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A GESTO URBANA DO MEDO E DA INSEGURANAViolncia, Crime e Justia Penal na Sociedade Brasileira Contempornea
SRGIO ADORNO(Srgio Frana Adorno de Abreu)
ESE APRESENTADA COMO EXIGNCIA PARCIAL PARA O CONCURSO DE LIVRE-
DOCNCIA EM CINCIAS HUMANAS, JUNTO AO DEPARTAMENTO DE
SOCIOLOGIA, DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO.
So Paulo, maro 1996
2SUMRIO
pg.IntroduoConflitualidade, violncia e impunidade: reflexes sobrea anomia na contemporaneidade................................................................................04
Parte INo temos mortos a lamentar. A violncia na sociedadebrasileira: um painel inconcluso em uma democracia no-consolidada...........................................................................................................44
Captulo 1Violncia e tradio......................................................................................................48
Modernidade e pacificao social..................................................................... ....49
Violncia, herana autoritria e transio poltica.................................................59
Captulo 2Um painel inconcluso: atores e instituies da violncia............................................65
Famlia, cidad acima de qualquer suspeita?.......................................................66
Escola, instituio sob suspeio...........................................................................70
Trabalho, a produo da morte em lugar da reproduo da vida.........................73Campo, exploso incontrolvel da violncia.......................................................
..77Violncia, etnia e cultura......................................................................................
..82Jovens, vtimas e autores da violncia................................................................
.83Violncia criminal versus violncia
policial.............................................................92
Captulo 3As razes sociais da violncia brasileira......................................................................98
3Hiato entre direitos polticos e direitos sociais......................................................101
Autoritarismo socialmente implantado...............................................................112
Continuidade autoritria, ausncia de rupturas.................................................. .117
Duas faces da mesma moeda: violncia e democracia.................................. 120
4Parte IIViolncia, Justia Criminal e Organizao Social do Crime...........................123
Captulo 1Crnicas do medo e da insegurana: os crimes que se contam................ 129
Fatos e acontecimentos............................................................................ 129Cenrios e horizontes............................................................................... 145
Captulo 2Violncia, controle social e cidadania: dilemas das polticaspblicas penais no Brasil............................................................................ .... 161
O crescimento da criminalidade urbana violenta................................... 163O impacto da criminalidade urbana violenta sobre a justia criminal..... 174Polticas pblicas de segurana e justia: a resposta do Estado...............181Nos estreitos limites da segurana do cidado.......................................... 230
Notas.................................................................................................................235
Referncias Bibliogrficas......................................................................... 256
5INTRODUOConflitualidade, violncia e impunidade: reflexes sobre a anomia na
contemporaneidade
eu ponto de partida o livro do socilogo alemo Ralph
Dahrendorf, publicado em lngua inglesa sob o ttulo Law and Order
(London: Stevens & Sons Ltd., 1985). O livro compe-se de quatro
ensaios cujo objeto uma reflexo sobre os dilemas, impasses e o futuro da
ordem social e da liberdade em nossas sociedades contemporneas. Apesar
de publicado h dez anos (no Brasil, a edio portuguesa foi editada pelo
Instituto Tancredo Neves, 1987), ele mantm sua atualidade. Chamou-me
particularmente a ateno um dos temas predominantemente abordados no
livro, qual seja a eroso da lei e da autoridade. Mais do que isso, o fato de
que Dahrendorf toma como pano de fundo para discutir esse clssico tema
a generalizao de um sentimento de insegurana e medo diante da
escalada do crime na sociedade contempornea. Vou destacar algumas das
idias contidas nos ensaios com o risco de empobrec-los, sobretudo porque
se trata de um texto erudito, finamente argumentado, sedutor at.
Desde o incio, ao anunciar seu objeto, o autor adverte que o objetivo
de suas conferncias no uma contribuio para a criminologia ou para o
debate sobre prises e polcia. Como ele mesmo as qualifica, elas
apresentam uma contribuio anlise do conflito social e da teoria poltica
do liberalismo. Bem, preciso de antemo entender o que Dahrendorf est
compreendendo por conflito social na sociedade contempornea. Nisto
reside todo o empreendimento intelectual de sua obra. Em seus primeiros
escritos, produzidos entre meados da dcada de 1950 e a primeira metade
da dcada de 19701, Dahrendorf inclinou-se a polemizar com as teorias de
Parsons e de Marx. No que concerne ao socilogo americano, seus escritos
cuidaram de contestar os fundamentos que regem a teoria parsoaniana do
consenso social. Ao contest-los, Dahrendorf aponta no sentido da
construo de uma teoria do conflito social adequada para a compreenso
de nossa contemporaneidade. Neste terreno, Dahrendorf mantm dilogo
M
6com a obra de Marx. Dahrendorf acolhe as concepes de Marx quanto
natureza do conflito de classes na sociedade industrial de seu tempo, isto
os conflitos predominantes no sculo XIX. No entanto, discorda que o modelo
marxista seja aplicvel sociedade contempornea, por esta entendendo-se
as formas de associao determinadas pela norma imperativa
desenvolvidas no curso do sculo atual. Referindo-se aos propsitos de seu
estudo, afirma: em primeiro lugar, desejo indicar certos modelos de
desenvolvimento social que justificam a afirmao de que a teoria de classes
de Marx falsificada por observaes empricas. Em segundo lugar, no
entanto, pretendo discutir caractersticas das sociedades industriais
avanadas que devem ser levadas em conta por uma teoria do conflito e da
mudana que pretenda ser aplicvel no apenas s sociedades capitalistas,
mas s sociedades industriais em geral (Dahrendorf, 1982: 43)2.
Seu principal argumento emprico relativamente conhecido: o
desenvolvimento industrial ps-Marx promoveu uma acentuada dissociao
entre a propriedade e o controle dos meios de produo, cujos exemplos
mais significativos repousam na proliferao de sociedades annimas, de
cooperativas e de empresas estatais, caractersticas tpicas do sculo XX. A
este fato seguiram-se imediatas conseqncias, entre as quais: reduo das
distncias entre gerentes e operrios; isolamento dos proprietrios da esfera
da produo, esta cada vez mais sob controle dos managers; diferenciao
de papis entre proprietrios e gerentes convertidas em diferenas entre
acionistas e executivos; mudanas nas bases da legitimidade empresarial,
antes ancorada nos direitos de propriedade, hoje em um tipo de autoridade
que em muito se assemelha quela que prevalece entre os diretores de
instituies pblicas; mudanas na composio da classe empresarial, cujo
acesso na atualidade possvel no apenas atravs da herana mas
tambm por intermdio da construo de carreiras burocrticas aliceradas
na educao altamente especializada. De todas essas, a mais importante
conseqncia da decomposio do capital reside nas mudanas que operam
na composio dos grupos sociais que participam dos conflitos, bem como
7nos problemas que os engendram e nos modelos de resoluo que se
desenvolvem.
Dahrendorf identifica cinco substantivas transformaes que afetam a
natureza dos conflitos e tenses na sociedade contempornea. A primeira diz
respeito s diferenciaes no interior da classe trabalhadora, a qual perde no
curso dos acontecimentos a homogeneidade que Marx identificara como
tendncia inexorvel do desenvolvimento social e poltico dessa classe. Ao
contrrio, Dahrendorf anota progressivo crescimento de trabalhadores
altamente qualificados, assemelhados a engenheiros e a trabalhadores de
escritrios; crescimento de trabalhadores semi-especializados, porm com
elevado grau de experincia industrial acumulada; e decrescente participao
dos trabalhadores no totalmente especializados, a maioria deles nesta
condio porque recm-chegados indstria. Associada a este processo,
Dahrendorf tambm observa a emergncia de uma nova classe mdia -
impensvel no modelo marxista de classes sociais -, materializada no
crescimento vigoroso dos trabalhadores de escritrio. Trata-se de um
agrupamento social, que rigorosamente no pode ser conceituado como
classe social sequer como estrato social, cujo comportamento social e
poltico caracterizado pela ambigidade justamente porque parte desses
trabalhadores, os burocratas, se identifica com a burguesia, enquanto outra
parte se identifica com a classe operria. Tudo isso tem, por conseguinte,
efeitos decisivos sobre a natureza dos conflitos contemporneos. Em terceiro
lugar, as transformaes sociais incidem sobre a intensificao da
mobilidade social, entre e intra estratos sociais. Um novo modelo de
alocao de papis institucionaliza-se nas sociedades industriais
contemporneas, fruto da abertura de oportunidades oferecida pelo mercado.
Em quarto lugar, pela primeira vez na histria social moderna criam-se as
condies para que a igualdade se efetive na prtica. Nesse terreno,
Dahrendorf apoia-se em Marshall (1967) para sustentar a existncia de
equalizao de status na sociedade industrial contempornea. Sob esta
perspectiva, a notvel expanso da igualdade social teria tornado as
mudanas revolucionrias politicamente impossveis. Em contrapartida, teria
8contribudo para alterar a substncia dos conflitos de classe, reduzindo sua
intensidade. Disto resulta uma das principais teses contidas na obra de
Dahrendorf: a institucionalizao dos conflitos sociais.
Ele argumenta que as lutas entre classes operrias e empresariado
capitalista, tpicas da Inglaterra entre fins do sculo XVIII e primeira metade
do sculo XIX e tpicas da Europa continental ao longo do sculo XIX,
perderam sua intensidade e mesmo razo de ser, no sculo XX, em virtude
da institucionalizao dos conflitos. Por isto, Dahrendorf entende: por um
lado, o reconhecimento da legitimidade do conflito de interesses e, por essa
via, da legitimidade dos grupos em litgio; por outro lado, o estabelecimento
de procedimentos e de mecanismos voltados para amortecer a violncia dos
choques tte--tte entre os grupos oponentes. No mbito das relaes
industriais, ele refere-se ao desenvolvimento de negociaes coletivas e aos
sistemas de conciliao, mediao e arbitramento. No domnio da poltica,
Dahrendorf sublinha que na atualidade rgos legislativos e tribunais de
justia desempenham funes similares. Darendorf conclui que os conflitos
contemporneos deixaram de gravitar em torno da distribuio escassa de
recursos dentro de limites aceitos, para gravitarem em torno do contrato, ou
seja lutas em que o objetivo principal a lei e a ordem. Nessa linha de
interpretao, o que passou estar no cerne do jogo poltico a maior ou
menor capacidade de distintos grupos sociais influenciarem as estruturas
normativas da sociedade. Em outras palavras, lutas em torno da
desigualdade de poder e de autoridade. Em suas palavras: tanto nas
empresas industriais post-capitalistas quanto nas capitalistas, existem
algumas pessoas cuja tarefa controlar as aes de outros e emitir ordens e
outras pessoas que devem deixar-se controlar e obedecer. Hoje, assim como
h cem anos atrs, h governos, parlamentos e tribunais cujos membros tm
a faculdade de tomar decises que afetam a vida de muitos cidados, e h
cidados que podem protestar e modificar seu voto, mas que tm de
obedecer lei. Na medida em que estas relaes podem ser descritas como
relaes de autoridade, eu afirmaria que as relaes de subordinao e
dominao perduraram atravs das mudanas do ltimo sculo. Acredito
9mesmo que podemos avanar ainda mais. A autoridade exercida tanto na
sociedade capitalista quanto na post-capitalista do mesmo tipo; nos termos
de Weber, uma autoridade racional baseada na crena na legalidade das
normas institucionalizadas e do direito de comando por parte daqueles que,
atravs dessas normas, foram investidos com autoridade. A partir desta
condio seguem-se muitas outras, inclusive a necessidade de
administrao burocrtica. Mas estas ltimas baseiam-se, sobretudo, na
desigualdade social fundamental da autoridade, que pode ser mitigada por
seu carter racional, mas que, no obstante, permeia a estrutura de todas as
sociedades industriais e proporciona o determinante e a substncia da
maioria dos conflitos e choques (Dahrendorf, 1982: 73)3.
Neste momento, a obra de Dahrendorf sofre um redirecionamento.
Uma preocupao cada vez maior para com problemas de anomia na
sociedade contempornea. Trata-se de um problema, em sua concepo,
relacionado ao progresso da liberdade, progresso esse materializado pela
multiplicao das oportunidades de vida4, cujos elementos constitutivos so a
liberdade de escolha, por um lado, e as ligaduras, ou seja os vnculos que
atam os indivduos sociedade. O advento da sociedade moderna significou
incontestavelmente uma expanso das oportunidades de escolha, mas
somente ao preo de desatar as ligaduras existentes (Dahrendorf. Apud Izzo
[1991], p. 376-77). Esse o contexto em que surge Law and Order. Nesta
obra, Dahrendorf sustm sua interpretao do dilema da sociedade
contempornea: as lutas em torno do contrato so concomitantes a um
processo reverso, qual seja caminhamos inexoravelmente para a anomia,
isto , para a eroso da lei e da ordem, cujo principal indicador a atual
incapacidade do Estado de cuidar da segurana dos cidados e de proteger-
lhes os bens. Em que se apia essa constatao de Dahrendorf? Em fatos,
mais propriamente nas tendncias mundiais ao aumento dos crimes e nas
taxas sugestivas de uma retrao na capacidade punitiva do Estado.
Segundo o socilogo, desde a dcada de 1950 e mais
dramaticamente ao longo dos anos 60, verificou-se um aumento substantivo
dos crimes contra a pessoa. As taxas de assassinatos dobraram no perodo,
10
especialmente nos Estados Unidos, Gr-Bretanha, Alemanha, Pases Baixos
e Sucia. A tendncia para cima ainda mais acentuada quando se fala em
assaltos, roubos e estupros. Em trinta anos, teria havido um aumento
considervel do nmero de pessoas que vivem do crime, assim como um
nmero crescente de vtimas. Em outras palavras, pode-se dizer que:
primeiro, maior nmero de pessoas est violando as leis penais; segundo,
maior nmero de pessoas figura como vtimas; terceiro, um universo
considervel de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais est
cada vez mais vulnervel ofensa e ao ataque. Ademais, em funo mesmo
da prosperiedade e do aumento da circulao da riqueza, novas modalidades
de crimes surgiram, como aquelas relacionados ao trfico de drogas.
Em princpio, nada disso tem muita importncia. Dahrendorf dir
mesmo que o problema em si no o aumento dos crimes porm a maior ou
menor tolerncia da sociedade em aceit-los e conviver com eles. Ocorre
que, na sociedade contempornea, essa tolerncia teria chegado a seu limite
mximo, haja vista as reaes e a ansiedade pblica diante da crescente
ameaa do crime. Essa ansiedade pblica diz respeito, por conseguinte, aos
significados que adquirem a eroso da lei e da ordem. Um desses
significados aponta no sentido de que hoje maior a probabilidade de um
criminoso se manter oculto comparativamente ao passado. Dito de outro
modo, h fortes suspeitas, embasadas em estatsticas, de que apenas uma
pequena parcela dos crimes cometidos seja conhecida, problema para o qual
concorrem muitos aspectos (alguns deles identificados no texto, como:
descaso da polcia para com delinqentes conhecidos, desistncia
deliberada de punies, afrouxamento das punies ou incapacidade de se
lidar com as infraes).
Para Dahrendorf, ainda que se considere que ambos os fatos - isto ,
crescimento dos crimes e crescimento das cifras negras (crime oculto) -
sejam conjunturais e mesmo possam ser considerados dentro de uma
normalidade qualquer, tais argumentos no elidem a existncia de um
problema real de lei e ordem na sociedade contempornea, qual seja se as
violaes das normas no so punidas de forma sistemtica, elas se tornam
11
em si sistemticas. Atinge-se assim o campo traioeiro, porm frtil da
anomy, no entender de Dahrendorf no um estado de esprito, mas um
estado da sociedade. A anomia uma condio social em que as normas
reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. Onde
prevalece a impunidade, a eficcia das normas est em perigo. As normas
parecem no mais existir ou, quando invocadas, resultam sem efeito. Tal
processo aponta no sentido da transformao da autoridade legtima em
poder arbitrrio e cruel.
Pois bem, para Dahrendorf, nas sociedades contemporneas assiste-
se ao declnio das sanes. A impunidade torna-se cotidiana. Esse processo
particularmente visvel em algumas reas da existncia social. Trata-se de
reas onde mais provvel ocorrer iseno de penalidade por crimes
cometidos. So chamadas de reas de excluso, a saber:
1) nas mais diferentes sociedades, uma enorme quantidade de furtos
no sequer registrada. Quando registrada, baixa a probabilidade de que o
caso venha a ser investigado. O mesmo vlido para os casos de evaso
fiscal, crime que parece ter institudo uma verdadeira economia paralela e
para o qual h sinais indicativos de desistncia sistemtica de punio.
Segundo Dahrendorf, a conseqncia desse processo que as pessoas
acabaram tomando as leis em suas prprias mos;
2) uma segunda rea afeta juventude. Dahrendorf constata que
em todas as sociedades modernas os jovens so responsveis pela grande
maioria dos crimes, inclusive os crimes mais violentos. No entanto, o que se
observa a tendncia geral para o enfraquecimento, reduo ou iseno de
sanes aplicveis aos jovens. Dahrendorf suspeita de que essa tendncia
seja em grande parte responsvel pelo aumento da delinqncia juvenil;
3) uma terceira o reconhecimento, por parte do cidado comum, de
espaos na cidade que devem ser deliberadamente evitados, isto , o
reconhecimento de reas que se tornaram isentas do processo normal de
manuteno da lei e da ordem. A contrapartida desse fato tem resultado no
rpido desenvolvimento dos sistemas privados de segurana o que se traduz
12
na quebra do monoplio da violncia em mos dos rgos e indivduos
autorizados. Para Dahrendorf, se levado ao extremo esse processo conduz
necessariamente anomia parcial;
4) uma quarta rea de excluso diz respeito prpria falta de direo
ou orientao das sanes. Para o socilogo alemo, quando a extenso das
violaes s normas se tornaram bastante vastas, sua conseqente
aplicao se torna difcil, por vezes impossvel. Motins de ruas, tumultos,
rebelies, revoltas, insurreies, demonstraes violentas, invases de
edifcios, piquetes agressivos de greve e outras formas de distrbios civis
desafiam o processo de imposio de sanes. No h como distingir atos
individuais de protesto macio de autnticas revolues, manifestaes
coletivas de uma exigncia de mudana.
Bem, penso que a exposio, at aqui realizada, recoloca as
principais idias e argumentos de Dahrendorf no primeiro de seus ensaios.
No vou deter-me nos ensaios seguintes, embora eles sejam to importantes
para a arquitetura argumentativa de sua proposta de reconstruo da
sociedade contempornea quanto o captulo inicial do livro. Permito-me,
contudo, fazer algumas menes e tecer algumas consideraes na medida
em que elas encaminham na direo de minhas reservas quanto s
interpretaes de Dahrendorf a respeito dos fatos sociais contemporneos.
No segundo ensaio, intitulado Buscando Rousseau, encontrando
Hobbes, Dahrendorf anuncia sua proposta. Retormando e ampliando suas
idias, ele afirma que o mundo contemporneo caracterizado tanto pelo
enfraquecimento das sanes penais quanto pelo enfraquecimento das
ligaduras (isto , liames sociais que transcendem mudanas culturais de
curto prazo). Esse duplo processo deixou vestgios em fatos, entre os quais a
reforma do direito penal alemo no incio dos anos 60. Dahrendorf critica as
propostas alternativas que vingaram na reforma, introduzindo uma nova
poltica criminal que advogava a recusa das penas que dessocializam o
homem, tais como as de priso, princpio que em ltima instncia entendia o
criminoso como ser carente de cuidados e no sequioso de punies. De
13
acordo com a anlise de Dahrendorf, o efeito prtico dessas concepes,
aplicadas ao direito penal, foi a de enfraquecimento das sanes at s raias
da impunidade. Na mesma direo, detm-se nas concepes de Habermas
sobre a estrutura normativa da sociedade, aproximando-o das concepes
contidas em Emlio e, por essa via, qualificando-o como o Rousseau
contemporneo. Opondo-o s imagens de homem contidas no pensamento
de Kant, conclui afirmando que o grande perigo da contemporaneidade
justamente a impossibilidade de sustentar a sociabilidade insocivel do
homem. Por isso, as solues para esse mundo passam necessariamente
pela reconstituio do contrato, vale dizer, dos liames indispensveis ao
funcionamento do contrato. Em sntese, sua proposta reside na
(re)construo de instituies5.
No terceiro ensaio, intitulado A Luta pelo Contrato Social, Dahrendorf
cuida de contextualizar sua proposta. Para tanto, detm-se em um dos temas
mais presentes em sua sociologia: os novos antagonismos da sociedade
industrial. Aps uma anlise do processo histrico de institucionalizao ou
democratizao dos conflitos sociais, ele vai identificar suas conseqncias
em tipla direo: primeiro, o fracasso do Welfare State (Estado social) como
mecanismo de transferncia de recursos para garantir a efetividade dos
direitos de cidadania para todos; segundo, a emergncia de uma nova
pobreza contituindo sete grupos principais (desempregados, idosos, famlias
monoparentais, doentes e incapazes, os de baixa renda, mulheres solteiras
com dependentes mais velhos e pobres internados em instituies). Todos
eles extremamente dependentes de mecanismos de transferncia de renda
e, mais vulnerveis, incapazes de se defenderem das redues dos
benefcios do Estado social. Terceiro, uma nova exploso de litigiosidade,
no mais entre patres e empregados ou entre ricos e pobres, porm entre a
classe majoritria aqueles que esto empregados e usufruem os direitos de
cidadania e as classes inferiores, compostas de indivduos excludos dos
direitos e considerados dispensveis (aqueles que no dispem de cidadania
como os imigrantes; aqueles que j a dispuseram mas no mais a possuem
14
na sua totalidade, como os idosos e aqueles que ainda no dispem e que
encontram enormes dificuldades de acesso aos direitos, como os jovens).
A concluso deste ensaio caminha no sentido de sugerir que esses
conflitos instituem crises de legitimidade nas sociedades contemporneas,
por isso entendendo-se sua incapacidade de fomentar lealdade a seus
valores bsicos. Da porque a questo do contrato teria se tornado
dominante. em torno dela que reside a alternativa proposta por Dahrendorf
no sentido de um liberalismo radical cuja agenda incluiria enfrentar trs
problemas bsicos: a insero dos jovens, o futuro do trabalho e o problema
da lei e da ordem. Quanto a este ltimo, a proposta no pode se restringir ao
velho remdio rousseuniano e sequer ser substitudo por polticas
econmicas voltadas para uma justia distributiva. Segundo Dahrendorf, o
reconhecimento de que a escalada do crime tem profundas razes sociais,
ligadas falncia do Estado social (Welfare State) no conduz
necessariamente a advogar iseno de sanes para os criminosos
procedentes dos estratos mais pobres da populao. Por liberalismo radical,
entende-se por conseguinte uma nova atitude perante s instituies, atitude
firme e ao mesmo tempo moderada.
Por fim, o ltimo ensaio, intitulado A Sociedade e a Liberdade (alis,
no poderia ser diferente), cuida de apresentar a proposta desse liberalismo
radical. A destacar, trs aspectos. Primeiro, um argumento de fundo que
sempre esteve presente ao longo de toda a arquitetura argumentativa do
texto. Indaga o autor: por que defender as instituies? Sua resposta
simples e direta, embora suscite no poucos problemas. Trata-se de
assegurar a sociabilidade insocivel do homem, base sob a qual as
instituies configuram criaes humanas voltadas para a efetivao dos
direitos do homem e para o controle sistemtico do poder. Da, a
possibilidade de liberdade.
Um segundo aspecto diz respeito ao fato de que, em termos de
polticas pblicas, sua proposta incide nas reas de excluso anteriormente
assinaladas. Em linhas gerais, ele sugere interveno nas seguintes
15
direes: (a) punir crimes atualmente no punidos; (b) ampliar o leque de
oportunidades para os jovens, mas tambm exigir-lhes rigoroso respeito
autoridade; (c) apoio s instituies de lei e de ordem, mediante
estreitamento dos laos entre polcia e comunidades locais, o que em ltima
instncia significa conferir uma abordagem institucional ao problema da lei e
da ordem.
Um terceiro aspecto, por fim, est relacionado, a uma espcie de
atributo que ele agrega sua proposta de liberalismo radical. Trata-se de
uma proposta que deve evitar tanto a anomia quanto a hipernomia (excesso
de normas ameaando sufocar toda iniciativa e liberdade). Esse bte noire
aponta para a necessidade de uma viso sobre o mnimo de respostas
normativas e institucionais que o contrato social pode fornecer. Esse mnimo
diz respeito justia com eqidade6, o que significa dizer que a justia no
est ausente da construo normativa da sociedade.
Creio que esse desenvolvimento ulterior encerra o debate institudo
pelo texto de Dahrendorf. Em meus comentrios, vou privilegiar algumas
questes em detrimento de outras, por mais interessantes e relevantes que
estas possam representar sobretudo para a teoria sociolgica
contempornea. Por exemplo, vou deixar de lado um dos alicerces
epistemolgicos do texto sobre o qual se edifica a arquitetura argumentativa
de Dahrendorf. Refiro-me sociabilidade insocivel do homem, princpio
que sustm suas concepes de contrato social, conflitos, anomia e
hipernomia, etc. Trata-se de um princpio seguramente inspirado na
metafsica kantiana e que me parece propor problemas insolveis7. No
mesmo sentido, no vou me ocupar detidamente de uma crtica aos limites
postos pelos fundamentos liberais da Sociologia de Dahrendorf, embora no
se possa ignor-los quando menos por suas implicaes tericas8.
Eu gostaria, no entanto, de comear por uma pequena observao,
margem do texto, para em seguida questionar-lhe os fatos. O que me parece
estranho uma espcie de non-sense histrico que percorre o raciocnio e
os argumentos de Dahrendorf. Por um lado, o texto prope-se a abordar os
16
novos antagonismos da sociedade contempornea, nuclearizados em torno
das lutas pelo contrato social, os quais remetem a problemas de efetivao
da lei e da ordem. Para tanto, recorre com freqncia ao contraste entre
passado e presente, seja comparando as lutas sociais dos sculos XVIII e
XIX com as do sculo atual, seja comparando a evoluo da criminalidade e
das sanes, por exemplo, nos ltimos trinta anos. Essa comparao
sempre feita a partir de um olhar que, do passado, v o presente. Ao faz-lo,
v o presente em crise, ora como crise de legitimidade (em relao s
normas) ora como crise de autoridade (em relao ao poder de imp-las). A
imagem flagrante do texto a de decadncia. Da, os perigos disseminados
por todo o tecido social: crime em excesso criando situaes sociais
intolerveis, sanes no-aplicadas, gerao de reas de excluso etc.
O tratamento dos problemas contemporneos nesses termos supe
um anacronismo histrico, qual seja o de buscar-se inspirao no passado
para compreender o presente9. Disso resulta inevitavelmente um paradoxo: a
recuperao de uma linguagem tpica de fins do sculo XIX para reconstruir
fatos contemporneos. Assim que se fala em anomia, crise de autoridade,
eroso da lei, recuperao das instituies, tudo lembrando o universo
sociolgico durkeimiano, forjado quela poca para dar conta dos elementos
anmicos da diviso social do trabalho. No por acaso tambm que esses
temas sejam empiricamente tratados sob os mesmos signos que socilogo
francs reservara para dar conta daqueles elementos anmicos, como sejam
o crime e o sistema de sanes. Como apontam Lagrange & Roch (1993),
h uma impressionante associao entre as linguagens de fins do sculo XIX
e fins do sculo XX. Nelas, o crime ocupa a face dianteira da cena pblica:
converte-se em inquietao coletiva, em objeto de interesse por parte dos
analistas e em alvo da moralidade pblica e dos princpios da organizao
social, a despeito dos contextos sociais e polticos que marcam ambos
perodos no serem comparveis.
Desde fins do sculo XIX, diferentes observadores - jornalistas,
literatos, historiadores, socilogos, artistas - da sociedade francesa
vincularam o fim do sculo passado a uma era de degradao da ordem e da
17
segurana, simbolizadas pela desgenerecncia racial, pelos vcios morais,
pela degradao dos valores, pela difuso de perturbaes mentais de toda
sorte. Analistas como Joly e Tarde (apud Lagrange & Roch, 1993)
constatam que a criminalidade vinha aumentando muito rapidamente desde o
incio do sculo XIX. Mais do que a gravidade dos crimes, o que os
preocupava era o crescente volume da pequena delinquncia, fenmeno
interpretado como resultante de um relaxamento dos costumes. Les
criminologes ont limpression dune transformation radicale de la socit,
rapide et violente. Les cadres sociaux et psychologiques sont mis bas. Trop
de ruptures se conjuguent pour permettre que la stabilit ncessaire se
ralise. La socit, pense comme un organisme, est malade, et les maladies
sont infectieuses. Le danger est dautant plus intense que la socit moderne
en multipliant les contacts favorise limitation et la diffusion des conduites
criminelles. Parmi les inquitudes de cette fin de sicle, les criminologues
retiennent principalement certaines. Il sagit de ce quon porrait rsumer sous
lide dune mort des communauts: la famille, le village, lautorit de lEglise
et du gouvernement. (Lagrange & Roch, 1993: 85-86).
Na cidade, o crime converte-se em atividade racional, pressupondo
um clculo de custos e benefcios. Da que migrar do campo para a cidade
destri as referncias territoriais e morais. Como apontava Joly, a emigrao
peridica conduzia primeiro vagabundagem, depois delinqncia.
Lagrange et Roch sublinham que o anonimato das multides urbanas no
somente atraiu a ateno dos criminlogos, mas tambm de socilogos do
incio do sculo XX como Weber, Tnnies, Durkheim e Simmel, todos
impressionados com o aparecimento dessa nova figura da vida social: o
outro, esse desconhecido. Na mesma direo, criminlogos criticam a crise
da famlia. Sustentam que, quando a famlia claudica, o crime se expande.
De modo geral, manifestaram-se preocupados com as desventuras da
instituio familiar: a diminuio do nmero de seus membros, a dissoluo
dos laos do casamento, os abortos. Para muitos, o divrcio tinha o mesmo
estatuto moral do suicdio e do crime. Finalmente, os criminlogos
responsabilizam os conflitos polticos pela elevao acentuada dos crimes.
18
Mais particularmente, o que est no cerne do debate a natureza do
governo democrtico, cuja dinmica poltica, dissensual por excelncia,
considerada carente de estabilidade e de elites moderadas. Suas razes
reportar-se-iam Revoluo Francesa. Na leitura de Tarde, o egosmo e as
pulses revolucionrias explicariam a estatstica criminal. Na leitura de Joly,
quanto mais se avana no sculo, mais a autoridade se desorganiza. A
presena das multides na arena poltica corromperia a sociedade, a escola
e os sindicatos (Lagrange & Roch, 1993: 83-98).
Ainda que se possa reconhecer a agudez de Durkheim e de seus
contemporneos Tarde e Joly no diagnstico dos problemas da sociedade
moderna, no h como deixar de reconhecer tambm as pronunciadas
diferenas entre a sociedade por eles observada e a sociedade
contempornea. Com isso, estou argumentando que, para serem
compreendidos, os fatos contemporneos precisam ser vistos seno com os
olhares da contemporaneidade. Reporto-me aqui a uma passagem de
Foucault to sugestiva quanto enigmtica. Em Vigiar e Punir, comentando a
atualidade das revoltas nas prises em todo o mundo e justificando seu
interesse pela histria das prises, ele afirma: desta priso, com todos os
investimentos polticos do corpo que ela rene em sua arquitetura fechada,
que eu gostaria de fazer a histria. Por puro anacronismo? No, se
entendemos com isso fazer a histria do passado nos termos do presente.
Sim, se entendermos com isso fazer a histria do presente (Foucault, 1977b:
32). Essa passagem oferece uma idia do modo pouco convencional como
Foucault aborda a histria, os fatos pretritos e o presente. Nessa passagem,
Foucault parece fazer meno ao anacronismo de nossos procedimentos
usuais e habituais de reconstruo histrica, nos quais o passado lido,
reconstrudo, perquirido, vasculhado com vistas a explicitar o presente e
iluminar os caminhos do prprio curso histrico. Sob essa perspectiva,
passado, presente e futuro encontram-se inexoravelmente atados, cabendo
ao historiador explicitar seu sentido e direo. Trata-se em ltima instncia
de uma histria circular. No no sentido que se lhe atribuam na antigidade
clssica (de uma circularidade determinada pelo movimento natural da vida e
19
da morte, na busca incessantemente renovada da eternidade ); porm no
sentido de um eterno retorno s origens. Assim, tudo est previamente dado
e, por essa via, a explicao uma espcie de profecia que se auto-realiza.
O anacronismo resulta portanto da eterna repetio do mesmo. No h lugar
para o acontecimento. A histria no a atualidade do presente, do novo, do
inesperado, do inaudito, do que muda e do que mudado. Penso que nesta
passagem Foucault aponta para uma das mais espinhosas questes da
epistemologia das cincias sociais: no existem fatos objetivos, porm
construes histricas as quais, acrescentar ao longo desse livro, esto
imersas em um regime de verdade e de poder.
Ora, se assim , o que est justamente em causa no texto de
Dahrendorf a atualidade e contemporaneidade dos fatos narrados como
objetivos. Ao contrrio, os fatos apontados consistem em construes
histricas e culturais, dependentes portanto dos regimes de poder e verdade
em jogo, os quais, por isso mesmo, contrem nossa contemporaneidade. Por
isso, possvel opor s interpretaes de Dahrendorf outras interpretaes,
fatos contra fatos, para ao final perguntar o principal: qual , enfim, o regime
de poder e verdade subjacente e que sustm a atualidade das demandas
contemporneas por ordem social. Isso o que se procurar explorar e
responder mais frente. Por ora, contentemo-nos em questionar-lhes os
fatos.
Diferentes analistas concordam que, aps uma perodo longo de
relativa estabilidade (1860-1950) nas taxas de criminalidade, tenha se
verificado, em diferentes sociedades, fortes tendncias para o crescimento
dos crimes. Ao que tudo indica, essas tendncias manifestaram-se
inicialmente nos pases de lngua inglesa e tradio anglo-sax, estendendo-
se pouco a pouco para os pases de tradio catlica, inclusive aqueles
situados na Amrica Latina (Robert & Van Outrive, 1993; Robert e outros,
1994; Weiner & Wolfgang, 1985; Wright, 1987). No vem ao caso mencionar
cifras para contrap-las s apresentadas por Dahrendorf. No entanto, no h
como deixar de trazer o debate para o mbito da sociologia criminal (ou da
criminologia como queriam alguns), justamente uma rea que aquele autor
20
procurou evitar. E, por que? Porque, a despeito das convergncias entre as
afirmaes de Dahrendorf e as de especialistas, h inmeras ponderaes
que no podem ser ignoradas e das quais se cercam os pesquisadores
experimentados.
De fato, essas avaliaes so feitas a partir dos crimes conhecidos,
isto , dos crimes detectados e registrados pelas agncias encarregadas de
controle da ordem pblica e de conteno da delinqncia. H transgresses
que no chegam ao conhecimento da autoridade pblica. Entre o conhecido
e o desconhecido, h um gap que, na literatura especializada, se
convencionou chamar de cifras negras. Qual a extenso desse gap? Bem,
pouco se sabe de concreto. Desde h duas dcadas, vm se aperfeioando
as chamadas pesquisas vitimolgicas atravs das quais se busca examinar o
movimento da criminalidade da perspectiva das vtimas e ao mesmo tempo
mensurar o gap. Os procedimentos metodolgicos so altamente
sofisticados, porm enfrentam obstculos srios porque lidam
fundamentalmente com a memria das vtimas. Essa a razo porque os
resultados ainda tm que ser vistos com algumas reservas10. Para se ter uma
idia, no que concerne conduo de veculos sob efeitos do lcool, um
Instituto de pesquisas sobre o trfico observou, h alguns anos, que apenas
1 caso entre 20.000 era conhecido pela polcia. Talvez essas taxas sejam
anlogas no que concerne ao uso de drogas ilcitas. Nos Pases Baixos,
sabe-se que o volume de denncias de violncia em locais pblicos
corresponde a cerca de 20% de todos os casos verificados. Assim, no se
tem bases cientficas, fidedignas, para confirmar que tenha havido de fato um
aumento da criminalidade nos ltimos trinta ou quarenta anos. Pode ser que
as tendncias observadas reflitam outro tipo de comportamento: maior
inclinao dos cidados em denunciar os crimes de que foram vtimas. Isso
sugere, por conseguinte, que o sentimento de insegurana e medo diante do
crime e o desejo de mais punies, em especial punies mais rigorosas,
parecem responder por outras inquietaes que vo alm do domnio da
delinqncia.
21
Mas, h outros aspectos dignos de reparos. Dahrendorf estabelece
uma sorte de conexo direta entre o aumento dos crimes e o
enfraquecimento ou iseno de punies. Estabelece, por conseguinte, uma
relao de causalidade entre fatos diversos. Uma coisa o aumento dos
crimes. Ele pode estar relacionado a diversas causas, como mudanas no
comportamento delinqente, mudanas no comportamento das vtimas ou
dos cidados comuns, mudanas nas formas habituais de sociabilidade com
repercusso sobre os ilegalismos e sobre os prprios objetos da delinqncia
(Foucault, 1977b). J a distribuio de sanes funo dos dinamismos do
aparelho penal, em particular dos nexos entre as agncias policiais, as
agncias de acusao (Ministrio Pblico), os tribunais de justia e o
complexo prisional bem assim do empenho das autoridades em apurar os
crimes. Assim, o crescimento dos crimes pode ser ou no acompanhado de
um crescimento de sanes, por mais desejvel que seje a correspondncia
entre ambos crescimentos do ponto de vista social e poltico.
Alm do mais, h que se anotar duas constataes feitas pelos
especialistas que contrariam sobremodo os fatos objetivos com que
Dahrendorf pretende caracterizar a eroso da lei e da ordem na sociedade
contempornea. Primeiro, os estudos so unnimes em mostrar uma forte
tendncia, desde o sculo passado, na estatizao do controle penal e da
sano (Cusson, 1990), tendncia que nada tem a ver com outra tendncia
contempornea que a da privatizao dos servios de segurana, melhor
dizendo dos servios de preveno e vigilncia contra o crime, cujo
dinamismo atende aos estmulos de mercado (Erbs, 1990-91; Ocqueteau,
1988, 1990-91; Ocqueteau & Pottier, 1995). Se as taxas de condenao
pena de priso esto em declnio isso no significa um afrouxamento dos
controles penais ou do sistema de sanes; antes, deve-se relativa
diminuio da pena de supresso da liberdade no conjunto do arsenal penal.
De qualquer forma, tem-se observado em contrapartida um aumento das
taxas de encarceramento, prtica sob o encargo da polcia. Em segundo
lugar, no verdade que as penas tenham sido amortecidas ou suavizadas
nas democracias ocidentais. Estudos demonstram que nos Estados Unidos,
22
Inglaterra e Pases Baixos as tendncias tm se inclinado para a maior
severidade das penas, nas duas ltimas dcadas (Hulsman, 1990).
Nessa mesma direo, altamente discutvel a maior contribuio dos
jovens para o aumento da criminalidade. bem que verdade que, em
distintas sociedades, a delinqncia juvenil adquire maior ou menor
gravidade, podendo mesmo contribuir de modo acentuado para a
criminalidade, em especial a de tipo violento. Nunca demais lembrar que o
envolvimento dos adolescentes com a criminalidade adulta suscita desafios
agudos s polticas de proteo e preveno. Seja o que for, no h
nenhuma evidncia emprica fidedigna de que aquela tendncia venha se
generalizando e se tornando dominante, como pretende Dahrendorf. De igual
modo, no aceitvel o argumento segundo o qual h, nas sociedades
contemporneas, forte inclinao para proteger os jovens delinqentes,
isentando-os da aplicao de sanes. Diversos estudos mostram que as
tendncias da legislao da infncia e da adolescncia, perfilando a
orientao de organismos normativos internacionais, tm sido no sentido de
evitar abusos na aplicao de medidas ou na distribuio de sanes. Essa
exigncia requer de parte dos agentes encarregados de implementar normas
estatutrias o dicernimento rigoroso de situaes, determinando-se medidas
diferenciadas segundo a gravidade das infraes, as quais inclusive prevm
limitao de direitos e supresso de liberdade. Alm do mais, em no poucos
pases, a maioridade penal ocorre aos quinze ou dezesseis anos, fazendo
com que muitos jovens estejam, ainda adolescentes, sujeitos aos rigores da
legislao penal aplicvel aos adultos (Lahalle & outros, 1994).
Resulta desses questionamentos uma indagao inevitvel: por que
uma reao punitiva seria mais adequada do que respostas no punitivas
para os problemas de conflitualidade e litigiosidade das sociedades
contemporneas? Por que o desejo obssessivo de punir, de punir mais e
sempre com maior intensidade? Bem, pretendo avanar algo nessa direo a
seguir.
23
Retomando a exposio anterior, pode-se dizer, perfilando
Dahrendorf, que o crescimento da criminalidade e e o suposto aumento da
impunidade resultam na eroso da lei e da ordem nas sociedades
contemporneas. O Estado aparece como incapaz de cuidar da segurana
dos cidados e de proteger seus bens, materiais e simblicos. No cerne da
demanda por ordem se aloja no apenas o sentimento de que o passado
se perdeu inexoravelmente pela avalange do progresso histrico,
sentimento simbolizado nas imagens de pnico moral proporcionados pela
concentrao urbana, pela crise da famlia, pela irrupo das multides na
arena poltica. A perda sentida como ausncia de solidariedade, de
esgaramento dos vnculos morais que conectam indivduos s instituies,
ausncia sacramentada pelo definhamento da autoridade. Tudo se passa
como se os interesses egostas suplantassem o bem comum. Seu sintoma, a
exploso de litigiosidade entre o indivduo e a sociedade, to bem descrita
por Durkheim em inmeras de suas obras, resultaria na desobedincia civil,
na perda desse sentimento segundo o qual agir bem obedecer bem
(Durkheim, 1963. Apud Fernandes, 1994: 83). Ademais, no cerne da
demanda por ordem est paradoxalmente a reivindicao de mais
legalidade porm no contexto de aguda crtica ao Estado democrtico de
Direito. Na verdade, o que se reivindica no a lei como princpio de
limitao do poder arbitrrio ou de instrumento de garantia de direitos;
contudo, a lei como veculo de imposio autoritria da ordem, numa palavra
de punio. Por isso, ao questionar o conservadorismo que subjaz leitura
de Dahrendorf quanto ao cerne dos problemas contemporneos, busquei
questionar-lhe os fatos. No apenas censurei-lhe sua leitura conservadora da
histria como meus argumentos podem ser resumidos em quatro
proposies: primeiro, a constatao de um aumento da criminalidade, nos
ltimos trinta anos, matria controvertida; segundo, no h per si uma
relao de causalidade entre o movimento da criminalidade e o movimento
das punies; terceiro, no se constata uma tendncia para a suavizao
dos sistemas de sanes, como pretende Dahrendorf; quarto, na mesma
direo, no se sustm o argumento de que os jovens venham sendo
24
beneficiados com uma legislao punitiva branda, a despeito do crescimento
da delinqncia juvenil.
A esses argumentos, poder-se-ia acrescentar outros. Nunca demais
lembrar que, a despeito dos avanos globais conquistados em termos de
respeito dos direitos humanos, nas trs ltimas dcadas, as foras
repressivas tenderam a se tornar mais agressivas e mesmo violentas no
enfrentamento do crime. Isso tanto mais verdadeiro em sociedades com
forte tradio autoritria, onde vigem regimes polticos no-democrticos ou
que se encontram em processo de transio democrtica (ODonnell, 1988;
Pinheiro, 1991a). Um outro aspecto a ser considerado que Dahrendorf, ao
eleger a eroso da lei e da ordem como o cerne do problema
contemporneo, no se inclina a indagar sobre os mltiplos significados da
lei e dos direitos para diferentes grupos sociais. No Brasil, por exemplo,
sabe-se atravs de alguns estudos e pesquisas que as diferentes classes
sociais no se sujeitam obedincia dos estatutos legais sob qualquer
princpio moral ou tico fundado na convivncia poltica pacfica. Terceiro,
parte substantiva das propostas apresentadas por Dahrendorf, enfeixadas
em torno do que ele nomeia de liberalismo radical, encerram as solues dos
problemas contemporneos nos marcos de uma reforma institucional
tendente seja a conferir maior racionalizao aos servios pblicos de
segurana pblica, seja a estreitar os laos entre os cidados e sua polcia.
Em outras palavras, parte das solues (insisto em sublinhar parte porque
Dahrendorf sublinha outras que no se limitam ao mbito da reforma
institucional) gravita em torno da maior eficcia operacional das agncias de
controle da ordem pblica. Ora, no h quaisquer garantias de que reformas
institucionais, por mais desejveis que sejam, possam baixar as taxas de
criminalidade e, por essa via, oferecer ao cidado comum o sentimento de
que tem seus bens, materiais e simblicos, protegidos.
Impe-se assim retirar o debate sobre a criminalidade urbana e suas
formas de conteno do campo onde ele se confinou, h cerca de duas
dcadas, e persiste confinado. Cuida-se de problematizar11 a demanda por
ordem que se encontra presentemente quer nas falas do cidado comum,
25
quer das autoridades encarregadas de formular e implementar polticas
pblicas penais, falas freqentemente veiculadas pela imprensa escrita e
pela mdia eletrnica e que inclusive no se encontra ausente do debate
acadmico e do discurso cientfico. Nas acres crnicas da insegurana e do
medo do crime, nos fatos e acontecimentos que sugerem a fragilidade do
Estado em velar pela segurana dos cidados e proteger-lhes os bens,
materiais e simblicos, nos cenrios e horizontes reveladores dos confrontos
entre defensores e opositores dos direitos humanos inclusive para aqueles
encarcerados, julgados e condenados pela justia criminal, tudo converge
para um nico e mesmo propsito: o de punir mais, com maior eficincia e
maior exemplaridade. Trata-se de propsito que se espelha em no poucas
demandas: maior policiamento nas ruas e nos locais de concentrao
populacional, sobretudo as habitaes populares consideradas celeiro do
crime e de criminosos; polcia mais intolerante para com os criminosos;
justia criminal menos condescente com os direitos dos bandidos e mais
rigorosa na distribuio de sanes penais; recolhimento de todos os
condenados s prises que devem se transformar em meios exemplares de
punio e disciplina. Com nuanas entre os mais radicais que advogam pena
de morte e imposio de castigos fsicos aos delinqentes e os mais liberais
que pretendem o aperfeioamento dos instrumentos legais de conteno
repressiva dos crimes, todos gravitam em torno de um imperativo categrico:
o obsessivo desejo de punir.
Um empreendimento desta ordem requer retomar o debate no mesmo
terreno em que ele havia sido circunscrito por Dahrendorf; isto , o terreno
dos conflitos e da litigiosidade na sociedade contempornea. Porm, uma
retomada que enseja advertncias. Uma primeira advertncia: nas
sociedades contemporneas no h mais espao para pensar conflitos numa
verso liberal. Como se sabe, o pensamento liberal tende a privatizar
conflitos cuja origem social. Os conflitos so vistos como conflitos entre
indivduos entre si, entre indivduos e sociedade, entre indivduos e Estado.
No sem motivos que a problemtica do crime e da punio tenha ocupado
tanta ateno dos socilogos liberais. No registro liberal, essa problemtica
26
diz respeito ao confronto entre a conscincia coletiva (conscincia de um
imperativo categrico, a sano) e a conscincia individual, materializada em
torno da responsabilidade penal do criminoso. Dificilmente, fatos
contemporneos como racismo, genocdio, excluso, narcotrfico configuram
modalidades de conflito e litigiosidade enquadrveis nos estreitos limites
ditados pela viso liberal. Portanto, preciso pensar esses fatos tendo por
eixo no o indivduo, porm coletivos.
Uma segunda advertncia: queiramos ou no, preciso ter claro que
os fatos constituem narrativas sociais que instituem em determinados
momentos histricos, por exemplo em conjunturas particulares, um certo
arranjo de formas de solidariedade, de reciprocidade e de conflito. Trata-se
de um arranjo precrio, dependente do confronto e direo que tomam as
foras sociais em gravitao no interior de um campo determinado (social,
poltico, cultural), precrio porque sempre sujeito a ser rearranjado e
rearmado. Isso significa que, para compreender fatos, como os fatos
contemporneos, preciso adotar uma atitude nominalista, evitando-se
sejam as tentaes metafsicas - como a busca de um fio condutor ltimo,
como a sociabilidade insocivel do homem (Dahrendorf) - sejam as
inclinaes no sentido de atribuir estatuto de cientificidade s interpretaes
(Foucault, 1979). Nominalismo significa antes de tudo trazer os fatos
superfcie da sociedade, isto , faz-los emergir no torvelinho de prticas e
representaes, sem meno a um sujeito demiurgo ou a intenes excusas
que se escondem por detrs dos prprios fatos.
*.*.*
nestes termos que se pretende trazer para o debate um fato
contemporneo: o crime organizado e, em especial uma de suas
modalidades, qual seja o narcotrfico. Em que medida o crime
organizado um fato contemporneo? Se no, em que consiste sua
contemporaneidade?
27
Seguramente, o crime organizado no uma inveno recente. Ao
que parecem sugerir estudos histricos, seus rudimentos podem ser
buscados nos bandos milenaliristas que proliferaram pela Europa central,
Itlia e Espanha desde a Idade Mdia. Sua verso moderna est
profundamente marcada pelas organizaes da Itlia meridicional, em
particular a Cosa Nostra, pelas organizaes do sul da Frana (Marselha e
Crsega), em fins do sculo XIX e incio do XX, e sobretudo pelas
organizaes americanas sediadas em Chicago e New York entre as
dcadas de 1910 e fins da dcada de 1930. Muitas das caractersticas que
hoje se observam no crime organizado j estavam de fato presentes
naquelas formas anteriores de organizao delinqente. Por exemplo,
caractersticas como: recrutamento preferencial de jovens; valor atribudo
posse da arma de fogo donde decorre uma disposio gratuita para matar;
monoplio altamente concentrado das atividades criminais; estruturas de
mando rigidamente hierarquizadas e personalizadas, reatualizadas por rituais
precisos e codificados segundo normas particulares e regidas pelo segredo;
manuteno de milcias particulares em moldes militarizados; fixao de uma
rede de informantes e espias. Nesse conjunto de prticas, lugar estratgico
conferido corrupo. Sem a cumplicidade dos agentes pblicos, sem o
estabelecimento de conluios entre o crime organizado e segmentos da
burocracia estatal, certamente as atividades no teriam se expandido como
de fato se expandiram, ainda que em ondas no sucessivas.
Desde o esclarecedor estudo de Hobsbawn (1959, ed. bras.1970),
sabe-se que o florescimento das mfias fenmeno social recente, datando
do sculo XIX. Compreendem distintas formas de ao e de comportamento
social, entre as quais se destacam trs: primeiro, uma atitude geral em
relao ao Estado de Direito. As contendas entre grupos rivais no se
resolvem mediante apelo a cdigos universais ou a tribunais de justia
pblica. O nico cdigo reconhecido a omert (virilidade), cujo princpio
fundamental interdita a prestao de informaes a autoridades pblicas.
Esse tipo de comportamento social desenvolve-se em sociedades que no
gozam de ordem pblica efetiva ou em sociedades cujos cidados encaram,
28
hostilmente, parte ou a totalidade das autoridades (como, por exemplo, nas
cadeias pblicas ou no submundo fora delas) ou com menosprezo em
relao a coisas realmente importantes (por exemplo, escolas) ou
combinando ambas as coisas (Hobsbawn, 1970:49). Em segundo lugar, diz
respeito ao patronato como forma de organizao dominante. Onde quer que
tenham se instalado, as mfias tiveram por eixo um chefe, todo poderoso,
em torno do qual gravitava todo um corpo de dependentes e colaboradores,
constituindo fina e complexa rede de influncia capaz de oferecer e vender
proteo. Na Siclia, o estabelecimento do patronato inviabilizou qualquer
outra forma alternativa de poder contnuo. Terceiro, refere-se ao controle
virtual e total da vida em uma comunidade qualquer por um secreto sistema
de gangs. Neste particular, ressalta Hobsbawn, as mfias eram seno uma
rede de gangs locais, controlando territrios determinados, via de regra uma
comuna ou um latifundium, relacionadas entre si to somente por intermdio
das migraes de trabalhadores para colheitas, atravs das ligaes entre
proprietrios, seus advogados e as cidades, bem como por meio das
inmeras feiras disseminadas pelo pas. Suas caractersticas essenciais:
violncia desmedida, virilidade profissional, paratisismo e banimento, tudo
controlado por rituais de iniciao e senhas meticulosamente padronizadas.
Assim, ...a mfia (nos trs sentidos da palavra) forneceu uma mquina
paralela de direito e de poder organizados; (...) Em uma sociedade como a
siciliana em que o Governo oficial no podia ou no exercia um controle
efetivo, o aparecimento de tal sistema era to inevitvel quanto a presena
de um poder de gang, ou a sua alternativa, bandos privados e vigilantes em
certas partes da Amrica do laissez-faire. O que distingue a Siclia a
extenso e a coeso desse sistema privado e paralelo de poder. [...] No era,
contudo, universal, porque nem todas as camadas da sociedade siciliana
precisavam igualmente dele (Hobsbawn, 1970: 52-53). Na verdade, as
mfias desenvolveram-se nas reas cujas atividades econmicas - pastos,
pomares, minas -, se revelavam carentes de proteo vital diante dos
freqentes furtos e assaltos de que eram alvo.
29
No incio, meados do sculo XIX, as mfias no assumiram de pronto
sua faceta de organizao de gangs. Floresceram no curso dos
acontecimentos que convergiram para a unificao italiana. Para os grandes
e pequenos proprietrios de terra, sequiosos por se defenderem contra o
explorador estrangeiro (o governo Bourbon ou o governo piemonts), as
embrionrias mfias, de bases genuinamente populares, representavam um
mecanismo de proteo social e de afirmao nacional local. Conforme
anota Hobsbawn, essas primeiras organizaes estiveram presentes nos
movimentos revolucionrios liberais de Palermo, de 1820, 1848 e 1960 assim
como participaram do primeiro grande levante contra a dominao do
capitalismo do Norte, em 1866. Na realidade, devemos supor que a Mfia
comeou, verdadeiramente, a aumentar de poder (e abuso) quando se
tornou um movimento regional siciliano de revolta contra os insucessos da
unificao da Itlia, na dcada de 1860, e quando se tornou um movimento
mais eficiente do que a guerra de guerrilha dos bandidos, paralela e
contempornea, na Itlia continental e meridional (Hobsbawn, 1970: 60).
Seu crescimento, expanso, auge e transformao foram impulsionados por
trs circunstncias: primeiro, o surgimento de relaes capitalistas no interior
da sociedade intaliana promoveu a politizao dos operrios fabris e dos
camponeses que, com suas prticas polticas, vieram progressivamente
substituir as velhas tticas de dio incontido e conspirador presentes nos
massacres que caracterizavam os levantes locais. Com a emergncia dos
novos atores sociais e polticos, a vocao revolucionria das mfias, seu
espectro de movimento social de massas, declina acentuadamente,
permanecendo restritos s reas mais pobres e atrasadas da parte oriental
da Siclia.
Em segundo lugar, o prprio modo como o capitalismo se desenvolveu
contribuiu para acomodar interesses entre o Norte e o Sul. Nesta regio, a
nova classe de proprietrios rurais - os gabellotti - e seus correspondentes
urbanos no se confrontaram com os capitalistas do Norte. Antes,
estabeleceu-se uma sorte de diviso social do trabalho. Como os
proprietrios do Sul no estavam quela poca interessados no
30
desenvolvimento das manufaturas, se confortaram com a condio de
fornecedores de produtos hortifrutigranjeiros para o Norte. Converteram-se
em espcie de colnia agrria, dependente do vigor e do dinamismo
econmicos das manufaturas setentrionais. Por fim, uma das virtudes da
poltica liberal veio alimentar o poder das mfias. Com o poder do Norte, veio
tambm a modernidade poltica, ou seja, a extenso do direito de voto. Para
os poderosos do Norte interessava contar com o apoio e mesmo a
subservincia poltica do Sul, mesmo que para tanto fosse necessrio
subornar governos ou fazer concesses aos chefes locais. Se concesses e
subornos pouco representavam, do ponto de vista financeiro, para o rico
Norte, para o Sul representaram uma diferena mpar, at h pouco
inteiramente desconhecida: a possibilidade dos chefes locais penetrarem no
universo dos interesses poltico-partidirios. Os chefes mafiosos
converteram-se em chefes polticos locais. A organizao poltica siciliana,
i.e., a Mfia, passou ento a fazer parte do sistema governamental de
patronato e a barganhar sempre mais efetivamente porque os seguidores
incultos e longnquos levaram certo tempo para compreender que no
estavam mais votando para a causa da rebelio. (...) O verdadeiro reino da
Mfia j se estabelecera. Agora, era uma grande fora. Seus membros
sentavam-se como deputados em Roma e enfiavam colheres na parte mais
espessa do caldo do Governo: grandes bancos, escndalos nacionais
(Hobasbawn, 1970: 63).
Entre 1860 e 1890, as mfias reinaram quase sem contestaes. No
final do sculo XIX, sua estrela comea a declinar. Hobsbawn identifica, aqui
tambm, trs circunstncias que favoreceram seu declnio. Primeiro, a
diversificao do mercado poltico comea a oferecer outras alternativas s
massas de trabalhadores e camponeses que pouco a pouco se distanciam
do poder de fogo dos chefes mafiosos. De fato, o aparecimento das ligas
camponesas, dos socialistas e posteriormente dos comunistas, cuja
expanso eleitoral entre fins do sculo passado e duas primeiras metades do
sculo XX foi espantosa nas zonas rurais sob influncia dos mafiosos,
contribuiu para a descoberta entre as classes populares de formas de
31
participao e representao polticas distintas das modalidades extremadas
de terror empregadas pelos mafiosos em sua imposio e manuteno
arbitrria da ordem local. Uma vez que a Mafia no podia mais controlar as
eleies acabou por perder muito da fora que lhe vinha do patronato. Em
vez de ser um sistema paralelo, era agora apenas um grupo poderoso de
presso, politicamente falando (Hobsbawn, 1970: 65). Segundo, dissenes
internas mfia logo se tornaram manifestas. Tratava-se de dissenes
entre as velhas e novas geraes em regies onde os lucros eram escassos
e no havia - ou ao menos no se vislumbravam - alternativas ao
desemprego. De um lado, as velhas geraes constitudas de gabellotti cuja
mentalidade paroquial pouco as diferenciava dos camponeses. De outro
lado, as geraes mais jovens, constitudas dos prprios filhos e filhas dos
gabellotti, melhor preparados do ponto de vista educacional do que seus
genitores e gozando, por conseguinte, de status social mais elevado. O
agravamento das tenses geracionais verificou-se justamente no contexto do
estreitamento das oportunidades de sobrevivncia autnoma, o que
condicionou muitos a derivarem para o crime. Esse inclusive o perodo de
intensa migrao para os Estados Unidos. Terceiro, o advento do facismo foi
fatal para as mfias. Os facistas no apenas desencadearam campanhas
contra os mafiosos como a suspenso das eleies privou-lhes de
persistirem se apropriando do aparelho estatal como instrumento de
liqidao de grupos rivais bem como moeda corrente nas negociaes
ilcitas em Roma. Assim, durante o interldio entre as duas guerras mundiais,
as organizaes mafiosas tenderam ao desaparecimento, quando menos ao
retrocesso. Renasceram em 1943, s vsperas do fim da II Grande Guerra.
Se, ao renascer, no reconquistaram sua antiga influncia poltica e sua
posio chave nos conchavos poltico-partidrios, modernizaram seus
negcios em torno de atividades econmicas ilegais altamente rendosas
como o cmbio negro, o contrabando e possivelmente o trfico internacional
de drogas.
De toda essa longa histria, reproduzida a partir do estudo de
Hobsbawn, interessa ressaltar alguns aspectos. O nascimento, expanso e
32
declnio das organizaes mafiosas acompanharam pari passu as
vicissitudes da vida econmica e poltica italiana. Nascido de um movimento
social revolucionrio, de fortes bases e tradies populares, contra os
usurpadores estrangeiros, transitou para uma forma de organizao poltica
paralela ao poder de Estado. Combinando patronato poltico-social, regulado
por rituais de referncia e reafirmao do poder arbitrrio do mais forte,
justamente aquele que dispe da capacidade de mando e obedincia
irrestritos, com formas modernas de representao poltica, as organizaes
mafiosas traduziram, em determinado momento da histria social e poltica
italianas, uma alternativa de participao no modelo de poder concntrico
institudo pelos potentados do Norte, modelo alimentado pelo liberalismo
poltico em voga quela poca, ltimo quartel do sculo passado. Tratou-se
de uma cunha nesse modelo ainda que essa alternativa tenha sido nada
democrtica porque pouco sensvel aos interesses e necessidades das
classes populares. Na verdade, tudo sugere o quanto os processos de
acumulao de riqueza e de acumulao e concentrao de poder
tangiversaram as possibilidades de existncia das organizaes mafiosas,
determinando-lhes inclusive sua deriva para o mundo da delinqncia, seja
na prpria Itlia, seja nos Estados Unidos. Vale notar, contudo, que as
organizaes mafiosas jamais se colocaram como uma necessidade
intrnseca da prpria economia ou mesmo do desenvolvimento poltico.
Nessa medida, no se constituram em pea essencial do poder poltico ou
elemento indispensvel ao funcionamento legal do aparelho de Estado. Disto
resulta tambm que no lograram expanso para alm de suas bases locais,
s quais permaneceram via de regra aprisionadas. De fato, quando os lucros
possveis e o poder disponvel estimularam as tenses entre as velhas e
novas geraes de mafiosos, a alternativa foi emigrar e no a descoberta de
outros territrios que pudessem servir de ampliao das redes e de
acomodao dos interesses12.
Ao que tudo parece indicar, na contemporaneidade o crime
organizado reaparece, agregando novas prticas s tradicionais. O trfico
internacional de drogas, uma de suas modalidades atuais mais significativas,
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padece de problema semelhante. O narcotrfico compreende um conjunto
diversificado de atividades e operaes, o qual articula, em nvel
internacional, a produo (com todo o seu processo artesanal, semi-
artesanal e industrial), a circulao, a distribuio e o consumo. Por
intercambiar uma mercadoria proibida na maior parte das sociedades, o
narcotrfico mobiliza toda uma economia subterrnea: distintos
mecanismos de acumulao (que compreendem uma combinao de formas
de assalariamento, semi-assalariamento, pagamento em espcie) geram
uma renda da qual parte substantiva apropriada na remunerao de
atividades de suporte ou subsidirias como o abastecimento de armas, a
manuteno de milcias locais particulares, o treinamento e formao de
pistoleiros profissionais e sobretudo manuteno de uma rede de
colaboradores, destinada a facilitar o transporte da droga, pelos mais
variados meios, atravs das fronteiras entre pases. Da a necessidade de
consumir vultuosos capitais para garantir postos privilegiados de circulao,
entre os quais campos particulares de pouso. Da tambm a funcionalidade
da corrupo em toda essa economia subterrnea, sediada inclusive em
aeroportos, portos e zonas aduaneiras e alfandegrias (Labrousse, 1994;
Salama, 1994; Kozel & Lambert, 1992; Arrieta e outros, 1991; Schiray,
1989,1992 e 1994; Fonseca, 1992)13.
Alm do mais, essa modalidade de economia subterrnea
altamente verticalizada e verticalizadora. Ela tende a colonizar outras
modalidades delituosas, submetendo-as a seu domnio. Atividades
anteriormente realizadas por soturnos e individualizados delinqentes ou por
bandos isolados, como roubos, seqestros, contrabandos acabam
articuladas ao narcotrfico. O caso do contrabando de armas exemplar. Ele
presta-se no somente a modernizar e nutrir o arsenal blico sofisticado
disposio dos traficantes, como tambm a proporcionar fonte de renda
adicional. A propsito, convm relembrar que a circulao monetria
fundamental nessa economia subterrnea, da porque a lavagem de
dinheiro, atravs de operaes financeiras complexas e sofisticadas, porm
dotadas de alguma segurana, to vital para a sobrevivncia do
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narcotrfico. Da tambm o papel estratgico desempenhado pelas
instituies bancrias cuja cumplicidade raramente colocada sob suspeio
(Arlacchi, 1992; Lewis, 1994).
No bastassem essas conexes que o narcotrfico estabelece com o
mercado e o Estado, ele tambm encadeia e introduz microscpicos
desarranjos no tecido social. No passado, a organizao delinqente tinha
claro as diferenas entre o mundo da ordem e da legalidade e o mundo dos
ilegalismos. Havia ntida distino entre trabalho e delinqncia. O
narcotrfico rompeu com essa tradicional distino. Muitos dos jovens
recrutados em massa para a organizao o so na condio de
trabalhadores assalariados, no importando o posto que venham inicialmente
a ocupar. Tal no significa contudo a introjeo de uma tica vocacional do
trabalho ou a criao de uma solidariedade ombro a ombro. Ao contrrio,
institui-se uma competitividade tal, movida por um individualismo exacerbado
e por uma desconfiana extremada em qualquer um14. Radicalizada at s
ltimas conseqncias, essa competitividade instituinte da guerra entre
quadrilhas. Por isso, esses jovens, desde cedo socializados para o ingresso
na guerra, o so tambm para lidar com a morte e sua iminncia. Aqui se
revela um dos mais agudos paradoxos da contemporaneidade: no pice do
processo civilizatrio, os avanos tecnolgicos esto colocando em evidncia
a fragilidade da vida, os inmeros perigos e riscos que a cercam. Sob essa
tica, talvez o crime organizado constitua de fato o cerne do problema
contemporneo, menos pelos seus efeitos sobre a ordem e a legalidade e
muito mais pelas incertezas que ele institui (Pecaut, 1991 e 1994; Arrieta e
outros, 1991)15.
De qualquer modo, o crime organizado tambm prope problemas
novos, insolveis a curto prazo, para a Justia penal. O que tem sido
evidenciado, seja no narcotrfico, seja nos casos de alta corrupo
envolvendo agentes do Estado, que as leis penais no podem ser
aplicadas do mesmo modo que so aplicadas s modalidades delituosas
cometidas pelo delinqente comum. Os processos penais que tem como alvo
o crime organizado, em especial o trfico internacional de drogas, ensejam
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uma complexidade mpar. Em primeiro lugar, porque a natureza das
operaes pouca conhecida. Envolve uma rede de atores, situados em
mltiplos pontos da estrutura social com funes extremamente
diferenciadas. Ademais, tudo funciona base do segredo, lei do silncio
cuja transgresso severamente punida, no raro com a morte de um
suspeito, o que arrasta atrs de si toda uma cadeia de tantos outros suposta
ou efetivamente comprometidos com a ruptura do pacto. Com isso dilui-se a
materialidade da infrao - a qual somente pode ser objeto de interveno
judicial caso perfeitamente caracterizada sob o ponto de vista das exigncias
legais - bem como se dilui a precisa identificao da responsabilidade penal.
H ainda uma terceira situao. Diz respeito aquela em que tanto a
infrao est perfeitamente caracterizada face aos requisitos legais quanto
so conhecidos seus provveis autores. Contudo, a trama de tal forma
intrincada que no se pode estabelecer uma relao de causalidade, um
nexo entre a materialidade da infrao e seus possveis autores. Assim, a
justia penal, fortemente influenciada pelos princpios liberais, cujo eixo
principal repousa na suposio do livre arbtrio e, por conseguinte, na
responsabilidade individual, fica impossibilitada de exercer uma de suas
funes primordiais, qual seja a de assegurar a pacificao da sociedade
mediante julgamento e responsabilizao dos atos considerados lesivos
ordem pblica.
Com isso, no mbito tambm do narcotrfico, a materialidade do delito
e a responsabilidade individual no so passveis de perfeita e exata
caracterizao. No sem motivos, quando a justia penal consegue exercer
alguma interveno nessa rea, seus resultados so irrisrios e seus efeitos
pouco eficazes. Por que? Na maior parte das vezes em que situaes como
esta ocorrem, os acusados ou so consumidores, ou pequenos e mdios
traficantes que no desfrutam de um sistema privado de proteo e de
imunidades contra a ao da Justia. Essas intervenes contudo no
resultam na desmontagem de toda uma organizao que se recompe em
outros lugares e com novos recursos, e movida por outros indivduos,
recrutados para desempenharem as distintas funes de transporte,
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vigilncia, venda etc. Essa parece ser uma situao tpica, mesmo quando
toda uma rede ou quadrilha tenha cado nas mos da justia penal.
Exemplos de situaes como essa so encontrados cotidianamente na
crnica policial de cidades como Rio de Janeiro e So Paulo16. Para o
cidado comum, incapaz de compreender toda essa complexa rede de
relaes sociais a qual subordina a corrupo e o trfico de influncias ao
narcotrfico, o que de fato releva uma justia penal frouxa, inoperante,
ineficiente, impossibilitada de ver reconhecida sua autoridade, conivente at
por omisso com o crescimento da criminalidade urbana violenta. No h
razes portanto para se estranharem as opinies favorveis ao justiamento
privado e a outras modalidades privadas de punio e vingana, que
compreendem, em sociedades como a brasileira, a aplicao de castigos
fsicos e mesmo da pena de morte, isto , medidas que desprezam a
mediao da Justia pblica.
Em resumo, a partir de uma anlise crtica de ensaio de Ralph
Dahrendorf sobre a eroso da lei e da ordem na sociedade contempornea,
procurei desconstruir os argumentos contidos no ensaio sugerindo as
mudanas que incidem sobre o modo de assujeitamento dos indivduos. Mais
do que liberao dos indivduos dos liames e controles sociais, para alm de
um problema de ligaduras, o que parece estar no centro das radicais
transformaes da ordem neste final do sculo o modo como os indivduos
governam a si e aos outros (Foucault, 1984). Para sustentar esta hiptese,
tomei como paradigma de anlise um caso: a colonizao da criminalidade
pelo crime organizado, em particular por ao de uma de suas modalidades
mais emblemticas de produo da violncia no mundo contemporneo - o
narcotrfico. Esse recorte analtico e emprico conduziu-me a indagar: em
que medida o pluralismo jurdico, cujos contornos comeam a ser
detectados, bem como as formas emergentes de contratualidade, no
necessariamente enfeixadas no Estado, no estariam - ao promoverem
mudanas no diagrama liberal (Ewald, 1986) -, incidido sobre tradicionais e
convencionais concepes de responsabilidade penal centrada no indivduo,
pouco compatveis com a emergncia e generalizao do crime organizado?
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Bem, penso que essa breve e impressionista descrio do crime
organizado sugere que os problemas sociais contemporneos so muito
mais complexos do que aventou Dahrendorf. As formas explosivas de
litigiosidade, nos mais diferentes campos da existncia social, no se
acomodam s frmulas e parmetros ditados pela institucionalizao ou
democratizao dos conflitos na sociedade industrial. Como Dahrendorf,
concordamos que o crime e suas formas de punio representam um dos
mais candentes problemas contemporneos. Discordamos contudo quanto
natureza desse problema. Segundo me parece, o problema no reside na
eroso da lei e da ordem, que seno um efeito, porm na inadequao dos
controles sociais tradicionais e convencionais sociedade de risco (Ewald,
1986), modo como se pode qualificar as sociedades contemporneas. Por
isso, preciso repensar o estatuto do controle social na contemporaneidade.
O controle social, algo mais amplo do que o controle da ordem pblica,
parece ter esgotado suas funes no interior de modelos tradicionais. Por um
lado, os mecanismos de presso social sobre o comportamento dos
indivduos, que operaram sobretudo na esfera da moralidade, pblica e
privada, no parecem suscitar nem o sentimento de medo, sequer o de
angstia diante das possibilidades, sempre abertas, de violao das normas
sociais. como se operasse uma sorte de dissociao entre as imposies
morais e as prticas sociais. Segundo Roch, nos socits urbaines et
complexes ont liber lhomme du contrle social. Elles ont ouvert des
opportunits dans tous les domaines, et notamment en matire de
dlinquance. [...] Mais linscurit nen constitue pas moins lexpression de
nos socits faites de lieux anonymes ncessaires une circulation
acclere des biens et des personnes, du declin de ltat dans ses capacits
rgler la violence et imposer son sceau la socit. Linscurit souligne
galement le dficit de confiance entre les personnes qui caractrise notre
socit: entre ses membres, entre le systme politique et ses administrs. La
confiance est pourtant un ingrdient essentiel de la vie sociale. Linscurit
souligne le fractionnement entre groupes sociaux et ethniques, labsence de
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dynamique dintgration collective, brisant net lillusion rpublicaine dune
socit une et indivisible (Roch, 1994: 13-16).
Por um lado, nunca demais lembrar. NA Educao Moral (1963),
Durkheim defende a tese de que somente a submisso regra exterior,
impessoal e abstrata capaz de conter as foras rebeldes que habitam o
indivduo, contendo portando os apetites imoderados e o individualismo
exacerbado. Essa luta de si para consigo traduz-se em educao moral cujos
princpios fundantes so: disciplina, adeso a um grupo social e autonomia
da vontade. Preenchidos esses requisitos, a sociedade pode funcionar em
sua regularidade. Ora, a moralidade na sociedade contempornea parece
justamente caminhar em sentido oposto. Em lugar da aposta no
universalismo, na austeridade e no autocontrole, a moral contempornea
hedonista e particularista, valoriza a espontaneidade, a dessublimao da
vida pulsional, a inverso da relao paixo-razo, impulso e prazer como
afirmadores da existncia (Sennett, 1987; Lash 1983 e 1986). Nesse
movimento, no estranho que questes ticas tenham e venham sendo
trazidas para o centro do debate contemporneo. De igual modo, no fora
de propsito que a corrupo, uma prtica to antiga quanto rotineira em
nossas sociedades, tenha se constitudo em problema social e poltico seno
recentemente (Martins, 1994). No interior desse cenrio, parece pouco
razovel fiar-se a obedincia s normas na existncia suposta de um sujeito
autnomo, por natureza cioso das virtudes da disciplina social.
Por outro lado, as ticas vocacionais, muitas delas dotadas de forte
inspirao religiosa que, no passado, asseguravam o represamento das
pulses e do desejo (Weber, 1974), se no mais parecem mecanismos
slidos para conter os conflitos dos indivduos entre si e com a sociedade,
muito menos ainda o so para evitar as tenses entre coletivos sociais. Est-
se em plena era das paixes, sem que quaisquer interditos ou freios morais
subjetivos consigam objetivar a experincia social. Os homens vem o
mundo como espelho de si mesmo e no se interessam por eventos externos
a no ser que desenvolvam um reflexo de sua prpria imagem. Deixaram de
compartilhar um fundo comum de signos pblicos. Assim, torna-se
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impossvel a busca do auto-interesse esclarecido (Sennett, 1987; Rouanet,
1987). O sinal mais visvel desse processo reside na acentuada perda de
eficcia da tica vocacional do trabalho, cujos efeitos se manifestam em
todas as classes sociais, em particular entre as classes trabalhadoras.
O esgotamento dos modelos convencionais de controle social sugere,
por conseguinte, que preciso repens-lo. E repens-lo a partir do lugar
onde ele foi originalmente concebido pela teoria sociolgica clssica, qual
seja a sociedade. A complexa problemtica do controle social no se encerra
no domnio exclusivo dos aparelhos repressivos de Estado. Com isso, penso
que a crtica e problematizao das demandas contemporneas por ordem
social sofrem um deslocamento em seu eixo de referncia: do poder poltico
para o poder social. Tal perspectiva compreende a reflexo sobre as formas
de interao e sociabilidade em emergncia, quer entre as classes populares
quer entre as demais classes sociais, bem como as modalidades de
socializao que informam o comportamento sobretudo dos jovens na
sociedade contempornea e que fomentam variadas interpretaes acerca
do uso das normas e de sua eficcia, prtica e simblica. Nesse terreno,
impe-se investigar os modelos de autoridade em emergncia, repertoriando
os mltiplos e atuais sentidos atribudos a todos os elementos que compem
o universo normativo, como as leis, os direitos, as instituies, as sanes,
bem como o peso que figuras de autoridade - como o pai, o patro, o
conselheiro local, o delegado, o magistrado, o padre, a parteira, o grupo de
pares etc. - ocupam resignificadas nos processos de socializao em curso.
Tal perspectiva vem, nesse sentido, recuperar um dos objetos mais
tradicionais da teoria sociolgica clssica cujas questes pareciam, at h
pouco, completamente elucidadas, qual seja o processo de socializao.
Por fim, uma agenda que se proponha repensar o estatuto do controle
social, problematizando suas formulaes tradicionais e convencionais, no
pode ignorar o papel do Estado no controle social, em particular no controle
da ordem pblica. Todavia, esse papel no pode mais ser examinado em
termos de eficcia ou fracasso. Dahrendorf afirma, nos ensaios citados, que
um dos problemas fundamentais da sociedade contempornea que o
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controle da ordem pblica na sociedade moderna foi inspirado em Locke e
Rousseau, porm, ao implement-lo, essa mesma sociedade se encontrou
face face, e mesmo se identifica, com o Estado leviat de Hobbes. Com
isso, creio, o socilogo liberal est fazendo meno ao fato de que o controle
social (inclusive o controle da criminalidade) se espreme entre duas foras
antagnicas: por um lado, a anarquia social que seria decorrente de
propostas irrealistas de justia social; por outro lado, o autoritarismo,
inspirador de propostas que supem desprezo, suspenso ou violao de
direitos individuais. Ora, impe-se neste captulo justamente colocar a
questo fora desses termos dicotmicos. preciso problematizar a prpria
natureza, perfil e funes do Estado na contemporaneidade, as quais
extravazaram os limites ditados pelo modelo contratual de organizao
societria. Como vem demonstrando vrios analistas, em particular
Boaventura de Sousa Santos, cabe considerar que, na atualidade, o Estado
cada vez mais caracterizado pelo pluralismo jurdico e pela coexistncia de
mais de uma ordem jurdica no mesmo espao geopoltico, o que contrasta
com as clssicas funes e caractersticas do Estado moderno. Nesse
terreno, preciso lembrar que vivemos sob a gide uma uma civilizao do
risco que arrasta atrs de si importantes conseqncias polticas, em
especial para as formas de controle social penal, tudo enfeixado em torno de
um Estado de Preveno. Trata-se de uma modalidade de organizao
estatal, voltada prioritariamente para a preveno e para a segurana,
tendente a orientar-se segundo normas e mecanismos decisrios que
reorganizam sem cessar reaes a situaes de urgncia estrutural ou
conjuntural (Wagner & Baratta, 1994). Trata-se, por conseguinte, de um
Estado armado contra o perigo e que tende a ver inimigos por toda a trama
do tecido social17.
Para terminar, talvez se esteja agora em condies de lanar uma
hiptese explicativa para uma questo anteriormente formulada: pode ser
que a obsesso punitiva de nossa sociedade contempornea, materializada
nas chamadas demandas por ordem social se explique justamente pelo
modo de funcionamento da sociedade de risco que edifica toda uma imensa
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e resistente superestrura de preveno e segurana (atravs da proliferao
das sociedades de seguro e dos mecanismos de vigilncia privada) para
fazer face aos medos, perigos e ameaas que tornam a vida humana, social
e intersubjetiva, absolutamente incerta. Da por que, no bojo de fenmenos
aparentemente to diferentes e distanciados no tempo e no espao, como
sejam as catstrofes, as epidemias, os acidentes, o desemprego crnico,
extremismos polticos, os crimes esteja um mesmo e nico problema: uma
profunda crise de racionalidade que atravessa a sociedade contempornea
de alto a baixo e que coloca sob suspeio todas as apostas nas virtudes do
progresso tcnico, da modernizao e do bem-estar proporcionado pela
sociedade industrial.
*.*.*
arece, por conseguinte, no