................... 125

IX. Direito Judicial, Jurisprudencial, Sumular ...................................131

1. A norma jurisprudencial.......................................................................... 132 2. Segurança da Lei e Certeza da Jurisprudência...................................... 136 3. A Jurisprudência como ordenamento aberto .......................................... 137 4. A relevância constitucional do STF ........................................................ 140 5. Jurisprudência: modelos jurídicos e modelos dogmáticos...................... 142 6. Graus de auctoritas das decisões judiciais............................................. 144 7. Esboço de uma classificação das decisões judiciais.............................. 145 8. Coisa julgada e certeza do Direito.......................................................... 147 9. O ordenamento jurídico, corpo aberto e em evolução............................ 148 10.Conclusões............................................................................................ 150

X. Integração Legislação - Jurisdição...................................................153

1. Legislação mais Jurisdição.................................................................... 153 2. Segurança legislativa e Certeza judicial ................................................. 154 3. As causas mais comuns da insegurança jurídica ................................... 159 4. O excesso legislativo e a insegurança jurídica ...................................... 160 5. A Certeza do Direito determinada pelos Tribunais ................................. 161

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VIII

6. A Verdade como Certeza ....................................................................... 162 7. A Eqüidade como elemento determinante da Certeza do direito............ 165 8. Jurisprudência e Eqüidade. .................................................................... 176 9. Diferença e semelhança entre Súmula e Norma Jurídica....................... 169 10.Conclusões............................................................................................ 170

XI. A formação judicial do Direito Comunitário Europeu ..............171

1. O Tribunal de Justiça cria direito? ................................................................... 171

2. O ordenamento comunitário: estrutura aberta e em evolução .............. 173 a) O que é ordenamento jurídico b) Ordenamentos fechados e abertos c) Caráter aberto do ordenamento comunitário

3. determinação de princípios gerais como metodologia do Tribunal ....... 176 a) "Criar" ou ”determinar" princípios de Direito como inventio juris b) Do princípio ideal ao concreto, como fórmula de determinação do direito c) O método de dedução evolutiva e a aquisição progressiva dos princípios

4. Pode-se identificar um princípio fundamental na ordem jurídica comunitária?

.................................................................................................................. 181 a) Os princípios gerais adotados pelo Tribunal de Justiça b) Há, dentre os princípios, um que lhes seja superior?

5. Adesão ao acquis: afirmação e aperfeiçoamento do sistema jurídico ... 186 a) O acervo comunitário como “Direito adquirido” b) O acquis justifica os precedentes vinculantes c) Importância da criação judicial

6. Conclusões .......................................................................................... 188

7. Bibliografia ............................................................................................. 189

XII. Jurisprudência: fonte última de Segurança Jurídica ................191

1. Revisão dos temas................................................................................. 191

2. Da incerteza da Lei à certeza final da Súmula ....................................... 193 a) Leis e negócios jurídicos como fontes de incertezas b) A primeira certeza: a das sentenças singulares c) As decisões recursais: certezas clarificantes

3. A uniformização da Jurisprudência........................................................ 195 a) A Coerência nas decisões relevantes b) O efeito vinculante das decisões c) O iussum e o iustum como critérios de vinculação d) A uniformidade simultânea

4. A Jurisprudência como fonte última da Segurança jurídica ................... 207

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IX

a) A ambigüidade da norma jurídica b) Da Segurança da norma jurídica à Segurança da Jurisprudência c) Das Súmulas de Jurisprudência

5. Potestas versus Auctoritas ..................................................................... 218 a) Poder Plítico e Poder Jurídico b) Poder Jurídico e Jurisprudência

6. Conclusões ............................................................................................ 226

XIII. O acesso à Justiça ...............................................................................224 1. A exigência de uma "Jurisprudência mínima" ou "vinculação mínima à

Jurisprudência.........................................................................................224

2. A ordenação jurídica da Jurisprudência...........................................................227

3. Evolução da Jurisprudência para uma progressiva determinação do Direito.........................................................................................................................................229

4. Direito alternativo ou uso alternativo do Direito........................................234

5. A nova Lei de Aplicação das Normas Jurídicas. .......................................238

6. As transformações constitucionais do Direito............................................240

7. O Poder Normativo de um Tribunal Constitucional..................................242

XIII. Direito Alternativo e Eqüidade 1. O espectro de Newton 2. Ideologia, o que é 3. Uso alternativo e ideologia no Direito 4. Uso alternativo e eqüidade 5. Os diversos tipos de eqüidad 6. A eqüidade no CPC e na LICC 7. Conclusão.

Conclusões ...........................................................................................245 Apêndice ..............................................................................................249 Bibliografia...........................................................................................251 Índice de Autores ................................................................................263 Índice de Assuntos ..............................................................................

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Prefácio Carlos Aurélio, com seu livro sobre a Segurança Jurídica

e Jurisprudência, preenche vácuo da literatura brasileira sobre a importância da certeza do direito, apenas possível à luz da relação conflitual exposta ao Judiciário e sua manifestação definitiva.

Lastreado em sólida e atualizada doutrina, assim como

examinando a evolução histórica da prudência jurisdicional desde tempos pretéritos, com percuciente análise do período romano e das peculiaridades do direito saxão, Carlos Aurélio realça a importância maior, no processo normativo, que o Poder Judiciário exerce ao ofertar a “certeza” da decisão à “segurança” exposta na lei.

A dificuldade de se obter clareza absoluta na lei, que

evitaria conflitos, não permite ao legislador senão dar a “segurança” ao Direito, mas apenas ao Judiciário é outorgado oferendar ao direito a certeza definitiva.

Ressalta, também, o eminente autor, a necessidade de

graduar a passagem da “certeza” individual para a “certeza” coletiva, aquela, vinculada a decisões para casos concretos, que podem influenciar outras sem constituir-se em jurisprudência, e esta, voltada para jurisprudência, que nas súmulas encontra seu momento maior, ao simplificar, por solução antecipada, o papel das instâncias inferiores, com concomitante redução de sua carga de trabalho, sobre orientar, com maior amplidão, eventuais partes litigantes sobre o sucesso de suas pretensões.

Defende, pois, o efeito vinculante e a eficácia “erga

omnes” das súmulas, concluindo, à luz de sua concepção jusnaturalista, que a “justiça” do Direito depende da “certeza” que as decisões finais ofertam, sendo sempre “justa” a “certeza” do Direito ofertada pelo Poder Judiciário.

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XI

O brilhantismo da tese, mereceu da Banca Examinadora de seu concurso de livre docência para a Faculdade de Direito da UNESP, a nota 10 dos cinco examinadores, a saber: João Grandino Rodas, Christiano José de Andrade, Hermínio Alberto Marques Porto, Rui Geraldo Camargo Viana e Ives Gandra da Silva Martins, prova inequívoca de seus méritos.

Pessoalmente, nada obstante jusnaturalista como o autor

e reconhecer, no Poder Judiciário, relevância maior do que a dos outros poderes, por ser um poder técnico, contraposto aos Poderes Políticos, não tenho a mesma convicção de que a “certeza” jurídica propiciada pela decisão final do Poder Judiciário gere necessariamente uma decisão “justa”. Será, é bem verdade, a decisão que ofertará a certeza sobre o direito aplicável, o qual poderá não ser o mais justo, seja por insuficiência técnica ou ética dos julgadores, seja por força de uma produção normativa defeituosa do Legislativo, que terminará por limitar a prestação judicial do julgador. O que me parece, todavia, pacífico, é que a “certeza” da jurisprudência é mais “justa” que a “segurança” da lei e nisto não conflito com o eminente autor.

Em que pesem as poucas divergências, as convergências

são incomensuravelmente maiores, em nossos pontos de vista, razão pela qual é, com alegria e honra, que, de forma perfunctória, apresento o livro de um dos jusfilósofos mais respeitados do país, obra que, certamente, terá seu lugar bibliográfico assegurado nas questões da dogmática jurídica, à luz da veiculação processual, mormente em face de sua concepção jusnaturalista de formatação aquiniana.

Congratulo-me com a Editora, com o autor e com o

público leitor pelo surgimento, no direito pátrio, de obra de tal envergadura, sobre temática que de há muito esperava alguém que a abordasse.

Ives Gandra da Silva Martins,

Professor Emérito da Universidade Mackenzie, em cuja Faculdade de Direito foi Titular de Direito

Constitucional e Econômico

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Introdução

SUMÁRIO: 1. Qual a natureza da Segurança Jurídica. 2. Que objetivos se pretende alcançar. 3. Os trabalhos doutrinários mais importantes. 4. Doutrina utilizada.

A Constituição Brasileira de 1988 instituiu "um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem internacional, com a solução pacífica das controvérsias" (Preâmbulo).

Introduzindo o longo capítulo sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, o artigo 5º reconhece como invioláveis e garante a todos os cidadãos o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, que são, fundamentalmente, direitos naturais inerentes à existência da pessoa humana em sociedade.

Note-se que liberdade, igualdade e segurança são reiteradas como fundamentos principais da Carta Constitucional, demonstrando a rele-vância dada pela Constituinte a esses valores.

Numa época em que "crise" é a palavra-chave para a Econo-mia, para as relações sociais, a saúde, a educação e as instituições demo-cráticas, também o é para o Direito. Crise do Direito ou crise da Justiça é a base da insegurança jurídica das nações em desenvolvimento.

Apresentando-se o Brasil, no passado recente, como um dos países de maior inflação monetária, não havia estabilidade, mas insegurança nas relações econômicas, com grave reflexo na vida patrimonial dos cidadãos, no seu poder aquisitivo e na situação de bem-estar da população.

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Introdução 2

O tema da Segurança Jurídica sempre foi objeto de estudo da doutrina, mas nos tempos de crise, a instabilidade das instituições e das relações humanas exige novas reflexões para encontrarmos fórmulas diretas de Justiça que restabeleça o equilíbrio social.

Segurança e Justiça, à sua vez, são valores que se completam e se fundamentam reciprocamente: não há Justiça materialmente eficaz se não for "assegurado" aos cidadãos, concretamente, o direito de ser reconhecido a "cada um o que é seu", aquilo que, por ser justo, lhe compete.

Em realidade, os valores fundamentais prenunciados no preâmbulo da Constituição Federal e, mais adiante, explicitados, não constituem um elenco hierarquizado, em que os primeiros sejam prevalentes aos demais, mas devem ser acatados como um conjunto ou complexo de valores que se inter-relacionam e se completam.

De tal forma, não cabe falar em liberdade, v.g., sem que haja Justiça e Segurança; vejam-se as garantias dos direitos individuais do art. 5º: ser "obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de Lei" (inc. II); a "livre manifestação do pensamento" (inc. IV); a "liberdade de consciência e de crença" (inc.VI); a "livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação" (inc. IX); "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão" (inc. XIII); "é livre a locomoção no território nacional" (inc. XV); "é plena a liberdade de associação para fins lícitos" (inc. XVII) etc.

Pelas mesmas razões não podemos tratar da igualdade, que é, juntamente com a alteridade e o débito, um dos elementos da Justiça clássica, aristotélico-tomista, sem estar necessariamente assegurada pela Lei ou pelo Judiciário: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações" (inc. I); "a Lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" (inc. XLI); "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível" (inc. XLII); "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (inc. LIII); "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (inc. LIV) etc.

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Introdução 3

As medidas cautelares, em geral, a concessão de liminares pelos Juízes, em particular, bem como as medidas de amparo judicial (mandado de segurança, de injunção, habeas-corpus, habeas-data) caracterizam, pelo próprio nome, instrumentos eficazes para garantir a segurança de direitos subjetivos ofendidos ou ameaçados de ilegalidade ou abuso de poder, por autoridades ou agentes do Poder Público (incisos LXVIII, LXIX, LXXI, LXXII, do art. 5º).

Entretanto, o valor segurança é proeminente no direito de propriedade e a Constituição reforçou as declarações anteriores ao garantir "o direito de propriedade", atendida sua "função social" e assegurar, na desapropriação, a "justa e prévia indenização" (incisos XXII, XXIII e XIV), a proteção à pequena propriedade rural (inc. XXVI); e ao garantir a propriedade intelectual (incs. XXVII, XXVIII, XXIX) e "o direito de herança" (inc. XXX).

1. Qual a natureza da Segurança Jurídica

Como se depreende, trata-se de tema pertinente a vários campos do Direito: nas relações privadas (especialmente nos contratos, gerando o ato jurídico perfeito); no Direito público (conservando os direitos adquiridos); no enunciado judicial do Direito (determinando a coisa julgada) (inciso XXXVI do art. 5º da C.F.).

No campo dogmático assiste-se com freqüência à discussão filosófico-jurídica sobre o valer da norma jurídica, a função da Jurisdição, as novas e heterodoxas idéias sobre o uso alternativo do Direito etc. Não está excluída uma incursão pelo Direito comparado em busca de paralelos nas Constituições dos países democráticos atuais, inclusive nos sistemas anglo-americanos.

No campo prático ressaltamos a importância da Segurança

Jurídica vista pela Constituição e pelos Códigos, o labor jurisprudencial em busca da certeza última do Direito e os remédios processuais de garantia dos direitos subjetivos.

Especulativamente, observamos que os campos mais avançados do Direito brasileiro são os que tratam da segurança aos

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Introdução 4

direitos do consumidor (inc. XXXII do art. 5º; Lei nº 8078, de ll.9.90), ao meio ambiente (art. 225 e § 1º; Lei nº 7.347, de 24.7.85) e aos menores (art. 227 e §§; Lei nº 8.069, de 13.7.90, de Proteção Integral à Criança e ao Adolescente).

2. Que objetivos se pretende alcançar

Procuraremos demonstrar a importância crescente da Jurisprudência como a palavra dos Tribunais sobre o Direito e determinar os limites ou correlações entre os conceitos de Segurança Jurídica e Certeza do Direito, segundo a moderna teoria da "Segurança da cidadania".

Como a maioria dos temas atuais sobre teoria e filosofia do Direito, também pretendemos nos orientar para o estudo dos valores e princípios constitucionais, a liberdade ou submissão do Juiz ao aplicar o Direito, os novos métodos procedimentais da Justiça, a tutela dos direitos fundamentais, a obediência ao Direito não estritamente positivo, os novos aspectos da metodologia das leis, as opções por uma nova política criminal, o impacto das novas tecnologias sobre a Justiça etc.

Todos estes temas e problemas não podem ser entendidos nem solucionados sem referência à Segurança Jurídica como valor fundamental das sociedades democráticas atuais.

Nosso trabalho objetiva rever o conceito de Segurança como relevante ao Estado de Direito, e sua significação no sistema democrático, mas levando a reconsiderar sua relação intrínseca com outros valores, especialmente a Justiça, em sua democrática função social.

3. Os trabalhos doutrinários mais importantes

Muito embora no campo dos estudos de Teoria e Filosofia do Direito poucas sejam as pesquisas específicas sobre o tema Segurança-Jurisprudência, o enfoque contemporâneo sobre Segurança Jurídica tomou vulto a partir do pós-guerra, sobretudo com o ressurgimento do Direito natural, as exaustivas investigações sobre os

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Introdução 5

direitos humanos, garantias e liberdades individuais e os estudos constitucionalistas a respeito dos princípios e garantias fundamentais.

Antes de 1945, o Juiz guiava-se pelo Direito legal (“Gezetsesrecht”), objetivando concretizar a Segurança jurídica da Lei; após o resta-belecimento do Estado de Direito nos paises europeus, os Juízes passam a buscar a Justiça através do Direito judicial (“Richterrecht”); ilustra bem esta “virada conceitual” as posições de Gustav Radbruch: após a Segunda Guerra, a dramática experiência do nazismo, que colocou a magistratura alemã diante do impasse de aplicar uma legislação injusta, levou o ilustre filósofo a uma revisão de suas teses, defensoras da Segurança jurídica, passando a eximir os Juízes do dever de aplicar aquelas “leis que não são Direito”, quando manifesta sua injustiça. 1

Trata-se de dois temas abrangentes: de um lado Segurança Jurídica e a correlativa Certeza do Direito; de outro, a Jurisprudência. O primeiro é estudado em função do seguinte, para o qual converge especificamente a finalidade desta análise. Ou seja: apontar para a Segurança Jurídica restaurada pela Jurisprudência, ou melhor, o trabalho dos Tribunais como fonte última da Certeza do Direito.

A Segurança Jurídica é questão fundamental em toda Teoria Geral e Filosofia do Direito, sobretudo por influência do movimento codificador do Direito, empreendido por Napoleão, a partir do seu Code Civile. A Segurança na Lei e sua estrita observância pelos Juízes e Tribunais é o fundamento do positivismo legalista e estatal, pensamento vigorante até nossos dias, apesar das inúmeras doutrinas em contrário e do trabalho jurisprudencial das Cortes de Justiça, modificando e construindo um novo Direito, não codificado.

4. Doutrina utilizada

1. Cf. Leyes que no son Derecho y Derecho por encima de las leyes, in: “Derecho injusto y

Derecho nulo” (1971), p. 12; Gustav RADBRUCH, Injustice légale et droit supralégal. Archives de Philosophie du Droit, Tome 39 (1995), pp. 305-318.

Sobre as funções atuais do Juiz, cf. M. SAAVEDRA, Interpretación del Derecho e ideología, (1978); Luis PRIETO SANCHÍS, Ideología e interpretación jurídica (1993); Andrés OLLERO, Interpretación del Derecho y positivismo legalista (1982); J. IGARTUA, Los jueces en una sociedad democrática (1987); J.A. GARCIA AMADO, Teorías de la Tópica Jurídica (1988); Otto BACHOF, Jueces y Constitución (1985); Giovanni ORRÙ, Richterrecht (1983); Mauro CAPPELLETTI, Giudici legislatori? (1984); etc.

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Introdução 6

Autores mais recentes nos serviram de base e de partida para tratarmos do tema. Vamos acompanhar, ao longo do trabalho, Flávio López de Oñate 2, Massimo Corsale 3, Pérez Luño 4, Mezquita del Cacho 5, Peces-Barba 6, Alterini 7; e os trabalhos do Gruppo di Magistratura Indipendente 8 e da Conférence libre du Jeune Barreau de Liège 9; entre nós, Cirell Czerna 10, Theóphilo Cavalcanti Filho 11, etc.

Referente aos estudos sobre Jurisprudência, cuja literatura é

mais abrangente, foram influentes os trabalhos dos alemães Sauer 12, Boehmer 13, Esser 14, Coing 15, Larenz 16; dos italianos Lombardi 17, Orrù 18, Cappelletti 19, Fazzalari 20, Zaccaria 21, Opocher 22; dos franceses Gény 23, Travaux de la Association Henri Capitant 24, Archives de Philosophie du Droit 25, Zenati 26; dos ibéricos Castán Tobeñas 27, Recaséns Siches 28, Dominguez Rodrigo 29, Calvo Vidal 30, Lalaguna 31, Vallet de Goytisolo, Lamego 32; dos nacionais Maximiliano 2. La certezza del diritto (1942; 1953). 3. Certezza del diritto e crisi di legittimità (1979). 4. La seguridad jurídica (1991). 5. Seguridad jurídica y sistema cautelar (1989). 6. Seminario sobre “Seguridad Jurídica”. Gregorio PECES-BARBA (org.) et alii (1987). 7. La inseguridad jurídica (1993). 8. La certezza del diritto. Un valore da ritrovare (1993). 9. La sécurité juridique (1993). 10. Direito e Certeza (ENCICLOPÉDIA Saraiva, v.26, p.494ss). 11. O problema da Segurança no Direito (1964). 12. Filosofía Jurídica y Social (1933). 13. El derecho a través de la jurisprudencia (1959). 14. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del Derecho privado (1961). 15. Fundamentos de Filosofía del Derecho (1976). 16. Metodologia da Ciencia do Direito (1989); Derecho Justo (1985). 17. Saggio sul Diritto giurisprudenziale (1975). 18. Richterrecht (1983). 19. Giudici legislatori? (1984). 20. Introduzione alla giurisprudenza (1984). 21. Ermeneutica e Giurisprudenza (1985). 22. Lezioni di Filosofia del Diritto. Il problema della natura della Giurisprudenza (1955). 23. Méthode d’interprétation.... (1932); Science et technique en droit privé positif (1924/30). 24. La réaction de la doctrine à la création du Droit par les juges, N.31, 1982. 25. La jurisprudence, N. 30, 1985. 26. La jurisprudence (1991). 27.Teoria de la aplicación e investigación del derecho (Metodologia y Tecnica Operatoria en

Derecho Privado Positivo) (1947); La formulación judicial del derecho (1954). 28. Nueva filosofía de la interpretación del Derecho (1956). 29. Significado normativo de la Jurisprudencia (1984). 30. La Jurisprudencia ¿ Fuente del Derecho ? (1992). 31. Jurisprudencia y fuentes del Derecho (1969).

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Introdução 7

33, Limongi França 34, Rosas 35, Dinamarco 36, Arruda Alvim 37, Sálvio de Figuei-redo Teixeira 38, Nelson Nery Jr. 39

Merecem destaque as obras de Vallet de Goytisolo 40,

Metodología Jurídica (1987), Metodología de las Leyes (1991) e a recentíssima Metodología de la Determinación del Derecho (1994), pela sua onicompreensiva visão filosófica do Direito, fundada em invulgar cultura jurídica, como notário, advogado e professor de larga expe-riência humanística. 41

E as abordagens filosóficas estarão fundamentadas em auto-

ridades como Abbagnano, Ferreira dos Santos42, Ladusãns43, José Pedro Galvão de Sousa44, Julián Marías, Sciacca, Luis Vela, Utz,

32. Hermenêutica e Jurisprudência (1990). 33. Hermenêutica e aplicação do Direito (1957). 34. O Direito, a Lei e a Jurisprudência (1954). 35. Direito Sumular (1991). 36. A instrumentalidade do processo (1987). 37. A Argüição de Relevância (1988). 38. Recursos no Superior Tribunal de Justiça (coord.) (1991); A jurisprudência como fonte

do Direito e o Aprimoramento da Magistratura. Rev. Tribs. (nov-1981), v. 553, pp. 18-26; Rev.For. v.279, pp.1-8.

39. Recursos no Processo Civil (Princípios fundamentais - Teoria Geral dos Recursos) (1993); Princípios do Processo Civil na Constituição Federal (1995).

40. Excelente amigo e orientador em Madrid, em cursos de pós-doutorado na Facultad de Derecho de la Universidad Pontificia Comillas (1989-1991), a quem rendemos nossas homenagens.

41. A propósito, Cristina FUERTES-PLANAS ALEIX, em sua obra Filosofía Política y Jurídica de Juan Berchmans Vallet de Goytisolo (1992), conclui ter este filósofo uma concepção pluralista, e portanto flexível, das fontes do direito e dos ordenamentos jurídicos; considera ele o Direito natural como um método da ciência do Direito e da arte jurídica; jurista prático, para Vallet não há um abismo entre quem elabora as normas e quem deve aplicá-las; sua concepção dos direitos humanos e dos direitos subjetivos só podem ser considerados em vista do bem comum; não se produz uma disjunção entre indivíduo-pessoa-sociedade, senão religação, interação, solidariedade e tradição entre os membros que compõem a sociedade; defende um pluralismo social e político, possibilitando o múltiplo no uno; é um filósofo da liberdade, do ponto de vista da realidade. Pp.311-17.

42. A quem recordamos como nosso antigo professor de Filosofía clássica, o qual deixou vasta bibliografia publicada e inúmeros inéditos que estão a exigir publicidade; cf. nosso Mário Ferreira dos Santos y su Filosofía Concreta, Revista Verbo, Madrid, N.295-296 (may-jun 1991), p.785-794.

43. Fundador e Diretor do CONPEFIL - Conjunto de Pesquisas Filosóficas (Rod.Anhanguera, Km.24, depois PUC-Rio) - falecido em 1992, foi um dos grandes mentores da Filosofia tomista em São Paulo, através de seus diversos cursos e congressos filosóficos.

44. Inegavelmente um dos mais influentes mestres do jusnaturalismo clássico em São Paulo, internacio-nalmente reconhecido; formador de várias gerações de juristas,

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Introdução 8

Messner, Peter Wust, D’Agostino, Pontes de Miranda, Miguel Reale, sem excluir os clássicos Aristóteles e Santo Tomás de Aquino.

Quanto à metodologia adotada, por influência da dialética

socrática, platônica e aristotélica, pareceu-nos relevante utilizar os métodos indutivo e dedutivo (o caminho que vai da realidade às idéias - indução, é o mesmo que vem destas à realidade - dedução); na evolução desses métodos adotamos o “processo dialético de implicação e polaridade” 45 ou, mais amplamente, de complementaridade, peculiar ao mundo da cultura, e não o de contraditoriedade 46; não olvidamos, igualmente, a dialética neo-platônica de Santo Agostinho, de excepcional importância para a cultura ocidental. 47

colaborador assíduo do CONPEFIL, a quem o autor muito deve sua visão tomista do Direito, a gratidão fraterna.

45. Cf. Miguel REALE, Filosofia do Direito, Ns. 122, 207; Fontes e Modelos do Direito, pp. 79ss.

46. Em Experiência e Cultura, REALE demonstra que somente a dialética de complemen-taridade, com vigência crescente no pensamento contemporâneo, explica a correlação entre fenômenos que se sucedem no tempo, em função de elementos e valores que ora se polarizam, ora se implicam, ora se ligam, em função de circunstâncias variáveis de tempo e lugar. Pp. 137ss, 162ss.

47. Jusnaturalista-racionalista, de início, e jusnaturalista-voluntarista depois, Agostinho foi o primeiro existencialista dialético da era cristã; na célebre disputa com Pelágio, bispo como ele no norte da África, e mais tarde com Juliano, combateu seu apego ‘positivista’ à letra da lei, demostrando que acima da Lei está a Justiça e esta é que tem valor, porque salva a dignidade do homem, objeto maior do Direito. Bem a propósito o contemporâneo jusfilósofo Francesco D’AGOSTINO comenta: “Salvando il cristianesimo dal giuridismo, Agostino ha altresì salvato dal giuridismo tutto l’Occidente”. Cf. L’antigiuridismo di S. Agostino, in “Il Diritto come problema teologico”, p. 141.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito

SUMÁRIO: 1. Dimensões da Segurança Jurídica. 2. Significados Fundamentais da Certeza do Direito. 3. A Certeza como garantia objetiva do conhecimento. 4. A Certeza como segurança subjetiva do conhecimento. 5. A Certeza jurisprudencial. 6. A determinação do Justo, da Sentença à Jurisprudência. 7. Segurança e Certeza; Coisa julgada e Jurisprudência. 8. Conclusões. 1. Dimensões da Segurança Jurídica

Qual a diferença entre Segurança Jurídica e Certeza do Direito?

Nas várias doutrinas há uma mescla no significado dessas expressões: quando falam segurança, querem dizer certeza, quando falam certeza, como certezza del diritto, entre os italianos, dizem tambem segurança. Por questão metodológica, impõe-se separar estes conceitos, para clarificar seus dois sentidos.

Segurança é Fato, é o direito como factum visível, concreto,

que se vê, como a pista de uma rodovia em que se transita, que dá firmeza ao caminhante, para que não se perca nem saia dos limites traçados pela Autoridade competente:

“...la Justicia puede ser alcanzada en el caso concreto dentro de um sector reducido del orden jurídico: por medio de una ley especial y, más aún, por medio de las resoluciones concretas de las autoridades”. 1

Ademais, Certeza é Valor, o que vale no Direito, aquilo em que se pode confiar, porque tem validez. O caminhante tem “certeza” quando conhece o caminho, pois sendo visível, ele é também “pre-visível”. No Direito, o caminho é o Costume e a Lei, e Lei vem de legere, significando que é para ser lida, como nos ensina singelamente Isidoro de Sevilha, humanista e doutor da Igreja (560-636):

1. Wilhelm SAUER. Filosofia Jurídica y Social (1933), p. 222.

Capítulo I

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 10

“Ley es ordenación escrita. Costumbre es la práctica, aprobada por su antiguedad, o sea, ley no escrita, pues ley (lex) viene a legendo, de leer, porque está escrita”.2

Então, alguém que caminhasse à noite contaria com elementos objetivos para lhe dar segurança: o concreto do solo, as defensas laterais, as lanternas reflexivas, as linhas brancas da divisão da pista e das bordas; seguindo tais indicações, pode "pre-ver" que chegará a seu destino, pois elas valem, têm valor normativo, dão, portanto, segurança. A estrada sinalizada não será uma incógnita e interiormente saberá se guiar por ela. Sabe que, observando os sinais (positivos ou permissivos), nada lhe ocorrerá; mas se desatender às indicações (negativas ou proibitivas), poderá sofrer ou causar dano e ser responsabilizado por seus atos.

Por isso, a estrada "legalmente" sinalizada representa uma

segurança jurídica, como fato material concreto; portanto, a primeira conclusão é que a segurança é algo objetivo. O condutor humano, valorando subjetivamente os sinais, conhecendo a via que percorre, elaborando roteiros razoáveis de previsibilidade, pode eticamente se conduzir com a certeza de agir direito, sem perigo de errar. Assim, a segurança é um a priori jurídico para os cidadãos; e a certeza é a confiança do cidadão nas leis, que lhe permitem agir eticamente, adotando condutas razoáveis e previsíveis, de que seu agir é "direito" e não "torto", de que suas atuações em sociedade não poderão sofrer sanções, pois as rodovias (leis) não mudam seu traçado (princípio da legalidade), para não surpreender aos cidadãos.

2. Etimologias (1951), Cap. III, n.2, p.112-3; cf. VALLET DE GOYTISOLO (1991), p. 519.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 11

A segurança vem das leis firmes que o Estado promulga para o bem dos cidadãos e da sociedade; e a certeza do sujeito advém do conhecimento dessas leis, da valoração de seu conteúdo (compreende que é um bem para si e os demais; "fazer o bem, evitar o mal" é o conteúdo da previsibilidade do homo medius, razoável, comum).

Então, a decisão subjetiva "direito-torto" é uma opção ético-

moral da pessoa, é a decisão moral que "faz possível o direito" (Lon Fuller) ou a "specifica eticità del diritto" (López de Oñate).

A segurança se traduz objetivamente (Direito objetivo a priori),

através das normas e instituições do sistema jurídico (como a norma agendi dos romanos). Já a certeza do direito (como um posterius) se forma intelectivamente nos destinatários destas normas e instituições (a facultas agendi, embora esta analogia não seja completa).

A Certeza do direito é uma faculdade, pois pode não se concretizar o direito, o condutor pode não sair pela estrada, sair de dia ou à noite, com sol ou neblina, porém a estrada sempre estará em seu lugar, como as leis estão nos códigos, nos contratos ou nos pleitos nos Tribunais.

As leis do tráfego urbano são outro exemplo de Segurança: os semáforos nas ruas, piscando 24 horas, distribuindo a passagem por igual a pedestres e carros (Justiça distributiva). Pela noite e madrugada diminui o trânsito, não há carros rodando, porém os faróis (que são a Lei do trânsito, a norma de conduta nas ruas), seguem funcionando, como lei vigente que é, e a Segurança sempre permanece.

Assim é o Direito: institui regras permanentes que ficam, haja

usuários ou não, sirva a alguns ou não, pois sempre haverá em algum dia, alguém necessitando indicativos para uma conduta certa, direita, justa, sem perigos e danos e, portanto, segura. Desta forma, a Segurança objetiva das leis dá ao cidadão a Certeza subjetiva das ações justas, segundo o Direito.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 12

2. Significados fundamentais da Certeza do Direito

Depreende-se do exposto, que Certeza é conceito

relacionado ao conhecimento e que há diferença evidente entre Segurança e Certeza. A Segurança é objetiva, visível, publicada, está nas leis, nos sinais, e a própria Lei é um sinal, pode-se dizer. Certeza é confiança em algo que a Segurança projeta em cada um de nós: a Segurança externa nos dá Certeza interna.

Se a Lei diz que temos direitos, estamos seguros. Se a norma

das placas de trânsito diz que tal estrada vai à Capital, indicando um destino (finalidade), confiamos no Estado, nas leis, na ordem jurídica e, então, podemos nos conduzir :

“... según la concepción positivista y en particular, comtiana de la ciencia, esta última no es más que la previsión introducida en el conocimiento del mundo, según la antigua y gran fórmula de savoir c’est prévoir, ...; análogamente ... a esa concepción de la ciencia, según la cual introduce ella la certeza en el conocimiento, bien puede decirse que el derecho introduce con su norma la certeza de la vida social, garantizando la calificación de los comportamientos posibles”. 3

Vamos analisar os dois termos: o vocábulo Certeza vem do

latim certitudo, certitudinis. O inglês relaciona duas palavras para Certeza: certainty e certitude; o francês expressa certitude; o italiano certezza; o espanhol também apresenta dois vocábulos, certeza e certidumbre.

Encontramos, então, dois significados fundamentais para a

palavra Certeza: o primeiro é a garantia objetiva racional, que um conhecimento oferece de sua verdade; é o conhecimento pelo objeto, em que a garantia está ligada à segurança.

No inglês, o termo para este sentido é certainty e no

espanhol, certeza; em português temos apenas certeza que, entretanto, abrange também o sentido de segurança.

3. LÓPEZ de OÑATE (1953), p. 75.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 13

O segundo significado é o de segurança subjetiva da verdade

de um conhecimento; quando o conhecimento se dá em nós e nos apropriamos de uma verdade, adquirimos uma Segurança subjetiva; o inglês a chama de certitude e o espanhol certidumbre 4; em português não há uma tradução: poder-se-ia usar a palavra certidão, como certeza absoluta, mas este termo já está bem definido na linguagem jurídica, como certificado ou certificação.

Este sentido de segurança é subjetivo porque depende da

vontade, depende de crer ou não crer; querer conhecer é um conhecimento pela causa, pois querer saber é saber das coisas como são por suas causas.

Vemos, portanto, que os dois conceitos, Segurança e

Certeza, não se contradizem, mas se compenetram; isto é importante para o Direito, pois a Certeza do cidadão não pode se opor à Segurança da ordem jurídica e vice-versa; antes se complementam.

Estas conclusões seguem o método dialético positivo de

pensar, em que tese e antítese não se contrapõem, mas se completam na síntese, da mesma forma como Direito objetivo e subjetivo também são complementares, e se dão simultaneamente. 5 3. A Certeza como garantia objetiva do conhecimento

Verifiquemos o primeiro aspecto: certainty, certeza. É o

significado objetivo, que prevalece no pensamento clássico e expressa a solidez ou estabilidade do conhecimento verdadeiro. É estar alguém certo de algo, com base na evidência objetiva.

Platão, em dois Diálogos 6, ensina que a estabilidade do

conhecimento depende da estabilidade do seu objeto; há o conhecimento estável, que é conhecer com certeza só as coisas

4. Nicola ABBAGNANO. Diccionario de Filosofia. Verb. CERTEZA, p. 159, que seguiremos

nas indicações subsequentes. 5. Sobre a dialética de complementaridade, cf. a excelente exposição do prof. Miguel Reale,

em seu recente Fontes e Modelos do Direito (1994), p. 79, bem como em Experiência e Cultura, pp. 137-140 e 162-170.

6. Timeu 29 b-c; Filebo 5 q b.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 14

estáveis; e o conhecimento provável, que é conhecer coisas não estáveis ou cambiantes.

Podemos dizer que a vida humana é um conjunto de fatos cambiantes, porque todo homem é imprevisível em seus atos. Por isso, as sentenças dos Juízes nunca poderão ser absolutamente exatas e jamais haverá duas iguais, porque as questões presentes nos Tribunais cambiam de pessoa a pessoa, de caso a caso.

Aplica-se aqui a lógica do razoável de Recaséns Siches: 7 a sentença não é um silogismo absoluto, mas funda-se na razoabilidade. Compete aos Juízes e Tribunais minimizar a margem de erro, a probabilidade de errar; se é provavél acertar, é provável errar; então, é dever procurar diminuir os erros e aumentar os acertos.

A Certeza, neste aspecto, não é mais que um atributo da

verdade, é o caráter estável da própria verdade, não sujeito a desmentido. A verdade é ou não é; se é verdade, não pode ser desmentida; e a Certeza é esta face estável da verdade. 8 4. A Certeza como segurança subjetiva do conhecimento

Vejamos o segundo conceito, o da Certeza subjetiva; seria

como certidão, que não se usa em português porque já existe significado definido e não cabe criar artificialmente outro; em espanhol é certidumbre, algo como um sentimento interior, convicção íntima; para o inglês é certitude, quando diz, v.g., "I am certain about this", "estou certo disto"; é acreditar em algo que não é passível ou necessita de prova.

Esta Certeza subjetiva adquire importância nas religiões; é a

crença, o acreditar em algo, a possibilidade de uma garantia subjetiva do saber, não fundada em um critério objetivo da verdade. Esta possibilidade reforça a outra, pois se existe uma garantia objetiva, deve existir uma subjetiva. Na tradição filosófica, estes dois conceitos se esclarecem unidos e complementarmente, não sendo excludentes.

Para melhor entendê-lo, consideremos a Certeza sob dois

modos: pela causa e pelo objeto. 9 A Certeza pela causa pode ser considerada segundo a Fé e se funda na Verdade divina, que oferece o máximo de certeza; há mais certeza neste conhecimento que no saber, 7. Experiencia jurídica, naturaleza de la cosa y lógica “razonable” (1971), pp. 517, 533, 537. 8. ARISTÓTELES. Metafísica, IV, 1008 a 16; 1011 b 13. 9. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II, 2, q 4 a 8.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 15

ciência ou entendimento; estes, por se fundarem na razão humana, têm menos certeza.

Em outros termos, a Verdade divina, que por definição não

pode se enganar, nem enganar alguém, manifesta-se pela Fé, e uma vez considerada por sua causa apresenta-se com mais certeza; ao revés, buscada a causa pela Razão humana (saber, ciência, entendimento), háverá menos certeza.

Entretanto, se quisermos conhecer algo das coisas, ter

Certeza pelo objeto, o raciocínio se inverte. Todos os objetos da natureza estão adaptados ao entendimento humano ou vice-versa; nossa inteligência é capaz, é apta, foi criada para conhecer todas as coisas; por este enfoque, conhecer pelo objeto é mais certo, e pela Fé, menos certo.

Resumindo: a Certeza de um conhecimento pode vir pelo objeto ou pela causa: pelo objeto, predomina a Razão; pela causa, predomina a Fé. Então, a Certeza objetiva é mais razão do que vontade, enquanto a Certeza subjetiva é mais vontade do que razão.

Em síntese, podemos dizer que a ação da vontade leva à

verdade pela crença, enquanto a Certeza objetiva leva à verdade pela razão. Temos a verdade da razão e a verdade da fé: pela fé a Certeza é maior quando se vai à causa última; pela razão a Certeza é maior quando se vai ao objeto; por isso, uma é subjetiva e a outra, objetiva.

Descartes, 10 um dos maiores racionalistas, foi o primeiro a

identificar Certeza e Verdade; é célebre sua afirmação: "não aceitar como verdadeiro senão o que se reconhece evidentemente como tal".

É evidente, p. ex., o que é uma mesa ou o que é um livro; apreendemos estas realidades e não temos dúvida de que tais objetos são uma mesa, um livro, evidentemente; então, aceitamos como verdadeiro se nos disserem que isto é um livro. Esta identificação entre Certeza e Verdade, não mais abandonada pela Filosofia, pode ser aceita também na aplicação do Direito; a identificação entre Certeza e Verdade constitui, afinal, a base dos juízos.

10. Cf. ABBAGNANO, op. loc. cit.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 16

Locke 11 distinguia Certeza da verdade, e Certeza do conhecimento: a Certeza da verdade é para fora (ad extra) e a Certeza do conhecimento, para dentro (ad intra). Certeza da verdade (para fora) é o acordo das palavras com aquilo que realmente é. Se falarmos “mesa”, isto é realmente mesa. 12

Certeza do conhecimento (para dentro) é perceber o acordo ou desacordo das idéias expressas; se as idéias que nos são colocadas estão em desacordo, não temos certeza do seu conhecimento; é algo interior, subjetivo, porque intelectivo; o intelecto faz parte do espírito do homem. Locke afirmou: "Conhecer é estar certo da verdade de qualquer proposição".

Leibniz 13 diferenciou Certeza absoluta de Certeza moral. Na Certeza absoluta ele utilizou a classificação de Locke: Certeza da verdade e Certeza do conhecimento. Quanto à Certeza moral, identifica-a com a verdade religiosa, aquele “conhecer pela fé” de Santo Tomás. A Certeza moral seria subjetiva, portanto.

Giambatista Vico 14 tem doutrina contrária às de Descartes, Spinoza e Leibniz; usa dois conceitos para explicar o problema do conhecimento e da verdade e, portanto, da Certeza: são o verum e o certum.

11. Idem. 12. Locke era nominalista; as coisas tinham sentido porque respondiam pelo nome e não

por uma idéia superior; o nominalismo e o voluntarismo revolucionaram, no fim da Idade Média, o pensamento aristotélico tradicional, racionalista ou realista. “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus”, ‘a rosa que feneceu permanece pelo nome; só temos nomes nus’: é tradição que se atribui aos nominalistas medievais.

13. LEIBNIZ. Idem, ibid. 14. Filósofo de grande importância para a época, tanto quanto Montesquieu, o jurista

napolitano (1668-1744) é um grande olvidado na história do Direito. É fundamental sua obra Scienza Nuova; quando todos seguiam o racionalismo, ele revalorizava Platão, Aristóteles e a Filosofia clássica; este fenômeno cultural ocorre também hoje, não só no campo do Direito, mas da Filosofia em geral, a redescoberta de Platão e de Aristóteles, sobretudo Platão, o filósofo da sensibilidade humana, seguido de Santo Agostinho, primeiro filósofo existencialista.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 17

O verum é o Fato: só se conhece com verdade o que se faz, porque sabemos a causa. Tudo o que fazemos podemos conhecer com certeza; nisto segue Santo Tomás.

Já o certum se funda na tradição e na autoridade, mas ressalva que por não ser suscetível de demonstração necessária é uma categoria de probabilidade; neste ponto volta a Platão, como vimos, quando este alude ao conhecimento provável das coisas cambiantes.

Ao contrário de Descartes, Vico explica que a Filosofia não pode se fundar apenas no verdadeiro, mas, como disse Aristóteles, deve aceitar como verdadeiro o que se reconhece evidente.

Assim, o Direito não pode se fundar apenas no Fato, mas deve utilizar também o conceito de Certo, que abrange os costumes, as leis, a tradição. É, pois, oportuna esta colocação de Vico quanto à Certeza: a Verdade está baseada na causa (o Fato, o que se faz) e no certo (a antigüidade, a tradição, o costume).

Em Kant, 15 a Certeza é uma crença objetiva suficientemente garantida como verdadeira; classifica a Certeza em duas espécies: empírica e racional. A Certeza empírica pode ser originária e derivada; Certeza empírica originária é aquela relacionada com a própria experiência histórica; e a derivada provém de uma experiência alheia.

Quando fazemos pessoalmente alguma coisa, não podemos ter dúvida daquilo que fizemos; a certeza empírica ou experimental é, pois, uma experiência originária; é derivada quando copiamos uma experiência que alguém vivenciou.

No campo da atuação jurisdicional, poderíamos falar da experiência das sentenças e acórdãos proferidos originariamente; e na aplicação da jurisprudência pelos julgadores em geral, equiparada à certeza empírica derivada.

15. Crítica da Razão Pura. Apud ABBAGNANO, op. loc. cit.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 18

E Certeza racional é a consciência da necessidade de crer e conhecer algo; não precisa ser demonstrada, pois é apodítica; portanto, é a consciência que temos da necessidade do conhecimento.

Finalmente encontramos Hegel, 16 que identifica Certeza e Conhecimento: para ele, Conhecimento é Certeza e Certeza é Conhecimento; mas distingue a Certeza sensível, que pode ser essencial e imediata, aquilo que simplesmente é, o objeto; e a Certeza inessencial e mediata, que não é a coisa em si, mas algo que depende do conhecimento de algum outro objeto. Hegel discorre sobre o eu, que representa um saber que sabe que o objeto é, ou na expressão clássica, o homem é o animal que sabe que sabe.

Husserl 17 fala em Certeza originária, identificada com a crença, principalmente a primitiva, que chama de urdoxa ou protodoxa; e para Heidegger, 18 a Certeza se funda na Verdade, é inerente a ela com igual originalidade que ela mesma; parece indubitável: a Certeza faz parte ou é a face da Verdade.

A Filosofia de Heidegger é a do "ser-em-si" o "ser-aí", a pessoa, o eu; para ele há uma Certeza subjetiva; o “ser certo,” como forma de ser do "ser-aí", é uma forma de ser do homem. A Certeza objetiva é do Ente, como ser superior, de que pode "ser certo" o "ser-aí", certeza esta derivada da primeira; se o "ser-aí" é certo, deriva da Certeza do Ente; em outras palavras, o bem deriva do Bem, o belo deriva do Belo, o ser deriva do Ser.

5. A Certeza jurisprudencial

Quando tratarmos da Jurisprudência, distinguiremos melhor estes conceitos bivalentes e recíprocos, entre Segurança e Certeza. A

16. Idem. 17. Idem. 18. Ser e Tempo, § 52. Idem.

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Segurança Jurídica e Certeza do Direito 19

Segurança jurídica, afinal, como afirmam vários autores, 19 é a Certeza de que a Lei é válida, tem eficácia e nos assegura a faculdade de bem agir para alcançar a Justiça.

Entretanto, a Lei é uma certeza a priori, ou melhor, a Segurança está na Lei, e se a Lei tem por finalidade dar Segurança, esta é uma certeza a priori; poderíamos chamá-la "pré-judicial" ou sociológica, 20 porque toda Lei se destina a solucionar ou prevenir problemas, como ocorre nos contratos; há milhares que se firmam e se resolvem autonomamente e têm valor, mas há uma quantidade imponderável dos que não funcionam e acabam nos Tribunais.

São estes casos que nos interessam, pois o tema deste estudo é Jurisprudência com Segurança: quando os Juízes e Tribunais, ao final de um processo, emitem decisão que transita em julgado, pode-se falar em Certeza do Direito?

Chamâmo-la de Certeza judicial ou jurisprudencial, referente ao labor dos Tribunais, porque a sentença singular, embora importante para o Direito, não faz jurisprudência. De fato, a vocação da Lei é estar voltada para a sentença; e a vocação da sentença é a jurisprudência. E a sentença só se faz jurisprudência através de recursos; quando aquela é juridicamente relevante e bem fundamentada os Tribunais a citam, adotam suas razões e muita vez nada acrescentam!

6. A determinação do Justo, da Sentença à Jurisprudência

Têm razão os americanos quando afirmam que Direito é aquilo que os Tribunais dizem que é. 21 Aceitamos as decisões judiciais

19. Renato Cirell CZERNA. Direito e Certeza. Verb. ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito, v.

26, p. 501; Theophilo CAVALCANTI Fº. O problema da segurança no Direito (1964), p. 59; Flavio López de OÑATE. La certeza del Derecho (1953), p. 75; Massimo CORSALE. Certezza del Diritto e Crisi di Legitimità. (1979), p. 33; Letizia GIANFORMAGGIO. Certeza del Diritto. Verb. DIGESTO (1988), Vol. II: 274ss, n. 3; Antonio-Enrique PÉREZ LUÑO. La Seguridad Jurídica (1991), p. .22, n. 4 etc.

20. MEZQUITA DEL CACHO (1989), v. I, p. 108: “...esta Certeza no es todavia la Seguridad Jurídica verdadera o plena, sino sólo el arranque de la ruta que el Derecho se traza en su búsqueda; pues por mucha que sea la Certeza, no es garantía intrínseca, sino sólo catalizadora de la Justicia”.

21. Oliver Wendell HOLMES tem famosa definição de Direito ao afirmar que “as previsões daquilo que os tribunais efetivamente farão e nenhuma outra coisa mais pretensiosa, são

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como verdades e nada impede que as aceitemos como hipótese de trabalho e argumentação. Como dissemos, a finalidade da Lei é resolver conflitos ou evitá-los; está voltada para a sentença, dirige-se ao Juiz, como uma flecha lançada a um alvo, que é o processo. A sentença está, pois, destinada à jurisprudência, como resultado final da coisa julgada.

Uma simples ação de despejo por falta de pagamento faz coisa julgada, mas nem sempre se torna jurisprudência, porque, na grande maioria, são sentenças comuns, sem questões de Direito relevantes, sentenças com conseqüências jurídicas limitadas às partes; fazem coisa julgada formal e material em âmbito muito restrito.

Mas há julgados que se convertem em jurisprudência, não ficam aprisionados na formalidade do processo, nem se restringem aos litigantes; ao contrário, extrapolam estes dois níveis e se tornam autênticas normas: é o que denominamos coisa julgada jurisprudencial (embora pleonasticamente).

Esta tem sido uma idéia ousada: dizer que o precedente judicial é norma soa um absurdo; todavia, os julgados não valem só para as partes, mas também para todo o ordenamento; então, os conceitos de coisa julgada e jurisprudência serão naturalmente mais amplos.

Há exemplos notórios de construção jurisprudencial, como a correção monetária, em que os Tribunais a estenderam para toda espécie de débito judicial; quando as últimas questões foram decididas definitivamente pelo Supremo Tribunal, promulgou-se a Lei 6.899/81, que acolheu toda a jurisprudência acumulada. 22

Trata-se de exemplo eloqüente da superioridade da Jurisprudência sobre a Legislação através da construção do Direito pelos Tribunais.

Embora se reitere que a Jurisprudência não é fonte do Direito, na prática esta caminha mais célere que o Direito positivo. Na realidade, a norma produzida pela Jurisprudência é tão genérica quanto as leis. A certeza jurisprudencial é uma certeza praeter legem, pois ultrapassa a própria lei. É certeza que nasce do caso concreto e se funda na coisa

o que entendo por direito”. Apud VALLET DE GOYTISOLO, Metodología de la Determinación del Derecho (1994), p.1247. Cf. Álvaro D’ORS, Derecho es lo que aprueban los jueces, in “Escritos varios sobre el Derecho en crisis” (1973), cap. V, p. 45ss, também publicado na revista Atlántida (1970), N. 45, pp. 233-243.

22. Art.1º:"A correção monetária incide sobre qualquer débito resultante de decisão judicial".

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julgada, cujo princípio superior é garantir às partes e à sociedade que a controvérsia já decidida não mais retornará aos Tribunais.

A história do Código Civil de Napoleão (1804) é bem ilustrativa: Portalis, 23 um dos redatores do Projeto, juntamente com os juristas Tronchet, Maleville e Bigot-Préameneu, apresentou o Código à Assembléia Nacional em 1801. Na exposição de motivos ousou afirmar que o Juiz deveria julgar, interpretar, clarificar a letra da Lei; exprimia o que um século depois, François Gény 24 iria empreender claramente com o método da libre recherche scientifique, alargando o espírito da Lei.

Portalis foi execrado, e a Assembléia eliminou os dispositivos que tratavam da interpretação da Lei. Na ocasião, Napoleão teria exclamado: "Meu Código está perdido!", porque os Juízes pretendiam interpretá-lo; o Código Napoleônico, fruto do racionalismo revolucionário, era o que havia de mais positivista, e influiu decisivamente em todas as codificações européias e latino-americanas. 25 Para ele, os Códigos deveriam ser intocáveis.

Em 1904, ao se comemorar o centenário do Código de Napoleão, ouviu-se outro discurso famoso, o do Presidente da Corte de Cassação Francesa, Ballot-Beaupré, 26 no qual demonstrou que o Código, formalmente, em nada fora alterado, mas a Jurisprudência, durante um século, havia criado muitos outros institutos jurídicos, como o seguro, o concubinato, a indenização etc; houve abundante criação jurisprudencial, apesar de Napoleão...

A história prova que não há legislador que possa inovar contra os fatos e os costumes; em contraposição, é tendência natural do Juiz ocupar o espaço legal da sua decisão para ampliar o Direito, desde que não julgue contra ou fora do ordenamento jurídico, como sói ocorrer com o uso alternativo do Direito. Ao Juiz cabe decidir dentro da ordem jurídica, com toda liberdade, inclusive aplicando a eqüidade, que é o método adequado para melhor decidir segundo critérios de Justiça Social.

O artigo 127 do CPC restringe, a nosso ver inconstitucionalmente, o uso da eqüidade, que deveria ter a mais ampla aplicação pelos Juízes. O Juiz inglês, quando predominava a equity, não possuía códigos, nem leis, decidia segundo a lógica prudencial dos romanos; então, os casos julgados constituiam um ordenamento de eqüidade. Hoje, na Inglaterra, a

23. Jean-Étienne-Marie PORTALIS. Discurso Preliminar del Projecto de Código Civil Francés

(1978); e Discours, Rapports et Travaux Inédits (1844). 24. Méthode d’interprétation..., nº 156. 25. No Chile, o Gal. O’HIGGINS chegou a propor a adoção integral do Código napoleônico. 26. Cf. François GÉNY. Science et Technique en droit privé positif (1924), v., 9, pp. 29-30.

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Jurisprudência de eqüidade é formalmente codificada, com normas, princípios e máximas, como as codificações continentais. 27

7. Segurança e Certeza; Coisa julgada e Jurisprudência

Vejamos o entendimento sobre Segurança Jurídica e Certeza do Direito, nas doutrinas estrangeiras.

Na doutrina italiana a expressão certezza del diritto é usada igualmente para as dimensões objetiva (Segurança) e subjetiva (Certeza) do Direito.

A maioria dos doutrinadores alemães tanto utiliza Segurança quanto Certeza (Rechtssicherheit), mas alguns adotam a dimensão subjetiva da Segurança, como "Certeza de orientação" (Orientierungs-gewissheit).

Na Common Law as expressões legal security, public safety e certainty lembram a dimensão objetiva da Segurança, enquanto certitude é a garantia subjetiva, a Certeza do Direito, a possibilidade de prever as conseqüências e implicações da Lei.

Para os espanhóis, seguridad é uma idéia objetiva, qualidade ou estado de carência de risco; e certeza é forma subjetiva de conhecimento dos direitos individuais; mas, igualmente, costumam utilizá-las como sinônimos. 28

É fato que as leis nos dão segurança objetiva. Quando contratamos ou transacionamos com base na Lei, se o contrato ou o negócio funcionam, a Lei cumpriu sua missão; se as partes se desentendem, o contrato não funcionou, e em conseqüência aquela segurança inicial torna-se uma incerteza subjetiva para as partes. Ambas afirmam que têm direitos, que a razão está com cada uma, vão à Justiça e a coisa julgada, determinando o certo, liquida a questão e restaura a Segurança da Lei e a Certeza dos direitos individuais.

Então, a autoridade da coisa julgada tem também a eficácia de restaurar a Segurança objetiva da Lei e a Certeza subjetiva do Direito. Ocorre aqui um processo dialético: a tese é a Lei, traz Segurança; a antítese é o conflito, o dissídio que gera incertezas; já não existe mais

27. Cf. nossos Poderes Éticos do Juiz (1987), p. 94; Eqüidade e Jurisprudência. Tese de

doutorado (1989), p. 48ss. Cf. Carleton Kemp ALLEN e outros. 28. PÉREZ LUÑO (1991), p. 37, N. 32.

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Segurança, a Lei não garante concretamente; a coisa julgada, como síntese, virá restaurar a Segurança e tornar-se, assim, nova tese, como fonte material do Direito.

Vemos, pois, que a Segurança dada pela coisa julgada é superior à da Lei, porquanto esta, tendo caráter genérico e abstrato, deve se concretizar no caso singular; então, a Lei geral é particularizada pela interpretação, e a decisão, afirmando o que é certo, o que é justo, aplica corretamente a Lei e restaura a Segurança; entretanto, já não é mais a mesma Lei, mas Lei aperfeiçoada; por isso que a Jurisprudência aper-feiçoa as leis e os juristas, em geral, não soem invocar somente a Lei, mas também os casos julgados à sua luz. 29

Queremos com isso afirmar que toda vez que um caso é julgado este acresce um plus à Lei; é um acréscimo valorativo. Um dos efeitos da Jurisprudência, como doutrina originária e exclusiva dos Tribunais, é precisamente o de valorizar a Lei.

São funções essenciais da decisão, através da coisa julgada: primeiro dizer o que é certo, determinando a cada um o que é seu; segundo, trazer paz à sociedade; e terceiro, confirmar o ordenamento jurídico. 30

É importante demonstrar como a Jurisprudência oferece segurança qualificada, superior à das leis. Quando se discorre sobre a crise do Direito, vê-se que uma das causas da insegurança jurídica é a prolife-ração das leis. A espantosa quantidade de leis promulgadas pelos legislativos causa uma geral incerteza no povo, como no campo do Direito Público, em que surgem, diariamente, inúmeras leis e regula-mentos novos, gerando confusão e insegurança. E a proliferação das leis é um fator crítico da própria Legislação. Também neste aspecto o julgador supera o legislador, pois há justiça mais qualificada nas decisões do Judiciário, do que nas leis do Legislativo.

29. “O mínimo de fundamento axiológico, exigido pela sociedade em qualquer circunstância,

postula, também, a certeza do Direito, põe e exige um Direito vigente. O princípio da Certeza preside - em díade indissolúvel com o da segurança - todo o evolver histórico da vigência do Direito, e, por via de consequência, a toda a história do Direito positivo”. Miguel REALE. Filosofia do Direito (1982), N. 216, p. 598.

30. Recordemos o caso do IPMF, editado e cobrado em setembro de 1993; bastou uma ação declaratória de inconstitucionalidade para que um Ministro do STF paralizasse toda sua cobrança, pondo fim à medida provisória, porque havia insegurança jurídica, gerada por Lei inconstitucional, uma vez que o imposto criado não poderia ser cobrado no mesmo ano; portanto, a atuação judicial teve a função de restaurar a Segurança jurídica em uma situação de incerteza.

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Ademais, a Lei, mesmo tendo uma causa e um fim, uma vez promulgada tende a se cristalizar; ao passo que a Jurisprudência é dinâmica, estando em constante devenir. Este dinamismo da Juris-prudência aparenta uma certa insegurança. A crítica mais comum à Jurisprudência é que não pode ser fonte normativa do Direito por não trazer segurança. Mas a assertiva não se sustenta, pois existem Súmulas do STF com mais de 30 anos que ainda não foram modificadas.

Detrai-se a Jurisprudência por não ser fonte do Direito, ou ser menos segura, devido à sua mutabilidade, dada pela interpretação progressiva ou casuística do Direito. Entretanto, não é impossível funda-mentar que há Segurança na Jurisprudência, pois do contrário não seria sumulada, nem teriam valor os repertórios jurisprudenciais.

A Jurisprudência não é autorizada como fonte do Direito pela maioria dos doutrinadores. Não está elencada, por exemplo, no art. 4º da LICC ou no art. 126 do CPC, que autorizam o juiz, à falta de Lei, julgar por analogia, pelos costumes, pelos princípios gerais do Direito; portanto, estas são, com a Lei, fontes únicas do Direito, mas não a Jurisprudência; todavia, em muitos países ela é considerada fonte auxiliar ou complementar do Direito, como na Espanha, 31 e esta vem sendo a tendência da dogmática brasileira mais recente. 32

Sobre o dispositivo, assim se expressa a Exposição de Motivos de Título Preliminar do Código Civil espanhol:

“A la jurisprudencia, sin incluirla entre las fuentes, se le reconoce la misión de complementar el ordenamiento jurídico. En efecto, la tarea de interpretar y aplicar las normas en contacto con las realidades de la vida

31. Título Preliminar del Código Civil, art. 1º, nº 6: “La jurisprudencia complementará el

ordenamiento jurídico con la doctrina que, de modo reiterado, establezca el Tribunal Supremo al interpretar y aplicar la ley, la costumbre y los principios generales de Derecho”.

32. O Anteprojeto da Lei de Aplicação das Normas Jurídicas, apresentado ao Congresso Nacional, onde se tornou o Projeto de Lei nº 4.905/95, inclui a doutrina e a Jurisprudência como novas formas de expressão do Direito, superando, assim, o dogmatismo vigente.

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y los conflictos de intereses da lugar a la formulación por el Tribunal Supremo de criterios que si no entrañan la elaboración de normas en sentido propio y pleno, contienen desarrollos singularmente autorizados y dignos, con su reiteración, de adquirir cierta trascendencia normativa” (grifamos). 33

8. Conclusões

Podemos extrair do exposto algumas idéias, à guisa de conclusões: a primeira, que a Jurisprudência é fonte valorizadora da Segurança jurídica; a segunda, que a autoridade da coisa julgada devolve às partes a Certeza do direito, restaurando-se, em conseqüência, a Segurança jurídica inicial; a terceira, que o valor acrescido à Lei pela Jurisprudência dominante é expressão de Direito justo, sobretudo nas questões jurídicas relevantes; em consequência, por derradeira, a coisa julgada, através da Jurisprudência, sobretudo sumulada, estende sua autoridade à própria ordem jurídica, para sua reafirmação e completude.

É que, sendo a Jurisprudência um conjunto de decisões finais irrecorríveis, neste ponto se identifica com a coisa julgada; portanto, tratando-se de questões relevantes de Direito, a auctoritas dos casos julgados se transfere à Jurisprudência, assumindo o caráter de nova categoria: a coisa julgada com força ou efeito jurisprudencial. 34

Ademais, no desenvolvimento do estudo tentaremos demonstrar que a Jurisprudência deve ser entendida não como mero repositório ou conjunto esparso de acórdãos reiterados ou precedentes, como no modelo anglo-norte-americano, mas, muito além, constitui um

33. Tomás OGÁYAR Y AYLLÓN. Creación Judicial del Derecho (1975), p. 137. 34. É o que se poderia denominar de coisa julgada com auctoritas jurisprudencial, pois esta

qualidade do julgado ultrapassa o processo (coisa julgada formal), e as partes (coisa julgada material), para alcançar o aperfeiçoamento e a evolução do próprio ordenamento jurídico. É uma terceira dimensão da coisa julgada, que também outros autores trazem à discussão doutrinária.

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corpo, um ordenamento judicial 35, aberto, em evolução constante, com o que se aproxima e se integra ao ordenamento legislativo (passando, assim, do Plano das Normas Particulares ao Plano das Leis Gerais).

35. É o denominado Direito Judicial ou Jurisprudencial. Cf. LOMBARDI (1975), ORRÚ

(1983), CAPPELLETTI (1984), ZENATI (1991), CALVO VIDAL (1992), MARTINS FILHO (1992) e outros. Cf. Cap. IX, pp. 132ss.

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O que é Certeza

SUMÁRIO: 1. A evidência objetiva. 2. Significado do termo Certeza. 3. Classificação dos tipos de Certeza. a. Certeza necessária. b. Certeza livre. c. Certeza natural. d. Certeza científica. e. Certeza metafísica. f. Certeza física. g. Certeza moral. h. Certeza jurídica. 4. Conclusões.

Certeza é um tema filosófico e especificamente de gnoseologia, ou seja, pertinente à Teoria do Conhecimento, como o homem conhece as coisas da natureza e as próprias idéias.

A certeza é um conhecimento objetivo, mas apresenta gradações e espécies. Neste estudo queremos associá-lo ao conhecimento jurídico, especialmente ao do Juiz. Quando se fala do livre conven-cimento do Juiz, a convicção é um conhecimento e uma certeza; o Juiz conhece os fatos, as provas, interroga as partes, as testemunhas, ouve peritos e este conjunto de informações é que sustentam sua convicção, e plasmam seu conhecimento; se ele não se apropriar intelectivamente do universo do thema decidendum, ele não terá certeza e, portanto, a sentença não trará segurança.

Por isso, este tema, embora filosófico, está intimamente ligado ao problema da Segurança Jurídica; porque a sentença, uma vez transitada em julgado, nada mais é do que uma certeza, ao menos sob aquele aspecto particular do Direito, que envolve duas ou mais pessoas na relação jurídico-litigiosa. Portanto, embora seja um tema teórico, está diretamente implantada na realidade que é a questão do convencimento do Juiz.

Então, podemos dizer que todo julgador, assim como qualquer homem medianamente instruído, tem uma forte tendência dogmática a superar um estado de dúvida e buscar a tranqüilidade da certeza, que é um estado perfeito da mente em relação à verdade; mas

Capítulo II

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tem, ademais, forte tendência crítica a possuir ou alcançar a verdade e a certeza, porém com motivo válido, ou seja, com fundamentação.

Sabemos quanto é importante o Juiz fundamentar sua convicção, pois se este não explicar por que condenou uma pessoa e absolveu outra, acusadas do mesmo fato, essa sentença pode ser nula, pois a motivação convincente é a base da decisão, embora os motivos não façam coisa julgada, o que será objeto de apreciação, mais adiante.

1. A evidência objetiva

O Juiz não trabalha com a existência da certeza, mas busca o motivo primordial da certeza, qual o fator essencial, necessário, imprescindível, último e universal que a determina. Esta causa última é a evidência objetiva. Evidência deriva de ex-videre (ver para fora), aquilo que vemos através dos sentidos. O mundo, as coisas que nos rodeiam entram para o nosso conhecimento através dos sentidos. Daí todo um processo de classificação, de apuração, mas esse é o processo de apreensão das coisas. Então, evidência objetiva é aquilo que se vê fora, objetivamente.

A Filosofia que está sendo apresentada é aristotélico-tomista, refutada por muitos. Mas, hoje, prestigiosos juristas e filósofos voltam-se a ela para mostrar que não se pode fugir da natureza das coisas e da natureza do homem. Este é mais um convite à meditação, voltarmos a repensar os nossos conceitos e buscar na natureza humana, não nas idéias puras, as razões últimas do Direito e mesmo do Estado.

O fundamento do Direito não está no Estado e sim na natureza, nem tampouco em algum gênio que por aqui passou. Hitler teve idéias. E as nazistas ... deram no que deram.

A sabedoria aconselha retornar ao realismo aristotélico e ao idealismo platônico, pois não se contradizem. O caminho que vai é o mesmo que volta. Alguém, por exemplo, possui um terreno, muito bonito, à margem de uma rodovia, acidentado, cheio de pedras, com uma belíssima queda dágua. Sonha erguer ali uma casa, aproveitando as pedras e a cascata, sem alterar a natureza. Chama um famoso arquiteto e ordena: "Desejo construir uma casa neste sítio, sem retirar uma única pedra, aproveitando integralmente a paisagem".

O arquiteto vai ao local, fotografa, estuda, vê, sobe e desce, retorna para seu estúdio e principia a meditar. A idéia tarda, sai de férias para se inspirar. De repente, o insight: senta e desenha, com base nas fotos, um projeto todo original, não tocando nas pedras e aproveitando a cachoeira. Apresenta-o ao proprietário e

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este o aprova; chama um engenheiro, que vai ao local e constrói a casa conforme o projeto.

O que aconteceu? Dois caminhos foram percorridos: o da realidade da natureza para as idéias, das fotografias ao projeto; e o do projeto para a realidade da obra construída.

Assim é a experiência jurídica, como na vida humana. Nada fazemos sem idéias, como também não as deixamos no espaço, mas as concretizamos com nossas ações. Então, as duas atitudes humanas, meditação e ação, se interligam reciprocamente: uma exige a outra e ambas se complementam. Portanto, tudo na vida é planejado e executado segundo a realidade. Quem sai construindo casas na areia vê-las-á ruir água abaixo...

Então, esta evidência objetiva é muito importante ao conhecimento porque a evidência já é conhecer.

Por exemplo, quando se olha para fora e se vê que está claro, o sol brilhando, não temos dúvida em dizer que agora é dia. E à noite, quando está tudo escuro, não duvidamos que não é dia, mas sim noite. É uma evidência objetiva, pois a natureza se conhece através da evidência. O ex-videre, portanto, é um dos fundamentos básicos da certeza.

2. Significado do termo Certeza

O termo certeza deriva do verbo latino cernere, que significa "ver claro", "discernir", com o sentido real de “firme assenso da mente à verdade conhecida, sem medo de errar". 1 É um firme assentimento ou concordância da mente com a verdade.

Esse sentido real, de um ponto de vista positivo, encontra no Sujeito a firmeza e a determinação da mente em se opor à dúvida; e da parte do Objeto, a evidência objetiva do enunciável.

1. Stanislaus LADUSÃNS, S.J. Gnosiologia Pluridimensional. Um Tratado Filosófico sobre

os Fundamentos Fenomenológico-críticos da Ciência Consciente (1980), p. 74; cf. também, do mesmo autor, Humanismo Pluridimensional (1974).

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A certeza afasta a dúvida, e da parte do Objeto, daquela coisa que está sendo vista, desvelada: a evidência objetiva do enunciável. Se vemos que é dia, por exemplo, podemos fazer um enunciado. Então, da parte do Objeto, a evidência é objetiva daquilo que vou falar: "agora é dia". O Objeto me dá certeza pela evidência objetiva, pela firmeza da minha afirmação.

Pode-se, pois, definir a certeza como a adesão firme da mente a um enunciável evidente; tudo aquilo que pode ser enunciado, definido, apontado. 2

De um ponto de vista negativo, a certeza exclui o medo de errar. E do ponto de vista positivo, vimos, ela exclui a dúvida; ela afirma com evidência. Ora, o medo é uma faculdade sensitiva, intelectual; a inteligência não teme, apenas pensa na possibilidade do erro, e causa medo na parte apetitiva, ou seja, na vontade. A inteligência quer acertar; então, a possibilidade de não acertar causa medo na parte da volitiva; o homem não sabe decidir se faz ou não faz, se quer ou não quer.

Mas esta questão não é da razão, é da vontade. Portanto, a evidência objetiva é, para a certeza, uma causa eficiente, noética (Nous = ser), ou seja, primordial, necessária, imprescindível (motivo essencial) é aquilo que dá essência às coisas; pode haver outros motivos, mas não serão essenciais.

A evidência objetiva é o motivo essencial da certeza, porque a perfeita atuação da mente, como faculdade visiva e necessária, não pode resultar senão pela evidência objetiva.

A certeza é a perfeita atuação da inteligência, porque não a possuindo, a inteligência, insatisfeita, a procura; e possuindo-a, permanece satisfeita e tranqüila (Eu existo; 2+2=4; Franca fica ao norte de São Paulo...). A inteligência quer certeza no conhecimento das coisas.

Quando tomamos contato, à primeira vez, com alguma coisa estranha, temos curiosidade de saber. Por que as crianças tanto perguntam? porque têm apetite de conhecer e aprender. É a inteligência que as leva a fazer perguntas; é a perfeita atuação da inteligência. Possuindo esta certeza, a mente se sente satisfeita e tranqüila.

Por exemplo, a dúvida existencial: “eu existo?” 2. Neste ponto é bom lembrarmos quão importante é distinguir verdade e certeza, pois não

se confundem; enquanto a verdade é a conformidade da inteligência, que julga, com a coisa, a certeza traduz a firmeza da mente, que resulta daquela conformidade ou julgamento evidente. Descartes foi o primeiro filósofo que identificou certeza com verdade, posteriormente a Aristóteles e a Santo Tomás, que a distinguem.

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Se conseguirmos responder, ficamos tranqüilos, pois temos a certeza de que existimos. Há coisas que são evidentes por si mesmas. Esta evidência objetiva é que dá a certeza para que a inteligência fique tranqüila e não se questione.

Quando o Juiz não se dá por satisfeito, pergunta, repergunta, manda fazer diligências, abre instruções, enfim, utiliza-se de todos os poderes que tem para alcançar a verdade.

Quantos juízes não passam por este dilema: "Bem, alguma coisa está acontecendo, não estou convicto, vou fazer diligências, determinar nova perícia...". Isto porque não há uma evidência objetiva. No crime, a incerteza é causa de absolvição, devido à ausência de evidência objetiva.

A inteligência é uma faculdade visiva porque não afirma nem nega sem ver antes. Por exemplo, qual o número de estrelas no céu? é par ou é ímpar? não afirmo nem nego, porque intelectualmente não consigo contar. É uma evidência.

Dizemos: "O homem é um animal racional". Afirmamos que é assim porque vemos que os outros animais não são racionais; podem até ter um certo grau de percepção, que não poderíamos chamar de inteligência, são espertos, instintivos, mas não inteligentes.

Se dizemos "o homem macaco existe", podemos negar isto porque vemos que o homem não é assim.

Inteligência, que deriva de intus-legere, significa "ver dentro". Quando a evidência nos dá os elementos, a inteligência elabora aquela visão interior.

A inteligência é também uma faculdade necessária porque, ao descobrir um ente, não pode deixar de julgar, pois não é livre como a vontade. Na vontade podemos optar: quero ou não quero; mas a inteligência não é livre neste aspecto.

A inteligência, quando vê algo, tem de julgá-lo, conhecê-lo, compreendê-lo; isto é o apetite intelectual. O homem é um animal feito para conhecer as coisas. Portanto, a inteligência não pode não julgar; ela tem de ir a fundo, e lá, tem de dar uma resposta.

Para concluir, a evidência objetiva é o motivo último da certeza; a verdade, evidentemente conhecida, faz que julguemos as coisas com certeza; o erro não o pode fazer, pois é uma certeza falsa, muitas vezes subjetivista, que não tranqüiliza a mente.

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Às vezes aprendemos coisas, mas ainda ficamos em dúvida e dizemos: "vou pesquisar melhor, investigar, aprofundar"; parece uma certeza, não é muito evidente, objetiva. Então, o erro não pode dar certeza. Sobre o erro não se pode construir uma sentença, por exemplo, pois como tal será anulada, reformada, e se transitada em julgado, será sempre considerada injusta.

Portanto, uma Certeza genuína, autêntica ou formal existe e o motivo é a evidência objetiva. Essa é a conclusão a que podemos chegar: motivo da causa.

Sempre se procura explicar as coisas pelas causas. Então, motivo ou motivação são as causas de algo ser desta ou daquela forma. O motivo último é a evidência objetiva.

3. Classificação dos tipos de Certeza

Agora vamos entrar no estudo de uma classificação da certeza, as espécies de certeza que podemos alinhar, dentro da Teoria do Conhecimento.

a. Certeza necessária

Certeza necessária é aquela que não sofre o influxo da vontade. A inteligência examina os motivos, julga e dá assentimento ao enunciável; como faculdade necessária, a certeza não pode negar-se a julgar, ou seja, é necessário julgar.

É o que ocorre permanentemente com o Juiz. O Juiz não pode deixar de julgar, pois se não encontrar solução na lei, vai preencher a lacuna, ou por analogia, princípios gerais, costumes ou até mesmo por eqüidade. Mas tem de decidir, porque a sentença é necessária, a função do Juiz é necessária, essencial à Justiça.

"O homem é imortal" é um enunciado e a inteligência não pode deixar de julgar: é imortal ou não é? "O mundo existe" é uma afirmação, julgamos isto: existe ou não existe?

Lembramos aqui os primeiros princípios da lógica. O primeiro enunciado: o ser existe ou não existe, o ser é ou não é, uma coisa é ou não é. Uma caneta é ou não é uma caneta. Se escrevo e verifico pelas circunstâncias que o objeto responde ao conceito de caneta, afirmamos que é uma caneta, que ela existe; logo, a não-caneta não existe.

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O que é Certeza

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Poderíamos exemplificar com o problema do mal. O que existe é o bem. O mal, como ser, não existe. O mal é o não-bem, aquilo que se deixou de fazer ou que se fez com erro.

O problema do nada: se os seres existem, o nada não existe. Uma Filosofia como a de Sartre, que se baseia sobre o nada é vazia, é uma literatura, uma novela. O nada não existe. Se desligarmos o interruptor da luz, ficaremos no escuro como se fosse noite. Não quer dizer que as trevas existem; o que existe é a ausência de luz. Na verdade, o que existe é o positivo. E se fizermos bem esta distinção, muitos problemas de ordem prática e da vida pessoal humana se resolveriam.

b. Certeza livre

Corresponde ao influxo da vontade em auxílio da inteligência. Pode exercer influência direta e próxima, como em muitos cientistas que descobrem uma vacina mas têm dúvidas: "Será que funciona?".

A inteligência teme, não tem certeza absoluta, mas a vontade a incita a ir adiante.

Então, esse influxo ou influência da vontade sobre a inteligência é legítimo: primeiro, para que a inteligência aceite aquilo que é evidente e não fique em dúvida; e segundo, porque o homem é pessoa concreta, é um eu total que julga, não apenas com a inteligência, mas com todas as suas aptidões, como a vontade e a liberdade.

Não é só a inteligência que age, que atua, mas também a vontade. O Juiz, quando decide condenar, quando toma a decisão que foi iniciada pela inteligência, pelo estudo das provas, ele tem dúvidas, mas como tem de decidir, ele diz: "Eu quero condenar", ele afirma sua decisão, isto é influxo da vontade. Essa decisão é a última palavra da vontade; pode haver o auxílio da intuição, mas como ele é independente, livre, pode absolver ou condenar, segundo sua alta prudência.

Portanto, não é somente a inteligência que julga, mas todo o ser humano com todas as suas virtudes intelectuais e espirituais.

c. Certeza natural

Um terceiro tipo é a certeza natural, também chamada vulgar ou direta: ela existe quando se conhecem os motivos, que excluem o

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medo de errar: está no plano da espontaneidade intelectual; promana espontaneamente da natureza da inteligência, que é conhecer conforme o real; a realidade é, talvez, o mais simples dos tipos de certeza, é uma certeza direta, também objetiva.

d. Certeza científica

Um quarto tipo de certeza é a científica: é o conhecimento explícito e distinto dos motivos, e também pode responder diretamente às dificuldades contrárias à certeza. De um lado é o conhecimento que a inteligência elaborou, conhecendo as causas, os motivos; e de outro, é esse poder, faculdade de responder às dúvidas contrárias à certeza.

É o método demonstrativo: primeiro se afirma e depois se nega aquilo que é contrário; método dialético do afirmo, nego, concluo.

A diferença entre a certeza natural e a científica está no modo de conhecimento. A certeza científica é mais perfeita e a natural, menos perfeita; mas ambas são autênticas e genuínas. A certeza científica acrescenta à certeza natural a passagem do "claro-confuso" para o "claro-distinto". Ou seja, a certeza científica traz clareza ao conhecimento.

Outro aspecto a valorizar em relação a estas duas certezas é o senso comum, expressão corrente, mas esquecida e não usada por falta de aprendizagem. O "senso do gênero humano" promana da mesma natureza da inteligência. Poderíamos chamá-la de intuição, talvez, mas intuição coletiva. E o bom senso é fundamental para operar com o Direito.

Neste campo da certeza natural e científica entra o senso comum. O cientista, quando observa seres microscópicos, seu senso comum mostra que é um micróbio, uma célula, ou uma célula envolvendo um micróbio. É o senso comum da observação, um óbvio que vem de dentro de nós, (não o que vem de fora, da natureza), está muito próximo da intuição. A intuição é uma luz fugidia, mas o bom senso é de todo momento.

O senso comum é esta cultura informe que existe em todas as pessoas medianamente educadas e que sabem como os fenômenos se verificam. No Direito pode ser aplicado ao aforisma quod plerumque accidit...

e. Certeza metafísica

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A certeza metafísica tem por motivo a necessidade absoluta, transcendental, superior a tudo, com exclusão de qualquer contraditório; porque, se existe algo de absoluto e opusermos um contrário a ele, deixa de ser absoluto e seria impossível; se é absoluto, se existe algo absoluto, é absoluto em si e, portanto, não existe outro; logo, é uma necessidade absoluta com exclusão do contraditório.

Necessidade absoluta é o que é assim, desta forma, e não pode ser nunca de outra maneira diferente; promana das relações primeiras das coisas com base na essência destas.

Absolutamente impossível é a contradição ou a repugnância interna tal que, em nenhuma hipótese, pode se realizar. A certeza metafísica, é, portanto, plena e perfeita.

Por exemplo, se afirmamos que todo o contingente contém a sua causa, ou que Deus existe, é uma certeza absoluta; se afirmamos que o homem é um animal racional, diferente dos demais, é uma certeza absoluta, que não admite contrário.

Esta certeza é metafísica porque transcende; além de tudo é uma idéia perfeita de que o homem, sendo racional, é diferente dos outros. Pode ser que haja pontos comuns, mas serão pontos comuns apenas naturalmente (das leis físicas).

Então, a certeza metafísica, por não admitir o contraditório, é absoluta e necessária.

A palavra necessidade tem na Filosofia conotação muito específica: necessário é aquilo que é e não pode deixar de ser. É indispensável. Necessidade é termo de aplicação filosófica precisa.

f. Certeza física

Tem por motivo a necessidade física, que é a determinação a algum modo de agir; promana da natureza física das coisas, segundo as leis físicas.

Natureza física é a natureza em ordem às operações das coisas entre si. A certeza física é suficiente e autêntica, mas hipotética. Por exemplo, se lançarmos um livro ao fogo, ele se queima; um objeto lançado no espaço cairá; Pedro, tentando caminhar sobre as águas, afundará...

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A certeza física é suficiente, autêntica; pois pode não se realizar; se eu não jogar o livro ao fogo, ele não queimará etc.

g. Certeza moral

Seu motivo é a necessidade moral, que tem por fundamento o modo humano de agir. A certeza moral é suficiente e autêntica; mas também hipotética: tem, como condição, que a vontade livre não viole a lei moral.

Não matar, não mentir, não roubar, são leis morais. Então, a necessidade moral está fundada nas inclinações primeiras da natureza racional e promana das leis morais, como conjunto das inclinações naturais. Que inclinação é esta? Fazer o bem e evitar o mal.

Podemos fazer o mal, mas ele é um desvio na prática do bem. No Direito entra o problema da intenção, se foi culpa ou dolo. De qualquer maneira, a tendência natural no homem é fazer o bem.

Ela é hipotética também porque, se não fizermos o mal, se não transgredirmos a lei moral, não há transgressão. Se fizermos, estamos transgredindo. Mentir, passar cheque sem fundo, fazer contrato fraudulento, são expressões da vontade humana contra as leis morais.

A distinção entre Moral e Direito é difícil porque são extraordinariamente semelhantes, implicando-se mutuamente: não é possível ser Homem moral sem ser justo; não se pode ser Homem justo sem o sentido moral.

Embora distintos, Moral e Direito se assemelham, por causa de sua origem comum: Luis Vela Sanchez 3 opta por uma terminologia especial, chamando Ética à Filosofia prática, às ações especificamente humanas, e ético o homem responsável pelos seus atos, e cujos efeitos lhe são imputáveis.

A Ética não é senão Moral + Direito. Da Ética constam sempre dois elementos: um, pessoal, subjetivo, o sujeito que as realiza; e outro objetivo, a ação mesma, que é uma objetivação ou concreção da vontade. Toda ação é sempre espiritual-corporal; mesmo um puro desejo se realiza com o instrumento do nosso corpo; uma coisa é o desejo, outra o objeto desejado. A Ética trata, portanto, das ações humanas em dois campos, subjetivo e objetivo: assim, Moral é a Ética 3. Anotações de aulas de Filosofia do Direito na Facultad de Derecho de la Universidad

Pontificia Comillas de Madrid (1989-1991).

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vista sob o aspecto subjetivo-objetivo (ESO); e Direito é a Ética vista sob o aspecto objetivo-subjetivo (EOS).

O que ocorre, então, é que a Moral acentua o aspecto Subjetivo e o Direito, o Objetivo; a acentuação da Moral é o Subjetivo Unilateral, e a acentuação do Direito é a Inter-subjetividade, a Bilateralidade Recíproca. A Moral termina no Sujeito que a executa, sem exigir a presença do outro: p.ex., pagar espontaneamente dívida natural, sem que o credor o exija. Já o ato jurídico é intersubjetivo, bilateral, entre dois ou mais sujeitos e sem eles não há ação jurídica: pagar dívida é um dever jurídico.

Estas três últimas espécies, metafísica, física e moral, refletem três graus de certeza. Enquanto a certeza metafísica é perfeita, as certezas física e moral são imperfeitas, sem deixarem de ser autênticas e verdadeiras.

Quanto às certezas física e moral, trata-se de casos concretos de aplicação das leis físicas e morais. Podemos estar certos de que esses fatos concretos nos oferecem verdadeiras certezas? A resposta é sim, porque:

1º) na certeza física vigora a necessidade entre as causas naturais e seus efeitos; não são meras probabilidades, mas certezas autênticas; a lei da gravidade nos dá uma certeza autêntica. Devemos descer as escadas ao invés de pularmos pela janela. A lei da gravidade nos adverte desta certeza.

2º) na certeza moral, igualmente, vigora a necessidade entre as causas livres e seus efeitos, não como probabilidades, mas como certezas autênticas; se mentimos, v.g., na emissão de cheque sem fundo, poderemos ser presos ou condenados a pagar.

Não sendo, pois, probabilidades, são certezas autênticas, sobre um fato já realizado e presente, certezas sobre a própria existência das leis físicas e morais.

h. Certeza Jurídica

Interessa estudar a certeza jurídica, que tem por motivo a necessidade jurídica; a necessidade que os homens têm de leis para se governarem, para se organizarem.

Está fundada nas inclinações primárias da natureza social do homem, modo de agir humano em sociedade, que determinam o

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ordenamento jurídico; promana da natureza das coisas e da natureza do homem; é a juridicidade dos atos humanos.

A certeza jurídica envolve os aspectos não normatizados na lei positiva; a verdade jurídica e sua correspondente certeza jurídica, extrapolam da lei escrita; por isso, é um conceito metajurídico 4, como justiça ideal, direito natural ou princípios gerais do direito.

A certeza jurídica se constitui em certeza autêntica porque não se confunde com a existência das leis naturais e positivas, mas ilumina e orienta a formulação e aplicação das leis. É uma necessidade que vigora entre as causas jurídicas e seus efeitos. Não é uma mera probabilidade, mas uma certeza autêntica (direito à vida, à liberdade, à segurança, a própria justiça): é um dever-ser, enquanto Lei Jurídica, como a Lei Moral, ambas subordinadas à ética, que é o gênero dos atos humanos.

Lei e Moral são espécies do mesmo gênero. Por isso o Direito está permeado pela Moral, e num sentido lato, elas se identificam. Direito à vida, à propriedade, à liberdade, certezas jurídicas de Direito natural. Mas, estrito senso se distinguem. Matar alguém: reclusão de 6 a 20 anos, é uma certeza legal de Direito escrito e hipotético, condicionado a que a vontade livre não viole a Lei escrita; verificada a causa (caso típico: matar), dá-se o efeito (condenação); se A é, é B.

Modernamente procura-se relacionar certeza legal com linguagem jurídica, estudados no campo da metodologia e da Lógica Jurídica; cogita-se mesmo uma lingüística jurídica: neste aspecto a certeza legal se reduz a uma certeza lingüística: certo é o que a Linguagem diz que é.

Ora, isto nos parece artificial, desligado do conjunto total do conhecimento e da natureza das coisas e do homem, pois certeza é muito mais que a Linguagem, é um conceito metafísico e lógico, de que decorrem a certeza moral e a jurídica.

Na verdade, a certeza legal é fundada em valores lógicos e éticos, portanto, morais e jurídicos, inerentes ao Direito, conforme a teoria tridimensionalista do professor Miguel Reale: Fato, Valor e Norma.

Ora, a Sociedade necessita de julgamentos autênticos e verdadeiros para discernir o justo do injusto, para procurar agir certo, segundo o Direito, e para evitar agir errado, contrário ao Direito.

4. Segundo Luis Alberto WARAT, sistema metajurídico é um direito superior ideal. Abuso

del Derecho y lagunas de la Ley (1969), p. 99; particularmente o identificamos com o Direito natural.

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Sociedade, aqui, tratada como conjunto de todos os cidadãos, com significação especial no mundo jurídico: a certeza jurídica ou certeza do Direito se destina especialmente aos operadores da Justiça em especial (advogados, funcionários de justiça, promotores e procuradores de justiça, juízes e tribunais de justiça), mas não exclui nenhuma pessoa, pois a certeza jurídica, como garantia do Direito que é, deve ser válida e legítima para toda a nação e qualquer classe de cidadãos.

Nesse sentido, a certeza legal é o reconhecimento de condutas humanas, mediante investigação do caso concreto, particular, como conclusão de um processo lógico, deôntico, normativo, teleológico e axiológico de aplicação das leis sobre os fatos.

É um processo de conhecimento pelo qual se dá a formação do convencimento do Juiz para determinar o certo segundo a Lei; corresponde à verdade processual ou legal (que pode ser formal ou real, segundo os direitos subjetivos possam ser disponíveis ou indisponíveis). 5

4. Conclusões

Como conclusão sobre o conhecimento do Direito e para alcançar a certeza da verdade, verifica-se que a segurança da Lei só existe enquanto esta se aplica. Sendo hipotética a norma, a segurança só emerge se a hipótese se realiza; é a normalidade do Direito (como no contrato eficaz, quando cumpre ou alcança os objetivos jurídicos para o qual foi avençado). Se a Lei não funciona no suposto previsto, tem-se a patologia do Direito; a dúvida fundada, sobre o pacto ou sobre a própria regra jurídica, gera incerteza.

A segurança, portanto, como a lei, é um prognóstico. 6

5. Quando no uso ordinário se fala de “verdadeiro”, em relação a fatos humanos ou dados

da Ciência, estamos nos referindo à “veracidade”, que no fundo é um imperativo da Verdade: consiste em não mentir, não dizer algo contra a própria consciência; mas é possível que, sem contrariar a consciência, os homens incorram em declarações contraditórias. Cf. Álvaro D’ORS, Derecho y sentido común. Siete lecciones de derecho natural como límite del derecho positivo (1995), p 48. Cf. nosso Poderes Éticos do Juiz, pp. 47ss; e Elício DE CRESCI SOBRº., Dever de veracidade das partes no novo código de processo civil (1975),p.98.

6. Álvaro d’ORS explica que tudo o que ocorre antes da decisão são “prognósticos de Direito”, são objeto da Ciência da Organização, Ciência social, mas não da Ciência do Direito ou Jurisprudência. Op. cit., p. 48, N. 6; sobre a Verdade no Direito, afirma que fatos verdadeiros são os fatos verdadeiramente provados; são fatos jurídicos porque entram na definição “daquilo que aprovam os juízes”, N. 8; mais adiante enfatiza que o Direito, como ato de autoridade, é declaração de prudência e, portanto, ato intelectivo e

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Tomemos, ao acaso, o art. 159 do Código Civil: aquele que violar direito ou causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano; esta regra protetora, ampara, assegura, garante que o devedor pagará uma indenização; esta segurança, objetivada na Lei, gera, no credor, a certeza do seu direito; mas a dúvida, desde que instaurada sobre esse direito certo a uma indenização, produz um estado subjetivo de incerteza.

Logo, enquanto norma geral e abstrata, a Lei traz implícita uma Segurança ou garantia de realização do comando que ela contém; porém, nos casos particulares (como nas relações litigiosas, nos pactos negociais ou nos atos ilícitos), enquanto a norma não se concretiza, a Segurança não é tão certa, nem a garantia tão plena, pois as relações jurídicas não escapam a um percentual de incerteza, natural no ser humano.

Daí exigirem-se normas anteriores e superiores às regras jurídicas, como os princípios éticos de boa fé ou fidúcia, honestidade, lealdade, respeito à palavra empenhada, aos pacta servanda, até mesmo regras morais ou de Direito material.

A aplicação da Lei, por isso, seja nas relações negociais (entre particulares), seja nas relações administrativas ou judiciais, exige o conhecimento da realidade jurídica em todos seus aspectos (econômicos, sociais, morais etc), visando às conseqüências jurídicas pretendidas (o resultado de um negócio ou de uma ação).

E o conhecimento valorativo das leis, dos fatos e das circunstâncias, quanto mais esclarecedor e abrangente, mais certeza gera nos destinatários do Direito.

Por isso, "conhecer" a Lei (segurança objetiva) e o seu próprio direito (certeza subjetiva) são faces da mesma moeda ou mãos da mesma via: o caminho que vai da segurança (geral, abstrata) à certeza (particular, concreta) é o mesmo que vem da certeza à segurança; não há como falar em certeza do direito para o caso concreto se esta não se traduz em segurança do caso particular; garantido este direito certo a segurança emerge e se reafirma como resultante final da dinâmica jurídica.

não volitivo. E arremata: “No es derecho lo que aprueban los jueces porque así lo quieren, sino porque es su opinión o sentencia ... La decisión del juez es volitiva como decisión, pero se funda en el conocimiento: el juez, primero conoce, y luego decide”, N. 16, p.53. Escritos varios sobre el Derecho en crisis (1973).

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Bibliografia:

1. José Maria de ALEJANDRO. Gnoseologia, Madri, BAC, 1969. 2. Mozar Alves COSTA. O Conceito de “Lei” na Metafísica e na Ciência Positiva do

Direito (Santo Tomás de Aquino e Pontes de Miranda). Dissertação de Mestrado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1983.

3. Elício DE CRESCI SOBRINHO. Dever de veracidade das partes no novo código de processo civil. S.Paulo, Livr. Jurídica Vellenich, 1975.

4. ______. Idem. ENCICL. Saraiva do Direito, vol. 47:534. 5. Álvaro D’ORS. Escritos varios sobre el Derecho en crisis. Roma-Madrid: Consejo

Superior de Investigaciones Científicas, 1973. 6. ______. Derecho y sentido común. Siete lecciones de derecho natural como límite

del derecho positivo. Madrid, Cuadernos Civitas, 1995. 7. Werner GOLDSCHMIDT. El sentimiento de evidencia. In: La ciencia de la Justicia

(Dikelogia). Madrid: Aguilar, 1958, p.39. 8. Ylves José Miranda GUIMARÃES. Direito Natural. Visão metafísica e antropológica.

Rio: Forense Universitária, 1991. 9. Hans KELSEN. La interpretación como acto de conocimiento o de voluntad. In:

Teoría Pura del Derecho. México: Porrúa, 1993, 7ª ed.,p. 353. 10. Stanislaus LADUSÃNS, S.J. Gnosiologia Pluridimensional, São Paulo, CONPEFIL,

1980, 2ª ed. mimeografada. 11. Silvio de MACEDO. Certeza, verb. ENCICL. Saraiva do Direito, v.14, p.149. 12._________ Certeza Legal, ENCICL. Saraiva Dir., v.14, p. 190. 13._________ Compêndio de Axiologia Jurídica, Rio, Forense, 1986. 14. Carlos Lopes de MATOS. Um capitulo de história do tomismo. A teoria do

conhecimento de Tomás de Aquino e sua fonte imediata. S.Paulo: Revista de História da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP, 1959 (separata), 105 pgs.

15. Jacy de Souza MENDONÇA. O sentido do conhecimento jurídico. In: Humanismo Pluridimensional. (Atas da 1ª Semana Internacional de Filosofia) S. Paulo, Loyola, 1974, v. 1, p. 398-410.

16. Pontes de MIRANDA. O Problema Fundamental do Conhecimento, Rio de Janeiro, Borsoi, 1972. Sistema Positivo de Direito

17. Miguel REALE. Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, Saraiva, 1986, 4ª ed. 18. Mário Ferreira dos SANTOS. Filosofia Concreta, São Paulo, Logos, 1961, 4ª ed., 3

vols. 19._________Ontologia e Cosmologia, São Paulo, Logos, 1954. 20._________Teoria do Conhecimento (Gnoseologia e Criteriologia). S. Paulo,

Edit.Logos, 1954. 21. Luis Alberto WARAT. Abuso del derecho y Lagunas de la Ley. Buenos Aires,

Abeledo-Perrot, 1969.

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O que é a Verdade

SUMÁRIO: 1. A Verdade como Correspondência ou Relação. 2. A Verdade como Revelação ou Manifestação. 3. A Verdade como Conformidade. 4. A Verdade como Coerência. 5. A Verdade como Utilidade. 6. Verdade e conjetura. 7. A Verdade no Direito. 8. Conclusões.

Vimos o problema da certeza e seus vários tipos. Em aprofun-damento a esse tema, devemos abordar a questão da verdade, ainda como problema do conhecimento, ou seja, como o homem conhece as coisas e chega à verdade.

Um primeiro ponto diz respeito à validez ou eficácia dos procedimentos cognoscitivos ou processos de conhecimento. É a quali-dade pela qual um procedimento cognitivo resulta eficaz ou tem êxito; pode ser um processo mental, lingüístico ou simbólico; ele prescinde da distinção entre a definição da verdade e critério da verdade.

Segundo ponto: mostrar que na Filosofia existem cinco con-ceitos de verdade: o primeiro, como correspondência ou relação; o segundo, como revelação ou manifestação; o terceiro, como conformidade a uma regra; o quarto como coerência; e o quinto como utilidade. Os mais conhecidos e difundidos na Filosofia são os dois primeiros: conceitos de verdade como correspondência ou relação e como manifestação ou revelação; eles não se excluem, pois um é racional e o outro é metafísico-teológico; encontram-se freqüentemente num mesmo filósofo; mas são distintos e um não se reduz ao outro; são separados, mas se encontram juntos muitas vezes. 1

1. A Verdade como Correspondência ou Relação

1. Nicola ABBAGNANO. Diccionario de Filosofia (1992). Verbete Verdad, p.1180ss, a quem

seguiremos nas citações.

Capítulo III

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O primeiro conceito de verdade é o de correspondência ou relação: é o mais antigo e mais difundido, desde os pré-socráticos. Platão 2, em seu diálogo sobre o discurso, afirmava: "verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são, falso o que diz como não são".

Aristóteles, 3 por sua vez, ensinava que: "Negar o que é e afirmar o que não é, é o falso; enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é o verdadeiro". Este filósofo, para nós, dos mais importantes, enunciou dois teoremas fundamentais sobre este conceito de verdade: o primeiro, que a verdade está no pensamento ou na linguagem, não no ser ou na coisa 4. A verdade, portanto, está dentro de nós, no pensamento ou naquilo que falamos. O segundo: a medida da verdade é o ser ou a coisa, não o pensamento ou o discurso 5; por exemplo, uma coisa não é branca porque se afirma como verdade que é tal, mas se afirma como verdade que é tal porque é branca.

Depois destes pensadores, os estóicos e os epicúreos seguem admitindo que verdade é a correspondência do conhecimento com a coisa. Então, a verdade como correspondência ou relação se dá entre o conhecimento e a coisa. Não sabemos que objeto é este, até o momento em que a inteligência nos explica o que é isto, como o objeto tal. Então, a verdade é a relação ou a correspondência entre a coisa e o nosso pensa-mento. Este raciocínio vai prevalecer na Filosofia, até hoje.

Em relação a estes conceitos, Santo Agostinho 6 definia o que era "verdadeiro", não a verdade, "o que é assim, tal como aparece", ou é "o que revela o que é ou que se manifesta a si mesmo". Ele identifica o Verbo ou Logos como uma primeira, imediata e perfeita manifestação do Ser.

Já Santo Tomás 7 define a verdade - esta é a expressão mais freqüente na Filosofia - como: "conformidade entre o entendimento e as coisas", observando, portanto, o teorema de Aristóteles: são as coisas e não o entendimento que constituem a medida da verdade.

O filósofo brasileiro Carlos Lopes de Matos, em precioso trabalho sobre a teoria do conhecimento em Santo Tomás, assim analisa o ensino do Doctor Angelicus: 2. Crátilo, 385 b. 3. Metafísica, IV, 7, 1011 b 26ss. 4. Idem, VI, 4, 1027 b 25. 5. Idem, IX, 10, 1051 b 5. 6. Solilóquios, II, 5; Da Verdadeira Religião, 36. 7. Suma Teológica, I, q. 16, a.2; Contra os gentios, I, 59; Sobre a Verdade, q. 1, a. 1.

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Uma característica da verdade é a certeza, que consiste na adesão do intelecto a seu objeto - o verdadeiro. Não se trata do sentimento da certeza, mas da certeza objetiva, fundada na evidência, e que só é perfeita quando se atinge o juízo. Eis porque ela não existe no erro.

A verdade estritamente dita é, portanto, a do intelecto que julga. Consiste num ser de razão, mas tem fundamento na realidade. Esta última é a causa da verdade; não se diz, porém, que ela mesma é verdadeira senão num sentido derivado, como a saúde se diz num sentido secundário do remédio, que é sua causa. Trata-se neste caso da verdade das coisas em relação a nosso conhecimento: dizemos verdadeira uma coisa quando tem tais aparências externas que ela nos faz conhecer o que é em si, e falsa, se nos induz ao erro quanto a sua natureza. 8

Existe, pois, uma verdade das coisas, que é aquela pela qual se assemelham à sua causa primeira. A "coisa" a que se deve conformar o entendimento é a res intellecta, ou seja, a coisa tal como é apreendida, no seu exterior, pelo entendimento. Então, o nosso entendimento, nossa inteligência deve se conformar a este objeto como ele é no seu exterior ou externamente à nossa compreensão; é a evidência que mais uma vez aparece como fonte de verdade.

“A evidência é critério de verdade, ou seja, algo distintivo da verdade, (verdade do conhecimento). A evidência envolve um mostrar-se do próprio ente, o qual significa que a verdade tem sua medida no ser das coisas. A evidência constitui o necessário fundamento lógico da certeza”.9

Do Século XIV em diante, este conceito de adequação ou conformidade perde seu alcance metafísico e teológico e passa a ter um significado estritamente lógico ou semântico, a relação entre a coisa e o intelecto.

Após esse século, a Filosofia começa a mudar, a partir dos nominalistas, Ockham e Duns Scott, franciscanos ingleses; Ockham 10 identifica verdade com proposição ou afirmação verdadeira; com isso, nega valor metafísico à palavra verdade.

Entretanto, houve um grupo de filósofos platônicos, da Escola de Cambridge, que manteve, nessa época, este caráter metafísico da noção de correspondência; definiram a verdade como conformidade da coisa consigo mesma ou com a própria essência, contida no entendimento.

8. Um Capítulo da História do Tomismo. A Teoria do Conhecimento de Tomás de Aquino e

sua Fonte Imediata (1959), pp.51-52. 9. Mário Ferreira dos SANTOS. Teoria do Conhecimento (1954), p. 260. 10. Suma Lógica, I, 43; Quodlibetais, I, q. 24.

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Hobbes prossegue na linha nominalista, entendendo a verdade como simples atributo das proposições ou afirmações, assim como Locke.11 Leibniz12 rejeita mais ainda a noção metafísica da verdade, ao dizer: Verdade é a correspondência das proposições que estão no espírito do homem, aquilo que pensamos ou afirmamos em relação às coisas de que se trata.

Wolff 13 já divide a verdade em dois conceitos: o primeiro é uma definição nominal da verdade e o segundo, uma definição real da verdade. Definição nominal: é a concordância do nosso juízo com o objeto, ou seja, com a coisa representada no intelecto. Definição real ou noção lógica: é a determinabilidade do predicado mediante a noção do sujeito.

Baumgarten 14 voltou à noção de verdade metafísica de forma muito original e bem platônica. Sua definição é bela: verdade é a ordem do múltiplo na unidade. O problema do um e do múltiplo, a ordem do múltiplo na unidade, noção ontológica tanto estudada por Platão, 15 e que vai nos interessar diretamente no estudo da Lei e da Jurisprudência, pois aquela é una (genérica) e esta múltipla (casos particulares). 16

Kant, 17 por sua vez, insiste na definição nominal da verdade: o acordo do conhecimento com seu objeto. O filósofo de Koenigsberg afirma ter encontrado um critério formal da verdade, a conformidade do conhecimento a regras próprias; se o conhecimento obedecer a regras próprias ele conhecerá a verdade formalmente.

Nas Filosofias mais recentes, a partir do século XIX, este conceito da verdade como correspondência, às vezes está suposto ou escondido, mas muitas vezes vem explicitamente definido, especial-mente entre os realistas. Parece ser uma posição correta: definir a verdade como uma ponte entre o pensamento e o objeto pensado, como “correlação”. Por exemplo: uma parede, supõe-se que seja branca; a verdade será esta, porque o nosso entendimento sobre o branco já existe.

11. Ensaios, II, 32, 3-19. 12. Novos ensaios, IV, 5, 11. 13. Lógica, §§ 505 e 513. 14. Metafísica, § 89. 15. Mário Ferreira dos SANTOS. O Um e o Múltiplo em Platão. “Parmênides” em Platão

(1958). 16. V. Cap. XII, Jurisprudência: fonte última da segurança jurídica. 17. Crítica da Razão Pura. Lógica, Introd., III.

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A verdade processual

E na Justiça, como é que o Juiz decide, diante de uma prova, se alguém é culpado ou não? foi autor ou não de um dano? Sua função é buscar esta verdade. Sabemos que há uma distinção entre a verdade no processo civil e no processo penal; no penal, bem como nas ações de ordem pública, essa verdade deve ser real ou o mais próximo da realidade, não valendo as ficções, ou presunções absolutas; ao passo que no civil, ao menos em relação aos direitos disponíveis, a verdade é a que as partes trazem para o processo, está nas provas que apresentam; é aquela provada nos autos. Pode não ser a verdade real, mas nem por isso deixará de haver justiça. Por isso, o problema da verdade é importante para o Juiz e este conceito da verdade como corres-pondência ou relação entre o pensamento e o objeto, também é válido para o juízo decisório.

No campo da lógica contemporânea, Alfred Tarski 18 afirma que um enunciado ou afirmação é verdadeiro no caso de designar um estado de coisas existentes; um enunciado é verdadeiro se é satisfeito por todos os objetos, e falso em caso contrário. Ele introduz uma noção semântica de verdade; por exemplo, o enunciado "a neve é branca" indica apenas que, ao afirmarmos ou rejeitarmos este enunciado deve-mos estar prontos para afirmar ou rejeitar o enunciado correlativo: “a neve é branca" é verdadeiro. Quer dizer, uma verdade tem de afirmar outra verdade, para que a primeira seja verdadeira.

Seria o que se chama de contraprova, como técnica de argumentação. Não basta que se afirme "este objeto é um livro"; este enunciado deve ser provado como verdadeiro; daí os "porquês": a boa técnica prova com três argumentos: por que este objeto é um livro? Primeiro, porque foi adquirido por indicações bibliográficas; segundo, porque serve para leituras e consultas; terceiro, porque conhecemos o autor e podemos citá-lo em trabalhos doutrinários.

Estas propriedades só podem ser atribuídas a um objeto que se conhece por livro. Também no campo do Direito, o advogado sabe muito bem que deve raciocinar, argumentar, provar suas razões da verdade, e o mesmo se aplica ao Juiz, que deve justificar suas decisões com fundados argumentos.

É assaz conhecida a original teoria dos jetos de Pontes de Miranda, que assim a explica, em referência sucinta:

“A verdade é inexistente como ser, não há verdades descobríveis; há fatos, relações sobre as quais se enunciam proposições verdadeiras, ou falsas: a verdade é apenas... a qualidade das proposições verdadeiras. ... Portanto, a ciência não pode ficar na coincidência entre pensamento e

18. Cf. ABBAGNANO, op. cit., p. 1182.

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O que é a Verdade 48

objeto (identidade ou analogia entre eles). Por processo seu, seguro, reduz tudo a jetos (fatos e pensamentos são jetos, a univocidade da correspondência entre um símbolo e uma experiência já se passa dentro da ciência, que não começa ex nihilo): o cálculo e a experimentação; os valores da experiência correspondentes aos do cálculo.” 19

2. A Verdade como Revelação ou Manifestação

Passemos ao segundo conceito de verdade: como revelação ou manifestação. Ela se apresenta sob duas formas, empírica e metafísica. A verdade empírica é a que se manifesta imediatamente ao homem, a que se revela de pronto; é uma sensação, intuição ou fenômeno. A fenomenologia, em grande parte, se fundamenta neste conceito.

A verdade metafísica se revela por modos de conhecimento excepcionais. Veja-se o problema de conhecimentos privilegiados, através dos quais se faz evidente a essência das coisas: o "ser" das coisas ou mesmo o seu princípio, o princípio supremo ou geral. A característica fundamental é a importância da evidência: aquilo que é evidente, que se manifesta como uma evidência. Temos aqui algumas afirmações sobre os cirenaicos, epicúreos, estóicos, mas vamos chegar logo á modernidade. Ockham 20 coloca o problema do conhecimento intuitivo, uma noção de manifestação imediata das coisas ao homem, em seus caracteres e em suas relações.

Para Plotino, 21 o mais importante dos neoplatônicos, a Verdade não está de acordo com outra coisa, mas de acordo consigo mesma; “nada enuncia fora de si, mas enuncia o que ela mesma é".

É o princípio da não-contradição: tal livro é ou não é livro; o livro está de acordo com ele mesmo, pois não pode ser outra coisa; então, a verdade nada enuncia fora de si, porém enuncia o que é ela mesma.

Depois, Santo Agostinho, 22 também neoplatônico, afirmou que deve existir uma natureza tão próxima da Unidade suprema, de modo a reproduzi-la em tudo e ser "um" com ela; esta natureza é a Verdade ou o Verbo. A verdade, aproximando-se da Verdade, acaba sendo uma só, e a última Verdade seria Deus. Na Escolástica, segundo

19. O problema fundamental do conhecimento (1972), pp. 196-198. 20. ABBAGNANO, op. cit., p.1182. 21. Idem, p. 1183. 22. Da verdadeira religião, 36.

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O que é a Verdade 49

Santo Anselmo 23e Santo Tomás, 24 a verdade é, em primeiro lugar, o próprio entendimento ou Verbo de Deus.

Chegamos a Descartes, 25 racionalista, mas não menos metafísico: ele concebe a verdade a partir do critério da evidência, afirmando a existência de verdades eternas. O cogito de Descartes é uma evidência originária, a que revela ao sujeito pensante sua própria existência. Há uma frase sua, quase um teorema para os cientistas: deve ser considerado como verdadeiro tudo o que se manifesta de modo evidente.

O que ele chama de verdades eternas? São verdades garantidas e reveladas diretamente por Deus que, por isso são eternas. 26 É o que a Filosofia clássica chama de leis eternas ou leis naturais, que não podem ser revogadas, como a lei da gravidade.

Hegel 27 afirma que a idéia (pois Hegel é idealista, quase platônico) é a verdade, porque a verdade é a resposta da objetividade ao conceito. Diz Hegel: todo real, enquanto verdadeiro, é a idéia e tem sua verdade só por meio da idéia e nas formas dela. Em síntese, ele afirma a objetividade do conceito ou racionalidade do real.

Husserl, 28 conhecido fenomenólogo, afirma que a verdade e a evidência pertencem não só aos objetos teóricos mas também a todos os objetos da consideração fenomenológica, sejam valores, sentimentos, intuições etc.

Portanto, quando temos uma intuição, um sentimento, como evidência, isto é uma verdade. Como é que os namorados sabem que se gostam? Existe alguma medida dessa verdade? Eles se amam e este gostar é um sentimento, uma verdade intuitiva, contida nesse relacionamento.

Heidegger 29 diz que a verdade é uma alethéia, revelação ou descobrimento da verdade; pela etimologia desta palavra grega há uma estreita relação entre o modo de ser da verdade e o modo de ser do homem.

23. De Veritate, 14. 24. De Veritate, q. 1, a. 4. 25. Meditações, IV, 16. 5. 26. Objeções e Respostas, 541. 27. Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 213. 28. Idéias sobre Fenomenologia Pura, I, § 136. 29. O ser e o tempo, § 44.

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O que é a Verdade 50

Trata ele o homem como o "ser-aí"; o homem não é o "ser-para-si", não é "ser-em-si", como pretendia Sartre, mas o homem é um “ser-para" ou “ser para o outro", como nos ensina a Filosofia cristã.

O homem é para a mulher, o professor é para os alunos, os pais são para os filhos; é, portanto, um ser de finalidades.

Heidegger fala do "ser-aí": o homem é um ser enquanto está aqui, enquanto a verdade pode se revelar, e se revela somente ao homem; há uma estreita relação entre o modo de ser da verdade e o modo de ser do homem, como "ser-aí".

Afirma que o lugar da verdade não é o juízo do homem, o julgamento. A verdade não é revelação de caráter predicativo, mas consiste no ser descoberto do ser das coisas ou destas próprias coisas e no ser descobridor do homem. Todo o descobrimento do ser, enquanto descobrimento parcial, é também o seu descobrimento. Porquanto descobrir-se é conhecer-se.

Aquí voltamos a Sócrates: "conhece-te a ti mesmo," gnoti seautón. Santo Agostinho, uma das expressões mais fecundas do existencialismo personalista, repete: Noli foras ire, in teipsum redi; in interiore homine habitat veritas, significando que a Verdade reside dentro do homem. 30

3. A Verdade como Conformidade

Estudemos o terceiro conceito: Verdade conforme a quê? Conforme a uma regra ou a um conceito. Platão foi o primeiro a enunciá-lo: "tomando como fundamento o conceito que julga o mais sólido, tudo que parece estar de acordo com ele, eu considero verdadeiro, sejam causas ou coisas existentes; o que não me parece estar de acordo com ele, considero não verdadeiro”. 31

O mesmo Agostinho Aurélio, 32 enveredando por essa linha, afirmava existir por sobre a nossa mente uma Lei que se denomina

30. Da verdadeira religião, I, 39, 72. Cfr. Luis VELA, El derecho natural en Giorgio Del

Vecchio (1965), p. 231; Ismael QUILES. La interioridad agustiniana (1989), p.14. Para Michele Federico SCIACCA, conhecer é julgar; logo, conhecer significa “crítica”: crítica significa precisamente juízo; antes de Kant, Vico se havia dado conta disto. Mas, quando um juízo é verdadeiro? que é o que garante a validez do juízo? La interioridad objetiva (1955), p.32.

31. Fédon, 100a. 32. Da verdadeira religião, 30-31.

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O que é a Verdade 51

Verdade, e que podemos julgar todas as coisas de conformidade com ela, ainda que escape ao nosso juízo.

Ora, isto está de acordo com princípios de Direito natural, pois o legislador pode fazer leis de conformidade com uma Justiça superior, ideal; o mesmo se dá com Juízes ou com intérpretes, aplicadores das leis ou administradores.

Não basta abrir códigos e verificar o que a norma diz; além da norma existem valores não escritos. As normas precisam ser valorizadas de acordo com as circunstâncias e pessoas envolvidas no caso concreto 33. O juiz não julga nem raciocina matematicamente, pois a lógica do julgador deve ser razoável, o juízo prudencial não se dá pela letra da Lei, pela norma em si mesma, mas segundo a natureza das coisas e a natureza do homem. 34

Quanto ao problema da Segurança e do Direito, do conhecimento e da verdade, existem leis que independem da vontade humana, que estão fora e acima de nossa mente e do campo do Direito, podendo-se dizer que são de Direito natural.

Voltando ao conceito da conformidade, propriamente, o filósofo mais influente foi Kant; 35 ele utilizou a noção de conformidade como critério da própria verdade. Não é definição da verdade, mas conceito da própria verdade, porque, como nominalista, sua definição é de correspondência.

Dizia Kant que o critério pode concernir somente à forma da verdade, isto é, ao pensamento em geral; consiste na conformidade com as leis gerais necessárias do entendimento; o que contradiz estas leis é falso, porque nesse caso o entendimento é contra suas próprias leis, portanto, contra si mesmo.

Entretanto, parece-nos que este critério formal para estabelecer a verdade material ou objetiva do conhecimento, a tentativa para transformar esta regra de valorização formal em órgão de conhecimento

33. No Criton, de Platão, Sócrates, já condenado à morte, se recusa a fugir da prisão, pois

significaria invalidar a lei; ainda que o Juízo e a sentença se considerem injustas, diz, temos que aceitar suas consequências para que as leis justas sejam obedecidas. Ensina a Criton não se preocupar com a opinião da maioria, pois os mais capazes reconhecerão a verdade dos fatos, mas preocupar-se com o Justo, o Belo e o Bom, pois o importante não é viver, mas viver bem! Cfr. Criton ou O Dever do Cidadão.

34. Neste sentido predomina modernamente a Wertungsjurisprudenz, jurisprudência estimativa ou de valoração, que busca os princípios ético-jurídicos para aplicação da lei. VALLET DE GOYTISOLO. Metodología de las Leyes (1991), p. 397; Metodología de la Determinación del Derecho (1994), p. 1205.

35. Crítica da Razão Pura, Lógica, Introd. III, VII.

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efetivo, não é mais do que um uso dialético, e portanto, ilusório, da razão.

Outro filósofo alemão, Windelband 36, disse que o que mede e determina a verdade do próprio conhecimento não é uma realidade externa, inalcançável e incognoscível, mas a regra intrínseca do próprio conhecimento. Rickert 37 também identificou o objeto do conhecimento com uma norma à qual o conhecimento deve se adequar para ser verdadeiro.

Resumindo, é de Kant o pensamento mais influente: para o filósofo, a conformidade à regra do pensamento é o critério da verdade; mas os neokantianos dizem que a conformidade à regra é a única definição da própria verdade. Basta que se adote uma regra ou fórmula de pensamento, para que se descubra a verdade e ela é tão somente aquilo.

4. A Verdade como Coerência

Vejamos esta conceituação da verdade como coerência; apareceu no século XIX, na Inglaterra e nos Estados Unidos, no chamado movimento idealista, em que surgem duas obras interessantes 38, a propósito da experiência humana. Que é a experiência humana? O contraditório não pode ser real; portanto, a realidade ou a verdade é coerência perfeita; aqui se trata da coerência com a realidade última que, para os autores desse movimento, é a Consciência Infinita ou Absoluta.

Eles admitem graus de verdade; é um tipo de julgamento a partir do grau de coerência que se possua, mesmo aproximativa ou imperfeita. Afirmam estes autores que esta conceituação de verdade tem antecedentes em Spinoza, quando a chama de "terceiro gênero de conhecimento", que seria "o amor intelectual de Deus", o conhecimento da ordem total e necessária das coisas, que significa o próprio Deus.

5. A Verdade como Utilidade

36. Prelúdios. 37. O objeto do conhecimento. 38. B. BOSANQUET. Lógica ou morfologia do conhecimento (1888). F.H.BRADLEY.

Aparência e Realidade (1893).

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O último conceito a analisar é sobre a verdade como utilidade; sabemos que o utilitarismo e o pragmatismo são Filosofias de ação. Nietzsche, que no fundo era utilitarista, buscou o super-homem; para ele, verdadeiro significa o que é apto à conservação da humanidade. Isto penetrou na raiz da ideologia nazista, povo é aquele de raça pura:

“Verdadeiro não significa senão o apto para a conservação da humanidade; o que me faz perecer quando creio que não é verdadeiro para mim, é uma relação arbitrária e ilegítima do meu ser com as coisas externas. O que me faz morrer é não acreditar nas coisas que são aptas para a minha vida".39

William James 40 identificou utilidade e verdade somente até o limite das crenças não verificáveis empiricamente, ou não demonstráveis como crenças morais e religiosas. Quer dizer, tudo o que não puder ser empiricamente demonstrável não é verdade; ele identifica, pois, utilidade com verdade.

Schiller 41 estendeu este conceito de verdade e utilidade a toda esfera do conhecimento; uma proposição é verdadeira somente por sua efetiva utilidade, ou porque é útil para estender o próprio conhecimento, ou para ampliar o domínio do homem sobre a natureza, ou seja, "o homem conhece para agir". (Marx, igualmente utilitarista, mais tarde viria a dizer: "conhecer para transformar o mundo"); esta utilidade deve-ria estar voltada para a solidariedade e a ordem do mundo, que pressupõe respeito à liberdade e dignidade de toda pessoa humana.

Dewey 42, também pragmatista, tem uma concepção seme-lhante: todo conhecimento adquirido é um instrumental válido, mas nem sempre verdadeiro; quer dizer, o conhecimento é um instrumento para se chegar à verdade.

6. Verdade e Conjetura

Não podemos desconhecer, igualmente, outra forma essencial do conhecimento científico, que é a conjetura, como bem estudou Miguel Reale, em valioso trabalho dedicado a este tema:

39. F. NIETZSCHE. Vontade de Potência. 40. O desejo de acreditar, 1897. 41. Humanismo, 1903. Cf. Mário Ferreira dos SANTOS. Op. cit., p. 259. 42. Lógica, XV.

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“Podemos dizer que as conjeturas fazem parte essencial de nosso modo de ser pessoal, e se inserem na problemática da verdade, dado que visam a preencher os vazios a que acima me referi: a linha que passa, pois, entre a verdade e a conjetura não é a de dois opostos que se repelem, mas antes a de dois termos distintos que se complementam”.

“...estou convencido de que o pensamento conjetural merece nossa mais dedicada atenção, como forma autônoma de pensamento que, correndo em paralelo ou complementarmente com a investigação positiva, e nunca em conflito com esta, tem seus princípios e normas próprias, não se desenvolvendo como simples resultado do arbítrio”. 43

Outro autor que trata do pensamento conjetural como pensamento metafísico é Bertrand de Jouvenel, pensador social preo-cupado com a “arte de conjeturar” na linha da previsão do futuro ou dos futuríveis, conforme define: é a arte de conjeturar a respeito do futuro, com plausível segurança, a partir de suposições, ficções, analogias, probabilidades e até mesmo causas intercorrentes, baseadas em dados conhecidos 44.

No mesmo campo o ilustre pensador Karl Popper pôs em relevo a participação da imaginação no ato de conjeturar; focalizando o problema da conjetura sob o prisma epistemológico, considera ele a conjetura um momento relevante inserido no processo do conhecimento científico, atuando como “antecipações justificadas (ou não), palpites e tentativas de soluções, graças às quais a ciência pode progredir, justa-mente porque aprendemos com nossos erros” 45.

Segundo Reale, a conjetura ocupa um papel dos mais signifi-cativos em todos os atos praticados pelos homens, tanto comuns como cientistas, seja operando como ponto hipotético e provisório de partida,

43. Verdade e Conjetura (1983), p. 19. 44. A Arte da Conjetura (1968). Para este autor, “a construção intelectual de um futuro

verossímil se constitui numa obra de arte, na plena acepção da palavra. É isso que chamamos de “conjetura”. p.36. Cf. Miguel REALE, op.cit., p. 22.

45. Conjetura e refutações (o progresso do conhecimento científico), p. 260. Cf. Miguel REALE, idem, p. 23.

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mais tarde confirmado graças a novos processos de conhecimento, seja valendo como “verdades práticas” que nos auxiliam a superar o estado de dúvida, sempre incerto e inseguro, como é próprio de todos os homens 46.

7. A Verdade no Direito

Destes conceitos sobre a verdade, quais os que mais se aproximam ou se aplicam ao Direito, às regras e princípios jurídicos e ao ordenamento em geral? Não há uma resposta definitiva, mas uma pergunta para continua discussão. Os Juízes costumam utilizar expressões como "os fatos estão em conformidade ao Direito", indicando que a verdade jurídica pode estar conforme à lei ou à justiça. Os tabeliães costumam atestar que tal declaração ou documento "está conforme à Lei".

Pelo princípio geral da anterioridade, exige-se que o fato, sobretudo o criminoso, esteja absolutamente conforme ao enunciado da Lei (fato típico ou descrição legal do tipo penal), sob pena de exclusão da criminalidade.

Qual é a verdade do processo? Fala-se em verdade formal e verdade material; no penal, seria a verdade real ou material; no cível, a formal. Já contestaram os doutrinadores esta separação, por caber o aforismo quod non est in actio, non est in mundo.

Quando o Juiz se convence da verdade? qual o papel das evidências em Direito, sobretudo no campo da prova? Kant falava em conformidade à regra como critério formal da verdade e os neokantianos em conformidade à regra.

Acreditamos que daqui derivou o positivismo jurídico e a exclamação de Napoleão de que seu Código não poderia ser interpretado, proibindo sua interpretação e mandando excluir do Projeto Portalis até mesmo a eqüidade.47. Este apego ao juridicismo ferrenho Cícero já o condenara, proclamando o summum ius, summa iniuria; se levarmos a Lei ou ius, ao

46. Op. cit., pp.25-26. 47. V. Cap. I, Segurança Jurídica e Certeza do Direito, N. 6.

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pé da letra, cometeremos injustiça; pois o resultado da sentença poderá ser pior do que aquilo que as partes pediam 48.

Esta análise nos leva demasiado longe: quando se fala de Segurança no Direito, onde está esta Segurança? Acreditamos que se encontra não apenas na Lei escrita, na regra legislada, mas muito mais em sua aplicação judicial; o estudo sobre a Segurança se fixará, portanto, com maior ênfase, na aplicação do Direito, do que na formulação da norma estrita; entendemos que a Segurança se constrói com mais amplitude social através da Jurisprudência, sobretudo nas Súmulas e Enunciados, do que na regra positiva.

De fato, a norma escrita é uma hipótese de Segurança. Este termo lembra, por exemplo, Segurança Pública: a Constituição reza que o cidadão deve ser garantido na sua integridade física e patrimonial. No entanto, quantos assaltos e mortes! Qual norma garante a inviolabilidade do domicílio? É hipotética esta garantia; não há segurança autônoma na Lei; ela é um projeto, proposta, hipótese, porque não tem, por si mesma, força coercitiva; a coerção vem da sentença, na execução; o Juiz pode requisitar a força judiciária, e esta age, pois sua função é garantir o império da Lei; pode-se prender em flagrante, abrir inquérito, manter prisão provisória etc, mas na prática sabe-se que falta segurança, pois a polícia nem tudo e a todos pode garantir.

Em suma, na ordem do Estado democrático de Direito, não se concebe que um agente policial aplique melhor a Lei do que os Juristas. Quer dizer, onde está o homem, está a imperfeição; não está nas instituições, no sistema econômico ou no regime político, mas está no ser imperfeito do homem, é problemática humana; as reformas não se fazem por decretos, muito menos por revoluções, pois a grande revolução é a educação, sobretudo a pessoal, que opera do interior para fora da pessoa; mas este tema já é do campo do Direito e da Moral...

Estas observações, no tocante à interpretação e aplicação da lei pelos Juízes e Tribunais, enquadram-se satisfatoriamente como conjetu-ras ou prognósticos do homem comum ou dos juristas em geral, quanto à previsibilidade dos julgamentos, e que constitui a base da segurança jurídica: a razoável estabilidade das decisões, segundo os parâmetros da lei e da Constituição. 48. Exemplo ilustrativo encontramos no Mercador de Veneza, de Shakespeare: desejando

casar-se, um jovem pede dinheiro a um mercador; este diz que tomará uma libra da carne do devedor, se não lhe pagar; inadimplente, vão ao Juiz, que reconhece o pacto, mas adverte: se derramar sangue, haverá excedido à sentença, com culpa; então, confisca-lhe os bens, apenas. Solução de eqüidade...

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8. Conclusões

O tema da verdade é tratado pela Teoria do Conhecimento. Procurar, conhecer e determinar o que é verdadeiro constitui, para Juízes e Tribunais, o métier do seu dia-a-dia. “Formar convicção” constitui o fim último do processo judicial, para chegar à sentença. E este conven-cimento se “forma”, de um lado pela prova dos fatos concretos, e de outro, pela adequação à regra jurídica aplicável, sem excluir a incidência das experiências pessoais do julgador e as circunstâncias do momento da decisão.

A “verdade do processo” emerge desta conjunção entre as questões de fato e as questões de direito (como exaustivamente as estudou Castanheira Neves 49), e constitui a verdade humanamente aceitável, porque foi buscada através dos vários processos lógicos e dialéticos da razão.

Na convicção dos Juízes se assenta, portanto, a determinação do juridicamente verdadeiro, apto a produzir a certeza do direito para as partes, para terceiros (paz social), para os órgãos julgadores e mesmo para a ordem jurídica, como criação jurisprudencial.

Quanto ao método que melhor se aplica ao raciocínio judicial, para chegar à verdade, excluida as vias da revelação e a da coerência idealista, parece-nos que o Juiz pode se utilizar cabalmente dos conceitos de correspondência ou conformidade entre seu entendimento e os fatos; também, segundo os neokantianos, pode se dar uma conformidade à regra; ou mesmo utilizar o conhecimento para alcançar o que é verdadeiro, ao modo pragmatista.

Enfim, a conformidade do objeto do conhecimento a uma norma lembra bem a adequação dos fatos à lei ou subsunção, conformação típica dos fatos à norma legal. Esta adequação parece atender melhor, num primeiro momento, ao conceito de conformidade entre o pensamento do Juiz e o caso singular em apreciação no processo; mas posteriormente se verá que a decisão judicial não consiste em puro silogismo, antes atem-se a regras de prudência

49. Antonio CASTANHEIRA NEVES. Questão de Facto-Questão de Direito ou O Problema

Metodológico da juridicidade (1967).

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O que é a Verdade 58

razoável, intuições do valor Justiça e aplicação da interpretação jurídica mais eqüitativa aos interessados.

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A Segurança e o Valor Justiça

SUMÁRIO: 1. Teoria da Justiça. 2. Elementos da Justiça. 3. A Justiça como valor. 4. Necessidade de Segurança. 5. Segurança, Justiça e Bem Comum. 6. Requisitos da Segurança. 7. Conclusões.

1. Teoria da Justiça

Para apreciar devidamente a Segurança como Valor, recorra-

mos à Teoria da Justiça, especialmente exposta na Ética a Nicômaco, com ênfase no Livro V, onde Aristóteles trata da Justiça, e no Capítulo 10, em que cuida da Eqüidade.

Segundo o Estagirita, a Justiça é, antes de tudo, uma virtude

moral, não apenas "sentimento do justo", mas característica inerente a todos os homens, independente de qualquer "sentimento religioso". Das virtudes morais da pessoa humana destacam-se a Prudência, a Força, a Temperança e a Justiça, das quais a Prudência rege e sintetiza as demais, como "moderadora e guia das virtudes", conforme o ensino de Santo Tomás. 1

Para Aristóteles, a Justiça apresenta três faces: uma é a que

regula as relações entre os membros da sociedade (de modo geral, a Justiça, como o Direito, só se realiza entre pessoas humanas); é a Justiça entre particulares, como se verifica nos contratos voluntários, chamados comutativos ou sinalagmáticos; é Justiça comutativa, porque nelas estão presentes valores equivalentes ou valências eqüitativas.

1. SANTO TOMÁS, Suma Teológica, II, II, q. 57; Idem, Tratado da Justiça (s/d), p. 21:“toda

a estrutura das boas obras se assenta nas quatro virtudes, isto é, a temperança, prudência, força e justiça”; ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, L.V, cap. 1, 1129b: “En la justicia toda virtud está en compendio. La consideramos la virtud perfecta porque representa el ejercicio de la virtud cabal. Y es perfecta porque el que la posee puede ejercitarla en relación con terceros, y no sólo consigo mismo. ... Esta justicia no es una parte de la virtud, sino la virtud entera, como su contraria, la injusticia, no es parte de la maldad, sino la maldad toda.” Cf. Eduardo GARCIA MÁYNEZ, Doctrina aristotélica de la Justicia (1973), pp. 191-192.

Capítulo IV

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A Segur ança e o Val or Just iça 60

Nesta Justiça, a mais simples (e por isso mesmo chamada de aritmética), tem-se uma relação entre as partes, em que a igualdade é a mais perfeita possível; por ela se vê, v. g., que no comércio não se deve cobrar além do preço justo; no trabalho assalariado não se pode negar um salário justo; como nas profissões liberais não se podem exigir senão honorários justos.

Como esta Justiça trata de evitar injustiças nos contratos

particulares, é também chamada Preventiva, pois cuida de prever as conseqüências jurídicas dos negócios, o que constitui uma característica da Segurança. O segundo tipo, a Justiça distributiva, é a que do todo se

dirige às partes, ordena aos governantes distribuir cargos e encargos segundo as necessidades do Estado e os méritos dos cidadãos; é a Justiça da Pólis, que busca uma proporção, segundo os merecimentos de cada um, porque há de ter em conta a dignidade das pessoas. 2

Aqui se dá igualmente a Justiça Penal, Repressiva, Reativa ou

Corretiva, cujas funções são compensar as injustiças de alguma forma e prevenir a delinqüência. Para uma visão holística desta teoria, podemos tomar um

triângulo dividido em dois planos: o plano do todo, do universal ou do uno, e outro plano, do particular ou do múltiplo: 3

UNO

MÚLTIPLO

Plano do Todoou

do Universal

Plano do Particulaou

do Múltiplo

JUSTIÇA

TODO

PARTE PARTECOMUTATIVA(ARITMÉTICA)

GERAL, LEGAL, SOCIAL

DISTRIBUTIVA (GEOMÉTRICA)

2. ARISTÓTELES, Política, 1280 a, 25-32: “Corretamente observa el filósofo que tanto los

partidarios de la democracia como los de la oligarquía parecen haber olvidado la naturaleza del fin para cuyo logro el Estado existe. Si la propiedad no es la meta de la vida en común, la justicia distributiva no debe tener como criterio la riqueza de los ciudadanos; el fin de la pólis no es simplesmente la vida, sino la vida valiosa”. Cf. Eduardo GARCIA MÁYNEZ, op. cit., p. 82.

3. O Todo pode ser o Estado, uma Empresa, uma Sociedade civil ou mesmo a Família, v.g.

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A Segur ança e o Val or Just iça 61

Entre as partes dá-se a Justiça comutativa, aritmética ou sinalagmática. Quando impera nas relações do todo com as partes, Aristóteles a chama de Justiça distributiva, geométrica ou proporcional; ocorre por exemplo, numa empresa, onde existem operários ganhando salário mínimo e chefes ganhando vários salários, e assim progres-sivamente; então, aqui, a igualdade é proporcional. O mesmo ocorre na hierarquia militar, em que as funções e os soldos diferem segundo o mérito ou tempo de serviço.

Entre indivíduos da mesma categoria há igualdade, mas entre

pessoas hierarquicamente dispostas em níveis diferentes há uma desigualdade proporcional; ou seja, há igualdade horizontal e desi-gualdade vertical, sem que implique em injustiça nas diferenças de tratamento. Em estudo crítico à Teoria Pura do Direito, Errázuriz associa

Igualdade à Segurança jurídica, afirmando:

“En el extremo opuesto a esta norma del trato igualitario para todos,

se sitúa lo que (Kelsen) califica de ‘principio de justicia de la desigualdad’, o sea, habría que tomar en consideración todas las desigualdades.

El principio de la desigualdad operaría en un sistema jurídico flexible,

propugnado por la Escuela del derecho libre, en el que sólo habría normas individuales. La seguridad jurídica provendría, en cambio, de un régimen de normas generales, que habilitan a los individuos para prever el tratamiento que recibirán por parte de los órganos aplicadores del derecho.” 4

A Justiça legal ou geral, por sua vez, ordena aos governantes

que elaborem leis e decretos justos, orientados ao bem comum, ao bem-estar de toda a sociedade, sem discriminações injustas; exige, igualmente, dos cidadãos, a justa observância das leis e dos deveres em relação ao Estado. Por isso se chama, também, Justiça social.

Temos, assim, exposta singelamente, a Teoria clássica da

Justiça, aristotélico-tomista, que adotamos e vimos seguindo, por ser mais consentânea com a natureza e dignidade do homem, haja visto que a ela os povos civilizados sempre retornam, após tempos de crise 4. Carlos José ERRÁZURIZ M., Introducción crítica a la doctrina jurídica de Kelsen (1987),

p.137.

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do Direito, como recentemente, em consequência das grandes guerras.

5

2. Elementos da Justiça Vemos ainda que a mesma Justiça tem três características: a

igualdade, a alteridade e o débito, que aparecem nos diversos tipos de Justiça. Na comutativa, por exemplo, há uma igualdade perfeita entre as partes: quem contrata a locação de uma casa assume um débito para com o senhorio de pagar o aluguel, mas este tem também a obrigação de entregar e manter a casa em condições de uso.

A relação de Justiça é sempre de alteridade; existe o "eu"

mas também o "alter". Robinson Crusoe, enquanto só na ilha, não necessitava do Direito, pois não tinha um "alter" para dialogar ou para quem devesse algo; assim, somente existe débito e alteridade quando há relação ou relações humanas inter-subjetivas.

Daí a Teoria Egológica de Carlos Cossio, que é uma Teoria do

Direito como ciência objetiva ou ciência cultural para alguns autores, como Recaséns Siches e Ortega y Gasset; Cossio a coloca como teoria subjetiva porque define o Direito como ciência da conduta de interfe-rência inter-subjetiva, entre sujeitos, portanto.

Referindo-se à teoria de Cossio, Castanheira Neves comenta que “às

duas teses tradicionais, uma que entende convir a qualificação de normativa a ciência do direito, porque ela subministrava normas, outra porque conheceria normas, a teoria egológica opõe uma terceira: a ciência do direito não cria normas, nem tão pouco conhece normas, mas conhece condutas humanas mediante normas”. 6

A Teoria de Miguel Reale, do Tridimensionalismo Jurídico,

ensina que o Direito é, ao mesmo tempo, fato, valor e norma; para o primeiro Kelsen, somente a norma pura seria a base do Direito.

Esta visão, se adotada como tal, afigura-se reducionista,

porque atrelada à matéria fática, à positividade; todo o social (os fatos) 5. Tese recentemente publicada de Emmanuel MATTA (com prefácio de Ives Gandra da

Silva MARTINS), O Realismo da Teoria Pura do Direito (1994), revela uma terceira fase de Kelsen, do após-guerra, quando encontra “o significado último de finalização do Direito: o seu traço normativo-valorativo-ético-prático de Justiça”; Kelsen proclama, então, o que Justiça para ele significava: “A minha Justiça é a Justiça da Liberdade, a Justiça da Paz, a Justiça da Democracia - a Justiça da Tolerância”, o que salva, a final, a figura do grande juris-ta judeu, vítima ele mesmo do nazismo fundado no positivismo estrito das leis. Pp.14,18.

6. Questão-de-facto--Questão-de-direito (1967), § 25º, p. 846. Cf. Josef ESSER, Principio y norma... (1961), p. 28.

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e cultural (os valores) resta afastado; daí a relevância do Tridimensio-nalismo: por restaurar a unidade do Direito, constitui uma superação do positivismo jurídico extremado. 7 3. A Justiça como Valor

O valor, portanto, passou a ser melhor entendido dentro da

teoria da Justiça e da visão tridimensional do Direito, porque intrínseco à própria Justiça.

A Segurança jurídica é também uma característica da Justiça,

da qual não se pode dissociar, pois não existe Justiça sem segurança. A Segurança jurídica tem caráter inequivocamente axiológico,

de valor material concreto. 8 Não é um mero factum, imanente a este ou àquele sistema de Direito, mas é um valor do Direito; aqui recordamos a teoria de Larenz, 9 derivada de Stammler, quando este, no início do século, assistindo à progressão do positivismo, dizia existir algo mais, acima do Direito positivo, que é o Direito natural e que exprimiu como "Direito Justo", confundindo-se até mesmo com a Eqüidade.

O Direito justo não é o Direito legal, que se aplica friamente,

ao pé da letra, mas o que está no espírito da lei, algo que o Juiz e os aplicadores do Direito devem procurar além da letra da lei, ao invés de adotar o mero juridicismo, o seguimento da Lei descompromissado com os valores socio-econômicos reinantes.

Exemplificando: diante da postura de algumas pessoas, não

admitindo a transfusão de sangue, a pretexto da defesa do valor liberdade religiosa, o valor vida parece ser, hoje em dia, mais relevante para a sociedade e ao próprio indivíduo. O Direito não é norma pura, só positividade. A aceitação de

que pudesse resumir-se ao positivismo legalista permitiu a disseminação do nazismo, com a interpretação fria da lei, o summum ius summa iniuria de Cícero. Se aplicarmos a lei tal qual se lê, causar- 7. Emmanuel MATTA descreve que “A evolução do pensamento kelseniano se deu justo no

sentido de uma passagem do período inicial, de atenção e ênfase para a essência específica do jurídico - aquilo que alguns definiram kantianamente como o ‘a priori formal do jurídico’ -, para um segundo momento, de cuidado na investigação do aspecto fático, tensional, político, do Direito real e concreto, posto e pronto no seu meio de efetividade e de realização...”. Op. cit., p. 14.

8. PÉREZ LUÑO, op. cit. (1991), p. 104. 9. Karl LARENZ, Derecho Justo (1985), p.21.

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se-ia mal muito maior. Mas, “ler” a lei implica fazer sua adaptação à realidade...

Um exemplo é a prisão civil do devedor de alimentos; o Juiz pode

ordenar a prisão com base na Lei que a permite; mas se o fizer, in limine, o mal será muito maior, porque o devedor perde a liberdade, e talvez o salário; pode vir a perder o emprego e o credor da medida extrema pode perder a pensão. Assim, o mal da "aplicação fria" dessa Lei é maior do que o objetivo justo a que ela realmente visava; esta seria a aplicação exata da máxima citada. Enfatizando: aplicar estritamente a lei é um juridicismo, o

"amor à norma", e é a isto que o positivismo leva, à defesa intransigente da regra e do ordenamento jurídico: "Pereça o mundo, salve-se a lei"; mas, muito ao contrário, devemos pensar em "Salvar o homem, ainda que pereça a lei",10 segundo o Direito justo e as máximas da civilização ocidental: a lei é feita para o homem, não o homem para a lei, pois “por causa do homem se constituiu todo o direito”. 11

4. Necessidade de Segurança

Há alguns aspectos convincentes que demonstram a

exigência de Segurança; são manifestações básicas como: a ignorância do Direito não escusa o cumprimento da Lei; a coisa julgada não é uma ficção, mas um instituto de Direito, necessário para dar Segurança aos julgados; a irretroatividade das leis (salvo in bonam partem), os direitos adquiridos e os atos jurídicos perfeitos são máximas de Segurança Jurídica. 12

Deve haver, dentro do Direito, predominância de fins e

valores jurídicos, e através da interpretação teleológica, que é a mais adequada, deve-se procurar a finalidade da norma, pois há um dinamismo, desde sua origem até sua aplicação, como um pensamento orientado a valores. 13

10. Fiat iustitia, pereat mundus e Fiat mundus, pereat iustitia: são falsas estas sentenças,

pois o Direito e a Justiça não podem ser absolutizadas na estrita legalidade; os juristas devem distinguir entre o substancial e o acidental, entre o estável e permanente e o efêmero, entre o socialmente assimilável e o disperso; na apreciação de Carlos MAXIMILIANO, são antigualhas, substituidas pelo summum ius summa iniuria e ius est ars boni et aequi, que apontam em definitivo para o fim social e humano do Direito. Hermenêutica e aplicação do Direito (1991), pp. 180-182.

11. Hominum causa omne ius constitutum est. JUSTINIANO, D., 1,5,2. 12. PÉREZ LUÑO (1991), p. 71, 82, 90, 96; ALTERINI (1993), p. 18, 25; LIMONGI FRANÇA,

Irretroatividade das Leis (1994), pp. 196, 219 fine; VELLANI (1963), p.167; SOARES MARTI-NEZ (1991), pp. 366, 367.

13. Karl LARENZ (1989), p. 252.

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A Segurança não é, pois, um critério lógico da estrutura

formal das normas, como se fosse elemento impregnado a elas e estático, mas é algo dinâmico que busca a consecução dos bens e dos valores jurídicos 14, mormente no Estado democrático de Direito, como o nosso, a partir da nova ordem constitucional de 1988.

5. Segurança, Justiça e Bem Comum 15

Qual a ligação do valor Segurança com o valor Justiça? A

Segurança é um pleonasmo inútil da Justiça? Tem a Segurança uma autonomia conceitual ou funcional em relação à Justiça? Quais os sinais de separação entre estes dois valores, que são valores da experiência jurídica?

A Justiça é um valor fundamental e onicompreensivo, superior

a todos os outros valores, salvo a Prudência. Platão a chamava dikaiosine (de dikaión, lei), como virtude que compreendia e resumia todas as demais. 16

Em sua dimensão particular, como vimos, a Justiça

(comutativa) é o "dar a cada um o que é seu", partindo de um indivíduo para outro (relações privadas); ou da Autoridade, que é o todo, para as partes (distributiva).

"Dar a cada um o que é seu" deve se basear não no passado, mas

no presente e no futuro; "dar o seu" a cada qual é dar oportunidade de vida, pagar salário justo, é satisfação integral dos débitos, responsabilidade civil etc.

Os débitos, p. ex., não solucionados pacificamente e

cobrados na Justiça, são processados em duas fases: primeiro, na declaração de existência ou não do que é reclamado (o an debeatur) e, num segundo momento, na estipulação do quantum debeatur. O débito, 14. PÉREZ LUÑO, op. cit., pp. 51, 105. 15. Principais autores que trataram deste tema: MEZQUITA, p. 199; ALTERINI, p. 46;

DINIZ, p. 360; LE FUR, pp. 13ss; OLLERO, p. 29; KELSEN, p. 50; SOARES MARTINEZ, p. 290; REALE, Filosofia, p. 271, 591; RADBRUCH, Filosofia, p. 211.

16. República, IV, 16, 441c-443d. ARISTÓTELES a denomina virtude total ou completa; SANTO TOMÁS a compara "ao bem comum"; DANTE fala da Justiça como proporção básica das relações inter-humanas; LEIBNIZ a define como Justiça universal; RAWLS concebe a Justiça como procedimentos e princípios da sociedade bem ordenada. Cf. PÉREZ LUÑO, op. cit., p. 106.

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nesta forma particularizada, é o "seu" na máxima mencionada. O "seu" é de difícil definição: o débito do criminoso para com a sociedade é pago com pena, mas não é de fácil quantificação.

Pode-se associar o conceito de Bem Comum ao de Paz

social, pois a decisão resulta “de la tendencia pacífica del derecho; el juez tiene que proteger la paz social; por ello tiene que eliminar con su sentencia los conflictos que se le presenten y que amenazan la paz social”. 17

Em suma, a Segurança jurídica constitui um dos

componentes da Justiça geral, por ser condição da sociedade corretamente organizada. Assim, se faz parte da Justiça geral, é impossível falar-se numa oposição, suscitada por muitos autores, entre Justiça e Segurança (se há Segurança não pode haver Justiça e se se pratica Justiça, faltaria Segurança). Ambas, Justiça e Segurança, se comportam dialeticamente, de forma a alcançar a inevitável integração.

Unidas, são pressupostos de garantia da boa ordem da

sociedade. A sociedade necessita tanto de Justiça como de Segurança e como as duas são indissociadas, não podem se contrapor, e ademais atendem às exigências do Bem Comum.

Le Fur aprecia o trinômio Segurança-Justiça-Bem Comum,

como associados aos direitos fundamentais:

“...la justicia y la seguridad, lejos de ser verdaderamente antinó-micas, son más bien los dos elementos, las dos caras del bien común o del orden publico que, bien comprendidas, tienen el mismo sentido, un poco como se dice indiferentemente libertades individuales o derechos públicos, según que uno se coloque en el punto de vista del individuo o de la sociedad, lo que otros también han llamado libertades necesarias o derechos fundamentales”. 18 Sob outro ângulo de análise, Delos encontra Segurança e

Justiça na sociedade, que se identifica com o Bem Comum, assim se expressando:

“Resulta que la función de seguridad - que es una de las funciones

esenciales de la sociedad -, se ejerce enteramente, si puede decirse así, entre estos dos polos: derecho del individuo - deber de la sociedad; derechos de la sociedad - deber del individuo; es decir, que se ejerce

17. Helmut COING, Fundamentos de Filosofía del Derecho, p. 257. 18. Louis LE FUR, El fin del Derecho: Bien Común, Justicia, Seguridad. In: “Los Fines del

Derecho” (1967), p. 15.

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entera en un cuadro de justicia y de derecho, en donde se afirman frente a frente la trascendencia de la sociedad sobre el individuo, y su subordinación a la persona individual.”. 19

6. Requisitos da Segurança Quais os requisitos específicos da Segurança jurídica, implí-

citos na Justiça geral? Podem ser divididos em duas ordens: a. Exigências objetivas Temos exigências objetivas de dois tipos: a correção

estrutural e a correção funcional. A primeira é tarefa do Legislativo na formulação das normas: a estrutura do ordenamento jurídico. A segunda está no campo da negociação, da Administração e da Jurisdição, ou seja, no campo particular, na área administrativa (Executivo) e na jurisdicional (Judiciário), respectivamente; refere-se ao cumprimento do Direito por seus destinatários, e em especial pelos órgãos aplicadores ou intérpretes do Direito. 20

b. Exigências subjetivas Na acepção subjetiva, a que chamamos certeza do direito, há

uma projeção, nas situações pessoais, das garantias estruturais (Lei) e funcionais (Jurisdição) da segurança objetiva; ou seja, subjetivamente temos duas fontes de referência: a própria Lei, bem como a aplicação da Lei, que pode se dar por um administrador, ao despachar um simples requerimento, ou por um Juiz, ao proferir uma decisão. É a possibi-lidade, pelos cidadãos, de conhecimento prévio das conseqüencias jurídicas dos seus atos, ou previsibilidade. 21 No momento em que o sujeito se conscientiza plenamente do que pode fazer, ou não, ele tem a certeza do direito.

O que se estabelece é uma relação de confiança entre o

cidadão e a ordem jurídica, o acreditar no Direito, confiança fundada em pautas razoáveis de previsibilidade; esta previsibilidade é tida como a razoável, do "homem médio", do "homem comum", o quod plerumque accidit do Direito Penal.

19. J.T. DELOS, Los Fines del Derecho: Bien Común, Seguridad, Justicia. In: Op. cit., p. 54. 20. Op. cit., p. 106. 21. Idem, p. 107.

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Isto exige que a lei deva ser muito clara, precisa, amplamente divulgada, amplamente discutida pela sociedade. Ao Poder Judiciário poderia caber, neste campo, o exercício de elevada "pedagogia social". 7. Conclusões

Estes são, portanto, os enfoques mais usuais da Segurança

jurídica: é um valor imanente a qualquer sistema de Direito positivo; está em relação dialética com a Justiça, que, por sua vez, é valor transcendente; o Direito justo tem amplitude mais extensa que o legal, com ênfase no sentido axiológico e menos nos aspectos fáticos; não obstante, os sistemas jurídicos costumam enfatizar mais os fatos e menos os valores, sem considerar que a Segurança não está nos fatos, mas no valor da Justiça. 22

Segurança e Justiça estão igualmente entrelaçadas com o

conceito de Bem Comum, pois toda norma não é nem genérica (única), nem particularizada (múltipla), se não estiver dirigida para o social, o comum, ponto de interligação dessas duas categorias.

Entendemos, com os autores citados, que a Segurança é um

valor dado a priori pelo Legislador, no momento normativo ou nomo-gênico, enquanto o momento judicial de aplicação da norma, a posteriori, é o da Justiça (Certeza do direito); mas tanto o Legislador quanto o Julgador não podem afastar seu olhar daquele ponto que os une, e para o qual existem: a Sociedade, da qual emana a potestas de um (o Poder Político) e a auctoritas de outro (o Poder Jurídico), que constituem, con-juntamente, o Bem Social ou Comum. 23

22. Ibid., p. 107. 23. Sobre este tema cobra importância o estudo de Rafael DOMINGO, Teoria de la “aucto-

ritas” (1987), analisada na experiência romana, nas fontes do direito, no direito político, processual, canônico, na universidade, culminando por elaborar uma teoria geral, basea-da no pensamento jurídico-filosófico de Álvaro D’ORS.

Também de inegável valor o trabalho de Dalmacio NEGRO PAVÓN, Natureza social do Poder Judiciário, (trad. Carlos Aurélio M. de Souza), Rev. Tribs., v. 695 (set 1993), pp. 16-29, em que desenvolve em profundidade estes conceitos, para mostrar a missão do Poder jurídico no desenvolvimento social.

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A Segurança Jurídica na Constituição Federal

SUMÁRIO: 1. A Segurança como princípio. 2. A Segurança como valor: a) Valor-meio. b) Valor-necessário. c) Valor-adjetivo. A Segurança como direito fundamental: a) Como Garantia. b) Como tutela. c) Como proteção. 4. Conclusões: a) Aspectos positivos. b) Aspectos negativos. A Constituição Federal traduz a segurança jurídica sob três

aspectos: como princípio, como valor e como direito fundamental, faces diferentes da mesma realidade.

Esta segurança se expressa através de alguns verbos de a-

ção, de largo uso na linguagem jurídica, tais como "assegurar", "ampa-rar" (amparo ao direito subjetivo), "garantir" (todas as garantias dadas pela Lei ou pela Justiça), "proteger" (proteção aos direitos individuais, coletivos ou difusos); sem contar diversas expressões verbais como "instituir", "constituir"; em todas há um princípio ou um valor jurídico.

1. A Segurança como princípio Miguel Reale, com abalisada autoridade nos ensina que

“Princípios são ... verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade”. 1 (gri-famos).

Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, define-se princípio

jurídico como

1. Filosofia do Direito (1982), N. 18, p.60.

Capítulo V

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A Segur ança Jur ídica na Const ituição Feder al 71

“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, dis-posição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inte-ligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico” 2. A melhor exposição, contudo, encontramos no emérito consti-

tucionalista José Afonso da Silva: baseando-se em Gomes Canotilho e Vital Moreira, separa os princípios constitucionais em políticos e jurídi-cos. 3

Os princípios político-constitucionais estão presentes nos arti-

gos 1º a 4º da Constituição; como fundamentos do Estado Democrático de Direito, nos arts. 1º e 2º; e como objetivos fundamentais da Repúbli-ca, utilizando as expressões do art. 3º.

Já os princípios jurídico-constitucionais são gerais, informado-

res da ordem jurídica nacional, especialmente processuais, destacando o autor, no art. 5º, os incisos XXXVIII a LX.

O professor de Direito Público, Eduardo Garcia de Enterría,

ensina que a Constituição assegura uma unidade do ordenamento, es-sencialmente à base de uma ‘ordem de valores’ materiais por ela ex-pressos, e não sobre as simples regras formais de produção de normas, dizendo mais que

“La unidad del ordenamiento es, sobre todo, una unidad material de sentido, expressada en unos principios generales de Derecho, que o al intérprete toca investigar y descubrir (sobretodo, naturalmente, al intér-prete judicial, a la jurisprudencia),o la Constitución los ha declarado de manera formal,destacando entre todos...unos valores sociales determi-nados...como primordiales y básicos de toda la vida colectiva.”. 4

Outro constitucionalista espanhol, Arce y Florez-Valdés, tra-

tando da formulação constitucional dos princípios gerais do Direito es-creve que a Constituição, por ser norma superior de organização jurídica da Nação, encerra princípios gerais do ordenamento e reflete a Filosofia da vida jurídica, enquanto síntese das aspirações de um povo.

2. Curso de Direito Administrativo (1994), p. 450; cf. José Afonso da SILVA, Curso de Direito

Constitucional Positivo (1995), p. 93. 3. José Afonso da SILVA, op. cit., p. 95. 4. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, p. 98. Ap. Celso Ribeiro

BASTOS. Curso de Direito Constitucional (1988), p. 138, Nota 2.

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A Segur ança Jur ídica na Const ituição Feder al 72

A Constituição representa hoje, para este autor, uma nova fonte para o estudo dos princípios gerais, pois através dela haverá influ-ências que se farão refletir necessariamente no Direito, podendo-se di-zer que toda reforma constitucional constitui ou acarreta um novo espíri-to informador do Direito e com ele seus princípios gerais. 5

Não menos abalizadas são as lições do jurista Raúl Canosa

Usera, que identifica a certeza do direito como um princípio geral do or-denamento jurídico e que, por isso, deve ser recepcionado como princí-pio constitucional. 6

Afirma que o Direito aspira ordenar as relações jurídicas de

modo seguro, de forma tal que qualquer um deve saber as consequên-cias jurídicas de seus atos, pois os efeitos sempre iguais são previsíveis. A previsibilidade representa, portanto, instrumento essencial da segu-rança jurídica; somente quando a reação do Direito pode ser prevista é que cabe falar de segurança ou certeza do Direito.

E pondera que certeza do Direito significa previsibilidade na

aplicação da própria Constituição, toda vez que esta assegura a validez e certeza de todos os demais âmbitos jurídicos, começando a ser apli-cada a partir dos princípios gerais nela contidos. 7

2. A Segurança como Valor

Com sentido de valor a segurança vem indicada desde o Pre-

âmbulo, 8 quando a Constituição se refere à instituição de um Estado democrático destinado a

“...assegurar... a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvi-mento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social..." (grifos nossos). São tendências axiológicas da Constituição: quando assegura

"valores superiores", entendemos significar não apenas o que ali está escrito, mas algo mais que a antecede e a transcende.

5. Los principios generales del Derecho y su formulación constitucional (1990), p. 11. 6. Interpretación constitucional y fórmula jurídica (1988), p. 182. 7. Idem, ibid. 8. O Preâmbulo é parte da Constituição, pois foi igualmente discutido e votado;

embora alguma doutrina afirme o contrário, esta foi a intenção dos Constituintes; ade-mais, tais valores, ali enunciados, foram explicitados e ratificados pelos artigos seguintes, o que demonstra constituirem tendências axiológicas iniludíveis da Lei Magna. Cf. José Afonso da SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo (1995), pp. 142, 144.

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Como tais valores supremos se encontram indissociados, não

é possível separá-los, estão intimamente interligados, e, pois, não po-dem atuar um sem o outro.

Ora, a vida do homem em sociedade exige regras conhecidas

para que possa se conduzir retamente, de forma tal que tenha sua dig-nidade pessoal respeitada e possa respeitar a dos semelhantes (e hoje, mais ainda, respeitar a todo o ecúmeno terrestre e mesmo cósmico...).

Sendo a vida e a personalidade humana um valor supremo, a

seguridade deste valor tambem o será e pode se apresentar como a) valor meio, b) valor necessário ou c) valor adjetivo, para sustentar o e-xercício dos demais valores. 9

a) O ordenamento jurídico deve garantir sua própria consis-

tência, como sistema normativo, para seus destinatários e operadores jurídicos. 10

Por isso, como valor meio, a segurança resulta de um conjun-

to de técnicas normativas dispostas a garantir a completude do sistema; ou seja, o ordenamento jurídico tem, na Segurança, uma auto correção, um corretivo dele próprio, como “meios predispostos para assegurar a observância, e, portanto, a conservação de um determinado ordena-mento constitucional”. 11

b) É também um valor necessário para a atuação dos valores

que o ordenamento jurídico pretenda realizar, em maior ou menor grau (nossa Constituição, como se viu, reconhece como valores a igualdade, a liberdade, o bem-estar, a justiça etc).

c) Em outro aspecto, a segurança é um valor adjetivo em re-

lação aos demais: se A, B, C são condutas ou normas valiosas, poder prever, ter a segurança de que A, B, e C se realizarão, também é um valor, adjetivo dos demais valores.

9. HIERRO SÁNCHEZ-PESCADOR (1989), pp. 235ss. 10. Cf. Cap. XIII. O Acesso à Justiça. 11. Ferrucio PERGOLESI. Diritto costituzionale, v.I/57, apud José Afonso da SILVA, op.cit.,

p.185; para nosso autor não se trata de garantias mas de defesa de dado regime político constitucional.

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Neste campo emerge a função da Jurisdição como operadora definitiva na aplicação do Direito, e, portanto, como garantia última da certeza e da consistência da ordem jurídica. 12 3. A Segurança como direito fundamental

O art. 5º da Constituição Federal, além da igualdade perante

a lei, garante a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à segu-rança e à propriedade. Novamente encontramos associados os valores liberdade, igualdade e segurança, expressões referenciadas diretamen-te à própria Justiça.

Como direito fundamental, a segurança apresenta três cono-

tações ou matizações: como garantia, tutela ou proteção. 13 a) Como garantia, esclarece José Afonso da Silva que os di-

reitos fundamentais são garantias, e que as garantias são direitos, sen-do difícil separá-los em declaratórios e assecuratórios; por isso, distin-gue garantias gerais, destinadas a assegurar aa existência e a eficácia social daqueles direitos; “trata-se da estrutura de uma sociedade demo-crática, que conflui para a concepção do Estado Democrático de Direito, consagrada agora no art. 1.º”; e garantias constitucionais, consistentes em instituições, determinações e procedimentos mediante os quais a própria Constituição tutela a observância ou a reintegração dos direitos fundamentais. 14

No inc. LXVIII há a concessão do habeas corpus, "sempre

que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder".

b) Distinguimos como tutela quando trata da irretroatividade,

ao declarar que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada" (inc. XXXVI); ou, p. ex., quando enuncia o princípio da legalidade (inc. II). 15

Tocante ao direito adquirido, temos como algo que já se esta-

bilizou como justo, seja nas relações jurídicas privadas, como nas públi-cas. Não se pode adquirir um direito fundado na desonestidade ou no

12. HIERRO SÁNCHEZ-PESCADOR, p. 238. 13. PÉREZ-LUÑO (1991), op.cit., pp. 27ss. 14. Op. cit., pp. 183, 185, 186. 15. No Direito penal, o nullum crimen nulla poena sine lege (inc. XXXIX).

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ilícito; ao contrário, um direito só estará seguro quando comprovada-mente se assentar em ato lícito, de interesses privados ou mesmo públi-cos.

É o direito que resulta da lei, diretamente ou por intermédio de

fato idôneo, e passa a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito de direito. 16

O ato jurídico perfeito (negócio, ato administrativo, ato voliti-

vo): se não houver ilícito viciando a vontade das partes, aperfeiçoa-se como ato jurídico: é o ato consumado de acordo com a lei do tempo em que se efetuou; ademais, é causa geradora do jus adquisitum. 17

Dos três institutos, cabe lembrar que a coisa julgada 18 é mais

relevante que os outros dois, pois enquanto neles pode interferir, anu-lando, desconstituindo ou modificando, aqueles nada podem contra es-ta. Não obstante, mesmo a coisa julgada não é definitiva, suscetível que é de rescisão ou declaração de nulidade. Basta mencionar a ação resci-sória: por este instituto processual, dentro de um determinado limite de tempo, há possibilidade de se desconstituir a coisa julgada. Decisão que rescinde coisa julgada "reabre" o que já estava concretizado, para rever o julgado, e depois o consolida numa situação jurídica nova. É um pro-cedimento cuja eficácia alcança, portanto, além da coisa julgada. 19

A coisa julgada, é, pois, a nosso ver, mais potente que o ato

jurídico perfeito e o direito adquirido, porque neles pode interferir, mas não sofre modificação senão pela rescisória.

O Estado, p. ex., pode mover ação de sequestro de bens de pessoas

envolvidas em desvio de dinheiro público e depois expropriá-los para a Fazenda Pública; haverá, portanto, coisa julgada (sequestro) sobre ato jurídico perfeito (direito de propriedade).

16. Art. 5º, § 1º, do novo Anteprojeto da Lei de Aplicação das Normas Jurídicas. Cf. em

Apêndice. 17. Idem, § 3º. 18. Idem, § 4º; a coisa julgada, aliás, não é mais que uma espécie de ato jurídico perfeito,

emanado não da lei, mas da decisão judicial. 19. Além da ação rescisória existe outra para modificar a coisa julgada, quando expirado o

prazo da primeira: a ação declaratória, que simplesmente supera a rescisão e pode inibir, igualmente, os efeitos da coisa julgada.

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A Segur ança Jur ídica na Const ituição Feder al 76

Há casos julgados que, por sua relevância, transcendem o di-reito das partes: através da jurisprudência e da uniformização sumulada, constituem Direito novo, verdadeiro Direito Sumular. 20 21

Assim, pois, as três tutelas (direito adquirido, ato jurídico per-

feito e coisa julgada), que representam o princípio geral da irretroativi-dade das leis, constituem institutos máximos da segurança jurídica.

c) Como proteção, a Lei Magna inova largamente, com pro-

fundas consequências no Direito Civil e Econômico, quando, v.g., de-termina que o "Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consu-midor" (inc. XXXII; art. 170, inc. V); a defesa do meio ambiente (art. 170, inc.VI) e a proteção à infância e juventude (art. 227), ou mesmo ao criar o instituto do habeas data (inc. LXXII, a), respaldado no direito de infor-mações pelos órgãos públicos (inc. XXXIII).

De todo o exposto, concluimos com José Afonso da Silva, em

síntese metodológica, que “o conjunto das garantias dos direitos funda-mentais forma o sistema de proteção deles: proteção social, proteção política e proteção jurídica”. 22

4. Conclusões

a) Aspectos positivos: Há uma correlação entre a estrutura do Direito (o ordenamen-

to jurídico) e seu funcionamento (através dos aplicadores da lei e seus destinatários), considerando-se aplicadores todos os intérpretes, admi-nistradores ou juízes.

Assim, observa-se uma conexão entre a dimensão funcional

da segurança jurídica (princípio da legalidade) com seu sentido estrutu-ral (exigências de segurança jurídica), pois o próprio ordenamento exige segurança para manter sua integridade ou completude.

20. A expressão foi cunhada pelo Min. José Pereira LIRA, O Direito Sumular, Rev.Serv.Pub.,

vol. 106, n. 2 (1971); e largamente utilizada pelo Prof. Roberto ROSAS, Direito Sumular, (várias edições), Álvaro de MELO Fº, Direito Sumular Brasileiro, RF 289: 417-427; RePro 43: 243-259); Lincoln Magalhães da ROCHA, Direito Sumular; e outros.

21. A esta qualidade denominamos coisa julgada jurisprudencial, muito embora a expressão possa soar como pleonasmo. Cf. Cap. IX - Direito Judicial, Jurisprudencial, Sumular.

22. Op. cit., p. 186.

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A Segur ança Jur ídica na Const ituição Feder al 77

Como estrutura, o ordenamento funciona qual sistema planetário: o sol, os planetas, os satélites, distribuídos numa ordem estável dentro do universo.

Assim também no ordenamento jurídico, cada Código e suas leis gi-ram em torno da Constituição, como os planetas em torno do Sol. Exis-tem leis, regulamentos, legislações complementares, portarias, tudo fa-zendo parte do ordenamento, segundo uma hierarquia normativa. Esta hierarquia supõe coerência e compatibilidade. Então, o "cosmos" jurídico não pode se desequilibrar, deve se manter em um dinamismo coerente (característico dos ordenamentos); ademais, é exigência da própria natu-reza que haja ordem, assim nas leis universais, como nas humanas. 23

Para o ordenamento jurídico, essa estabilidade chama-se se-

gurança e faz parte de sua estrutura. O ordenamento é estruturado para ser "seguro" e como tal ele cobra, dos cidadãos condutas certas, se-gundo o Direito, como se dissesse "não abale meu equilíbrio e não de-sequilibrarei sua segurança".

Ao mesmo tempo em que o ordenamento nos dá, objetiva-

mente, segurança jurídica, ele exige o mesmo de todos cidadãos (é a certeza do direito, a crença subjetiva na ordem jurídica).

Na Constituição, a segurança serve, ao fim de tudo, para aju-

dar a promover a igualdade real, ou Justiça social, começando por re-mover o obstáculo do desequilíbrio de poder numa sociedade democrá-tica.

A legislação de proteção aos consumidores constitui exemplo signifi-

cativo desta dimensão, em que a garantia jurídica aos usuários é apre-sentada com eficácia maior que em outros textos legais. O mesmo se verifica com a lei de proteção ao meio ambiente (L. 7347/85) e à criança e ao adolescente (L. 8069/90).

b. Aspectos Negativos: Há uma tendência em situarmos no mesmo plano, sem ordem

sistemática ou de preferência, o todo (segurança jurídica como totalida-de) com as partes (distintas manifestações da segurança: legalidade,

23. VALLET DE GOYTISOLO compara o ordenamento a uma galáxia, assim se expressan-

do: “Toda galaxia incluye estrellas que son soles, cometas, planetas con su diferente composición y climas, y con sus satélites, ... en constante movimiento y evolución, for-mando un conjunto abierto pero dinámicamente coordinado”. Cf. Metodología de las Le-yes (1991), p. 252.

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hierarquia normativa, irretroatividade, publicidade, responsabilidade, pro-ibição da arbitrariedade etc). 24 Sob a forma de princípios fundamentais as normas primárias da Constituição expressam aquele “ponto de vista sobre a Justiça”, que todo Direito deve ser, segundo ensinamento de Legaz y Lacambra. 25 A parte dogmática das Constituições é a expressão dos prin-cípios de Justiça (“pontos ou princípios”); assim, “a justiça contida nas normas derivadas é um desenvolvimento da Justiça aspirada e querida pelas normas primárias”. Por isso, as normas primárias contêm o fundamento de vali-dez das restantes; é a tradução adequada daquela idéia de Justiça que vive como um ideal ético na consciência da sociedade para a qual hão de se aplicar. Portanto, dentro de um mesmo sistema jurídico, é inaceitável a discrepância de concepções de Justiça entre normas primárias e se-cundárias; a autonomia não deve degenerar em contradição. A gradação das normas gerais (constituição, lei, regulamento), corresponde a uma escala quanto à generalidade de seu conteúdo. Já as normas individuais são ditadas para cada caso concreto: particulares que se obrigam através de um contrato, a administração que resolve questão singular, o juiz ou tribunal que dita uma sentença, são criado-res de normas individuais. Todas estas formas ou expressões do Direito estão intima-mente vinculadas às normas constitucionais e se identificam ou se su-bordinam, dadas as circunstâncias e peculiaridades, aos princípios, va-lores e direitos fundamentais. Bibliografia: 1. Luis LEGAZ Y LACAMBRA. Introducción a la Ciencia del Derecho, 1943. 2. Liborio L. HIERRO SÁNCHEZ-PESCADOR. Seguridad Jurídica y actuación ad-

ministrativa. In: “Seguridad Jurídica”, pp. 235ss. 3. José Pereira LIRA (Min.). O Direito Sumular. RSP, v. 106, n. 2, 1971. 4. Lincoln Magalhães da ROCHA. Direito Sumular. Rio, Shogun Edit., 1983.

24. PÉREZ LUÑO (1989), p. 27. 25. Luis LEGAZ Y LACAMBRA. Introducción a la Ciencia del Derecho (1943), pp. 182ss.

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5. Álvaro de MELO Fº. Direito Sumular Brasileiro. RF 289: 417-427; RePro 43:243-259.

6. José Luis MEZQUITA del CACHO. Seguridad Jurídica y Sistema Cautelar. 1989. 7 . Roberto ROSAS. Direito Sumular. Comentários às Súmulas do STF e do STJ. 6ª

ed. São Paulo, Edit. Rev.Tribs., 1991. 8. José Afonso da SILVA. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª ed. São Pau-

lo, Malheiros, 1995. 9. Celso Antonio BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo. 5ª ed.

São Paulo, Malheiros, 1994. 10. Miguel REALE. Filosofia do Direito. São Paulo, Saraiva, 1982. 11. Celso Ribeiro BASTOS. Curso de Direito Constitucional, 1988. 12 Joaquín ARCE Y FLOREZ-VALDÉS. Los principios generales del Derecho y su

formulación constitucional. Madrid, Civitas, 1990. 13. Raúl CANOSA USERA. Interpretación constitucional y fórmula política. Madrid,

Centro de Estudios Constitucionales, 1988. 14. Antonio Enrique PEREZ-LUÑO. La Seguridad Jurídica. Madrid, Ariel, 1991. 15. Juan B. VALLET DE GOYTISOLO. Metodologia de las leyes. Madrid, Edit. Revis-

ta de Derecho Privado, 1991.

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Dogmática e Segurança Jurídica

SUMÁRIO: 1. Os cinco aspectos do Direito. 2. A importância da Dogmática. 3. Justiça versus Segurança. 4. O Direito como valoração do Justo. 5. A Segurança no Direito. 6. Dogmática e Segurança. 7. O valor da Jurisprudência. 8. A dogmática doutrinária. 9. Conclusões.

1. Os cinco aspectos do Direito

O Direito pode ser encarado sob cinco aspectos: como Ciência,

objeto da Epistemologia; como Justiça, objeto da Axiologia jurídica; como Norma, estudado pela Dogmática; como Faculdade, estudado pela Teoria dos Direitos Subjetivos, e como Fato social, objeto da Sociologia jurídica1.

Para a Dogmática (que vem a ser a Ciência do Direito como

Teoria da Norma),2 podemos encontrar uma classificação simples, quando em primeiro lugar estudamos o que é a norma e suas espécies.

Em segundo, as espécies e as fontes da norma jurídica, que

são as fontes do Direito. Normalmente, quando estudadas as diversas expressões do Direito, algumas são consideradas como fonte, outras não; mas são objeto do estudo nesse momento, como espécies de fontes, o costume, a jurisprudência, a doutrina e também as chamadas fontes materiais que são a própria realidade social e que geram as Leis e os valores jurídicos que embasam a norma até este ponto, já que temos caracterizada a teoria tridimensional do Direito : o Fato social, a Lei ou Norma em si mesma e a valoração.

Um terceiro aspecto é a interpretação da norma jurídica. Um

quarto é a aplicação das normas jurídicas no espaço e no tempo. E um

1 . André Franco MONTORO, em sua Introdução à Ciência do Direito, apresenta original plano de

trabalho, que desenvolve durante todo o livro, e que se consubstancia em cinco sentidos do termo ‘Direito’; e Victor CATHREIN encontra três acepções para o Direito: a primeira como ‘o seu’; a segunda, seu sentido ‘objetivo’, e a terceira, o sentido ‘subjetivo’. Filosofia do Direito (1950), pp. 52, 53, 61.

2. Cf. Tércio Sampaio FERRAZ JR., Introdução ao estudo do direito (1995), cap.4.

Capítulo VI

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Dogmática e Segurança Jurídica

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quinto aspecto, a Dogmática, que estuda a divisão do Direito, por exemplo, a classificação em Direito Público e Privado 3.

2. A importância da Dogmática

Vejamos alguns autores, para verificar qual a importância da

Dogmática, sobretudo da doutrina, para trazer mais Segurança jurídica ao Direito.

Em linhas gerais poderíamos dizer que quanto mais se estuda

o Direito e se apresentam soluções diferentes, abre-se um leque de pos-sibilidades de aplicação da Lei e mais insegurança advém.

Por outro lado, paradoxalmente, quanto mais soluções tiver a

aplicação da Lei, muito mais segura será porque não ficou nenhuma hi-pótese sem ser estudada. Não é jogo de palavras, mas um paradoxo: quanto mais se estuda e se oferecem soluções, mais a decisão judicial se torna difícil, porque as opções são maiores.

Por isso, quanto mais doutrinas houver sobre um tema, mais claro este se torna. E segurança é clareza, é ver com evidência. Porque se várias pessoas estudam um assunto sob óticas diversas, ele terá sido exaustivamente estudado. Talvez nisto resida o valor das decisões cole-giadas: na câmara simples de três Juízes ou num plenário de vinte e cinco Juízes, ou mesmo no Supremo Tribunal com onze Magistrados, possuem visão mais ampla dos pontos diferentes sobre um mesmo tema. Então, a decisão que emana de um colegiado, quanto mais amplo mais segura nos parece que será.

O ilustre jusnaturalista Vallet de Goytisolo, escrevendo sobre a

segurança da norma jurídica em relação aos direitos em geral, diz que a esfera superior da Segurança Jurídica está no âmbito do Direito positivo. Trata-se da segurança no conhecimento de qual há de ser a norma jurídica aplicável em cada caso. Quer dizer, o Juiz deve determinar a

3 . Em sua Filosofia do Direito (1982), Miguel REALE nos adverte que “a Dogmática, em seus três

momentos lógicos de interpretação, construção e sistematização de normas jurídicas, não representa todo o Direito, mas o momento culminante da Ciência do Direito”. N. 209, p. 578.

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Dogmática e Segurança Jurídica

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solução justa. Para Vallet, o termo segurança se aplica igualmente à certeza jurídica, o aspecto subjetivo de aplicação do Direito. 4

3. Justiça versus Segurança Como valores distintos que são, qual o mais importante? Esta

parece ser uma colocação incorreta, a não ser que, ao interesse pela Justiça se interponha o interesse de saber de antemão, em cada caso, o que o Juiz adotaria como solução.

Aristóteles 5 já havia exposto que toda a Lei é universal e não

cobre todos os fatos. E nas coisas singulares que acontecem o Juiz recorre à eqüidade; ou quando interferem pressupostos de outras normas aos princípios gerais, casos em que o fato típico da norma nem sempre se subsume suficientemente com o fato do caso. Tal deficiência se cobriria com o costume e com uma eqüidade mista; para Aristóteles é a mais razoável, uma mescla da Lei com os costumes e com a intuição do Juiz.

As mudanças legislativas contínuas e incessantes modificam

tão somente o texto; senão, desapareceria todo trabalho interpretativo e doutrinário que se tenha formado até então. Surge também um acúmulo transitório de questões de fato; o melhor exemplo é a legislação fiscal continuamente modificada. É um problema que o Brasil hoje conhece bem: o excesso de leis, principalmente nos campos administrativo, previ-denciário, tributário, etc.

É uma seqüência variável de regras, normas e posturas que

ninguém consegue acompanhar. Daí a importância da informática como solução para que se tenham as leis atualizadas, prontamente acessíveis, inclusive identificando as antinomias entre várias delas.

4 . Juan B. VALLET de GOYTISOLO. La seguridad de la norma jurídica. Estudios de Deusto, v. 34/2

(jul/dic. 1986), p. 443. 5 . ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. L.V, n. 10.

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Já se disse que basta a modificação de um simples artigo de lei para derrubar uma biblioteca de doutrina. A proliferação de leis traz grande in-segurança, porque a cada lei que surge é necessário que os doutrinadores se debrucem sobre ela para reestudar aquele tema. A Lei de Luvas, de 1934, nunca fora mudada; mudaram-na há pouco 6. Funcionava bem, possuía uma lógica. Hoje, o que é preciso para uma re-novatória? Há um esforço dos juristas, todo o trabalho de pesquisa se reinicia e até que os primeiros casos relevantes cheguem aos tribunais e fixem a Jurisprudência, haverá uma evidente incerteza e, portanto, insegurança jurídica.

Então, com mudanças contínuas nas leis, a Segurança nada ganha; a multiplicação e mutação das leis atenta contra a Segurança jurídica. É que o Estado, em lugar de considerar-se sujeito de direito, se auto-estima como seu criador, podendo fabricá-lo ou desfazê-lo a seu talante. Na França, por respeito aos direitos privados, nem o Rei ousava tocar no Direito civil; 7 muito mais na Inglaterra.

Quer dizer, são a doutrina e a jurisprudência que vão cons-

truindo uma teia em torno dos textos antigos, de forma a ilustrar, completar e aperfeiçoar o Direito escrito.

4. O Direito como valoração do Justo Helmut Coing 8 enfatiza que o Direito não é um produto da

dedução lógica, mas se baseia nas decisões valorativas. A aplicação do Direito deve partir de pontos de vista valorativos e da utilidade subjacente à ordem jurídica, e tem de julgar a relação jurídica segundo os seus traços essenciais e não segundo sua estrutura formal.

O Direito deve operar com critérios valorativos; porém, essa

valoração não pode ser subjetiva nem depender de uma ideologia, pois eliminaria toda Segurança jurídica, caindo na arbitrariedade do Direito livre ou no particularismo radical do uso alternativo do Direito; se o critério de julgar é determinado pela classe social, partido ou corporação 6 . Lei da Locação Urbana (Lei nº 8.245, de 18.10.1991). 7. VALLET, op. cit., p. 446, citando Georges RIPERT. 8. Helmut COING, Fundamentos de Filosofía del Derecho (1976), p. 269. VALLET, idem, p. 451.

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a que pertencem os litigantes, o Direito ficaria sujeito à ideologia impe-rante ou a uma prática imposta pela autoridade. 9

Há um texto no Digesto: non ex regula ius summatur, o Direito

não surge da regra, a regra apenas positiva aquilo que já existia. O mesmo autor, falando sobre Jurisprudência dogmático-

sistemática, diz que a codificação moderna teve dois motores: o impulso revolucionário pseudo-progressista de mudanças e o desejo de simplifi-cação, conseqüência da perda do domínio do Direito antigo e da força criadora do povo. 10

Todo trabalho de buscar a justiça do caso concreto, inclusive o

esforço da Jurisprudência, resulta inevitavelmente interrompida e perturbada por toda mudança legislativa, se esta Jurisprudência não for recolhida e consolidada.

Os sistemas de recursos, revisão, rescisória, recurso extraor-

dinário, somente têm possibilidade de satisfazer à justiça do caso concreto se conjugados com alguma infringência legal que permita cassar a decisão considerada injusta e abrir caminho para ditar nova sentença justa. Esta é sua opinião: que o recurso não pode se dar por si mesmo, mas deve haver um fato novo para cassar a sentença anterior; se não, haverá mera repetição da sentença.

5. A segurança no Direito

Ainda segundo Vallet, 11a questão da segurança no Direito é

um problema pedagógico, a ser visto sob cinco pontos: 1º) educar para o sentido do justo, como do belo para o artista; é um trabalho que se faz na escola ou que se deve fazer: transmitir o sentido do justo, a importância do justo; o advogado não está para aplicar leis, nem o Juiz ou Promotor, mas para buscar a justiça; 2º) as profissões jurídicas têm

9. Voltaremos ao tema do uso alternativo do Direito no Cap. XII, O acesso à Justiça.

10. Idem, p. 452. 11. Idem, p.454.

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por objeto a arte do justo12; 3º) a Justiça concreta, contemplada pelos primeiros princípios: devemos procurar a Justiça concreta nos casos particulares, contemplando os princípios inerentes à natureza humana, conhecendo a natureza das coisas, através de experiências históricas e atuais. É o que se chama de sindérese, uma síntese elaborada pelo intelecto. 13

Vico tinha este pensamento, que é também de Montesquieu, a res-

peito da tradição e dos costumes, como parte básica do Direito. O Direito vive do novo, mas também do antigo; o novo se superpõe ao antigo, e não é possível abrogar o Código Civil e trazer outro absolutamente diferente, porque quem for legislar terá de ir aos Romanos, ao Código de Justiniano e acabará copiando, porque os parâmetros são aqueles que já existem tradicionalmente na sociedade; mudar as palavras não significaria nada, mas sim os institutos; jamais se poderá fazer um novo Código totalmente diferente, que não fale sobre família, contratos, sucessão etc.

O 4º ponto: as normas jurídicas são pautas para realização do

Direito, partituras baseadas em princípios e na natureza das coisas; pois, as normas não são o Direito, assim como as pautas não são a música.

Na precisa lição de Tércio Sampaio FERRAZ JR., “a busca desta natureza intrínseca das coisas é que é responsável pela permanente presença do chamado direito natural, aquele direito que não é posto, mas que emerge da própria essência das coisas”. 14

Um 5º aspecto: é preciso equilibrar as possíveis soluções razoáveis, não aplicando o silogismo puro, mas a tópica, como é o Direito razoável.

Ainda segundo Ferraz Jr., a natureza das coisas é aceita como lugar

comum (topoi), preenchido pelo pelos usos consagrados pela tradição;

12. Biondo BIONDI. Arte y Ciencia del Derecho (1953): tal como a arte da medicina, que é curar os

enfermos, a arte do justo é uma profissão prática, exige ciência e também arte. 13. É a idéia de Giambatista VICO, o verum ipsum factum ou o verum et factum convertuntur: a

verdade e o fato se convertem. Por essa idéia, VICO dá imenso valor à tradição e aos costumes, que considera de importância para a interpretação do Direito. Cf. VALLET (1994), N. 195, p. 643.

14. Op. cit., p. 142.

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ao fim, o objetivo é criar condições para a decidibilidade com certeza e segurança. 15

6. Dogmática e Segurança

Façamos agora uma passagem por alguns autores, para

apreciarmos seus pensamentos sobre a Dogmática e a Segurança jurídica.

O primeiro a merecer destaque como doutrinador, ainda atual,

é François Gény. Ele se rebelou contra o positivismo exacerbado e é, desde o final do século XIX, um dos defensores do Direito natural. Suas obras mais importantes: "Méthode d'interprétation” 16 e "Science et Téchnique“.17Gény realmente foi um reformador, tratou da eqüidade, do Direito natural e sobretudo da razoabilidade nos métodos de interpretação. Suas obras são de referência obrigatória e atuais para qualquer pesquisa, inclusive para o estudo da Segurança jurídica.

“Não cabe aqui analisar os processos cautelosos que Geny aconselha para a delicada tarefa de preencher as lacunas legais com os dados do “irredutível Direito Natural”. O que importa é notar o abandono de um princípio que até então reinara soberano na Jurisprudência conceitual: o da necessidade de esquemas ideais prévios, balizadores da atividade do intérprete e asseguradores de certeza e segurança”.18

Outro autor, civilista espanhol, nos anos 40 e 50, estando seus

livros em uso até hoje, é Federico de Castro; 19no primeiro volume de sua obra, que trata da Teoria Geral do Direito, apresenta conceitos avançados, sobretudo sobre Segurança jurídica: diz que a vocação de todo Jurista é a de atuar sobre a realidade presente, orientado para um fim, segundo, portanto, um método teleológico.

7. O valor da Jurisprudência

15. Idem, p. 143. 16. Méthode d'Interprétation et Sources en Droit Privé Positif (1898 e 1932), 2 vls. 17. Science et Technique en Droit Privé Positif (1922-24), 4 vls. 18. Miguel REALE, op. cit., p. 427. 19. Federico de CASTRO Y BRAVO. Derecho Civil de España. Parte general, v. I (1984), p.

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E de fato, o Jurista é um operador privilegiado na ordem social;

por mais que outros muitos profissionais pretendam “revolucionar” a sociedade, um Juiz pode transformá-la não somente com sentenças justas, decidindo muitos conflitos, mas, sobretudo, influindo na renovação do Direito. Por isso achamos que também professores, doutrinadores e operadores jurídicos podem aperfeiçoar muitos comportamentos sociais através do Direito, colaborando de forma essencial com a Justiça.

Os legisladores têm limites e devem se orientar conforme as

exigências da Justiça e da realidade social, ou seja, do bem comum. O legislador que cria normas em demasia está provocando insegurança jurídica e instabilidade no Direito. A propósito, Latorre refere que o problema da insegurança, criado pela multiplicação de Leis obscuras, está a exigir operadores dogmáticos, como fatores de recuperação da segurança em favor do cidadão comum, capazes de controlar, por meio de suas críticas, a arbitrariedade do legislador. 20

Na aplicação das normas é preciso observar o sentido de cada uma dentro do ordenamento jurídico. Para tanto, os juristas devem ter formação privilegiada, especializada. E a Jurisprudência vem a ser o valor supremo das opiniões dogmáticas. Pois a doutrina dos tribunais não é somente com relação ao Direito: quando um acórdão cita a obra jurídica de renomado jurista, o que acontece? Está incorporando aquela doutrina ao ordenamento jurídico, através da Jurisprudência; porque a sentença ou acórdão está avalizando a obra; é um julgamento da obra jurídica, porque se a doutrina não for correta, o Juiz não a cita ou o Tribunal a rejeita. O fato de ser invocada na fundamentação, atesta que a obra foi útil e influiu na decisão.

Quando o tribunal traz à colação vários autores, está demons-

trando o leque das opções de julgamento oferecidas pelos doutrinadores dogmáticos e que são incorporadas na decisão ou acórdão. Então, de um lado se está julgando boa a doutrina daquele autor, aceitando-a, e de outro, ao incorporá-la na decisão como motivação, se está incorporando ao próprio ordenamento jurídico. Por que isto? Veremos à frente que de uma maneira ou de outra, aceitando-se ou não seu valor como fonte do Direito, a Jurisprudência está, de fato, modificando o ordenamento jurídico. 20. A. LATORRE, Introducción al Derecho (1985), p. 38.

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8. A Dogmática doutrinária Outro jurista, Silva Melero,21fez um comentário sobre a

Jurisprudência da Escola Livre, que foi obra dos tribunais com vocação de eqüidade, voltada principalmente para a casuística, revelando influências ideológicas. Diz Melero que atualmente há um limite na siste-matização racional que leva à certeza jurídica e que acaba se reduzindo ao direito dado.

À medida em que se decide apenas com o que está escrito, o já existente, a segurança é maior; mas, à medida em que se decide criar alguma coisa, gera-se certa margem de insegurança.

Mas, se a missão dos Juristas se cumpre retamente, a conseqüência é a maior segurança; se o Juiz perde de vista o Direito positivo, elaborando um sistema apriorístico de verdades pessoais, à sua maneira, vai obscurecer o sentimento de legalidade e afetar gravemente a certeza e a segurança jurídica. Esta é uma das críticas ao uso alternativo do Direito. O código de um juiz tal será um código apriorístico, e julgar de acordo com ele obscurece o sentido de legalidade, ou anterioridade da Lei, e afeta diretamente a certeza e a segurança.

Este autor entende legítima a especulação dogmática criativa,

sobretudo doutrinária. O doutrinador é livre para criar soluções e especular. Então, diz ele, "si el juez puede fracasar ante ciertos casos o problemas humanamente insolubles, tampoco en muchos casos puede el médico salvar vidas...”. 22

Em ambos os casos o profissional deve ter humildade e

consciência de ter feito tudo o que era possível. Por isso, as decisões judiciais nunca são perfeitas e há litígios em que é absolutamente impossível encontrar uma solução perfeita, como, por exemplo, uma indenização justa.

21. Valentín SILVA MELERO. La certeza del Derecho, en relación con la misión de los juristas.

Rev.Gen. Leg. y Jurispr. (oct 1973), Nº 4, pp. 403ss. 22. Idem, p. 415.

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Isso não significa que haja falhas, porque os médicos estão a fim de salvar vidas, e no entanto, muitos morrem; e os juízes querem fazer justiça, mas também falham.

Outro autor, Calsamiglia23, analisa a questão indagando se a

Dogmática, com suas críticas permanentes e constantes pressões para revisão da ordem jurídica, contribui para a segurança ou, ao contrário, essas críticas e pressões da doutrina provocam insegurança jurídica. Em outras palavras, as mutações da doutrina causam segurança ou insegurança? É outro paradoxo: há coisas que são imutáveis em sua substância, ao passo que nos acidentes podem ser mudadas, como no processo: os procedimentos são mutáveis, mas não os princípios gerais.

Assim no direito substantivo: podemos acrescentar leis aos

Códigos ou emendas à Constituição; deve-se mudar o que pode ser mudado, mas os fundamentos e as instituições do Direito nem sempre, como, por exemplo, as denominadas cláusulas pétreas.

Em outra passagem questiona este autor: "Como a Dogmática,

algo assim tão teórico, portanto, tão espacial, pode ter força criadora e transformar o Direito, influindo na segurança e na concepção de justiça?". Veremos que a resposta é positiva.

Atílio Alterini,24advogado argentino, coloca o problema da

insegurança jurídica provocada pela multiplicação de leis tecnicamente obscuras, mal formuladas, quando, então, a existência de profissionais do Direito é um fator importante na recuperação dessa Segurança, esclarecendo, informando e controlando, pela crítica, a arbitrariedade do legislador.

Lêem-se nos jornais críticas candentes contra tal lei ou medida legis-lativa, como, por exemplo, medidas provisórias revogadas porque mal redigidas. O Executivo, com este sistema, é também Legislador, pois com as medidas provisórias está preparando leis e governando através delas.25

23. Albert CALSAMIGLIA. Introducción a la ciencia jurídica, pp. 142ss. 24. La inseguridad jurídica (1993), N .4, p. 28. 25. Veja-se, v.g., a MP que mandou cobrar, no mesmo ano, o IPMF: um Ministro, com uma liminar

derrubou-a em todo o Brasil, mostrando o poder de controle constitucional dos atos adminis-trativos e legislativos pelo Judiciário; a liminar funcionou como restauradora imediata dessa Segurança jurídica: "Eu, cidadão, tenho o direito de não pagar o indevido". Aquele momento jurídico reafirmou o caráter democrático especial do Judiciário, por demonstrar claramente que o Judiciário existe como Poder jurídico, independente e atuante, mesmo em confronto com os demais Poderes políticos. Esta independência, muitas vezes reafirmada, é a garantia de que “há juízes em Berlim!”, sem temor de submissão ao Estado, em prejuízo da sociedade.

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Luhmann26 afirma que a Dogmática não existe para si, mas para a aplicação do Direito. O conhecimento jurídico é comparável a uma informação do passado (input) para promover e orientar os resultados sociais do futuro (output). Reproduz a idéia de Gény sobre a função técnica do jurista; para ele, Dogmática é opinião pública e Segu-rança é um princípio-valor, dos mais reivindicados pela comunidade Dogmática.

Com input e out put quer significar que: o Legislador recebe os

fatos sociais, os desequilíbrios, os erros que ocorrem na sociedade e que precisam ser reordenados para que as pessoas se conduzam em harmonia. Então, faz-se a lei e uma vez publicada esta deve atingir objetivos de segurança para o futuro (out put).

Lembremos que a Lei, voltada para o passado, é estática27(é uma foto); embora esteja inerte, na verdade seus efeitos são para o futuro. Ao contrário, mais dinâmica que a Lei é a Jurisprudência (como uma fita de cinema), tema que retomaremos adiante.

Sobre a Lei no tempo, adverte Carnelutti que “quando si trata di

diritto, conoscere il passato è un passagio obbligato per conoscere il futuro”; “il passato non ha altro valore che quello di preparare il futuro”; “...il problema del bene o del male se identifica col problema del futuro”; e “... il diritto introduce il sovrano naturale nella natura...”. 28

Finalmente, segundo Esser,29se o Juiz pode assumir a respon-

sabilidade da formação de regras de Direito, é graças ao conjunto de doutrina dogmática, a communis opinio doctorum, que sua sentença pode ser encaixada dentro de um Direito total: “no es una convención arbitraria, sino una necesidad de racionalización lo que induce a la Jurisprudencia de todas las épocas a agrupar cada vez más sus soluciones en torno a conceptos dogmáticos,... estas formas

26. Niklas LUHMANN. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica (1983), ap. MEZQUITA DEL CACHO,

op. cit., p. 232, nota 196. 27. Recordando Zenão de Eléia, quando um arqueiro dispara uma flecha, ela não está em movimento,

mas parada. Se tomamos a flecha num ponto, ela, aí, está imóvel, no instante seguinte estará alí, mas inerte, e assim por diante... A lei se move quando invocada ou aplicada.

28. Arte del Diritto (1949), p. 74. Também Arte del Derecho (Seis meditaciones sobre el Derecho) (1956).

29. Josef ESSER. Principio y Norma en la elaboración jurisprudencial del Derecho Privado (1961), p. 383.

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Dogmática e Segurança Jurídica

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intelectuales donde vienen a moldearse los datos de la vida social que constituyen la materia del derecho”.

Vê-se, pois, que o Juiz forma Direito quando incorpora aquilo

que a doutrina escreveu, às suas decisões, que depois se tornarão Jurisprudência. Não sai na ementa ou enunciado, mas sabe-se que está supeditada em tal ou qual opinião. Portanto, o Juiz forma regras de Direito também graças ao conjunto dogmático da doutrina.

Para Ronald Dworkin,30a dogmática traz Segurança e pode

realizar a certeza do Direito; tem um especial valor para resolver casos difíceis, mas sempre existirá nas discussões doutrinárias certa margem residual de incerteza, quando as normas não trazem soluções e os princípios não são percebidos claramente; surge o problema da lacuna, que é a margem de incerteza para a qual a dogmática vai trazer segurança.

Quantas vezes os advogados não se socorrem dos doutrinado-

res? Quanto mais cultos, mais Segurança podem trazer à Dogmática. Santiago Nino 31 afirma que a Dogmática

“suministra a los jueces, sus principales destinatarios, sistemas de soluciones jurídicas mucho más coherentes, completos, precisos y adecuados axiológicamente que el material creado por los legisladores, sin abdicar por ello de su adhesión a la legislación”.

Demonstra, a seguir, que resulta mais evidente a tensão que

sofre a Dogmática jurídica entre, de um lado, “los ideales profesados explícitamente por sus cultores de proporcionar

una descripción objetiva e axiológicamente neutra del derecho vigente y, por otro lado, la función, que la dogmática cumple en forma latente, de reconstruir el sistema jurídico positivo de modo a eliminar sus indeterminaciones”.

30. Los derechos en serio (1984), pp. 94ss. 31. Introducción al análisis del derecho (1987), pp. 338-39.

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Foi Luhmann 32 quem tratou daquele paradoxo, já referido, de que certas opções racionais levam à insegurança, mas que esta é suportável por conduzir a uma maior Segurança, dada a superior racionalidade alcançada pela solução individual. Quando existe lacuna ou dúvida, quanto mais elevada for a idéia doutrinária mais segurança vai trazer para resolver o litígio.

Desenvolveu-se mesmo o conceito de incertezas relevantes 33

já pensadas por Recaséns Siches 34, como incertezas ativas, que têm efeito positivo para o progresso do Direito.

Descartes já falava da dúvida metódica, que leva a perguntar sempre o "porquê" das coisas. É a dúvida, portanto a insegurança ou incerteza, que obriga o Juiz à descoberta de uma solução para o caso concreto.

Desde os Jurisconsultos romanos a Dogmática auxilia a

Jurisprudência, opondo-se à insegurança, porque esta surge da ambigüidade da linguagem legislativa. À medida que o doutrinador racional, estudando a norma jurídica, se afasta do texto legal e encontra novas maneiras de explicar o que está escrito, ele se aproxima melhor dos resultados e extrai conseqüências mais justas.

Quem o explica bem é Vernengo 35, quando pergunta o que é

interpretar: é usar paráfrases, palavras diferentes para explicar a mesma coisa. A paráfrase evolui no sentido da frase, da norma; ela sai da letra fria e recria a mens legislatoris, e através dela, como se subíssemos a um plano elevado, podemos ver o significado do texto com mais clareza.

Eis a imagem do leque de soluções: à medida que a Dogmática

se desenvolve, quanto mais doutrinadores houver, o leque se abre e favorece a Segurança: se não, o critério de interpretação seria único e a Lei não poderia ser corrigida. Portanto, as inseguranças que a doutrina dissipa são muito mais do que as que ela introduz.

32. Cf. MEZQUITA DEL CACHO (1989), v. I, p. 234. 33. Idem, nota 199. 34. Tratado general de Filosofía del Derecho (1961), p. 226. 35. Roberto J. VERNENGO, La interpretación literal de la ley y sus problemas (1971), p. 65.

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Calsamiglia, 36já referido, comenta a respeito: “La dogmática se opone a la inseguridad que crea la ambigüedad del

lenguaje legal. ... La seguridad que ofrece la dogmática no es literal, sino racional: las teorias dogmáticas permiten un distanciamiento (no incontrolado) del texto legal y un mayor acercamiento a los resultados y consecuencias. ... Si no existiera dogmática, el criterio de interpretación literal sería el único, y la ley escrita no podería ser corregida, aunque condujera al absurdo, por otros argumentos”.

Mezquita del Cacho37 aponta o debate contrastado, este

grande contraditório dogmático, como fonte da opinião pública; é através da discussão de temas, hoje largamente propiciadas pelos meios de comunicação, que se está formando a consciência popular, inclusive so-bre o Direito.

Este autor refere-se ao uso alternativo do Direito, que já percorreu a

Europa, sobretudo a Itália; num primeiro momento, houve um temor pela segurança jurídica; o Direito alternativo anula, com toda evidência, a Segurança do Direito. Vai-se a um Juiz com a Lei na mão e ele decide fora do ordenamento! Onde fica a certeza de quem busca "Direito certo"?

Num segundo momento a comunidade dogmática isolou o fenômeno e operou uma reação lógica; surgiu então a doutrina explicando o que é, desmistificando o uso alternativo do Direito, desmascarando as intenções ideológicas que estão por traz e recolocando o problema da Segurança no devido lugar. Num terceiro instante a doutrina da Segurança jurídica acabou reforçada. Conclui esse autor que, para o princípio da Segurança, é maior benefício a livre discussão dogmática do que o dano conjuntural passageiro, em momentos críticos, de polêmicas e de decisões imaturas. Sempre haverá casos de decisões jurídicas absurdas. Fica a discussão: pode o Juiz ou não julgar fora do ordenamento? Até o momento em que os tribunais superiores corrijam e firmem a certeza jurisprudencial...

As inseguranças que a dogmática dissipa são muito maiores do

que as que acarreta; estas incertezas, na verdade são inquietudes; e toda verdadeira inquietude leva à Ciência, e a Ciência comporta nova Segurança, pois ciência é a determinação do que é certo. 38

9. Conclusões

36. Op.cit., pp. 142ss. 37. Op.cit., v. I, p. 235, nota 201. 38. DINAMARCO, Instrumentalidade... (1987), N. 33, p. 336; ALTERINI (1993), p. 48.

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Nossa intenção doutrinária é consolidar a Segurança no seu próprio conceito, sabendo que é um dos valores primordiais do Direito, especialmente quando este preside o Estado democrático. Por isso se justifica o empenho, a tarefa de estruturar esquemas para sua garantia em todos os campos jurídicos.

Um filósofo existencialista disse que "no começo era a

insegurança”: 39 tudo é insegurança, o homem quando nasce é inseguro, se deixar sozinho morre. Psicologicamente, o homem está sempre procurando a verdade, pois é próprio da natureza humana esta incerteza, a inquietude; como é próprio do humano o risco na ação.

Se optamos, v.g., entre vender e comprar, temos um risco, que

diminui com a cautela e a prudência, mas o risco sempre vai existir; aí estão as companhias de seguro para dar “segurança” nas incertezas dos casos fortuitos.

Sobre o tema, o apreciado sociólogo do Direito Jean Carbonnier

relaciona a visão da insegurança como um suposto da “angústia existencial” humana, imputando-a em parte à incerteza das fontes jurídicas, produto de uma excessiva legislação ou excessiva jurisprudência; pensa que esta sensação de inquietude vem alimentada por um conceito insolidário dos direitos, e que um futuro de Segurança jurídica comunitária exige uma transição em que a Segurança jurídica individual se vá fazendo sentir como menos indispensável, justificada e prestigiosa, sendo subs-tituída por uma versão mais social, coletiva ou ideal. 40

Também Jerome Frank, epígono do realismo jurídico norte-americano, recorreu à Psicologia para explicar a natureza do Direito: afirmou que o valor atribuído pelos juristas à certeza do Direito é efeito de que nos adultos imaturos perdura a tendência em buscar a segurança na força e na sabedoria dos pais. Disto derivaria o mito da utilidade da lógica formal no Direito. Para Frank, entretanto, a decisão judicial não é o resultado de um raciocínio, senão de um impulso (que chamaríamos de intuição ou conhecimento intuitivo do justo): independente do que afirma, nas decisões o Juiz chega a elas antes que trate de explicá-las.41

39. Peter WUST. Incertidumbre y riesgo (1955), pp. 9ss. 40. Flexible Droit (1976), pp. 120ss. E faz o elogio dos juízes: “Mais il faut des hommes, et notamment

des juges, pour le mettre (le droit) en oeuvre. Il est et ne vaut que par ces hommes. Qu’importe donc que les règles soient mouvantes, incertaines, si l’on est assuré de toujours trouver des juges équitables? la confiance que l’homme met en ses semblables, ou en ses supérieurs, vient ainsi calmer, au fond de son coeur, l’inquiétude suscitée par le monde inconnu des règles”. P. 125.

41. Apud VALLET de GOYTISOLO, Metodología de la determinación del derecho, pp. 1253-4.

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Dogmática e Segurança Jurídica

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Mas a finalidade deste estudo é sob o aspecto da dogmática: entendemos que a opinião dos juristas é salutar para restauração da Segurança, porque, no fundo, a doutrina, não sendo alternativa, não quer afrontar o ordenamento, mas explicá-lo, reorientando suas grandes linhas estruturais.

Entendemos o ordenamento como instituição necessária à

convivência humana, pois o homem não apenas vive numa sociedade, mas convive. Assim, esta convivência deve ser a mais segura possível, e o ordenamento é a maneira jurídica de estabelecer a ordem na sociedade. Por isso se chama ordenamento jurídico.

E a função da Jurisprudência é a reelaboração da doutrina, da

lei e da sentença; por isso é superior, em certo sentido, à doutrina, pois se constitui em outro corpo doutrinário, o jurisprudencial; 42 é superior (em sentido dogmático) à lei, pois lhe incumbe reescrever o teor da lei (a interpretação hermenêutica é uma tradução da língua normativa à língua da realidade;43e é superior à sentença pois pode a) confirmá-la integral-mente “por seus próprios fundamentos”; b) ampliar as decisões citra petita até satisfazer a integral pretensão das partes; e c) reduzir as decisões ultra petita aos termos do objeto litigioso.

42. Como é admitida pacificamente pelas doutrinas européias. 43. Tércio Sampaio FERRAZ JR., Introdução ao Estudo do Direito (1988), pp. 252ss.

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A Segurança como Fundamento e Garantia da Justiça

SUMÁRIO: 1. Relação dialética entre Segurança e Justiça. 2. As opiniões de Carnelutti e López de Oñate. 3. Legislação versus Jurisdição. 4. Sentenças relevantes e irrelevantes. 5. Direito passado, futuro e presente (ou atual). 6. Momento gerador e momento aplicativo da norma. 7. Segurança dos bens jurídicos. 8. Conclusões.

1. Relação dialética entre Segurança e Justiça

A doutrina nos apresenta esta oposição entre dois valores: a

Segurança e a Justiça; dispostas em situação dialética, significa que ora prevalece a Segurança, ora a Justiça, como numa balança: quando a Segurança está em alta, a Justiça está em baixa.

Para análise da questão adotamos como método de trabalho,

de pensamento e de Filosofia, que não deve existir uma dialética, que chamaríamos de “morte”: para prevalecer uma idéia, deve ser eliminada a outra, como acontece claramente nas dialéticas materialistas; mas, contrariamente, o que permanece na história da Humanidade, e portanto no Direito, é a dialética de complementaridade ou integração.

É preferível, então, que este confronto seja substituido nas

relações humanas por uma "dialética de vida", porque se trata de encontrar caminhos democráticos de liberdade para a construção de "homens novos" e uma "nova humanidade".

Temos na eletricidade dois pólos antagônicos: se ligarmos diretamente o positivo ao negativo haverá um curto circuito (‘morte’), mas se colocarmos entre eles uma lâmpada haverá luz; um motor, teremos energia; um aquecedor, produzirá calor (‘vida’). Esta é a finalidade da tensão, nome próprio destas polaridades existentes na natureza.

Capítulo VII

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A Segur ança como Fundamento e Gar ant ia da Just iça 97

Também Segurança e Justiça, sob esse aspecto, estabelecem uma polaridade dialética que se conclui pela integração entre os dois valores e não a pura eliminação de um pelo outro.

Carnelutti 1afirmara, inicialmente, que “a Segurança estrita tem

o preço terrível do sacrifício da Justiça"; para haver absoluta Segurança deve-se eliminar a Justiça.

Foi o caso do regime militar, de história recente, em que primava o

princípio da Segurança Nacional, que excluía certas liberdades políticas, econômicas, sociais e culturais da nação, e a própria Justiça esteve rigidamente contida.

Capograssi 2 questiona, nesta dialética, se, por acaso, a uma

Segurança menor haverá maior justiça; ou se a justiça fica mais garantida com a liberdade de julgamento e de decisões; e ainda, se o excesso de Segurança não traz injustiça, não propicia a arbitrariedade.

Nesse sentido, a relação Segurança e Justiça também poderia

ser entendida como Segurança e Bem Comum, como, por exemplo, a confiança pública em situações estabilizadas pelo tempo, no caso de usucapião, prescrição e outros institutos preclusivos.

O jusfilósofo alemão Radbruch,3 na sua fase pós-guerra, em

que praticamente se afastou do positivismo, após vivenciar as conse-qüências do nazismo, afirmou que os verdadeiros conflitos são entre justiça verdadeira e justiça aparente; nesse momento, passa do positivismo estrito (espécie de materialismo científico) às concepções estimativas do Direito, o valor, o conteúdo ético da norma jurídica.

Segue o raciocínio segundo o qual a lei não pode ser justa sem ser certa. Ou seja, o próprio ordenamento jurídico é seguro ou deve sê-lo, como um sistema de constelações, por exemplo, em que um julgador, de hoje ou do futuro, pode navegar tranqüilamente de um código para outro, de uma lei para outra, com absoluta Segurança de que, se aplicar corretamente a norma, estará fazendo justiça.

Recaséns Siches 4 refere-se à Segurança como um valor fun-dante, inferior em relação à Justiça, mas indispensável condição para a 1. La certezza del Diritto. Riv. Dir. Proc. Civ. (1943), I:81-91; Nuove riflessioni intorno alla certezza del

Diritto. Riv. Dir. Proc. Civ. (1950), v. I, n. 2, p. 115ss. Cf. MEZQUITA DEL CACHO, Seguridad Jurídica y Sistema Cautelar, I, p. 201.

2. Idem, ibid. 3. Idem, p. 199. 4. Idem, p. 200.

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A Segur ança como Fundamento e Gar ant ia da Just iça 98

mesma, já que nunca poderá se dar um pressuposto de Justiça sem que exista como pressuposto a Segurança.

Outro jusfilósofo espanhol, Rodriguez Paniagua,5 pretende

distinguir os campos da Sociologia jurídica (finalidades concretas do Direito), do Direito formal (Segurança) e da Justiça propriamente dita (Filosofia do Direito); mas também, ter uma visão onicompreensiva ou compreensão global do Direito; abarcar estes três aspectos, em uma síntese, para que esses valores atuem harmonicamente: o Direito seria uma ordenação da conduta humana voltada para proporcionar Segurança e Certeza a toda a sociedade, mas também realizar a Justiça.

É um certo tridimensionalismo, em que considera a Sociologia, que são os fatos sociais; o Direito formal, a norma; e a Justiça, o valor.

Realmente, não é possível separar a norma, que seria dogmática, ou só a Segurança; no fundo, é isso que o positivismo objetiva, uma estrutura hierárquica das normas, que seja absolutamente segura em si mesma, deixando de lado o fato social, que é a fonte material da norma, pois é na sociedade, onde as coisas acontecem, que o legislador vai buscar a compreensão para novas leis; Kelsen deixa de lado também os valores, toda a ética, a moral, o conteúdo, que, no entanto, o legislador deve dar à norma jurídica.

A oficialização do jogo, por exemplo, é imoral por natureza; pode-se jogar, gostar de fazê-lo, mas o jogo é uma paixão, intrinsecamente mau, porque leva a consequências más. Como exemplo gritante, o jogo do "bicho", clandestino, por ser de azar, em que só ganha o banqueiro, leva à acumulação de riquezas imensas, com poder de dominar até mesmo a polícia, a política, as manifestações populares, como o carnaval, e até entrar em atividades internacionais ilícitas, como o tráfico de drogas e armas, todas entrelaçadas.

Ora, a oficialização não vai tornar “moral” o jogo. É uma solução simplista do legislador para resolver um fato social. Mas esta lei, em si mesma seria imoral, porque estaria permitindo uma atividade nociva à dignidade natural da pessoa humana, que deve viver do trabalho honesto.6

Se não analisarmos a metodologia das leis sob seu aspecto

moral, vamos também aceitar o aborto, contrariando um dos princípios

5. José Maria RODRIGUEZ PANIAGUA, Derecho y Ética (1977), p. 13. 6. Os últimos acontecimentos neste campo, mostram, à saciedade, a perversão da chamada “Lei

Zico”, que vem sendo deturpada, a pretexto de beneficiar atividades desportivas.

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fundamentais, presente em todas as Constituições, que é a defesa da vida.

E o aborto, por mais que se justifique, por mais argumentos que se apresentem, não sobrevive ao princípio ou valor maior, que é a garantia da vida pelo Estado. Embora seja permitido em outros países, não signi-fica que se torne moralmente aceitável e justo, não significa que a lei torne justa a interrupção da gravidez, porque ela não pode ultrapassar um preceito maior, de ordem constitucional ou mesmo natural, que é assegurar o direito à vida. 7

2. As opiniões de Carnelutti e López de Oñate

Carnelutti,8retificando posição anterior, fala da insuficiência do Direito como juízo de terceiros; se além de Justiça o Direito não fosse Segurança, não ofereceria garantia para a ação judicial.

Quer dizer, o advogado só julga bem se deve ajuizar uma ação, se tiver garantia para agir. É preciso julgar bem as situações; é questão de previsibilidade do direito, a possibilidade de previsão do homem médio comum, o quod plerumque accidit, o que acontece medianamente entre os cidadãos.

Esta opinião de Carnelutti é oposta à de López de Oñate, que escreveu na Itália obra clássica, nos anos quarentas,9 em que segue uma linha positivista ou pelo menos defende a Segurança como um aspecto proeminente da norma jurídica.

Oñate considera o conflito Segurança versus Justiça no plano

empírico da ação humana: no momento de estruturação do ordena-mento, quando se fazem as leis; ao estabelecer as normas de legalidade é que o legislador vai dar ênfase à Segurança no Direito.

Já Carnelutti refere-se ao plano do julgamento, à experiência

concreta do caso singular, momento da decisão judicial, em que cabe o conflito direto ou autêntico entre Segurança e Justiça.

As duas posições assim se resumem: enquanto Oñate entende que os elementos da Segurança entram na lei por ação do legislador,

7. Cf. Ives Gandra da Silva MARTINS. Fundamentos do Direito natural à vida. In Rev.Jurisprudência dos

Tribunais de Alçada Civil do Estado de São Paulo, vol. 127 (mai-jun-1991), pp. 105-111, e Caderno de Direito Natural, N. 2, pp.15-23.

8. La Certezza del Diritto, na obra de mesmo título de Lopez de Oñate, 2ª ed., pp. 191-206. 9. F. LÓPEZ DE OÑATE, La Certezza del Diritto (1968), 2ª ed.

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Carnelutti sustenta que a Segurança surge na experiência concreta do julgamento singular.

A posição de Carnelutti confirma nossa tese de que nas decisões judiciais há mais Segurança (o que denominamos Certeza subjetiva do Direito), do que na lei invocada; parafraseando o célebre advogado e professor de Pádua, entendemos que na lei há mais Segurança e menos Justiça, porque a Segurança está objetivada nas garantias que a lei positiva oferece, por sua própria natureza, enquanto a Justiça é ainda um prognóstico a se concretizar.

Doutra parte, nas decisões, a Justiça (Certeza subjetiva do

Direito justo), é mais evidente que a Segurança porque dirimiu o conflito subjacente ao processo, procurando dar a cada um o mais justo possível.

Esta idéia será desenvolvida adiante, quando procuraremos demonstrar que nas decisões reiteradas, que se transformam em Jurisprudência dominante, a Certeza deixa de ser um valor particular, (coisa julgada material) para devir Segurança objetiva, pois retorna ao Plano da Lei, como regra geral e abstrata.

Reencontramos, assim, aquela inicial posição conciliatória ou

integrativa: a Segurança está nos dois polos, como momentos sucessivos e preordenados um ao outro, o da Lei e o da Sentença:

Plano da Segurança Jurídica(objetiva)

Lei =Segurança

geralobjetiva(hipotética)

Jurisprudência = Restaura mediatamentea Segurança objetivadas Relações Privadas,da Lei e de todo o Ordenamento

CERTEZA

SEGURANÇA

Sentença = Restaura Certeza subjetiva

imediatamente adas partes

Plano da Certeza do Direito(subjetiva)

1º3º

A Jurisprudência é a Lei provada justa; só será aceita como justo legal

passando pela prova do caso individual, em que será contrastada com os fatos, as circunstâncias de tempo, lugar, valores econômicos, sociais, em um processo de adequação geral-particular, passado-futuro.

A decisão judicial é uma paráfrase da Lei, reformula o texto legal,

tornando-o mais persuasivo, mais conveniente ou mais adequado ao caso

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A Segur ança como Fundamento e Gar ant ia da Just iça 101

particular, segundo a interpretação adotada, especificadora, restritiva ou extensiva. 10

3. Legislação versus Jurisdição

Esta polêmica de Oñate e Carnelutti reproduz a antiga contro-

vérsia entre Legislação e Jurisdição. 11 A Legislação corresponde ao plano da totalidade da norma, da

generalidade e da abstração, ao passo que o plano do julgador é o da particularidade, ou seja, da individualidade e da multiplicidade.

O legislador é um homem da sociedade, que está em contato

permanente com o povo; depois de ouví-lo e sentir-lhe os problemas sociais, leva-os para sua assembléia, onde deverá, em nível acadêmico, doutrinário, dogmático, discutir e propor um consenso sobre a melhor lei que deveria ser adotada. O legislador sai do povo, da realidade da natureza humana, com esses fatos, e os transporta ao mundo das idéias (no sentido platônico).

A visão do legislador é a da totalidade, toda ela abstração,

como uma lente grande angular; com isto a lei não consegue visualizar as particularidades de cada fato individual. Aristóteles já advertira que “o erro não está na lei, nem no legislador, senão que deriva da natureza da própria ação”, 12 daí não se poder prever todas as hipóteses que ocorrerão de futuro. Por isso que as leis possuem lacunas, apresentam antinomias e conflitos no tempo e no espaço, e exigem integração por outras normas ou princípios.

Ora, o lado oposto - a função do julgador - é como uma lente

de aproximação. Também ele é um homem do povo, freqüenta ambien-tes os mais diversos, não é homem isolado, assepticamente separado da sociedade. Conhece as realidades sociais, econômicas e políticas do momento, e as fraquezas e virtudes do homem concreto que está à sua frente, através dos conflitos sociais que deve decidir.

Será oportuno recordar as palavras de Carnelutti, citadas por Recaséns Siches, a respeito das duas funções em apreço:

10. Tércio Sampaio FERRAZ JR., Introdução ao Estudo do Direito (1995), p. 282; Roberto J.

VERNENGO, La interpretación literal de la ley y sus problemas (1971), p. 65. 11. Cf. Cap. X. Integração Legislação-Jurisdição. 12. Ética a Nicômaco. L.V, N. 10.

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“No os dejéis, ante todo, seducir por el mito del legislador. Más bien, pensad en el juez, que es verdaderamente la figura central del Derecho. Un ordenamiento jurídico se puede conseguir sin ley, pero no sin juez. El hecho de que, en la escuela europea continental, la figura del legislador haya sobrepujado en otro tiempo a la del juez, es uno de nuestros más graves errores. Es bastante más preferible para un pueblo el tener malas leyes con buenos jueces que no malos jueces con buenas leyes. ... Y, sobretodo, cuidad mucho de la dignidad, el prestigio, la libertad del juez, y de no atarle demasiado en corto las manos. Es el juez, no el legislador, quien tiene ante sí al hombre vivo, mientras que el hombre del legislador es desgraciadamente una marioneta. Y sólo el contacto con el hombre vivo y auténtico, con sus fuerzas y sus debilidades, con sus alegrías y sus sufrimientos, con su bien y su mal, pueden inspirar esa visión suprema que es la intuición de la justicia.” 13

Com isto, as duas pontas da sociedade se encontram: a dos

fatos sociais problemáticos equacionadas pelo legislador, e a do julgador que conhece a norma, e vai lhe dar conteúdo segundo as circunstâncias do caso concreto, o momento histórico, os fatos que se lhe apresentam e que não são os mesmos do tempo do legislador.

O Código Civil, v.g., elaborado em 1916, continua sendo aplicado, mas quantas normas os tribunais já não modificaram, porque foi se desatualizando com o transcorrer do tempo e com o advento das grandes transformações sociais. Há uma distância entre o tempo do legislar e o tempo do julgar. O julgamento não é um fato coletivo, mas individualizado.

Ora, é muito mais fácil ao Juiz dizer exatamente qual é a nor-

ma, como esta se aplica, com que extensidade, pois tem, às suas mãos, todo um instrumental jurídico, como um médico.

A medicina estuda doenças em geral, mas cada pessoa é diferente de outro doente do mesmo mal: para cada uma o médico possui uma terapia, remédio ou dosagem particular. Este é também o papel do Juiz.

O papel do legislador é importante, a toda evidência, porque deve normatizar a vida e a conduta dos homens em sociedade. E o julgador? O papel do Juiz, para muitos autores,14 e para nós particular-mente, sobretudo nestes novos tempos de redemocratização, é, sem dúvida, mais relevante. Enquanto o legislador vê a sociedade como entidade coletiva, sem face, o Juiz trata de pessoas particulares, que têm nome e posição certa na sociedade, como o médico, que não trata de doenças, genericamente, mas de doentes concretos. 13. El juez es más importante que el legislador, según Carnelutti, in “Experiencia jurídica...”, p. 488. 14. Autores que privilegiam o Juiz ao Legislador: Carnelutti, Sauer, Recaséns Siches, Pound, Couture,

Reale e outros.

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A Segur ança como Fundamento e Gar ant ia da Just iça 103

Esta é a especialidade do Juiz: resolver contendas particu-

lares, em que a sentença acaba se tornando uma norma especial que interage com as partes; é uma das funções do processo atuar como instrumento de aproximação da Lei geral ao caso concreto. 15

4. Sentenças relevantes e irrelevantes

Reputamos a atuação do Juiz, por tudo isso, como mais

eminente que a do legislador, porque é mais atual, numa dinâmica da evolução do Direito; entendemos, ademais, que a reiteração de decisões judiciais sobre a mesma questão de Direito, por se acumular, tende a uma predominância jurídico-doutrinária, donde emana o Direito atualizado, presente, o Direito jurisprudencial ou sumular. 16

Consideramos a Lei como um Direito passado e a sentença

singular como um Direito futuro, a menos que se torne, precocemente, coisa julgada; serão, entretanto, sentenças comuns, irrelevantes, que não geram doutrinas, porque não foram contrastadas na apreciação colegiada das instâncias superiores.

Há julgados, todavia, que são relevantes para o Direito (bem

por isso havia no sistema de recursos o instituto da argüição de relevância). Relevante é o que pode contrariar a Constituição e ofender o ordenamento. Relevantes são as sentenças quando seu conteúdo pode transformar o Direito e, por isso, sempre interessam aos Tribunais, aos quais compete o controle da legalidade e da constitucionalidade, e, portanto, da motivação fundamentada das decisões.

Os temas relevantes, quando se repetem nos Tribunais,

tendem a formar uma convicção uniformizada sobre eles: é o que se chama de Jurisprudência predominante. Sendo predominante torna-se um Direito presente. Daí entendermos a sentença como um Direito futu-ro, porque não termina em si mesma, mas é meio, direcionada que está para a formação da Jurisprudência. 17

5. Direito passado, futuro e presente (ou atual) 15. Cândido Rangel DINAMARCO, A instrumentalidade do processo (1987), N. 29, p. 294. 16. Veja-se, a propósito, a elucidativa obra de Giovanni ORRÙ, Richterrecht (1983). Cf. Cap. IX,

Direito Judicial, Jurisprudencial, Sumular. 17. VALLET trata das “sentenças concordantes”, indagando se têm auctoritas, potestas ou tão

somente força fática, temas que discutiremos. Cf. Metodología de las Leyes (1991), p. 573.

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A Segur ança como Fundamento e Gar ant ia da Just iça 104

A respeito do tempo, Mário Ferreira dos Santos,18 ensinava

que o presente é a síntese do passado e do futuro, síntese dialética, portanto. Entendemos a Jurisprudência como Direito presente, no senti-do de Direito vivo e atual; por isso mesmo podemos considerá-la fonte material, porque os legisladores, assim como extraem da sociedade os fatos e costumes para fundamentar suas leis, também se inspiram na Jurisprudência para aperfeiçoá-las.

Correntemente, doutrinadores e legisladores rejeitam a Juris-

prudência como fonte formal do Direito. Por isso, resta considerá-la fonte material, porque é evidente e real, não podendo ser negada.

Alguns exemplos, como o da citada Lei da Correção Monetária: depois que o Supremo Tribunal Federal dera a última palavra sobre a questão, de que em todos os débitos judiciais incidia a atualização, o Presidente da República apresentou Projeto de Lei incorporando toda a doutrina até então construída pela Jurisprudência. Em todos os casos anteriores vinha-se aplicando a correção monetária, não por força de lei, mas da Jurisprudência dominante;19 quer dizer, o legislador se curvou diante de uma evidência, originada nos Tribunais Superiores, para elaborar uma lei definitiva sobre tema jurídico relevante.

Podemos citar, igualmente, o uso do cheque visado, que se tornara costume, hoje incorporado à atual Lei do Cheque e intitulado “cheque administrativo”.

O comércio, como sempre muito ágil e ponta avançada do Direito Comercial, hoje em dia utiliza largamente o cheque pré-datado, tendo gerado certa confusão quando entrou em vigor o Cruzeiro Real. O Banco Central não admitiu aceitar tais cheques como forma de pagamento futuro; o Presidente da República teve de intervir em contrário, e agiu prudencialmente, pois o costume não se revoga com portaria ministerial, que não tem força de lei, prejudicando a prática comercial, pois entre comprador e vendedor há um contrato tácito, fundado na mútua confiança, básica para o comércio.

Então, a oposição entre López de Oñate e Carnelutti reflete

velha disputa entre o legislador e o julgador. Enquanto aquele é como Epimeteu, que se volta para o passado, este é Prometeu, de frente ao futuro,20 sendo o presente a Jurisprudência. 18. Mário Ferreira dos SANTOS, Ontologia e Cosmologia (1954), p. 42: “O presente é a síntese do

epimetêico (passado) e do prometêico (futuro), por isso é hibridez de ato e potência (devir)”. 19. Cf. Arnoldo WALD, A correção monetária na jurisprudência do STF. Rev. Tribs., v. 524, pp. 26-35; Quatro

décadas de evolução da correção monetária (1954-1994), Rev. For., v. 327 (1994), pp. 13-17. 20. Junito de Souza BRANDÃO. Mitologia grega (1987),Vol. I, pp. 166-167. Prometeu (de pro-man-

thánein), “o que vê antes”, o previdente (pro-videns, o vir prudens dos romanos); e Epimeteu (de

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A Segur ança como Fundamento e Gar ant ia da Just iça 105

O Juiz, de primeira instância ou de Tribunal inferior, no fundo,

quando profere sentença ou acórdão, o que deseja é ver confirmada a solução jurídica por ele determinada, assim como o advogado pretende o acolhimento da sua tese. Por isso, vence no debate o melhor arrazoado, desde que os direitos invocados estejam conforme a lei.

O orgulho profissional do advogado é dizer: "Minha tese foi vencedora!", e o do Juiz: "Minha sentença foi confirmada!". Quer dizer, os operadores do Direito, todos, inclusive o legislador, estão de olhos postos no futuro, que é a confirmação da lei pelos Tribunais, únicos a dizer a última palavra sobre Direito. E esta é a visão do julgador.

6. Momento gerador e momento aplicativo da norma

No sentido desta discussão, Heinrich Henkel21 considera distintos os campos da Segurança e da Justiça: o da Segurança é o normativo, portanto o da Lei; e o da Justiça é o aplicativo, ou seja, do julgador.

Afirma não ser possível uma síntese direta desses dois

momentos. Parece-nos uma afirmação discutível. É impossível sintetizar a norma com a sentença? Não sabemos até que ponto aprofundar este pensamento, salvo por uma abordagem hegeliana, em que a síntese abrange o geral e as partes, conjuntamente.

Wilhelm Sauer,22 por sua vez, apresenta teoria interessante

sobre a justiça. Todo direito é material, como no exemplo do Código de Trânsito, onde os sinais são direito material, aquilo que se vê; obedecer regras é algo concreto (um agere ou um facere).

Mas, diz ele, a realização da justiça só se pode medir se

referida a um aspecto muito limitado (como uma norma concreta e especial), ou a resoluções particulares das autoridades, em sua aplicação.

Quanto à vantagem do Juiz sobre o legislador, esclarece: o

Juiz não tem de generalizar, o que lhe permite alcançar a justiça no caso determinado muito mais eficaz e rapidamente. Assim, a norma, em

epi-manthánein), “o que vê depois”, porque Prometeu advertira seu irmão para não receber presentes de Zeus, mas Epimeteu aceitou Pandora e todas as desgraças contidas na caixa ofertada por Zeus.

21. MEZQUITA DEL CACHO, op. cit., I, p. 203. 22. Idem, ibid.

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sua generalidade, pode ser injusta, mas na sua particularidade, é difícil ao Juiz ser injusto. Pode acontecer como erro humano.

Quer dizer, o legislador erra em tamanho macro, mas quando o Juiz erra é em micro. O legislador atua macrometricamente, enquanto o Juiz age micrometricamente. Ou seja, este tem muito mais chance de acertar, porque cuida do particular; é mais fácil o médico curar um doente que produzir um remédio para todos, indistintamente.

Sauer distingue o momento generativo, relativo aos costumes

ou às leis (mas não à Jurisprudência),23e outro momento, o aplicativo, tanto administrativo como judicial.

Diz este autor que a entrada dos valores no mundo jurídico se

dá no momento gerador, pela legislação. Ele está, nesse sentido, de acordo com o ensino de Henkel, ou seja, os valores ingressam no Direito pelas leis e costumes e a estruturação do ordenamento deve tender ao equilíbrio entre Segurança e Certeza, de um lado, e finalidades sociais, econômicas e culturais, de outro, para não haver uma tendência em prol da Segurança ou a favor dos fins sócio-econômi-co-culturais.

Capograssi24 também aponta o perigo dos regimes totalitários

de "superarem" a legalidade por outras Seguranças objetivas, dogmá-ticas, baseadas em interesses políticos como a raça, o partido, a classe, a nação.

Se enfatizarmos estes aspectos, por exemplo, a pretexto de

melhorar a "raça", como fez o nazismo, ou o nacionalismo, também nazi-fascista, será o fim da Segurança e da Justiça e o império do arbítrio.

Não houve momento em que o Direito fosse tão arbitrário quanto no Nazismo, e por isso mesmo este fenômeno político revolucionou o Direito, fazendo retornar o interesse pelo Direito natural; já havia começado desde o século passado, intensificando-se após a Primeira Guerra Mundial, mas ao atingir 1945, ao fim da Segunda Guerra, esses estudos rebrotaram com maior vigor, porque havia que colmatar o déficit de Justiça e Democracia que os regimes autoritários deixaram, e o Direito natural oferecia precipuamente os valores procurados.

23. Cremos, ao contrário, ser a Jurisprudência o único e privilegiado momento gerador de Direito

novo, vivo e presente. 24. Idem, p. 204.

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Faltava naqueles regimes políticos, sobretudo, o respeito pela pessoa humana e o Direito natural retornou para preencher o vazio produzido pelos ordenamentos jurídicos totalitários.

O Século XIX foi propício ao desenvolvimento do Positivismo jurídico, mas desde o seu final ressurge o Direito natural, embora influenciado pelas Filosofias modernas, como a Fenomenologia, a teoria dos valores ou axiologia, o existencialismo e o marxismo. Entretanto, um acontecimento histórico de suma importância para a irrupção dos estudos jusnaturalistas foi a expansão do nazismo; a Legislação de Nuremberg, de 1935, primou pelo abandono flagrante dos princípios de Direito natural. Foi precisamente na Alemanha, após a Segunda Guerra, necessitada de fundamentos jurídicos sólidos para superar a crise moral e material em que se afundou, que mais refloresceram as idéias jusnaturalistas. 25

Para Elias Diaz,26 à medida que a Segurança jurídica progride

vai incorporando ao Direito novos contributos de Justiça intrínseca. Valores que estavam no campo da Ética, hoje podemos identificá-los com os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais e estão sinte-tizados nas garantias constitucionais.

Diminui hoje a tensão Segurança versus Justiça, à medida que se renovam os estudos sobre Direito natural, como uma metodologia jurídica. Realiza-se uma "aspiração-inspiração" na evolução dogmática do ordenamento, mas também por via de uma Jurisprudência inte-grativa.27 Nesta evolução, não só pela atividade legislativa como juris-prudencial, dá-se aquela síntese que se atualiza na Jurisprudência, pela

25. Todavia, muito antes, Rudolf STAMMLER já se firmara como o precursor das novas idéias

jusnaturalistas, como a de que o Direito positivo há de ser um "Direito Justo", pressupondo uma idéia superior de Justiça, inspirada pelo Direito natural. Mas, como filósofo kantiano, bastava-lhe um Direito natural meramente "formal", sem conteúdo material de validez permanente, mas adaptável às diversas circunstâncias históricas, o que é conhecido como Direito natural de conteúdo variável. Cf., a propósito, Karl LARENZ, Derecho justo (1985).

Outros autores destacados foram Heinrich ROMMEN, Erik WOLF, Helen SILVING, Johannes MESSNER, Jacques LECLERCQ, Miguel SANCHO IZQUIERDO e Javier HERVADA, Rafael GOMEZ PÉREZ, René CASSIN, Francisco PUY, J. B. VALLET de GOYTISOLO, Antonio TRUYOL Y SERRA, M. RODRIGUEZ MOLINERO, J.M.RODRIGUEZ PANIAGUA, Antonio HERNANDEZ-GIL, Leo STRAUSS, Guido FASSÒ, A. FERNANDEZ-GALIANO, Bogumil JASINOWSKI, Bernardino MONTEJANO (h.), Giovanni AMBROSETI, German J. BIDART CAMPOS, etc.

Entre nós, modernamente, destacam-se Alexandre CORREIA, Leonardo VAN ACKER, José Pedro GALVÃO DE SOUSA, Ives Gandra da Silva MARTINS, Vandyck Nóbrega de ARAÚJO, Rubens Limongi FRANÇA, Walter MORAES, Ylves José de MIRANDA GUIMARÃES, Armando CÂMARA, Maria Helena F. da CÂMARA, e muitos outros.

26. Idem, p. 205. 27. Veja-se a propósito, a análise profunda de Ives Gandra da Silva MARTINS, A Jurisprudência

integrativa e o ideal de Justiça, Coimbra, 1989.

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qual o ordenamento jurídico termina cada ciclo evolutivo muito mais enriquecido. 28

Legaz y Lacambra,29por sua vez, afirma que Justiça e Segurança são realidades distintas, mas evidentes; abstraindo-se a Segurança, a Justiça torna-se mera idéia ou virtude individual; ou se abstrairmos da Segurança o valor Justiça, aquela se torna força dominadora, desprovida de qualquer condicionamento ético. 30

A Segurança é elemento intrínseco da Justiça; portanto, todos

os aspectos da Segurança jurídica, em conjunto, permitem valorar até que ponto se realiza a Justiça em sua dupla faceta, individual e social: individual, quando é o caso concreto e social quanto à norma legislada.

As democracias constitucionais modernas, como a nossa, para

instituírem a Segurança jurídica, partem, não da Ordem, mas da Igual-dade, Liberdade e idéias de progresso, que levarão à Ordem e à Justiça. Outros regimes partem da Segurança do ponto de vista coletivo, social ou nacional, em detrimento do indivíduo.

A Justiça que passa pela idéia do coletivo também é diminuída; pois

o coletivo não tem nome, a massa não tem identidade; legisla-se para o coletivo, mas na verdade, nem sempre deve prevalecer o coletivo, pois a Justiça atua para o cidadão. Muito embora o indivíduo esteja inserido em um corpo, este é um conjunto social ordenado e mesmo dividido em setores econômicos, políticos, culturais, religiosos etc., constitui uma única sociedade.

7. A Segurança dos bens jurídicos

Para o renomado professor Pérez Luño,31 a aproximação Segurança e Justiça se dá a partir da concreção de ambos valores; o primeiro deixa de se identificar com a simples noção de legalidade ou positividade do Direito, passando a uma conexão imediata a bens jurídicos básicos, garantidos necessariamente; a segunda perde sua dimensão ideal e abstrata para incorporar as exigências igualitárias que informam seu conteúdo no Estado democrático de Direito.

Partindo de doutrina que vê atualmente uma transição da

Segurança jurídica para a Segurança dos bens jurídicos, como Justiça

28. MEZQUITA DEL CACHO, op.cit., p. 206. 29. Idem, ibid. 30. Foi por isso que ilustre Ministro, durante o regime militar, quando predominava a doutrina da

Segurança nacional, podia dizer que o Estado é "amoral", no sentido de que o Estado poderia agir até mesmo arbitrariamente, sem ofender a ordem jurídica e social.

31. PÉREZ LUÑO. La Seguridad Jurídica, p. 51.

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Social, o autor espanhol aponta uma tendência de se funcionalizar os instrumentos de proteção jurídica até obter os bens ou valores jurídicos que se estimam imprescindíveis à convivência social.32

Anota alguns aspectos positivos para revisão das funções da

Segurança jurídica: vincular empiricamente as garantias de Segurança à obtenção de bens jurídicos concretos (vida, liberdade, saúde, qualidade de vida, segurança no trânsito etc.); comprovar a eficácia da Segurança frente às suas conseqüências, no plano dos bens jurídicos, a cuja tutela se dirige; legitimar a função da Segurança no Estado democrático, como base indispensável à consecução dos grandes objetivos constitucionais; orientar o trabalho legislativo no estabelecimento de técnicas de proteção claras e justas dos bens jurídicos.

Trata-se, todavia, de uma concepção problemática, de caráter

impreciso e equívoco; a noção "bens jurídicos" não traduz uma certeza: "são bens que incumbem a todos", ou "bens que o Direito deve proteger". Parece ser uma tautologia, pois na definição está incluído seu próprio objeto.

A amplitude dos objetos ou bens merecedores de tutela jurídica (meio ambiente, proteção a consumidores, proteção aos dados pessoais etc.), pode tornar "inseguras" as relações de sujeitos de Direitos coletivos ou difusos sobre esses bens. 33

Além disso, esta teoria dos bens jurídicos pode se confundir

com a concepção preventiva do Estado, onde se coloca a discussão, no Direito penal, das medidas de segurança; analisando-se as penas no Direito criminal, vemos que se dirigem ao passado, para reprimir, como retribuição, ações típicas cometidas; enquanto as medidas de segurança visam ao futuro, concebidos para prevenir perigos sociais.

Nos regimes ditatoriais é extremamente ameaçador, porque

assim mandaram para os campos de concentração milhões de pessoas, bastando que o Estado, por seus Juízes, declarasse como insano qualquer opositor político;34 ou o Partido denunciasse os adversários como inimigos do Regime e os enviasse para os “gulags”.35

32. Idem, p. 52. 33. PÉREZ LUÑO, op. cit., p. 53. 34. Cf. O Julgamento de Nuremberg, filme referido no Cap. XII. Jurisprudência: fonte última da

Segurança jurídica. 35. Sigla do sistema carcerário do regime de Stalin, cf. Aleksandr SOLJENITSIN, O Arquipélago

Gulag (várias edições, em inúmeras línguas), de leitura obrigatória para uma Reconstrução dos Direitos Humanos, na feliz expressão da obra de Celso LAFER (1988).

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O problema da aplicação de medida de segurança ou pena é de discussão antiga. Kant e Hegel, ilustres justificadores da tese da retribuição da pena, já alertavam sobre o perigo dos chamados procedimentos preventivos, para a liberdade e dignidade do homem: arrestar pessoas para que não venham a cometer crimes.

Para Kant a pena é um imperativo categórico, não pode servir

de meio para se obterem outros bens do indivíduo ou da sociedade; o homem não é meio para outros fins, nem é mero objeto, como no Direito das coisas.

E Hegel afirmou que a pena é a "violação da violação", a viola-

ção dos direitos de quem violou o Direito; trata-se da retribuição a quem lesou o Direito, destinada a restabelecê-lo. 36

Esta questão não é meramente teórica ou filosófica, mas a encon-

tramos inserida na realidade legislativa brasileira, como se deduz da recente Lei Antitruste, nº 8.884, de 11.6.1994, cujo art. 1º declama insolitamente que “a coletividade é a titular dos bens jurídicos prote-gidos por esta lei” (negritos nossos).

Aparece aqui a teoria que privilegia o interesse do Estado, em

detrimento dos interesses das pessoas, não mais consideradas indivi-dualmente, mas despersonalizadas no “coletivo”.

Equivoca-se a lei ao considerar titular de bens jurídicos entidade

desprovida de personalidade jurídica. Trata-se de uma utopia este predomínio do coletivo sobre o individual, fonte de um holismo ou totalitarismo que visa estatizar a economia, congelar preços e até dirigir a liberdade contratual.

Ademais, é “falsa a crença no primado do coletivo sobre o individual,

com aberta ofensa ao valor primordial da pessoa humana”, cuja liberdade plena reside na “livre iniciativa” (CF, art. 1º), “um dos fundamentos da ordem econômica democrática”. 37

Referida lei agride os direitos individuais, quando estatui infrações à

ordem econômica “independente de culpa”, ao se praticarem certos atos, “ainda que não sejam alcançados seus efeitos” (art. 20), “além de outras” condutas abusivas (art. 21), numa autêntica inovação de sanções penais em aberto; ou ao estabelecer policiamento econômico sem precedentes (art. 54, § 3º), como a possibilidade de suspensão do sigilo bancário e outros (art. 14, V), etc.

Serve esta Lei, cabalmente, como exemplo de Legislação capaz de

violentar a cidadania, trazendo à sociedade a insegurança jurídica, fonte

36. PÉREZ LUÑO, op. cit., p. 56. 37. Cf. Miguel REALE, Lei e violência, in O Estado de S.Paulo, 2.7.1994.

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perene dos excessivos apelos ao Judiciário para que se determine a certeza dos seus direitos.

Concluindo, bens jurídicos seriam os direitos fundamentais, em cuja defesa se podem integrar simultaneamente as exigências individuais e sociais. Atendem também aos princípios do pluralismo e da participação democrática, como está na Constituição (seja no Preâmbulo, seja no artigo 1º, inc. V); podemos, pois, defini-los como bens ou direitos fundamentais que a Segurança jurídica deve preservar. E neste sentido pode-se aceitar esta teoria.

Portanto, em uma sociedade democrática e pluralista, os valores, bens ou direitos fundamentais não podem resultar da imposição arbitrária de um grupo ideológico-partidário, mas do consenso entre as pessoas, construído segundo pressupostos justos de imparcialidade, o justo procedimento.

Evita-se, assim, que a Justiça social, que aqui se identifica com a Segurança dos bens jurídicos, corra o risco de se transformar em um absolutismo ético-jurídico, responsável por uma tirania de valores.

Enfim, arremata Perez Luño, nem toda política preventiva é incompatível com o Estado de Direito. É preciso evidenciar a necessidade de que qualquer medida preventiva, concretamente as de Segurança, esteja conforme aos valores e aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados pelo Estado de Direito, e se aplique com as garantias processuais e penais próprias de seu ordenamento jurídico. 38

As medidas de segurança, portanto, não são incompatíveis com o Estado de Direito, desde que haja proteção para que elas não ve-nham a ser instrumentos de repressão do próprio Estado. O indivíduo, nas democracias, é sempre superior ao Estado, daí os direitos funda-mentais, o mandado de segurança, o habeas-corpus etc., como medidas de segurança última do indivíduo.

8. Conclusões

Segurança e Justiça, como visto, não se contrapõem, mas enquanto esta é um valor moral, desarmado, sua garantia de efetivação no Direito repousa na materialidade objetiva da Segurança jurídica.

38. Idem, p. 57.

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Na célebre obra de López de Oñate, La certezza del diritto, a

Segurança está centrada na Lei, é idealizada pelo Legislador no momento gerador da norma, está, em conseqüência, ínsita nos comandos norma-tivos do Direito; Carnelutti, contudo, vê a Segurança na decisão judicial, no momento aplicativo da regra jurídica.

Neste último sentido, tambem pensamos que a sentença é

superior à lei, pelo que acrescenta à mesma, dando-lhe vida e colorido; mas somente as sentenças relevantes, caracterizadas pelas questões de direito que suscitam discussão fundada, é que interessam ao ordenamento jurídico, porque se transformarão, pela Jurisprudência, em Direito atual.

Ademais disso, Justiça e Segurança se interagem diretamente

com o Bem comum, e segundo Radbruch, “el bien común, la justicia y la seguridad ejercen un condominium sobre el derecho, no en una perfecta armonía, sino en una antinomia viviente. La preeminencia de uno u otro de estos valores frente a otros, no puede ser determinada por una norma superior - tal norma no existe -, sino únicamente por la decisión responsable de la época”. 39

Bibliografia sobre novos estudos de Direito natural, referidos à Nota 25: AA.VV. La réforme des études de Droit. Le Droit naturel. ARCHIVES de Philosophie du Droit (1961). A. FERNANDEZ-GALIANO, Derecho natural (1982). Alexandre CORREIA, Ensaios Políticos e Filosóficos (1984). Antonio HERNANDEZ-GIL, Itinerarios del Derecho Natural, in Conceptos

Jurídicos Fundamentales (1987). Antonio TRUYOL Y SERRA, Fundamentos de Derecho Natural (1949). Armando CÂMARA, Gênese do Conceito de Justiça (1971); O valor Justiça

(1975). Bernardino MONTEJANO (h.), Curso de Derecho natural (1983). Bogumil JASINOWSKI, El problema del derecho natural en su sentido

filosófico (1967). Celso LAFER, A reconstrução dos Direitos Humanos. Um diálogo com o

pensamento de Hannah Arendt (1988). Erik WOLF, El problema del Derecho natural (1960). Francisco PUY, Lecciones de Derecho Natural (1970). German J. BIDART CAMPOS, Valor Justicia y Derecho natural (1983). Giovanni AMBROSETI, Diritto naturale cristiano (1964). 39. Gustav RADBRUCH. Filosofia do Direito (1961), v. II, p. 211.

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Guido FASSÒ, Il diritto naturale (1972). Heinrich ROMMEN, L’eterno ritorno del Diritto naturale (1955). Helen SILVING, Derecho Positivo y derecho natural (1966). Ives Gandra da Silva MARTINS. Fundamentos do Direito natural à vida

(1991). ______. A Justiça e a Lei Positiva (1992). ______. A cultura do jurista (1993). J. B. VALLET de GOYTISOLO, En torno al Derecho natural (1973). ______. Perfiles jurídicos del Derecho Natural en Santo Tomás de Aquino

(1976). Jacques LECLERCQ, Lições de Direito Natural. Do Direito Natural à

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natural (s/d). J. M. RODRIGUEZ PANIAGUA, Hacia una concepción amplia del Derecho

natural (1970). ______. ¿Derecho natural o Axiología jurídica? (1981). José Pedro GALVÃO DE SOUSA et alii, O Estado de Direito. Primeiras

Jornadas de Direito Natural (1980); Direito Positivo e Direito Natural (19 ). Leo STRAUSS, Droit naturel et Histoire (1954). Leonardo VAN ACKER. Curso de Filosofia do Direito. Separata, em 2

tomos, da Revista Universidade Católica De São Paulo, v. XXXIV (jan-jun 1968), Fascs. 65-66, pp. 107-188.

M. RODRIGUEZ MOLINERO, Derecho natural e Historia (1973). Maria Helena F. da CÂMARA, As definições de Valor e de Justiça no

Pensamento de Armando Câmara (1984). Miguel SANCHO IZQUIERDO e Javier HERVADA, Compendio de Derecho

Natural (1980). Rafael GOMEZ PÉREZ, Represión y Libertad (1978). René CASSIN, Human Rights since 1945: an Appraisal (1971). Vandyck Nóbrega de ARAÚJO, Fundamentos aristotélicos do Direito natural

(1988). Ylves José de MIRANDA GUIMARÃES, Direito natural. Visão metafísica e

antropológica (1991); O Tributo - Análise ontológica à luz do Direito natural e do Direito positivo. S. Paulo, Max Limonad, (1983 ).

Walter MORAES. Direito da personalidade: estado da matéria no Brasil. In: Revista de Estudos de Direito Civil, S.Paulo, Rev. Tribs., 1979, p. 125; Adoção e Verdade. S.Paulo, Edit. Rev. Tribs., 1974; Direito à própria imagem, in Rev. Tribs., v. 444:ll, etc.

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Medidas Assecuratórias de Direi-tos

SUMÁRIO: 1. Segurança jurídica e direito líquido e certo. 2. O juiz e a lei. 3. Decisão individual e decisões coletivas. 4. Quando são certas as decisões dos Tribunais? 5. A eqüidade como resultado da aplicação da lei. 6. O Bem Comum, Unidade na Multiplicidade

1. Segurança jurídica e direitos líquidos e certos

Direito líquido e certo é conceito jurídico-constitucional referi-

do ao direito subjetivo de todo cidadão enquanto sujeito (ou agente) de direito nas diversas experiências sociais que protagoniza (como pessoa, membro de família, empregado ou servidor público, empresário, proprie-tário, eleitor etc).

É, portanto, direito inquestionável, prima facie, de certeza me-

ridiana, apurável ictu oculi, de perecimento iminente, se não amparado, cuja ocorrência acarretaria a insegurança, a instabilidade do ordena-mento e o desprestígio da própria Justiça.

É todo direito que não precisa ser apurável de plano, por se

manifestar de maneira evidente, clara e translúcida, sem qualquer dúvi-da, de caráter incontestável, sobre o qual não pode existir nenhuma contro-vérsia 1.

Nas ações mencionadas, a concessão da medida liminar, pe-

lo Juiz, traduz o reconhecimento imediato e primário da certeza do Direi-to cuja garantia se reclama (fumus boni iuris), sob pena de decadência e, pois, ineficácia do próprio Direito (periculum in mora).

As liminares vêm reconhecer e assegurar um direito que ur-

ge. O direito líquido e certo está amparado na Constituição brasi-

leira, art. 5º, inc. LXIX, sob a expressão: "Conceder-se-á mandado de

1 Cf. Verb. Direito Líquido e Certo. ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito, Vol. 27, p. 265.

Capítulo VIII

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Medidas Assecuratórias de Direitos

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segurança para proteger direito líquido e certo não amparado por ha-beas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público" (grifamos).

Na verdade, a liminar é um pré-conhecimento do juiz, conhe-

cimento antecipado de um direito-certo, portanto quase-certeza de um direito; direito apreciado parcialmente, como verdade do autor, que, pa-ra se completar e tornar-se convicção certa, necessita das versões das partes contrárias e de terceiros (como a do fiscal da lei).

Na liminar não ocorre, ainda, a certeza legal, somente obtida

através das provas e da convicção do Juiz, mas já é uma certeza qua-se-legal ou pré-decisional, porque proferida, geralmente, com motivação suficiente para se sustentar durante a informação processual (nos casos de mandados de segurança, injunção, habeas-corpus etc), ou mesmo até a instrução completa (possessórias e cautelares em geral).

Tomemos um caso simples para mandado de segurança: servidor

público concursado, com prazo fatal de validez do concurso, preterido na nomeação, por autoridade pública.

Os elementos de “certeza do direito subjetivo” do servidor estão pre-

sentes: de um lado, aprovação em concurso e direito à respectiva no-meação (fumus boni iuris); de outro, preterição na nomeação e prazo de validade do concurso de extinção iminente (periculum in mora).

Ora, ao candidato aprovado, a lei assegura a nomeação para cargo

vago, dentro de determinado prazo. A segurança hipotética está nas premissas: a) ser aprovado em concurso; b) existência de cargo vago; c) nomeação dentro de prazo certo.

A segurança real, concretizada, só pode se dar - sem pe-recimento do direito líquido e certo - se for protegida coativamente por outro Poder que não o da Autoridade impetrada.

Compete, portanto, ao Judiciário, diante de impetração corre-

ta, conhecer do pedido e mandar que se assegure, se ampare ou se proteja, ao menos provisoriamente, neste exemplo, o direito à nomea-ção, independente do provimento do cargo por terceiro ou do exauri-mento do prazo de validade do concurso.

Ou seja, a providência judicial, liminar ou cautelar, é uma pro-

teção ex lege, porque a Lei, ou o agente que a aplica, não podem preju-dicar o cidadão, sob pena de desordenar o ordenamento jurídico e des-prestigiar a Justiça mesma.

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Daí discutir-se freqüentemente sobre a inafastabilidade das

liminares, em qualquer ação, desde que presentes os pressupostos mí-nimos que a Lei admite. Não há uma discricionariedade consentida ao Juiz para conceder ou negar liminares. Evidenciada objetivamente a e-xistência do bom direito e do perigo à sua satisfação, não é permitido ao Juiz negar liquidez e certeza ao direito, na ante-face da ação, pois tal juízo só é cabível após, à vista de todas as informações, provas e pare-ceres .

O juízo de admissibilidade dos remédios constitucionais, das

ações cautelares ou das que impliquem em concessão de liminares, de-ve-se restringir à mínima prova imediata, pré-constituída, sob pena de negar-se acesso à justiça (contrário ao mandamento constitucional) e segurança à ordem legal; equivale a negar certeza do direito ao cidadão que busca a Justiça para resguardar o que considera objetivamente lí-quido e certo.

Sob pretexto de aliviar o Judiciário do excesso de deman-

das, não deveriam os Juízes minimizar seus julgamentos nos pedidos de segurança, pois os pleitos cautelares fazem presumir, na grande maioria, a existência de um direito líquido e certo, autêntico e genuíno, a ser amparado de imediato.

A eleição das vias judiciais urgentes merece considerações

prudenciais privilegiadas, pois o advogado, como principal juiz do caso concreto, primeiro a sopesar provas e direitos, e optar pela via correta para proteger o que a Lei manda, o faz com responsabilidades éticas e constitucionais bem definidas, como órgão indispensável à adminis-tração da Justiça, em cooperação, no mesmo nível, com Juízes e Pro-mo-tores públicos (arts. 133 e 127 da Constituição Federal).

Se ao Advogado compete o dever de auxiliar a Justiça, evi-

tando obstáculos, atuando com probidade e lealdade, tem o Juiz o de-ver funcional de realizar a mesma Justiça, 2 com a qual não se confun-de.

O Juiz não é a Justiça, mas o responsável último por ela; não

o único nem o mais qualificado para dizer o justo, mas deve fazê-lo em cooperação com os demais agentes, notadamente o Advogado; este é o que leva o litígio ao átrio dos Foruns e à barra dos Tribunais, o que apa-relha a controvérsia processual do caso litigioso. 2. Cf. nosso Poderes Éticos do Juiz (l987).

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De fato, o processo é sempre diálogo, nunca monólogo: o Ju-

iz não dita sozinho a sentença, mas ouvindo a razão das partes e de terceiros. A sentença é fruto de íntima correlação com a demanda, res-posta do adversário e de intervenientes, obrigados ou interessados.

De sorte que a demanda de segurança - remédio urgente de

atendimento necessário - traz em seu bojo elementos precisos de evi-dência objetiva, de certeza; não cabe ao Juiz repelí-la in limine, mas, ao revés, considerá-la gravemente, sob pena de negar a Justiça em sua forma mais emergente.

Em que pese a liberdade do julgador, a concessão de limina-

res - símile ao tratamento médico de urgência em pronto-socorros - não pode deixar de ser deferida, sic et simpliciter, por simples opção discri-cio-nária, mas ao contrário, in dubium, deve o Juiz conceder o pedido, até mesmo para evitar recursos e novas ações, com o que, de fato, con-tri-buirá para que se abarrotem de processos os juízos e tribunais.

Vê-se, aqui, que a Segurança jurídica, implícita no valor Justi-

ça, é sempre hipotética, seja quando a Lei deixa de ser amparo de direi-tos líquidos e certos, seja quando o próprio Poder encarregado de as-segurar a aplicação da norma, pode muita vez deixar de fazê-lo, por questões processuais, procedimentais ou mesmo judicantes.

Neste sentido, pode-se distinguir segurança legal, ou primá-

ria, de segurança judicial, secundária ou reflexa. Quando a segurança legal é negada, por algum Poder do Estado, ao cidadão, a segurança judicial restabelece ou garante o exercício dos seus direitos, através de decisões com autoridade de coisa julgada; e quando esta se reitera uni-formemente, sobre os mesmos temas jurídicos relevantes, surge um novo tipo, não mais restrita ao caso particular concretizado, mas que, por reiteração predominante, se generaliza como se norma fora, esten-dendo-se a futuros casos análogos; é o Direito Jurisprudencial, como já vimos no seguinte esquema.

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Certeza do Direito

Segurança Jurídica(plano objetivo)

Sentença = Certeza subjetiva imediata

Lei =Segurança objetiva geral

Jurisprudência = Segurança objetiva mediata

CERTEZA

SEGURANÇA

(plano subjetivo)

O Direito Jurisprudencial 2. O Juiz e a Lei

A segurança é um a priori jurídico, enquanto valor integrante

da lei; é hipotética, enquanto a própria lei é uma norma abstrata; e é in-determinada, por ser genérica a lei.

Se a lei é garantia de estabilidade das relações jurídicas, a

segurança se destina a estas e às pessoas em relação; é um conceito objetivo, a priori, conceito finalístico da lei; segurança não é, pois, o mesmo que certeza (conceito subjetivo).

Sem embargo de estar o legislador mais próximo do povo,

enquanto coletividade (representando a vontade da maioria), na verda-de, quando recebe o mandato se torna independente.

Assim, quando legisla, está mais vinculado ao Estado, em cu-

ja direção costuma se orientar, através de vínculos partidários e de po-der. Nas democracias contemporâneas, o Legislativo está fortemente ligado (senão subordinado), ao Executivo.

O juiz, ao contrário, está mais próximo da sociedade, enquan-

to pessoas individuais que a ele recorrem para solucionar problemas con-cretos e bem específicos.

O povo do legislador é múltiplo, sem pretensões pessoais,

apenas inclinado às idéias do ex-candidato ou do partido (o povo do legislador é um antes, que procura, ou é procurado para votar em can-didatos; males da partitocracia...).

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O povo do julgador é, ao revés, um depois: busca-o para sa-nar problemas concretos seus; são pessoas visíveis, individualizadas, que não têm pretensões vagas, porém incertezas reais de direito subje-tivo.

Portalis, em seu célebre Discurso Preliminar, advertia: “Hay una

ciencia para los legisladores, como hay otra para los magistrados; y la una no se parece a la otra. La sabiduria del legislador consiste en en-contrar, en cada materia, los principios más favorables al bien común; la del magistrado es poner estos principios en acción, ramificarlos, exten-derlos, mediante una aplicación sabia y razonada, a las hipótesis parti-culares; estudiar el espíritu de la ley cuando la letra mata, y no exponer-se a ser una y otra vez esclavo y rebelde, desobede-ciéndola por su es-píritu de servidumbre”. 3

A distância que medeia da lei abstrata à decisão concreta é

um espaço preenchido somente pelo juiz. Este se apresenta em atitude constante de curiosidade, inquietude, reflexão: para ele, individualizar a norma é humanizar o direito; olhar a pessoa que vive um litígio ou confli-to é fazer com que o processo seja real e efetivo instrumento de Justiça.

Individualizar a pena, quantificar a indenização, aferir o justo

valor de uma propriedade, é fazer justiça concreta, individualizada, por-tanto, equitativa.

"Vamos ver o que diz o Tribunal" é busca de certeza, não de

segurança; se a certeza do direito mais segura é a ditada pelos Tribu-nais, se a justiça, para ser bem aplicada, exige juízes prudentes e sá-bios, cultos e equilibrados, não há que temer, por exemplo, pela invoca-ção mais ampla da eqüidade por juízes singulares, pois as sentenças são recorríveis e revisíveis, sujeitas a cassação, e serão os Tribunais os que vão aferir da eqüidade aplicada.

Portanto, a segurança jurídica não advém completa da lei,

mas também de sua aplicação, pois o legislador nem sempre transmite plena segurança à sociedade, para a qual o ordenamento jurídico se destina.

O sentimento de insegurança jurídica que o cidadão de hoje experi-

menta com muita frequência, não nasce somente da acumulação de textos legais, mas nasce também, em estoque normativo constante, da

3. Jean-Étienne-Marie PORTALIS. Discurso preliminar del Proyecto de Código Civil francés (1978), p.

45; e Discours, rapports et travaux inédits sur le Code Civil (1844), p. 14.

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frequência dos cambiamentos da lei, 4 e porque não dizer, da diversifi-cação jurisprudencial.

Não assim o aplicador da lei; é que o juiz e os Tribunais se

salvam pela revisão das sentenças e pela longa maturação de suas rei-teradas decisões; ademais, a jurisprudência equívoca se revoga ou não se aplica, porque não tem auctoritas. 5

Se o legislador tende a se enganar com maior freqüência é

porque, olhando acima, vê o macrocosmo da lei e do ordenamento co-mo um universal abstrato; mas o juiz, olhando acima e abaixo, vê não só a regra geral como o caso concreto, o microcosmo do singular, e isto lhe permite aplicar a lei com mais precisão ou justeza.

Por conseguinte, a certeza da jurisprudência é, por natureza,

melhor qualificada que a segurança advinda da lei; o justo, determinado a posteriori, é mais "certo" que o justo pensado a priori, porque a lei é um prius, ainda não provada pela interpretação judicial; ao contrário, a jurisprudência, como expressão do justo, é um posterius, concretamente determinada por reiteradas decisões.

Há, pois, tudo indica, um critério para se aferir a certeza juris-

prudencial: que os julgados sejam o mais precisamente justos (quali-tativamente superiores à lei), para serem acatados pelos juristas e tri-bunais, pois decisões eqüívocas, assim como as leis, não soem subsis-tir.

3. Decisão individual e decisões coletivas

A jurisprudência evolui, não através de algumas decisões es-coteiras, mas coletivamente, com todas as semelhantes, formando um entramado coerente com os princípios gerais do Direito, que são, a nos-so ver, fundamentalmente, princípios uniformizantes.

Embora individuais, todas as decisões apresentam um hol-

ding, uma essência, uma ratio decidendi que as enfeixam. Esta essên-cia comum é a questão de direito sobre o thema decidendum e sua mo-tivação.

4. AA.VV. La sécurité juridique (1993), p. 169. 5. Neste sentido, jurisprudência isolada é jurisprudência ignorada. Assim como sentenças irrele-

vantes não ascendem aos Tribunais, também jurisprudência escoteira não realiza coisa julgada ju-risprudencial. Cf. N. 41, p. 153.

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De fato, quando se analisa uma sentença ou acórdão, não se critica

apenas o decisum, mas também sua fundamentação (a parte decisória, que se vê e faz coisa julgada, como a ponta do iceberg, que se assenta em uma base oculta, a motivação). 6 As razões ou motivos são as raízes do decisum: se fincadas

firmemente sobre as questões de fato e de direito na demanda, se ali-cerçadas em boa doutrina e paradigmas adequados, adquirem veraci-dade e se projetam com auctoritas no mundo jurídico. 7

Porquê a justificação jurídica cobra hoje tanto interesse? Para

Aulus Aarnio trata-se do problema da decisão judicial racional, em que as exigências de justificação são paralelas ao desenvolvimento da de-mocracia; nesta, é fundamental o controle e a análise crítica das deci-sões, o que se torna impossível na ausência de motivação, inclusive em relação a um sistema de recursos; em suma, através da fundamen-tação competente, coibe-se a arbitrariedade e controla-se a atividade jurisdicional. 8

Para o professor da Universidade de Helsinki, a questão da certeza

jurídica apresenta dupla dimensão: procedimento e resultado; a expectativa de certeza, através da argumentação e da racionalidade jurídica, reconduzem ao debate em torno à conexão Direito-Moral. Como ensina Castanheira Neves, a distinção para a solução

concreta de um problema “terá de integrar-se, e portanto justificar-se, numa necessária unida-

de de procedimento metodológico - pois é para resolver o problema jurí-dico unitário de um caso (o caso decidendo), o problema da unitária questão jurídica concreta, que tem sentido e se impõe distinguir uma quaestio facti duma quaestio juris. Estas duas questões, e da mesma forma os actos em que se resolvam, têm de cumprir em si a congruência (a “razão de coerência”) que é necessariamente exigida pela sua inte-gração num processo metodológico unitário, pela sua concorrência nes-

6. Oculta no sentido de não fazer coisa julgada (art. 469 do CPC: "Não fazem coisa julgada:

I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença"). A decisão semelha-se ao iceberg porque o fato, a lei, a doutrina são como plataformas que sustentam a motivação mais o decisum; aqueles permanecem dentro da vida social e do ordenamento, mas o que transparece, o que nos dá a notícia do direito particular, concreto, são os julgamentos dos Tribunais; enfim, tudo colabora e se orienta para a construção do Direito.

7. Afinal, o que é uma flor? onde começa e onde termina? em que se sustenta? nas hastes, folhas, pedúnculos, raízes? Assim, também, a coisa julgada (a essência da decisão) é produto da seiva toda que emana da sentença...

8. A Legal Theorical Point of View. II Jornadas de Filosofia del Derecho, 14-15/11/1991, Universidade Insular Balear. Cf. ANUARIO de Filosofia del Derecho (1992), pp. 511-513.

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te como momentos diversos, mas conexos, de um mesmo problema e de uma mesma decisão”. 9

4. Quando são certas as decisões dos Tribunais?

Por obterem o consenso da maioria julgadora? Ou por serem

acatadas como justas pela comunidade jurídica? As sentenças de primeira instância são, em princípio, sempre

revisíveis, porque são projetos de decisões superiores, que interessam ao ordenamento jurídico e à sociedade.

Então, a sentença não é a face de um direito "presente", mas

um projeto, hipótese ou embrião da coisa julgada (direito "futuro"); por isso, decisão recorrível não é, ainda, definitiva, pois na sentença inco-mum o juiz tem em mira a coisa julgada.

Sentença revisível é a que não satisfez às partes; é como a

imagem tosca que o artífice não completou e passa a um mestre mais experto, para que arranque do mármore a figura completa que nele se oculta (como fez Miquelângelo com seu Davi!).

Para a teoria pura do Direito há uma norma fundamental de-

terminante da unidade do sistema e da validez da Constituição e das normas derivadas, até chegar à sentença, como uma flecha disparada, que passa entre vários objetos, antes de atingir o alvo. 10

Em conclusão respondendo à indagação, a auctoritas dos jul-

gados não advem, apenas, da maioria ou unanimidade de votos vence-dores, 11 mera técnica ou prática democrática para os juízes alcançarem o convencimento, mas é reflexo do acolhimento, pela comunidade jurí-

9. Questão-de-facto-questão-de-direito (1967), pp. 464-5 . 10. Do mesmo modo, o que é a flecha? é tão só a ponta, que fere o alvo? ou também a

haste, as aletas, que lhe dão sustentação e direção na trajetória? Enfim, a motivação po-de ser matéria jurídica descartável? desprovida de efeito?

11. Há um problema de quorum para as grandes decisões judiciais que envolvem as bases do Estado de Direito: uma liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade, concedida por maioria simples, é tão perturbadora quanto concedê-la ao final do julgamento; há que se elaborar uma súmula vinculante que resulte de uma votação expressiva nos Tribunais Superiores, por maioria de 4/5 (8 Ministros no STF, 26 no STJ); evidentemente, os juris-dicionados, os Tribunais e o País respeitariam a boa certeza jurídica final, pelo maior grau de auctoritas que representa a douta opinião de um quorum seguramente qualifica-do.

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dica e pela sociedade, daquele "justo" determinado pelo colegiado, co-mo certeza do direito, e que pela jurisprudência se transmuda em nova segurança jurídica. 12

5. A eqüidade como resultado da aplicação da lei

Em alentado trabalho, afirma Luis Maria Dominguez Rodrigo que

“seria preferible en vez de hablar de construcción judicial referirnos a la equidad como resultado del proceso aplicativo, porque si bien hay que admitir las críticas al silogismo judicial mecanicista, ello no aboca a re-chazar la función de la jurisprudencia de aplicación del Derecho, sino só-lo a conciliar el primado de la seguridad jurídica con el de la justicia, en lo que cabalmente consiste la equidad”. 13 O resultado da aplicação da lei deve ser sempre eqüitativo.

Decisão eqüitativa é pleonasmo, pois toda decisão o deve ser. O primado da Segurança jurídica é o primado da lei, em que

aquela entra como elemento integrante da norma jurídica: o princípio da legalidade, segundo o qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei anterior (CF, art. 5º, inc. II).

O primado da Justiça é um dever-ser além da lei, algo superi-

or que não se contem na norma escrita e a que o juiz deve procurar se aproximar; a eqüidade consiste, segundo Dominguez Rodrigo em conci-liar o primado da Segurança com o primado da Justiça; Puig Brutau e Boehmer apontam para critérios teleológicos ínsitos no ordenamento positivo que o ultrapassam; Esser recorre à “jurisprudência de princí-pios”, pois sob toda norma há, latente, um princípio de direito que, uma vez determinado, tem em si mesmo um impulso suficiente para exigir um nível igual ao da própria lei; são rationes leges, princípios valorativos e construtivos do sistema, mas também princípios éticos e jurídicos.

À jurisprudência, e sobretudo aos órgãos judicantes, compe-

te extrair à luz os princípios que estão expressos na lei, e aplicá-los aos casos que a lei não menciona, porém nos vêm dados pela vida e caem sob eles. 14

12. Marcelino RODRIGUEZ MOLINERO. El desarrollo homogêneo del derecho, in “Intro-

ducción a la ciencia del derecho”, 2ª parte, pp. 252ss. 13. Cf. La jurisprudencia como equidad ante la aplicación del derecho, in “Significado

normativo de la jurisprudencia: ¿Ciencia o decisión judicial?” (1984), v. I, p. 201. 14. Idem, pp. 210-211.

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A eqüidade preside à individualização da norma jurídica, con-forme processo descrito por Kelsen e atuaria como lógica material para obter a individualização da norma judicial. 15

6. O Bem Comum, Unidade na Multiplicidade

A sociedade que faz as leis (potestas política) é a mesma que

as aplica (auctoritas jurídica) 16. O poder político (legislação) e o poder jurídico (administração e jurisdição) são forças sociais convergentes à unidade do bem comum.

As leis contêm valores-fins destinados a assegurar (Segu-

rança jurídica) a realização do bem da sociedade em geral e dos indiví-duos em particular.

No pensamento do jusfilósofo gaúcho Armando Câmara, o bem co-

mum pode ser compreendido como um aspecto do bem particular de cada indivíduo, que não só é almejado por todos os seres humanos em comum, mas que também pode ser obtido em comum por todos. E a i-déia em torno da qual se estrutura o bem comum e que nele não se en-contra explícita, é a idéia dos fins humanos. O bem comum vai en-contrar o seu absoluto no fim. 17

Os ordenamentos jurídicos evoluíram visando sempre a reali-

zação do bem-estar social (qualquer que tenha sido o conteúdo e a in-terpretação que se lhes dêem: utilitarismo, pragmatismo, vontade públi-ca ou social, ética social, moralidade pública etc); e o legislador (braço político da sociedade) só pode criar novas leis congruentes com o sis-tema, como a exigência do princípio da constitucionalidade das leis, (salvo nos regimes não democráticos, em que o bem visado pode ser a nação, a raça, a economia, a vontade do ditador, de uma classe social, de um partido etc).

Discorrendo sobre esta característica de atributividade do Di-

reito, Reale 18 enfatiza que

“é próprio ... do Direito, proporcionar os bens, econômicos ou não, em uma ordem de coexistência, segundo um sentido de totalidade, or-

15. Idem, pp. 222-223. 16. Dalmacio NEGRO PAVÓN. Natureza social do Poder Judiciário. Rev.Tribunais, v. 695

(set. 1993), pp. 16-29. 17. Cf. Maria Helena F. da CÂMARA. Bem comum. Rev. Forense, v. 327 (1994), pp. 298,

300. 18. Miguel REALE. Filosofia do Direito (1982), p. 703.

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dem essa que é bem social ou bem comum, isto é, objetivação da Justi-ça nos limites das circunstâncias histórico-sociais: o bem comum é, por tal motivo, a medida histórica da Justiça, ou a Justiça em plena concre-ção histórico-social, assim como a eqüidade representa a Justiça em concreção particular, o que reflete, mais uma vez, a polaridade entre o coletivo e o individual, e a necessidade de superar a aporia dos esque-mas genéricos e abstratos em conflito com a singularidade dos casos não tipificáveis” (os itálicos são nossos).

Sendo as normas e a ordem jurídica obrigatórias para todos

os cidadãos (a sociedade, como uno ou todo), não obstante serem ge-néricas e abstratas, incapazes autonomamente de resolver conflitos en-tre parti-culares ou destes com o Estado (os cidadãos como pessoas individuais ou múltiplos).

Diante de uma controvérsia, a particularização da Lei geral e-

xige a intermediação de pessoas juridicamente especializadas; quais pontífices (ponti-facere), lançam pontes de compreensão e adequação entre a idéia abstrata das leis gerais e as razões das pessoas singula-res (realidade individual e social). 19

O mediador, reconhecido e acatado pelas partes como intér-

prete da Lei ou árbitro da instância, ao decidir o litígio, tem sua razão prudencial voltada a determinar o dever-ser presente à contro-vérsia, aquilo que cabe a cada litigante, mas também lança um "olhar acima" dos indivíduos, para o bem comum da sociedade.

Os homens querem viver em paz uns com os outros e a so-lução dos casos particulares não pode conflitar com o bem da socieda-de, mas estar coerente com ela. 20

O trágico da ação, filosofa Paul Ricoeur, é quando se enfrentam o respeito devido à norma universal com o respeito devido às pessoas singulares, ao conflito da miséria humana. 21

19. Tratando do ato de julgar, o notável filósofo francês Paul RICOEUR distingue uma finali-

dade imediata (curta), a de liquidar um conflito, pôr fim à incerteza; e a mediata (longa), que é contribuir para a paz social e à consolidação da sociedade como empreendimento de cooperação. Cf. Le Juste (1995), p. 10.

20. Segundo Tércio Sampaio FERRAZ JR., há três critérios básicos para um quadro dos métodos de interpretação: a correção ou coerência, o consenso e a justiça; a coerência ou a busca do sentido correto exige um sistema hierárquico de normas e conteúdos norma-tivos; o consenso ou a busca do sentido funcional exige respaldo social; e a justi-ça ou a busca do sentido justo exige que se atinjam os objetivos axiológicos do Direito; em função deles pode-se falar em métodos lógico-sistemático, sociológico e histórico e teleológico-axiológico. Introdução ao Estudo do Direito (1988), p. 260. Cf. Norberto BOBBIO, A coerência do ordenamento juridico, in “Teoria do Ordenamento Jurídico”.

21. Idem, p. 220.

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A respeito, Cintra, Grinover & Dinamarco consignam que “a

pacificação é o escopo magno da jurisdição” e, por conseqüência, de todo o sistema processual, afirmando que

“o objetivo-síntese do Estado contemporâneo é o bem comum e,

quando se passa ao estudo da jurisdição, é lícito dizer que a projeção par-ticularizada do bem comum nessa área é a pacificação com justiça”. 22

Uma injustiça política, econômica ou social 23 não se liquida

com decisões extra-jurídicas, porque fora do ordenamento não há or-dem, mas anarquia, jogo emocional (não prudencial) de interesses, mo-dismos doutrinários passageiros (como passaram a Escola do Direito Livre e a jurisprudência sentimental do "bom Juiz Magnaud", que, de resto, era tendencioso e discriminatório quanto a pessoas). 24

Portanto, se do ofício de legislar se exige congruência ao or-

de-namento, em prol do bem comum (uno ou de todos), da função de interpretar não está excluída a mesma compreensão e adequação.

Enquanto o Legislador vai colher no social material para suas

leis, aquilo que sucedeu (visão estática, porque os fatos já se passa-ram), ao elaborá-las, tem em mente, de um lado a Justiça ideal que se configura no bem comum da sociedade que representa; de outro, como aquelas normas poderão ser melhor aplicadas aos cidadãos pelo intér-prete (visão dinâmica, como preocupação propedêutica, agindo na con-fecção das leis como se fosse, depois, aplicá-las concretamente).

Vallet de Goytisolo, 25 um dos mais renomados jusfilósofos

contemporâneos, lançando as bases para o retorno a uma metodologia da ciência prudencial legislativa, ensina que se deve partir da perspec-tiva de que, como toda ciência do dever ser, a de legislar há de começar pelo conhecimento do ser das coisas, da verdade destas, abarcando todas as coisas divinas e humanas, segundo deixaram os jurisconsultos romanos em sua definição de Jurisprudência:

22 . Teoria Geral do Processo, n. 4, p. 25. 23. RADBRUCH recomendou aos povos e aos juristas gravar na consciência que “pode

haver leis com um tal grau de injustiça e de nocividade para o bem comum, mas toda va-lidade e caráter de jurídicas não poderão jamais deixar de lhes serem negados”. Filosofia do Direito (1961), v. II, p. 213.

24. Cf. Carlos MAXIMILIANO. Hermenêutica... (1991), pp. 87-88. A propósito, cf. Henri LEYRET, Las sentencias del buen juez Magnaud (1976).

25. Metodología de las leyes (1991), pp. 695-96.

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“Ese conocimiento ha de centrarse en el hombre; pero, en el hombre completo y en todas sus relaciones: con Dios, su creador y or-denador; con sus semejantes, como animal social que es...; y con el mundo, en el que vivimos y nos circunda. En suma, en el hombre entero pero concreto, según su naturaleza, capacidades y circunstancias, en todos sus aspectos, estáticos - con sus causas materiales y formales - y dinámicos - con sus causas eficientes e finales - y, en especial, con el co-nocimiento experimental suministrado por la historia” (negritos nos-sos).

Ensina-nos, em profunda análise, que a ciência jurídica não

pode ser senão prudencial, pois necessita da previsão ou providência que saiba captar o qualitativo nas concatenações de causas e efeitos, no imensurável ou inquantificável e adotar os meios necessários para lograr o fim previsto; o campo das leis humanas não é o do certo nem do absolu-tamente verdadeiro, senão o âmbito do provável, do verossí-mil, matéria do sentido comum; e o da necessária previsão, regulada pela prudência. 26

O texto da lei, para ele, há de ser pensado prevendo a reação

que provocará no corpo social, no momento de sua aplicação ao fato a que se refere e às conseqüências que sua incidência produzirá; a pauta deste labor prudencial é a ordenação ao bem comum, matéria da Justi-ça social e objeto da prudência; por fim, deve-se considerar a sociedade como comunidade de homens concretos, em todas suas dimensões, que se há de reger pelos princípios de participação e de solidariedade, e este com o de subsidiariedade. 27

Da mesma forma, entendemos que o intérprete (administrador

ou julgador) tem um olhar posto na lei genérica, que deve interpretar e aplicar a uns poucos, concretamente (visão estática do passado, porque a lei já não muda), e outro olhar na elaboração de uma regra prática, de dever-ser, válida e eficaz para as partes em conflito (visão dinâmica do presente) porque, análogo ao legislador, deve contribuir e sabe que su-as decisões influirão no ordenamento jurídico e, coerentemente, não pode decidir contra legem (salvo as exceções de lei injusta etc). 28

Se é grato ao confeccionador de leis interpretar os sentimen-

tos, vontades e necessidades do seu povo, não menos o é ao julgador

26. Idem, p. 699. 27. Idem, pp.701/703. Cf. El princípio de la subsidiariedad. Madrid, Speiro, 1982. 28. A visão do deus Janus, de dupla face, mirando o passado e o futuro... Cf. Vittorio

FROSINI, citando Adolf MERKEL, “a obra do intérprete e do legislador são como o rosto bifronte de Janus, são ‘o duplo rosto do direito’”. La letra y el espíritu de la ley (1995), p. 59.

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Medidas Assecuratórias de Direitos

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determinar qual a ratio decidendi, a incidência normativa aplicável 29 e como vesti-la no caso concreto, recortando tudo o que excede (inter-pretação restritiva) ou buscando em outras normas ou princípios (do Di-reito positivo ou do Direito natural) o que lhe falta (colmatação de lacu-nas, interpretação extensiva). 30

Mas o inverso também ocorre, quando o Legislador não alcança interpretar corretamente os anseios populares, os reais e profundos problemas da nação e se omite na feitura das leis (o Projeto do novo Código Civil há anos tramita no Congresso Nacional; a Lei sobre trans-plantes de órgãos restou sem ser regulamentada por mais de uma dé-cada etc); ou quando as faz já estão anacrônicas, superadas por novas realidades, ou são manifestamente injustas. Ou, o que nos parece mais grave, quando o próprio Julgador

claudica, seja na procrastinação da prestação jurisdicional, seja na mi-nimização do conteúdo decisório (errores in judicando ou in proceden-do), seja, ainda mais gravemente, quando não "sente" a necessidade latente do caso sub judice, o drama humano no processo, a dúvida, a incerteza ou a controvérsia jurídica, que gritam por uma sentença justa, que restaure a certeza subjetiva das partes e reafirme a segurança do Direito.

Concluindo, portanto, Legislador e Julgador coincidem no

mesmo "olhar para cima" na procura e fixação do Direito justo, para a sociedade em geral e para os cidadãos em particular, o bem comum; este conceito mantém a coerência interna do sistema, enquanto valor jurídico comum a ambos operadores do mesmo Direito, aquele que cria o Direito abstrato e o que subsume a norma ao caso singular. 31

29. “Deve-se distinguir entre a incidência de normas de competência e normas de conduta.

Normas de competência conferem poder para estabelecer outras normas, qualificam cer-tos atos sob certas condições como capazes de produzir certos efeitos... Já as normas de conduta estabelecem linhas de ação, às quais imputam conseqüências. Conferem sentido a atos que subsistem independentemente delas em outros contextos”. FERRAZ JR., Introdução... (1988), p. 226.

30. Para Arthur UTZ resulta que a atividade judicial não se limita à estrita interpretação das leis; colmatar lacunas é um caso particular de criação do Direito; encontrar soluções pa-ra casos particulares não explicitamente previstos em lei está nos limites da interpretação jurídica, em que o raciocínio analógico exerce papel essencial; sobre o método de inter-pretação das leis, afirma o autor suiço que uma solução definitiva não seria jamais en-contrada, e conclui: “assim, o Direito judicial tem por finalidade essencial a Segurança Jurídica”. Éthique Sociale (1967), V. I, p. 111.

31. Logo após a Guerra, em 1945, dirigindo-se aos estudantes de Heidelberg, Radbruch reconheceu a necessidade de um Direito supra-legal (expressão menos polêmica que Di-reito natural, ideal ou racional), afirmando, dentre outras considerações, que ao lado da justiça, o bem comum é um dos fins do Direito; mesmo quando má, a lei conserva um valor, o de garantir a Segurança do Direito perante situações duvidosas; por isso, todo di-

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Medidas Assecuratórias de Direitos

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reito serve a três valores, que devem se harmonizar nas leis: o bem comum, a segu-rança e a justiça. Filosofia do Direito (1961), v. II, p. 213.

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Direito Judicial, Jurisprudencial, Sumular

SUMÁRIO: 1. A norma jurisprudencial. 2. Segurança da Lei e Certeza da Jurisprudência. 3. A Jurisprudência como ordenamento aberto. 4. A relevância constitucional do STF. 5. Jurisprudência: modelos jurídicos e modelos dogmáticos. 6. Graus de auctoritas das decisões judiciais. 7. Esboço de uma classificação das decisões judiciais. 8. Coisa julgada e certeza do Direito. 9. O ordenamento jurídico, corpo aberto e em evolução. 10. Conclusões.

Giovanni Orrù, autor italiano de formação germânica, escreveu apreciável trabalho em que estuda a autoridade e o alcance do que se denomina Direito judicial; não é que os alemães adotem o princípio de que os Juízes "criam Direito", mas esta forma de expressão do Direito não é contestada em sua doutrina, antes reconhecida como um valor jurídico proeminente. 16

É o que tentaremos examinar, a propósito da relação entre a

Lei e a Jurisprudência, e a Jurisprudência como fonte do Direito. Segundo o positivismo jurídico, predominante nos sistemas

europeu-continental e latino-americano, desde a codificação napoleônica, o Juiz deveria sempre decidir conforme a Lei; o mais seria exceção. 17 Então, a Lei permanece como a fonte principal da Segurança jurídica, por estar ínsita no próprio Direito legislado.

Esta Segurança a priori parece se conter na coercibilidade,

ou seja, a possibilidade de se invocar a força para fazer valer algum direito; toda norma é de natureza imperativa, mas antes de se atingir o final de um processo judicial existem vários instrumentos legais que não exigem a coerção, como o acordo, a conciliação, o arbitramento.

16. Afirma, neste sentido, que a crítica dogmática vive na esperança de poder convencer o

Juiz, de modo que uma série de julgados torne possível as suas opiniões, integrando-as no ordenamento jurídico; mas, se a expectativa é vã, significa que referidas opiniões permanecem estranhas ao ordenamento positivo. Richterrecht (1983), p.103.

17. Os arts. 126 e 127 do CPC reproduzem, no ordenamento processual brasileiro, esta forte influência dogmática.

Capítulo IX

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Aqui se trata de garantir a eficácia da Lei, embora genérica,

abstrata e hipotética; por outro lado, a Jurisprudência,18 ainda não reconhecida como autêntica fonte do Direito pelo nosso sistema, na prática, é fonte de certeza, porque gera uma Segurança a posteriori, que emana da coisa julgada; entendendo-se esta como a própria norma individual do caso concreto, torna-se, a nosso ver, norma jurisprudencial, que se pode considerar verdadeiro Direito jurisprudencial (o Richterrecht dos alemães). 19

1. A norma jurisprudencial Como se dá a positividade de um Direito emanado da

Jurisprudência? A gênese está no conhecimento jurisdicional do caso litigioso,

que se inicia pelo acesso do cidadão ao Judiciário, o sagrado Direito de ação, pelo qual Juízes e Tribunais tomam conhecimento e assumem, em nome do Estado, a tutela da controvérsia, e atuam visando à harmonia social, segundo o ordenamento jurídico.

Retomemos, do processo civil, as teorias sobre a natureza da ação:

esta constitui um Direito autônomo e abstrato e o melhor argumento é a sentença declaratória negativa, quando o Juiz declara que o autor não tem ação; se pode haver uma ação, concretamente ajuizada, em que o sujeito não tem nenhum Direito, é porque é autônoma, não subordinada ao enunciado imanentista do art. 75 do CC . 20 Este conhecimento e controle dos litígios pelo Judiciário

culminam em uma decisão e esta, por meio de recursos sucessivos, sofrerá um processo contínuo e crítico de reforçamento, que terminará

18. V., em apêndice, Anteprojeto da Lei de Aplicação das Normas Jurídicas, que em seu art.

3º inclui a doutrina e a jurisprudência como fontes subsidiárias do Direito. 19. Para o autor citado, “Nel nostro contesto, la locuzione Richterrecht va però riferita non

tanto alle norme individuali stabilite per i singoli casi dedotti in giudizio, quanto alle vere e proprie norme generali, ossia ai constenuti logici comuni a tutta una serie di sentenze uniformi, o comunque alle massime di decisione estraibili da singole sentenze e destinate a diventare diritto effettivo”. P. 102. Compara o Direito judicial ao Direito doutrinário (Juristenrecht) pois ambos apresentam funções de estabilidade, continuidade e progresso do Direito; distin-guem-se, no entanto, porque o Juristenrecht só penetra no Direito positivo através do Richterrecht, pois a opinião da doutrina só resultará norma positiva de um certo ordenamento quando a Jurisprudência a segue. P.103.

20. Cf. CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. 1994, n. 156, p., 252.

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em um modelo de "certificação", de tornar certo, de certeza jurídica e de consolidação de julgados semelhantes. 21

Esta consolidação é sistemática, no caso da súmula e do

enunciado trabalhista; sendo esparsa, denomina-se simplesmente Juris-prudência. Súmula é todo conjunto de julgados que os Tribunais deci-diram aceitar como definitivos, sit et in quantum; este é o caráter da Jurisprudência que mais interessa: ser ela assentada, dominante ou definitiva.22 A "Súmula dominante do STF", ou Súmula, é um compêndio, como um "Código de Jurisprudência", formando autêntico Direito, como veremos.

No caso do Tribunal Superior do Trabalho, a Lei 7.701, de

21.12.88, autorizou-o a "aprovar os precedentes da Jurisprudência predominante em dissídios coletivos" (art. 4º, alínea "d"), com a evidente finalidade de contribuir para a celeridade do julgamento daqueles dissídios; são competentes para esta aprovação o Tribunal Pleno e a Seção Normativa ou Seção Especializada em Dissídios Coletivos, da mesma Corte (art. 2º, inc. II, alínea "c" da referida Lei).

Os Precedentes divulgados esparsamente foram, afinal,

compilados e aprovados pelo Egrégio Tribunal Pleno e convertidos na Resolução Administrativa nº 37, de 25.06.92, que, pela primeira vez aprovou, em caráter oficial, os Precedentes Normativos decorrentes da Jurisprudência iterativa da Seção de Dissídios Coletivos. Esclarece Teixeira da Costa que, nos processos coletivos do

trabalho, a Jurisdição que os Tribunais do Trabalho desempenham é a de eqüidade, cujo princípio fundamental está no art. 766 da CLT:

"Nos dissídios sobre estipulação de salários serão estabelecidas condições que, assegurando justo salário aos trabalhadores, permitam também justa retribuição às empresas interessadas",

preceito reforçado pela Constituição de 1988, sobre o exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho, segundo o qual pode

21.“L’emploi de l’interprétation jurisprudentielle peut avoir une double signification. D’une

part, la cour peut accepter une interprétation qui probablement sera agréée par la cour supérieure compétente pour décider le cas si le recours a lieu. Dans ce cas, ce sont les chances de défendre la décision qui poussent la cour à prendre une interprétation que probablement sera valide. D’autre part la court peut vouloir qu’elle soit d’accord avec l’interprétation qui domine dan la jurisprudence, sans égard aux pronostics de l’interprétation par une instance hiérarchiquement plus élevée. Ce ne sont pas des choses qui s’excluent mutuellement.” Jerzy WRÓBLEWSKI, La règle de décision dans l’application judiciaire du droit, in “La Règle de Droit” (1978), p.81-82.

22.O STF, no artigo 102 de seu Regimento Interno, refere-se a Jurisprudência assentada.

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"estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho" (art. 114, § 2º). Enquanto o precedente decorre de uma jurisdição de

eqüidade, os enunciados da Súmula da Jurisprudência uniforme ou reiterada resultam da jurisdição de Direito, dos julgados de dissídios individuais, em que o julgador tem de dizer o Direito expresso na Lei anterior e não instituir regras normativas futuras.

Trata-se, segundo o autor citado, de um instituto uniformi-

zador da Jurisprudência: "O enunciado expressa, conseqüentemente, a uniformização da

Jurispru-dência em dissídios individuais, enquanto os precedentes indicam, tão somente, uma orientação reiterada, iterativa.

"É preciso não esquecer que, nas ações individuais, o julgador atua,

única e exclusivamente como Juiz, enquanto nos dissídios coletivos ele age como se legislador fosse, criando o Direito e não apenas interpretando o já existente".23 As súmulas se distinguem da Jurisprudência esparsa, mesmo

que a Jurisprudência comum seja constante, reiterada; mas, por que a Súmula se destaca? porque resulta de um processo especial de elaboração, previsto nos Regimentos Internos dos Tribunais; por um critério de escolha dos Ministros, 24 os assuntos são submetidos a discussões técnico-jurídicas e, ao final, aprovadas em plenário e publicadas.

A maioria absoluta ou a votação unânime constituem princípios democráticos de decisão colegiada; é a idéia de que o Plenário dos Tribunais, Câmaras ou Seções, por decidirem majoritariamente, exercem legitimamente um poder inerente ao próprio exercício da cidadania, a Jurisdição.

Este poder é implícito, pois ninguém contesta a validade da

decisão, que é soberana.

23. Idem, pp. 17-18. Era a norma do art. 114 do CPC de 1939 e é a do art. 1º do Cód. Civil

Suíço. Apreciando as ações coletivas do trabalho, CINTRA, GRINOVER & DINAMARCO advertem que a sentença normativa constitui ato formalmente jurisdicional mas material-mente legislativo, com “características exclusivamente jurísdicionais”, lembrando que a Constituição de 1988, em seu art.144, não faz alusão à sua “normatividade”. Teoria Geral do Processo, N.164, p.266.

24.Art. 103 do RISTF; art. 126 do RISTJ; art. 4º da Resolução nº 18/92, do TST.

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É uma democracia qualificada, primeiro porque o Tribunal ou

Câmaras Julgadoras detêm o poder legitimamente; segundo, porque o exercem diretamente coram populum; terceiro, porque esse poder é exercido de imediato; e quarto, no caso de tribunal inferior, a decisão é sempre passível de revisão pelo superior.

Em síntese, o poder de julgar exercido pelos tribunais é legítimo,

direto, imediato e democrático.25

Enquanto a Segurança legislada é um dado, a Segurança

jurisprudencial é um construído, 26e uando a Jurisprudência assentada se transforma em súmula, esta construção jurídica o legislador a recolhe, depois, como novo dado, para elaborar outras leis; tem-se, deste modo, um constante aperfeiçoamento ou dialética construtiva do Direito, como se pode ver pelo seguinte esquema:

Certeza

Segurança

Da Certeza à Segurança

Da Segurança à Certeza

Da Segurança Judicial

Da Segurança jurídica (legal) à Certeza do DireitoDa Certeza (restaurada) do Direito à Segurança jurídica (restaurada)

Da Segurança jurídica (restaurada) à Segurança jurídica Legal

à Segurança Legal doOrdenamento Jurídico

1

2

3

25.Avançamos aqui, para discussão à frente, a questão do quorum qualificado nas decisões

colegiadas, que confeririam maior grau de auctoritas às mesmas, o qual poderia ser fixado em 4/5 dos votos, ou seja, 8 Ministros no STF e 26 no STJ; o poder persuasivo da jurisprudência seria maior, “quase-obrigatória”; na Constituição Federal de 1934, ocorria que três acórdãos coincidentes de um Tribunal tornavam-se súmula dominante.

26. Rubens Limongi FRANÇA, citando MAXIMILIANO, pondera que “a Jurisprudência é a causa mais geral da formação de costumes jurídicos nos tempos modernos” e ademais “contribui, como os precedentes legislativos, para o Direito Consuetudinário”. O Direito, a Lei e a Jurisprudência (1974), p.172.

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2. Segurança da Lei e Certeza da Jurisprudência

O caso julgado reconstitui a Segurança incerta, pois quando

as partes vão à Justiça já não havia mais certeza, seu direito era hipotético, pois uma será vencida na ação; sua certeza, portanto, não era tão evidente, como subjetivava, quanto a da parte vencedora.

Quando se litiga, há uma Segurança "insegura", que já se

denominou de "insegurança da Segurança";11 podemos falar de "incerteza da certeza"; a decisão judicial, que se transformará em caso julgado, não é uma reconstrução da Segurança anterior, fundada na Lei, mas o caso julgado é constitutivo da certeza do direito em discussão, sob nova forma de Segurança.

A Lei nos dá uma Segurança, mas o caso individual decidido

dará outra; a norma geral, da Lei, não é a mesma norma particular, da sentença; a Segurança subjetiva (Certeza) surge no interior da decisão, e quando se transforma em caso julgado, se objetiva. 12

A Jurisprudência realiza, portanto, a construção de um novo

Direito, pela utilização da analogia, dos costumes, da própria Jurisprudência assentada, da doutrina e dos princípios gerais de Direito, 13 além dos motivos e circunstâncias do caso concreto.

O julgador age, aqui, como o alfaiate que recorta da peça de tecido

(a lei) uma parte e reveste dela o homem que tem diante de si (no processo), segundo suas exatas medidas e adequações (elaborando a sentença ou norma particular). O tecido da vestimenta, assim como a decisão, não sobeja nem falece, daí chamar-se justa, e justo o aplicador. E esta construção é necessária e contingente, pois o

legislador, não podendo prever todas as experiências multifárias da vida, por ser dinâmica e sofrer mutações constantes, deve contar com o intérprete para subsumir o fato à norma. 11 . Peter WUST. Incertidumbre y riesgo (1955), p.9; RADBRUCH discorre sobre a

“felicidade da incerteza” e a certeza da felicidade, em seu El hombre en el Derecho (1980), p.116.

12. CALAMANDREI, em contrário à coisa julgada como presunção de verdade, critica a expressão de que aquela facit de albo nigrum et de quadrato rotundum. Estudios de Proceso Civil (1945), p. 608; Rev.Dir.Proc.Civile (1938), v. I, pp.108-129.

13 . “A certeza do Direito vai até o ponto de exigir a constituição de um Poder do Estado, cuja finalidade precípua é ditar, em concreto, o sentido exato das normas. Ligada, portanto, ao princípio da certeza do Direito, temos a compreensão mesmo da função jurisdicional”. Miguel REALE, Filosofia do Direito (1982), p. 705.

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3. A Jurisprudência como ordenamento aberto

Deve a Jurisprudência ser codificada, como um ordenamento

fechado, rígido, inflexível? ou deve se manter como um ordenamento aberto, receptivo à construção permanente do Direito?

É da essência da Jurisprudência, em nosso sistema jurídico,

ser flexível, mutável, dinâmica portanto, como é da Lei ser imutável, enquanto viger. Mas, entre a Lei e a Jurisprudência há pontos de coincidência, pois a Jurisprudência é construída com base na Lei, mas com olhos postos no caso concreto; portanto, a Jurisprudência é a subsunção da Lei ao caso concreto; por ela, a Lei resta "humanizada" ou amoldada ao caso singular, de forma a ter uma eficácia "verdadeira"; a decisão, pois, faz justiça no caso particular, amolda a Lei, genérica, à particularidade do caso sub judice e esta autorização, para assim agir, está dada ao Juiz pelo artigo 4o da LICC.

A Segurança a posteriori, que emana da Jurisprudência, dá

ao cidadão, sujeito de Direito, mais certeza do que a Segurança a priori, dada pela Lei? Aquela Segurança que a Lei nos dá, ("Acredite na sinalização das estradas, e não errará o caminho!"), é uma certeza, uma garantia, embora as constantes alterações nas Leis causem surpresas ou insegurança aos cidadãos. 14

Enfim, o que aporta maior Segurança ao destinatário do

Direito: a Jurisprudência ou a Lei?

14. A hipertrofia das Leis, com o excesso de regulamentações casuísticas, tem sido um dos

fatores mais influentes para a desorientação jurídica da sociedade, como já nos referimos, sendo apontada pelos autores como causa da insegurança jurídica do cidadão.

“O governo estima que o estoque de legislação em vigor já deve estar ultrapassando a marca das 200 mil normas. “... impera a anarquia na legislação, em decorrência de um vício burocrático ... nove em cada dez textos legais terminam com a revogação das ‘disposições em contrário’... e remete ao extremo da incerteza, tornando inviável localizar e distinguir o revogado do ainda vigente. A consequência é a gradual expansão do nível de conflito jurídico na sociedade, com o congestionamento dos tribunais. As sentenças diárias demonstram que os juízes passaram a operar cada vez menos pela aplicação direta das leis e mais por sua interpretação”. Para obviar este caos legislativo, tramita no Congresso Nacional o Projeto de lei nª 149/95, complementar à Constituição, visando fixar padrões para se elaborar, escrever, alterar e consolidar todas as leis, decretos, resoluções e outros tipos de regulamentos editados pelo Executivo, Legislativo e Judiciário. Cf. José CASADO, “Planalto tenta mapear labirinto jurídico”. O Estado de S.Paulo, 18.06.1995, Cad.A, p. 12.

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É de antiga doutrina afirmar-se que o caráter mutável da Jurisprudência implica em incerteza do Direito; de outra parte, as Súmulas visam dar maior grau de certeza à Jurisprudência. Entretanto, nenhuma legislação pode dar estabilidade a fenômenos existenciais que são por essência dinâmicos; vistas as condições humanas de liberdade, inteligência criativa, vontade realizadora, as tentativas de codificar as condutas do homem em sociedade ficam sempre ultrapassadas pelo tempo, exigindo contínuas adaptações, retificações, emendas, reformas, diante da emergência crescente de novos fenômenos jurídicos e sociais.

Um dos escopos da positivação do Direito é dar Segurança

aos cidadãos, mas o envelhecimento e a hipertrofia das leis corrói, progres-sivamente, esses ancoradouros de certeza no Direito.

A simples insegurança gera um direito subjetivo de ação, como

facultas agendi; é uma faculdade que se pode exercitar a qualquer momento; quando temos incerteza quanto a um direito e queremos Segurança, é um direito ir aos Tribunais e questionar se a lei que nos obriga é justa; os litígios nada mais são do que pleitos de dúvida, de desconfiança, implicando a faculdade de exigir do Estado um novo pronunciamento sobre o objeto do litígio; o petitum judicial questiona a própria norma legislada, tornando-a discutível, e obriga o Juiz a buscar o Direito justo e não o legal. Discutir uma norma jurídica é interpretá-la segundo regras

hermenêuticas, de forma a explicitar o sentido oculto da Lei (por deficiência natural do legislador), revelando o conteúdo da norma, aclarando-a para que se aplique com exatidão aos direitos subjetivos inquinados de duvidosos; por isso é o Direito essencialmente dialético, retórico ou argumentativo, as sentenças não são meros silogismos e as decisões nunca alcançam o justo absoluto, mas o razoável. 15

15 . Luis RECASÉNS SICHES. Experiencia jurídica, naturaleza de la cosa y lógica

"razonable", p. 529.

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Plano

Plano do Particular

do Geral

Decisões JudiciaisA N

Por Induçãoa

JurisprudênciaUniformizada

torna-seGeneralizadaatravés das

Súmulas

Por Deduçãoa

Lei Geralse

Individualizaatravés deMúltiplas

Decisões Judiciais

Lei

O Caminho que vem da Lei às Decisões Judiciais é o mesmo que vai destas ao Plano Geral da Lei.

Todo caso julgado traz em si um conteúdo de Direito substancialmente diverso daquele da regra escrita; a norma que ingressou na demanda, invocada pelas partes, não é mais a mesma que sai da decisão judicial, mas é norma transfigurada, transcendentalizada, pois passou do plano geral e abstrato da unidade da Lei para o plano concreto, particular e múltiplo dos casos julgados.

Em síntese, vemos que a Segurança é um dado objetivo da

Lei, inerente a ela, que deve acompanhá-la enquanto viger; é uma condição de eficácia, pois se a Lei não for eficaz não será segura; e a certeza é o elemento subjetivo que acompanha o sujeito de direito, é aquela face da Segurança que, por ser polêmica e dialética, questiona e duvida do próprio Direito objetivo. Enquanto na Lei, originariamente, a Segurança é hipotética, na coisa julgada é concreta; não obstante particularizada, a Segurança emergente do caso individual reforça a Segurança da Lei geral, revalorizando o próprio ordenamento jurídico.

Tocante a este aspecto, ao tratar da interpretação como ato

de conhecimento ou de vontade, Hans Kelsen 16 afirmou em sua célebre teoria que

“la interpretación que efectúa el órgano de aplicación del derecho

es siempre auténtica. Crea derecho. Mediante una interpretación auténtica semejante pude crearse derecho no sólo en el caso en que la interpretación tenga carácter general, ... sino también en el caso en que el órgano de aplicación de derecho produce una norma jurídica individual; tan pronto el acto del órgano de aplicación de derecho no

16 . Teoria Pura del Derecho (1993), p. 354-5. Cf. ERRÁZURIZ (1987), pp. 82ss.

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puede ser dejado sin efecto, por haber adquirido fuerza de cosa juzgada. ... Que muchas veces se cree nuevo derecho por vía de semejante interpretación auténtica - especialmente por tribunales de última instancia - es un hecho bien conocido”.

.

4. A relevância constitucional do STF O Supremo Tribunal, a partir da Constituição Federal de

1988, apresenta-se com caráter constitucional, embora assim não se identifique; por isso tem ele a precípua finalidade de uniformizar as interpretações sobre Constituição, assim como o STJ o tem em relação às Leis federais. 17

De fato, qual a preocupação do Estado democrático consti-

tucional no campo jurídico? é a integridade do ordenamento; e sua tutela depende dos Tribunais, principalmente do Supremo. É relevante para o Direito, segundo os Tribunais, o tema da integridade do ordenamento jurídico.

Diz-se “jurisprudencial" o Direito que se manifesta através da

Jurisdição 18 : na acepção técnica, "é o conjunto de pronunciamentos do Poder Judiciário, num determinado sentido, a respeito de certo objeto, de modo constante, reiterado e pacífico";19 na lição do ilustre jurista Limongi França, "a Jurisprudência atinge o caráter de forma de expressão do Direito, isto é, de preceito normativo, integrante do sistema jurídico, à medida que se reveste das características de costume judiciário", como regra de Direito costumeiro, com aceitação comum, pacífica e reiterada por parte dos tribunais. 20

Hans Faching, 21 discorrendo sobre o CPC da Áustria,

ressalta, como uma de suas características, a maior estabilidade do Direito, atra-vés da ampliação das funções do Supremo Tribunal; neste sentido, pres-tigiar o Tribunal implica fortalecer a Segurança Jurídica, através da maior efetividade da função de liderança do Supremo.

17 . Cf. Ricardo Arnaldo Malheiros FIUZA. Superior Tribunal de Justiça: “Guardião do Direito

Federal comum”, In “Recursos no Superior Tribunal de Justiça” (1991), pp.313-324. 18 . ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito, Verbete Direito Jurisprudencial, v. 27, p.262. 19 . Rubens Limongi FRANÇA, Manual de Direito Civil, 1971. 20 .Idem. Verbete Fontes do Direito. ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito, Vol. 38. O autor

participou de Comissão do Ministério da Justiça para elaboração do Anteprojeto da Lei de Aplicação das Normas Jurídicas, ora em trâmite no Congresso Nacional, em que se alvitrou incluir a Jurisprudência como fonte do Direito. Cf. Cap. XIII, N. 5, p. 238.

21 . O desenvolvimento do CPC autríaco nos últimos anos. RePro, v. 5, p.122.

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Alude este autor á existência de órgãos colegiados reforçados,

chamados a decidir quando há uma questão jurídica de importância fundamental, que chama de relevância jurídica, podendo implicar em mudança da Jurisprudência constante do Tribunal; ali, têm esses órgãos uma função orientadora, porque exercem um trabalho modelar, para evitar qualquer dúvida a respeito da decisão do Juízo superior sobre questões jurídicas litigiosas. A finalidade da revisão serve, antes do mais, para conservação da unidade do Direito, como primazia do interesse geral, portanto.

A argüição de relevância é inerente ao próprio Direito de

ação; o interesse jurídico é da parte, por primeiro, depois, dos Tribunais, até a determinação da coisa julgada; após esta, é de interesse do ordenamento jurídico, ou seja, do próprio Estado. 22

Em acórdão do STF, 23 discutiu-se recurso em que a parte

insistia em receber honorários, em tema de mandado de Segurança; o douto Ministro Oscar Correa, como relator disse que as funções do Tribunal eram,

"no cumprimento da própria missão constitucional de interpretação definitiva da Lei federal e de uniformização da Jurisprudência, essenciais à normalidade e estabilidade da ordem jurídica".

Prosseguindo em seu voto, afirmou:

"Não se infere daí a obrigatoriedade formal de obediência à Súmula do Supremo, nem pretendeu a Corte dar poder normativo, cogente, à sua orientação, que não é Lei. Mas, se se conhece a Súmula - e o Juiz brasileiro não a pode desconhecer, - e se não aplica, autoriza-se a interposição do remédio processual para repor a orientação da Corte Maior; e se obriga, desnecessariamente, a iniciativa da parte, exigem-se ônus injustificáveis e requer-se prestação jurisdicional que se poderia e deveria evitar".

Do referido aresto se depreende que a Jurisprudência domi-

nante, principalmente sumulada, tem autoridade bastante para o controle dos recursos; ou seja, competiria aos Tribunais inferiores serem rigorosos na aceitação destes; mas, de outra parte, quanto mais rígida a denegação de recursos, maior número de agravos para conhecer da relevância haveria, o que iria ocupar o mesmo julgamento

22 . Notável apreciação do tema foi magistralmente elaborada por ARRUDA ALVIM, em sua

obra A Argüição de Relevância no Recurso Extraordinário (1988), e que, por suas dogmáticas apreciações, guarda bastante atualidade; cf. igualmente Nelson NERY Jr., A Argüição de Relevância da questão federal no recurso extraordinário, in “Princípios fundamentais - Teoria Geral dos Recursos” (1990), p. 146 ss.

23 . R.E. nº 104.898-RS, 26 mar 85. RTJ, v.113, p.457.

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para aquele caso denegado; não se pode negar o acesso à Justiça, mas deve ser obstado quando não for ele evidente, pois muitos recursos são nitida-mente incabíveis; na prática ou indiretamente, a Súmula contém um mínimo de obrigatoriedade; a orientação, portanto, seria acatá-la decidi-damente, com maior freqüência do que se tem visto.

5. Jurisprudência: modelos jurídicos e modelos dogmáticos

Eduardo Domingos Bottalo propôs duas soluções para a

apreciação das Súmulas, que se apresentam como modelos jurídicos ou como modelos dogmáticos:

"à luz da teoria pura as Súmulas representam modelos jurídicos em

relação à atuação judicante do próprio Supremo, e como modelos dogmáticos em relação aos demais Juízes". 24 Modelos jurídicos constituem pontos de referibilidade para

atuação concreta do Direito, já os modelos dogmáticos constituem elementos de compreensão do Direito; ou seja, dentro do Tribunal seria um modelo jurídico para os próprios juízes ou desembargadores uniformizarem a Jurisprudência, para não discreparem, não serem centrífugos os julgamentos, pois, se cada Juiz julgasse de maneira aleatória, a Jurisprudência seria centrífuga e não centrípeta e acabaria em anarquia; de outro passo, em relação aos Tribunais inferiores, os modelos dogmáticos são referências do Tribunal superior, como doutrina jurisprudencial.

Lembra-se, aqui, a necessidade de assegurar o respeito à Jurisprudência sumulada da Corte, que busca efetivar a unidade processual; a própria Lei Processual Civil (art. 479), fala de uniformização da Jurisprudência, porque deve servir de rumo e orientação, pois

"a independência do julgamento se afirmará à medida que obedeça

à Lei e não na afronta que lhe faça. Não se diminui o Juiz quando atende à linha da Jurisprudência, nem o obriga a desfazer-se de suas opiniões. É comum, nos julgamentos das Cortes, a ressalva de pontos de vista pessoais. Enquanto isso não se dê, cumpre resguardar a autoridade da decisão da Corte. 25 As Súmulas deveriam, pois, ser obedecidas com mais

frequência pelos julgadores das primeiras instâncias, enquanto não

24 . Natureza normativa das Súmulas do STF, segundo as concepções de Direito e de

Norma de Kelsen, Ross, Hart e Miguel Reale. R.D.Público (1974), v. 29, pp. 17-25. 25 . R.E. 104.898-RS, RTJ, v.113, p.458

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alteradas. É oportuno trazer à colação o ensino de Limongi França26, para quem

“o princípio básico definitivamente consagrado, ... no âmbito do Civil Law, é o de que os julgados anteriores não vinculam necessaria-mente o magistrado, ainda que se trate de decisões suas ou de Tribu-nal da mais alta instância”; “além de carecer de qualquer base constitucional, a ereção indiscriminada dos julgados em norma geral obrigatória seria excessivamente arriscada e perigosa para a própria ordem reinante”.

“Não obstante, excepcionalmente, temos para nós que, preen-chidos uns tantos requisitos, a Jurisprudência (não os julgados, mas a repetição constante, racional e pacífica destes) pode adquirir verda-deiro caráter de preceito geral. É, a nosso ver, quando, pela força da reiteração e, sobretudo, da necessidade de bem regular, de modo estável, uma situação não prevista, ou não resolvida expressamente pela Lei, ela assume os caracteres de verdadeiro costume judiciário.”27

6. Graus de auctoritas das decisões judiciais

Apreciando-se objetivamente a produção jurisdicional como

um todo, podemos identificar julgados: a) de 1ª instância (juízos singulares), que apresentam auctoritas

simples ou primária; b) de 2ª instância (juízos colegiados), com auctoritas média ou

secundária; c) de 3ª instância ou constitucional (tribunais superiores), com

auctoritas plena ou absoluta nas matérias de suas competências.

Para Arturo Salinas Martinez, no Direito positivo mexicano se encontram três conceitos de jurisprudência:

1- geral: decisões sem condições de jurisprudência obrigatória (não obrigatória);

2- específico: cinco decisões consecutivas e uniformes sobre um ponto de Direito, aprovados por maioria ou unanimidade (jurisprudência obrigatória);

26. A Lei, o Direito e a Jurisprudência (1974), pp.175,178. 27. Sobre a doutrina dos precedentes nos sistemas anglo-norte-americano, consultar: Carleton Kemp

ALLEN, Low in the making (1978);Leslie SCARMAN, O Direito inglês.A nova dimensão (1978); Victoria ITURRALDE SESMA, El precedente nel Common Law (1995); Edgar BODENHEIMER, Jurisprudence, The Philosophy and ethod of the Law (1974); Benjamin N. CARDOZO, A natureza do Processo e a Evolução do Direito (1956); Renè DAVID, Os grandes sistemas do Direito contemporâneo; Maria Luiza MARÍN CASTÁN, Consideraciones sobre el Derecho ingles como protótipo de sistema de Common Law y sus diferencias respecto de los sistemas romano-jermánicos (1984); Alessandro PIZZORUSSO, Curso de Derecho comparado (1987); Roscoe POUND, El espíritu del “common law” (1954); Oscar RABASA, El Derecho angloamericano (1982); Gregorio RUIZ Federalismo judicial ( El modelo americano) (1994); André e Suzanne TUNC, Le Droit des États-Unis d’Amerique (1955).

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3- restrito: jurisprudência unificadora (também obrigatória). 27 Consideramos julgados relevantes, aqui, todas as decisões

trânsitas em julgado sobre questões de Direito que interessam ou implicam diretamente os seguintes e diversos destinatários:

a) à Justiça, quando, functus officio suum, a decisão não mais pode ser

reexaminada, pela imutabilidade dentro do processo; são julgados formalmente relevantes;

b) às partes, pois o litígio não poderá ser reapreciado no mesmo

processo ou em qualquer outro; nem o Juiz voltar a julgar, nem as partes a litigar, nem o legislador regular diferentemente a relação jurídica (por força da irretroatividade da Lei); 28 são julgados materialmente relevantes;

c) ao ordenamento jurídico; se a qualidade essencial das decisões e de

seus efeitos é a imutabilidade, ela é a própria coisa julgada (formal e material); a nosso sentir, a auctoritas do caso julgado não se limita subjetivamente às partes ou a terceiros prejudicados, mas se estende erga omnes, ou seja, a todos que se “beneficiam” da autoridade dessa decisão. 29

As decisões de 1ª instância são meramente instrumentais, porque se destinam a uma nova apreciação da causa; se não recorrida, por aceitação das partes, faz o caso julgado perfeito, constitui-se em decisão certa ou com forte carga de Direito justo. 30

Já nos acórdãos de 2as instâncias, torna-se perfeito o caso

julgado, se houver confirmação total ou parcial da decisão de 1º grau; quando há reforma ou inversão do resultado, pode ter havido solução considerada errônea ou injusta.

Enfim, os acórdãos de 3ª instância ou de nível constitucional se adequam à uniformização da jurisprudência e à sumulação oficial,

27. Ap. José de Moura ROCHA. Súmula - II. ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito, v. .71,

p.329. 28 . CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO. Teoria Geral do Processo, p.305. 29 . Giovanni ORRÙ. Richterrecht, p. 102, cf. nota 3, p. 1, deste capítulo. 30. Para Carlos COSSIO, toda e qualquer decisão é importante para o Direito; para o autor

argentino, importante jusfilósofo da Teoria Egológica do Direito, não há decisões judiciais irrelevantes. Cf. Karl LARENZ. Derecho Justo (1985), p. 52.

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de forma a alcançar o grau máximo de auctoritas, a ponto de se constituir em autêntico "Direito sumular". 31

7. Esboço de uma classificação das decisões judiciais

Na verdade, de todos os casos julgados emana uma carga de

auctoritas; à medida em que vão sendo publicados em repertórios fidedignos, assumem relevância jurisprudencial, em graus correspon-dentes ao nível das decisões.

Assim, as Súmulas, além da auctoritas de julgado superior,

contém uma sanção oficial, advinda dos poderes especiais conferidos pela Constituição, notadamente aos Tribunais superiores.

De fato, o Judiciário tem poderes, não apenas jurisdicionais,

de determinar o direito para cada caso concreto, mas também políticos (interna corporis) de definir o grau de auctoritas daquele direito determi-nado pelos Tribunais (hierarquia jurisprudencial). 32

A orientação do Judiciário, com relevância a ditada pelo

Supremo Tribunal, é jurídico-política, porque detem competência constitucional exclusiva para fazê-lo; porque é instância recursal derradeira; e porque, implicitamente, suas decisões guardam a potencialidade de se transformar em Súmula dominante.

Ora, se nem todas as decisões de um Tribunal são sumuladas, é porque não há interesse relevante para o ordenamento jurídico; o critério seletivo de algumas questões de Direito, para sumulação, reside na importância que apresentam para aperfeiçoar a ordem jurídica. Numa ordem crescente de relevância, quanto às questões de Direito decididas, oferecemos a seguinte classificação: 1º) Direito Judicial é expressão abrangente, para todas as instâncias de julgamento, dos Juízes singulares aos colegiados superiores; pode não conter, virtualmente,

31. Lincoln Magalhães da ROCHA. Direito sumular. Uma experiência vitoriosa do Poder

Judiciário (1983); Roberto ROSAS. Direito Sumular (1991), etc. 32 . LIMONGI FRANÇA lembra que “o princípio dominante na matéria é o da decisão

segundo o livre convencimento do magistrado, atendidos os ditames da Lei e, na sua omissão, dos preceitos oriundos das outras formas de expressão do Direito, previstas, expressa ou implicitamente, na Lei de Introdução ao Código Civil”. Op.cit.p.192.

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força de precedente, por sua pequena relevância jurídica, mas sempre possuirá auctoritas (formal e material), em qualquer caso julgado. 33 2º) Direito Jurisprudencial consiste no conjunto ou acervo de decisões reiteradas dos Tribunais sobre grupos de questões de Direito, julgadas sempre sob a mesma determinação do ius, sem qualquer preocupação sistemática. 34 3º) Direito Sumular será, afinal, a Jurisprudência feita prevalecer de maneira oficial, pelos respectivos Tribunais, sobre matéria de sua competência, através de sistema político "quase legislativo", consistente na escolha dos temas juridicamente relevantes, discussão e votação plenária das ementas e sanção oficial, que se incorporam em conjuntos sistematizados. 35 8. Coisa julgada e Certeza do Direito

As sentenças de 1ª instância podem se tornar caso julgado quando as partes não recorrem, por se conformarem à solução justa, satisfeitos que foram seus direitos, mas não fazem jurisprudência, no sentido jurídico da expressão; por se tratar de norma individualizadora

33. ORRÙ. Op. cit., p. 102. Carlos MAXIMILIANO: “Para evitar confusões, ... parece

preferível só chamar Jurisprudência ao uniforme e constante pronunciamento sobre uma questão de Direito, da parte dos tribunais; e simples precedentes, às deliberações das câmaras legislativas e às decisões isoladas dos magistrados”. Hermenêutica e aplicação do Direito (1957), N. 204, p.235.

No mesmo sentido, Francisco MADRAZO: “... el derecho que utilizan los jueces en el desempeño de su función es algo más extenso, y por tanto distinto, que el orden jurídico que regula la vida de los individuos en sociedad. Si éste es asimilable a la idea de conjunto de leyes, es decir, de normas sancionadas regularmente por los órganos estatales competentes, lo que denominamos derecho judicial es una estructura compleja, no homogénea y de alguna manera supralegal”. Orden Jurídico y Derecho social (1985), p. 69.

34. Luigi LOMBARDI refere-se ao Direito Jurisprudencial como “momento jurisprudencial do Direito” afirmando: “La giurisprudenza non si limita a offrire la conoscenza di un diritto interamente formato, ma contribuisce alla stessa formazione del diritto, è sempre creativa; visto del lato opposto: il diritto è sempre (anche) giurisprudenziale”. Saggio sul Diritto Giurisprudenziale (1975), p. 371ss.

Frédéric ZENATI, tratando da Jurisprudência da Corte de Cassação francesa, enfatiza que “... le mécanisme du pourvoi en cassation n’est qu’une implication procédurale de la force des règles jurisprudentielles ... Ces règles s’imposent à tous en dehors du procès et l’autorité de la chose jugée ... n’est qu’une technique visant à renforcer leur force obligatoire.” Embora com certa ressalva, cita KERNALEGUEN, para quem “l’arrêt d’assemblée plénière jouit d’une double force obligatoire, l’une résultant d’une règle jurisprudentielle ayant force de loi, l’autre de l’autorité de la chose jugée”(Nota 2), ressaltando a natureza legislativa daquela jurispru-dência, “en parlant d’autorité ‘semblable’ à la loi et, parfois de nature ‘quasi-législative’” (p. 184, Nota 4). La Jurisprudence (1991), pp.183-184.

35. Cf. Roberto ROSAS, Lincoln Magalhães da ROCHA e outros, já citados. Neste sentido podem se enquadrar as “Súmulas” do STF, do STJ, dos Tribunais de Justiça ou de Alçada, etc.

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do caso concreto, sem potencialidade de unificação de julgados, através de decisões múltiplas, apresentam menor grau de certeza jurídica. 36

Somente decisões múltiplas, sobre questões jurídicas seme-

lhantes, levam à formação de Jurisprudência; e justamente por serem colegiadas, as decisões de 2ª instância oferecem maior grau de certeza jurídica.

Um máximo grau de certeza jurídica encontramos nas

decisões constitucionais de 3º grau (STF) porque, além do conteúdo material do Direito, elas definem, apuram ou determinam a constitucionalidade das leis mesmas.

Quando estes julgados terminativos (de 2ª ou 3ª instâncias)

passam por processo regimental de uniformização de jurisprudência dominante, produzem-se as Súmulas, como forma especialíssima de Jurisprudência.

De fato, as Súmulas contêm auctoritas de categoria superior à

da Jurisprudência esparsa porque: são sistematizadas; recebem sanção, à maneira legislativa (portanto, quase-leis); são de nível constitucional; e mais rígidas que as decisões assistemáticas, por sua maior qualificação na hierarquia dos enunciados jurisprudenciais. 9. O ordenamento jurídico, corpo aberto e em evolução

A constante produção legislativa, os novos costumes criados

na sociedade, sobretudo pelo tráfico comercial, as regulamentações administrativas, os contratos negociais, a doutrina e pareceres dos juris-consultos, e também a produção jurisdicional, contribuem diuturna-mente para a formação, conformação ou aperfeiçoamento do universo jurídico, sob o qual os homens se movem e convivem na sociedade.

Chamem-se fontes, expressões jurídicas ou modelos

jurídicos, 37 na verdade são os mananciais do Direito, que fazem o

36. MAXIMILIANO indaga: “Sentenças de primeira instância formam Jurisprudência?

Certamente; e até não é raro que forneçam a melhor contribuição. Entretanto, o prestígio cresce com a altura do tribunal, e é lógico, porque os arestos de pretório mais elevado alcançam mais larga periferia e inutilizam os dos juízes inferiores. O Supremo Tribunal Federal ocupa o primeiro lugar, como autoridade em Jurisprudência; vêm depois os tribunais de segunda instância; por último, os de primeira. Não se olvide, entretanto, que o julgado, para constituir precedente, vale sobretudo pela motivação respectiva; o argumento científico tem mais peso do que o de autoridade”. Op. cit., N. 203, p.234.

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ordenamento respirar, crescer e renovar-se, demonstrando que este nem é estático nem fechado.

Realmente, ao admitir o legislador positivo que o Juiz pode,

na falta de Lei, aplicar os costumes, a analogia ou os princípios gerais de Direito (arts. 4º LICC, 126 CPC, 8º CLT, etc), está reconhecendo a existência de lacunas ou válvulas pelas quais o ordenamento se comunica com os fatos emergentes, os assimila e se desenvolve.

Mas não exclui o entendimento de que o produto dos julga-

mentos - a Jurisprudência - seja igualmente uma forma ou expressão jurídica que se incorpora ao patrimônio do Direito; se não, inúteis seriam as normas sobre uniformização e sumulação da Jurisprudência, sobre-tudo dos Tribunais Superiores (arts. 476 a 479 do CPC, arts. 101 a 103 e 325-326 do RISTF, arts. 118 a 121, e 122 a 127 do RISTJ; art. 63 da LOJF; art. 16, par. único, da LOM etc).

Portanto, todas as experiências no campo do Direito tendem a

um mesmo fim, a ordem jurídica, que significa segurança, harmonia e paz social, em todas as atividades humanas, enfim, o bem comum,38 como último e superior interesse dos homens em sociedade; essa tendência finalística obedece a uma Lei universal e dinâmica, a Lei do crescimento constante da cultura, nela incluído, com proeminência, o próprio ordenamento do Direito:

"Afirma-se que o objetivo-síntese do Estado

contemporâneo é o bem comum e, quando se passa ao estudo da jurisdição, é lícito dizer que a projeção particularizada do bem comum nessa área é a pacificação com justiça". 39 O centro da vida jurídica, e também social e política, é

evidentemente, o bem comum, para o qual tendem todas as expressões culturais do Homem, das quais sobressai o Direito, por ser influente e abrangente das demais categorias do pensar e do agir humano.

A Lei natural do crescimento constante obriga a que a produção

jurídica, em todos seus níveis e expressões, amplie a concreção do bem

37. LIMONGI FRANÇA, Verb. Formas de expressão do Direito. ENCICLOPÉDIA Saraiva do

Direito, v.38, p.203-217; Miguel REALE. Verb. Modelos jurídicos. ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito, v. 53, p. 67-74; e seu recente Fontes e Modelos do Direito (1994).

38 . V. Cap. VIII, N. 6, O Bem comum, Unidade na Multiplicidade. 39 . CINTRA, GRINOVER & DINAMARCO. Teoria Geral do Processo (1994), p. 25.

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comum, em suas aplicações como Justiça social; os desníveis sociais, injustiças legais, apartheids de toda espécie, segregações anti-humanas, só se eliminam quando o bem é ampliado de modo a se tornar cada vez "mais comum", ou seja, extensivo a todos os setores da sociedade, seja em seus aspectos materiais (mais urgentes) ou espirituais (mais importantes). Ora, a produção jurídica dos Tribunais, através da Jurispru-

dência, não visa satisfazer apenas interesses materiais dos homens, mas também, e sobretudo, valores espirituais como a liberdade, o bem-estar, a igualdade, a justiça, anunciados, por isso mesmo, no Preâmbulo e inscritos nos primeiros artigos da Constituição Federal. 10. Conclusões

Cabe ao Poder Judiciário a grave responsabilidade, nunca

demais enfatizada, de crescente conscientização dos órgãos judicantes para superar o individualismo nos julgamentos, ao não reconhecer a superioridade da Jurisprudência dominante e das Súmulas; ou a superficialidade na abordagem de temas relevantes que interessam, agora, não somente às partes, mas também ao próprio universo jurídico; e a mediocridade de se admitir que o simples pronunciamento de um Tribu-nal tenha auctoritas por si mesmo, quando, ao contrário, o que faz a autoridade dos julgados é a competência, a cultura, o estudo, a probidade, a idoneidade moral, o humanismo, enfim, de seus prolatores, no sentido de entenderem a Jurisdição não como mero poder técnico de aplicação de normas, mas como pesquisa profunda, que alcance as raízes sociais da controvérsia, para fazer incidir um Direito justo.

Deve o Judiciário pugnar por Tribunais abertos, que não se

limitem ou se acomodem à sua Jurisprudência interna, organizada, pacificada, mas fechada em si mesma, como numa pirâmide kelseniana. Os Tribunais inferiores e Juízes não deveriam desconhecer que fazem parte de um mesmo sistema jurisdicional, que opera com a mesma matéria prima, o Direito objetivo, e que não há sistemas particulares, fechados, infensos à produção jurisprudencial dos demais, sobretudo os superiores.

Há que considerar a qualidade da cultura (a jurídica

sobretudo) e apreciar a produção intelectual dos demais, indo ao encontro e sensibilizando-se com as idéias e soluções dos mais prudentes.

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É característica do homem culto (em especial o julgador)

acolher as idéias alheias, lançar desafios construtivos, ressaltar e valorizar o positivo e unir as soluções que realizam o bem da Justiça; enfim, irmanar-se com os que oferecem idéias superiores de Direito.

Assim como há uma hierarquia nas Leis, há igualmente nas

Jurisprudências; não se trata de uma ordem rigidamente vinculante, nem tão pouco aconselhamento moral, mas disciplina persuasiva; o conselho dos prudentes sempre foi acatado na Roma antiga, e até mesmo por ordem imperial, em certa época.

Desconhecer o labor jurisprudencial de decisões superiores, o

que representam de conteúdo normativo, apurado, aperfeiçoado, refinado, através de elevados debates jurídicos, em sucessivos julgamentos, e já incorporados ao universo doutrinário, especialmente através do Direito sumular, é descartar, sic et simpliciter, regras elementares de hermenêutica, que mandam acatar a jurisprudência evidente, desde que não esparsa ou tergiversante.

Carlos Maximiliano nos instrui que “uma decisão isolada não

constitui Jurisprudência...; o precedente, para constituir Jurisprudência, deve ser uniforme e constante”; “não deve o Juiz com facilidade afastar-se da autoridade dos casos constantemente julgados de modo semelhante”. 41

Bem orientativa é a norma do art. 94, § 5º, da Constituição

Geral da República Mexicana, quando prescreve que "A Lei fixará os termos em que seja obrigatória a Jurisprudência

que estabeleçam os tribunais do Poder Judiciário da Federação sobre interpretação da Constituição, Leis e regulamentos, federais ou locais, e tratados internacionais celebrados pelo Estado Mexicano, assim como os requisitos para sua interrupção e modificação." 42 (negritos nossos). Para se alcançar os escopos do Direito processual contem-

porâneo, compete aos julgadores, no tocante à recepção de Juris-

41 . Op. cit., N.199-VI, p.232; N.202-VII, p.234. Cf. Exposição de Motivos encaminhando o

Anteprojeto da Lei de Aplicação das Normas Jurídicas, que poderá vir a substituir a atual LICC, reza o Art. 3º: «Dever de decidir - O Juiz não se eximirá de julgar alegando inexistência, lacuna ou obscuridade da Lei. Nessa hipótese, em não cabendo a analogia, aplicará os costumes, a Jurisprudência, a doutrina e os princípios gerais de Direito» (negrito nosso).V. Nota 3, p. 122.

42. Cf. José de Moura ROCHA. Súmula - II, ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito, v.71, p. 329.

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prudência superior, desenvolver uma efetiva colaboração recíproca, para que as diversas competências jurisdicionais possam ultrapassar posições menores e barreiras ideológicas, levantadas por personalismos que entorpecem o melhor acesso da cidadania à Justiça e acabam por desprestigiar o Judiciário, perante a sociedade, como Poder constitu-cional democrático, destinado à defesa social.

Não é de se olvidar, por fim, que cada Jurisprudência que se firma em determinados campos do Direito, firma o ordenamento inteiro; e firmar significa dar Segurança jurídica, não apenas aos destinatários, mas aos aplicadores do Direito em geral, e aos julgadores em especial, pois a eles está dirigido todo o Direito, 43 a fim de que façam Justiça !

43 . Afirmar que “as leis são para todos os cidadãos” é uma ficção jurídica, segundo Vittorio

FROSINI, para quem, em obra recente (La letra y el espíritu de la ley, 1995), “seus verdadeiros destinatários são os magistrados e os funcionários públicos, aos quais incumbe a obrigação de conhecer e aplicar as leis, os regulamentos, as portarias ministeriais, as sentenças definitivas dos Tribunais”(p. 42); recorda que o cidadão tem experiência do direito, não da lei (p. 43), e que a mensagem legislativa se dirige em primeira instância a seus intérpretes e execu-tores, os quais devem fazer cumprir as leis, e só em última instância, à generalidade dos cidadãos, os quais devem cumprir as leis (p. 45); nisto consiste a certeza do direito como solidez prática, como fato e não como norma (p. 46).

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Integração Legislação-Jurisdição

SUMÁRIO: 1. Legislação mais Jurisdição. 2. Segurança legislativa e Certeza judicial. 3. As causas mais comuns da insegurança jurídica. 4. O excesso legislativo e a insegurança jurídica. 5. A Certeza do Direito determinada pelos Tribunais. 6. A Verdade como Certeza. 7. A Eqüidade como elemento determinante da Certeza do Direito. 8. Jurisprudência e Eqüidade. 9. Diferença e semelhança entre Súmula e Norma Jurídica. 10. Conclusões.

1. Legislação mais Jurisdição Entre a Lei e a Jurisdição há uma correlação, um esquema

dialético, não contraditório, mas de contrariedade.

UNIVERSAL

PARTICULAR

POSITIVO NEGATIVO

A

I

E

O É sabido, pela lógica clássica, que as proposições podem ser

contrárias: o Universal versus Particular; também o Positivo versus Negativo. Estas duas posições podem, no entanto, coexistir, pois quando se diz mais, afirma-se o menos; se dizem claro, dizemos escuro. São tensões dialéticas que não se destroem, não se negam; são contrárias, mas não se anulam, o mais não nega o menos; contrário, o reafirma.

Podem, porém, ser contraditórias, quando se anulam e

tornam impossível qualquer conclusão; entre uma afirmação universal positiva e outra particular negativa não pode haver conclusão, pois se destroem.

Ora, a dialética a ser procurada e desenvolvida, porque

salutar ao raciocínio e ao próprio Direito, é a da complementariedade e da integração, e não a dos contraditórios que se anulam e nada constroem; esta dialética dos contrários que se complementam, nós a chamamos dialética vital.

Capítulo X

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Integr ação Legisl ação-Jur isdição

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Miguel Reale, em sua última e lúcida obra, reafirma o que

escrevera anteriormente, dizendo:

“... penso ter demonstrado que somente a dialética de complementaridade, com vigência crescente no pensamento contemporâneo, logra explicar a correlação existente entre fenômenos que se sucedem no tempo, em função de elementos e valores que ora contrapostamente se polarizam, ora mutuamente se implicam, ora se ligam segundo certos esquemas ou perspectivas conjunturais, em função de variáveis circunstâncias de lugar e de tempo”. 1

No Direito, encontramos esta relação dialética complementar precisamente entre Legislação e Jurisdição. Uma não anula a outra, mas são feitas para se completarem, porque o Juiz não deve transgredir a Lei para decidir. O Juiz profere decisão segundo a Lei e as circunstâncias do caso; portanto, neste ele acrescenta algo que complementa a Lei e, nesta complementação faz evoluir o ordenamento e o próprio Direito; acrescendo algo novo, através da Jurisprudência, permite ao Legislador retomá-la como fonte material de inspiração para novas leis e novas decisões ou aperfeiçoamento das existentes.

Em matéria de locação, p. ex., em que não há leis duradouras, mas sempre em modificação, o Legislador busca na Jurisprudência o que os Tribunais estão decidindo, para transformar em Lei tais decisões; isto é de uma evidência clara, e o melhor exemplo, repetimos, é o da correção monetária (Lei 6.899/81); é o princípio da inovação: a síntese entre Lei e Sentença é sempre algo mais do que a Lei, pois traz em si um plus valorativo do ordenamento.

2. Segurança legislativa e Certeza judicial.

A segurança que advém da coisa julgada dá mais certeza que

a segurança do legislador. A segurança do legislador, ao elaborar lei nova, é segurança hipotética, porque ele cria, a priori, uma obra genérica e abstrata; como uma fábrica que produz peças de tecidos que servem a todos; assim fabricada, dá a certeza de que, com alguns

1. Fontes e Modelos do Direito (1994), p.80. Cf. MARTINS, Ives Gandra da Silva. A Jurisprudência

integrativa e o Ideal de Justiça. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1984), pp. 12ss.

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metros pode-se confeccionar uma roupa; é uma segurança dada pelo mercado (que seria o ordenamento jurídico, a proteção, o amparo).

Na prática, a peça de tecido é uma hipótese de uso, porque não se conhece o alfaiate nem o modelo e os figurinos variam ao infinito; essa infinidade, que é a variedade, são os casos concretos que ocorrem na vida jurídica.

Esta multiplicidade contrasta com a unicidade da Lei; enquanto a Lei é única e, por isso universal, tem de servir para a descoberta da verdade: qual o culpado, quem tem razão, quem pode pleitear uma indenização, quem deve pagá-la. Esta é a grande incerteza do Direito. Temos a segurança da Lei, mas não temos certeza do Direito; na hipótese de uma indenização, temos certeza do an debeatur, mas não do quantum a receber.

Somente com a decisão judicial haverá certeza “justa” do

Direito; como roupa que se adapta perfeitamente ao corpo da pessoa, a decisão deve se adaptar de modo certo ao caso concreto, à ocorrência jurídica de fato.

Esta é uma bela imagem do Juiz, pois ser alfaiate é uma das mais nobres profissões, como a do Marceneiro de Nazaré. Quem veste alguém com tecido é como o julgador, que reveste as pessoas com as roupagens da Justiça, valor ideal que dá a cada qual aquilo que é seu (a roupa que serve a um não serve a outro).

Os homens, temos dimensões diferentes, medidas diversas; estas particularidades, que no crime se prestam à "individualização da pena", é que fazem bela a Justiça, transformam o geral, abstrato, hipotético, em concreto, real, particular; e o dar o que é seu, hoje, pelas constituições democráticas, é respeitar a cidadania de cada um, no sentido de cumprir os mandamentos constitucionais, as virtudes cívicas, os direitos fundamentais.

É oportuno lembrar Celso Antonio Bandeira de Mello quando

ensina:

“Uma vez que a nota típica do Direito é a imposição de condutas, compreende-se que o regramento constitucional é, acima de tudo, um conjunto de dispositivos que estabelecem comportamentos obrigatórios para o Estado e para os indivíduos. Assim, quando dispõe sobre a realização da Justiça Social ... está, na verdade, imperativamente, constituindo o Estado brasileiro no indeclinável dever jurídico de realizá-la”. 2

2. Eficácia das normas constitucionais, RDP, v. 57-58, p. 236.

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Tomemos nossa Constituição, que firmou em extremo os direitos fundamentais, elevando normas de Direito penal e processual a princípios constitucionais, tornando-se garantia do suum cuique tribuere. Hoje, a discussão sobre processo e ação está em nível constitucional. O processo foi constitucionalizado, em tal ordem que tudo gira em torno dos direitos fundamentais. Então, o Direito processual, que deixou de ser adjetivo, para se constituir em ciência autônoma, volta a ser tutelado, não mais pelo Direito privado, mas pelo Direito Constitucional.

Quase tudo tende a ser resolvido no nível dos Tribunais Federais, com base no Direito Constitucional. As medidas cautelares, eminentemente processuais, têm maior eficácia constitucional. Tais medidas "tolhem", por exemplo, um imposto como o IPMF, em meio à sua cobrança; uma cautelar paralisa greves de funcionários públicos; Juiz nenhum alcançaria fazê-lo, mas o Supremo Tribunal, com os poderes que lhe outorgou a atual Constituição o vem logrando, muitas vezes com eficácia erga omnes.

É algo renovador no campo da eficácia das normas o que está ocorrendo. As ações civis coletivas, representam uma transformação do Direito processual; podem ser inominadas, propostas em nome da coletividade ou da cidadania, simplesmente. Os promotores de Justiça passam a ter legitimação para representar uma coletividade ou multiplicidade de direitos individuais; a defesa ambiental, v.g., é uma conquista democratizante, quando, por exemplo, impõe multas que serão revertidas não em proveito dos autores da ação, mas da coletividade.

A multiplicação das O.N.G. (Organizações Não Governamentais) em todo mundo, atualiza a discussão sobre os chamados "corpos intermédios", entre o cidadão isolado, desprotegido, sem segurança, e o Estado todo-poderoso. Os corpos intermédios, entidades que se desenvolveram sobretudo na Idade Média, são grupos de pessoas que se unem para dar força ao cidadão contra o Estado. Os Sindicatos, a OAB, e até mesmo a família, são exemplos típicos de órgãos ou corpos intermediários. Enquadram-se nos corpos intermédios, absolutamente necessários a uma sociedade, como lubrificantes do bom funcionamento do organismo social, sendo principalmente defensores do direito dos pequenos grupos. 3 Se pensarmos no poder das Centrais de Trabalhadores, a nível

nacional, que poder! Mas, no fundo, representam grupos reduzidos de pessoas. Sua força vem da unidade de todos os sindicalizados; se fossem sindicatos isolados, independentes, sua luta seria mais dificil, serviriam, como sempre serviram, a interesses menores. Na Idade Média, as corporações de oficio, sociedades particulares, eram tipicamente "corpos

3. Entre as grandes empresas, um fenômeno a analisar, do ponto de vista da Teoria Geral do Direito e

do Estado, é o das multinacionais, porque não se enquadram em esquemas jurídicos; as transnacionais não buscam os Tribunais, têm campos privados de atuação; preferem o arbitramento judicial para suas pendências e seus contratos costumam conter compromisso de solução de litígios por arbitramento, sobretudo a nível internacional.

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intermédios" entre o cidadão e o Estado; estavam voltadas à defesa do cidadão contra o Estado a ponto de exigirem, muita vez, participação nos governos locais;4 por isso, os grupos intermédios se constituem em elementos importantíssimos para a vida social, jurídica e política de uma nação.

Buscamos demonstrar que o Legislador, ou a Lei, produz

segurança, mas a decisão judicial, pela Jurisprudência, traz certeza maior. Diz-se que a segurança, como exigência objetiva da Justiça,

procede do conjunto estrutural e funcional de um sistema jurídico, através de seus costumes, normas e instituições, como Direito objetivo, dada a priori, ou como princípio de legalidade ou anterioridade da Lei; a segurança é dada pelo Legislador ou pelo administrador, ao propor leis ou regulamentos; como valor, deve vir implícita neles. A própria Lei deve garantir o amparo dos direitos do cidadão, e também que será por ele cumprida, e pelos demais.

A Lei, portanto, como norma abstrata, é um fato que não pode ser alterado, existe tal como é, sem matizações, há uma fixidez objetiva na Lei que não muda enquanto viger o ordenamento. Este se compara ao firmamento: as leis, como os astros, convivem em harmonia, não devem se contrapor nem ser contraditórias. Na visão do positivismo jurídico, o ordenamento se afirma

como estrutura fechada, o que vamos admitir apenas para argumentar; é, pois, uma atmosfera em que respiram vários destinatários ou receptores do Direito, os cidadãos, os administradores, os Juízes, Promotores, advogados, professores, Juristas em geral. É uma natureza experimental, ou uma experiência natural do espírito, da cultura, ao longo da história, sem entrar na distinção entre Direito natural e positivo. É uma manifestação do espírito humano, segundo a vontade coletiva de um povo ou de determinadas circunstâncias históricas e valores acatados; as normas, como as instituições, são fundamentos, são os pilares que sustentam uma construção, uma estrutura.

Discorrendo sobre a complexidade do ordenamento afirma

Reale que

“Há um ‘ordenamento jurídico’ em cada país, formado pelas diversas fontes de direito, sob a égide do Estado, mas como sistema aberto e polivalente, subordinados ao qual formam-se ‘ordenamentos menores’, com menor grau de positividade”. 5

4., Henri PIRENNE. História económica y social de la Edad Media (1955), pp. 146-148. 5. Op.cit., p.99.

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Hernandez-Gil, por sua vez, analisando o próprio conceito de ordenamento jurídico afirma que

“La aportación fundamental en la materia se debe a Santi Romano, cuya doctrina conserva actualmente renovada presencia, especialmente en el campo del derecho público. Sus dos ideas claves son: la institución y la pluralidad de los ordenamientos jurídicos. La institución no excluye al ordenamiento; al contrario, le dota de existencia y le justifica; la institución quiere decir ‘organización” y ésta encarna ... el ‘fin característico del derecho’. La pluralidad de los ordenamientos descarta la exclusividad del ordenamiento estatal; hay otros grupos sociales dotados de organización propia y, por tanto, otros ordenamientos”. 6

A teoria estruturalista serve para explicar, em parte, esta idéia ou conceito. A Teoria Pura do Direito é estruturalista, quando fala de pirâmides; a própria concepção de sistema jurídico é estruturalista, o poder de unificação da estrutura, qual o esqueleto de um edifício. Mas devemos passar ao funcionalismo: para que serve este conjunto, este ordenamento? Tem ele uma função, uma finalidade que é necessário descobrir para valorizar todo o conjunto.

Bem por isso, na interpretação da Lei entra a teleologia

(teleos = finalidade). Qual o fim da lei de proteção ambiental? Até onde vai o limite desta proteção? É um esquema de interpretação. Como pilares do edifício jurídico, o ordenamento é uma construção humana, estas pilastras têm de sustentar e garantir ao cidadão que não vai ruir, dando-lhe segurança, pois ninguém aceitaria viver sob uma estrutura insegura. O homem, em suma, desde o nascer, exige segurança para viver.7

A segurança física, externa ao homem, é correlata à

segurança espiritual-jurídica que nele habita. Queremos viver em uma sociedade que nos dê segurança, pois nenhum homem civilizado aprecia conviver em uma nação com leis instáveis, variáveis a cada transe político, fonte perene de toda insegurança jurídica.

3. As causas mais comuns da insegurança jurídica

6. La Constitución, el Derecho, el Ordenamiento y los Valores. In: “Obras Completas”, (Conceptos

Jurídicos Fundamentales), v.I (1987). pp. 409. 7. Peter WUST, considerado um dos existencialistas mais profundos, na linha agostiniana, em obra

célebre, Incertidumbre y Riesgo (1955), discute a questão da segurança humana. Inicia relatando as vicissitudes dialéticas que parecem existir entre os momentos de segurança e insegurança: “Se encontrará, portanto, natural que el hombre aspire a ella y quiera protegerse contra las inseguridades de su misma existencia”. P. 12.

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Vários autores concordam num rol de fenômenos comuns a todos os povos, geradores de insegurança do Direito, entre elas:

• Excesso de leis; • O câmbio muito rápido das leis; • A inflação monetária; • Uma cultura da litigiosidade ou gosto de litigar, até mesmo

por emulação; • Baixo nível cultural do povo; • Sistemas econômicos opressivos; • Corrupção administrativa, falta de confiança nos

funcionários da justiça, falta de ética nas empresas e profissões;

• Descrença nos mecanismos judiciários e na própria justiça. Destes fatores, alguns são culturais (o baixo nível

educacional, que gera conflitos sociais graves, percorrendo um estado de ânimo disseminado por todas as classes, de um espírito de litigiosidade ou gosto de “levar alguém” à barra dos Tribunais); outros são econômicos (sistemas opressivos, possibilitando a exploração de massas de trabalhadores, a existência de contratos leoninos - sobretudo nos campos bancário, securitário, mobiliário etc -, cartéis e dumping; e a cultura inflacionária, mais produto da especulação financeira que das dificuldades econômicas nacionais); outros ainda são políticos (o excesso e a mudança célere das leis, gerando imprevisibilidade razoável das conseqüências jurídicas das condutas; e a corrupção administrativa, com toda seqüela de imprevisibilidades, que provocam profundo descrédito nas leis e nos governantes); finalmente, há as causas jurídicas, propriamente (sobressai a descrença na Justiça, nos funcionários e operadoradores judiciais; nos mecanismos judiciais e processuais, especificamente a morosidade na solução dos processos, a inércia dos órgãos incumbidos da iniciativa processual, a corrupção dos funcionários, a insuficiência de recursos humanos e materiais etc).

Como se depreende, a maioria expressiva das causas de

insegurança não têm origem no âmbito da Justiça, mas seus efeitos são a ela carreados; são problemas de ordem social, política e econômica que geram insatisfações incontidas e não resolvidas, que mais cedo ou mais tarde, de uma forma direta ou oblíqua, individual ou coletivamente, desaguam nos Palácios de Justiça para que os Juízes os dilucidem, satisfaçam e resolvam.

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Ao final, apura-se que os dilemas da insegurança são gerados por fatores políticos; daí ser impensável resolver problemas de segurança jurídica no âmbito exclusivo da auctoritas do Judiciário, sem a correspondente, correlata e eqüitativa implicação da potestas legislativa.

Volta-se, aqui, à antiga questão da lei preventiva e não

repressiva ou solucionadora: prevenir os problemas sociais pela educação e pela economia é tarefa do poder político e não do poder jurídico.

Discorrendo sobre estes dois poderes, que pertencem à

Sociedade e não ao Estado, o ilustre professor de Filosofia Política na Universidade Complutense de Madri, Dalmacio Negro Pavón, ensina que o poder jurídico, a que pertence o Poder Judiciário,

“está em luta permanente com o poder político, ao qual quer controlar e submeter, sendo com frequência submetido por ele. ...Daí que a resistência ao poder político constitua um direito imprescindível e irrenunciável do jurídico, que reinvindica sua legítima supremacia, ao exercitá-lo ainda que o poder jurídico esteja praticamente absorvido pelo político, subsiste sempre, senão como soberano, como possibili-dade de resistir”. 8

4. O excesso legislativo e a insegurança jurídica

Uma das causas da insegurança, paradoxalmente, é o

excesso de leis. Poder-se-ia argumentar que quanto mais leis, mais segurança; na prática provoca insegurança, como, p. ex., no Direito tributário.

Poderíamos lembrar, neste campo, quantas normas, posturas, regulamentos, circulares, portarias que se emitem diariamente; mesmo com tantos repertórios publicados, um boletim não consegue acompanhá-las. E o advogado tributarista vive numa selva: um caçador de normas, de regula-mentos, um técnico de memorização privilegiada para poder acompa-nhar essas variações e orientar com segurança seus destinatários.

Esta multiplicidade de leis traz, paradoxalmente, mais insegurança. Ninguém está certo, seguro, de seus direitos. A Lei não deve sofrer câmbios bruscos e constantes, para não abalar a confiabilidade dos cidadãos; ao contrário, deve ser objetivamente

8. Dalmacio Negro PAVÓN. Natureza Social do Poder Judiciário. Rev. Tribs., vol. 695 (Set. 1993),

pp. 16-29. Trad. de Carlos Aurélio M. de Souza.

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estável. E isolado, como indivíduo, o cidadão será impotente para modificar situações de insegurança.

No agir individual, porém, o mesmo não ocorre. A experiência

jurídica é um fato pessoal, que só individualmente se pode sentir, vivenciar, experimentar, somente a pessoa tem a possibilidade de agir segundo regras jurídicas seguras.

Então, sob o ângulo individual, a pessoa reconhece

objetivamente a segurança das normas, pois nasce, vive e se move num sistema jurídico regularmente instituído, e tem a faculdade de agir livremente, segundo pautas razoáveis de previsibilidade; a pessoa pode valorar eticamente suas ações, sua conduta, desde sua interioridade, objetivamente, diante das normas que lhe foram postas pelo Direito objetivo.

No mundo jurídico a pessoa não age só, pois está sempre em

relação de alteridade, fundamento da vida social e para a qual o Direito existe. É nas controvérsias interpessoais que surge a incerteza do Direito. Se não podem ser aclaradas privadamente, através de composições amigáveis, arbitramentos extrajudiciais, tabeliães, advogados etc., o litígio deve ser dirimido pelos tribunais.

5. A Certeza do Direito determinada pelos Tribunais

O Judiciário é a instância que clarifica o Direito, determina o

que é certo, declara e dá certeza; aclarar, declarar, determinar, soam como certificar, atestar qual o Direito, qual o certum. A coisa julgada, neste sentido, é a “certificação de um Direito justo. Corresponde aos termos da palavra certeza no latim certitudo, certitudinis, no francês certitude, no grego bebaiótes, no italiano certezza, no alemão gewissheit 9, etc.

Não é mais um atributo da verdade o caráter estável da

própria verdade, não sujeito a desmentido.10 Aqui é a verdade judicial, aquela que se apurou segundo o devido processo legal, variável

9. Peter WUST identifica na língua de Göethe, quatro expressões equivalentes: segurança

(Gesichertheit); certeza (Gewissheit); “estar livre” de riscos “(Ungefährdetheit); tranqüilidade (Harmlosigkeit). Op. cit, p. 29.

10. V. Cap. III, O que é a Verdade, p. 45.

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conforme os interesses sejam disponíveis ou indisponíveis, de Direito Privado ou de Direito Público.

A verdade, em um processo de Direito público, como o Penal,

ou que envolva questões de família, menores etc, deve ser buscada com muito mais profundidade do que num simples processo sobre contrato de partes capazes, maiores etc. É um dever agir dos operadores do Direito.

Neste, vigora o princípio de que o que não está no processo

não está no mundo. Naquele, o que se busca é uma verdade real; aqui, a Justiça se contenta com a verdade formal, aquilo que for provado. É um poder agir. Por isso, naquele, o Juiz tem poderes inquisitórios e neste não os tem, salvadas as exceções.

6. A Verdade como Certeza

Cuida-se da verdade como certeza formal ou real, poder

inquisitório do Juiz ou poder de apreciação dos fatos, simplesmente. A tarefa dos Juízes é colher as incertezas subjacentes nos

litígios; todo litígio, pelo próprio significado, é uma incerteza, algo fluido, todos dizem ter razão e ninguém sabe qual, nem o Juiz. Este não sabe quem tem razão, colhe a incerteza subjacente na lide, aprecia as razões particulares, sopesa os fundamentos legais objetivados nas normas, e através das provas evidencia as circunstâncias, motivos ou causas dos fatos. Procura dar a cada um o direito justo, certo, transformando-o em certeza do direito.

A metodologia do processo é esta: ingressa a petição inicial e

a contestação, com tudo incerto (certezas parciais, porque visões parciais da realidade), e finda na sentença com uma certeza. O processo deve terminar, portanto, com a certeza de um direito.

Devemos lembrar do non liquet, expressão latina que definia a

situação em que o Juiz "não podia julgar" por falta de Lei; não lhe era possível decidir porque não havia uma regra ou precedente; o Juiz não dava razão nem autor, nem ao réu, e proferia uma não decisão.

Isto mudou com o Código de Justiniano, com a doutrina

medieval e com a constitucionalização moderna; o Código de Napoleão (1804) não só proibia o juiz de invocar o non liquet, como punia o que não julgasse alegando lacuna ou falta de Lei.

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O Juiz hoje, pelo constitucionalismo democrático e em decorrência da codificação, é obrigado a decidir. Este é o poder que detém, o de dizer o que é certo, o que é justo, mesmo tendo que encontrar solução não prevista nas leis positivas. É defeso o non liquet: o artigo 126 do CPC obriga o Juiz a encontrar uma solução prudente e razoável; esta é a expressão e significado de "certeza do juízo".

Ives Gandra da Silva Martins Filho, em tese fundamental para

a compreensão de uma nova função da Jurisprudência, refere-se precisamente a que

“o juiz, chamado a se pronunciar sobre uma determinada controvérsia jurídica, não pode se eximir de decidir (CPC, art. 126), devendo recorrer, no caso de se encontrar diante de lacuna da lei, à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, podendo, inclusive, decidir por eqüidade (CPC, art. 127).

“Assim, o non liquet que era dado aos magistrados, na época romana, pronunciar, quando não havia certeza do Direito e, portanto, impossibilidade de se resolver a controvérsia dentro dos parâmetros da lei, já não se admite na sistemática processual contemporânea.

“Dada a necessidade de suprir a lacuna da lei, no momento de resolver determinada controvérsia surgida no bojo da sociedade, o juiz deverá lançar mão de instrumental que não se restringe à lei posta, mas a ultrapassa. É o que dispõe o art. 1º, alínea 2, do Código Civil Suíço, que confere ao juiz o poder de estatuir como o faria se legislador fosse, no caso de se encontrar diante de controvérsia não prevista em lei.”

E conclui, com notável acerto, em abono da tese que vimos expondo:

“Percebe-se, por aí, que a função do juiz não se restringe à de mero aplicador da legislação existente. A jurisprudência, com não rara frequência, acaba tendo papel criador de normas jurídicas, na complementação do ordenamento existente.” 11

Corroborando este entendimento, Massimo Corsale, um dos críticos e continuadores das teses de López de Oñate, tambem se manifestou no sentido de que “a função criadora do direito não é a do legislador, mas similar à obra do intérprete, consistente na contínua adaptação da norma à realidade mutante e às exigências sociais, mantendo salva a unidade e a coerência do sistema”. 12 11. A Legitimidade do Direito Positivo. Direito Natural, Democracia e Jurisprudência (1992),

p. 220. 12. Il problema della certezza del diritto in Italia dopo il 1950. In: Flavio Lopez de OÑATE, “La

certezza del diritto” (1968), p. 308.

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Trata-se ademais, podemos aduzir, de obrigação jurisdicional,

determinar o certo na questão controvertida. Trata-se de dever inerente à Jurisdição, do qual o Juiz não pode se furtar ou se omitir, sob qualquer pretexto. Decidir sempre é manifestação de Segurança Jurídica quanto ao exercício correto da jurisdição.

O non liquet era permitido aos romanos porque não havia

certeza objetiva, ou seja, segurança, não havia leis. Portanto, a questão das lacunas (ausência ou imperfeição da lei) refere-se à falta de segurança na lei; o juiz deve preencher esse vazio dando-lhe certeza através de uma decisão justa.

O livre acesso ao Judiciário, garantia constitucional, já é uma

segurança para o cidadão. Ajuizando uma ação, sabe que obterá uma decisão sobre o seu caso, favorável ou não, mas terá o afastamento da dúvida, a certeza da eficácia do processo e da jurisdição.

A certeza está para o particular como a segurança está para o geral. A lei ostenta a Segurança como elemento inato, com caráter indelével. Porém, as partes, incertas de seu próprio direito, buscam nos tribunais a certeza. E o labor judicial consiste na determinação desse Direito justo.

Assim, quando o Juiz profere uma sentença, a certeza da

decisão significa clareza, pois ele clarifica o direito nebuloso e lhe dá firmeza; há uma afirmação de certeza quando diz (de forma categórica, imperativa): “condeno”, “absolvo”, “mando”, “determino” etc.

São palavras sacramentais que não deixam dúvidas, são

comandos jurisdicionais às partes para que seja cumprida a determinação da sentença.

Portanto, o Juiz transmuda a incerteza em nova segurança; o

que as sentenças buscam é o justo jurídico, a certeza do Direito, e esta transparece, então, como um aperfeiçoamento da segurança inicial contida na lei.

A certeza que surge da coisa julgada é garantia "mais segura",

pois é segurança passada em julgado. Destarte, a coisa julgada surge também como expressão judicial da certeza do Direito; a lei é expressão legislativa da segurança jurídica dos cidadãos, através de leis justas, mas ao final são os Juízes que lhes dão a certeza definitiva de seus direitos.

7. A Eqüidade como elemento determinante da Certeza do Direito

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À medida em que a vestimenta for mais ajustada ao corpo da

pessoa, não deixando folgas, assim também, na Justiça, para cada caso o Direito certo deverá ser o mais eqüitativo.

A fita métrica do alfaiate pode medir o corpo do indivíduo e

tirar suas medidas; um metro rígido não conseguiria alcançar as reentrâncias, pois não é apto a esse mister. Aristóteles comparava a eqüidade à régua de Lesbos porque esta, sendo de chumbo flexível, podia medir a superfície de objetos curvos, por exemplo. 13

Há diferença entre o justo e o eqüitativo: o justo cede, o

equitativo corrige. Pode-se comprar um terno pronto, mas sempre necessitará de correções: isto é o equitativo, o que aperfeiçoa o justo.

A eqüidade corrige as deficiências da lei, porque uma peça de

tecido não pode vestir todas as pessoas igualmente. Portanto, na dialética entre o Legislador e o Julgador, entre a Lei e a Sentença, a eqüidade pode se constituir em elemento determinante da certeza do Direito.

A utilização da eqüidade serve para produzir uma norma

aberta, quanto à interpretação e aplicação das leis. A eqüidade corrige a lei naquilo que tem de genérica, abstrata e, portanto, o que não se adapta a certos casos particulares: enquanto a lei mede com metro rígido, a eqüidade mede, com fita flexível, todas as diferenças específicas do caso singular.

No momento gerador da norma particular, a eqüidade

representa a face humana da Justiça, entendida como a intuição racional, uma virtù imanente, nascida com o homem, e que constitui, para o Juiz, uma natureza própria e mais adequada à procura do que é Justo.

Temos que este sentido ou virtude da eqüidade está latente

no espírito de todos os Legisladores e Administradores, que fazem ou aplicam a lei; mas está igualmente presente, e até com maior agudeza, no espírito dos Julgadores, pois o que se passa na mens legislatoris e o leva a editar norma geral à sociedade também se revela na mens judicis ao decretar uma norma ao particular.

13. Ética a Nicômaco. (1989). L.V, N. 10: “Com efeito, para tudo o que é indeterminado, a régua é

também indeterminada, como a régua de chumbo dos arquitetos lésbios que se adapta à pedra e não é rígida. Do mesmo modo, as decisões se adaptam aos casos”. P. 139.

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Do aparente confronto entre Direito positivo e Direito natural

ressalta, com muita atualidade, a presença constante da eqüidade como elemento integrador do ordenamento jurídico, notadamente a Jurispru-dência.

8. Jurisprudência e Eqüidade

Em alentado trabalho doutrinário, afirma Luis Maria Domin-

guez Rodrigo que

“seria preferible en vez de hablar de construcción judicial referirnos a la equidad como resultado del proceso aplicativo, porque si bien hay que admitir las críticas al silogismo judicial mecanicista, ello no aboca a rechazar la función de la jurisprudencia de aplicación del Derecho, sino sólo a conciliar el primado de la seguridad jurídica con el de la justicia, en lo que cabalmente consiste la equidad”.14 Na França, vigorou durante certo tempoo réfèré législatif, a)

para facultar aos juízes reenviar ao legislador a resolução de uma questão jurídica que parecesse duvidosa à face dos textos legais; b) em caso de contradições entre diferentes sentenças sobre o mesmo tema, em que surgisse dúvida grave sobre questão jurídica. 15

Na Common Law, o Direito elaborado pelos juízes, judge made law, não é Direito, porque este deve ser uniforme, geral, igual e certo. E na livre investigação científica o juiz se orientava na escolha de uma solução frente a decisões alternativas, para elaborar o “construído” sobre o “dado”, conforme explanou Gény. 16

Mas o resultado da aplicação da lei deve ser sempre eqüita-

tivo; decisão eqüitativa é expressão pleonástica, pois todo julgamento deve ser eqüitativo.

O primado da segurança jurídica é o primado da Lei, em que

a Segurança entra como elemento integrante da norma jurídica, desde o princípio da legalidade, segundo o qual ninguem está obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei anterior.

14. “Significado normativo de la jurisprudencia: ¿Ciencia del Derecho o decisión judicial?” (1984),

Cap. La jurisprudencia como equidad ante la aplicación del derecho. v.I, p. 201. 15. VALLET de GOYTISOLO, em sua Metodología de la Determinación del Derecho (1994), p. 770,

citando Gény, explica que o réfèré podia ser facultativo (interpretação doutrinária) ou obrigatório (interpretação legal ou autêntica).

16. DOMINGUEZ RODRIGO, op.cit., pp. 203-204.

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O primado da Justiça é o dever ser ideal, além da lei; algo superior que não se contem na norma escrita e a que o juiz deve procurar aproximar-se; pois para Dominguez Rodrigo, a eqüidade consiste em conciliar o primado da Segurança jurídica com o primado da Justiça.

Puig Brutau e Boehmer apontam para critérios teleológicos

ínsitos no ordenamento positivo, mas que o ultrapassam. 17 E Esser pretende superar o formalismo mediante o recurso a uma “jurispru-dência de princípios”, pois sob toda norma há, latente, um princípio de direito que, uma vez determinado, tem em si mesmo um impulso suficiente para exigir um nível igual ao da própria lei; são as rationes leges, os princípios valorativos e construtivos do sistema, mas tambem os princípios éticos e jurídicos. 18

À Jurisprudência, e sobretudo aos órgãos judicantes, compete

trazer à luz os princípios que estão expressos na lei, e aplicá-los aos casos que a lei não menciona expressamente, porém nos vêm dados pela vida e caem sob aqueles princípios.

A eqüidade preside à individualização da norma jurídica,

conforme processo descrito por Kelsen 19e atua como lógica material para obter a individualização da norma judicial. 20

Por que a Jurisprudência? Porque nela se manifesta mais

vivamente a Eqüidade, seja sob a forma Interpretativa, seja Integradora, mas sobretudo a Normativa.

Nos casos especiais de lacunas da lei, chamado o Juiz a decidir

segundo a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, manifesta-se evidente a Eqüidade, na sua função Integradora; mais evidente, ainda, quando, deliberadamente, o Legislador manda julgar por Eqüidade: é a função Normativa, em que aplica uma regra que criaria se Legislador fosse.21

17. La jurisprudencia como fuente del Derecho. Interpretación creadora y arbitrio judicial (1951),

p.6; e El Derecho a través de la Jurisprudencia. Su aplicación y su creación (1959). 18. Principio y Norma en la Elaboración Jurisprudencial del Derecho Privado (1956), pp. 19ss. 19. Teoria Pura del Derecho (1993): quando descreve a função judicial, mostra o caráter constitutivo

da sentença, em confronto às normas gerais; e que, à face das lacunas do direito, há uma produção de normas pelos Tribunais, atuando o juiz como legislador, aí se defrontando os extremos da flexibilidade do direito de um lado, e a exigência de segurança jurídica de outro. Nº45, p.246.

20. DOMINGUEZ RODRIGO, op.cit., pp.222-223. 21. SOUZA, Carlos Aurélio M. Eqüidade e Jurisprudência. Tese de Doutorado FADUSP (1989), p.4.

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Nesta linha de pensamento a criatividade jurisprudencial é elemento essencial para formulação de uma nova ordem jurídica.

Para Miguel Reale, importante é ressaltar a natureza da decisão

mediante a qual, verificada a omissão da lei, o juiz procede à integração do ordenamento jurídico:

“É ela, fora de dúvida, um ato comparável ao do legislador, razão

pela qual, com muito acerto, o Art. 114 do revogado Código de Processo Civil, de 18 de setembro de 1939, assim dispunha:

“Quando autorizado a decidir por eqüidade, o juiz aplicará a a norma que

estabeleceria se fosse legislador”.

Infelizmente, esse corajoso preceito foi substituído pelo do Art. 127 do atual Código de Processo Civil, que, ambigüamente, declara:

“O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei”. E prossegue o emérito jurista e filósofo paulista:

“Nada mais temeroso e fora da realidade do que esse mandamento, pois, a todo instante, o juiz é chamado a decidir por eqüidade, sobretudo quando - conforme vimos - as disposições legais se revelaram antinômicas, ou omissas, e o julgador deve suprir tais defeitos mediante a criação de modelos hermenêuticos que superem as antinomias, ou, então, proceder a um balanceamento de bens ou valores, para realização de justiça concreta”. 22

9. Diferença e semelhança entre Súmula e Norma Jurídica

Na ordem prática, como experiência concreta do Direito, a

Súmula adquire valor equivalente à norma legal; a norma jurispru-dencial, sobretudo quando sumulada, tem a mesma equivalência para o Direito.

Se a Jurisprudência é uma síntese, ela supera a tese e a

antítese. A tese sendo a Lei, a sentença de primeiro grau é a antítese, porque a Lei é feita para o juiz; mas a sentença nem sempre é definitiva, porque traz em si a expectativa recursal, por inconformidade da parte vencida.

A Jurisprudência, no entanto, é síntese superior à Lei, porque acrescenta elementos valorativos atuais, que o Legislador não previu nem poderia fazê-lo. Estes acréscimos, que se fazem pela Jurisprudência, são elementos valorativos da Lei. Cada caso julgado

22. Fontes e Modelos do Direito (1994), p.121.

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produz uma norma particular, e cada conjunto de casos semelhantes, da mesma natureza jurídica, gera a respectiva “jurisprudência”, semelhante às ordenações abertas e não rígidas.

A Jurisprudência, como Direito que é, é finalista, indica o que

deve ser e não o que necessariamente é; por isso é, também, imperativa; em consequência, se ela indica como deve ser interpretada uma norma, a partir de um caso concreto julgado, segue-se que deve ser igualmente normativa. 23

Cappelletti, em obra clássica sobre o tema, ao tratar das

fraquezas e virtudes do Direito jurisprudencial, diferencia criação legislativa do Direito de criação judicial, afirmando que a Jurisdição sofre limitações processuais que a Legislação não tem, apresentando-se aquela como “virtude passiva” da Justiça. 24

Dentre as virtudes passivas podemos enunciar a de que a

Jurisprudência seria meramente persuasiva, conforme abordaremos em outro capítulo; mas, entendemos haver também virtudes ativas, na medida em que o precedente judicial possa se impor através de uma “vinculação mínima”, seja no plano horizontal, dentro de um mesmo Tribunal, seja no plano vertical, dos Tribunais superiores aos inferiores.

Ora, a Jurisprudência uniformizada e, mais precisamente, a

sumulada, em razão dos poderes constitucionais outorgados ao Supremo Tribunal, apresenta-se com grau maior de normatividade, alcançando o topo na hierarquia das “jurisprudências”, ao nível da própria norma legislada. 25

10. Conclusões

O ponto de concordância entre Súmula e Norma jurídica está

na generalidade, enquanto a diferença está no grau de cogência, ou seja, se são vinculantes ou não; enquanto ius cogens a Lei obriga e vincula os operadores do Direito à sua aplicação porque se reveste de potestas e auctoritas; a súmula, atualmente, possui apenas auctoritas, restando aberta a discussão sobre a cogência da norma jurisprudencial: desde a livre persuasão do juiz até a vinculação máxima, passando por graus intermediários de vinculação necessária ou ad intra (a nível do

23. Cf. Louis LE FUR. El fin del Derecho: Bien Común, Justicia, Seguridad. In: “Los Fines del

Derecho” (1967), p.17. 24. Giudici Legislatori ? (1984), p.63. 25. Tema que desenvolvemos no Cap. IX, Direito Judicial, Jurisprudencial, Sumular.

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mesmo Tribunal) ou vinculação mínima, ad extra, (entre Tribunais de diferentes níveis). 26

26. Cf. Cap. XII, Jurisprudência: fonte última da Segurança Jurídica.

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A Formação Judicial do Direito Comunitário Europeu

SUMÁRIO : 1. O Tribunal de Justiça cria direito? 2. O ordenamento comunitário: estrutura aberta e em evolução. a. O que é ordenamento jurídico. b. Ordenamentos fechados e abertos. c. Caráter aberto do ordenamento comunitário. 3. A determinação de princípios gerais como metodologia do Tribunal. a. "Criar" ou “determinar" princípios de Direito como inventio juris. b. Do princípio ideal ao concreto, como fórmula de determinação do direito. c. O método de dedução evolutiva e a aquisição progressiva dos princípios. 4. Pode-se identificar um princípio fundamen-tal na ordem jurídica comunitária? a. Os princípios gerais adotados pelo Tribunal de Justiça . b. Há, dentre os princípios, um que lhes seja superi-or? 5. Adesão ao acquis: afirmação e aperfeiçoamento do sistema jurí-dico. a. O acervo comunitário como “direito adquirido”. b. O acquis jus-tifica os precedentes vinculantes. c. Importância da criação ju-dicial. 6. Conclusões. 7. Bibliografia.

1. O Tribunal de Justiça Comunitário cria direito? A criação do direito, por via judicial, é uma questão polêmica em filosofia e metodologia jurídicas, seja porque a produção de normas gerais compete aos órgãos legislativos, seja porque as decisões judici-ais se limitam a casos particulares, sem alcance geral, como as leis. 1 Boa parte da doutrina européia rejeita a possibilidade do juiz ou tribunal "criar" direito, e que a jurisprudência seja fonte do Direito. To-davia, não poucos doutrinadores o admitem enfaticamente. 2

Na União Européia o Parlamento não detém, ainda, poderes

legislativos explícitos, pois é órgão de controle político das Comunidades. Constituem Fontes do Direito Comunitário: os Tratados constitutivos 3; os 1. “La controversia entre quienes creen que el derecho debe, esencialmente, seguir y no guiar, y que debe hacerlo con lentitud, en respuesta a un sentimiento social claramente for-mulado, y quienes creen que debe ser un agente decidido en la creación de normas nuevas, es un tema que se viene repitiendo en la historia del pensamiento jurídico.” W. FRIEDMANN. El Derecho en una sociedad en transformación, (1966), p. 21. 2. RIPERT (1955); BELAID (1974); CASTÁN (1954); CAPPELLETTI (1984); FERNANDEZ

(1970); ORRÚ (1983); PUIG BRUTAU ( s/d); D'ORS (1953); BOEHMER (1959), etc. 3. CECA - Paris, 18.4.51; Roma - CEE, CEEA - 25.3.1957; Bruxelas, 8.4.1965. cf. MOLINA

DEL POZO (1987), p.83, 85, 87; João Mota de CAMPOS (1990), v. I, pp. 85, 109.

Capítulo XI

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atos emanados do Conselho e da Comissão 4, os princípios gerais do Di-reito 5 e a Jurisprudencia comunitária 6.

Tratados e normas regulamentares não bastam para re-

solver os inúmeros conflitos jurídicos da Comunidade, pela crescente multiplicidade das situações jurídicas que se apresentam.

No ordenamento comunitário, entretanto, dada a ine-xistência de normas preceptivas específicas, o Tribunal de Justiça invo-ca princípios superiores que assegurem a eficácia na interpretação e a-plicação dos Tratados. É, pois, uma ordem jurídica essencialmente criadora de direito, com um alto grau de produção de regras normativas, em que o Tribunal se destaca por seu dinamismo em desenvolver uma jurispru-dência voltada aos objetivos de integração da União Européia. Parece, assim, que ao determinar princípios gerais o Tribunal acaba criando normas de aplicação uniforme a outros casos, constituindo a chamada Jurisprudência comunitária. Entende-se, portanto, como Direito comunitário originá-rio o que deriva dos Tratados institucionais; e por Direito derivado os a-tos das instituições e os Tratados com outros Estados; são distintos do Direito jurisprudencial, considerado como terceira fonte do Direito comunitário. A jurisprudência tem função normativa porque a Corte de Justiça é o órgão encarregado de garantir os fins da Comunidade; e

4. A União Européia é dirigida por instituições comunitárias com diversas atribuições, como

o Conselho e a Comissão (em Bruxelas e Luxemburgo); desempenham funções adminis-trativas de planejamento e de execução, sendo que o Conselho é o órgão que representa os interesses dos Estados membros, realizando reuniões de ministros dos setores cor-respondentes aos diversos interesses estatais; a Comissão representa os interesses co-munitários; enquanto o Parlamento Europeu (com sedes em Luxemburgo e Estrasburgo) tem função de coordenação política, mas não legislativa; ao Tribunal de Justiça, sediado em Luxemburgo, compete interpretar as normas dos tratados, e seus acórdãos são vin-culantes para os Estados membros e respectivos Tribunais.

5. Os mais conhecidos são o do efeito direto ou aplicabilidade direta e o da primazia, mas, ou-tros também importantes são o dos poderes implícitos, o da retroatividade das interpreta-ções, o dos direitos fundamentais, delegação de competências, solidariedade e cooperação etc. Pode-se citar, igualmente, a teoria do ato claro, que se aplica quando a norma for sufi-cientemente clara, não padece dúvida, não necessita ser interpretada. Cf. CAMPOS, op. cit, pp. 171, 184.

6. BOULOUIS, pp. 127, 134, 150.

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porque os juízes comunitários são os únicos que podem realizar interpretação autêntica e uniforme para todos os Estados. Esta interpretação objetiva "se incorpora à norma in-terpretada, que deverá, desde então, ser lida, compreendida e aplicada no sentido que lhe deu o intérprete", o que faz desta 'função normativa' uma verdadeira 'legislação jurisprudencial'. 7 Doutra parte, os métodos finalistas ou teleológicos uti-lizados (ratio legis, efeito útil, efeito necessário), asseguram uma inte-gração jurídica progressiva, salvaguardando o chamado acervo comuni-tário (Sentenças Fedechar, 29.ll.56; e Comissão-Conselho, 31.3.71). 8 Trata-se de um processo evidente de criação judicial, pelo que se admite a expressão “legislação jurisprudencial”, justificada em face de carências normativas ou insuficiência de controles jurídicos, sem, no entanto, constituir um “governo de juízes”. 2. O ordenamento comunitário: estrutura aberta e em evolução a. O que é ordenamento jurídico A doutrina apresenta o ordenamento jurídico como: a) conjunto de normas (catálogos), somadas, justapostas ou agrupadas, o direito pertencente a um certo Estado (v.g., ordenamento civil, penal, administrativo, trabalhista, etc); ou b) como estrutura que diz quando algo é uma norma (assim, direito objetivo é o que se mostra em um ordena-mento ou sistema jurídico); ou, ainda, c) como instituição, em que os pre-ceitos são jurídicos enquanto institucionais; pode-se, admitir, assim, uma pluralidade de ordenamentos . 9

Vallet de Goytisolo, em sua Metodología de las Leyes, citando Federico de Castro, explica que o ordenamento jurídico tem sido observado sob três perspectivas: como conjunto total de normas (ordenamento brasileiro); como sistema jurídico (ou “construção teórica instrumental”) e como ordem jurídica (ou “realidade da regulamentação organizadora”, “em sua multipli-cidade de relações jurídicas e na hierarquia de poderes e deveres regula-dores da vida social”). 10

7. Idem, p. 151. 8. Ibid, p. 152. 9. Em capítulo em que discorre magistralmente sobre a tensão entre a unidade e a plurali-

dade no Direito, o saudoso jurista HERNANDEZ-GIL afirma que vários ordenamentos po-dem coexistir, em conseqüencia desta contraposição entre o direito formulado e o efetiva-mente vivido. Conceptos Jurídicos Fundamentales, pp. 455ss.

10. P. 253.

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Pode-se chamar "ordenamento jurídico ao grupo ou conjunto de normas caracterizado, frente a outros grupos de normas, por seus específicos, peculiares e distintos modos de entendimento, interpre-tação e aplicação". 11 É possivel, assim, afirmar que o sistema jurídico co-munitário apresenta características de um ordenamento, ou seja, de um "conjunto organizado e estruturado de normas jurídicas que possui suas próprias fontes, dotados de órgãos e procedimentos aptos a emití-las e interpretá-las, ao mesmo tempo que confirmá-las e, se for o caso, san-cionar as violações". 12 b) Ordenamentos fechados e abertos Os conceitos de ordenamento jurídico, geralmente positivistas (Kelsen, Hart, Bobbio, Hauriou), são considerados como sis-temas fechados, porque lhes falta a visão para cima, a dimensão axioló-gica do direito, como também lhes falta, muita vez, a visão para baixo, por não considerarem a sociedade subjacente, seus problemas e transforma-ções . 13 Mas, na Grécia e em Roma, a ordinatio, deduzida da rerum natura, constituia um conceito aberto de ordenamento jurídico, integrado pela ordem natural (kosmos), pelo direito tradicional (nomos), e pela or-dem construida pelo homem (taxis). 14 Em Roma, também podemos dis-tinguir o lícito religioso (fas), o lícito civil (ius) e os bons costumes (boni mores). 15

Na concepção medieval cristão a ordem jurídica se consi-derava aberta à lei divina e ao próprio direito natural, ajustados à realida-de das diversas comunidades (ius commune). 16 Portanto, a característica dos ordenamentos abertos é sua adaptação evolutiva segundo as realidades sociais em cada momento histórico das nações. Por isso que as leis naturais continuam aflorando nos ordenamentos, através dos princípios gerais, da história, dos costu-mes, da idéia de justiça, dos valores e da natureza das coisas. 11. FIGA FAURA, (1982), p. 39. 12. ISAAC, p. 111. 13. HERNANDEZ-GIL, op.cit., p. 465. 14. VALLET DE GOYTISOLO, op. cit., p. 278. 15. Idem, p. 279. 16. Ibidem, p. 282.

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Segundo o realismo jurídico de Karl Llewellyn, “um bom juiz deve julgar

um processo de tal maneira que resolva o litígio de um modo satisfatório, não só para as partes, senão também para a sociedade. Fazer justiça é uma tarefa que implica, por uma parte, mirar ao passado, aos precedentes, às tradições; e por outra parte, considerar a realidade das situações pre-sentes, assim como das que possam engendrar-se no futuro e proceder de acordo com elas”. 17

A observação é válida não apenas para um sistema de jul-gamentos como o do Tribunal comunitário europeu, mas para todo sis-tema jurisdicional moderno e democratizante, como o nosso. O parale-lismo que estamos tentando demonstrar é no sentido de que nenhum ordenamento jurídico, quando emanado do poder jurídico da sociedade, e não imposto pelo Estado, tem aptidão de evoluir através de outras fontes jurídicas, como a doutrina e a jurisprudência. c) Caráter aberto do ordenamento comunitário A União Européia é uma confederação de Estados fundada no princípio de obediência de normas por eles mesmos estabelecidas, atra-vés dos Tratados. Sua autoridade procede, portanto, da necessidade e conveniência de respeitar as regras comuns, interpretadas segundo os in-teresses comunitários; sem isso "a ordem jurídica da Comunidade perde-ria seu caráter comunitário" (Sentença Costa-ENEL, 18.7.64); "o funda-mento jurídico da comunidade se veria afetado" e "a noção de comunida-de resultaria comprometida" (Sentença Van Gend en Loos, 5.2.63). 18 Mais que uma organização internacional, a União encarna uma nova ordem jurídica constituida pelos Estados membros e por seus Cidadãos, sob o amplo poder das instituições criadas pelos Tratados. Es-ta ordem jurídica também se dispõe a coordenar os direitos nacionais e o comunitário; e por esta forma se interpenetram e se nutrem reciproca-mente.

Neste sentido pode-se qualificar o ordenamento comunitário europeu

como uma instituição jurídica e política complexa, mas aberta, seja quanto à formação progressiva de um novo Direito transnacional, seja quanto à recepção de instituições jurídicas dos diversos ordenamentos nacionais, com a conseqüente retransmissão dos mesmos aos demais países, como num sistema de vasos comunicantes.

17. VALLET, ibid., p. 286; RECASÉNS, Experiencia jurídica..., cap. VI, n. 33, p. 278. 18. CAMPOS, op. cit., pp. 290 e 229; GAUTRON, pp. 175 e 171; BOULOUIS, op. cit, p. 187.

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As antigas Comunidades Européias foram criadas como um projeto globalizante ou instituição, porém não fechada, pois os Estados concordaram em aceitar regras supra-nacionais para viverem em comu-nidade, mas levaram para o acervo comunitário suas próprias instituições, enquanto recebem influxos da ordem comunitária, que se incorporam aos próprios ordenamentos. Assim, a eficácia do Direito comunitário é garantida pelo controle do Tribunal de Justiça sobre a atuação das instituições e o res-peito ao pactuado pelos Estados, função que ultrapassa a simples solu-ção judicial de conflitos. Para formular esta nova ordem jurídica foram concedidos ao Tribunal faculdades muito amplas e um papel transcendental, como o de conhecer todos os assuntos que lhe forem submetidos e preencher as lacunas deixadas pelos Tratados, de forma a superar qualquer vazio na progressiva integração comunitária. Sendo a União Européia uma idéia política, as decisões do órgão jurisdicional também são orientadas no sentido de reforçarem con-tinuamente e de forma coerente as relações jurídicas, de modo a garantir o processo de integração das comunidades. A jurisdição do Tribunal, com poderes exclusivos, obrigató-rios e soberanos, invocável tanto pelos órgãos comunitários, pelos Esta-dos membros ou pelos próprios cidadãos, confere à União o caráter de organização internacional diferenciada, superior às organizações formais e aos estados constitucionais. 3. A determinação de princípios gerais como metodologia do Tribunal De fato, os contornos atuais do Direito comunitário resultam de uma contribuição decisiva do Tribunal Europeu. Sua missão básica é "garantir o respeito ao direito na interpretação e aplicação dos Tratados (Trat. CECA, art. 31; Trat. CEE, art.164; Trat. CEEA, art. 136); e, em con-junto com as demais instituições comunitárias, "a realização das funções atribuidas à Comunidade" (Trat. CEE, art. 4; Trat. CEEA, art. 3), disposi-ções essas que nenhum outro Tribunal possui, porque ultrapassa as fun-ções de interpretação e controle judicial do Direito. Para cumprir essas atribuições o Tribunal de Luxemburgo utiliza sobretudo o método teleológico ou finalista, dirigido a uma concep-ção integradora das comunidades, pondo ênfase em construções que as-sinalam o efeito direto das decisões comunitárias sobre os direitos dos

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Estados membros e a primazia ou superioridade em relação a estes; de outro lado, internamente, adotando soluções que outras instituições co-munitárias não fizeram (o chamado ativismo judicial, ou Jurisprudência pretoriana). a) "Criar" ou “determinar" princípios de Direito como inventio iuris Os Tratados constitutivos foram redigidos de forma geral, com noções vagas e princípios muito amplos quanto a seus diversos con-teúdos. Esta técnica legislativa constituiu-se num "convite do legislador comunitário para um desenvolvimento do direito pelo juiz", 19 ao qual o Tribunal respondeu através do seu trabalho de interpretação progressiva.

Os juízes comunitários recorrem, às vezes, a métodos de interpre-tação do Direito internacional, outros do Direito interno, porém procuram seus próprios métodos específicos, trabalhando sempre em função dos objetivos de integração dos Tratados constitutivos.

A princípio utilizavam o método da interpretação literal (Sen-tença Federação Carbonífera da Bélgica, 29.11.56), mas desde a Sen-tença Van Gend en Loos, de 5.2.63, o Tribunal retificou sua orientação para recorrer ao "espírito, à economia e aos termos do Tratado". 20 Evoluindo em suas técnicas de decisão, na mesma Sen-tença Van Gend en Loos o Tribunal afirmava a regra da interpretação contextual ao adotar em seus consideranda as grandes opções do Trata-do, o preâmbulo e diversos de seus artigos, como sistema geral a que se deve recorrer para extrair todo o significado e alcance de um dispositivo. Porém, como dissemos, as interpretações que preponde-ram nas decisões do Tribunal Comunitário são a sistemática e a teleoló-gica ou finalista, considerando o objeto e o fim dos Tratados, cuja reda-ção e estrutura incentivam a procura dos objetivos por eles pretendidos. Têm razão os autores ao afirmarem que "o 'princípio' ou 'pensamento' informativo de uma instituição só revela seu caráter univer-sal se submetida a uma consideração teleológica". 21 Nesse sentido, os tratados constitutivos, por seu objeto, seus objetivos e seu sistema constitucional, são Tratados essencialmente evolutivos, que tendem à modificação das relações econômicas e sociais 19. REUTER, p. 57. 20. CAMPOS, op. cit, p. 229. 21. ESSER, p. 438.

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por uma integração progressiva dos Estados membros; por isso, reque-rem uma interpretação evolutiva e dinâmica na perspectiva da realização dos objetivos da Comunidade . 22

Por este método a jurisprudência se desenvolve progressiva-mente, esclarecendo os pontos duvidosos e acrescendo, com suas deci-sões, o acervo jurídico comunitário ou acquis communautaire.

A evidência desta interpretação evolutiva foi observada na discussão sobre direitos fundamentais. A princípio foram rechaçados pe-lo Tribunal, considerando-se o caráter econômico do Tratado CEE (Sen-tença Storck & Cia., 4.2.59); porém, frente a invocações diretas de direi-tos constitucionais internos (especialmente pela Alemanha e Itália), pas-sou a interpretar teleologicamente certas expressões dos Tratados (tais como a "constante melhora das condições de vida e de trabalho de seus povos", do Preâmbulo do Tratado de Roma 23), para, assim, construir, sentença após sentença, um sistema eficaz e satisfatório de garantia dos direitos do homem, muito embora estes não estivessem previstos nos Tratados. b) Do princípio ideal ao concreto, como fórmula de determinação dos direitos comunitários Os Tratados comunitários estabeleceram objetivos (ideais) a alcançar, criaram uma estrutura institucional e fixaram princípios para o processo de integração; esses Tratados, contudo, contêm noções e ex-pressões amplas e ambígüas, que apresentam graus de imprecisão e certa indeterminação jurídica, as quais exigem interpretação teleológica para lhes dar a certeza do direito. Além da interpretação do Direito comunitário, ao Tribunal de Justiça foram atribuidas competências cumulativas com os Tribunais na-cionais, sem subordinação hierárquia, mas em amplo espírito de coope-ração. Assim é que "todo juiz nacional é também juiz comunitário" 24; ou que os Tratados estabeleceram uma "fórmula de colaboração permanente entre as jurisdições nacionais e o Tribunal de Justiça". 25 22. ACOSTA ESTÉVEZ, p. 139. 23. Não se confundem o Conselho de Europa com o Conselho da Comunidade Européi-

a; o primeiro foi instituido anteriormente, pelo Tratado de Roma (1950), que criou órgãos de proteção dos Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo, entre os quais o Tribunal de Justiça dos Direitos Humanos; é a chamada Europa dos 25, enquanto a Comunidade Européia, hoje União Européia, constitui a “Europa dos 15”, cujos paises estão represen-tados também naquele.

24. LECOURT, p. 9.

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Este espírito de cooperação judicial pode ser erigido em princípio: o de "contribuir direta e reciprocamente à elaboração de uma decisão, a fim de assegurar a aplicação uniforme do direito comunitário no conjunto dos Estados membros" (Sentença Firma Schwarze, 10.12.65). 26 A determinação de princípios gerais, fruto do labor interpre-tativo do Tribunal, consiste em um ato de conhecimento de todas as solu-ções juridicamente possíveis e um ato de vontade de optar por uma de-las; isto significa dar conteúdo jurídico ao que é político e dar forma ao desenvolvimento político segundo os limites jurídicos comunitários.

Tal interpretação estabelece pontes entre o Direito e os fatos, entre as normas e sua melhor adequação às novas realidades e exigências sociais; confere dinamismo ao ordenamento jurídico, pois ao adaptá-lo às mudan-ças promove sua evolução.

Os ordenamentos fechados se caracterizam por ditar regras mais precisas de interpretação, de tal sorte que esta se reduz em impor-tância; quando, porém, inexiste regulamentação e as situações jurídicas se multiplicam sem prévia legislação, o intérprete assume importância maior, característica dos ordenamentos abertos. Ademais, os ordenamentos jurídicos nacionais são marca-dos constitucionalmente por campos bem definidos de atuação legislati-va, administrativa e judicial e a interpretação é delimitada por regras legis-lativas; nos ordenamentos internacionais, entretanto, a interpretação dis-cricionária assume maior significado, dada a generalidade de suas nor-mas, competência concorrente dos Estados, conflitos entre Direito escrito e não escrito etc. Procurando definir o tipo de interpretação do Tribunal Co-munitário, verifica-se que esta "tem um papel que se situa entre o que desempenha no ordenamento jurídico internacional e nos ordenamentos jurídicos internos". 27 O Tribunal centraliza a interpretação dos textos comunitá-rios, mas em cooperação recíproca com os Tribunais dos Estados, a fim de alcançar a perfeita integração da Comunidade (como estabelecem os 25. MERTENS (1982). 26. CAMPOS, II, p. 392. 27. ACOSTA ESTÉVEZ, p. 134.

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arts. 177 do Tratado CEE e 150 do Tratado CEEA, que tratam da coope-ração nacional e comunitária). Assim, v.g., a apreciação do recurso prejudicial, provocada por juízes nacionais, é de competência exclusiva do Tribunal Comunitário, para poder manter a uniformidade de interpretação dos textos institucio-nais (autoridade da "coisa interpretada"). Afirma-se que a Corte de Justiça tem uma missão geral (arts 31 CECA, 164 CEE, 136 CEEA) de manter o respeito ao Direito co-munitário e a aplicação dos Tratados; e uma missão específica, pela in-terpretação prejudicial, que é a de precisar o sentido e determinar o con-teúdo e/ou alcance das regras comunitárias. Neste trabalho de concretizar os objetivos dos Tratados e de precisar os princípios jurídicos, está, segundo entendemos, a progres-siva construção do projeto da integração européia, desde o "olhar para cima", em busca de um princípio ideal de unidade dos Estados, até o "o-lhar para baixo", a fim de concretizar realisticamente essa união. c) O método de dedução evolutiva e aquisição progressiva dos O método seguido pelo Tribunal comunitário para a desco-berta de princípios é, pois, o da dedução evolutiva: cada sentença lança uma base (ou degrau), como fundamento das seguintes; cada decisão contem uma nova aportação jurídica, a partir dos Tratados ou dos Direitos internos dos Estados; essas construções não se anulam por decisões posteriores, pois cada sentença acrescenta algo mais à anterior. É, pois, uma aquisição progressiva de "achados jurídicos", uma evolução funcio-nal, poderíamos concluir. É aqui, "na formação do direito funcional, onde mais saltam à vista as coincidências dos princípios funcionais, pois o esprit de la loi não os deixa modificar". 28 O melhor exemplo é a discussão sobre os direitos fundamentais ao longo da evolução jurisprudencial do Tribunal de Lu-xemburgo, como veremos mais adiante. 4. Pode-se identificar um princípio fundamental na ordem jurídica comunitária?

28. ESSER, p. 447.

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a) Os princípios gerais adotados pelo Tribunal de Justiça Há que distinguir duas classes de princípios gerais: a) os que derivam da natureza dos Tratados constitutivos, fundamentais para o desenvolvimento do Direito comunitário (igualdade, liberdade, solidarie-dade, unidade etc); e b) os que se referem à legalidade do direito comu-nitário. Os primeiros constituem princípios internos, objeto próprio dos Tratados, tendo em vista seus objetivos materiais. Os últimos são princípios externos, fora dos Tratados; são objeto formal do ordenamento e consistem na própria Justiça da ordem jurídica comunitária. Neste estudo queremos nos referir mais a este grupo de princípios, aqueles que transcendem o ordenamento e que permitem à ordem jurídica comunitária se desenvolver harmonicamente, porque não constituem seus objetivos materiais . 29 Os primeiros princípios determinados pelo Tribunal Europeu foram o do efeito direto e o da primazia do Direito comunitário, cujas pre-missas se encontram na Sentença Costa-ENEL, quando declara que

"a Comunidade constitui uma nova ordem jurídica de direito internacional em benefício da qual os Estados limitaram, ainda que em termos restritos, seus direitos soberanos e no qual os sujeitos não são a-penas os Estados membros, senão também seus cidadãos" (15.7.64) (ne-gritos nossos). 30

Por efeito direto se deve entender o caráter objetivo da norma comunitária que confere aos cidadãos comunitários o direito subje-tivo de exigir, perante seu juiz nacional, a aplicação dos Tratados, regu-lamentos, diretivas ou decisões comunitárias, competindo a este o dever de aplicar referidos textos, independentemente da legislação de seu país. O efeito direto vincula os juízes nacionais, que não poderão aplicar leis internas que lhes sejam opostas, nem suspender uma decisão na expectativa de sua derrogação ou declaração de inconstitucionalidade por órgãos nacionais (Sentença Simmenthall 9.3.68). 29. LOUIS, p. 87; BOULOUIS, pp. 152, 155. 30. Diante desta famosa decisão, João Mota Campos comenta: “ Este acórdão é justamente

célebre: está nele contida toda uma, teoria geral das relações entre o direito comunitário e o direito interno; e a justificação da superioridade da ordem jurídica comunitária sobre as ordens jurídicas nacíonais é aí deduzida em termos que, embora esclarecidos e de-senvolvidos em acordãos ulteriores, jamais foram modíficados”. Op. cit., p. 290.

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O acórdão Simmenthall viria a resumir ou “codificar” o con-junto da sua jurisprudência sobre a matéria, ao decidir que

“Aplicabilidade directa significa... que as regras do direito comunitário devem manifestar a plenitude dos seus efeitos de uma maneira uniforme em todos os Estados membros, a partir de sua entrada em vigor e durante todo o período de vigência”.

“Esse efeito directo atinge igualmente qualquer juiz que no quadro da

sua competência tem por missão, enquanto órgão de um Estado membro, salvaguardar os direitos conferidos aos particulares pelo direito comunitá-rio... (sem que) tenha de solicitar ou aguardar a eliminação efectiva, pelos órgãos nacionais a tal habiliitados, de eventuais medidas nacionais que se oponham à aplicação directa e imediata das regras comunitárias.” 31

Este princípio muito contribuiu para a construção da "cida-dania européia" com um novo aspecto: a faculdade de todo cidadão invo-car diretamente o direito comunitário perante seus próprios Tribunais; em outras palavras, acolher um direito supra-nacional dentro de sua própria ordem jurídica; por este meio o direito comunitário penetra e informa os ordenamentos nacionais, sem necessidade de pronunciamento dos Esta-dos, com o que estabelece perfeita relação entre Direito comunitário e Di-reitos nacionais (Sentença Molkerei-Zentrale, 3.4.68). 32 Pelo princípio da primazia, consequência do efeito direto, o juiz tem a obrigação de aplicar integralmente o Direito comunitário e as-segurar o pleno efeito de suas normas, deixando inaplicada qualquer disposição contrária à legislação nacional, pois isso "diminuiria a eficá-cia do Direito comunitário". Para tanto o Tribunal foi taxativo ao afirmar que os Estados membros não tinham competência, mesmo tratando-se de direito consti-tucional, "de fazer prevalecer contra uma ordem jurídica aceita por eles na base da reciprocidade, uma medida unilateral ulterior, que não poderi-a, desta maneira, lhes ser oponível" (Sentença Costa-ENEL, cit.). O minimum de primazia das normas comunitárias seria a inaplicabilidade das normas internas contrárias, mesmo sem prévia decla-ração de inconstitucionalidade; e o maximum seria a declaração de nuli-dade das referidas normas internas pelo juiz nacional. 33 31. Idem, pp. 214-215. 32. Idem, p. 220. 33. BUENO ARÚS, p. 17.

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Esta jurisprudência revolucionária do Tribunal consolidou a ordem jurídica comunitária, ao conter as jurisdições nacionais em seus limites internos, quando estas ainda apreciavam regras externas e impe-diam a aplicação de tratados internacionais. Referência especial a esta criação evolutiva da jurisprudên-cia comunitária encontramos, repita-se, na apreciação dos direitos fun-damentais que o Tribunal entende formar parte integrante dos princípios gerais de direito, inspirando-se nas tradições constitucionais dos Estados membros, direitos que devem ser protegidos no âmbito da estrutura e dos objetivos da antiga Comunidade (Sentença Stauder, de 12.11.69; Senten-ças Internationale Handelsgesselschaf e Köster, 17.12.70; Sentenças Nold e Hauer, 14.5.74 e 13.12.79). Tais princípios gerais de Direito o Tribunal das Comunida-des Européias deduz dos direitos nacionais dos Estados-membros, des-tacando-se como os mais citados: princípio da igualdade de tratamento; princípio da confiança legítima e da segurança jurídica; e em decorrência deste, o princípio da não retroatividade dos atos comunitários; princípio do respeito aos direitos adquiridos e da imutabilidade das situações juri-dicas subjetivas; princípio da proporcionalidade; princípio do enriqueci-mento sem causa; princípio dito stoppel (a declaração de vontade escrita produz todos os seus efeitos legais desde que se tenha entrado regular-mente na esfera do destinatário); princípio da hierarquia das regras jurídi-cas; princípio da continuidade das estruturas juridicas etc. 34 Exatamente neste campo se identifica a permeabilidade en-tre os dois níveis de ordens jurídicas: a recepcão pelo ordenamento co-munitário dos princípios sobre garantias fundamentais existentes nos or-denamentos nacionais. Entende-se, então, porque os juízes comunitários, para preencher lacunas evidentes dos Tratados acerca dos direitos fundamen-tais, não hesitaram em "descer" até os ordenamentos dos Estados (nem por isso "inferiores", porém solidários entre si), para dali retirarem normas necessárias à proteção comunitária de tais direitos, que existem decanta-dos nos ordenamentos internos e que não haviam sido previstos pelos Tratados.

Os ordenamentos dos Estados membros são, assim, junto ao Direito internacional, os mananciais jurídicos onde os juízes comunitários vão descobrir os princípios e orientações para suas sentenças e, com isso, consolidar progressivamente uma Jurisprudência comunitária.

34. CAMPOS, op. cit, pp. 144ss.

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Outra consequência que se pode extrair deste processo é a integração universal dos ordenamentos estatais, através de regras exis-tentes em alguns, porém não em todos, os quais, por força do efeito dire-to e da primazia, passam a ser invocados por qualquer membro da Co-munidade, perante seus próprios tribunais.

É um novo efeito, a que poderíamos denominar indireto, reflexo ou pa-rabólico, pois funciona à maneira de um satélite de comunicações, que capta uma emissão e a retransmite aos que estão em sintonia. O ordena-mento comunitário funcionaria como este "guarda-chuva eletrônico", que recebe das realidades nacionais contribuições jurídicas diferenciadas, ado-ta-as como próprias, as transforma através de suas decisões e as re-transmite às nações e cidadãos, pelo princípio do efeito direto.

“Es, por tanto, la galaxia jurídica ... Toda galaxia incluye estrellas que

son soles, cometas, planetas con su diferente composición y climas, y con sus satélites... Lo universal es inabarcable, está abierto y en movimiento (pienso, siguiendo la imagen que acabo de recordar, en la fuga de las ga-laxias); nos trasciende. Lo total abarca todo lo que, por lo menos mental-mente, nos resulta inmanente y está cerrado, aislándose de lo inabarcado ... Sólo le permitimos una apertura hacia adelante, para que se vaya asimilando lo que sucesivamente conquistemos...”. 35

É digno de atenção, pois, o apreciável trabalho daquele Tri-bunal, se compreendermos que "a missão de um juiz é necessariamente criativa"; frente a novos fenômenos e realidades "as incorpora à norma jurídica comunitária. Assim, torna possível a contínua evolução do orde-namento jurídico comunitário". 36 b) Há, dentre os princípios, um que lhes seja superior? É o acervo comunitário um princípio de política jurídica que consolida e dá eficácia aos demais princípios ou é uma conduta geral que entrelaça todas as regras, administrativas e judiciais?

Parece-nos, por hipótese, que seria como a regra que aproveita todas

as peças de uma construção; um edifício no qual não há pedras rejeitadas; é a galáxia jurídica comunitária, em que todos os astros descobertos são atraidos e passam a gravitar no cosmo comunitário, sem rejeição.

Os princípios gerais seriam as leis da gravitação ou da atração dos

corpos celestes, das radiações solares e lunares etc, como disse Vallet; porém, o instituto do acervo jurídico comunitário, admitido como princípio, pode ser a pedra angular do edifício, a qual sustenta todas as demais, que

35. VALLET DE GOYTISOLO. Metodología (1991), p. 252. 36. ACOSTA ESTÉVEZ, p. 144.

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vão sendo administrativa ou judicialmente, colocadas em suas posições, para comporem o edifício comunitário.

Neste estudo pretende-se demonstrar que as característi-cas do ordenamento comunitário constituem um dos elementos mais im-portantes do acquis . 37 O ordenamento comunitário constitui uma unidade funcional pois todas as atividades de suas instituições estão orientadas, de manei-ra progressiva e dinâmica, para a realização dos fins dos Tratados consti-tutivos.

O núcleo básico dessa unidade é o Tratado CEE, em torno do qual o Tribunal de Luxemburgo vem determinando princípios gerais que caracterizam o Direito Comunitário como um verdadeiro sistema.

A idéia do acervo comunitário manifesta esta caráter unitá-rio e aberto do ordenamento europeu, mas não se contem nele, pois vai além de seus limites, ao abranger "o conjunto de realizações alcançadas até o momento na construção da Comunidade “. 38 Este acquis communautaire garante a integração à Comu-nidade (atual União Européia) de um novo Estado membro, desde que aceite, sem reservas, e dentro de certo prazo, todas as regras de direito adotadas com anterioridade à adesão e que estejam vigorando para to-dos naquele momento. 5. Adesão ao acquis: afirmação e aperfeiçoamento do sistema jurídico a) O acervo comunitário como "direito adquirido" Ora, o acquis, traduzido como acervo comunitário,

"é o conjunto de normas e critérios que constituem o patrimônio espiritual da Comunidade. Compreende todo o ordenamento comunitário, todo o conjunto de normas e de princípios gerais, de princípios interpretativos e também os compromissos políticos, a simples declaração, a tomada de posição das instituições comunitárias, os programas aceitos, as orienta-ções gerais, ou seja, tudo aquilo que já se dá como aceito, recebido e que constitui as idéias e os critérios fixos que regem a atuação das instituições comunitárias". 39

37. LOUIS, p. 9. Princípio de manutenção do acervo comunitário: Projeto do Tratado da União

Européia, Parlamento Europeu, 14.2.84. 38. MANGAS MARTIN, pp. 52-53. 39. BUENO ARÚS, p. 22.

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O acquis tem, pois, sentido dinâmico e progressivo: todos estes princípios e critérios estão já aceitos, se consideram consolidados por parte de todos os Estados que integram a Comunidade e a partir daí se caminha progressivamente até o incremento do acquis comunitário, sempre do ponto de vista da realização constante dos fins dos Tratados. 40 b) O acquis justifica os precedentes vinculantes A exigência quanto ao acervo atende a um princípio de efi-cácia como uma espécie de princípio de preclusão de normas e regras: o direito adquirido não pode ser rejeitado ou desconsiderado pelos Estados membros, porque o princípio de eficácia não está na forma jurídica, po-rém no fim perseguido pelo ordenamento. 41 Atende a exigências de estabilidade jurídica, harmonizadas com as de progresso das instituições européias 42; o acquis atende a princípios 'supremos' de valor e de estrutura de 'todo direito', pois as nor-mas e decisões incorporadas ao patrimônio jurídico comunitário 'valem', têm valor jurídico para a construção estrutural da comunidade . 43 A obrigação aos Estados de aceitarem o acervo comunitário foi constante determinação das instituições: a Comissão se manifesta nos ditames finais que se emitem para cada Estado aderente; e o Parlamento "insiste em que os tratados de adesão contenham um compromisso ine-quívoco do conjunto de Estados signatários de respeitar e desenvolver, em sua totalidade, o acervo comunitário" (Resoluções de 18.1.79 e 17.11.82). Assim se manifestou a Comissão das Comunidades no pe-dido de adesão de Portugal e Espanha:

“ A ordem jurídica estabelecida pelos Tratados que instituem as Co-munidades se caracteriza essencíalmente pela aplicabilidade directa de certas das suas disposições e de certos actos adoptados pelas Instituições das Comunidades, pelo primado do direito comunitário sobre as disposi-ções nacionais que lhe sejam contrárias e pela existência de procedimen-tos que permitem assegurar a interpretação uniforme do direito comunitá-rio...”

40. Idem, ibid. 41. ESSER, p. 447. 42. Idem, p. 417 43. Ibid., p. 416.

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“ A adesão as Comunidades implica o reconhecimento da natureza

coerciva destas regras, cujo respeito é indispensável para garantir a eficá-cia e a unidade do direito comunitário”. (Parecer de 31-5-1985). 44

Sobre isto o Tribunal de Justiça também se pronunciou, a-firmando que "os atos relativos à adesão de novos Estados membros têm por objeto essencial estender a esses Estados o conjunto do Direito co-munitário em vigor no momento da adesão" e que "resulta do sistema do ato de adesão que o Estado aderente aceita o conjunto de atos institucio-nais adotado até o momento e que sua adesão é efetiva" (Sentenças Hauptzollamt Bielefeld C. Köning, de 29.5.74 e Halyvourgik-Comissão, de 16.2.82). 45 c) A importância da criação judicial Voltando ao princípio: o ordenamento comunitário é aberto porque a estrutura jurídica da comunidade européia não está completa; ao contrário, está a caminho de integração e consolidação; e a criação de regras pelo Tribunal é garantia de desenvolvimento e eficácia do orde-namento jurídico. As normas emanadas das instituições comunitárias são os pilares que "constróem" o ordenamento comunitário, mas é o labor juris-prudência que confirma essas aquisições e lhes indica seu lugar e seu nível dentro da construção da casa européia comum, valorizando as "a-quisições", dizendo que são válidas, necessárias e que não podem ser desconsideradas. 6. Conclusões

Poderá o Direito Comunitário Europeu se tornar um ordenamento fechado? De momento parece que não, porque a tendência comunitária é ampliar-se e, portanto, a Corte de Justiça e as instituições estarão sempre enfrentando novos problemas jurídicos, que ainda não podem ser previstos. Deverão crescer conquistando espaços jurídicos novos, o "ecúmeno jurídico" da Comunidade, espaço útil ou necessário à sua con-tínua e harmoniosa integração.

44. CAMPOS, op. cit, v. I, pp. 582-583; ZENATI, op.cit., pp.194-197. 45. MANGAS MARTIN, op.cit., pp. 53-54.

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O Tribunal deverá, ainda mais, estabelecer constantemente o quantum jurídico comunitário: enquanto atenda aos Tratados e aos ci-dadãos comunitários poder-se-á falar em crescimento, criação ou formu-lação judicial do direito. Considerar-se-ão esgotadas as possibilidades do Direito Comunitário quando as experiências jurídicas já não atendam aos objeti-vos dos Tratados e ultrapassem os marcos por eles traçados. Nesse momento, sim, o ordenamento poderia estar fechado a novas construções, com a cristalização de sua jurisprudência, que pode acabar se tornando um novo Corpus Juris, passando do plano atual das normas particulares para o plano geral das leis. Não obstante o caráter evidentemente mutável de suas de-cisões, estas são vinculantes para todos os cidadãos comunitários, seus Estados membros, e o que é mais relevante, para os Tribunais e para os ordenamentos jurídicos nacionais, que passam a incorporar, como suas, as normas judiciais emanadas do Tribunal Europeu. Está se formando, progressivamente, como se vê, uma uni-dade jurídica européia que respeita a multiplicidade dos ordenamentos locais. Mais uma vez se concretiza o ideal pitagórico-platônico do um e do múltiplo, da unidade na diversidade, tormento e delícia dos filósofos. 7. Bibliografia: Alberto Vicente FERNANDEZ. Función creadora del juez. Bs. Aires: Abeledo-Perrot, 1970. Alvaro D'ORS. Principios para una teoria realista del derecho, in: Anuario de Filoso-fia del Derecho. Madrid: t. I, p.313, 1953. Antonio HERNANDEZ-GIL. El ordenamiento jurídico, in: Conceptos jurídicos funda-mentales. Madrid: Espasa-Calpe, 1987. Araceli MANGAS MARTIN. Derecho comunitario europeo y Derecho español, Ma-drid: l986. Carlos F. MOLINA DEL POZO. Manual de Derecho de la Comnidad Europea. Ma-drid: Trivium, 1987. Cesareo GUTIERREZ ESPADA. El sistema institucional de las Comunidades Euro-peas. Madrid: Tecnos, 1988. Francisco BUENO ARÚS. Características del ordenamiento jurídico comunitario. _____. Fuentes del Derecho comunitario europeo. Madrid: Universidad Pontificia Comillas, Publics. internas, 1990. Frédéric ZENATI. La Jurisprudence. Paris: Dalloz, 1991.

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Jurisprudência: Fonte Última da Segurança Jurí-dica

1. Revisão dos temas 2. Da incerteza da Lei à certeza final da Súmula a. Leis e negócios jurídicos como fontes de incerte-zas b. A primeira certeza: a das sentenças singulares c. As de-cisões recursais: certezas clarificantes 3. A uniformização da Jurisprudência a. A coerência nas decisões relevantes b. O e-feito vinculante das decisões c. O iussum e o iustum como cri-térios de vinculação d. A uniformidade simultânea 4. A Juris-prudência como fonte última da segurança jurídica a. Da segu-rança da norma jurídica à segurança da Jurisprudência b. A ambigüidade da norma jurídica c. Das Súmulas de Jurispru-dência 5. Potestas versus Auctoritas a. Poder Político e Poder Jurídico b. Poder Jurídico e Jurisprudência 6. Conclusões.

1. Revisão dos temas Discorremos anteriormente sobre as dimensões da

Segurança jurídica como valor, princípio e direito fundamental, sobretudo diante da Constituição atual (Preâmbulo e arts.1º-4º)1; de fato, inúmeros instrumentos processuais estão hoje constitu-cionalizados; o processo, em suas variadas formas, tornou-se um instrumento privilegiado de garantia dos direitos consagrados pela Constituição Federal, individuais ou coletivos e sociais. (CF. arts. 5º e 6º-11).

Tocante à Segurança jurídica como valor, princípio ou como direito fundamental, na verdade não se pode ver aí a Se-

1. Cap. V. A Segurança Jurídica na Constituição Federal.

Capítulo XII

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Jur ispr udência: f onte úl t ima de Segur ança Jur ídica 192

gurança em si mesma, mas essa tríade é importante para explicar sua origem constitucional.

Em relação aos fundamentos e garantias da Justiça, é aparente a contradição em que ora prevalece a Segurança em prejuízo da Justiça, ora se privilegia a Justiça em detrimento da Segurança, mas antes é salutar esta tensão dialética. 2

Depois, tratou-se da proteção jurídica da própria Se-gurança, através de medidas cautelares, para que não pereçam direitos, ou por meio de medidas constitucionais, remédios cons-titucionais ou writs. 3

A dicotomia Segurança-Justiça voltou a se apresentar quando tratamos do papel do Juiz e dos Tribunais na elabora-ção do Direito judicial (Richterrecht). Para nosso ordenamento, atualmente, eles não criam direito; outros dizem que sim, mas que o direito assim criado não é o mesmo do Legislador. 4

Quanto à Legislação e Jurisdição, vimos que existe uma relação também dialética entre Legislador e Julgador, de forma tal que suas atuações não se anulam, antes se comple-mentam e se integram. 5

Veremos, a seguir, o papel da Jurisdição, procurando mostrar que a Jurisprudência tem por função restaurar a Segu-rança Jurídica perdida, reafirmando, através da coisa julgada, a certeza dos direitos, sobretudo os subjetivos.

Finalmente, tentaremos mostrar que as decisões dos Tribunais e do STF, através do instituto da uniformização da Ju-risprudência, da antiga argüição de relevância e das Súmulas, constituem o máximo grau de Segurança jurídica e que o Su-premo Tribunal Federal acaba desempenhando, implici-tamente, a missão de Tribunal Constitucional, como ocorre em vários pa-íses. 6

2. Cap. VII. Segurança como fundamento e garantia da Justiça. 3. Cap. VIII. Sistema cautelar e medidas cautelares. 4. Cap. IX. Direito judicial, Jurisprudencial, Sumular. 5. Cap. X. Integração Legislação-Jurisdição. 6. CF art. 102: "Compete ao STF, principalmente, a guarda da Constituição...".

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Jur ispr udência: f onte úl t ima de Segur ança Jur ídica 193

2. Da incerteza da Lei à certeza final da Súmula

a. Leis e negócios jurídicos como fontes de incertezas

Assim como as leis são imperfeitas e necessitam do Judiciário para a exata determinação do que é justo, muitos atos administrativos exigem controle e correção judicial; os negócios jurídicos, através de contratos nem sempre perfeitos, também são fontes de incertezas, e obrigam os cidadãos, em boa parte, a recorrer ao Judiciário para o reconhecimento da certeza dos seus direitos.

A “crise da lei” - muiltiplicação veloz e incontrolável da produção de normas legais e administrativas - deve ser supera-da com novos instrumentos jurisdicionais, como as decisões de-finitivas com efeito erga omnes, limitadas a matérias determina-das (de Direito público, como as tributárias, previdenciárias, etc); com isto se poderia obviar, em boa parte, a própria “crise da Justiça”, reduzindo-se a emergência de causas repetitivas, causa de decisões conflitantes e, de consequência, de incerte-zas jurídicas.

b. A primeira certeza: a das sentenças singulares

Numa escala progressiva, a primeira certeza que sur-ge, quando se questiona uma Lei, um ato administrativo ou um negócio jurídico, é a da sentença de primeiro grau, em que o Juiz deve resolver questões de fato e questões de direito;7 a de-cisão que profere pode ser comum ou incomum, relevante ou irrelevante, porque há decisões corriqueiras, rotineiras, que não geram conseqüências jurídicas, não chegam a "normas";8 mas há aquelas que são relevantes pelas questões de direito que ventilam; mesmo quando se debate sobre uma prova, por e-

7. Questão de direito não é apenas o fundamento legal, mas o fundamento jurídi-co que suscita a controvérsia sobre o objeto litigioso dos processos. Compete ao juiz, na verdade, manifestar-se sobre a qualificação jurígena que surge dos fatos narrados, segundo o aforisma iura novit curia.

8. Assim, v.g., nos recursos relativos a procedimentos sumários, de despejo e de indeferimento da petição inicial, há dispensa de revisor (art. 551, § 3º, do CPC, com a nova redação dada pela Lei 8.950, de 13.12.1994), por se tratarem de sentenças de menor relevância jurídica.

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xemplo, discute-se com fulcro na Lei, e, no fundo, o que resta é sempre uma questão de Direito. 9

Então, a sentença restaura, de imediato, a certeza subjetiva dos litigantes; se o vencido se dá por satisfeito e não recorre, as partes terminam o litígio certas de seus direitos, por obra da coisa julgada material.

c. As decisões recursais: certezas clarificantes

Quando há uma questão relevante para o Direito,10 a sentença certamente percorrerá instâncias superiores e, através de decisões colegiadas sucessivas, as certezas vão se clarifi-cando; a cada julgado, a solução jurídica se torna mais precisa, até se transformar em Súmula, nas últimas instâncias; a Súmu-la, ementa de poucas linhas, é uma questão jurídica resumida, é uma semente de Direito; ela começou com a semente da Lei e após dar frutos (as decisões sucessivas), acaba se transfor-mando em outra semente, como idéia de modelo, de síntese; eis porque a Jurisprudência contém todo o ordenamento.

De fato, uma sentença contém, virtualmente, todo o ordenamento jurídico, pois nela foram debatidas todas as ques-tões jurídicas pertinentes, todo o ordenamento foi invocado, es-

9. "Somente o erro de Direito quanto ao valor da prova, in abstracto, dá azo ao conhecimento do recurso especial" (RSTJ, v.15, p.55); "A valorização da prova diz respeito ao valor jurídico desta,... razão porque é questão estritamente de Direito" (RTJ, v.132, p.1337); "O chamado erro na valoração ou valorização das provas, ... somente pode ser erro de Direito, quanto ao valor da prova abstra-tamente considerado" (RSTJ, v.8, p.481).

10. "O critério da relevância, embora banido dos regimentos internos, é critério que não pode ser relegado ao absoluto abandono. O Tribunal "Nacional" existe para julgar as questões relevantes, não as irrelevantes. E é uma questão que se apresenta como muito relevante, no sentido de que a sua decisão interessa não apenas ao caso concreto, às partes, mas à sociedade, à comunidade em geral. Se é caso que vai se repetir milhares ou dezenas de milhares de vezes, então é conveniente até que o Superior Tribunal de Justiça apresente, de logo, o seu posicionamento, que julgue tal lide e dê um sólido ponto de referência pa-ra os tribunais locais. Se houver uma manifesta e evidente relevância, entendo, pois, que o recurso deve ser admitido pela letra ‘a’ ". (Min. Athos Carneiro, no "Encontro de Presidentes de Tribunais", realizado em setembro de 1990 no STJ, p. 79/80, apud DJU 05.08.91, p. 10.020). V., a propósito, p.143, Nota 22.

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teve à disposição do julgador, direta ou indiretamente; desta forma, com maior razão, a Súmula deve conter, em síntese, to-da a potência genética para orientar, tanto outras decisões, co-mo novas leis.

3. A uniformização da Jurisprudência

Em certos níveis dessa progressão recursal surge o instituto da uniformização da Jurisprudência;11 é um dos mais oportunos instrumentos processuais para evitar decisões confli-tantes ou divergências pretorianas acerca da interpretação do Direito.

Como no Direito inglês, as Súmulas são autênticos precedentes, baseados, lá e aqui, no mesmo princípio de Direi-to, vigorante nos ordenamentos de todos países, de que casos idênticos devem ser julgados igualmente.

Obedece ao princípio da isonomia ou igualdade (isos, aequalitas = igual), de ordem constitucional: se todos são iguais perante a Lei, um caso não pode ser julgado de uma maneira e outro de forma diferente, se forem semelhantes.

O que qualifica o instituto da uniformização é poder garantir a aplicação desse princípio, e aqui adentramos o pro-blema crucial da Jurisprudência: o debate sobre as Súmulas poderem ou não ser vinculantes, obrigatórias para Juízes e Tribunais, no todo ou em parte; um ponto nos parece adequado: ela deveria ser necessária para os próprios Tribunais, sobretudo os Superiores, em matéria constitucional ou de ordem pública, de acordo com seus Regimentos Internos. 12

O Legislador fixa a norma em primeira mão, por competência constitucional originária, mas não exclusiva, pois também Administradores e Juízes criam Direito, aqueles pelo poder regulamentar, estes pelo poder jurisdicional.

11. CPC, arts. 476 a 479. 12. RISTF, art. 101; RISTJ, art. 125; LOJF, art. 63 § 2º; LOM, art. 16, par. un.

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Embora o Juiz, ao colmatar lacunas, suplementar normas ou corrigir a dureza da lei genérica, formule Direito não idêntico ao do Legislador, sua inspiração contém a mesma força fecundante da eqüidade, fundado nos valores culturais e sociais de seu povo, naquele tempo vivencial.

As duas regras assim criadas, a antecedente

legislativa e a superveniente judicial, embora experimentem a mesma ratio legis, têm momentos diversos de revelação: a lei é um scriptum e a decisão um profectum.

Se a lei é boa, porque regula uma generalidade de

situações incertas e imprevisíveis, dando segurança às condutas sociais, a decisão judicial é melhor, porque dá certeza e garantia ao ordenamento, provando a validade e eficácia da lei e fazendo recair o comando judicial sobre cada situação fática individuali-zada, sem excessos nem restrições.

Esta coincidência da norma geral legislada e da

norma particular judicial se verifica no plano dos critérios axiológicos consagrados na ordem jurídica positiva e que se apresentam igualmente tanto ao Legislador como ao Intérprete.

Na visão de Recasens Siches, "... la tarea del

legislador, cuando elabora y promulga una ley, no es una labor de conoscimiento, sino que es un acto de voluntad, basado en las valoraciones que adoptó;"... "por esto, el juez... tiene que ver cuál entre las normas del orden juridico positivo... produciria en concreto efectos análogos a los que el legislador se propuso en términos generales..." 13

Supondo-se que o Legislador racional seja único,

finalista, omnisciente, justo, coerente, omnicompreensivo, preciso, transmitindo essas propriedades ao ordenamento jurídico 14, é conseqüência necessária que este não contenha contradições.

13. RECASENS SICHES, Nueva Filosofia de la Interpretación del Derecho, p. 236. 14. Carlos SANTIAGO NINO, Introducción al análisis del derecho, p. 328. Tércio Sampaio FERRAZ JR, Introdução ao estudo do direito, p. 254.

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As regras da ainda vigente L.I.C.C. impedem essa incoerência ao nível da norma legislada:

Art. 20. Não se destinando à vigência temporária,a lei terá vigor até que outra a modifique ou a revogue. §1º. A lei posterior revoga a anterior, quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteira-mente à matéria de que tratava a lei anterior. Mas como resolver as contradições entre

interpretações diversas da mesma lei? Incidirá, no caso, o processo de uniformização da jurisprudência, instituido pelo vigente Código de Processo Civil (artigos 476 a 479) 15.

Se, portanto, no plano da generalidade das normas há unidade, no plano da particularidade pode haver conflitâncias que devem ser uniformizadas pelo processo de decisões judiciais sucessivas ou superpostas, de tal modo que a decisão seguinte depure a anterior de qualquer divergência.

A intenção do ordenamento é que não ocorram

conflitos entre os termos gerais das leis, nem entre as decisões particulares, de sorte que haja congruência entre umas e outras. Por isso são os Tribunais chamados a se pronunciarem

15. Art. 476. Compete a qualquer juiz, ao dar o voto na turma, câmara, ou grupo de câmaras, solicitar o pronunciamento prévio do tribunal acerca da interpretação do direito quando: I - verificar que, a seu respeito, ocorre divergência; II - no julgamento recorrido a interpretação for diversa da que lhe haja dado outra turma, câmara, grupo de câmaras ou câmaras cíveis reunidas. Parágrafo único. A parte poderá, ao arrazoar o recurso ou em petição avulsa, requerer, fundamentadamente, que o julgamente obedeça ao dispoto neste artigo. Art. 477. Reconhecida a divergência, será lavrado o acórdão, indo os autos ao presidente do tribunal para designar a sessão de julgamento. A secretaria distribuirá a todos os juízes cópia do acórdão. Art. 478. O tribunal, reconhecendo a divergência, dará a interpretação a ser observada, cabendo a cada juiz emitir o seu voto em exposiçåo fundamentada. Parágrafo único. Em qualquer caso, será ouvido o chefe do Ministério Público que funciona perante o tribunal. Art. 479. O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência. Parágrafo único. Os regimentos internos disporão sobre a publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência predominante.

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instantemente, até que se fixe a predominância uniformizada do entendimento mais justo.

Ora, essa busca da uniformidade entre as normas

parti-culares divergentes assume extraordinária importância diante da regra do art. 479: "O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência", na qual encontramos duas regras inovadoras: será objeto de súmula e constituirá precedente.

Pela segunda entende-se que, julgada a

uniformização, as decisões antecedentes perdem seu valor, ficando superadas. Em conse-quência, decisões contrárias não mais terão validade na fundamentação de novas sentenças, ou seja, a uniformização influirá diretamente no mérito dos futuros julga-mentos.

Quanto à sumulação, dispõe o parágrafo único do

artigo 479 que os regimentos internos disporão sobre a publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência predominante; tal publici-dade faz presumir seu conhecimento por todos os operadores do Direito e interessados, inclusive para os juízes. Editada a súmula, há obrigato-riedade de adoção das divergências (art. 476), pelas partes ou julga-dores. Ou seja, a validade de decisão contrária passa a depender da observância do art. 476, com julgamento per saltum, como no incidente de inconstitucionali-dade 16.

Como ressaltado pelo prof. Botelho de Mesquita, o instituto da uniformização de jurisprudência valoriza a divergência, situando-se nos contornos da renovação do direito, campo a nosso ver próprio da função corretiva da eqüidade, pois não deixa "esvair-se pelas dobras do processo toda a força inovadora contida no trabalho dos juízes, que é reflexo da grande obra dos advogados: o aperfeiçoamento das instituições jurídicas para melhor realização da justiça no caso concreto" 17.

16. José Inácio BOTELHO DE MESQUITA. Da uniformização da jurisprudência. Rev. Tribs., v. 613:19, n. 6. 17. Idem, p. 20, n. 8.

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a. A Coerência nas Decisões Relevantes

No processo de uniformização da jurisprudência, pelo

menos duas decisões são discrepantes, mas uma deve ser aco-lhida, pela relevância jurídica de suas rationes decidendi.

O critério determinante da uniformização deve estar

fundado em razões de Direito, demonstrada a insuficiência da-quelas que embasaram as decisões, pois ambas estavam corre-tas e serviram, em seus momentos, para o acertamento das controvérsias.

A uniformização se impõe porque as divergências não

incidem sobre pontos acidentais, mas atingem questões essen-ciais do Direito; assim sendo, somente alçando a visão acima do Direito objetivo se encontrará um princípio que ilumine am-bas soluções e esclareça qual é, juridicamente, a mais relevan-te.

Esta será adotada como a decisão uniformizadora,

por apresentar um plus em relação à outra; uma delas, portanto, se aproxima "algo mais" do Direito justo, sobressaindo-se por sua ratio decidendi, superior à decisão confrontada. 18

Um acórdão é uniformizado por outro, uniformizador,

quando este lhe é juridicamente superior, pois o processo de uniformização impele o intérprete a elevar-se aos princípios ge-rais do Direito.

Pode-se, então, com propriedade, falar em acórdão

fraco ou uniformizado e acórdão forte ou uniformizante, da mesma forma como, no debate judicial, há voto vencido e voto

18. No Direito inglês, “o conceito de ratio decidendi é a chave da doutrina do pre-cedente”, cf. Victoria ITURRALDE SESMA, El precedente en el Common Law (1995), p. 81; ali, os juízes podem dar uma ou mais rationes decidendi como fundamento de suas decisões (p. 94); a contrario sensu, as considerações não necessárias são meros obiter dicta, ou mesmo um simples gratis dictum (p. 102).

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vencedor, em que este, por melhores razões jurídicas de de-cidir, persuade a maioria do colegiado.

As decisões colegiadas, coletivas ou plenárias têm também como suposto ou finalidade, a valorização da economia processual, de modo a obstar, dificultar e desacoroçoar a reite-ração de recursos inúteis ou desnecessários.

Assim, cada jurisprudência que se firma, firma o orde-

namento inteiro; e firmar para nós significa plena defesa do princípio de segurança jurídica.

b. O efeito vinculante das decisões

Mas a indagação continua: por que as decisões uni-formes, e depois as sumuladas, não são obrigatórias para os demais órgãos julgadores? Aqui se pode discutir a questão dos precedentes como um problema de auctoritas; precedentes têm potestas enquanto decisões que valem por si mesmas; mas também auctoritas, que se impõem pelo “saber” do órgão judi-cante. 19

Há duas vias de entendimento sobre sua aplicação

aos casos concretos: os precedentes valem, ou por persuasão ou por vinculação; se os precedentes devem ter caráter mutá-vel, só podem se impor persuadindo; desde o primeiro estudo que o advogado realiza para ajuizar uma ação, até a última de-cisão judicial, constitui faculdade dos juristas e operadores do Direito atender ao precedente, acórdão ou Jurisprudência domi-nante; de outro lado, se os precedentes forem considerados i-mutáveis, adquirem efeito vinculante erga omnes.

19. Autoridade significa competência como função social, conferida para a prote-ção de interesses comuns da comunidade. Cf. FERRAZ JR. Introdução..., p.143.

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II - Fundamentação (Valor)

Interpretação e Aplicação da Apreciação Valorativa das

(Sentenças e Acórdãos)

DECISÕESuestões de Fato e de Direito Norma Particular Concreta

JUDICIAIS

Arts. 165 e 458 CPC

I - Relatório III - Decisum(Fato-s) (Norma)

Sentença sem motivação é corpo sem alma

Serão fundamentadas todas as decisões dos órgãos do Poder Judici-ário, sob pena de nulidade (CF, art. 93-IX), bem como as decisões administrativas dos Tribunais (93-X).

A auctoritas da jurisprudência apresenta graus de per-suasão; um excelente critério, para se distinguir essa gradação de persuadibilidade, é saber quanto beneficia o jurisdicionado; o critério para a Súmula ser mais persuasiva, ou menos, seria o da analogia em Direito penal: in bonam ou in malam partem.

Sendo a jurisprudência sumulada favorável ao jurisdiciona-

do, sua persuasão será mais forte, seja porque a decisão nova sobre caso semelhante não deve contrariar a certeza de direitos já assentados, seja porque não se justifica a “rebeldia” em nome de uma aparente independência de julgar ou livre convicção a outrance, seja porque, acompanhando a súmula, os julgamentos subsequentes serão mais eqüitativos. 20

O juiz “rebelde” é salutar para a Justiça? O juiz que desa-

tende à lei, oriunda de outro Poder, pratica uma “rebeldia” pró-pria, inerente às suas funções, dentre as quais está a de re-pensar a norma que recebeu pronta, mas com a face sempre

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voltada para a sociedade. E quando não acata a Jurispru-dência, pensada e construida pelo mesmo Poder a que perten-ce? Seria menos rebelde?

Dado o non liquet, pesa sobre o magistrado a responsabili-dade de adotar uma solução a mais próxima do Direito justo, que tanto captará na lei como na jurisprudência, vinculante ou não; em ambas situações é mandamento legal (CPC, art. 458-II, LPC, art. 38) e mesmo constitucional (CF, art. 93-IX), funda-mentar a decisão, como garantia inerente ao Estado de Direito, sob pena de nulidade, para não afrontar o princípio do devido processo legal e não cair na arbitrariedade; pode o julgador, por isso, em qualquer instância, rejeitar um julgado com efeito erga omnes, se argumentos suficientes tiver para superar o conven-cimento superior.

O problema está na motivação. Os juízes sabem dis-tinguir as questões de fato das questões de direito; sabem iden-tificar a questão relevante de direito, das questões formais ou irrelevantes; o efeito vinculante das súmulas, ao contrário de simplificar a tarefa dos Juízes, vai exigir deles maior acuidade, cultura jurídica apurada e saber prudencial para sentenciar se-gundo o Direito e a Eqüidade; não mais poderão decidir apenas segundo a “letra” da lei ou da súmula vinculante, o que seria mero e grave juridicismo.

A contrário senso, não sendo favorável a jurisprudên-cia, ou não existindo julgados predominantes ou sumulados, justifica-se a liberdade nas decisões; não é que o livre conven-cimento do Juiz sofra restrições, mas dá-se que a autoridade dos julgados (anteriores), por suas fundadas motivações, a "convencem” do acerto da orientação dominante, afastando da mente dúvidas que poderiam levar a erro; por isso que, além da necessária economia processual, a adesão aos precedentes é

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também uma pedagogia a serviço dos diversos operadores e usuários do Direito. 21

c. O iussum e o iustum como critérios de vinculação

Sob outro enfoque, na dicotomia do Direito o ius tanto pode ser iussum como iustum; Direito é iussum porque é Lei, poder, Direito objetivo; mas também é iustum porque é justo, Direito subjetivo; são as duas faces do mesmo Direito, objetivo e subjetivo.

A justiça é uma virtude interna ao homem; Direito jus-to é o vivido e praticado pelo homem justo; mas, uma vez escri-to, será poder, força, comando.

Então, se a Súmula for considerada faculdade per-sua-siva, estaremos adotando uma postura de Direito justo; mas, se for admitida como obrigatória, porque é poder, estare-mos diante do Direito como força vinculante.

É entendimento corrente, entre nós, que o precedente não vincula; tem força ou autoridade, mas somente persuasiva (ou ela é julgado com força ou será mera opinião jurídica); por isso, a auctoritas da Jurisprudência, nos ordenamentos de tipo europeu continental e latino-americano vem sendo considerada meramente persuasiva.

Entretanto, no caso brasileiro das Súmulas dos Tribu-

nais Superiores, há uma forte tendência dogmática no sentido de aceitá-las como vinculatórias, por sua semelhança intrínseca com a Lei, pois ambas se situam no plano da norma geral e não

21. Nesse sentido, já existe no ordenamento brasileiro pelo menos uma norma em que o legislador tornou as Súmulas quase vinculantes, ao valorizar aquelas que atuam in bonam partem; é o art. 131 da Lei 8.213, de 24.07.91 (redação dada pela L. 8.620, de 05.01.93), Lei de Planos de Benefícios da Previdência Social: "O INSS poderá formalizar desistência ou abster-se de recorrer nos processos judiciais sempre que a ação versar matéria sobre a qual o Tribunal Federal houver expedido Súmula de Jurisprudência favorável aos beneficiá-rios". (Grifamos)

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mais no plano das normas particulares; e também pela mis-são do STF de autêntico Tribunal Constitucional.

A Súmula é expressão última da Jurisprudência; co-mo princípio de isonomia é uma exigência da Segurança jurídi-ca; o próprio ordenamento o estabelece, através da Lei, para garantir a uniformidade dos julgados.

A uniformização, para tornar o Direito o mais certo possível,é exigência de garantia, é um instrumento de Seguran-ça:22

1º) da igualdade de todos perante a Lei, resultando

no "dar a cada um o que é seu"; 23 2º) da coerência interna da atividade jurisdicional: os

próprios juízes, num mesmo Tribunal, não devem julgar diferen-temente casos iguais; daí emana o que chamamos de coisa jul-gada jurisprudencial, além da material e formal; seu efeito é pa-ra integração da Jurisprudência e não para o processo ou para as partes; 24

3º) da própria ordem jurídica: quando se busca a uni-

formidade de julgamento está-se garantindo a unidade do orde-namento jurídico, de forma que a mesma norma não tenha dois significados, dois parâmetros diversos de interpretação, mas um só, na maior parte dos casos, se possível. 25

d. A uniformidade simultânea

Aqui defrontamos com o delicado problema da unida-

de do Direito judicial; o que se busca não é toda e qualquer uni-

22. Tomás PARÁ FILHO. A chamada "Uniformização da Jurisprudência". RePro, v. 1, p. 74.

23. Cf. André OLLERO. Igualdad en la aplicación de la ley y precedente judicial (1989), pp. 19ss.

24. Critério da “coerência jurisprudencial”, cf. Pablo RODRIGUEZ GREZ, Teoria de la interpretación jurídica (1992), p. 188.

25. Para RODRIGUEZ GREZ, trata-se de um mecanismo de “auto-tutela da or-dem jurídica”, cf. op. cit., p. 29.

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formidade jurisprudencial, mas a uniformidade simultânea; 26 as dúvidas sobre interpretação haverão de ser contemporâneas ou coexistentes; não se pode recorrer à Jurisprudência remota, colher um aresto e trazer para contraste atual, pois sendo as circunstâncias presentes muito diversas, não servirá como pa-radigma de comparação.

A simultaneidade deve ser contemporânea, coexistir num mesmo momento histórico; portanto, para ser unifor-mizada, a Jurisprudência deve ser recente, ou não remota.

Por isso, no instante da decisão judicial (o kairós do Juiz),27 é razoável que a mesma regra jurídica não tenha mais de uma interpretação, pois a busca da certeza do Direito é obje-to inafastável da Jurisprudência; esta só se firma se houver cer-teza e, portanto, a duplicidade de interpretação cria dubiedade; se há duas ou mais interpretações, o operador do Direito e o cidadão não sabem como se conduzir, gerando novas incerte-zas.

Em socorro desta tese colhe-se esclarecedor aresto, rela-tado pelo eminente processualista Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, assim ementado:

"Respeitadas as ressalvas legais, mesmo reiterada e diuturna, a Jurisprudência não tem força de vincular os pronunciamentos jurisdicionais. Não se justifica, no entan-to, que os órgãos julgadores se mantenham renitentes à Jurisprudência sumulada, cujo escopo, dentro do sistema jurídico, é alcançar exegese que dê certeza aos jurisdicio-nados em temas polêmicos".28

Ressaltam desta doutrina jurisprudencial os seguintes

aspectos relevantes, discutidos neste trabalho:

1º) mesmo predominante, a Jurisprudência não é vinculató-ria porque lhe falta potestas, ou a força de se impor como ius-sum;

26. Idem, pp. 74ss. 27. Em grego, kairós identifica o momento de uma escolha definitiva, como o da

decisão judicial. 28. STJ. 4ª T., REsp. 14.945-0-MG, j. 17.03.92, v.u., DJU 13.04.92, p.5.002,

1ªcol., em.

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2º) constitui, entretanto, teimosia ou renitência injustifi-cá-vel, por amor a uma equivocada independência de alguns poucos julgadores, o não se deixarem persuadir pelos julgados dos Tribunais superiores, ou seja, não acatarem a auctoritas dos precedentes;

3º) as Súmulas funcionam dentro do "sistema jurídico" com a finalidade de transmitir certeza aos cidadãos sobre questões controvertidas; por isso que, quanto a estas, pairava a incerteza do Direito, justificadora do Direito de agir;

4º) sendo incerta a Jurisprudência (aspecto subjetivo) não pode gerar Segurança (aspecto objetivo) aos jurisdicionados.

Este julgado corrobora, em suas grandes linhas, nos-

sas afirmações de que a Segurança jurídica é mais atual e concreta na Jurisprudência, sobretudo a sumulada, do que na Lei, mesmo apresentando, aquela, certa aparência de mutabilidade 29.

Em conclusão, a uniformização simultânea serve para salvaguarda do Direito positivo, para garantia da igualdade constitucional de todos perante a Lei e para coerência interna da Jurisdição, pois julgados de casos iguais não devem se con-tradizer. 4. A Jurisprudência como fonte última da Segurança jurídica

A questão das fontes do Direito é problema doutri-nário da maior relevância para o estudo da Segurança dentro da Jurisprudência. Miguel Reale fala de modelos jurídicos30 e Li-

29. Ainda sobre obrigatoriedade das Súmulas: "Mas, se se conhece a Súmula - e o Juiz brasileiro não a pode desconhecer - e se não aplica, autoriza-se a inter-posição do remédio processual para repor a orientação da Corte Maior; e se obriga, desnecessariamente, a iniciativa da parte, exigem-se ônus injustificá-veis e requere-se prestação jurisdicional que se poderia e deveria evitar" (RTJ, v. 113, p. 458); "Que mantenha o Juiz sua convicção contrária à decisão da sua Corte, ou mesmo da Corte Suprema, admite-se, nem importa rebeldia; mas, a-plicando-a, enquanto se não muda. Que se recuse a aplicar a diretriz firmada pela maioria, ou, como no caso, que insista em inaplicá-la - consubstanciada em Súmula e aplicada, sem discrepância, pelo Supremo Tribunal Federal - não se justifica" (RTJ, v. 113, p. 459).

30. Miguel REALE. Lições Preliminares de Direito (1973), Cap. XII a XV; Verb. Modelos jurídicos, ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito, v. 53, pp.67-74.

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mongi França, de formas de expressão do Direito (Lei, cos-tumes, jurisprudência),31pois o Direito não se apresenta com uma só faceta, mas é pluridimensional.

Para Limongi, a categoria jurídica "jurisprudência" a-presenta cinco funções:

• interpretar a Lei (interpretar é "ler" a Lei, para ser aplicada); 32

• vivificar a Lei (torná-la vida, fazê-la atuante);

• humanizar a Lei (é a função própria da eqüidade: a Lei dura, rígida, deve ser amenizada);

• suplementar a Lei (quando a Lei é omissa ou obs-cura, o Juiz colmata as lacunas);

• rejuvenescer a Lei (atualizar a Lei, à face dos ca-sos novos, porque saímos da Lei hipotética para chegar à Jurisprudência concreta).

O Direito da Lei é sempre o mesmo, imutável, mas não é idêntico ao Direito da Jurisprudência, porque à Lei original são agregadas, nos julgamentos, interpretações doutri-nárias, filosóficas, jurídicas, circunstâncias de fato; quer dizer, se a Lei não pode prever espécies particularíssimas, caberá à Jurispru-dência determinar qual é o direito, o que é o Justo.

Portanto, vivificada ou rejuvenescida por julgados su-cessivos, a Lei que emana das decisões já não é a mesma que ingressou no processo.

Arruda Alvim afirma, com autoridade,

“ser inevitável o Juiz agregar algo à Lei, para afirmar através da aplicação que ela incidiu, tal como crê que ela

31. Rubens LIMONGI FRANÇA. Lei, Doutrina, Jurisprudência, p. 169; Verb. Fon-tes do Direito, ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito, v. 38, pp.203-217.

32. “La ley se escribe para que sea leída, comunicada y cumplida”. Cf. Vittorio FROSINI, La letra y el espíritu de la ley (1995), p. 59.

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deva ter incidido. ... A valoração jurídica é imanente ao Direito, a qualquer de suas facetas concretas”. 33

Apreciando a contribuição de Emilio Betti34 aos estu-dos sobre interpretação e aplicação das leis, Frosini considera que o núcleo temático de sua reflexão está na afirmação de que “hay dos fuentes del derecho [las cuales] se manifiestan con una fuerza desigual según el tiempo y el lugar: aunque son tan-to la una, la legislación, como la otra, la integración y la interpre-tación oficial, obra de la jurisprudencia”.35

A legislação dá lugar a regras promulgadas, ou seja, elaboradas sob forma normativa; em contraposição, a inter-pretação dá origem a regras não promulgadas ou regras de de-cisão e de comportamento, que podem estar, ou não, referidas ao texto da lei.

Conclui Frosini que a posição assumida por Betti é bem relevante como reação à “idolatria de la ley y el prejuicio fetichista del positivismo legislativo”, ao qual ele contrapõe a ati-vidade interpretativa como fonte de produção do direito.

Mesmo porque parece insustentável a redução do di-

reito à dimensão legislativa, unicamente, porque “hay un proce-so inagotable de circulación, que une la interpretación a la legis-lación, que realizan la doctrina y la jurisprudencia”, de tal forma que a legislação vive em perpétua simbiose com a interpreta-ção, enquanto que as regras de decisão podem fazer referência à vida social, alimentando-se diretamente dela. 36

Sob este enfoque dinâmico, a Jurisprudência funciona dialeticamente, como síntese entre a Lei (tese) e a Sentença (antítese), como se pode melhor vislumbrar no diagrama abaixo:

33. J. M. ARRUDA ALVIM, Dogmática Jurídica e o novo Código de Processo Civil. RePro, v.1 (jan/mar 1976), pp.100-101.

34. Cours de théorie général du droit, em apêndice ao Cours de droit civil compa-ré des obligations, curso ministrado na Universidade do Cairo, em 1957-58.

35. Vittorio FROSINI, op. cit., p. 69. 36. Idem, pp. 69-70.

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Jur ispr udência: f onte úl t ima de Segur ança Jur ídica 209

(FUTURO)

ANTÍTESE

Plano do Particular e do Concreto

Plano do Geral e Abstrato

SENTENÇA

PRUDÊNCIALEI

TESE(PASSADO)

SÍNTESE(PRESENTE)

JURIS-

DI-REITO

Pode-se ver que, na esfera judicial, a Lei é feita para a senten-

ça; se uma sentença (irrelevante para o Direito) põe fim ao processo, inter-rompe a dinâmica, não produzindo efeitos jurisprudenciais; mas o que inte-ressa ao ordenamento são os casos relevantes, pois a sentença é feita pa-ra os Tribunais; decidindo questões relevantes de Direito, fixadas através da Jurisprudência dominante, tendem a modificar a ordem jurídica.

a. Da Segurança da norma à Segurança da Jurisprudência

Passa-se, assim, da Segurança da norma jurídica a uma outra superior,que é a Segurança da Jurisprudência; nesta dialética, o objeto está na tensão entre a Lei e a Jurisprudência; porque a Jurisprudência é dinâmica e sempre se renova, sendo uma de suas características a de rejuvenescer a Lei.

Josef Esser admite uma equivalência prática entre o precedente e o direito estatuido, uma vez que a Lei não teria outro conteúdo senão aquele que lhe é atribuido pelo juiz en-quanto solucionador de casos. 37

Pelo esquema anterior vê-se que tanto a Lei como a Jurisprudência estão no mesmo Plano do geral e do abstrato, enquanto a Sentença situa-se no Plano do concreto, do particu-lar.

A Jurisprudência, uma vez sumulada, seja persuasiva ou vinculante, é válida para todos, exercendo sua eficácia tan-

37. Cf. José LAMEGO. Hermenêutica e Jurisprudência (1990), p. 214.

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Jur ispr udência: f onte úl t ima de Segur ança Jur ídica 210

to em relação a advogados, juízes, tribunais, como adminis-tradores; em sendo vinculante ou meramente persuasiva, mas valendo para todos, coloca-se no Plano do geral, onde se dá a Síntese, com possibilidade de retorno ao plano da Lei. 38

A Segurança da Lei, geral, hipotética, estática, está na expectativa de alguém que a invoque, ao passo que a Segu-rança da Jurisprudência resulta concretamente de sucessivos julga-mentos colegiados e, por isso é dinâmica, ainda que su-mulada.

b. A ambigüidade da norma jurídica

Além de estáticas, sob certo ponto de vista, as regras jurídicas são intrinsecamente ambíguas, conceito importante para nosso estudo. Por que são ambíguas? Vejamos este outro esquema:

NORMA(TODO-UNO-UNIDADE)

A B C D E F ... N

(MÚLTIPLO)

CASOS PARTICULARES

A norma situa-se no todo, no uno ou na unidade por-que é geral: embora única, a norma deve ser aplicada a uma multiplicidade de sujeitos; aplicada de A a N, se A-N são diferen-tes pessoas, então, a mesma norma que incide para A não é igual à que se aplica a B-N, porque as pessoas são diferentes e

38. Muitas leis são elaboradas pelo Legislativo inspirando-se na Jurisprudência pacificada, especialmente pelo STF. Além da Lei 6.899, de 08.04.81, antes re-ferida, recentemente, pelas Leis 8.952 e 8.953, de 13.12.1994, que reformaram o CPC, o art. 219, § 1° (A interrupção da prescrição retroagirá à data da propo-situra da ação), consagrou a tese da Súmula 106 do STJ e 78 do TRF; e o art. 747, sobre julgamento de embargos na execução por carta precatória, acolheu integral-mente o teor da Súmula 46 do STJ.

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diversos são os casos jurídicos a resolver. Logo, a norma a-plica-se a casos diferentes, mas se mantém única; nisto consis-te sua ambigüidade.

Em outros termos, a norma tem mais de uma interpre-tação e aplicação, porque as pessoas são múltiplas, e sendo múltiplas não podem ser iguais, pois um caso não é igual a ou-tro. Esta realidade vem da natureza das coisas e do homem; é, por isso, de Direito natural.

Esta expressão - "ambigüidade da norma" - parece i-lógica, mas é inerente à relação entre uma proposição geral e uma proposição particular, quando o Juiz aplica uma regra ao caso concreto.39 Ela é ao mesmo tempo una e múltipla; está em seu caráter permanecer única; mas, aplicada diferentemente a múltiplas pessoas, já não é a mesma e, portanto, é variável.

Quase toda particularidade cabe em mais de uma ge-neralidade, porque as particularidades implicadas em cada ge-neralidade nunca são exauríveis.

Esta ambigüidade essencial da norma jurídica não é uma inconveniência, antes comporta vantagens: para poderem ser aceitas por mais de uma pessoa, em mais de uma circuns-tância, não deve ser unívoca; permite à Lei permanecer estável ao mesmo tempo em que se adapta a novas circunstâncias.

Tendo, ao mesmo tempo, caráter único e múltiplo, a norma transita instantaneamente, do permanente para o mutá-vel.

Canosa Usera, com reconhecida autoridade, confirma esta

teoria de que toda norma jurídica se reveste de ambigüidade e generalidade, porque as normas legislativas contêm “expres-sões incompletas”; esta é a causa da necessidade permanente de interpretar para aplicar a norma: completar o que o legisla-dor, até propositalmente, deixou incompleto.

39. José Guilherme MERQUIOR. Direito e Justiça, in “O Estado de S. Paulo”, S.Paulo, 24 out 1982.

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Citando Hart, afirma que esta textura aberta do Direito caracteriza uma das definições de ordenamento jurídico. A am-bigüidade vêm a ser, afinal, um preceito normativo a ser aplica-do a uma multiplicidade. 40

Isto parece, também, caracterizar a Jurisprudência, no sentido de ser a Súmula, ao mesmo tempo, permanente e mutável. Relaciona-se ao caráter do precedente: se for mutável não vincula, mas persuade, convence, por sua autoridade, co-mo conselho prudencial; vem a ser para os operadores do Direi-to uma faculdade, pois podem seguir a Súmula ou não.

Sob outro aspecto, se a Súmula for rígida, como a norma, sua autoridade deverá ser vinculante; e para vincular deveria ser imutável, porque só a regra permanente obriga; nes-te caso, ela realmente assume caráter de um poder (potestas) e, como tal, obrigatório.

Então, os precedentes ingleses e norte-americanos, que são vinculantes, têm força de Lei e acabam sendo estáticos (e quanto mais antigo o precedente, mais valor tem, pois o anti-go prevalece sobre o novo); porém, em nosso sistema, não tem a Súmula, ainda, efeito vinculatório.

40. Interpretación Constitucional y Fórmula Política (1988), p. 61. Sobre a ambi-güidade do Direito, cf. também Jean CARBONNIER, Flexible Droit (1976), p. 122.

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c. Das Súmulas de Jurisprudência 41 Por que não podem ser normativas as Súmulas, mas,

ao contrário, continuam sendo meramente persuasivas? Desde Victor Nunes Leal,42 que propôs sua criação no STF, entendem os doutrinadores que não devem ser vinculantes, mas podem ter um mínimo de imutabilidade, como um meio-termo.

Também por isso, as Súmulas não devem ser inter-pretadas, porque são frutos de reiteradas interpretações. Se vie-rem a sê-lo é porque não mais correspondem aos novos casos in judicando.

A Lei 8.038, de 18/5/90, ao disciplinar os procedi-mentos no STF e no STJ, autorizou o relator, mediante despa-cho, a negar seguimento a recurso “que contrariar nas ques-tões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tri-bunal”,; art. 38, 2ª parte; estaria, com isso, conferindo à Súmula força de lei?

O parágrafo único do art. 34 do RISTJ igualmente prevê poder o relator negar seguimento a recurso contrário à Súmula do Tribunal; e o art. 136 capitula que “a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de lei ou ato, afirmada pela Corte Especial, bem assim a jurisprudência compendiada em Súmula, aplicar-se-ão aos feitos submetidos às Turmas, Seções ou à Corte Especial...”.43

41. Cf. José de Moura ROCHA. A importância da Súmula. RF, v. 257, p.91; Edu-ardo Domingos BOTTALO. A natureza normativa das Súmulas do STF, segun-do as concepções de Direito e de norma de Kelsen, Ross, Hart e Miguel Reale. RDP, v. 29, p. 17; Álvaro MELLO FILHO. Direito sumular brasileiro. RF. v. 289, p.417; RP. v. 43, p. 423; Tereza Celina de Arruda Alvim PINTO. A função das Súmulas do STF diante da teoria geral do Direito. RP, v. 40, p. 224; Edmundo LINZ NETO. Súmula. RP. v. 53, p. 222; Sálvio de Figueiredo TEIXEIRA. A Ju-risprudência como fonte do Direito e o aprimoramento da magistratura. RT, v. 553, p. 18-26; Celso Barros COELHO. Jurisprudência como norma jurídica. Controvérsias. RF, v. 281, p. 185; Rubens Limongi FRANÇA. Jurisprudência. ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito. v. 47, p. 168; Roberto ROSAS. Do assento e do prejulgado à Súmula do S.T.F. R.T. v. 404, p. 19.

42. Victor NUNES LEAL. Passado e futuro da Súmula do STF. RT, v. 553, p. 287; RDA, v. 145, p. 1; AJURIS, v. 25, p.46.

43. Sistema que chamamos de vinculação horizontal, dentro do mesmo Tribunal, em contraste com uma vinculação vertical, de um Tribunal Superior para as demais instâncias, inclusive Juízes singulares.

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Pela ordem jurídica vigente é sabido que a Súmula da

Jurisprudência Predominante não assume características de ato normativo; apenas estabiliza a jurisprudência, oferecendo maior segurança aos julgamentos, porque propicia decisões uniformes para casos semelhantes, além de acelerar o andamento dos processos.44 Entretanto, esta jurisprudência predominante confere um certo grau de normatividade às Súmulas, um sentido quase-normativo, não obstante destituidas de obrigatoriedade, e, por isso, não se equiparam aos atos normativos puros, com carac-terísticas de lei, no sentido material: abstração, generalidade, impessoalidade, obrigatoriedade. 45

Segundo pensamento de Kelsen, a decisão judicial tem função normativa, como continuação do processo de cria-ção jurídica, seja de normas individuais, seja de normas gerais, quando o Tribunal de última instância é autorizado a produzí-las com força de precedente, vinculadas à solução de casos iguais. 46

Atualmente, somente havendo delegação constitucio-

nal poderiam as Súmulas tornar-se obrigatórias; mas como exis-tem tão só normas infraconstitucionais, estas expressam ape-nas sua prevalência, decorrente de constituirem mero resumo da jurisprudência predominante.

Vale trazer à análise as discussões travadas no Su-

premo Tribunal Federal, quanto à normatividade da Súmula de jurisprudência predominante, e estar sujeita ou não à jurisdi-ção constitucional concentrada. 47

O ilustre Relator, Min. Carlos Velloso, afirmou que “a

Súmula, que não obriga, e que, por isso, não é ato normativo, realiza o ideal do ‘meio-termo’, que seu criador imaginou”; o

44. Aliomar BALEEIRO, O Supremo Tribunal Federal, in Rev. Brasileira de Estu-dos Políticos, v. 34 (jul 1972): 9-47; cf. p. 30.

45. Cf. José de Moura ROCHA, A importância da Súmula, in Rev. Forense, v. 257:91-98.

46. Cf. Hans KELSEN, Teoria Pura do Direito (1974), p. 330. 47. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 594, julgada em 19/2/1992, sendo Relator o eminente

Ministro Carlos Velloso. Rev. Trim. Jurisprudência, v. 151: 20-50.

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Min. Sepúlveda Pertence distinguiu o que é norma jurídica (ato prescritivo emanado da autoridade competente), e regra jurídica (descrição do conteúdo das normas positivas), e conclu-iu que a Súmula não veicula norma jurídica de criação judicial, muito embora cada verbete se aproxime do conceito de regra de direito; entende que o art. 38 da lei 8.038/90 não tem o al-cance de determinar o conteúdo da decisão da causa, mas a-penas delimitar a competência do relator, servindo de mecanis-mo de relativa estabilidade da jurisprudência e simplificação dos trabalhos judiciários; a contribuição que a Súmula pode dar à uniformidade e estabilidade da jurisprudência é contribuição de fato, não de direito; por isso, julgou prejudicado o pedido.

O Min. Celso de Mello, por sua vez, analisou a ques-

tão sob o ponto de vista do controle concentrado de constitucio-nalidade, exclusivamente de leis e atos normativos, entendendo que o conteúdo material da formação sumular não se identifica com o conceito de norma jurídica, e que a regra do art. 38 da lei 8.038/90, não confere dimensão normativa à formulação sumu-lar; a Súmula, assim, constitui mera proposição jurídica destitui-da de caráter prescritivo, daí porquê, a má aplicação de uma Súmula não dá margem a recursos, pois não é norma jurídica; o enunciado sumular constitui precedente de valor meramente re-lativo, despojado da força vinculante e da autoridade subordi-nante da lei; a Súmula encerra apenas um resultado paradigmá-tico para as decisões futuras, e não é uma pauta vinculante de julgamento.

Já o Min. Paulo Brossard, seguindo os votos anterio-

res, manifestou que a Súmula poderia vir a adquirir as caracte-rísticas de um ato normativo, suscetível de ser objeto de ação direta, mas tal ainda não ocorre.

Entendeu o Min. Sydney Sanches que Súmula não é

lei, tanto que o STF nunca admitiu ação rescisória por violação literal de Súmula, e que o art. 38 da lei 8.038/90, não tem força de converter enunciado de jurisprudência em ato normativo, e se o tivesse feito, o art. 38 é que seria questionado perante a Constituição.

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Entretanto o Min. Marco Aurélio, voto vencido, alinhou

argumentos em favor do reconhecimento de maior relevância jurídica à Súmula, afirmando que pelo art. 479 do CPC o enun-ciado integrado à Súmula do Tribunal constitui precedente na uniformização da jurisprudência; antes disso, a lei 5.010 de 30.05.66, já continha regra instituindo Súmulas da jurisprudên-cia do antigo Tribunal Federal de Recursos; entende que o jul-gador, pelo art. 38 da lei 8.038/90, passou a estar vinculado aos enunciados da Súmula de um mesmo Tribunal; por isso, essa regra confere autêntica normatividade aos verbetes da Súmula; na prática, havendo decisão contrária a verbete da Súmula, o recurso que chegar à Corte, será denegado; ora, podendo os órgãos judicantes ordenar o trancamento de recursos, por cau-sa da Súmula, é inegável a existência da vinculação.

Indubitavelmente, essa era a posição dos Ministros

do Supremo Tribunal Federal, à época, demonstrando firme convencimento de que a Súmula dos Tribunais não constitui uma norma prescritiva, nem se equipara à lei.

Todavia, de iure condendo, há hoje marcante tendên-

cia de valorização dos precedentes, sobretudo em matéria cons-titucional, após a Introdução da Ação Direta de Constitucionali-dade na Carta Magna, pois a Emenda Constitucional 3/93 atribui definitividade e força vinculante aos demais órgãos do judiciário e ao Poder Executivo às decisões nela proferidas; além disso, há a definitividade decorrente da procedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade, bem como ao precedente na ação que declara constitucional ato normativo.

No entender do Juíz Edgard Silveira Bueno Filho, pa-

ra obviar os recursos que se multiplicam pela Justiça com maté-rias já cristalizadas em inúmeras decisões, é necessário editar norma jurídica impondo observância obrigatória dos preceden-tes pelas instâncias inferiores do Judiciário, mas também do E-xecutivo; e de outra parte, a nível jurisdicional, mediante evolu-

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ção do pensamento jurídico brasileiro quanto à maior estabili-dade do direito pela doutrina do stare decisis. 48

5. Potestas versus Auctoritas A questão do stare decisis ser ou não aplicado às

Súmulas pode ser melhor entendida através dos conceitos de potestas e auctoritas, que nos vem dos clássicos.

A análise desta dicotomia a devemos ao gênio jurídi-

co de um dos mais notáveis jusfilósofos espanhóis contemporâ-neos, Álvaro D’Ors, das Universidades de Santiago e de Navar-ra. Desde 1959 passou a elaborar esta teoria, com fundamento do Direito romano, e nos anos de 1968-69 ofereceu uma fórmu-la simples para compreensão destes conceitos:

“la autoridad es el saber socialmente reconocido y la

potestad es el poder socialmente reconocido”.49(gri-famos)

Em outro escrito, ao aplicar a teoria da auctoritas ao

campo do ius e da lex, D’Ors definiu a autoridade da Jurispru-dência como saber prudencial socialmente reconhecido. 50

Estas definições expressam a necessária comple-men-taridade que deve existir entre ambos os conceitos, con-forme pesquisas de Rafael Domingo sobre a obra dorsiana:

“La necesidad del reconocimiento social, sin el cual la po-testad es pura fuerza y la autoridad pura ciencia, aproxima los conceptos que, sin embargo, resultan esencialmente distintos en función de la diferencia entre la voluntad, a la que se refiere la potestad, y el entendimiento, al que se refiere la autoridad. ... La autoridad no es entendimiento, sino saber, es decir, una ex-presión del entendimiento. A su vez, la potestad no es voluntad, sino una expresión de la misma; y el saber y el poder sí pueden ser reconocidos socialmente.”51

48. Os precedentes no direito brasileiro. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, Rev. Tribs. v. 11 (abr-jun 1995): 183ss.

49. Cf. Rafael DOMINGO, Teoria de la “auctoritas” (1987), pp. 49, 51. 50. Idem, ibid., p. 51. 51. Idem, pp. 49-50.

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Acompanhando este autor, vê-se que os romanos di-

ferenciavam Iurisdictio, correspondente a potestas; e Iudicati-o, como decorrência da auctoritas.

Ius dicere (iurisdictio) é dizer solenemente o Direito,

sob distintas formas de declarações públicas; é a determinação de um objeto, trata-se de um ato de objetivação; em sentido amplo, constitui o conjunto de declarações do Magistrado com imperium (daí ius dicere, addicere, interdicere e dicere), soma de declarações da potestas magistratus para boa marcha do processo.

Ius dicare (iudicatio) é também proclamar solene-

mente o Direito, mas, sobretudo, consagrar ou dedicar algo a uma divindade; é sempre uma declaração privada com efeitos pessoais; é a sentença do juiz privado que declara o direito de alguém em relação a outrem; portanto, iudicare corresponde à autoridade de alguém que “sabe”, mas não “quer”.52

Ius dicere e Iudicare são atividades análogas, mas

que partem de pontos diferentes; o Magistrado, embora detentor de potestas, por ser funcionário do Estado, declara sua opinião como revelador de um saber prudencial concreto, mas como auctoritas; potestas e auctoritas se combinam, assim, no mais íntimo da vida jurídica, que é o processo.

Sobre a essência da Jurisdição, explica o autor que

há duas correntes em confronto: para a primeira, auctoritas é a nota diferencial da Jurisdição, e que leva à idéia de iudicatio; a segunda se baseia na potestas como fundamento da Jurisdição, mas incluindo nela a iudicatio; mas isto constitui um equívoco, pois esta se baseia na auctoritas. 53

E apresenta-nos a seguinte Imagem do Centauro:

52. Pergunta quem “pode”, responde quem “sabe”; o doente pergunta, o médico responde; o aluno pode, o professor sabe; a Jurisdição pode, mas é o “juízo” que sabe o Direito. Cf. Rafael DOMINGO, op. cit., pp. 223, 254.

53. Op.cit., pp. 147-148.

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Imagine-se um Cavaleiro montado num Cavalo: ali exis-te uma união acidental, com independência de ambos; o Cava-leiro “sabe” manejar o Cavalo: esta idéia serve para representar o “Juízo”, como expressão de auctoritas; o Cavalo simboliza o “poder”, a Jurisdição, como expressão de potestas. Entretanto, tendo o Estado moderno confundido autoridade com poder, o “Juízo” restou incluido na Jurisdição; portanto, o Cavaleiro a Cavalo se tornou Centauro, e então cabe indagar se é um Ho-mem com corpo de Cavalo (Jurisdição fundada na Autoridade), ou se é um Cavalo com cabeça de Homem (Jurisdição fundada no Poder).

Ora, o Centauro, como ser mitológico, não existe; é preci-so, pois, volver à natureza real das coisas, o Cavaleiro monta-do no Cavalo, voltar-se à separação de Autoridade e Poder, pa-ra reencontrar a linha divisória entre iudicatio e iurisdictio, pois Juiz é auctoritas, enquanto Jurisdição é potestas.

No Direito moderno os dois conceitos se confundiram

na Jurisdição: a Iudicatio (expressão de auctoritas) foi assimila-da pelo conceito de Jurisdição (expressão de potestas); para se entender, porém, a necessária separação, deve-se usar o con-ceito de “Juízo” (o mais semelhante a dicare, a iudicatio latina).

Destarte, em razão da autoridade prudencial de que é revestido, o Juiz não pode se alçar super ou contra legem, como pretende certo uso alternativo do Direito, pois, tanto na Justiça constitucional, como na Justiça cível e pública, está submetido ao poder jurídico da sociedade, da qual também emana o poder político, e ambos ordenam as condutas jurídicas dos cidadãos e dos próprios Magistrados.

A propósito do valor da Jurisdição, Dinamarco 54 distingue poder e influência, ensinando que “a jurisdição é exercício de influência, sem deixar de ser manifestação de poder, em que cada processo gera decisões e atos materiais que constituem autêntico exercício de poder”.

Mas, lembra que a influência da jurisdição “quando não do-tada de imperatividade, poder não é. ... Trata-se da influência dos precedentes jurisdicionais”, em que, pela via da apreciação judiciária de casos concretos, é lícito esperar a evolução do próprio Direito, segundo a dinâmica social e evolução das pers-

54. Cândido Rangel DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, pp. 150-155.

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pectivas axiológicas, alertando, contudo, que, mesmo assim, “o Juiz não se torna Legislador”.

A respeito da auctoritas do Senado romano, diz adiante que a força da Jurisprudência “é mais do que um conselho e menos do que uma ordem”. (Conforme dissemos acima, a Jurispru-dência ou tem força como julgado ou é mera opinião jurídica, mas isto é bem pouco para um Poder da República...).

Para o nosso ilustre processualista, “a Jurisprudência não constitui positivação do poder. ... Mas é inegável que na sen-tença o Direito se positiva. Não com o caráter de “universalida-de”, pois nos sistemas jurídicos de Direito escrito, “a função ju-risdicional não tem vocação à generalidade, que é reservada à Lei”.

a. Poder Político e Poder Jurídico

Dalmacio Negro Pavón,55 em preciosa análise de teo-ria política, afirma que a Sociedade é a detentora de todos os poderes, não o Estado; e os dois únicos poderes são o político e o jurídico, que convivem na história em tensão dialética cons-tante; nos regimes totalitários, o político absorve o jurídico;

Na Idade Média, o ius commune representou o máxi-mo prestígio do poder jurídico; inclusive os Parlamentos france-ses, côrtes privadas de justiça, detinham mais força que os reis; o Judiciário, portanto, costumava ser mais fortalecido.

A alternância desses poderes pôde ser constatada recen-temente com a Perestróika: durante anos o poder político im-pôs sua vontade sobre a sociedade soviética e aquela foi uma revolução jurídica, nada mais que a aspiração de liberdade de um povo, no sentido de assumir o comando de seus destinos; tudo começou com uma rebelião contra as leis vigentes. 56

55. Natureza social do Poder Judiciário. Rev. Tribs. v. 695, p. 16-29. Trad. do Au-tor.

56. “A perestroika parece ser o começo do fim de tudo isso, enquanto expressa o descon-tentamento dos ideais da contra revolução socialista (estatista) frente à forma jurídica de democracia, cujo traço mais acentuado é o que se chamou “governo dos Juízes”, próprio das Sociedades politicamente livres e juridica-mente contratuais. Nelas, ao conservar o povo a propriedade e a posse do Di-reito, custodiado por Juízes, advogados e juristas, prevalece em geral, sem discussão, o poder jurídico sobre o político, que só se manifesta como sobera-no em situações excepcionais, mas não na vida cotidiana”. Idem, p. 28.

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Ora, o poder político é detentor da potestas, que aparece nítida no Executivo e no Legislativo, ao passo que o poder jurídico é mais visível no Judiciário, através da auctoritas. Deparamos, então, com dois tipos de Justiça: uma chamada institucional, a "situação política", o stablishment, a ordem cons-tituida, característica da potestas; 57 e a Justiça ideal (mas não metafísica), que deve ser buscada e praticada diuturnamente nos casos particulares, própria da auctoritas. 58

O poder político estabelece as regras do jogo político; e o poder jurídico, as normas sobre a Justiça material, a que dá o seu a cada um, no caso concreto; não mais uma Justiça ideal, mas a do dia-a-dia, das instâncias inferiores e dos Tribunais; esta Justiça necessita de uma ordem legal para se concretizar; e para isso, suas decisões devem ter além da auctoritas, o sa-ber julgar, também a potestas, o poder de administrar a Jurisdi-ção e o de executar seus próprios julgados. 59

e. Poder Jurídico e Jurisprudência

Esta auctoritas é um valor característico, peculiar à Jurisprudência, ou não? Há negativistas, que dizem não ter a Jurisprudência qualquer valia;60 outros porém, autores jurispru-dencialistas, exacerbam sua importância. 61

57. Nossa Constituição a denomina, coerentemente, Estado Democrático de Di-reito; em alguns países europeus, em declínio ultimamente, Estado Social de Direito.

58. Paul RICOUER contrapõe a Filosofia Política à Filosofia do Direito, como duas vertentes da sociedade, em que o tema da primeira é a guerra, e o da segun-da, a paz. Cf. Le Juste, p. 10.

59. ZENATI, ao tratar da coisa julgada, mostra que o ato jurisdicional apresenta duas dimensões: sua força probante e sua força obrigatória; esta permite às partes se executarem, mas só a primeira guarda a autoridade da coisa julgada. La Jurisprudence (1991), p.193.

60. Clóvis Bevilaqua, Spencer Vampré, Martinho Garcez, Tito Prates da Fonseca, Franzen de Lima, Paulino Neto, Oscar Tenório, Orlando Gomes. Cf. LIMONGI FRANÇA, op. cit. pp.170-171.

61. Como Barros Monteiro e Vicente Ráo, op. cit., p. 171.

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Numa terceira posição, os realistas62 afirmam que a Jurisprudência tem autoridade e, ademais, é complementar à Lei. 63

Entretanto, pela conceituação realista contemporânea da Jurisprudência, o Juiz “cria” Direito, não como Legislador, mas por agregar à Lei todas as circunstâncias valorativas do fato, bem como doutrinas, costumes, precedentes judiciais; por isso, a Jurisprudência tem valor relevante, por suplementar, na sua aplicação, o que a Lei não pôde dizer, por sua absoluta ge-ne-ralidade e abstração.

A Jurisprudência pouco vale porque consistiria, para alguns, num simples conhecimento objetivo, neutro aos valores; porque tem regras supérfluas e arbitrárias; porque (e isto cor-responde a um conceito positivista do Direito) a Jurispru-dência é restrita ao pensamento lógico (a velha tese de que a sentença é um silogismo); assim, é negada à Jurisprudência capacidade de elaborar enunciados (axiológicos) suficiente-mente funda-mentados. 64

Para muitos, ao contrário, a Jurisprudência tem valor como fonte do Direito porque trata da compreensão de cone-xões normativas de sentido e de pensamento orientado a valo-res; 65 de fato, vemos pelo tridimensionalismo de Reale, que não só a norma importa, mas também o fato e o valor. Esta pos-tura supera o conceito positivista de Ciência, porque busca transfor-mar pautas de valores em decisões concretas.66

Se não tivesse valor jurídico, seria algo banalizado, como mera doutrina passageira. Ora, tanto tem valor que dela

62. Carlos Maximiliano, Serpa Lopes e Limongi França. Idem, p. 172. 63. No sentido que lhe dá a legislação espanhola. Título Preliminar do Código

Civil, art. 1º, n. 6: a Jurisprudência "complementará el ordenamiento jurídico ...". 64. Cf. Karl LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 2ª ed. (1989), pp. 2-3. 65.Cf. VALLET DE GOYTISOLO, Metodología de las Leyes, p. 309; FELIX M.

CALVO VIDAL, Importancia y trascendencia prática de la Jurisprudência, in “La jurisprudencia ¿Fuente del Derecho?” (1992), p. 309.

66. “O Direito moderno já não admite a visão estreita do positivista, nem a redu-ção do campo de abrangência de seu cientista à dicção perfeita e pura. Exige um intérprete humanista, universal, com ampla visão dos fenômenos sociais e de suas manifestações nas mais variadas ciências”. Cf. Ives Gandra da Silva MARTINS, A cultura do Jurista, Cadernos de Direito Tributário e Finanças Pú-blicas, Rev. Tribs, v. 2 (jan-mar 1993), p. 22.

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não se pode retirar seu conteúdo ético, sem pôr em risco qualquer sistema que pretenda ser jurídico. A Teoria Pura do Direito serve bem para explicar a estrutura de um ordenamento, mas, para um sistema inteiro é inaceitável, pois o melhor argu-mento que a contraria é justamente o das leis injustas.

Aqui é nítida a distinção entre poder político e poder jurídi-co. O nacional-socialismo alemão tinha poder político totalitário e subjugou o poder jurídico: juízes e tribunais cumpriam o que o regime ordenava; porque as Leis de Nuremberg (1935) eram formalmente perfeitas, regularmente promulgadas, porém sem qualquer conteúdo ético de respeito aos Direitos naturais da pessoa humana.

De um lado, havendo um poder político com decisões políticas, a ordem jurídica, no seu conjunto, era injusta; de ou-tro, havia as decisões judiciais com base nas leis injustas; pode haver uma lei injusta e o Juiz não aplicá-la, mas quando toda a ordem legal é injusta, não há como emitir decisões justas... 67

Por trás da tensão entre Lei e Jurisprudência68 há um confronto maior, entre Direito e Liberdade, entre Estado e Cida-dania, que sempre se reproduz; neste campo, só a Jurisprudên-cia, com a força de sua auctoritas, culminância do poder jurídi-co, pode equilibrar o poder político.

67. Na película O Julgamento de Nuremberg (filme-vídeo, direção de Stanley Krammer, 1961, 150min., p&b, son. dubl., norte-americano) aflora eloqüente-mente esta questão: Juízes que aplicaram as Leis nazistas sobre esterilização de pessoas, julgadas em "processo regular" como débeis mentais, ou sobre "poluição racial" (qualquer contacto de alemães com judeus, ciganos, ...), con-sideravam seu dever acatar e cumprir essas Leis; ressalta, ao final, o fecundo debate sobre o Direito Positivo e o Direito Natural. Um dos Juízes então acusa-dos, Hoffsteter, em suas declarações ao Tribunal afirmou: "Servi meu País, em toda minha vida, seguindo o conceito que acreditava o melhor: sacrificar o sen-so de justiça à autoridade legal de ordem, perguntar o que é a Lei e não qual o senso de Justiça"; aquela Legislação representou, portanto, a radicalização po-sitivista do iussum sobre o humanismo natural do iustum.

68. Sobre este confronto Legislação-Jurisdição, cf. Artur KAUFMANN & Winfried HASSEMER, El pensamiento jurídico contemporáneo (1992), p.199; e Andrés OLLERO, Caps. ¿Es el precedente judicial fuente del derecho?; Ley o prece-dente: un dilema artificial; Una nueva dimensión de la tarea judicial, in “Igualdad en la aplicación de la ley y precedente judicial” (1989), pp. 71, 89, 94.

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Imagine-se um Tribunal Constitucional durante um regi-me autoritário. O Direito em si defende a Liberdade; à medida em que dá Segurança jurídica à Liberdade, aos Direitos huma-nos, estará o poder jurídico confrontando-se com o político; ho-je, em todas as Constituições democráticas se fala em Direitos humanos, garantias fundamentais, garantias de acesso à justi-ça etc, enfim, estão todos constitucionalizados; muito do que era discutido a nível legal, está posto nas Constituições; criou-se a Defensoria Pública para a assistência judiciária, e os Jui-zados das Pequenas Causas, iniciativas de alguns Estados, se nacionalizaram pela Constituição.

Quer dizer, essa concepção de equilíbrio dos Poderes no Estado Democrático de Direito, tem em mira conduzir a inte-resses jurídicos defendidos politicamente. O poder político tem seu momento fundante nas Constituições, ab initio, mas o poder jurídico deve prosseguir, continuamente neste seu cons-trutivismo, inclusive jurisprudencial, adequando a norma aos fa-tos, aos tempos, aos lugares e aos valores, não devendo ser tolhido pelo poder político, mas respeitado.

6. Conclusões

A força do Estado Democrático, de Direito consti-tucional, é exatamente a Segurança jurídica obtida em perma-nente equilíbrio entre o poder político e o poder jurídico; esta Segurança resulta, afinal, da atuação do Judiciário ao definir valor, extensão, eficácia e exeqüibilidade das normas legais e constitucionais, na expressão do jurista Ney Prado. 69

Para isso, o julgador deve partir do abstrato e chegar ao concreto; do complexo ao simples; do ambíguo ao definido; do ideal ao factível; do emocional ao racional; partir do meta-jurídico e chegar ao jurídico.

Juízes e Tribunais executam todas estas tarefas con-co-mitantemente, sintetizando-as em sentenças ou em acór-dãos; tudo isto vivifica os textos legais sob a luz da realidade, pondo fim às controvérsias judiciais.

69. Ney PRADO. A Constituição de 88 e a vez do Judiciário, in “O Estado de S.Paulo”, S.Paulo, 31 out 1988. Do mesmo autor, cf. Os notáveis Erros dos No-táveis (1987); Razões das virtudes e vícios da Constituição de 1988 (1994).

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O Julgador atua como individualizador da vontade da Lei; passa do comando abstrato da norma ao comando apli-cado em concreto; é simplificador da ordem jurídica, ao tornar simples os textos complexos e difíceis de conciliar; é realista e reabilitador do verdadeiro papel da norma legal, ao retirar da utopia normativa um comando realizável;70 é causa eficiente da certeza jurídica, ao fazer do ambíguo um comando determina-do.

É garantidor último - e garantia é Segurança - da es-

tabilidade das instituições, ao moderar o ousado e torná-lo pru-dente regra em sua aplicação. 71

É ainda Ney Prado quem afirma, enfaticamente: a Carta de 1988 (extensa, analítica), mais que as outras, é pro-blemática (complexa, utópica, ambígua, contraditória). Revela uma postura do Constituinte mais psicológica do que lógica; por isso, demanda redobrado esforço interpretativo dos Tribunais, porque casou o utópico ao casuístico, o ideal ao rasteiro, o ele-vado ao ridículo, o nebuloso ao definido. Há necessidade de uma interpretação conciliadora para se alcançar a eficácia do realizável, do possível, do equilíbrio e da seriedade.

Ao Judiciário cabe zelar pela Segurança jurídica, não

apenas legal, mas de todas as categorias que informam o orde-namento jurídico. Nem a Constituição, nem toda a ordem jurídi-ca positiva nos dão Segurança Jurídica, mas sim a aplicação justa da Lei pelo Executivo e sobretudo pelo Judiciário, que de-tém a última palavra em matéria de interpretação e aplicação do Direito. A missão do Judiciário será sempre a de transformar a Constituição formal em Constituição real, a Constituição-texto em Constituição-vida, ainda seguindo Ney Prado.

70. Para Theodor VIEHWEG, há uma recíproca aproximação entre os fatos e o ordenamento jurídico, a "ida e volta do olhar". Tópica e Jurisprudência, p. 83; Antonio HERNANDEZ-GIL afirmava que o Juiz deve ter “una mirada hacia arri-ba”, que o leva a considerar o transcendentalismo da Justiça; e uma “mirada hacia abajo”, para que desça à consideração das condições sociais subjacen-tes. Cf. Op. cit. (1981), nº 4º, p. 26.

71. Cf. Carlos CERDA FERNÁNDEZ, Exigencias primordiales de la jurisdicción del presente y del mañana, in “Iuris Dictio” (1992), em que analisa o juiz de hoje, o juiz oposto e os fundamentos para uma mudança. Pp. 267, 269, 275.

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Terminamos, com o eminente juiz, lembrando eter-nas palavras de Rui Barbosa:72 "a esperança nos Juízes é a úl-tima esperança” da sociedade, fonte única e soberana de todos os poderes. 73

72. Rui BARBOSA. Obras Seletas, [Campanhas Jornalísticas, República], tomo VII, p. 204; apud Luiz Resende de ANDRADE RIBEIRO, Dicionário de Concei-tos e Pensamentos de RUI BARBOSA (1967).

73. "Todo o poder emana do povo..." (art. 1º, par. único, da CF 88).

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O Acesso à Justiça

SUMÁRIO: 1. A exigência de uma "Jurisprudência mínima" ou "vinculação mínima à Ju-risprudência". 2. A ordenação jurídica da Jurisprudência. 3. Evolução da Jurisprudência para uma progressiva determinação do Direito. 4. O uso alternativo do Direito. 5. A nova Lei de Aplicação das Normas Jurídicas. 6. As transformações constitucionais do Direito. 7. O Poder Normativo de um Tribunal Constitucional. 8. Conclusões.

1. A exigência de uma "Jurisprudência mínima" ou "vinculação mínima à Jurisprudência"

Não sendo vinculante a Jurisprudência, a persuasão se torna mera recomendação de uso, como bula de remédio. Se é necessário ao paciente tomar a medicina para se curar, assim para decidir a contro-vérsia do caso concreto, deve o Juiz encontrar os remédios jurídicos prescritos pela Lei, ou, à sua falta, pela analogia, pelos costumes, pela doutrina, e last but not least, pela Jurisprudência.

Ora, tais fórmulas elaboradas nos Tribunais, através de jul-

gamentos colegiados, são sobretudo questões de Direito que, depois de uniformizadas, tornam-se invariáveis, exatamente como se dá com a Lei; onde a mutabilidade ocorre é nas questões de fato, inerentes à va-riabilidade da própria vida humana.

As Súmulas, ou a Jurisprudência dominante, parecem ser estáveis

sit et in quantum, durante a permanência de um mesmo entendimento jurisprudencial sobre matérias jurídicas relevantes; é uma estabilidade relativa, pois o Direito, pela natureza de sua destinação, deve ser está-vel mas não invariável (imutável); deve-se pensar que existe uma gra-dação da estabilidade por patamares: como as leis e os códigos, as normas jurisprudenciais são revogáveis e reformáveis, mas guardam sempre um mínimo de duração que, muitas vezes, atravessam décadas sem alterações. Há, assim, em todo julgado superior, uma essência, um ratio

decidendi, consistente numa nova regra de Direito - a jurisprudencial - que não pode deixar de ser considerada desde os primeiros intérpretes, para aplicação às causas que venham a julgar.

O conceito de ratio decidendi é a chave da doutrina do precedente”;

segundo nos esclarece Iturralde Sesma, neste conceito ficam excluídas as questões de fato; dentro destas, tão pouco pertencem à ratio deci-

Capítulo XIII

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O acesso à Justiça 228

dendi as considerações da sentença não necessárias para decisão, pois não são mais que obter dictum...(op. cit. p. 81) Na verdade, há nas decisões uma associação complexa de

princípios que entram na composição do julgado; no direito penal, p.ex., uma sentença consiste na composição da norma principal, das normas cumuladas, dos dispositivos agravantes e atenuantes, das penas corpo-rais, pecuniárias, benefícios aplicáveis, restrições de direitos etc.

Destarte, as decisões originárias (sentenças ou acórdãos) seme-

lham-se às antigas receitas, que estipulavam, doente a doente, as subs-tâncias e as dosagens, e que deviam ser manipuladas por farmacêuti-cos competentes; enquanto as decisões finais, uniformizadas e sumula-das, seriam como remédios de laboratório, analisados, experimentados e concentrados, já contendo, a priori, todos os elementos básicos para os casos semelhantes. Enquanto o trabalho artesanal dos Juízes, escrevinhando su-

as sentenças, aproxima-se da medicina antiga, a medicina moderna, como os Tribunais, exige atendimento imediato a uma multidão de re-correntes, utilizando, para tanto, equipamentos, técnicas e conhecimen-tos avançados, para a mais perfeita sanação do caso.

Assim na Justiça: se a maior crítica da população aos órgãos

judiciários é a morosidade; se ao povo interessa não o preciosismo das sentenças e acórdãos, mas ver seu direito subjetivo atendido de imedia-to não é razoável que todo direito deva ser reconstruído, caso a caso, por todo julgador em cujas mãos o processo passa; se já existem deci-sões superiores, juridicamente firmadas com excelência, e a cujas con-clusões as seguintes fatalmente chegariam, bastaria invocar adequa-damente o stare decisis 1 já criado.

Não se trata de "puxar uma ficha", comodamente, e citar o

precedente; as súmulas são muito mais que simples ementa a transcre-ver; devem ser equacionadas aos fatos do processo e ao entendimento do Juiz; serve à economia processual enquanto poupa os intérpretes de reiteradas e dispensáveis pesquisas; nem os Juízes ingleses ou ameri-canos se eximem de motivar suas decisões 2; a fundamentação é ne- 1. A doutrina do precedente obrigatório ou do stare decisis et non quieta movere foi elabo-

rada claramente pela primeira vez em 1861, pela House of Lords, o mais alto Tribunal da Inglaterra: “cada tribunal estaba estrictamente obligado por las decisiones y los tribunales superiores estaban obligados por sus propias decisiones”. Cf. Victoria Iturralde Sesma, El precedente en el Common Law (1995). pp.24-25.

2. Segundo Iturralde Sesma, a prática dos Tribunais é expor detalhadamente a motivação para suas decisões; pois o que vincula não são as decisões em si mesmas, mas a ratio decidendi, e esta só pode ser obtida analisando o raciocínio do Tribunal. Op. cit., p. 100.

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O acesso à Justiça 229

cessária para a análise dos fatos e adequação às normas jurídicas, mas a essência da decisão já está firmada pelo holding do Direito sumulado.3

Em suma, toda decisão, desde sua origem, encontra-se

vinculada a uma Jurisprudência assentada, pois nihil novum sub ius, salvo exceções extraordinárias, quando juristas e Juízes, com luzes extraordinárias, propiciam a criação de novas teses jurídicas; esta vinculação, portanto, torna mais ágil a Justiça, é mais prática aos intérpretes e mais econômica ao povo que acode aos Tribunais buscando Justiça e, sobretudo, ao desafogo do Judiciário.

Então, por que a nossa Jurisprudência não é vinculante? Por

que não vincula ou não se impõe? Alvaro D’Ors nos dá uma resposta:

“Los criterios jurisprudenciales, es decir, las normas jurídicas en ge-neral, no son en sí mismas dictados imperativos. No pueden serlo por la razón evidente de que quien las formula no tiene, por su misma autori-dad jurisprudencial, una potestas imperandi. Ya hemos dicho que la prudencia es virtud intelectiva; el imperare, en cambio, supone expresi-ón de voluntad. Lo que el prudente, formulador de la norma jurídica, pu-ede decir no es más que “esto es justo” o “esto es injusto”; declara lo que es jus (ju-dicat), pero no impone una regla de obediencia.”

“Si las normas jurídicas no son por sí mismas imperativas, ¿quiere esto decir que no son vinculantes, que no obliga? Esta es la cuestión, anexa a la de la imperatividad, de la obligatoriedade de las normas.” ...”Porque una cosa es la obligatoriedad moral y otra la vinculación mate-rial”. 4 O juiz ou Tribunal que não acata Jurisprudência superior rea-

bre, a cada caso idêntico, discussões temáticas sobre a mesma questão jurídica controvertida, e vai, passo a passo, se insurgindo contra o já decidido reiterativamente.

A certeza que brota do caso julgado é certeza de Justiça, certeza de

que é decisão justa. E a decisão justa acarreta certeza definitiva para as partes, para a Jurisdição e para o próprio ordenamento.

3. A ratio decidendi é uma regra necessária para a decisão; a contrario sensu, as demais

considerações, não necessárias para decidir, são meras obter dicta, pois os juízes cos-tumam dar razões adicionais da sua sentença, sem que façam parte do ratio decidendi. Idem, p. 102.

4. Álvaro D’ORS. Princípios para una teoria realista del derecho. Anuario de Filosofia del Derecho (1953), p. 315.

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É ainda a lição de Alvaro D’Ors que cabe acolher neste pas-so:

“... una sentencia judicial es norma en un triple sentido:... : 1º Es norma particular para las partes afectadas por el fallo, para los litigan-tes; se entiende en la medida en que aquella sentencia tiene fuerza de cosa juzgada.” ... “2º Es norma profesional por cuanto cada sentencia constituye un precedente, que tendrá una influencia más o menos inten-sa sobre las futuras sentencias de aquel mismo juez o de otros jueces. 3º Es norma pública, ya que aquela muestra de conducta judicial será tenida en cuenta por todos los que tengan que intervenir en un caso a-nálogo, y los técnicos del derecho, en especial, no olvidarán aquella muestra cuando se trate de dar un consejo al ‘público’ “ (grifamos).5

2. A ordenação jurídica da Jurisprudência

Se visualizarmos a atuação da Jurisprudência no âmbito de

um mesmo Tribunal (num plano horizontal, portanto), os comandos ju-risprudenciais deveriam ser respeitados, numa ordem de coerência in-terna, pela competência das matérias e da própria organização jurisdi-cional. Há, inegavelmente, uma vinculação dos casos novos aos prece-dentes contemporâneos, com maior razão se presentes os mesmos jul-gadores, ocorrendo o que chamamos de “vinculação mínima”.

Já num plano vertical, na linha dos Tribunais superiores para

os Tribunais locais, Juízes de primeira instância e órgãos administrati-vos, os precedentes têm menor vinculação; estes aplicadores do Direito parecem infensos a certa influência prudencial, não obstante os clamo-res da sociedade por uma Justiça mais eficiente, célere e imediata.

Mesmo com decisões firmes e reiteradas dos Tribunais, os

escalões inferiores nem sempre as aplicam, obrigando cada cidadão a recomeçar sua via-sacra processual para obter o reconhecimento de um direito muitas vezes já declarado objetivamente. Tal resistência ocorre com frequência nas esferas administrativas, em que avultam poderes materiais de execução das normas (polícias administrativas, judiciárias e militares, ad exempla).

A questão deságua, assim, no campo maior do acesso ao Ju-

diciário, como obrigação de recorrer à Justiça, quando a mesma situa-ção jurídica, em sua essência, já foi determinada por inúmeros julgados.

5. Idem p. 313-14. Cf., Ives Gandra da Silva MARTINS FILHO. A legitimidade do Direito Po-

sitivo (1991), p. 220.

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Esta forma de negar acesso à Jurisdição torna-se ativa, quando o sujeito de um direito já assentado pela Jurisprudência se vê obrigado, não obstante (sobretudo por posturas internas de órgãos ad-ministrativos), a recorrer às instâncias judiciais; passiva, quando o sujei-to de um direito não alcança as portas dos tribunais por ausência de meios materiais (assistência judiciária acessível) e outros obstáculos invencíveis.

Acessar a Justiça não consiste, portanto, apenas em ajuizar

um pleito nos Pretórios, mas sobretudo ver o direito prontamente reco-nhecido; litigantes há que toleram os grandes atrasos judiciais, talvez até lhes interesse protelar suas demandas. Mas ao cidadão comum a demora na prestação jurisdicional ataca e ofende a vida, a saúde, e ne-ga alimentos, emprego, moradia, educação para os filhos etc. 6

A atitude dogmática de recusar uma vinculação mínima aos

precedentes superiores, sem considerar as situações razoáveis de fazê-lo para alcançar justiça prestadia, conflita com o compromisso dos Juí-zes para com a Lei e o Direito, para com a sociedade a que pertencem e para com a própria Justiça.

Que as sentenças sejam expeditas: a nosso ver, a aplicação

imediata pelos Juízes de uma "jurisprudência mínima", vinculada pela essência ao caso concreto, fará mais Justiça que a mais brilhante deci-são.

A idéia dos Juizados Informais e os de Pequenas Causas visava a-

tender a esta morosidade - a relevante questão do acesso à Justiça. Por acaso a justiça que ali se distribui é inferior à dos altos Tribunais? Nesse sentido se entende o movimento pelo uso alternativo do Direito - acesso do povo aos seus Juízes naturais e resposta rápida e justa aos direitos pessoais.

6. “O acesso à Justiça é, mais do que ingresso no processo e aos meios que ele oferece,

modo de buscar eficientemente, na medida dos direitos que se tem, situações e bens da vida que por outro caminho não se poderiam obter”., Cândido Rangel DINAMARCO. A Instrumentalidade do processo (1987), p. 404. Sendo o Acesso à Justiça uma Garantia Constitucional, como ensinam Tucci & Tucci, para ser plena deve referir-se não só à a-cessibilidade econômica (ideal de gratuidade ou de custo mínimo do processo, a assis-tência judiciária), como à acessibilidade técnica, através de defensoria técnica e igualda-de substancial no processo. Rogério Lauria TUCCI e José Rogério Cruz e TUCCI. Cons-tituição de 1988 e Processo (1989), p. 19. Para nós, tal garantia será comprometida pela tardança nos julgamentos, quando injustificada, seja em primeira como em segunda ins-tância. Cf. também Ada Pellegrini GRINOVER, Assistência judiciária, in “Novas tendên-cias do Direito Processual” (1990), pp. 243ss.

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Enfim, os direitos subjetivos, hoje, por força da Constituição de 88, estão subsumidos nos direitos de cidadania e a tardança judicial é grave negação do acesso efetivo à Justiça, constituindo fonte iníqua de insegurança jurídica e incerteza do direito.

3. Evolução da Jurisprudência para uma progressiva determinação do Direito 7

O método da Exegese emerge com o Código de Napoleão:

como era vedado interpretar, o juiz deveria decidir de acordo com a letra da lei, sem emitir opiniões pessoais.

Ao final do século XIX surge a reação a esse método, pas-

sando-se para o extremo oposto: o juiz, sendo autônomo e livre, poderia julgar como quizesse. Houve um conflito entre Legislação e Jurisdição: conforme o método utilizado, poderia haver maior ou menor segurança na decisão e, portanto, maior ou menor certeza do direito. Este movi-mento do Direito livre causou certo tumulto, e por isso foi bastante criti-cado.

Cabe ainda lembrar a chamada Jurisprudência dos interes-

ses, de Phillip Heck; a livre investigação cientifica, de Gény; a interpre-tação segundo princípios gerais de Direito, transcendente aos limites do Direito positivo, dos espanhois Castán, Recasens, Puig Brutau; além da Jurisprudência analítica de Austin e o realismo jurídico norte-americano de Pound e Dworkin, na área do common law.

Não obstante a contínua evolução dos métodos jurisprudenci-

ais em direção à determinação mais justa do Direito, como veremos, a-inda se observa uma continuidade do Positivismo normativista legislado.

Assim, Zitelman, 8 em célebre alocução, sustentou que no Di-

reito não há lacunas e por isso o juiz nunca estaria impossibilitado de julgar por falta de disposição legislativa; portanto, nada teria que suprir.

Kelsen, em suas obras Teoria Pura do Direito e Teoria Geral

das Normas 9, apresenta uma concepção do ordenamento jurídico e a identificação de Direito e norma coativa emanada dos escalões da or- 7. Seja-nos permitido apenas enunciar as principais metodologias jurisprudenciais, sem a-

preciá-las em detalhes, pois não caberia neste trabalho. 8. VALLET, op. cit. , p. 978 9. Idem, p. 981ss.

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ganização estatal, inclusive a identificação do Estado com o Direito. So-bre esta teoria assim se pronunciou o jurista Hernandez-Gil:

“El logicismo que tantas veces se ha imputado a KELSEN descansa, sobre todo, en la abstracción y el formalismo, y no en el desarrollo de un discurso lógico. La verdad y la falsedad, valores esenciales en la lógica clássica, están por completo ausentes de su pensamiento jurídico, que considera como categorías fundamentales la validez y la invalidez”.10

Quanto a Norberto Bobbio, 11 verifica-se um retorno ao logi-cismo interpretativo das leis segundo a vontade do legislador, partindo do pressuposto da plenitude do ordenamento positivo e de sua auto-integração, concepção esta que é antes nominalista que positivista.

Apesar disso, confessa Bobbio que

“la interpretación del derecho hecha por el juez no consiste nunca en la simple aplicación de la ley en base de un procedimiento puramente lógico; aunque no se advierta, para alcanzar la decisión él deve introdu-cir siempre valoraciones personales, efectuar elecciones que no se hal-lan vinculadas al esquema legislativo que deben aplicar”.12

Em reação ao Positivismo legalista e ao Conceptualismo sur-giu o movimento do Direito livre, sob formas diversas, iniciado por Bü-low, com a tese de que “a lei não produz por si mesma o Direito, senão que somente o prepara, ao passo que a criadora do Direito é somente a sentença do juiz”;13 e depois Ehrlich, com a Sociologia jurídica, falou pe-la primeira vez em uma “livre ciência do Direito”, em que não se pode excluir a personalidade do juiz da decisão judicial, procurando encontrar fora da lei critérios objetivos aos quais devia estar vinculada a atividade do juiz; e também Kantorowicz (Gnaeus Flavius). 14

Convém aprofundar o pensamento de Ehrlich, sempre favorá-

vel à Jurisprudência aberta e influente; para ele esta é

“La única ciencia posible acerca del derecho, porque no se queda en las “palabras” sino que fija su mirada en los hechos que sirven de base al derecho, y porque, como toda auténtica ciencia trata de produn-dizar por medio del método indutivo - es decir, ‘observando los hechos y reuniendo experiencias’, ‘nuestro conocimiento de la esencia de la co-sas”. La misión de la sociologia del derecho‘ es buscar las fuerzas pro-pulsoras de las instituciones jurídicas’. Sólo posteriormente la jurispru-

10. Idem, p. 982. 11. Idem, Metodologia de las Leyes, N.262, p.262ss. 12. Idem, Metodología de la Determinación del Derecho, p. 987. 13. VALLET, op.cit., p. 989. 14. Idem, p. 993.

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dencia ‘ forma la norma jurídica en base a la percepción de la vida jurídi-ca y de la generalización de las vivencias de esa percepción”. 15

Maior relevo apresentou a Jurisprudência dos interesses (Es-cola de Tubingen), cujo ponto de partida foi a teoria de Ihering (0 fim do direito, A luta pelo Direito), por uma Jurisprudência teleológica e prag-mática, e que teve como principais mentores Phillip Heck e Max von Hümelin.

Fundada no conceito de “interesse”, Heck apresenta uma fun-

ção metodológica na decisão judicial, segundo a qual “el juez está vinculado por los juicios de valor que resultan de la ley,

y eventualmente también por aquellos que dominan en la comunidade de derecho, de tal modo que la valoración personal del juez no intervie-ne sino de un modo totalmente subsidiario” .16

A Jurisprudência de interesses, no fundo, era uma derivação

do positivismo segundo o conceito de ciência em que o “interesse” já tráz em si uma conotação econômica; de fato, Heck coloca no mesmo plano os bens “ideais”, como a liberdade, a segurança, a justiça, a res-ponsabilidade, e os materiais, levando a pensar no conceito de utilidade de Bentham 17.

Num extraordinário esforço para superar o método exegético, François Gény elaborou precisa doutrina sobre a livre investigação cien-tífica, voltada para a interpretação e aplicação do Direito, explicando que o intérprete

“Debe investigar, por sí mismo, las exigencias de la naturaleza de las cosas, y las condiciones de la vida, siempre que no sea detenido, para ello, por un mandato imperioso (fuente de derecho formal) que limi-te su apreciaciõn, o la excuse por entero, porque dicte inexcusablemen-te a su juicio la solución. En suma, salvo estas reglas imperiosas que lo dominen, y antes las que debe inclinarse toda voluntad individual, la in-terpretación jurídica nos parece indiscutiblemente soberana de sus deci-siones, sin más cortapisas que el fin mismo de su misión, y recibiendo sus inspiraciones en el gran fondo de justicia y de utilidad social que a-limenta la vida orgánica del derecho”. 18

Sobre a livre investigação científica, propriamente, Gény afir-ma que

15. Idem, p. 998. 16. Idem, p. 1021. 17. Idem, ibid., pp. 1024-1025. 18. Idem, p. 1039.

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O acesso à Justiça 235

“... el trabajo que incumbe al juez, me ha parecido poder calificarse: libre investigación científica; investigación libre, toda vez que aquí se subtrae a la acción propia de una autoridad positiva; investigación cientí-fica, al propio tiempo, porque no puede encontrar bases sólidas más que en los elementos objetivos que sólo la ciencia puede revelar”.19

Recomenda ao intérprete penetrar até o último fundo da natu-reza das coisas, abrir a Jurisprudência para permitir-lhe plenificar com-pletamente sua missão, uma ordem de investigações mais ampla e mais livremente científica, buscando, para isso, não só os elementos positi-vos da organização social, a natureza social e individual da humanida-de, para arrancar dela o segredo das regras que devem dirigí-la.20

Contemporaneamente, na Alemanha, vem predominando o

método da Wertungsjurisprudenz - Jurisprudência de valores ou estima-tiva.

Junto com ela volta a surgir a consideração da “natureza das coisas” e também, em primeiro lugar, dos princípios judiciais suprale-gais.

“Si la jurisprudencia fue, sin duda, en su estruturación originaria una manifestación del positivismo científico, su transformación en jurispru-dencia de valoración, y, aún más, su nuevo giro hacia la “naturaleza de las cosas” y a los principios jurídicos supralegales representa una re-nuncia al positivismo, corriente que, en la filosofia jurídica alemana actu-al, corresponde a la aspiración de descubrir estructuras intemporales “lógico-objetivas” del derecho, y un sistema, inmanente al derecho, de valores e ideas experimentados históricamente, en cierto modo de dere-cho natural relativo”. 21

Esta interpretação valorativa dos atos conforme circunstân-cias, motivos, fatos, é a Jurisprudência de valoração ou estimativa, co-mo vimos; ora, dentre estas teorias, temos no sistema anglo-americano bem do judge made law, a lei feita pelo juiz, como se fosse legislador.

O sistema do precedente, na Inglaterra, nos Estados Unidos e

outros países como o Canadá, é uma realidade jurídica, tem primazia sobre a lei. O juiz americano tem liberdade maior que o do Direito conti-nental, parecendo derivar para uma espécie de direito livre. Tanto assim

19. Idem, p. 1044. 20. Idem, p. 1048. 21. VALLET, citando Larenz. Op.cit., p. 1207.

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O acesso à Justiça 236

que, para os americanos, como disseram vários autores,22 "o direito é o que o juiz diz que é"; e isto está de acordo com as escolas americanas.

O professor norte-americano Christopher Wolfe, em alentado

estudo informa que “... o surgimento do juiz legislador constitucional es-tá sendo a característica mais surpreendente dos nossos tribunais fede-rais desde o fim do século XIX”; indica ter havido três “eras” distintas na formação deste costume judiciário: a tradicional (correspondente aos primeiros debates constitucionais, desde Blackstone e o “Federalist”); a de transição (época das discussões sobre privilégios e imunidades, o ‘due process’, liberdade de comércio, liberdade de expressão); e a mo-derna (sentimento de necessidade de mudanças, em que o juiz surge como legislador do bem-estar social). 23

4. O uso alternativo do direito

No Brasil, o uso alternativo do Direito, introduzido em alguns setores jurídicos há alguns anos, será um modismo que vai passar, co-mo passou em países do Direito continental. É uma tendência de alguns operadores do Direito ver, parcialmente, apenas o lado social das con-trovérsias; se quisermos, seguindo uma linha pela opção preferencial aos pobres.24 É uma extravagância cultural e jurídica, o chamado "Direi-to achado na rua", até como movimento contestatário do Direito objeti-vo.

As consequências, desejadas ou não, levam à anarquia ou ao

niilismo jurídico, pois sua praxis encerra distorções filosóficas e ao pró-prio Direito. Na verdade, pretendem, sem advertí-lo, instituir o uso da eqüidade e de um direito costumeiro atual, fora das tradições sociais.

No fundo, o que os defensores do uso alternativo do Direito

almejam, e de resto todos nós, e que constitui a própria destinação do Direito, é a humanização da Justiça, que implica e se funda no livre e efetivo acesso aos Tribunais.

22 Oliver Wendell HOLMES, Benjamin N. CARDOZO e outros. 23. The Rise of Modern Judicial Review (1986), pp. 3ss. 24. Cf. José Geraldo de SOUZA JR. Introdução crítica ao Direito. O Direito achado na rua

(1993); Horácio Wanderlei RODRIGUES. Ensino Jurídico e Direito Alternativo (1993); Jo-sé Eduardo FARIA. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça (1994); Elício DE CRESCI SOBRINHO. Justiça Alternativa (1991); Edmundo Lima de ARRUDA JR. (Org). Lições de Direito Alternativo (1991), dentre outros.

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O acesso à Justiça 237

Ulpiano já dizia que o Direito foi feito pelo homem e para o homem, como Cristo também dissera que o sábado era para o homem e não o homem para o sábado. Significa que a pessoa humana é superior a todas as coisas, ao sábado e ao próprio Direito; portanto, esta huma-nização do Direito, interessa-nos a todos, juristas e aplicadores da lei, mas seu uso indeterminado não deve ser causa de incerteza jurídica, à qual leva o uso indiscriminado do Direito, por não conferir estabilidade e segurança nas decisões dos juízes.

De fato, há dentro do ordenamento jurídico, institutos como a eqüi-dade e o direito costumeiro, que se podem interpretar e aplicar adequa-damente aos fatos e às próprias leis. Assim, uma norma pode ser apli-cada rigorosamente num caso e com eqüidade em outro semelhante, porque depende das circunstâncias de cada fato típico. Mas não deve ser uma interpretação exótica ou personalística, para não cair no indivi-dualismo judicial, em que o juiz se arroga o direito de pensar como ele acha que é o Direito, e não como realmente o Direito é.

Ora, na tentativa de definir o que é "alternativo", o Di-reito ou a Justiça, encontraremos algumas trilhas para uma possível compreensão do fenômeno, até mesmo como contribuição para a evo-lução dogmática do Direito: 1) Alternativo como substitutivo do Poder Judiciário; 2) Alternativo como substitutivo do Ordenamento jurídico; 3) Alternativo como rebeldia contra as instituições jurídicas; 4) Alternativo como libertação da Justiça (uma Justiça mais além do Poder Judiciá-rio); 5) Alternativo como Justicialismo; 6) Alternativo como revolução interna à instituição judiciária, e outros.

Não cabe dúvida que muitas críticas se podem dirigir: a) con-

tra o Judiciário burocrático na aplicação da Justiça; b) contra os conteúdos do Direito positivo vigente; c) contra o sistema ou ordena-mento jurídico como um todo; d) contra os demais Poderes da Repúbli-ca democrática, opressivos e inoperantes.

Quais as soluções "alternativas" para a crise da Justiça? Parece-nos urgente: 1) reformar o ordenamento, sem destruir

o templo; 2) ampliar os espaços de atuação judicial, através de uma i-mensa rede de: a) juizados de pequenas causas; b) juizados de concili-ação; c) conciliação das partes, exaustiva e obrigatóriamente (real e não formal), em todas audiências; d) ampliação dos Códigos e Regimentos Internos dos Tribunais, para maior amplitude e liberdade de atuação dos juízes; e) aproveitamento da experiência de juízes aposentados (até a idade limite) para funções judicantes de alçada limitada; f) escritórios de conciliação nas Procuradorias de Justiça do Estado (com poderes à As-

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O acesso à Justiça 238

sistência Judiciária para lavrar acordos e homologá-los em Juízo); g) poderes às Secções e Subsecções da Ordem dos Advogados do Brasil para celebrarem acordos e homologá-los em Juízo, etc.

Vemos, portanto, que o vocábulo “alternativo”, seja aplicado

ao Direito ou à Justiça, é uma expressão equívoca. A Justiça é uma só, não podendo haver duas, donde não caber falar em alternatividade no campo da Justiça.

A expressão surge em momentos de crises nas instituições

do Judiciário, em sua pesada burocracia, no aumento incontrolável da liti- giosidade aparelhada, na inexistência de mecanismos ágeis para enfrentar a massa de ações tanto em primeira como em segunda ins-tância, e em muitas situações.

Momentos de crise política e econômica geram acentuações

de incerteza do direito, que necessitam ser atendidas para devolver a paz social.

O fenômeno é, pois, de crise do Direito e da Justiça, como conjunto de instituições e mecanismos para atender à demanda de inte-resses subjetivos desprotegidos.

Antes de encontrar caminhos alternativos para a Justiça ca-

be descobrir instrumentos alternativos para a aplicação do Direito, para distribuir justiça aos dela necessitados. 25

Ora, o “exercício arbitrário das próprias razões” (art. 345 CP,

por particular); ou o “exercício arbitrário ou abuso de poder” (art. 350, pelo Estado), como meios alternativos de pacificação social, são crimes.

Para novas soluções não-jurisdicionais dos conflitos, conside-

rados como meios alternativos de pacificação social, encontramos como características a ruptura com o formalismo processual, a gratuidade, e a delegalização ou liberdade nas soluções não jurisdicionais (juízos de eqüidade, não de direito).

Como meios alternativos de pacificação social podem ser uti-

lizados o arbitramento e a conciliação (CLT, arts. 847 e 850; CPC, arts. 342 e 447-448, esta a qualquer tempo, como poder ético do juiz). 26

25. CINTRA-GRINOVER-DINAMARCO. Teoria Geral do Processo, N.5, p. 26. 26. Cf. nosso Poderes Éticos do Juiz (1987), p.116.

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A conciliação aparece prestigiada na Lei dos Juizados Espe-ciais Cíveis e Criminais, arts. 22-26; e a Constituição Federal instituiu a Justiça de Paz (art. 98, II), com “atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional”; a arbitragem também tem guarida no CC, arts.1037-1038; e no CPC, arts. 1072, 1102. 27

É evidente que o Direito, por gerar segurança, não pode ser

atingido na sua base, na sua essência, nos seus próprios fundamentos; mas pode ser alterado naquilo que é temporal, cambiante , acidental, variável e múltiplo, que implica na sua mais justa aplicação.

A alternatividade do Direito pode e deve ser exercitada dentro

da ordem jurídica, como, v.g., na aplicação das penas: para quem tem patrimônio devem ser aplicadas multas, proporcionalmente às suas pos-ses (requisição da declaração do Imposto de Renda para aferição do quantum suportável e até para eventual indenização), e/ou prestação de serviços à comunidade; para quem não tem posses, prestação de serviços à comunidade, preferencialmente em locais relacionados com o tipo de delitos praticados: hospitais, creches, asilos, centros sociais, serviços com o próprio veículo, etc.

Com muita oportunidade o Ministro José Paulo Sepúlveda

Pertence, do Supremo Tribunal Federal, em entrevista aos jornais, de-fendeu a criação de mecanismos especiais junto ao STF e outras ins-tâncias judiciárias, para que as decisões transitadas em julgado pela inconstitucionalidade de matérias, sejam aplicadas a todos os proces-sos semelhantes evitando “perda de tempo, de verbas e o desgaste da máquina judiciária". 28 "Pode-se constatar que se perde muito tempo e dinheiro questionando pequenas dúvidas, quando os juízes poderiam estar ocupados com questões mais importantes". “O melhor instrumento seria a adoção de ações coletivas no lugar das individuais, como é co-mum agora".29 27. Nesse sentido há Projeto de Lei do então Sen. Marco Maciel, regulamentando a arbitra-

gem extra-judicial. 28. Afirmou o Ministro que o STF julgara, em 1991, milhares de processos de argüição de

constitucionalidade, dos quais "um terço foi sobre imposto compulsório na compra de carros, um por um, quando o mais prático seria um deles ser decidido e os demais se tornarem definidos".

29. MINISTRO DO STF sugere adoção de mecanismos especiais. Jornal do Magistrado, S. Paulo, Junho/92. Também o Min. José Carlos Moreira Alves manifestou preocupação com a sobrecarga de ações; para desafogar o Supremo e também aliviar a carga de a-ções nas demais instâncias na Justiça, as providências seriam “a adoção da eficácia vin-culante e do instituto do incidente de inconstitucionalidade nas ações diretas”; que as questões mais se avolumam por conta da correção monetária e dos direitos adquiridos; para isso, conclui, “o incidente de inconstitucionalidade impediria no nascedouro as pere-grinações pela justiça”. Jornal do Conselho Federal da OAB, Nº 42 (1995), p. 9.

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O acesso à Justiça 240

Não obstante, é crescente a influência das decisões alternati-

vas em Tribunais, de forma a se poder falar em uma jurisprudência al-ternativa”, cuja influência no Direito vem sendo observado com agudo interesse. 30

5. A nova Lei de Aplicação das Normas Jurídicas

Verifica-se, portanto, estar maduro o momento oportuno de se promover urgente atualização da Lei de Introdução ao Código Civil; após a reforma de 1942, houve a frustrada tentativa de modificá-la, através do Projeto Haroldo Valladão. 31

A LICC foi objeto de atualização pelo saudoso jurista, sob o tí-

tulo de Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas, abrangendo toda a legislação e não apenas o Código Civil; transformado no Projeto de Lei n.º 264/84, sob o nome de “Código de Aplicação das Normas Jurídi-cas”, lamentavelmente foi arquivado pelo Congresso Nacional.

Por sua relevância na modernização do sistema, impunha-se

um novo Projeto, como manifestou tempestivamente o Prof. João Gran-dino Rodas,32 jurista que integrou Comissão do Ministério da Justiça, a qual elaborou o anteprojeto da nova Lei de Aplicação das Normas Jurí-dicas, encaminhado ao Congresso Nacional.

Trata-se, pois, de um novo contributo doutrinário, com nítidas

referências à dimensão da Jurisprudência como fonte do Direito. 33 Ao vigorarem as novas regras, poderão os Juízes e Tribunais adotar uma vinculação mitigada ou mínima aos seus próprios precedentes, com a consequente obrigação de fundamentarem suas mudanças de critério, para que haja eficaz segurança de igualdade na aplicação da lei, como indispensável garantia dos direitos fundamentais. 34

Pelo sistema processual brasileiro, o juiz deve decidir segun-

do a lei, e, não a havendo, por analogia, pelos costumes ou segundo os 30. Veja-se muito a propósito, a obra de Amilton Bueno de CARVALHO, Direito Alternativo

na Jurisprudência (1993). Contra o Direito Alternativo, em análise jusnaturalista, v. o tra-balho de Gilberto Callado de OLIVEIRA, A verdadeira face do Direito Alternativo (1995).

31. Publicado pelos Decretos Nº 51.005/1961 e Nº 1490/1962. Rio, Imprensa Oficial, 1964. 32. “Substituenda est lex introductoria”, Revista dos Tribunais, v. 630, p.243. 33. O Anteprojeto traz em seu art. 3º a seguinte redação: “Dever de decidir - O juiz não se

eximirá de julgar alegando inexistência, lacuna ou obscuridade da lei. Nessa hipótese, em não cabendo a analogia, aplicará os costumes, a Jurisprudência, a doutrina e os princípios gerais de direito.”

34. OLLERO, op.cit., p.102.

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princípios gerais do Direito (art. 126 do CPC); mas o art. 127 veda, ex-pressamente a aplicação da eqüidade, salvo permissões legais, em nú-meros quase digitais.

Ora, o novo Anteprojeto da Lei de Aplicação das Normas Ju-

rídicas 35, visando ampliar a extensão do atual art. 5º da LICC, deu-lhe nova e moderna redação:

“Art. 4º. Aplicação do Direito - Na aplicação do direito, respeitados os seus fundamentos, serão atendidos os fins sociais a que se dirige, as exigências do bem comum e a eqüidade” (grifamos).

E na Exposição de Motivos que o acompanha, o Sr. Ministro da Justiça justifica esta magnitude, enfatizando que, por este artigo

“pretende-se introduzir alteração significativa em face da lei atual-mente em vigor - art. 5º da LICC -, seja pela referência expressa à utili-zação da eqüidade, enquanto ‘justiça amoldada à especificação de uma situação real’ (Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, São Pau-lo, Saraiva, 1986, p. 295), seja pelo uso, deliberado, da palavra direito, a sinalizar para a diferença entre lei e direito, cada vez mais encarecida pelos juristas contemporâneos, comprometidos com a realização da i-déia do justo e do legítimo, em contraposição ao ideário positivista, que identificava o justo com o simplesmente jurídico”.

A seguir, refere-se especificamente à expressão do art. 4º ci-tado, de respeitar os fundamentos do direito, advertindo:

“A referência, que se faz expressa, à necessidade de respeito aos

fundamentos do direito, sinaliza o dever, que a todos se impõe, de não violar a própria ordem jurídica, a pretexto de encontrar soluções justas, pois o sentimento de justiça do juiz, para encontrar receptividade e apoi-o, há de refletir a consciência jurídica geral, e não uma particular con-cepção axiológica” (Grifamos).

Concluimos, neste sentido, ser oportuno enfatizar o caráter objetivo e político do Direito suíço, que permite ao magistrado atuar co-mo Juiz de Direito e de Eqüidade, sem contraposições. 36

35. Apresentado pelo Ministério da Justiça ao Congresso Nacional, foi elaborado pelos Ju-

ristas Professores Rubens Limongi França, João Grandino Rodas (das Universidades de São Paulo-USP e Estadual Paulista-UNESP), Inocêncio Mártires Coelho, da Universida-de de Brasília-UNB, e Jacob Dollinger, da UERJ.

36. Cf. MANAÏ, Dominique. Le juge entre la loi et l’équité. Essai sur le pouvoir d’apprécia-tion du juge en droit suisse (1985). O Código Civil Suiço, de 1907, em seu art. 4º dispõe ma-gistralmente que “Le juge applique les règles du droit et de l’équité, lorsque la loi réserve son pouvoir d’appréciation ou qu’elle le charge de prononcer en tenant compte soit des circonstances soit des justes motifs”.

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6. As transformações constitucionais do Direito

Parafraseando Ortega y Gasset ("eu sou eu e minhas circuns-tâncias"), podemos afirmar que o homo juridicus é ele e seus direitos, subjetivos e objetivos, em perfeita integração dinâmica. Todo cidadão convive inserido em seu ordenamento nacional e carrega um conjunto de direitos próprios, particularmente seus (o patrimônio jurídico de ser pessoa), reconhecidos e assegurados pela ordem jurídica, pois o uni-verso jurídico existe para o homem e o homem para a ordem, a harmo-nia.

Estes direitos da pessoa são "conhecidos", primariamente,

pelo Direito natural e, secundariamente, vêm a ser "re-conhecidos" pela ordem positiva, que lhes dá garantias de seu pleno exercício; de fato, hodiernamente, com a crescente consolidação democrática dos povos, tais direitos individuais e os coletivos, mais e mais se qualificam como direitos humanos e sociais.

Haveria, com isso, um reducionismo do Direito positivo aos di-

reitos do homem? Parece que não, mas sim uma inversão de sinais: tu-do indica que o Direito Público não mais se serve do Privado, mas serve a este; o todo (representado pelo Estado), volta-se a serviço da diversi-dade (os particulares, que somos todos os cidadãos).

Os direitos subjetivos, portanto, não apenas constituem uma

categoria reconhecível e válida dentro do ordenamento jurídico, como passaram a se identificar ou se redenominar direitos humanos. Direitos humanos ou do homem são direitos do sujeito; dito de outra forma, os direitos subjetivos ou do sujeito integram-se nos chamados direitos do homem.

Relacionando o Direito natural com os princípios da Justiça, afirma Coing que:

“El núcleo del iusnaturalismo moderno son los derechos del hombre.

Éstos se basan en la exigencia moral de respetar la dignidad del hombre como persona moral, exigencia contenida en la idea del derecho. El de-recho al respeto que resulta para la comunidad jurídica y es el funda-mento de la necesidad de reconocer derechos subjetivos en general. Pues con el reconocimiento de derechos subjetivos la comunidad jurídi-ca reconoce que existe una esfera de la vida y unos determinados bie-nes en los que el individuo es protegido y sobre los cuales [bienes] pue-den disponer según sus propias finalidades sin ser dirigido por la comu-nidad jurídica. Esa esfera y esos bienes son expresión del hecho de que el orden jurídico reconoce el derecho de autodeterminación del individu-o. Al reconocer, pues, los derechos subjetivos y protegerlos, el orden ju-

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rídico responde al mandamiento de la idea del derecho que exige se respete al hombre como persona.” 37

As novas Constituições acabam por "envelhecer" as leis anti-

gas, ampliando os "princípios de Justiça"; muitos direitos, contidos nas leis positivas, sofrem mutações: ou a lei passa a dizer “menos" do que a Constituição enunciou, ou simplesmente não expressam esses direitos; são casos de ”contradições, ambiguidades e lacunas”, abertas com a ampliação constitucional de direitos, próprias à atuação do Direito Alter-nativo, inclusive. 38

Ressalta como relevante, neste campo, o papel dos Tribunais

em determinar e colmatar essas lacunas (ou "minimização" dos direi-tos), interpretando extensivamente as normas deficientes, de forma a compatibilizá-las com o novo patamar a que a Constituição elevou es-ses direitos. 39

7. O Poder Normativo de um Tribunal Constitucional A missão de um Tribunal Constitucional, (como incumbe ao nosso STF), é hodiernamente a de garantir os direitos fundamentais, que constituem a moldura do ordenamento jurídico de todas as de-mocracias.

A Jurisprudência constitucional exerce papel vivificador glo-bal: a) na garantia dos direitos humanos; b) na conservação das nor-mas emanadas da soberania popular; c) no respeito ao âmbito de a-tuação do próprio Poder Judiciário.

O dilema de se considerar o juiz submetido à lei ou ao prece-dente, Andrés Ollero manifesta ser artificial, pois a “independência ju-dicial” é somente ad intra, mas não ad extra, em relação a fatores de pressão metajurídica; todavia, deve-se reconhecer que o precedente provoca forte estaticidade do ordenamento, porque termina sendo mais vinculante que a lei.

Parece, que o precedente supõe uma maior vinculação do ju-iz; entretanto, ao realizar sua tarefa interpretativa o juiz acaba, para-

37. Fundamentos de Filosofía del Derecho (1976), p. 180-81 Cf. Jacques MARITAIN. Os

Direitos do Homem (19..); Yves Gandra da Silva MARTINS, A jurisprudência integrativa e o ideal de Justiça (1989); A cultura do jurista (1993).

38. Cf. Amilton Bueno de CARVALHO, Direito Alternativo na Jurisprudência, p. 11. 39. LEGAZ Y LACAMBRA, dissertando sobre a hierarquia das normas, que nos termos da

Escola kelseniana se poderia chamar de “construção escalonada da ordem jurídica”, lem-bra que "cada ato de concreção estabelece um plus de conteúdo sobre a norma mais geral". Introducción (1943), p.187.

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doxalmente, “desvinculado” da lei, e com esta liberdade poderia aten-tar contra o princípio da segurança jurídica. 40

Citando outro escritor, assevera Ollero que

“la vinculación al precedente (es) una relación dialéctica entre datos jurídico-formales, por una parte, y ético-sociales por otra, que entronca-ria con planteamentos éticos procedimentales o comunicativos, hasta convertir el juego de los recursos en una relación dialéctica entre las de-cisiones de los órganos inferiores y del órgano superior, dentro de un discurso garantizante de la verdad”. 41

Entende que a Jurisprudência constitucional cumprirá um pa-pel vivificador global, atuando, sobretudo, na garantia dos os direitos humanos, sem prejuízo de seu especial interesse em conservar as normas emanadas da representação da soberania popular, e em res-peitar o âmbito de jogo do Poder Judiciário, mediante prudentes me-canismos de auto-controle.

Enfocando uma nova dimensão da tarefa judicial, afirma que “lo establecido de modo regular como razonable vincula, a no ser que se razone la conveniencia de un cambio” 42; cita aresto do Tribunal Constitucional espanhol segundo o qual precedentes relevantes são “aquellos que constituyen una doctrina jurisprudencial ya consolida-da”, e o órgão que se aparta, sem fundamento, da doutrina assenta-da, de modo reiterado e ininterrupto, lesionaria o direito à igualdade na aplicação da lei. 43

Os precedentes, se não determinam o conteúdo das decisões ulteriores, impõem, de fato, a exigência de uma reflexão ponderada, através da devida motivação. 44

Considera haver atualmente um processo de maturação da doutrina da igualdade na aplicação da lei, em que o problema do con-trole “concentrado” da constitucionalidade-garantia dos direitos fun-damentais só pode ser resolvido por um Tribunal constitucional 45; ob-serva-se, com isso, um decisivo influxo no ordenamento pela “eficácia

40. Andrés OLLERO TASSARA. Igualdad en la aplicación de la ley y precedente judicial

(1989), p. 89. 41. Idem, p. 92, nota 163. 42. Idem, p. 95. 43. Idem, p. 95, nota 174. 44. Idem, p. 98. 45. Idem, p. 100-101.

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persuasiva” da Jurisprudência constitucional, sobretudo no campo das medidas assecuratórias. 46

8. Conclusões

A certeza jurídica que advém da decisão judicial será sempre justa?

Todas as decisões, obviamente, devem ser certas, ou seja, de acordo com o Direito, desde as sentenças de 1º grau até a Súmula do Supremo. Nesse sentido as expressões do CPC quando, p.ex., fala que “a sentença deve ser certa...”, decisão certa (art. 460, § único), etc.

Qual a garantia de que a certeza do Direito será justa? Depende, em qualquer sistema jurisdicional, em qualquer or-

denamento, da qualidade dos seus juízes, da sua cultura, sensibilidade social, maior ou menor apego à legislação, enfim, da probidade e ido-neidade dos julgadores, em todos os níveis. 47

Quanto à vinculação em si, facilita, simplifica a prestação ju-

risdicional? Não tornaria estático o Direito? Não interessa aos detento-res do Poder? Seriam estes os autênticos representantes da Socieda-de?

Parece-nos que, assim como as leis são políticas na sua ori-

gem e conteúdo, a jurisprudência vinculativa nunca estaria isenta de uma carga política, pois dificilmente haverá decisões politicamente as-sépticas, simplesmente porque os poderes, embora autônomos e har-mônicos, não são estanques, mas interdependentes.

Mas o resíduo político que as súmulas possam conter (e fa-

lamos desde já quanto às que existem), será sempre muito inferior ao conteúdo político das leis, estas sim, feitas no interesse dos detentores do poder, em certo momento da vida nacional (haja vista as reformas constitucionais...). 48

46. Idem, p. 101. 47. Cf. Ives Gandra da Silva MARTINS, A Cultura do jurista, Cadernos de Direito Tributário

e Finanças Públicas da Rev. Tribs., v. 2 (jan-mar 1993), pp. 20-24. O que o ilustre pro-fessor alude no referente aos advogados, cabe inteiramente aos magistrados, igualmen-te bacharéis e operadores do Direito.

48. Bastante ilustrativa é toda a legislação elaborada de 1964 a 1985, no exclusivo interesse da Segurança Nacional e do Desenvolvimento Econômico, ideologia política que então prevaleceu no País.

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Quanto à mobilidade ou mutabilidade do Direito, parece não se confundir com flexibilidade ou adaptabilidade do mesmo.

O Direito (lei positiva) não é flexível (enquanto viger com a-quela forma legal), mas é mutável (pela revogação, extinção, derroga-ção da lei); enquanto a jurisprudência (uniformizada ou sumulada) é fle-xível (variável de caso a caso) e é mutável (por nova uniformização ou sumulação).

Ora, por maior que seja o número de súmulas com vinculação obrigatória, não alcançarão o mesmo nível cogente das leis, que é ge-ral. Para tanto, como já mostramos, o juiz detem a autoridade da moti-vação, e os advogados a cultura, o engenho e a arte para argumenta-rem em contrário às súmulas, oferecendo valiosos subsídios para o juiz não aplicar, repita-se, fundamentadamente, precedentes vinculantes.

No tocante à uniformização e sumulação da jurisprudência,

a idéia fundamental é dar celeridade aos processos, primeiramente, e atribuir eficácia erga omnes às decisões sobre questões jurídicas rele-vantes, em seguida, dentro de um sistema de controle judicial de consti-tu- cionalidade:

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE INCIDENTAL, CONCRETO OU DIFUSO

A B C D N Lei X A Lei X (Norma ou Ato Administrativo) é declarada inconstitucional em

alguns casos semelhantes e sucessivos. Esta reiteração exige uma declaração de uniformização célere, por se tratar de questão jurídica relevante, que a segurança jurídica.

É um processo de lacuna ao inverso: uma regra legal, ata-

cada por vários cidadãos, torna-se vazia, e reclama declaração judicial única e superior às demais decisões.

Todos os casos de constitucionalidade são questões jurídi-

cas de suma relevância porque afetam diretamente as partes, no exer-cício de seus direitos subjetivos e da cidadania; tocam na eficácia da aplicação do Direito pela Jurisdição, que deve ser uniforme, seja dentro

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do mesmo âmbito de competência, seja em outro paralelo (Justiça Es-tadual, Federal, Trabalhista, etc); abalam a própria ordem jurídica, en-quanto impugnam normas fundamentais, que são as Constituições Fe-deral e Estaduais.

As sentenças que declaram inconstitucionalidade são, poris-

so, jurídicamente relevantes e interessam diretamente à ordem jurídica, cuja tutela compete, em última instância, ao STF.

Não se discute, portanto, a autonomia, a livre convicção e a

auctoritas do juiz de 1ª instância para conhecer e declarar a inconstitu-cionalidade, mas, dada a relevância jurídica do thema decidendum, se-ria de conveniencia o recurso necessário,49 imediato à publicação da sentença (ressalvados os facultativos), mormente nas ações plúrimas sucessivas.

a. Eficácia das decisões dos Tribunais Superiores Podemos, como síntese conclusiva, fixar alguns entendimen-

tos pacíficos, que nos parecem sobre a questão: “Não é qualquer decisão que produz eficácia erga omnes”; “Toda decisão obriga, mas até certo ponto”; “Vincular é preciso, mas nem toda questão jurídica é passível

de vinculação”.

A quem interessa o efeito vinculante das decisões superio-res?

Aos Tribunais Superiores e mesmo intermédios; aos cidadãos com interesses coletivos.

A quem não interessa?

Aos advogados (por entenderem que não lhes preserva o mercado de trabalho); aos juízes inferiores (por acreditarem que perdem sua autonomia de juiz natural, ou a livre convicção para julgar, etc).

Controle “interno” do juiz não pode haver, pois não pode ha-

ver ingerências sobre a atuação in judicando, pois esta diz respeito à

49. V. CPC 475; LAP 19 caput; LD 22 § 1º; LC 76/93, art. 1381º; LMS 12 § único; L.

4348/64, art. 7º; L. 6739/79, art 3º § único; L. 7853/89, art. 4º § 1º; L. 2770/56, 3º.

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O acesso à Justiça 248

sua liberdade racional interior; apenas pode haver correição in proce-dendo!

Ademais, casos novos sempre haverá; jamais será excluída a

atuação do juiz em primeiro grau, sobretudo após o alto prestígio que a Constituicão conferiu aos juízes de primeira instância, e ao crescente número de novas ações em prol da cidadania.

Interessa aos Tres Poderes? 1. Ao Judiciário - sim, na medida que, atendendo ao interes-

se geral: a) não constitua um controle interno, b) venha desafogar as pautas de julgamento, em todas as

ins- tâncias, c) alivie as críticas da sociedade; 2. Ao Legislativo - relativamente; há prós e contras, pois

temem os legisladores eventual concorrência das decisões normativas; 3. Ao Executivo - sim, sempre que puder influir no Judiciário:

para obter garantias ou decisões favoráveis, especialmente nas grandes questões coletivas, como as que afetam o Erário Público (aumento de despesas, precatórios, etc).

Portanto, para que a eficácia erga omnes seja legítima, Espe-

ra-se um Judiciário independente, como a Suprema Corte Americana (alí, solidamente o sistema do Common Law privilegia o Judiciário, en-quanto no sistema brasileiro do Civil Law, a primazia das leis é do Exe-cutivo).

Para tanto, requerem-se juízes independentes, politicamente

desvinculados, verdadeiramente autônomos. Qualidade das decisões: a questão do quorum qualificado

é de suma importância para aceitação das súmulas vinculantes: ao in-vés de maioria absoluta (50% + 1), maioria de dois terços (8 Ministros no STF e 25 no STJ).

Questão relevante: todo juiz deveria ementar suas deci-sões e indicar na motivação a doutrina e jurisprudência em que se fun-damentou; e deveria ressaltar qual a questão relevante para efeitos dou-trinais.

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O acesso à Justiça 249

Motivação: uma súmula pode ser revogada por uma motiva-ção irrecusável, irrefutável, obra de jurista notável (desde a ação inicial), de um magistrado ilustre ou de um colegiado brilhante. Nestes casos, o julgador não aplica a súmula, mas, fundamentando com proficiência, demonstrará que a mesma não se aplica ao caso vertente, ou que deve ser alterada, em face de modificação das circunstâncias.

b. Vinculação a nível constitucional Importa determinar quais as questões de direito relevantes,

bem como o interesse e competência dos Tribunais Superiores; estabe-lecer o que deve vincular obrigatoriamente, destacando-se, desde logo, as decisões “pétreas” como intocáveis, ao nível dos direitos adquiridos ou dos casos julgados; e o que pode vincular, como facultativas; e, fi-nalmente, o que não pode (nem deve), por serem vedadas.

c. Vinculação a nível infra-constitucional

Da mesma forma, há que se definir o que deve ter eficácia

erga omnes: ações coletivas; ações civís públicas; o que pode e o que não pode, como os interesses particulares indisponíveis, os interesses públicos (administrativos, tributários, previdenciários, não constitucio-nais, etc).

d. Como pode/deve ser a eficácia:

- Horizontal: obrigatória internamente para cada Tribunal

(sistema de “jurisprudências regionais”), mais repertórios regionais; são importantes mas ainda não relevantes (porque não constitucionais).

Há que se orientar por um Sistema de Uniformização da Ju-

risprudência, nos termos em que foi regulado pelo CPC, mas atualizado diante das novas configurações constitucionais e leis posteriores visan-do os mesmos objetivos de reforma dos costumes jurisdicionais.

- Vertical: tratando-se de matéria constitucional, sim: direitos

e garantias fundamentais; as mesmas matérias do controle difuso de inconstitucionalidade; as decisões das Ações Diretas de Inconstitucio-nalidade; matérias de Direito público; questões reiterativas.

e. Mecanismos vinculantes ora existentes

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O acesso à Justiça 250

Não há negar que já funcionam em nosso ordenamento jurídi-co sistemas de vinculação, através do controle difuso, concreto ou inci-dental de constitucionalidade das normas, e também o controle abstra-to; também, a Reclamação, pelo STF e pelo STJ; e o Controle direto (in-tervenção nos Estados ou Municípios).

Igualmente, há vinculações já implícitas no ordenamento; e

vinculações expontâneas, qual o cumprimento persuasivo, expontâneo das Súmulas existentes (por acaso, as Súmulas não vinculam persuasi-vamente? Algum juiz descumpre súmula evidentemente ajustada ao Di-reito? Se não, desobedece em nome da liberdade de decidir?). Há tam-bém vinculações necessárias, bem como não-vinculações, vinculações inoperantes ou não abran-gentes no referente a: novas questões jurídi-cas infra-constitucionais; questões de família; questões penais; direitos indisponíveis, etc.

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Direito Alternativo e Eqüidade

SUMÁRIO: 1. O espectro de Newton - 2. Ideologia, o que é - 3. Uso alternativo e ideologia no Direito - 4. Uso alternativo e eqüida-de - 5. Os diversos tipos de eqüidade - 6. A eqüidade no CPC e na LICC - 7. Conclusão.

1. O espectro de Newton Se algumas pessoas tomassem para si cada uma das côres do arco-íris e dissessem: “Esta é a côr melhor e mais bela, a única com valor, e deve predominar sobre as outras!”, e fizessem delas o seu ideário de vida, a ponto de tudo colorir com aquele tom, teriam feito uma revolução na natureza: transformar uma Parte do Todo (ou do Uno) em outro “Todo”, fazer de uma visão ou pensamento parcial da realidade, outra “totalidade”. Dessa idéia parcial totalizada decorreriam várias idéias contrapostas: cada “dono” de uma côr a transformaria numa idéia superior, mais valiosa que as demais, estabelecendo conflito odioso entre elas, e não a harmonia do diálogo. Pois quem vê a Parte não vê o Todo; mas quem vê o Todo (ou o Uno) vê todas as partes dele. Quem faz de uma Parte um Todo, “totaliza” aquela parte da realidade, tem uma visão parcial e, portanto, distorcida do Universal. O mundo real, tanto o da natureza das coisas, como o metafísico das idéias, é o ser completo, universal, em concreção e não o parcial, em isolamento. O mundo é feito “de idéias” e não “de uma idéia”. Bem por isso, quem raciocina somente com uma Parte do Todo cria uma visão “totalitária”, que, não obstante, é uma visão apenas “parcial” da realidade. O médico cardiologista, se pensar que sua especialidade (visão ou estudo parcial da medicina) é a mais importante, porquanto se o coração pára cessa a vida humana, terá uma visão parcial de sua profissão, pois todos sabemos que o coração só por si não basta para manter a vida, mas também os pulmões, os rins, o sangue, etc. são necessários, pois todas as coisas na natureza e no homem estão perenemente inter-relacionadas. Quem não sobe ao cume da montanha não terá a visão do infinito, que é o campo da mente humana: os céticos sempre se equivocaram,

Capítulo XIV

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Direito Alternativo e Eqüidade

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pois a inteligência do homem foi criada com aptidão para captar todas as realidades da natureza, do pensamento e dele próprio; se o homem ainda desconhece muitas coisas é porque não foram descobertas, mas muitas descobertas estão se realizando diuturnamente, bastando verificar a “rapidação” do desenvolvimento cultural e científico da humanidade no último século! Mas quem adota uma visão ou postura parcial das coisas permanece na planície, cujo horizonte será sempre limitado e finito, afirmando a sabedoria popular que “não vê um palmo adiante do nariz”. A visão da universalidade da natureza e do homem, como o conjunto das côres, quando atuada no campo da cultura, das idéias políticas ou das religiões, é expressão do pluralismo enfatizado na Constituição brasileira (Preâmbulo e art. 1º); ao revés, a valorização exacerbada de uma idéia, de um aspecto cultural, político, econômico ou religioso é exercício de um monismo que se transforma em fundamentalismo, radicalismo ou, em palavra-chave, numa ideologia. Enquanto a visão pluralista é abrangente de todas as manifestações dos homens, numa sociedade aberta,1e portanto amplia livremente as possibilidades de desenvolvimento integral do ser humano, pela inclusão de todas as demais expressões, a visão monista é um reducionismo anti-humano porque a adoção de um só pensamento ou práxis limita o mundo das idéias e da ação humana num só direcionamento, com a exclusão de todas as demais. O pluralismo, no entanto, que é centrífugo, mas não dispersivo, promove a inclusão das diversas idéias (ou côres) para um amplo diálogo,2 no inter-relacionamento de homens, grupos intermédios,3 partidos políticos, idéias culturais e pensamentos religiosos diversos, o monismo, que é centrípeto e individualista, promove, por uma dinâmica que lhe é intrínseca, a exclusão das idéias ou tendências diferentes, que se tornam “inimigas”ou “adversárias” ou “reacionárias”, provocando a polêmica ou conflito, que separa e mata, e não o diálogo que aglutina e vivifica.

1. Cf. Karl POPPER, A sociedade aberta e seus inimigos. 2. Isto é, para o Ágape, símbolo da amizade humana total e plena. Cf. PLATÃO, O Banquete. 3. Cf. Sílvio DOBROWOLSKY. O pluralismo jurídico na Constituição de 1988. In “Rev. Forense, v. 318 (1992): 138-142.

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O equilíbrio entre as duas tendências ou tensões está em que o pluralismo não pode excluir nada ou ninguém do diálogo (como no confronto entre as maiorias e as minorias de qualquer espécie), mas não deve incluir aquilo que não é objeto de discussão, como a natureza própria das coisas ou dos homens, quanto às leis naturais que devem ser respeitadas, como o direito natural à vida e à liberdade, à dignidade integral da pessoa humana, e suas decorrências. E o monismo “puro” não existe isolado da natureza e do homem, porque estes são essencialmente multifários, variegados, multifacetados, de sorte que, em relação ao homem, sobretudo, qualquer reducionismo é fraudador da inteligência, coator da liberdade e castrador da vontade, virtudes ou características naturais que constituem a integralidade do ser humano digno. Racismos, nacionalismos, bairrismos, trabalhismos, classismos sociais, fundamentalismos religiosos são idéias parciais, monistas e totalitárias, cujas sementes há quase dois séculos vêm sendo plantadas e vêm gerando “frutos amargos” que já convulsionaram - pela violência da guerra e das perseguições políticas - todos os povos da Terra, quase sem exceção, sem que daí resultasse um efetivo avanço para a Humanidade. 2. Ideologia, o que é Uma idéia forte, positiva, revolucionária, pode ser apreendida por qualquer pessoa, letrada ou analfabeta, homens ou mulheres, jovens ou adultos, estudantes ou operários, e apaixona radicalmente a pessoa toda, porque lhe arrebata o coração, como nas religiões. Mas uma ciência, como o Direito, só se conquista pela experiência, que supõe continuidade no trabalho, prático ou teórico, pois depende da inteligência; tanto é sábio o obreiro que se especializa em seu trabalho ao longo dos anos, como o intelectual, pelo estudo renovado por toda a vida. A ideologia não vê instâncias ou etapas para se alojar: é uma cren-ça, espiritual, intelectual ou política, que arrebanha em qualquer tempo e veda à razão outras experiências ou verdades; por não serem pluralistas, mas monistas e totalizantes, as ideologias são preconceituo-sas,comprometendo, assim, a construção da sociedade fraterna enuncia-da solenemente no Preâmbulo e art. 1º da Constituição, como já referido.

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Bem por isso, se de um lado é salutar a diversidade de opiniões para a construção de uma sociedade solidária, na Justiça a opinião ideológica (sempre política), compromete a construção de uma democracia sustenta-da no Direito Justo, ao criar decisões na ótica exclusiva de uma só ten-dência; 4 é um gosto, uma paixão ou uma religião, no sentido fundamenta-lista mais radical, e geralmente não admite contestação; em conseqüên-cia, conduz fatalmente a totalitarismos, de qualquer tendência. Se, no Brasil, p. ex., a política da “segurança nacional e do desen-volvimento” foi a ideologia do regime militar de 1964/85, que gerou confli-tos e injustiças sociais até hoje não resgatados, quê dizer das idéias polí-ticas que levaram ao nazismo5, ao fascismo e ao estalinismo ocidentais, 6 ou ao maoismo oriental, cuja práxis ainda continua a violentar a liberdade e a dignidade de nações inteiras? 7 3. Uso alternativo e ideologia no Direito O movimento denominado “uso alternativo do Direito” é uma autênti-ca Escola jurídica, que funda raízes em diversos sistemas filosóficos, co-mo o maquiavelismo, o positivismo político, a teologia da libertação; é, portanto, de forte conotação ideológica. Como todo movimento, deve passar, mas poderá deixar uma contri-buição crítica ao desenvolvimento do Direito justo, que deveria ser fecun-da e construtiva; como toda fonte de energia, se canalizada para o bem do Direito, dará frutos positivos, e não amaros! Não é uma instituição criada para ficar, como um ramo ou instituto do Direito (Direito público, do trabalho etc), mas é um método exegético na aplicação das regras jurídicas, tal qual a Escola do Direito livre, ou a doutrina da Livre Pesquisa do Direito.

4. “... o autêntico horizonte de totalidade se adquire quando a gente se coloca ‘sob o ponto de vista da integralidade’ e isto não pode coincidir com o ‘ponto de vista da práxis’, precisamente porque a práxis não é o integral mas se coloca extamente dentro dele. Por isso é que toda ideologia acaba por ser uma visão deformada da realidade em que o ‘parcial’ é elevado ao grau do ‘total’”. Cf. Evandro AGAZZI, Ideologia cientista e tecnocrática, in “Pensamento parcial e total. Investigações Filosóficas de Atualidade” (1977), p.28; também Sérgio COTTA, Ideologia, idem, pp. 17-26. 5. Na película “O Julgamento de Nuremberg”, como já referido anteriormente, ressalta a questão de que os juízes que aplicaram as leis nazistas contra os direitos humanos, consideraram, em sua defesa, que era seu dever acatar e cumprir aquelas leis, como justas e necessárias para a nação alemã. 6. Remember a queda do Muro de Berlim (9.11.1989), fim do socialismo real em todo o Leste europeu. 7. Não esquecer a revolta da Praça da Paz Celestial (Tianamen, Pequim, 3.6.1989), o aplastamento da Hungria (1956), os massacres na Checoslováquia (Bratislava, 1968), o regime de Pol Pot, do Vietnã do Norte, as revoluções que arrazaram diversos paises da África, etc.

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Guarda um ponto em comum com outras formas de pensamento u-tópico e práxis sociais: a opção preferencial pelos pobres, da teologia da libertação;8 pugna, idealisticamente, pelo ajustamento ou erradicação das diferenças sociais ou das situações sociais iníquas, pela simplificação da burocracia processual, pela adoção de medidas urgentes mais consentâ-neas com as exigências sociais, etc. Manifesta-se tanto na Magistratura quanto no Ministério Público; neste, através da iniciativa de inquéritos e de ações civis públicas quanto a escândalos administrativos, malversação de verbas, contratos de obras onerosos etc, já de si funções próprias dessa instituição exemplar. O quê dizer dessa visão parcial do Direito, surgida apenas há uma década na doutrina jurídica brasileira, e inexistente nos ordenamentos lati-no-americanos? A experiência pessoal de todo operador do Direito, sobretudo juízes e promotores, é a criatividade, o bom senso, a prudência jurídica, o dever ético de servir à cidadania sem abusar da autoridade, a qual é sempre de-legada, e nunca pessoal. Quando o funcionário público, qualquer que seja seu escalão e grau de autoridade, assume a parcela de poder de que foi investido por um dos Poderes estatais, e a transforma em algo próprio, de seu, olvidando que deve exercê-la em função de alguns cidadãos ou de muitos, e somente para eles; quando, portanto, não entende o poder como força instrumental para atingir um fim, que é o bem particular de um cidadão (seus direitos subjetivos legítimos) ou o bem comum de uma maioria (os direitos civis de uma categoria) ou mesmo da totalidade dos brasileiros (nas declara-ções positivas ou negativas de constitucionalidade), o exercício do cargo público não passa de arbitrariedade e abuso daquele poder, merecendo desprezo ou censura, seja dos cidadãos prejudicados, seja das autorida-des a que estão hierarquicamente vinculados. O princípio da autonomia no exercício das funções públicas, sobre-tudo a judicante, não é absoluto, antes sofre limitações bem definidas, contrárias a qualquer usurpação, para garantia da integração do ordena-mento jurídico e, portanto, da ordem social. Daí porque, não obstante a larga e fecunda contribuição que possam carrear as decisões “alternativas” do Direito, não podem ser totalmente livres e autônomas, a ponto de ensejarem um “novo ordenamento jurídi- 8. Cf. Documentos do CELAM: Medellin (1969), Puebla (1979), Santo Domingo(1992).

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co”, uma “jurisprudência alternativa” ou uma nova ordem social, pois estes só se alcançam e se efetivam ou através do processo legislativo democrá-tico, ou da revolução (seja de direita, seja de esquerda), que, agora, após 1985 no Brasil, e 1989 em Berlim, nunca mais deveria se repetir! 9 4. Uso alternativo e Eqüidade O que nos parece ressaltar positivamente no uso alternativo do Direi-to é uma busca incessante da eqüidade na interpretação e aplicação das normas jurídicas. Este ponto, comum ao Direito tradicional e ao alternati-vo, não é utópico, mas uma prática, experimentada por inúmeros povos e em diversas épocas, sem nenhuma rejeição, e até mesmo institucionaliza-do, como a epieikeia aristotélica, a aequitas romana, a benignitas canôni-ca e a equity inglesa.10 Foi somente a partir do Código Civil de Napoleão (1804) que se a-fastou o uso da eqüidade, ao proibir a interpretação das leis pelos juízes, sob pena de punição; este atrelamento do juiz ao legalismo estatal, fulcro da Escola da Exegese, provocou a reação contrária da Escola do Direito Livre e, assim, de um extremo se passou a outro; mas o senso comum ensina que a virtude está no meio e esta virtude, no campo da aplicação das leis, se chama eqüidade, que agora os cultores alternativos do Direito buscam aplicar sem a pressentir. 11 Pois bem, as principais formulações jurídicas da corrente alternativa fundam-se, coerentemente, na interpretação lata, para não dizer extrema-da, do artigo 5º da vigente Lei de Introdução ao Código Civil, que manda o juiz aplicar a lei atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exi-gências do bem comum. Ora, fins sociais e bem comum enquadram-se dentro da categoria dos conceitos jurídicos indeterminados, deixados intencionalmente pelo Legislador para o Juiz aplicá-los aos casos concretos, de acordo com as circunstâncias particulares, condições sociais, econômicas, políticas, cul-turais etc.12

9. A teoria dos “frutos da árvore envenenada” também se aplica às tentativas de repristinar experiências nefastas e mal sucedidas, que já provaram ser anti-democráticas e anti-jurídicas, por contrárias à digni-dade, à liberdade e aos direitos do homem. 10. Pier Giovanni CARON. “Aequitas” romana, “Misericordia” patristica ed “Epicheia” aristotelica nella dotrina dell’”aequitas” canonica (1971); Francesco D’AGOSTINO. Dimensioni dell’equità (1977); La tradi-zione dell’epieikeia nel medioevo latino. Un contributo alla storia dell’idea di equità (1976). 11. Vem a propósito parafrasear o discurso de São Paulo aos atenienses, no Areópago, após ver um altar ao “Deus desconhecido”: “esse Deus que aqui adorais sem conhecer, esse precisamente é que eu vos anuncio”... (Atos dos Apóstolos, 17, 23). 12. Cf. José Carlos BARBOSA MOREIRA, Regras de experiência e conceitos jurídicamente indetermina-dos, in “Temas de direito processual”, (1980), pp. 66ss.

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E este campo dos conceitos indeterminados, conceitos-válvulas ou flexíveis, ou standards jurídicos, é o específico e próprio da eqüidade, que se abre ao juiz precisamente quando este deve 1º determinar as várias regras de Direito aplicáveis, 2º selecionar e avaliar as disposições mais benéficas às partes, 3º interpretar as circunstâncias da controvérsia à luz das normas mais favoráveis ou menos lesivas, e 4º aplicar a solução mais justa, mais adequada ao caso, ou mais eqüitativa, seja amenizando o rigor da lei, seja suprindo eventuais lacunas, seja estendendo o sentido mais favorável da lei ao maior número de situações jurídicas ou que beneficiem o maior número de partes em confronto. Parece, pois, que o uso alternativo do Direito, excluindo-se sua car-ga ideológica, persegue o mesmo objetivo da corrente doutrinária que prestigia o Juízo de Eqüidade ao lado do Juízo de Direito,13 que vê e espera do juiz uma participação mais ativa, humanizadora do processo e criativa, nunca exclusivamente secundum legem, preferencialmente prae-ter legem, mas rarissimamente contra legem. De fato, o juiz não é la bouche de la loi,14(que julga segundo a lei), mas também não deve ser usurpador (quando decide contrário à lei, salvo declarando a inconstitucionalidade, especialmente quando injusta); ao re-vés, deve o juiz encarnar a Justiça, lançando um olhar abaixo (para as cir-cunstâncias do fato) e outro acima (para o Direito justo, a eqüidade), ser-vindo-se da lei apenas como guia ou farol, o que significa decidir sempre a par da lei, mas buscando resultados além dela própria. Para os juízes, o nó górdio nas decisões é quando deve enfrentar o problema da lei injusta: a Justiça, em primeiro lugar, é virtude inata ao homem, é a primeira experiência das crianças, v.g., ao sentirem que um castigo é injusto ou que algo lhes é devido; depois é ciência, que se a-prende teoricamente dentro de uma escala de valores; e a final é prudên-cia, virtude prática que consiste em equilibrar os extremos, conciliar anta-gonismos, compor situações humanas dramáticas, enfim, dar a cada um o que lhe é devido, não só legalmente, segundo o Direito positivo, mas so-bretudo conforme a uma Justiça ideal.

13. Cf. tradição no Direito suíço, art. 4º do Código Civil: O juiz aplica as regras de direito e de eqüidade quando a lei lhe reserva seu poder de apreciação ou o encarrega de decidir levando em conta as circuns-tâncias ou os justos motivos. 14. Como pretendia Montesquieu em seu L’esprit des lois, contrariamente à sua bela concepção da Justi-ça.

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Assim o juiz, diante de uma lei que “sente” ser injusta, “sabe” que o é, e em conseqüência, não a “pode” aplicar, e dado que não lhe é lícito o non liquet, nem tão pouco julgar contra legem, somente lhe cabe enfrentar o desafio utilizando métodos interpretativos de lógica razoável,15nada mais que a aplicação das regras da eqüidade;16 ou declarar a inconstitucionali-dade da lei e recusar sua aplicação sob este fundamento. 17 Vê-se, destarte, que o “uso alternativo” do Direito é o uso da própria eqüidade, uma forma aperfeiçoada de Justiça, segundo Aristóteles,18ou complementação da lei no que tem de lacunosa,19ou ainda uma interpre-tação benigna ou mais favorável, que atenua a rigidez da norma. 20 5. Os diversos tipos de eqüidade Já escrevemos21que a Eqüidade representa, em sentido amplo, a humanização da Justiça, através da interpretação, aplicação e integração

15. Segundo os métodos de Luis RECASÉNS SICHES, cf. Nueva perspectiva de la equidad, in “Nueva filosofía de la interpretación del Derecho” (1973), pp.260ss; Experiencia jurídica, naturaleza de la cosa y lógica “razonable” (UNAM, 1971), pp. 282, 401, 482. 16. Confiram-se as Tábuas ou Máximas da Eqüidade: a. Aquele que pretende ser tratado com eqüidade deve começar por tratar equitativamente o adversário; b. Não pode contar com a eqüidade quem agiu contrariamente a ela; c. A eqüidade impõe a distribuição igualitária ou proporcional de ônus e vantagens; d. A eqüidade não tolera a inexistência de remédio para qualquer mal; e. A eqüidade previne o dano e socorre contra acidentes; f. A eqüidade não admite dupla reparação; g. Se (para a satisfação do dano) basta o ressarcimento, a eqüidade não permite se tire vantagem de uma pena ou do confisco; h. A eqüidade toma em consideração a substância, não a forma; i. A eqüidade leva mais em conta a intenção do que a forma; j. Se um ato devia ter sido praticado e não o foi, a eqüidade o considera praticado (e tira daí as conse-quências); k. A eqüidade presume tenha havido da parte do obrigado o propósito de cumprir a obrigação; l. Quando, por eqüidade, as partes estão em igualdade de condições, prevalece aquele que tem a seu favor o Direito estrito; m. A eqüidade adota as normas do Direito estrito naquilo que ela não regula; n. A decisão de acordo com o Direito estrito preclui o acesso à eqüidade, etc. Cf. Hélio TORNAGHI, Comentários ao CPC (1980), pp. 49/50, nota 29. Cf. ainda Carlos Maria ENTRENA KLETT, La Equidad y el Arte de Juzgar (1979), p. 38; Oscar RABASA, El Derecho angloamericano (1944), p.239; e Roberto MOLINA PASQUEL, Contempt of Court (1954), p. 38. 17. Concordamos com Luiz Flávio GOMES, quando afirma que a lei é injusta quando contraria uma norma, um princípio ou um valor constitucional, daí poder o juiz afastá-la e aplicar direta-mente o preceito prevalente da Constituição. Cf. Modelo do Direito Alternativo extremado (fa-ses da “infância e adolescência”), in “Direito de Apelar em Liberdade” (1996), p. 122. 18. "O eqüitativo e o justo são a mesma coisa e, sendo ambos bons, a única diferença existente entre eles é que o eqüitativo é ainda melhor". Cf. Ética a Nicômacos, V, 10; Retórica I, 13. 19. José de Oliveira ASCENSÃO. O Direito. Introdução e Teoria Geral. (1978), p. 394. 20. Cf. Washington de BARROS MONTEIRO, Curso de Direito Civil, Parte Geral, v.I, (1985), p. 43. 21. Cf. nossos Poderes éticos do juiz (1987), pp. 94ss; e Eqüidade e Jurisprudência(1989).

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do Direito pelo juiz. E segundo suas funções podemos distinguir a Eqüida-de Inspiradora, Interpretativa, Integradora e até mesmo Normativa. 22 O sentido ou “virtude” da eqüidade está latente na mente de todos os Legisladores e Administradores que “fazem” ou “aplicam” a lei; mas es-sa virtude está igualmente presente (e até com maior agudeza) na mente dos Julgadores. Ou seja, o que se passa na mens legislatoris, e o leva a editar normas para a sociedade, também se repete na mens iudicis. É a Eqüidade Inspiradora, imanente no homem. Ocorre que, entre o momento subjetivo inspirador da norma (pres-sões sociais, necessidades econômicas, convulsões políticas, etc), e a-quele objetivo de sua aplicação, as circunstâncias político-econômico-sociais se transformaram, e a aplicação da norma deve se fazer através da função interpretativa-corretiva da Eqüidade, entre a lei velha e o caso novo. 23 É que, se o Legislador editou regra que lhe parecia justa no primeiro momento, e vem ela a se revelar inadequada para resolver todos os confli-tos humanos, mas deve necessariamente ser aplicada, funciona de início o mecanismo de invocação e proposta de aplicação da norma (denúncia criminal, p. ex.), mas a palavra final, o último juízo de valor, é a do iudex, interpretando a lei e amoldando-a ao caso estudado, para evitar efeitos odiosos. O juiz será a última mens a operar com a norma, no extremo de um processo que partiu de um Fato (a necessidade de editar a norma, em de-terminado momento histórico da sociedade), passou pela Norma (edição ou positivação em lei da fattispecie) e chegou ao caso concreto de aplica-ção da Norma (o julgamento como Valor, no sentido de escolha da solu-ção adequada): é a Eqüidade interpretativa-harmonizadora, que supera contradições entre as normas e o caso sub iudice. Quando o Legislador escolheu uma solução para fixá-la em Norma, usou de um arbítrio, prudente, sábio, experiente, traduzido singelamente por eqüidade, e que se funda em preceitos milenares, como o honeste vi-vere, alterum non laedere, suum cuique tribuere ou o fazer o bem e evitar o mal.

22. Cf. Carlos Maria ENTRENA KLETT, op. cit., pp. 16ss. 23. Cf. Vicente SABINO JR., A eqüidade no processo civil, RJTJSP, v. 46:17.

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E o Julgador, no extremo oposto, ao escolher e valorar a Norma (to-do juízo é uma valoração), faz atuar o mesmo arbítrio, a mesma prudência (a dos iuris prudens romanos), as máximas de experiência (o quod ple-rumque accidit), que também traduzem a equivalente eqüidade. Nos casos especiais de lacunas da lei, chamado o juiz a decidir se-gundo a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, manifesta-se evidente a eqüidade, na sua Função Integradora; mais evidente, ainda, quando, deliberadamente, o Legislador manda julgar por Eqüidade: é a Funcão Normativa, em que o juiz aplica uma regra que criaria, se Legisla-dor fosse. 24 Na decisão por eqüidade, portanto, deve o juiz usar de um prudente arbítrio, devendo distinguir a eqüidade com sentido de justiça no caso concreto, como exigência que leva a temperar a norma genérica da lei, e a eqüidade geral ou social, determinada por tendências e convicções, que se formam na consciência coletiva e podem levar à reprovação de uma norma geral. 25 Aliás, é justamente o equilíbrio da eqüidade que impõe limites ao ar-bítrio do juiz,26que se transmuda em arbitrariedade quando este pretende desconhecer totalmente a lei e “julgar” segundo seu pensamento próprio ou ideologia. 6. A eqüidade no CPC e na LICC Merece ser relembrado o art. 114 do antigo Código de Processo Ci-vil, de 1939, que outorgava poderes mais amplos ao juiz, ao dispor: Quan-do autorizado a decidir por eqüidade, o juiz aplicará a norma que estabe-leceria, se fosse legislador. Esta Eqüidade Normativa foi excluída do art. 127 da Lei Processual atual, porém a regra está presente e atuante em outros ordenamentos, como o da Suíça e o de Portugal, a provar que po-dem conviver num mesmo sistema jurídico o Juízo de Direito e o Juízo de Eqüidade. Esta é, mutatis mutandi, o fim perseguido pelos fautores do uso al-ternativo do Direito: a aplicação à lei rígida de uma flexibilidade tão larga, 24. Cf. Piero CALAMANDREI, Estudios sobre el proceso civil (1945), p. 72. 25. Cf. Alessandro RASELLI, Il potere discrizionale del giudice civile (1927), p. 208. 26. Cf. Enrico Tulio LIEBMAN, Manuale di diritto processuale civile (1974), v. 1, nº 81, p. 140. Também Vicente RÁO, O direito e a vida dos direitos (1976), v. I, t. I, pp. 55-56.

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fecunda, humanizante e justa como o da eqüidade, como o vêm fazendo, nas suas várias decisões, e proclamando em sua doutrina, sem lhe decli-nar o nome. Parece-nos, pois, que a corrente alternativista do Direito, na fase madura em que já se encontra, poderá contribuir construtivamente para a evolução do ordenamento jurídico, ao pugnar pela ampliação do uso da eqüidade pelos juízes, já prevista em várias Leis e no Código de Processo Civil, e na futura “Lei de Aplicação das Normas Jurídicas”, art. 4º, assim redigido:

Aplicação do Direito - Na aplicação do direito, respeitados os seus fundamentos, serão atendidos os fins sociais a que se dirige, as exigências do bem comum e a eqüidade 27 (negritos nossos).

Como se vê, houve uma ampliação qualitativa da regra do art. 5º da atual Lei de Introdução, alinhando a eqüidade ao bem comum e à finalida-de social da lei, como reconhecimento doutrinário, nunca tardio, da rele-vância da eqüidade como critério, regra ou instrumento da Justiça, que e-xiste desde sempre e está à disposição do juiz para uma ampliação mais justa do Direito. Na Exposição de Motivos do Anteprojeto, 28 o Sr. Ministro da Justiça comentou:

“No art. 4º pretende-se introduzir alteração significativa em face da lei atualmente em vigor - art. 5º da LICC -, seja pela referência expressa à utilização da eqüidade, enquanto ‘justiça amoldada à especificidade de uma situação real’ (Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 295), seja pelo uso, deliberado, da palavra direi-to, a sinalizar para a diferença, entre lei e direito, cada vez mais encareci-da pelos juristas contemporâneos, comprometidos com a realização da idéia do justo e do legítimo, em contraposição ao ideário positivista, que identificava o justo com o simplesmente jurídico.

“Lembremos, a propósito, a fecunda construção jurisprudencial le-vada a cabo pelo Tribunal Constitucional da República Federal da Alema-nha, em torno do art. 20.3, da Lei Fundamental de Bonn - ‘o Poder Legis-lativo está submetido à ordem constitucional; os Poderes Executivo e Ju-diciário, à lei e ao direito’ - , assim analisada por Karl Larenz: ‘nesta fór-mula se expressa que lei e Direito não são por certo coisas opostas, mas

27. Projeto de Lei nº 4.905/95, ora em tramitação no Congresso Nacional. 28. A Comissão foi constituida pelos profs. João Grandino RODAS (USP/UNESP), Rubens Limongi FRANÇA (USP), Jacob DOLLINGER (UERJ) e Inocêncio Mártires COELHO (UNB).

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Direito Alternativo e Eqüidade

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ao Direito corresponde, em comparação com a lei, um conteúdo suple-mentar de sentido' (Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, Gulbenki-an, 1989, p. 446).

“A referência, que se faz expressa, à necessidade de respeito aos fundamentos do direito, sinaliza o dever, que a todos se impõe, de não violar a própria ordem jurídica, a pretexto de encontrar soluções justas, pois o sentimento de justiça do juiz, para encontrar receptividade e apoio, há de refletir a consciência jurídica geral, e não uma particular concepção axiológica.”

Ressalta-se, nesta análise, o acréscimo “respeitados os fundamen-tos” do Direito, que vincula o juiz ao exame de outras categorias jurídicas para a correta aplicação da lei, tais como a analogia, os costumes e so-bretudo os princípios gerais. Estes últimos, para muitos autores, são os verdadeiros “fundamentos” do Direito, que estão aquém e por cima da norma jurídica, por constituírem o conteúdo permanente, imutável e uni-versal do Direito, de tal forma que a eles recorrendo o juiz não poderá se enganar. 7. Conclusão Tendo, portanto, o juiz, à sua disposição, um instrumental tão vasto para a justa aplicação das normas jurídicas, inclusive a eqüidade, para re-solver, à luz do art. 5º da LICC, conflitos doutrinários sobre os fins sociais da lei ou sobre o bem comum, ao invocá-los e aplicá-los, estará o julgador afirmando não um certo uso alternativo do Direito, mas um vero Juízo de Eqüidade; não se torna, por este motivo, um contestador da ordem jurídi-ca, um revolucionário ideológico da Justiça, mas um sadio opositor do po-sitivismo dogmático-legalista, que o Direito contemporâneo já não admite. Nesta linha de pensamento doutrinário se pode, portanto, aceitar e encomiar a evolução de uma autêntica Escola Alternativa do Direito, por-que firmada em sólidas raízes tradicionais e históricas do Direito, no que ele tem de mais humanístico, desde Aristóteles e Tomás de Aquino, até os doutrinadores modernos, especialmente depois das Grandes Guerras des-te século que se finda. Bibliografia sobre Eqüidade: ALLEN, Carleton Kemp. Law in the making. Cap. V, “Equity”. Oxford, Clarendon, 1978.

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Conclusões I - Quanto à Segurança Jurídica e Certeza do Direito:

1. Os enfoques mais usuais da Segurança jurídica são: ela é um valor-condição imanente a qualquer sistema de Direito positivo; mantem uma rela-ção dialética de complementaridade com a Justiça que, por sua vez, é exigên-cia transcendente: o justo tem amplitude maior que o legal e, nesse contexto deve ser dada ênfase ao sentido axiológico do caso em relação aos seus aspectos fáticos.

Não obstante, os sistemas jurídicos de origem continental costumam dar ênfase aos fatos e menos aos valores, sem considerar que a Segurança não está nos fatos, mas no valor da Justiça.

2. Segurança e Justiça, portanto, não se contrapõem, mas enquanto esta é

um poder moral, desarmado, sua garantia de efetivação no Direito repousa na materialidade objetiva da Segurança jurídica.

3. Pensamos que a Sentença é superior à Lei, pelo novo conteúdo que

acrescenta à mesma, dando-lhe vida e colorido; mas somente as Sentenças relevantes, caracterizadas pelas questões de Direito que suscitam, é que inte-ressam ao ordenamento jurídico, porque se transformarão, pela Jurisprudên-cia, em Direito atual.

4. Nosso objetivo é rever o conceito de Segurança como relevante ao Esta-

do de Direito e sua significação no sistema constitucional, mas levando a re-considerar sua relação intrínseca com outros valores, especialmente a Justiça, em sua democrática função social, sem ofensa à ordem jurídica.

5. No tocante ao denominado uso alternativo do Direito, consideramos váli-

da a discussão das questões sociais, que interessam à Justiça geral, legal ou social, sobretudo dentro de um Estado democrático pluralista; mas a praxis indeterminada de idéias políticas na aplicação do Direito transforma os opera-dores do Direito, de servidores em árbitros discricionários da Justiça, o que constitui violência ao próprio ordenamento, levando ao niilismo jurídico.

6. Como soluções alternativas para a crise do Direito e da Justiça, parece-

nos urgente: 1) reformar o ordenamento, sem destruir o templo; 2) ampliar os espaços de atuaçâo judicial, através de uma imensa rede de: a) juizados de pequenas causas; b) juizados de conciliaçâo; c) conciliação das partes, exaus-tiva e obrigatóriamente (real e nâo formal), em todas audiências; d) ampliaçâo dos Regimentos Internos dos Tribunais, para maior amplitude e liberdade de atuação dos juízes; e) aproveitamento da experiência de juízes aposentados (com menos da idade limite) para funçôes judicantes de alçada limitada; f) es-critórios de conciliaçâo nas Procuradorias de Justiça do Estado (com poderes à Assistência Judiciária para lavrar acordos e homologá-los em Juízo); g) po-

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CONCLUSÕES 269

deres às Secçôes e Subsecçôes da Ordem dos Advogados do Brasil para ce-lebrarem acordos e homologá-los em Juízo.

II. Quanto à Jurisprudência: 7. A uniformização da jurisprudência serve para salvaguarda (segurança

objetiva) do Direito positivo, para garantia (segurança) da igualdade constitu-cional de todos perante a lei e para coerência interna (unidade e certeza) da Jurisdição, pois julgados de casos iguais não devem se contradizer.

8. Ressaltam da doutrina jurisprudencial os seguintes aspectos relevantes: 1º) mesmo predominante, a Jurisprudência não é vinculante; falta-lhe, por

isso, potestas, ou a força de se impor como iussum; 2º) constitui, entretanto, resistência injustificável de certos julgadores, por

amor à independência judicial, não se persuadirem prudencialmente pela cer-teza dos julgados e Tribunais superiores, não acatando a auctoritas dos pre-cedentes.

Os precedentes, expressão do iussum, se não determinam o conteúdo das decisões ulteriores, impõem, de fato, a exigência de uma reflexão ponde-rada, através da devida motivação.

3º) as Súmulas funcionam dentro do "sistema jurídico", com a finalidade de

transmitir certeza aos cidadãos sobre questões controvertidas, por isso que, quanto a estas, pairava antes a incerteza justificadora do direito de agir;

4º) a Jurisprudência deve ser uniforme e contemporânea, pois sendo incer-

ta (aspecto subjetivo), não pode gerar segurança (aspecto objetivo) aos juris-dicionados, daí ser necessário atender ao princípio básico de direito segundo o qual casos idênticos devem ser julgados de forma idêntica.

9. Entendemos que as decisões judiciais sobre questões relevantes pas-

sam a constituir autênticas normas de direito, pois tudo o que é dito pelos ór-gãos judicantes tem valor jurídico e reforça o conteúdo das normas aplicadas.

10. A Jurisprudência constitucional exerce papel vivificador global: a) na ga-

rantia dos direitos humanos; b) na conservação das normas emanadas da so-berania popular; c) no respeito ao âmbito de atuação do próprio Poder Judiciá-rio.

III. Quanto à Segurança e Certeza na Jurisprudência 11. Podemos extrair do exposto as seguintes conclusões:

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CONCLUSÕES 270

a primeira, que a Jurisprudência é fonte valorizadora da Segurança ju-rídica;

a segunda, que a autoridade da coisa julgada devolve às partes a

certeza do Direito, restaurando-se, em conseqüência, a Segurança jurídica inicial;

a terceira, que o valor acrescido à Lei pela Jurisprudência dominante é expressão de Direito justo, sobretudo nas questões jurídicas relevantes.

Em consequência, por derradeira, a coisa julgada, através da Juris-

prudência, sobretudo sumulada, estende sua autoridade à própria ordem jurí-dica, para sua reafirmação e completude.

Sendo a Jurisprudência um conjunto de decisões finais irrecorríveis, i-

dentifica-se com a coisa julgada; e quando se trata de questões relevantes de Direito, a auctoritas dos casos julgados se transfere à Jurisprudência, sob o aspecto de coisa julgada com força ou efeito jurisprudencial.

12. Nega-se acesso à Jurisdição, de forma ativa, quando o sujeito de um di-

reito assentado pela Jurisprudência se vê obrigado (sobretudo por posturas internas de órgãos administrativos) a recorrer às instâncias judiciais; passiva, quando o sujeito de um direito não alcança as portas dos tribunais por ausên-cia de meios materiais (assistência judiciária acessível) e outros obstáculos invencíveis.

13. Entende-se que a Jurisprudência constitucional cumprirá um papel vivi-

ficador global, atuando, sobretudo, para garantir os direitos humanos, sem prejuízo de seu especial interesse em conservar as normas emanadas da re-presentação da soberania popular, e por respeitar o âmbito de jogo do Poder Judiciário, mediante prudentes mecanismos de auto-controle.

14. Recusar os precedentes superiores, sem considerar as situações razo-

áveis de fazê-lo para alcançar justiça prestadia, conflita com o compromisso dos Juízes para com a Lei e o Direito, para com a sociedade a que pertencem e para com a própria Justiça.

15. Compete à jurisprudência, e sobretudo aos órgãos judicantes, cuja fun-

ção consiste em corroborar os ditados daquela, mediante uma direta interven-ção nas situações práticas, dar à luz os princípios que estão expressos na lei, e aplicá-los aos casos que a lei não menciona expressamente, porém nos vêm dados pela vida e caem sob aqueles princípios.

16. A certeza da jurisprudência é, por natureza, melhor qualificada que a

segurança advinda da lei; o justo, determinado a posteriori, é mais "certo" que o justo pensado a priori, porque a lei é um prius, ainda não provada pela inter-pretação judicial; ao contrário, a jurisprudência, como expressão do justo, é um posterius, concretamente determinada por reiteradas decisões.

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CONCLUSÕES 271

17. Legislador e Julgador coincidem no mesmo "olhar para cima" na procura

e fixação do Direito justo, para a sociedade em geral e para os cidadãos em particular, o bem comum; este conceito mantém a coerência interna do siste-ma, enquanto valor jurídico comum a ambos operadores do mesmo Direito, aquele que cria o Direito abstrato e o que subsume a norma ao caso singular.

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PROJETO DE LEI Nº 4.905, DE 1995

Lei de Aplicação das Normas Jurídicas

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Capítulo I - Da Norma Jurídica em Geral

Art. 1º Vigência da Lei - A lei entra em vigor na data da publicação, salvo se dispuser em contrário; e perdura até que outra a revogue, total ou parcialmente.

§ 1º Revogação - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare ou quando com ela seja incompatível.

§ 2º Repristinação - A vigência da lei revogada só se restaura por disposição expressa.

§ 3º Republicação - O texto de lei republicada, inclusive de lei interpretativa, considera-se lei nova.

§ 4º Regulamentação - A lei só dependerá de regulamentação quando assim o declare expressamente e estabeleça prazo para sua edição; escoado o prazo sem essa providência, a lei será diretamente aplicável.

Art. 2º Ignorância da lei - Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.

Art. 3º Dever de decidir - O juiz não se eximirá de julgar alegando inexistência, lacuna ou obscuridade da lei. Nessa hipótese, em não cabendo a analogia, aplicará os costumes, a jurisprudência, a doutrina e os princípios gerais do direito.

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APÊNDICE

273

Art. 4º Aplicação do Direito - Na aplicação do direito, respeitados os seus fundamentos, serão atendidos os fins sociais a que se dirige, as exigências do bem comum e a eqüidade.

Capítulo II - Do Direito intertemporal

Art. 5º Irretroatividade - A lei não terá efeito retroativo. Ela não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

§ 1º Direito adquirido - Direito adquirido é o que resulta da lei, diretamente ou por intermédio de fato idôneo, e passa a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, mesmo que seus efeitos não se tenham produzidos antes da lei nova.

§ 2º Direito a termo ou condição - Constituem igualmente direito adquirido as conseqüências da lei ou de fato idôneo, ainda quando dependentes de termo ou condição.

§ 3º Ato jurídico perfeito - Ato jurídico perfeito é o consumado de acordo com a lei do tempo em que se efetuou.

§ 4º Coisa julgada - Coisa julgada é a que resulta de decisão judicial da qual não caiba recurso.

Art. 6º Efeito imediato - O efeito imediato da lei não prejudicará os segmentos anteriores, autônomos e já consumados, de fatos dependentes.

Art. 7º Alteração de prazo - Quando a aquisição de um direito depender de decurso de prazo e este for alterado por lei nova, considerar-se-á válido o tempo já decorrido e se computará o restante por meio de proporção entre o prazo anterior e o novo.

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O Acesso à Justiça 17ACESSO.POS (12.12.94) 11/02/95 14:43

SUMÁRIO: 1. A exigência de uma "jurisprudência mínima" ou "vinculação mínima à Jurisprudência". 2. A ordenação jurídica da Jurisprudência. 3. Evolução da Juris-prudência para uma progressiva determinação do Direito. 4. O uso alternativo do Direito. 5. O que é "alternativo": o Direito ou a Justiça. 6. Soluções "alternativas" para a crise da Justiça. 7. Conclusões.

1. A exigência de uma "Jurisprudência mínima" ou "vincula-ção mínima à Jurisprudência"

Não sendo vinculante à Jurisprudência, a persuasiva torna se mera re-comendação de uso, como bula de remédio. Se é necessário ao paciente tomar a medicina para se curar, assim, para de-cidir a controvérsia do caso concreto, deve o Juiz encontrar os remédios jurídicos prescritos pela Lei, ou, à sua falta, pela analogia, pelos costumes, pela doutrina, e last but not least, pela Jurisprudência.

Ora, tais fórmulas elaboradas nos Tribunais, através de julgamentos co-

legiados, são sobretudo questões de Direito que, depois de uniformizadas, tornam-se invariáveis, sit et in quantum, exa-tamente como se dá com a Lei; onde a mutabilidade ocorre é nas questões de fato, inerentes à variabilidade da própria vi-da humana.

As Súmulas, ou Jurisprudência dominante, parecem ser estáveis sit

et in quantum, durante a permanência de um mesmo entendimento ju-risprudencial sobre matérias jurídicas relevantes; é uma estabilidade re-lativa, pois o Direito deve ser estável mas não invariável (imutável); de-ve-se pensar numa gradação da estabilidade por patamares: como as leis e os Códigos, as normas jurisprudenciais são revogáveis e reformá-veis, mas guardam sempre um mínimo de duração que, muitas vezes, atravessam décadas sem alterações.

Há, assim, em todo julgado superior, uma essência, um holding, consis-

tente numa nova regra de Direito - a jurisprudencial - que não pode deixar de ser considerada pelos primeiros intérpre-tes, para aplicação às causas que julgam.

Trata-se de um componente básico, um elemento ativo, como nas

prescrições médicas, cujo efeito principal é curar a moléstia, tanto quan-to no Direito é deslindar a demanda.

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O acesso à Justiça 275

Na verdade, há nas decisões uma associação complexa de princípios que entram na composição do julgado; no direito penal, p.ex., uma sentença consiste na composição da norma prin-cipal, das normas cumuladas, dos dispositivos agravantes e atenuantes, das penas corporais, pecuniárias, benefícios a-plicáveis, restrições de direitos etc.

Destarte, as decisões originárias (sentenças ou acórdãos) seme-

lham-se às antigas receitas, que estipulavam, doente a doente, as subs-tâncias e as dosagens, e que deviam ser manipuladas por farmacêuti-cos competentes; enquanto as decisões finais, uniformizadas e sumula-das, seriam como remédios de laboratório, analisados, experimentados e concentrados, já contendo, a priori, todos os elementos básicos para os casos semelhantes.

Enquanto o trabalho artesanal dos Juízes, escrevinhando suas senten-

ças, aproxima-se da medicina antiga, a medicina moderna, como os Tribunais, exige atendimento imediato a uma multi-dão de recorrentes, utilizando, para tanto, equipamentos, técnicas e conhecimentos avançados, para a mais perfeita sanação do caso.

Assim na Justiça: se a maior crítica da população aos órgãos judiciários

é a morosidade; se ao povo interessa entender não o precio-sismo das sentenças e acórdãos, mas ver seu direito subje-tivo atendido de imediato; não é razoável que todo Direito deva ser reconstruído, caso a caso, por todos os julgadores em cujas mãos o processo passa; se já existem decisões superiores, juridicamente firmadas com excelência, e a cujas conclusões fatalmente chegariam, bastaria invocar o pre-cedente adequado.

Não se trata de "puxar uma ficha", comodamente, e citar o precedente;

as súmulas são muito mais que simples ementa a transcre-ver; devem ser equacionadas aos fatos do processo e ao en-tendimento do Juiz; serve à economia processual enquanto poupa os intérpretes de profundas e dispensáveis pesqui-sas; nem os Juízes ingleses ou americanos se eximem de motivar suas decisões; a fundamentação é necessária para a análise dos fatos e adequação às normas jurídicas, mas a essência da decisão já está firmada pelo holding do Direito sumulado.

Em suma, toda decisão, desde sua origem, encontra-se vinculada a

uma Jurisprudência assentada, pois nihil novum sub ius, sal-

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vo exceções extraordinárias, com juristas e Juízes, cujas lu-zes extraordinárias, propiciam a criação de novas teses jurí-dicas; esta vinculação, portanto, torna mais ágil a Justiça, é mais prática aos intérpretes e mais econômica ao povo que acode aos Tribunais buscando Justiça.

Então, por que a Jurisprudência não é vinculante? Por que não vincula ou não se impõe? Alvaro D’Ors nos responde:

“Los criterios jurisprudenciales, es decir, las normas jurídicas en ge-

neral, no son en sí mismas dictados imperativos. No pueden serlo por la razón evidente de que quien las formula no tiene, por su misma autori-dad jurisprudencial, una potestas imperandi. Ya hemos dicho que la prudencia es virtud intelectiva; el imperare, em cambio, supone expre-sión de voluntad. Lo que el prudente, formulador de la norma jurídica, puede decir no es más que “esto es justo”o “esto es injusto”; declara lo que es jus (ju-dicat), pero no impone una regla de obediencia.”

“Si las normas jurídicas no son por sí mismas imperativas, ¿ quiere esto decir que no son vinculantes, que no obliga? Esta es la cuestión, anexa a la de la imperatividad, de la obligatoriedade de las normas.” ...”Porque una cosa es la obligatoriedad moral y otra la vinculación mate-rial”. 1

O juiz ou tribunal que não acata a Jurisprudência superior reabre dis-

cussões temáticas sobre a mesma questão jurídica contro-vertida e se insurge contra o já decidido reiteradamente.

A certeza que brota do caso julgado é certeza de Justiça, certeza de

que é decisão justa. E a decisão justa acarreta certeza de-finitiva para as partes, para a Jurisdição e para o próprio or-denamento.

É ainda a lição de Alvaro D’Ors que cabe ser acolhida neste passo:

“... una sentencia judicial es norma en un triple sentido:... : 1º Es norma particular para las partes afectadas por el fallo, para los litigantes; se entiende en la medida en que aquella sentencia tiene fuerza de cosa juzgada.” ... “2º Es norma profesional por cuanto cada sentencia consti-tuye un precedente, que tendrá una influencia más o menos intensa so-bre las futuras sentencias de aquell mismo juez o de otros jueces. 3º Es norma pública, ya que aquela muestra de conducta judicial será tenida en cuenta por todos los que tengan que intervenir en un caso análogo, y

1. D’ORS, Álvaro. Princípios para una teoria realista del derecho. Anuario de Filosofia del Derecho

(1953), p.315.

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los técnicos del derecho, en especial, no olvidarán aquella muestra cu-ando se trate de dar un consejo al ‘público’ “ (grifamos).2

2. A ordenação jurídica da Jurisprudência

Se visualizarmos a atuação da Jurisprudência no âmbito de um mesmo

Tribunal (num plano horizontal, diríamos), os comandos ju-risprudenciais deveriam ser respeitados, numa ordem de co-erência interna, pela competência das matérias e da própria organização jurisdicional. Há, inegavelmente, uma vincula-ção dos casos novos aos precedentes contemporâneos, com maior razão se presentes os mesmos julgadores, ocor-rendo o que chamamos de “vinculação mínima”.

Já num plano vertical, na linha dos Tribunais superiores para os Tribu-

nais locais, Juízes de primeira instância e órgãos administra-tivos, os precedentes parecem ter menor vinculação; estes aplicadores do Direito são infensos a certa influência pru-dencial, não obstante os clamores da sociedade por uma Justiça eficiente, célere e imediata.

Mesmo com decisões firmes e reiteradas dos Tribunais, os escalões

inferiores nem sempre as aplicam, obrigando cada cidadão a recomeçar sua via-sacra processual para obter o reconhe-cimento de um direito muitas vezes já declarado objetiva-mente. Tal resistência ocorre com frequência nas esferas administrativas, em que avultam poderes materiais de exe-cução das normas (polícias administrativas, judiciárias e mili-tares, ad exempla).

A questão deságua, assim, no campo do acesso ao Judiciário, como

obrigação de recorrer à Justiça, quando a mesma situação jurídica, em sua essência, já foi declarada justa por inúme-ros julgados.

Esta forma de negar acesso à Jurisdição torna-se ativa, quando o sujei-

to de um direito assentado pela Jurisprudência se vê obriga-do (sobretudo por posturas internas de órgãos administrati-vos) a recorrer às instâncias judiciais; passiva, quando o su-jeito de um direito não alcança as portas dos tribunais por

2. Idem p. 313-14. Cf. MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. A legitimidade do Direito Positivo

(1991), p.220.

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ausência de meios materiais (assistência judiciária acessí-vel) e outros obstáculos invencíveis.

Acessar a Justiça não consiste, portanto, apenas em ajuizar um pleito

nos Pretórios, mas sobretudo ver o direito prontamente re-conhecido; litigantes há que toleram os grandes atrasos judiciais. Talvez até lhes interesse protelar seus processos. Mas ao cidadão comum a demora na prestação jurisdicional ataca e ofende a vida, a saúde, e nega alimentos, emprego, moradia, educação para os filhos etc. 3

A atitude dogmática de recusar uma vinculação mínima aos preceden-

tes superiores, sem considerar as situações razoáveis de fa-zê-lo para alcançar justiça prestadia, conflita com o com-promisso dos Juízes para com a Lei e o Direito, para com a sociedade a que pertencem e para com a própria Justiça.

Que as sentenças sejam expeditas: a nosso ver, a aplicação imediata

pelos Juízes de uma "jurisprudência mínima", vinculada pela essência ao caso concreto, fará mais Justiça que a mais bri-lhante decisão.

A idéia dos Juizados Informais e os de Pequenas Causas visava a-

tender a esta morosidade - a relevante questão do acesso à Justiça. Por acaso a justiça que ali se distribui é inferior à dos altos Tribunais? Nes-se sentido se entende o movimento pelo uso alternativo do Direito - a-cesso do povo aos seus Juízes naturais e resposta rápida e justa aos di-reitos pessoais.

Enfim, os direitos subjetivos, hoje, por força da Constituição de 88, es-

tão subsumidos nos direitos do cidadão e a tardança judicial é grave negação do acesso efetivo à Justiça e constitui fonte iníqua de insegurança jurídica e incerteza do direito.

3. “O acesso à Justiça é, mais do que ingresso no processo e aos meios que ele oferece, modo de bus-

car eficientemente, na medida dos direitos que se tem, situações e bens da vida que por outro ca-minho não se poderiam obter”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade... (1987), p.404. Sendo o Acesso à Justiça uma Garantia Constitucional, como ensinam Tucci & Tucci, para ser plena deve referir-se não só à acessibilidade econômica (ideal de gratuidade ou de custo míni-mo do processo, a assistência judiciária), como à acessibilidade técnica, através de defensoria téc-nica e igualdade substancial no processo. TUCCI, Rogério Lauria; José Rogério Cruz e . Constitu-ição de 1988 e Processo (1989), p.19. Para nós, tal garantia será comprometida pela tardança, quando injustificada, nos julgamentos seja em primeira como em segunda instância.

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3. Evolução da Jurisprudência para uma progressiva deter-minação do Direito

O método da Exegese surgiu com o Código de Napoleão: como era ve-dado interpretar, o juiz deveria decidir de acordo com a letra da lei, sem emitir opiniões pessoais.

Ao final do século XIX surge a reação a esse método, passando-se para

o extremo oposto: o juiz, sendo autônomo e livre, poderia julgar como quizesse. Houve um conflito entre Legislação e Jurisdição: conforme o método utilizado, poderia haver maior ou menor segurança na decisão e, portanto, maior ou menor certeza do direito. Este movimento do Direito livre causou certo tumulto, e por isso foi bastante criticado.

Cabe ainda lembrar a chamada Jurisprudência dos interesses, de Phillip

Heck; a livre investigação cientifica, de Gény; a interpretação segundo princípios gerais de Direito, transcendente aos limi-tes do Direito positivo dos espanhois Castán, Recasens, Puig Brutau; além da jurisprudência analítica de Austin e o realismo jurídico norte-americano de Pound e Dworkin, na área do common law. 1

Não obstante a contínua evolução dos métodos jurisprudenciais em di-

reção à determinação mais justa do Direito, como veremos, ainda se observa uma continuidade do Positivismo normati-vista legislado.

Assim, Zitelman,5 em célebre alocução, sustentou que no Direito não há

lacunas e por isso o juiz nunca estaria impossibilitado de jul-gar por falta de disposição legislativa; portanto, nada teria que suprir.

Kelsen, em suas obras Teoria Pura do Direito e Teoria Geral das Nor-

mas6, apresenta uma concepção do ordenamento jurídico e a identificação de Direito e norma coativa emanada dos es-calões da organização estatal, inclusive a identificação do Estado com o Direito. Sobre esta teoria assim se pronunciou o jurista Hernandez-Gil:

4. Seja-nos permitido apenas enunciar as principais metodologias jurisprudenciais, sem apreciá-las em

detalhes, pois não caberia neste trabalho. 5. VALLET, op. cit., p.978. 6. Idem, p.981ss.

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“El logicismo que tantas veces se ha imputado a KELSEN descansa, sobre todo, en la abstracción y el formalismo, y no en el desarrollo de un discurso lógico. La verdad y la falsedad, valores esenciales en la lógica clássica, están por completo ausentes de su pensamiento jurídico, que considera como categorías fundamentales la validez y la invalidez”.7

Quanto a Norberto Bobbio,8 verifica-se um retorno ao logicismo inter-pretativo das leis segundo a vontade do legislador, partindo do pressuposto da plenitude do ordenamento positivo e de sua auto-integração, concepção esta que é antes nominalis-ta que positivista.

Não obstante, confessa Bobbio que

“la interpretación del derecho hecha por el juez no consiste nunca en la simple aplicación de la ley en base de un procedimiento puramente lógico; aunque no se advierta, para alcanzar la decisión él deve introdu-cir siempre valoraciones personales, efectuar elecciones que no se hal-lan vinculadas al esquema legislativo que deben aplicar”.9

Em reação ao Positivismo legalista e ao Conceptualismo surgiu o movi-mento do Direito livre, sob formas diversas, iniciado por Bü-low, com a tese de que “a lei não produz por si mesma o Di-reito, senão que somente o prepara, ao passo que a criadora do Direito é somente a sentença do juiz”;10 e depois Ehrlich, com a Sociologia jurídica, falou pela primeira vez em uma “li-vre ciência do Direito”, em que não se pode excluir a perso-nalidade do juiz da decisão judicial, procurando encontrar fo-ra da lei critérios objetivos aos quais devia estar vinculada a atividade do juiz; e também Kantorowicz (Gnaeus Flavius). 11

Convém aprofundar o pensamento de Ehrlich, sempre favorável à juris-

prudência aberta e influente; para ele esta é

“La única ciencia posible acerca del derecho, porque no se queda en las “palabras” sino que fija su mirada en los hechos que sirven de base al derecho, y porque, como toda auténtica ciencia trata de produn-dizar por medio del método indutivo - es decir, ‘observando los hechos y

7. Idem, p.982. 8. Idem, Metodologia de las Leyes, N.262, p.262ss. 9. Idem, Metodología por extenso de la Determinación del Derecho, p.987. 10. VALLET, op.cit., p.989 11. Idem, p.993.

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reuniendo experiencias’, ‘nuestro conocimiento de la esencia de la co-sas”. La misión de la sociologia del derecho‘ es buscar las fuerzas pro-pulsoras de las instituciones jurídicas’. Sólo posteriormente la jurispru-dencia ‘ forma la norma jurídica en base a la percepción de la vida jurí-dica y de la generalización de las vivencias de esa percepción”. 12

Maior relevo apresentou a Jurisprudência dos interesses (Escola de Tu-

bingen), cujo ponto de partida foi a teoria de Ihering (0 fim do direito, A luta pelo Direito), por uma jurisprudência teleológi-ca e pragmática, e que teve como principais mentores Phillip Heck e Max von Hümelin.

Fundada no conceito de “interesse”, Heck apresenta uma função

metodológica na decisão judicial, segundo a qual “el juez está vinculado por los juicios de valor que resultan de la ley,

y eventualmente también por aquellos que dominan en la comunidade de derecho, de tal modo que la valoración personal del juez no intervie-ne sino de un modo totalmente subsidiario” .13

A Jurisprudência de interesses, no fundo, era uma derivação do positi-

vismo segundo o conceito de ciência em que o “interesse” já tráz em si uma conotação econômica; de fato, Heck coloca no mesmo plano os bens “ideais”, como a liberdade, a segu-rança, a justiça, a responsabilidade, e os materiais, levando a pensar no conceito de utilidade de Bentham 14.

Num extraordinário esforço para superar o método exegético, François

Gény elaborou precisa doutrina sobre a livre investigação ci-entífica, voltada para a interpretação e aplicação do Direito, explicando que o intérprete

“Debe investigar, por sí mismo, las exigencias de la naturaleza de las cosas, y las condiciones de la vida, siempre que no sea detenido, para ello, por un mandato imperioso (fuente de derecho formal) que limi-te su apreciaciõn, o la excuse por entero, porque dicte inexcusablemen-te a su juicio la solución. En suma, salvo estas reglas imperiosas que lo dominen, y antes las que debe inclinarse toda voluntad individual, la in-terpretación jurídica nos parece indiscutiblemente soberana de sus deci-siones, sin más cortapisas que el fin mismo de su misión, y recibiendo sus inspiraciones en el gran fondo de justicia y de utilidad social que a-limenta la vida orgánica del derecho”. 15

12. Idem, p.998. 13. Idem, p.1021. 14. Idem, op.cit., p.1024-1025. 15. Idem, p.1039.

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Sobre a livre investigação científica, propriamente, Gény afirma que

“... el trabajo que incumbe al juez, me ha parecido poder calificarse: libre investigación científica; investigación libre, toda vez que aquí se subtrae a la acción propia de una autoridad positiva; investigación cientí-fica, al propio tiempo, porque no puede encontrar bases sólidas más que en los elementos objetivos que sólo la ciencia puede revelar” . 16

Recomenda ao intérprete penetrar até o último fundo da natureza das coisas, abrir a jurisprudência para permitir-lhe plenificar completamente sua missão, uma ordem de investigações mais ampla e mais livremente científica, buscando, para is-so, não só os elementos positivos da organização social, a natureza social e individual da humanidade, para arrancar dela o segredo das regras que devem dirigí-la.17

Contemporaneamente, na Alemanha, vem predominando o método da

Wertungsjurisprudenz, jurisprudência de valores ou estima-tiva. Junto com ela volta a surgir a consideração da “nature-za das coisas” e também, em primeiro lugar, os princípios judiciais supralegais.

São palavras de Larenz, citado por Vallet:

“Si la jurisprudencia fue, sin duda, en su estruturación originaria una manifestación del positivismo científico, su transformación en jurispru-dencia de valoración, y, aún más, su nuevo giro hacia la “naturaleza de las cosas” y a los principios jurídicos supralegales representa una re-nuncia al positivismo, corriente que, en la filosofia jurídica alemana actu-al, corresponde a la aspiración de descubrir estructuras intemporales “lógico-objetivas” del derecho, y un sistema, inmanente al derecho, de valores e ideas experimentados históricamente, en cierto modo de dere-cho natural relativo”. 18

Esta interpretação valorativa dos atos, conforme circunstâncias, motivos

e fatos, é a jurisprudência de valoração ou estimativa, como vimos; ora, de modo semelhante, temos no sistema anglo-americano uma escola que também fez carreira, e é atual, a do judge made law.

O que é o judge made law? A lei feita pelo juiz, o juiz como se fosse

legislador. 16. Idem, p.1044. 17. Idem, p.1048. 18. VALLET. Op.cit., p.1207.

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O sistema do precedente, na Inglaterra e nos Estados Unidos, é uma

realidade jurídica, tem primazia sobre a lei. O juiz americano tem liberdade maior que o do Direito continental, parecendo derivar para uma espécie de direito livre. Tanto assim que, para os americanos, como disseram vários autores, 19 "o di-reito é o que o juiz diz que é"; e isto está de acordo com as escolas americanas.

O professor norte-americano Christopher Wolfe, em alentado estudo in-

forma que “...o surgimento do juiz legislador constitucional está sendo a característica mais surpreendente dos nossos tribunais federais desde o fim do século XIX”; indica ter havi-do três “eras” distintas na formação deste costume judiciário: a tradicional (correspondente aos primeiros debates consti-tucionais, desde Blackstone e o “Federalist” ); a de transição (época das discussões sobre privilégios e imunidades, o ‘due process’, liberdade de comércio, liberdade de expressão); e a moderna (sentimento de necessidade de mudanças, em que o juiz surge como legislador do bem-estar social). 20

Este sistema, contudo, não se adapta aos nossos costumes

judiciários, pois enquanto na common law o juiz segue os precedentes, podendo criar o Direito, e o Judiciário é, efeti-vamente, um Poder superior aos demais, entre nós, do civil law, o juiz está adstrito à lei e o Judiciário é um Poder de-sarmado, sem potestas.

Não obstante, as orientações dessa Jurisprudência podem servir para

alumiar os caminhos do nosso sistema judicial.

4. O uso alternativo do direito

Vem evoluindo nos setores jurídicos, há alguns anos, o modismo do uso alternativo do Direito. É tendência atual de alguns aplicado-res do Direito ver parcialmente o lado social das controvér-sias; se quisermos, sua teoria segue a linha da opção prefe-rencial pelos pobres.21

19. Cf. Oliver Wendell HOLMES, Benjamin N. CARDOZO, e outros. 20. The Rise of Modern Judicial Review (1986), p. 3ss. 21. Autores: ...

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As conseqüências, desejadas ou não, levam à anarquia ou ao niilismo jurídico, pois sua praxis encerra distorções filosóficas e no próprio Direito. Pretendem, sem adverti-lo, instituir o uso da eqüidade e de um direito costumeiro atual, fora das tradições sociais.

É uma extravagância cultural e jurídica o chamado "Direito achado na

rua", movimento contestatário do Direito objetivo.

É freqüentemente citada pelos autores decisão de um Tribunal do Sul: um grupo de "sem-casa" invadiu um edifício recém-construído e a decisão garantiu sua manutenção no local, alegando o mau uso da pro-priedade, porque lá estaria instalado um motel... 22

O juiz que decidiu e o Tribunal que confirmou a sentença, ousaram burlar todas as regras de Direito constitucional, como o direito de propri-edade, o direito adquirido, a liberdade de ir e vir, a segurança do homem na sociedade, a pretexto de sanar um mal social.

No fundo, o que os defensores do uso alternativo do Direito pretendem,

o que, de resto, todos almejamos, e constitui a própria desti-nação de todo Direito, é a humanização da Justiça.

Ulpiano já dissera que o Direito foi feito pelo homem e para o homem,23

como Cristo também dissera que o sábado era para o ho-mem e não o homem para o sábado.24 Significa que a pes-soa humana é superior a todas as coisas, ao sábado e ao próprio Direito; portanto, esta humanização do Direito, inte-ressa-nos a todos, juristas e aplicadores, mas seu uso inde-terminado não deve ser causa de incerteza jurídica, a que leva o uso alternativo do Direito, por não conferir estabilidade e segurança nas decisões livres.

De fato, há dentro do ordenamento jurídico, institutos como a eqüi-dade e o direito costumeiro, que se podem interpretar e aplicar adequa-damente aos fatos e às próprias leis. Assim, uma lei pode ser aplicada rigorosamente num caso e com humanidade em outro semelhante, por-que depende das circunstâncias de cada fato típico. Mas não deve ser uma interpretação exótica ou personalística, para não cair no individua-lismo judicial, em que o juiz se arroga o direito de pensar como ele acha que é o Direito, e não como realmente o Direito é.

22. Ver acórdão 23. Digesto, v. Montoro 24. Evangelho de ...

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O sistema jurídico brasileiro diz que o juiz deve decidir segundo a lei, e, não a havendo, por analogia, pelos costumes ou segundo os princípios gerais do Direito (art. 126 do CPC); e o art. 127 veda, expressamente a aplicação da eqüidade, salvo per-missões legais, em números quase digitais.

Ora, o novo Anteprojeto da Lei de Aplicação das Normas Jurídicas 25

ampliou a extensão do atual art. 5º da LICC, dando-lhe a no-va redação:

“Art. 4º. Aplicação do Direito - Na aplicação do direito, respeitados os seus fundamentos, serão atendidos os fins sociais a que se dirige, as exigências do bem comum e a eqüidade” (grifamos).

E na Exposição de Motivos que o acompanha, justifica esta magnitude enfatizando que por este artigo

“pretende-se introduzir alteração significativa em face da lei atual-mente em vigor - art. 5º da LICC -, seja pela referência expressa à utili-zação da eqüidade, enquanto ‘justiça amoldada à especificação de uma situação real’ (Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, São Pau-lo, Saraiva, 1986, p. 295), seja pelo uso, deliberado, da palavra direito, a sinalizar para a diferença entre lei e direito, cada vez mais encarecida pelos juristas contemporâneos, comprometidos com a realização da i-déia do justo e do legítimo, em contraposição ao ideário positivista, que identificava o justo com o simplesmente jurídico”.

A seguir, refere-se especificamente à expressão do art. 4º citado, de respeitar os fundamentos do direito, advertindo:

“A referência, que se faz expressa, à necessidade de respeito aos

fundamentos do direito, sinaliza o dever, que a todos se impõe, de não violar a própria ordem jurídica, a pretexto de encontrar soluções justas, pois o sentimento de justiça do juiz, para encontrar receptividade e apoi-o, há de refletir a consciência jurídica geral, e não uma particular con-cepção axiológica” (grifos nossos).

5. Definindo a "alternatividade" do Direito

A Justiça é uma só, nâo pode haver duas, donde nâo caber falar em alternatividade no campo da Justiça.

25. Apresentado pelo Ministério da Justiça ao Congresso Nacional, foi elaborado pelos Juristas Pro-

fessores Rubens Limongi França, João Grandino Rodas (das Universidades de São Paulo-USP e Estadual Paulista-UNESP), Inocêncio Mártires Coelho, da Universidade de Brasília-UNB, e Jacob Dollinger.

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A expressâo surge em momento de grave crise nas instituiçôes do

Judiciário, em sua pesada burocracia, no aumento incontrolável da litigiosidade aparelhada, na inexistência de mecanismos ágeis para enfrentar a massa de açôes tanto em Primeira como em Segunda instância.

Momentos de crise política e econômica geram acentuada incidência de incerteza do direito, que necessitam ser aten-didas para devolver a paz social.

O fenômeno é, pois, de crise do Direito e da Justiça, como

conjunto de instituiçôes e mecanismos para atender à de-manda de interesses subjetivos desprotegidos.

Antes de encontrar caminhos alternativos para a justiça cabe

descobrir instrumentos alternativos para a aplicaçâo do direi-to, para se distribuir justiça aos dela necessitados.

Cintra-Grinover-Dinamarco advertem com muita lucidez:

“Abrem-se os olhos agora, todavia, para todas essas modalidades de soluções não-jurisdicionais dos conflitos, tratadas como meios alter-nativos de pacificação social. Vai ganhando corpo a consciência de que, se o que importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação ve-nha por obra do Estado ou por outros meios -, desde que eficientes. Por outro lado, cresce também a percepção de que o Estado tem falhado muito na sua missão pacificadora, que ele tenta realizar mediante o e-xercício da jurisdição e através das formas do processo civil, penal ou trabalhista”. 26

Ora, sendo vedado aos particulares o “exercício arbitrário das próprias razões” (art. 345 CP), e ao Estado o “exercício arbitrário ou abuso de poder” (art. 350), urge encontrar outros meios, novas soluções não-jurisdicionais para os conflitos, tratados como meios alternativos de pacificação social.

Ainda segundo os autores citados, a primeira característica

das vertentes alternativas é a “ruptura com o formalismo processual”, uma desformalização que leve a uma maior celeridade na solução dos litígios; uma segunda característica é a gratuidade, com função pacifi-cadora , e a terceira é a delegalização ou ampla margem de liberdade nas soluções não jurisdicionais (juízos de eqüidade, não de direito). 27

26. Teoria Geral do Processo (1994), N..5, p.26. 27. Idem, p. 27.

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Como meios alternativos de pacificação social podemos en-

contrar o arbitramento (CC, arts. 1037, 1048; CPC 1072, 1102), e as conciliações; estas são bem conhecidas nas diversas jurisdições, de-vendo ser lembrada a conciliação trabalhista (CLT, arts. 847 e 850), a processual civil (CPC, arts. 447-448, tratando-se de direitos disponí-veis); a dos Juizados Informais e os de Pequenas Causas que a Consti-tuição de l988 tornou obrigatórios (art.98,I), onde existe conciliação ex-tra e endoprocessual (Lei das Pequenas Causas, arts. 22-28), e criou a “Justiça de Paz”, com “atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicio-nal” (art. 98, II).

Importante ressaltarmos, mais uma vez, a extraordinária im-

portância da exaustiva aplicação do art. 448 do CPC, que prevê a tenta-tiva de conciliação, como ato judicial obrigatório em todas as audiências iniciais do processo, o que constitui poder ético do juiz na pacificação do litígio. 28

- arbitragem -MORON ALCAIN, Eduardo. Filosofia del Deber Moral y Jurídico. Bs. Aires, Abeledo Perrot, 1992. p. 121 - Desobediência à lei injusta

Como se depreende, o ordenamento jurídico apresenta inú-meras possibilidades e aberturas extra e intra-judiciais para a solução de controvérsias, notadamente as de caráter individual; as questões co-letivas, sobretudo, vêm recebendo larga proteção constitucional, através das ações coletivas, que se aproximam das class-actions, ou das ações declaratórias de inconstitucionalidade, sem contarmos os próprios re-médios constitucionais de pronta atuação, as medidas assecuratórias, etc.

Frente a tantas possibilidades de satisfação material dos di-

reitos individuais, o problema do uso alternativo do direito acaba resva-lando para a desobediência da lei considerada injusta? o direito é o que o juiz “pensa” que é?

O Direito não pode ser atingido na sua base, na sua essência,

no seu próprio fundamento; mas pode ser alterado naquilo que é aci-dental, que é a aplicação. Ex: as penas: para quem tem patrimônio de-vem ser aplicadas multas, proporcionalmente às suas posses (requisi-ção da declaração do Imposto de Renda para aferição do quantum su- 28. Cf. nosso Poderes Éticos do Juiz (1987), p. 116.

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portável e até para eventual indenização), e/ou prestação de serviços à comunidade; para quem não tem posses, prestação de serviços à co-munidade, preferencialmente em locais relacionados com o tipo de deli-tos praticados: hospitais, creches, asilos, centros sociais, serviços com o próprio veículo, etc.

Bem ilustrativo foi o egrégio Ministro do STF ao sugerir ado-çâo de mecanismos especiais para amenizar a crise da Justiça, assim se pronunciando:

“O Min. José Paulo Sepúlveda Pertence (STF) defendeu a cri-

ação de mecanismos especiais junto ao STF e outras instâncias judiciá-rias, para que as decisôes transitadas em julgado pela inconstitucionali-dade de matérias, sejam aplicadas a todos os proces29sos semelhantes de argüição de constitucionalidade. Essa medida "evitaria perda de tem-po, de verbas e o desgaste da máquina judiciária".

O STF julgou no ano passado 17 mil processos de argüição de constitucionalidade, dos quais "um terço foi sobre imposto compulsório na compra de carros, um por um, quando o mais prático seria um deles ser decidido e os demais se tornarem definidos".

"Pode-se constatar que se perde muito tempo e dinheiro questio-nando pequenas dúvidas, quando os juizes poderiam estar ocupados com questôes mais importantes".

O melhor instrumento seria a adoçâo de açôes coletivas no lugar das individuais, "como é comum agora".30

1) Alternativo como substitutivo do Poder Judiciário 2) Alternativo como substitutivo do Ordenam. Jurídico 3) Alternativo como rebeldia contra as instituiçôes jurídicas 4) Alternativo como libertaçâo da Justiça > "uma Justiça mais além do Poder Judiciário" 5) Alternativo como Justicialismo 6) Alternativo como revolução interna à instituiçâo judiciária. - o Filho pródigo e seu irmâo - a coragem de sair da casa e a covardia de reclamar

dentro dela 2. Fixar os pontos de crítica/ataque desses movimentos: a) contra o Judiciário burocrático na aplicaçâo da Just. b) contra os conteúdos do Direito positivo vigente

29 30. Jornal do Magistrado, S. Paulo, Junho/92

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O acesso à Justiça 289

c) contra o sistema ou ordenamento jurídico como um todo d) contra os demais Poderes da República democrática, opressivos e inoperantes

6. Soluçôes "alternativas" para a crise da Justiça: 1. reformar sem destruir o templo 2. ampliar os espaços de atuaçâo judicial: a. juizados de pequenas causas b. juizados de conciliaçâo c. conciliação exaustiva e obrigatória (real e nâo for-mal) d. ampliaçâo dos Regimentos Internos e. aproveitamento da experiência de juízes aposenta-dos (com menos da idade limite) para funçôes ju-dicantes de alçada limitada f. escritórios de conciliaçâo nas Procuradorias de Justiça do Estado (poderes à Assistência Judiciária para lavrar acordos e homologá-los em Juízo) g. poderes às Secçôes e Subsecçôes da Ordem dos Advogados do Brasil para celebrarem acordos e homologá-los em Juízo 3. ampliar os poderes

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292Índice de Esquemas Esquema Nº 1 - Teoria da Justiça O Todo e a Parte Plano do Universal, Plano do Particular....................pg. 60 Esquema Nº 2 - Segurança e Certeza Lei, Sentença, Jurisprudência .....................................pg. 100 Esquema Nº 3 - Lei, Sentença, Jurisprudência Sentença restaura a Certeza imediatamente Jurisprudência restaura mediatamente .....................pg. 119 Esquema Nº 4 - Certeza e Segurança Da Segurança à Certeza Da Certeza à Segurança Da Segurança Judicial à Segurança Legal.................pg. 136 Esquema Nº 5 - Lei - Decisões judiciais Plano do Geral - Plano do Particular Dedução da Lei às Decisões Indução da Jurisprudência às Normas gerais ..........pg. 139 Esquema Nº 6 - Silogismo Universal/Particular Positivo/Negativo ......................................................pg. 153 Esquema Nº 7 - Motivação das Decisões Relatório/Fundamentação/Decisum Apreciação valorativa das Questões de Fato e de Direito/Interpretação e Aplicação da Norma Particular Concreta CPC, arts. 165 e 458/Const.Federal, art.98, IX e X....pg. 201 Esquema Nº 8 - Dialética do Direito Lei/Tese/Passado Sentença/Antítese/Futuro Jurisprudência/Síntese/Presente Plano do Geral-Abstrato/Pl. Particular-Concreto....pg. 210 Esquema Nº 9 - Ambigüidade da Norma

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293 Norma (Todo-Uno-Unidade) Casos Particulares (Múltiplo) ....................................pg. 211 Esquema Nº 10 - Controle de Constitucionalidade Incidental, Concreto ou Difuso Norma ou Ato Administrativo declarados inconsti- tucionais em casos semelhante s e sucessivos..........pg. 247

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Índice de Autores AARNIO, Aulus - 121 ABBAGNANO, Nicola - 7,12,15,17,42,47,48 ACOSTA ESTEVEZ - 177,179,191,187 AGAZZI, Evandro - 255 AGOSTINHO, Santo - 7,16,44,48,49,50 AKEL, Hamilton Elliot - 266 ALEJANDRO, José Maria de - 41 ALLEN, Carleton Kemp - 22,142, 264 ALTERINI, Atílio Aníbal - 6,64,66,88,92 AMBROSETI, Giovanni - 106 ANDRADE, Lédio Rosa de - 266 ANDRADE RIBEIRO, L.R. - 223 ANSELMO, Santo - 51 ARAÚJO, Vandyck Nóbrega de - 107 ARCE Y FLORES-VALDÉS, Joaquín - 71,78 ARISTÓTELES - 7,14,16,17,31,44,46,59,60,61, 65,82,101, 164,260,264 ARRUDA JR., Edmundo Lima de - 234,266 ARRUDA ALVIM, José Manuel - 7,140,206 ARRUDA ALVIM PINTO, Tereza Celina - 211 ASCENSÃO, José de Oliveira - 260,264 BACHOF, Otto - 5 BALEEIRO, Aliomar - 212 BALLOT-BEAUPRÉ - 22 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio - 70,78,155 BARBOSA, Rui - 223 BARBOSA MOREIR, José Carlos - 258,264 BARROS MONTEIRO, Washington - 218,260 BASTOS, Celso Ribeiro - 71,78 BAUMGARTEN, Alexander Gotlieb - 49 BELAID, Sadok - 171,187 BENTHAM, Jeremias - 237 BETTI, Emilio - 206,207 BEVILAQUA, Clovis - 218 BIDART CAMPOS, German J. - 107 BIGOT-PRÉAMENEU - 21 BINDER, Julius - 126 BIONDI, Biondo - 86 BLACKSTONE - 234 BOBBIO, Norberto - 125,173,236,234 BODENHEIMER, Edgar - 142 BOEHMER, Gustav - 6,123,171,171,187 BONFANTE, Piero - 264 BOSANQUET, B. - 52 BOTELHO DE MESQUITA, José Inácio - 198 BOTTALO, Eduardo Domingos - 141,211 BOULOUIS, Jean - 172,175,181,187 BRADLEY, F.H. - 52 BRANDÃO, Junito de Souza - 104 BROSSARD, Paulo - 213

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BUENO FILHO, Edgard Silveira - 214 BUENO ARÚS, Francisco - 184,186,187 CALAMANDREI, Piero - 136,261,264 CALSAMIGLIA, Albert - 88,91 CALVO VIDAL, Felix M. - 7,27,220 CÂMARA, Armando - 107,111,124 CÂMARA, Maria Helena F. da Câmara - 107,124 CAMPOS, João Mota de - 172,175,176,178,181,184,193,187 CANOTILHO, Gomes - 71 CANOSA USERA, Raúl - 72,78,210 CAPITANT, Henri - 6 CAPOGRASSI, Giuseppe - 97,106, CAPPELLETTI, Mauro - 5,6,27,167,171,187 CARBONNIER, Jean - 93,210 CARDOZO, Benjamin N. - 142,236 CARNEIRO, Athos Gusmão - 194 CARNELUTTI, Francesco - 89,97,99,101,102,103, 102, 104,111 CARON, Giovanni - 257 CARVALHO, Amilton Bueno de - 240,244,266 CASADO, José - 137 CASSIN, René - 106, CASTÁN TOBEÑAS, José - 6,171,187,236,264 CASTANHEIRA NEVES, Antonio - 56,62,121 CASTRO Y BRAVO, Federico - 86, 173 CATHREIN, Victor - 80 CAVALCANTI FILHO, Theóphilo - 5,19 CERDA FERNÁNDEZ, Carlos - 223 CÍCERO, Marco Túlio - 54,63 CINTRA, A.C.A.; GRINOVER, A.P.; DINAMARCO, C.R. - 126,134,135,142,151,237 COELHO, Celso Barros - 211 COELHO, Inocêncio Mártires - 140, 242,263 COING, Helmut - 6,65,83,241 CORRÊA, Oscar Dias - 0141 CORREIA, Alexandre - 107 CORSALE, Massimo - 6,19,163 COSSIO, Carlos - 62,143,206 COSTA, Orlando Teixeira da - 135 COSTA, Mozar Alves - 41 COTTA, Sergio - 255,265 COUTURE, Eduardo J. - 102 CRESCI SOBRINHO, Elício de - 41,234,266 CRUSOE, Robinson - 62 CZERNA, Renato Cirell - 6,19 D’AGOSTINO, Francesco - 7,257,265 DAVID, René - 142 DOMINGO, Rafael - 215 D’ORS, Álvaro - 20,42,41,171,187,215,226,229,230 DELOS, José T. - 66 DE PAGE, Henri - 265

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DESCARTES, René - 15,16,31,48,91 DEWEY, John - 53 DIAZ, Elias - 107 DINAMARCO, Cândido Rangel - 7,92,102,217,231 DINIZ, Maria Helena - 64 DOBROWOLSKY, Sílvio - 253,266 DOLLINGER, Jacob - 140,242,263 DOMINGUEZ RODRIGO, Luis Maria - 7,122,123,165 DUNS SCOTT - 48 DWORKIN, Ronald - 90,236 EMERY, F.E. - 94 EHRLICH, Eugen - 234 ENTRENA KLETT, Carlos Maria - 259,260,265 ERRÁZURIZ M., Carlos José - 61,139 ESSER, Josef - 6,62,89,123,171,177,186,193,187,208 FACHING, Hans - 140 FARIA, José Eduardo - 234,266 FASSÒ, Guido - 107,112 FAZZALARI, Mauro - 6 FERNANDEZ, Alberto Vicente - 171,187 FERNANDEZ-GALIANO, Antonio - 106,111 FERRAZ JR., Tércio Sampaio - 80,85,94,100,103,127, 128, 196,199 FERREIRA, Renato Gomes - 265 FIGA FAURA, Luis - 173,187 FIUZA, Ricardo Arnaldo Malheiros - 139 FONSECA, Tito Prates da - 218 FRANK, Jerome - 93 FRANZEN DE LIMA, João - 218 FRIEDMANN, W. - 171,187 FROSINI, Vittorio - 127,149,206,207 FUERTES-PLANAS ALEIX, Cristina - 7 GALVÃO DE SOUSA, José Pedro - 7, 107 GARCEZ NETO, Martinho - 218 GARCIA, Maria - 266 GARCIA AMADO, J.A. - 5 GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo - 71 GARCIA MÁYNEZ, Eduardo - 59,60,264 GAUTRON, Jean-Claude - 175,187 GÉNY, François - 6,21,22,85,86,89,165,236,237 GIANFORMAGGIO, Letizia - 19 GOLDSCHMIDT, Werner - 41 GOMES, Luiz Flávio - 259,265 GÓMES PÉREZ, Rafael - 106, GRINOVER, Ada Pellegrini - 231 GUIMARÃES, Ylves José Miranda - 41,107,112 GUTIERREZ ESPADA, Cesareo - 187 HART, H. L. H. - 173,210 HAURIOU, G. - 173 HECK, Phillip - 236,234,237 HEGEL, Georg W.F. - 18,49,109

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HEIDEGGER, Martin - 18,49,50 HENKEL, Heinrich - 104,105 HERNÁNDEZ-GIL, Antonio -106,157,173,174,187,203, 222,236 HERVADA, Javier - 106, HIERRO SANCHES-PESCADOR, Liborio - 73,78 HOBBES, Thomas - 45 HOLMES, Oliver Wendell - 20,236 HUMELIN, Max von - 234 HUSSERL, Edmund - 18,49 IGARTUA, J. - 5 IHERING, Rudolf von - 234 ISAAC, G. - 173,187 ISIDORO DE SEVILHA - 9 ITURRALDE SESMA, Victoria - 142,198,227 JAMES, William - 52 JASINOWSKI, Bogumil - 106, JOUVENEL, Bertrand de - 53 JUSTINIANO - 64,84,162 KANT, Imanuel - 17,46,50,51,54,109 KANTOROWICZ, Hermann - 234 KAUFMANN, Arthur - 126 KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. - 221 KELSEN, Hans - 41,61,62,64,123,139,171,173,212,236 LADUSÃNS, Stanislaus - 7,30,41 LAFER, Celso - 109 LAGRASTA NETO, Caetano - 266 LALAGUNA, Enrique - 7 LAMEGO, José - 7,208 LARENZ, Karl - 6,63,64,106,142,220,236 LATORRE, A. -86 LECLERCQ, Jacques - 106, LECOURT, R. - 178,187 LE FUR, Louis - 64,66,67,167 LEGAZ Y LACAMBRA, Luis - 7,78,107,244 LEIBNIZ, Gottfried W. - 16,45,65 LEYRET, Henri - 126 LIEBMAN, Enrico Tulio - 261,265 LIMONGI FRANÇA, Rubens - 7,64,136,139,142,144,150,205, 206,21,219,242,263,265 LINZ NETO, Edmundo - 211 LLEWELLYN, Karl N. - 174 LIRA, José Pereira - 75,78 LOCKE, John - 16,45 LOMBARDI, Luigi - 6,27,145 LOPES, Mônica Sette - 265 LOPES, José Reinaldo Lima - 266 LÓPEZ DE OÑATE, Flávio - 6,11,12,19,99,101,102,103,104, 111,163 LOUIS, Jean-Victor - 181,191,187 LUHMANN, Niklas - 89,91 MACEDO, Sílvio de - 41

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MADRAZO, Francisco - 144 MAITLAND, Frederic William - 265 MALEVILLE - 21 MANAÏ, Dominique - 242,265 MANGAS MARTIN, Araceli - 186,194,187 MARÍAS, Julián - 7 MARIN CASTÁN, Maria Luiza - 142 MARINI, Carlo Maria de - 265 MARITAIN, Jacques - 244 MARTINEZ, Pedro Soares - 64,65 MARTINS, Ives Gandra da Silva - 61,99,107,154,220,244,246 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva - 27,162,227,230 MARX, Karl - 52 MATOS, Carlos Lopes de - 41,45 MATTA, Emanuel - 61,62 MAXIMILIANO, Carlos - 7,64,126,136,145,149,153,218 MELO FILHO, Álvaro - 75,78,211 MELLO FILHO, José Celso de - 213 MELLO, Marco Aurélio de - 214 MENDONÇA, Jacy de Souza - 41,107 MERKEL, Adolf - 127 MERQUIOR, José Guilherme - 209 MERTENS DE WILMARS, J. - 178,187 MESSNER, Johannes - 7,106, MEZQUITA DEL CACHO, J.L. - 6,19,64,78,89,91,95,97,105,107 MILLER, Fernando Faria - 266 MOLINA DEL POZO, Carlos F. - 172,187 MOLINA PASQUEL, Roberto - 259,265 MONTEJANO (h.), Bernardino - 106, MONTESQUIEU, Barão de - 16,84,258 MONTORO, André Franco - 80 MORAES, Walter - 112 MOREIRA, Vital - 71 MOREIRA ALVES, José Carlos - 240 NEDEL, José - 266 NEGRO PAVÓN, Dalmacio - 123,159,218 NERY JR., Nelson - 7,140 NEWMAN, Ralph A. - 265 NIETZCHE, Friedrich - 52 NUNES LEAL, Victor - 211 O’HIGGINS, Bernardo - 21 OCKHAM, Guilherme de - 48, 51 OGÁYAR Y AYLLÓN, Tomás - 26 OLIVEIRA, Gilberto Callado de - 240,266 OLLERO, Andrés - 5,64,203,221,241,243,245 OPOCHER, Enrico - 6,265 ORRÙ, Giovanni - 5,6,27,103,131,143,145,171,187 ORTEGA Y GASSET, José - 63,244 PARÁ FILHO, Tomáz - 203 PASTOR RIDRUEJO, Luis - 265

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PAULINO NETO - 218 PAULO, São - 257 PECES-BARBA Martínez, Gregorio - 6 PERELMAN, Chaim - 132 PÉREZ-LUÑO, A.E. - 6,19,23,63,64,65,74,77,78,108,109,114 PERGOLESI, Ferrucio - 73 PINTO, João Batista Moreira - 266 PIRENNE, Henri - 156 PIZZORUSSO, Alessandro - 142 PLATÃO - 13,16,44,50,65,253 PLOTINO - 51 PONTES DE MIRANDA, Francisco C. - 7,41,47 POPPER, Karl - 54,253 PORTALIS, Jean-Étienne-Marie - 21,54,119 POUND, Roscoe - 102,142,236 PRADO, Ney - 222,223 PRIETO SANCHÍS, Luis - 5 PUIG BRUTAU, José - 123,171,171,197,236 PUY, Francisco - 106, QUILES, Ismael - 50 RABASA, Oscar - 142,259,265 RADBRUCH, Gustav - 64,97,111,126,131,135 RÁO, Vicente - 218,261,265 RASELLI, Alessandro - 261,265 RAWLS, John - 65,265 REALE, Miguel - 7,12,24,41,53,54,62,64,70,78,80,86,102,110, 124,136,150,154,157,166,205,244 RECASÉNS SICHES, Luis - 7,14,63,91,97, 101,102,105,138, 174,196,236,259,265 REUTER, Paul - 176,197 RICKERT, Heinrich - 51,59 RICOEUR, Paul - 126,219 RIPERT, Georges - 83,171,197 ROCHA, José de Moura - 142,153,211 ROCHA, Lincoln Magalhães da - 75,78,143,145 RODAS, João Grandino - 142,153,211,241,242,263 RODRIGUES, Horácio Wanderlei - 234,266 RODRIGUEZ GREZ, Pablo - 203 RODRIGUEZ MOLINERO, Manuel - 106,123 RODRIGUEZ PANIAGUA, José Maria - 98,106 ROMITA, Arion Sayão - 265 ROMMEN, Henrich - 106 ROSAS, Roberto - 7,75,78,145,211 RUIZ, Gregorio - 142 SAAVEDRA, M. - 5 SABINO JR., Vicente - 260,265 SALINAS MARTINEZ, Arturo - 142 SANCHES, Sydney - 213 SANCHO IZQUIERDO, Miguel - 106 SANTIAGO NINO, Carlos - 90,196

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300

SANTOS, Mário Ferreira dos - 7,41,45,46,52,103 SARTRE, Jean Paul - 49 SAUER, Wilhelm - 6,9,102,109 SCARMAN, Leslie - 142 SCHILLER, F.C.S. (Professor de Oxford) - 52 SCIACCA, Michele Federico - 7,50 SEPÚLVEDA PERTENCE, José Paulo - 213,244 SERPA LOPES, Miguel Maria de - 218 SHAKESPEARE, William - 55 SILVA, José Afonso da - 71,72,73,74,76,78 SILVA MELERO, Valentín - 87 SILVING, Helen - 106 SÓCRATES - 50 SOLJENITSEN, Aleksandr - 109 SOUZA, Carlos Aurélio M. - 22,117,166,211,237,260,265 SOUZA JR., José Geraldo de - 234,266 SOUZA, José Guilherme de - 266 SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de - 266 SPENCER VAMPRÉ - 218 SPINOZA, Baruch - 16,52 STAMMLER, Rudolf - 63,106 STRAUSS, Leo - 106 TARSKI, Alfred - 50 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo - 7,204,211 TELLES JR., Goffredo da Silva - 204 THORSTENSEN, Vera - 187 TOMÁS DE AQUINO - 7,14,16,31,44,51,59,65,264 TORNAGHI, Hélio - 259 TRONCHET - 21 TRUYOL Y SERRA, Antonio - 106, TUCCI, Rogério Lauria; José Rogério Cruz e - 231 TUNC, André e Suzanne - 142 ULPIANO - 237 UTZ, Arthur - 7,128 VALLADÃO, Haroldo - 241 VALLET DE GOYTISOLO, J.B. - 7,9,20,51,76,81,83,84,86,93,103, 106,126,165,173,174,185,187,220,236 VAN ACKER, Leonardo - 112 VELA SANCHEZ, Luis - 7,39,50 VELLANI, Mario - 65 VELLOSO, Carlos - 213 VERNENGO, Roberto José - 91 103 VICO, Giambatista - 16,17,50,84 VIEHWEG, Theodor - 222 WALD, Arnold - 104 WARAT, Luis Alberto - 41 WINDELBAND, Wilhelm - 51 WOLF, Erik - 106 WOLFE, Christopher - 234 WOLFF, Christian - 48 WOLKMER, Antonio Carlos - 266 WRÓBLEWSKI, Jerzi - 133

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WUST, Peter - 7,93,135,158,161 ZACCARIA, Giuseppe - 6 ZENÃO DE ELÉIA - 89 ZENATI, Frédéric - 6,27,145,193,187,219 ZITELMAN, Ernst - 236.

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INDICE DE ASSUNTOS (Segurança Jurídica e Jurisprudência) AÇÃO DECLARATÓRIA - 76 AÇÃO RESCISÓRIA - 76 ACESSO À JUSTIÇA - 224 ADVOGADOS - 41 ALETHÉIA - 52 ALTERIDADE - 63 AMBIGÜIDADE - da norma jurídica - 212 AN DEBEATUR - 67 ANALOGIA - 34 APLICAÇÃO DAS LEIS - 40 AREÓPAGO (de Atenas) - 257 ARGUMENTAÇÃO - 50 ÁRVORE ENVENENADA (Teoria dos frutos da) - 257 ATO JURÍDICO PERFEITO - 3, 65, 75, 76, AUCTORITAS - 26, 70 - graus de ___das decisões judiciais - 147 - poder jurídico - 216 BEM - 34 BEM COMUM - 62, 70, - segurança, justiça e - 66, 67, 68 - unidade na multiplicidade - 126 BOA FÉ - 43 BOM SENSO - 36 CAUSA: - eficiente - 31 - noética - 31 CENTAURO, Imagem do - 216 CERNERE - 30 CERTAINTY - 12, 23 CERTEZA - científica - 36 - como valor - 9 - conhecimento da - 16, 18 - pela causa - 14 - pelo objeto - 14, 15 - da verdade - 14, 16, 18, 165 - empírica - 17 - física - 38 - garantia de - 73 - judicial - 19, 157 - livre - 35 - metafísica - 37 - moral - 38 - natural - 35

- necessária - 34 - objetiva - 18, 22 - o que é - 28 - originária - 18 - racional - 17, 18 - significado do termo - 30 - subjetiva - 11, 14, 18, 22 - tipos de - 34 CERTEZA DO DIREITO - 11, 13, 14, 59, 69, 74, - clarificante (das decisões recursais) - 201 - determinada pelos Tribunais - 164 - e coisa julgada - 149 - eqüidade como determinante da - 168 - e súmula - 200 - jurídica - 40 - jurisprudencial - 19, 21 - nas sentenças singulares - 200 - praeter legem - 21 - e segurança - 22 CERTEZZA - 12, 22 CERTIDÃO - 12, 14 CERTITUDE - 12, 23 CERTITUDO - 12 CERTITUMBRE - 12 CERTUM - 16, 17, CIDADÃO - 41, CIÊNCIA - 50, CÓDIGO CIVIL - Lei de Introdução - Artigos: - 4º - 25 - do Brasil - Artigos: - 159 - 42 - da Espanha - 25 - de Napoleão - 5, 21 CÓDIGO SUÍÇO - 258 COERÊNCIA - das decisões relevantes - 203 COGITO - 51, COISA - 46, 47, COISA JULGADA - 65M 75, 76, - autoridade da - 23 - e certeza do direito - 26, 149 - e ordem jurídica - 26 - e jurisprudência - 20,22 - formal - 20, 26

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2- jurisprudencial - 20, 26, 77, - material - 20, 26 - na Constituição Federal de 1988 - art. 5º - 3 CONJETURA - verdade e - 56 - imaginação e - 56 CONSTITUIÇÃO FEDERAL 1988 - 1, 58, 71, 72, 77, - Preâmbulo - 2, 71 - Artigos: - 1º, 2º, 3º, 4º - 73 - 5º - 1, 2, 75 CPC 1939 - Artigos: CPC 1973 - Artigos: - 126 - 25 - 127 - 22 CIDADÃO - 41 COMMON LAW - 23 CONCEITO - metajurídico - 40 CONHECIMENTO - intuitivo - 51, - da realidade jurídica - 43 - processo do - 42 CONVICÇÃO DO JUIZ - 28, 42, 59, COSTUMES - 34 - como direito - 9 - como lei não escrita - 10 CRIAÇÃO JUDICIAL - como inventio iuris - 182 - no Direito Comunitário Europeu - 194 - pelo Tribunal de Justiça Europeu - 175 DANTE ALIGHIERI - 65 DAR A CADA UM O QUE É SEU - 67 DÉBITO - 63, 67, DECISÃO JUDICIAL - certeza clarificante (decisões recursais) - 201 - como verdade - 20 - dos Tribunais (quando são certas) - 124 - esboço de uma classificação - 147 - graus de auctoritas da - 145 - individual e coletiva - 123 - relevantes (coerência) - 203 DEFESA DO CONSUMIDOR - 77, DEFESA DO MEIO - 77, DETERMINAÇÃO DO DIREITO - evolucão da Jurisprudência - 229

DEVER-SER - 40 DEUS - 51, 55, DIÁLOGOS DE PLATÃO - Filebo - 13 - Timeu - 13 DIKAIOSINE - 66 DIREITO - alternativo (uso ___do) - 234 - cinco aspectos - 81 - como valoração do justo - 84 - do consumidor - 4 - fundamental - 75 - judicial, jurisprudencial, sumular - 27, 132 - líquido e certo - 116 - passado, futuro e presente - 107 - segurança no - 86 - teoria pura do - 62 - transformações constitucionais - 74, 240 DIREITO ADQUIRIDO - 65, 75, 76 - Direito público - 3 DIREITO ALTERNATIVO - uso do - 3, 22, 234 DIREITO CIVIL E ECONÔMICO - 77 DIREITO COMUNITÁRIO EUROPEU - acquis comunitário - como direito adquirido - 192 - justifica os precedentes vinculantes - 193 - determinação de princípios gerais - 181, 182, 183, 186 - formação judicial - 175 DIREITO JUSTO - 26, 64, 65, DIREITOS HUMANOS - 5 DIREITO NATURAL - 5, 40, 41, 53, 54, 64, DIREITO OBJETIVO - 11, 12 DIREITO POSITIVO - 64, DIREITO SUBJETIVO - 12 DIREITO SUMULAR - 77, DOGMÁTICA - doutrinária - 89 - e jurisprudência - 25 - e segurança jurídica - 81, 87 - importância - 82 ENUNCIADO - 58, EPIMETEU - 104 EQÜIDADE - 34, 57, 60, 64, - aplicação pelo juiz - 22 - determinante da certeza do direito - 168

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3- e aplicação da lei - 125 - e jurisprudência - 170 EQUITY 22 ESCOLA DO DIREITO LIVRE - 62, ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO - 1, 4, 66, 71, 73, ÉTICA - 39 EVIDÊNCIA - como algo verdadeiro - 17, 51, 52, - ex videre - 29,30 - objetiva - 29, 30, 31, 32, 47, - originária - 51 EXISTENCIALISMO - 52 FACTUM - 64, FACULTAS AGENDI - 11 FATO, VALOR E NORMA - 41 FAZENDA PÚBLICA - 76 FAZER O BEM, EVITAR O MAL - 10, 38 FÉ - 14, 15 FIAT IUSTITIA - 65 FIDÚCIA - 43 FONTES DO DIREITO - Jurisprudência - 25 FUNCIONÁRIOS DA JUSTIÇA 41 FUNDAMENTAÇÃO - 29 GEZETSESRECHT - 5 GNOTI SEAUTÓN - 52 HABEAS CORPUS - 75 HABEAS DATA - 77 HONESTIDADE - 43 IDÉIA - 51, IGNORÂNCIA - do direito - 65 IGUALDADE - 61, 62, 63, IMAGINAÇÃO - 56 IN BONAM PARTEM - 65 INCERTEZA - 32, 42, 43 - subjetiva - 23 INJUSTIÇA - 57, INSEGURANÇA JURÍDICA - causas mais comuns - 24, 161 - crise da Justiça e do Direito - 1, 24 - o excesso legislativo e a - 163 INTELIGÊNCIA - 31, 32, 33, 34, 35 INTENÇÃO - 38 INTERPRETAÇÃO - teleológica - 66 INTUIÇÃO - 36 INTUS LEGERE - 33 IPMF (1993) - 24 IRRETROATIVIDADE DAS LEIS - 65,75 IUS - 57

JANUS -127 JESUS CRISTO - 237 JETOS - teoria dos - 50 JUÍZES - 34, 35, 41, 58 - e a lei - 120 JURIDICIDADE - 40 JURIDICISMO - 57, 65 JURISDIÇÃO - funcão - 3, 73 - legislação mais - 155 - legislação versus - 103 JURISPRUDÊNCIA - as súmulas de - 215 - como fonte do Direito - 21 - como ordenamento aberto - 138 - determinação do justo - 20 - e coisa julgada - 20, 22 - e eqüidade - 170 - e legislação - 20 - e determinação do direito - 229 - lei e - 48 - e segurança - 26 - estudos sobre - 6 - fonte última da segurança - 198, 209 - mínima - 224 - modelos jurídicos e dogmáticos - 144 - ordenação jurídica - 227 - poder jurídico e - 218 - segurança da - 211 - uniformização da - 202 - valor da - 88 JUSTIÇA - 34, 60 - como valor - 59, 64, 69, - comutativa - 60, 62, 66 - distributiva - 11, 61, 62, 66 - elementos da - 63 - legal ou geral - 62 - penal - 61 - segurança como fundamento da - 98 - segurança e - 98 - segurança e bem comum - 66 - segurança e valor - 60 - social - 22 - teoria da - 60 - versus segurança - 83 JUSTO (O) - 61, LACUNAS - 34 LEALDADE - 43 LEGAL SECURITY - 23 LEGISLAÇÃO - mais jurisdição - 155

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4- versus jurisdição - 103 LEI - Aplicação de Normas Jurídicas (projeto de) - 76, 238, 251 - certeza a priori - 19 - e jurisprudência - 48, - o juiz e a - 120 - segurança da - 137 LEI 7.347, de 24/07/1985 (Proteção ao Meio Ambiente) - 4 LEI 8.069, de 13/07/1990 (Proteção à Criança e ao Adolescente...) - 4 LEI 8.078, de 11/09/1990 (Código de Defesa do Consumidor ) - 4 “LEI ZICO” - 98 LEIS DE NUREMBERG - 106,220 LESBOS, A Régua de - 164,196 LIBERDADE - 35 LINGUAGEM JURÍDICA - 41 LÓGICA - 34, 49, LÓGICA DO RAZOÁVEL - 14, 53, LOGOS - 46 MAGNAUD, O bom juiz - 126 MAL - 34 MÁXIMAS DE EQÜIDADE - 259 MEDIDAS ASSECURATÓRIAS - medidas cautelares - 3 - sistema cautelar - 116 MEDO - 31 MIQUELÂNGELO - 122 MORAL E DIREITO - 38, 39 MOTIVAÇÃO - 33 MÚLTIPLO - e uno - 48, 61, NADA - 34 NAPOLEÃO (Código de) - 5,21,54,162,237,257 NATUREZA: - física - 38 - das coisas - 29, 40, 53 - do homem - 29, 40, 53 NAZISMO - idéias - 29, 65, NECESSIDADE: - absoluta - 37 - jurídica - 40 - moral - 38 NOMINALISMO - 16 NORMA AGENDI - 11 NORMA(S) JURÍDICA(S)

- a futura Lei de Aplicação das - 76, 238, 251 - ambigüidade da - 212 - e súmula - 173 - jurisprudencial - 133 - momento gerador e aplicativo - 108 - segurança da - 211 NOUS - 31 NULLUM CRIMEN NULLA POENA - 75 NUREMBERG, As Leis de - 106,113,220 - “O Julgamento de...” - 109, 221,255 OBJETO - 31 ORDEM JURÍDICA - 59 - e coisa julgada - 26 ORDENAMENTO - judicial - 27 - jurídico - 40 - legislativo - 27 ORDENAMENTO JURÍDICO - 65,72,74,77,78, - caráter aberto - 180 - Comunitário Europeu - 177 - corpo aberto e em evolução - 150 - fechados e abertos - 178 - o que é - 177 - princípio geral - 74 ORIENTIERUNGSGEWISSEHEIT - 23 PACTA SERVANDA - 43 PARTE - 61 PAZ SOCIAL - 59, 67 PEREAT MUNDUS - 65 PERESTROIKA -216 PODER JURÍDICO - auctoritas - 216 - e jurisprudência - 218 PODER POLÍTICO - potestas - 216 POLIS - 61 POSITIVISMO JURÍDICO - 57, 64, 65 POTESTAS - 70 - poder político - 216 PRECEDENTE JUDICIAL - como norma - 20 PREVISIBILIDADE - 10, 69, 74 PRINCÍPIO(S) - 73 - constitucionais - 4, 73, 74 - da irretroatividade - 75, 77 - da legalidade - 75, 78 - de justiça - 79 - de não contradição - 51 - fundamentais - 79

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5- gerais de direito - 34, 40, 74 PROBABILIDADE - 17, 38, 39, 40 PROCESSO CIVIL - 49 PROCESSO PENAL - 49 PROCURADORES DA JUSTIÇA - 41 PROJETOS DE LEI - Marco Maciel - 239 - Nº 4.905 - PROMETEU - 104 PROMOTORES PÚBLICOS - 41 PROTEÇÃO - à infância e juventude - 77 PRUDÊNCIA - 42, 59, 60, 66 PUBLIC SAFETY - 23 QUANTUM DEBEATUR - 67 QUESTÃO DE DIREITO - 59 QUESTÃO DE FATO - 59 QUOD PLERUMQUE ACCIDIT - 36, 69 RACIONALISMO - 16 RAZÃO - 15, 31, RECHTSSICHERHEIT - 23 RES INTELECTA - 47 RICHTERRECHT - 5 SEGURANÇA JURÍDICA - direito fundamental - 71, 75 - fato - 9 - fundamento e garantia da justiça - 98 - garantia, tutela, proteção - 75 - garantia hipotética - 58 - princípio - 71, 73 - valor - 60, 71 - da cidadania - 4 - da jurisprudência - 211 - da norma - 211 - dimensões - 9 - dogmática e - 81, 87 - dos bens jurídicos - 112 - e certeza - 19, 22, 78 - e direito - 53, 58 - e direito líquido e certo - 116 - e justiça - 60, 67, 98 - jurisprudência, fonte última da - 209 - justiça e bem comum - 66 - Justiça versus - 67, 83 - legislativa - 157 - na Constituição - 71, 74 - natureza - 3 - necessidade de - 66 - objetiva - 11, 23 - requisitos - 69 - valor meio, necessário, adjetivo - 71

SEGURIDAD - 23 SENSO COMUM - 36 SENTENÇA(S) - determinação do justo - 20 - e jurisprudência - 20 - injusta - 33 - relevantes e irrelevantes - 106 SER-AÍ - 52 SILOGISMO - 59 SISTEMA CAUTELAR - medidas assecuratórias - 116 SOCIEDADE - 41 SOLIDARIEDADE - 55 SUBSUNÇÃO - 59 SUJEITO - 31 SÚMULA(S) - certeza final - 200 - e norma jurídica - 173 - da jurisprudência - 215 SUMMUM IUS SUMMA INIURIA - 57,65 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - relevância constitucional - 141 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA TABELIÃO - 57 TEORIA DO CONHECIMENTO - 33, 59 TEORIA EGOLÓGICA - 63 TEORIA E FILOSOFIA DO DIREITO - estudos - 4, 5 TEORIA PURA DO DIREITO - 62, 63 TEORIA TRIDIMENSIONAL - 41, 63, 64 TODO - 61 TRIBUNAIS - 41, 58 - criam direito? - 175 - determinam a certeza do direito - 164 - valorização das leis - 24 - metodologia para determinação do direito - - minimizar erros, aumentar acertos - 14 - poder normativo - 242 TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO TUBINGEN, Escola de - 231 UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA - 202 UNO - - e o múltiplo - 48, 61 - supremo - 51 VALORES FUNDAMENTAIS - constitucionais - 2, 4 VERBO - 46, 51 VERDADE - 14,15 - certeza - 165

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6- coerência - 54, 55 - conformidade - 53, 54, 57, 59 - correspondência - 46, 59 - critério formal - 49, 54 - das coisas - 47 - do processo - 59 - e conjetura - 56 - e o juiz - 57 - empírica - 50 - eterna(s) - 51 - formal - 49, 57 - manifestação - 50 - metafísica - 50 - prática - 57 - real - 49, 57 - relação - 46 - revelação - 50 - utilidade - 56, 59 - na causa (o verum) - 17 - no certo (o certum) - 17 - no Direito - 57 - o que é - 45 - processual - 49 VERDADEIRO - 46, 51, 58, 59 VERUM - 16, 17 VINCULAÇÃO MÍNIMA - à jurisprudência - 224 VOLUNTARISMO - 16 VONTADE - 12, 31, 33, 35, 39 WERTUNGSJURISPRUDENZ - 235

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ACESSO À JUSTIÇA

É de se louvar a proeminência de trabalhos deaprimoramento das leis processuais, desenvolvidopor notáveis juristas brasileiro, tendo à frente oMinistra Sálvio de Figueiredo Teixeira, que visaprecipuamente assegurar o pleno acesso à Justiça;com-preende-se este não somente como o direito docidadão ou grupo social levarem suas pretensões àoJudiciário, mas igualmente a garantia do devidoprocesso legal, que implica outras garantiasconstitucionais, como o amplo contraditório, aparidade de armas, a plena produção de provas,direito aos recursos legais, jurisdição prestadia,etc.

JUSTIÇA DO TRABALHO

- competência para “estabelecer normas econdições” no julgamento dos dissídios coletivos(o chamado “poder normativo”); instância legal porexcelência para resolver greves.

- art. 114 CF: JT é para “conciliar e julgar osdissídios (...) coletivos entre trabalhadores eempregadores...? e exercer a função de arbitragem(§ 2º), ocasião em que exercerá seu podernormativo, respeitando “as disposições consti-tucionais e legais mínimas de proteção aotrabalho”.

- discute-se aqui se estas normas constitucionaissão qualitativa e doutrinariamente diversas e,portanto, superiores ao disposto na LICC: “naaplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociaisa que ela se dirige e às exigências do bem comum”

- o poder normativo não encontra justificativa; aJustiça do Trabalho não pode ter o poder de baixarnormas (que são leis entre as partes envolvidas) ede certa forma ter poderes de ordenamento socialsuperiores ao da Justiça comum.

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A

PASTA MARRON - "JURISPRUDÊNCIA" - ARTIGOS 12/6/94 - JURISPRD.IND

1. REGO, Hermenegildo de Souza. Os motivos da sentença e a coisajulgada (em especial, os arts. 810 e 817 do CPC). RP 35/9-23

I. Coisa julgada material - art. 467 CPC = "a eficácia, quetorna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujei-ta a recurso ordinário ou extraordinário"

- texto do anteprojeto Buzaid era melhor: "a qualidade quetorna imutável e indiscutível o efeito da sentença, nãomais sujeita a rec.ord. ou extraord."(Tese Thereza Alvim

- para Liebman: "a coisa julgada não é efeito da sentença,mas a qualidade da sentença e de seus efeitos"

- correta a definição do CPC: atende à crítica de Allorioa Liebman: imutáveis não são os efeitos, mas a própriasentença; João de Castro Mendes: "Toda sentença vale apenas 'rebus sic stantibus'.

- imutável é apenas a decisão, o pronunciamento estatal sobre a 'res in iudicium deducta'; nesta imutabilidde con-siste a particular eficácia da sentença, a que se dá o nome de coisa julgada.

- polêmica Carnelutti X Liebman- Botelho de Mesquita: imprecisão dos conceitos = distinçãoentre eficácia e imutabilidade da sentença- Carnelutti: eficácia e autoridade são coisas diferentes

- autoridade e imutabilidade são a mesma coisa- autoridade consiste num modo de ser da eficácia econsiste na sua imutabilidade; só isto deveria sechamar de coisa julgada

- c.j. é algo distinto da sentença, sua autoridade; aautoridade emana da sentença, e é sua eficácia; chama-se c.j. não a sentença, mas sua eficácia

- a c.j., em lugar do sujeito (sentença) passa a sero predicado (autoridade da sentença)

- então, c.j. (autoridade da sentença) não é outra coisa que o modo de ser que a lei lhe atribui, isto é,seu valor 'pro veritate', ou melhor, s/valor c% lei

- mas o valor da sentença como lei, 'pro veritate',não é senão sua imutabilidade

- discordância com Liebman,pto, é mera questão denomes = c.j. vem a ser a imutabilidade da sentença;distinção eficácia e imutabilidade: 1ª= gênero, 2ª=espécie = sent.tem eficácia (c.j.formal) antes de setornar imutável (c.j.material)

- pto, defin.467 é correta:- c.j. é a 'res'= realidade sobre a qual opera o

processo, i.e., a lide; 'judicata'= resolvida pela jurisdição

2. Distinções

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B

2.1 - preclusão e coisa julgada (esta é a preclusão máxima)- Chiovenda: preclusão "é a perda, ou extinção, ou consuma-ção de uma faculdade processual..."

- real finalidade da preclusão: arts. 183, 245, 473,516,601

- Barbosa Moreira: c.j. é uma das várias situaçõesjurídicas dotada de eficácia preclusiva

- art. 474: idéia de "julgado implícito",criticadop/Allorio

- Machado Guimarães: "o âmbito de incidência do efeito preclusivo ultrapassa os limites objetivos da c.j. porqueatinge questões (deduzidas e deduzíveis) que se não

incluem no 'decisum')2.2 - Cognição = c.j. limita-se ao processo de conhecimento

- discussões problemáticas: a. autoridade da c.j.cobre somente o elemento declaratório da sentença(C.Neves)

b. nega à execução o caráter de ativid.jurisdicional= o proc.conheci/é que enseja formação de c.j.

- art. 463: ao publicar a sentença de mérito o juizcumpre e acaba o ofício jurisdicional"(officio functus est)

- diferença entre conhecimento e execução: asubstitutividade (substituição da vontade das partes p/ do Estado)

no conhecimento se exerce no plano do juízo, e na exe-cução, no plano da vontade

2.3 - Mérito = 'res judicata' só em relação ao mérito- retorno às fontes romanas: llimitação da coisa julgada- D.brasileiro: sentença c/autoridade de c.j. é unica/ aque "julgar total ou parcialmente a lide" (art. 468)- lide é mérito = cf. Exposição de Motivos

2.4 - Contenciosidade - formação da c.j. supõe litigiosidade- imutabilidade da decisão = razões de conveni~ social= situação de insegurança dos direitos, instabilidadedas relações jurídicas, eternização dos conflitos

- se não há julgamento de "lide" não há 'res judicata'- Carnelutti, Instituciones: há c.j. tanto em sede contenciosa como voluntária, definitiva ou cautelar...

- Frederico Marques, citando Couture e JorgeAmericano:

jurisd.volunt.não produz c.j.,nem ação rescisória= nat. administrataiva do pronunc.judicial - tem

eficácia como todo ato estatal; sendo adm.é revogável= qdo.muito, decisão (mas administrativa), pois sen-tença é ato jurisdicional, pressupõe situação li-tigiosa, c/ julgamento da pretensão

2.5 - Definitividade - pto, sent.cautelar ñ produz c.j.- Theodoro Jr: a.caut. é pura/instrumental, ñ cuida da

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C

lide, nunca é de mérito, pto, ñ faz c.j.- Barbosa Moreira: a.cautelar ñ é 'tertium genus'

entre cognição e execução; ela se contrapõe a ambos em cjtopois têm nat.satisfativa, enqto.proc.cautelar é

tutela mediata, de 2º grau- art. 807: meds.cauts podem ser revogadas ou

modificdas- art. 8l0: med.caut.indeferida ñ influi no

jgto.princ.

II - Motivos da sentença e coisa julgada3. O problema. Castro Mendes. Limites Objectivos do Caso

julgado em Processo Civil. Lisboa, Edit.Ática, 1968.- extensão ou não da autoridade da c.j.aos

motivos,funda/sEx: A reclama x em contrato com B; este alega contrato nulo;juiz repele e condena a entregar x: a questão "o contrato

não é nulo (motivo da decisão) fica ou não coberta pela c.j.- em outro processo, se A reclamar y pelo

m/contrato,o juiz pode entender nulo o contrato? e julgar impr?

- alargamento ou não do caso julgado aos fundamentos dadecis é problema de política legislativa, opção entre um processoliberal (sist.restritivo seg- princ.dispositivo) e um proc.

paternalista (sist.amplexivo evitando desarmonia de julgs)3.1. Fatores favoráveis a um Sistema "amplexivo"

1ª) necessidade de certeza e paz social: aumentando odomínio da indiscutibilidade, diminui-se o da litigiosidade

= conveniência de estender aos motivos a autor.dasent.

2ª) princípio da economia processual:evitar que asquestões

discutidas num processo evitaria novos processos3ª) necessidade de harmonia dos julgados, argumento +

forte- desarmonia alta/indesejável, até em função da

credibilidade social (o povo não entende...)Ex: A invoca violação de patente, pede condenação doviolador e abstenção de continuar a prática e ganha.B fica obrigado a um 'non facere'

Em outro processo, A reclama indenização por perdase danos; o juiz entende que não houve violação de pa-tente, dando pela improcedência da açãoEx: A propõe despejo contra B e perde, porque não ha-via relação locatícia mas possessória; propõe posses-sória e perde, porque se entende que há rel.locatícia

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D

Explicação: é a opção pelo princípio dispositivo...4ª) distinção impossivel entre fundamentos e decisão

- essência da teoria de Savigny: motivos formam o con-teúdo da decisão (sem eles será uma abstração) - ex.dadecisão de improcedência: sem os motivos, a sentença ñtem conteúdo material- o problema está em distinguir os conceitos:a. de decisão meramente formal eb. de decisão em sentido material

- os fundamentos existem:a. em sentido formal (pte.sentença, após relatório)b. em sentido material (soluçs.às questões da dec.)

- ñ cabe estender a autor.c.j.aos fundms.sent.material5ª) dificuldade e arbítrio entre os fundams/ou a

pr.decisãoEx: A reivindica e obtem X; em nova ação pleiteia

frutos- se nesta se baseia no dir.propried. (funda/da 1a), odireito pode ser rediscutido

- se baseada no dever de entregar (acessório seguepr.)

nada se discute, pq obrigação de entregar X é c.j.- ora, ambas situações são sustentáveis,daí a conveni

de adoção do sistema "amplexivo"3.2. Fatores favoráveis a um sistema "restritivo"1ª) a própria idéia de Justiça: c.j.,prescrição, como

instsem que a necessid.de segurança segue à neces.de

justiça- qr.restrição de s/âmbito é favorável à Justiça- c.j.:risco decisão inj.é menos nocivo que

insegur~nosnegócios e nas sits.jurídicas.

- menos decis.injustas X maior inseg.negs.esits.jurids

2ª) princípio dispositivo:ptes.têm meios p/evitarcontrads:

cumulação pedidos, reconvenção, declar.incidental etc- Dir. só intervem se diminuir a liberdade...Ex: A vende x a B por metade do valor;contrato

injusto,mas Direito o tutela, se houve vontade livre de A e B.- o mesmo ocorre nas ações: as partes podem evitar ascontradições de julgados

3ª) tendencialidade: c.j. só a questão central doprocesso,

para a qual convergiram todos os esforços, sobretudodo

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E

réu; Ex: contratou entrega de X,Y,Z, mas apenas exigi-ram X, que não deve; pode invocar apenas isso; não es-tará impedido de se defender, depois, de Y e Z.

4ª) proporcionalidade: esforços processuais hão de poderser proporcionais ao resultado possível

Ex:tendo celebrado contrato de 1.000, A é acionado por10;con

vencido da nulidade do contrato, não tem interesse em se de-fender; mas não pode ser surpreendido pelo trânsito em

julga- do da validade do contrato, fundamento da eventualconcessão de 10.

- graduação de valores: rito sumaríssimo- consequências secundárias: problema das custas e despesas

processuais: pede-se uma parte, para obter resultado global porvia da extensão da autor. da c.j. aos motivos da sent3.3. Soluções

- um sist.amplexivo puro: todos os fundamentos da sentençatransitem em julgado

- um sist.restritivo puro: nenhum fundamento trans.em julg- um sist.misto: conciliar as qualidades dos anteriores- Castro Mendes: evidente necessidade de conciliação =- sist.amplex.puro: cada processo um poço s/fundo- sist.restr.puro: direito certo pela c.j. sem raízesmateriais que ñ possam ser negadas em proc.posterior

- sist.misto: fundams/têm ou não força de c.j - 3caminhos:1º) diferenciar tipos de fundamentos:a) fundamentos objetivos e subjetivosb) funds. imediatos e mediatosc) funds. controvertidos e não controvertidosd) funds. necessários e não necessários

- determinar quais os que ficam ou não abrangidos p/cj2º) Zeuner: necessidade de harmonia dos julgados =

estu do das relações entre o 1º e o 2º processos- vinculação do 2ºjuiz ao decidido no 1º: depende daconexão material entre um e outro

- "complexos unitários de pretensões interdependentes"- crítica: falta definição dos critérios pelos quais os

fundamentos hão de ser considerados vinculativos

- proposta de Castro Mendes: dinstição entre "caso julgadoabsoluto" e "caso julgado relativo"

Ex: A e B contratam que B deve x e y; A vence ação emque

pede x: o contrato é válido nessa medida, i.e. paralhe

entregar x; em outro processo A pede y, a validade do

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contrato pode ser contestada, mas não a nulidadeabsolu

ta, porque foi válido na obrigação x; a afirmação Bdeve x é caso julgado absoluto; a afirmação "o contrato é válidoenquanto obriga B a entregar x é c.j.relativo- pto, "os pressupostos da decisão transitada em julgado sãoindiscutíveis como pressupostos dessa decisão e só nessa medida"

3.4. Crítica a Castro Mendes- não chegou a nenhuma solução original: c.j.absoluto e

relativo não é original- conclui que os motivos não se revestem da autoridade da

c.j., podendo ser livremente rediscutidos eapreciados, desde que não altere materialmente o resultado doprimeiro processo (bem da vida garantido)

- isto spr se disse - Aureliano de Gusmão: os motivos,c%puro motivos, não têm autor.de c.j. e esta só pode es-tar onde se acha a decisão do juiz; a c.j. está em qr.parte da sent. que resolve a controv, e pois nos moti-vos, qdo. nestes estiver expressa como causa imediatado dispositivo da sentença

- Machado Guimarães: só a pretensão formulada no 'petitum(= "bem da vida"pleiteado na ação ou reconvenção) podeser objeto do 'decisum': coincidem c/os deste objetoos "limites objetivos" da c.j.substancial

- Chiovenda: sent. é ato de vontade do Estado, conforme avontade abstrata já declarada; autor.c.j. = nenhum

juiz poderá tirar ou diminuir de outros um bem da vida obtido emprecedente ato de tutela jurídica

4. Conclusão sobre o problema: autor.c.j. deve cobrirunica/a atribuição ou negação do "bem da vida" do objeto do ped

- questões prejudiciais e ação declar.incid.resolveram

- aos motivos da sent. se deve chegar se necessário,p/ estabelecer qual é o bem da vida reconhec.ou negado.III - Os arts. 810 e 817 do CPC: exceções à definitividade da c.j.

- 810: faz c.j.sent.proferida em ação cautelar qdo. juizacolher alegação de decadência ou prescrição

- 817: em arresto, sent.proferida não faz c.j.na açãoprinc.,

salvo o art. 810- 810: indeferimento da med.caut. por acolhimento da

argüiçãode decadência ou prescrição condiciona o julgamento da

açãoprincipal

- sendo inviável a ação principal, não há porque cercá-la desegurança

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- o que há é o deslocamento da cognição, do proc.principalp/

o processo dependente e jgto.antecipado e influente domer.

- exceção do 817 é aparente- não se discute que prescrição é mérito; prescrição é

necessidade social de fazer cessar a incerteza dos direitos: re-conhece caráter jurídico a um estado de fato inicialmentecontrário ao direito

IV – Conclusões1. satisfatória a definição de c.j.material do art. 467 CPC:

apenas mérito,processo de conhecimento e decisõesdefint.s

2. sistema restritivo puro: nenhum fundamento da decisãofica

revestido da autoridade da c.j.; nem há julgado implícitono Dir.brasil: art. 474 refere-se unicamente ao efeitopreclusivo da c.j.- a rediscussão dos fundamentos (em outro processo) e a

adoção de conclusões divergentes, não pode atingir a c.j- só o dispositivo da sentença transita em julgado =

= dispositivo em sentido substancial- importância dos motivos como elemento de interpretação

do dispositivo, para determinar a 'res' atrib.ou negada3. arts.810 e 817 não são exceção: o conhecimento do mérito

da lide, anomalamente se desloca para o momento daaprecia

ção do pedido cautelar- poderes do legislador, justificável p/prescr.e

decadênc. -.-.-JURISPRD.IND

2. VALLET DE GOYTISOLO, Juan B. Joaquín Costa y el tema de lajurisprudencia. Anuario de Derecho Civil,1988 (oct-dic):969-1032

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Carlos Aurélio Mota de Souza SEGURANÇA JURÍDICA E JURISPRUDÊNCIA. Um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo, Editora LTr, 1996.

Segundo parecer do prof. Ives Gandra Martins, prefaciador desta obra,

“com seu livro sobre a Segurança Jurídica e Jurisprudência, (o Autor) preenche vácuo da literatura brasileira sobre a importância da certeza do direito, apenas possível à luz da relação conflitual exposta ao Judiciário e sua manifestação definitiva”.

O trabalho segue uma linha de pensamento e de pesquisas que o Autor iniciou com seu Mestrado em Teoria Geral do Processo (FADUSP), sob orientação do Prof. Cândido Rangel Dinamarco, resultando na obra “Poderes Éticos do Juiz” (Porto Alegre, Sérgio A. Fabris, 1987), em que tratou da “Igualdade das Partes e a Repressão ao Abuso no Processo”. Ali emergiu a discussão sobre o Poder Discricionário ou Arbítrio do Juiz para criação de Direito, e que o levou a aprofundar o estudo da Eqüidade como instrumento, método ou critério para melhor aplicação da lei pelo Juiz. Em “Eqüidade e Jurisprudência”, (tese de doutoramento, FADUSP, 1989, orientação do Prof. Alexandre Correa), buscou atualizar e resgatar os conceitos sobre a epiquéia, procurando afastar preconceitos de vinculação positivista, e oferecendo linhas para uma maior utilização da eqüidade, pelos Juízes, na determinação do Direito justo. Segurança Jurídica e Jurisprudência é fruto de estudos em pós-doutorado em Filosofia do Direito na Universidad Pontificia Comillas, em Madrid, e na Itália e França, entre 1989-91, e resultou em sua tese de livre-docência (1995), defendida na Faculdade de História, Direito e Serviço Social da UNESP - Franca (SP). Nela ressalta o Autor a valorização do Juiz como órgão privilegiado do Poder Jurídico (em oposição ao Poder Político), único apto a resgatar o Direito das mãos do Estado, ao conferir às Normas uma va- loração contextual no momento da decisão. Mais ainda, entende que os Juízes contribuem, através da coisa julgada, para a criação de um Direito Jurisprudencial, de corte normativo. Enquanto órgão de decisão isolada (sentença ou acórdão), o Julgador não possui mais do que auctoritas, emanação de prudência e saber jurídico; no entanto, a coisa julgada superior, sobretudo consolidada como Súmula predominante, além de auctoritas adquire também potestas, e como tal deveria ser acatada quod iussum est, por situar-se no mesmo plano geral das leis.

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Neste campo o Autor discute a questão das súmulas vinculantes, se po-dem e devem ser adotadas no Brasil, e assume posição intermédia: somente algumas súmulas poderão ter eficácia erga omnes, extensiva à Administração; apenas as referentes a questões relevantes de direito público, reiteradas em múltiplas e sucessivas ações sobre os mesmos temas (tributários, previdenciários, salariais, etc); uma vez julgadas e sumuladas, tais questões não mais seriam objeto de ações novas, mas caberia a execução direta dos pedidos, ou seu atendimento imediato pela Administração. Outra questão tratada nesta obra é sobre o denominado uso alternativo do Direito. Entende o Autor que está se formando uma autêntica Escola de Direito, a ser melhor analisada pela crítica dogmática; embora não aprovada, nem seguida por muitos segmentos jurídicos, trouxe, entretanto, para a doutrina, uma rica discussão sobre a liberdade do juiz para julgar segundo uma real consciência social. Para o Autor, os critérios utilizados pelos alternativistas passam pela eqüidade, que é prevista nas leis e na doutrina, sendo, pois, legítima a ampliação dos poderes do juiz pelo uso adequado desse instituto jurídico. Segurança Jurídica e Jurisprudência enfrenta, assim, temas polêmicos, como a supremacia da Jurisprudência em relação à Lei; a adoção, ainda que mitigada, do efeito vinculante para as Súmulas; e o uso alternativo do Direito, cuja prática vem acarretando insegurança aos cidadãos e certa perplexidade na ordem jurídica.