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 A GESTÃO URBANA DO MEDO E DA INSEGURANÇA Violência, Crime e Justiça Penal na Sociedade Brasileira Contemporânea SÉRGIO DORNO (Sérgio França Adorno de Abreu ) ESE APRESENTADA COMO EXIGÊNCIA PARCIAL PARA O CONCURSO DE LIVRE- DOCÊNCIA EM CIÊNCIAS HUMANAS, JUNTO AO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA, DA FACULDADE DE FILOSOFIA,LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. São Paulo, março 1996

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  • A GESTO URBANA DO MEDO E DA INSEGURANAViolncia, Crime e Justia Penal na Sociedade Brasileira Contempornea

    SRGIO ADORNO(Srgio Frana Adorno de Abreu)

    ESE APRESENTADA COMO EXIGNCIA PARCIAL PARA O CONCURSO DE LIVRE-

    DOCNCIA EM CINCIAS HUMANAS, JUNTO AO DEPARTAMENTO DE

    SOCIOLOGIA, DA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO.

    So Paulo, maro 1996

  • 2SUMRIO

    pg.IntroduoConflitualidade, violncia e impunidade: reflexes sobrea anomia na contemporaneidade................................................................................04

    Parte INo temos mortos a lamentar. A violncia na sociedadebrasileira: um painel inconcluso em uma democracia no-consolidada...........................................................................................................44

    Captulo 1Violncia e tradio......................................................................................................48

    Modernidade e pacificao social..................................................................... ....49

    Violncia, herana autoritria e transio poltica.................................................59

    Captulo 2Um painel inconcluso: atores e instituies da violncia............................................65

    Famlia, cidad acima de qualquer suspeita?.......................................................66

    Escola, instituio sob suspeio...........................................................................70

    Trabalho, a produo da morte em lugar da reproduo da vida.........................73Campo, exploso incontrolvel da violncia.......................................................

    ..77Violncia, etnia e cultura......................................................................................

    ..82Jovens, vtimas e autores da violncia................................................................

    .83Violncia criminal versus violncia

    policial.............................................................92

    Captulo 3As razes sociais da violncia brasileira......................................................................98

  • 3Hiato entre direitos polticos e direitos sociais......................................................101

    Autoritarismo socialmente implantado...............................................................112

    Continuidade autoritria, ausncia de rupturas.................................................. .117

    Duas faces da mesma moeda: violncia e democracia.................................. 120

  • 4Parte IIViolncia, Justia Criminal e Organizao Social do Crime...........................123

    Captulo 1Crnicas do medo e da insegurana: os crimes que se contam................ 129

    Fatos e acontecimentos............................................................................ 129Cenrios e horizontes............................................................................... 145

    Captulo 2Violncia, controle social e cidadania: dilemas das polticaspblicas penais no Brasil............................................................................ .... 161

    O crescimento da criminalidade urbana violenta................................... 163O impacto da criminalidade urbana violenta sobre a justia criminal..... 174Polticas pblicas de segurana e justia: a resposta do Estado...............181Nos estreitos limites da segurana do cidado.......................................... 230

    Notas.................................................................................................................235

    Referncias Bibliogrficas......................................................................... 256

  • 5INTRODUOConflitualidade, violncia e impunidade: reflexes sobre a anomia na

    contemporaneidade

    eu ponto de partida o livro do socilogo alemo Ralph

    Dahrendorf, publicado em lngua inglesa sob o ttulo Law and Order

    (London: Stevens & Sons Ltd., 1985). O livro compe-se de quatro

    ensaios cujo objeto uma reflexo sobre os dilemas, impasses e o futuro da

    ordem social e da liberdade em nossas sociedades contemporneas. Apesar

    de publicado h dez anos (no Brasil, a edio portuguesa foi editada pelo

    Instituto Tancredo Neves, 1987), ele mantm sua atualidade. Chamou-me

    particularmente a ateno um dos temas predominantemente abordados no

    livro, qual seja a eroso da lei e da autoridade. Mais do que isso, o fato de

    que Dahrendorf toma como pano de fundo para discutir esse clssico tema

    a generalizao de um sentimento de insegurana e medo diante da

    escalada do crime na sociedade contempornea. Vou destacar algumas das

    idias contidas nos ensaios com o risco de empobrec-los, sobretudo porque

    se trata de um texto erudito, finamente argumentado, sedutor at.

    Desde o incio, ao anunciar seu objeto, o autor adverte que o objetivo

    de suas conferncias no uma contribuio para a criminologia ou para o

    debate sobre prises e polcia. Como ele mesmo as qualifica, elas

    apresentam uma contribuio anlise do conflito social e da teoria poltica

    do liberalismo. Bem, preciso de antemo entender o que Dahrendorf est

    compreendendo por conflito social na sociedade contempornea. Nisto

    reside todo o empreendimento intelectual de sua obra. Em seus primeiros

    escritos, produzidos entre meados da dcada de 1950 e a primeira metade

    da dcada de 19701, Dahrendorf inclinou-se a polemizar com as teorias de

    Parsons e de Marx. No que concerne ao socilogo americano, seus escritos

    cuidaram de contestar os fundamentos que regem a teoria parsoaniana do

    consenso social. Ao contest-los, Dahrendorf aponta no sentido da

    construo de uma teoria do conflito social adequada para a compreenso

    de nossa contemporaneidade. Neste terreno, Dahrendorf mantm dilogo

    M

  • 6com a obra de Marx. Dahrendorf acolhe as concepes de Marx quanto

    natureza do conflito de classes na sociedade industrial de seu tempo, isto

    os conflitos predominantes no sculo XIX. No entanto, discorda que o modelo

    marxista seja aplicvel sociedade contempornea, por esta entendendo-se

    as formas de associao determinadas pela norma imperativa

    desenvolvidas no curso do sculo atual. Referindo-se aos propsitos de seu

    estudo, afirma: em primeiro lugar, desejo indicar certos modelos de

    desenvolvimento social que justificam a afirmao de que a teoria de classes

    de Marx falsificada por observaes empricas. Em segundo lugar, no

    entanto, pretendo discutir caractersticas das sociedades industriais

    avanadas que devem ser levadas em conta por uma teoria do conflito e da

    mudana que pretenda ser aplicvel no apenas s sociedades capitalistas,

    mas s sociedades industriais em geral (Dahrendorf, 1982: 43)2.

    Seu principal argumento emprico relativamente conhecido: o

    desenvolvimento industrial ps-Marx promoveu uma acentuada dissociao

    entre a propriedade e o controle dos meios de produo, cujos exemplos

    mais significativos repousam na proliferao de sociedades annimas, de

    cooperativas e de empresas estatais, caractersticas tpicas do sculo XX. A

    este fato seguiram-se imediatas conseqncias, entre as quais: reduo das

    distncias entre gerentes e operrios; isolamento dos proprietrios da esfera

    da produo, esta cada vez mais sob controle dos managers; diferenciao

    de papis entre proprietrios e gerentes convertidas em diferenas entre

    acionistas e executivos; mudanas nas bases da legitimidade empresarial,

    antes ancorada nos direitos de propriedade, hoje em um tipo de autoridade

    que em muito se assemelha quela que prevalece entre os diretores de

    instituies pblicas; mudanas na composio da classe empresarial, cujo

    acesso na atualidade possvel no apenas atravs da herana mas

    tambm por intermdio da construo de carreiras burocrticas aliceradas

    na educao altamente especializada. De todas essas, a mais importante

    conseqncia da decomposio do capital reside nas mudanas que operam

    na composio dos grupos sociais que participam dos conflitos, bem como

  • 7nos problemas que os engendram e nos modelos de resoluo que se

    desenvolvem.

    Dahrendorf identifica cinco substantivas transformaes que afetam a

    natureza dos conflitos e tenses na sociedade contempornea. A primeira diz

    respeito s diferenciaes no interior da classe trabalhadora, a qual perde no

    curso dos acontecimentos a homogeneidade que Marx identificara como

    tendncia inexorvel do desenvolvimento social e poltico dessa classe. Ao

    contrrio, Dahrendorf anota progressivo crescimento de trabalhadores

    altamente qualificados, assemelhados a engenheiros e a trabalhadores de

    escritrios; crescimento de trabalhadores semi-especializados, porm com

    elevado grau de experincia industrial acumulada; e decrescente participao

    dos trabalhadores no totalmente especializados, a maioria deles nesta

    condio porque recm-chegados indstria. Associada a este processo,

    Dahrendorf tambm observa a emergncia de uma nova classe mdia -

    impensvel no modelo marxista de classes sociais -, materializada no

    crescimento vigoroso dos trabalhadores de escritrio. Trata-se de um

    agrupamento social, que rigorosamente no pode ser conceituado como

    classe social sequer como estrato social, cujo comportamento social e

    poltico caracterizado pela ambigidade justamente porque parte desses

    trabalhadores, os burocratas, se identifica com a burguesia, enquanto outra

    parte se identifica com a classe operria. Tudo isso tem, por conseguinte,

    efeitos decisivos sobre a natureza dos conflitos contemporneos. Em terceiro

    lugar, as transformaes sociais incidem sobre a intensificao da

    mobilidade social, entre e intra estratos sociais. Um novo modelo de

    alocao de papis institucionaliza-se nas sociedades industriais

    contemporneas, fruto da abertura de oportunidades oferecida pelo mercado.

    Em quarto lugar, pela primeira vez na histria social moderna criam-se as

    condies para que a igualdade se efetive na prtica. Nesse terreno,

    Dahrendorf apoia-se em Marshall (1967) para sustentar a existncia de

    equalizao de status na sociedade industrial contempornea. Sob esta

    perspectiva, a notvel expanso da igualdade social teria tornado as

    mudanas revolucionrias politicamente impossveis. Em contrapartida, teria

  • 8contribudo para alterar a substncia dos conflitos de classe, reduzindo sua

    intensidade. Disto resulta uma das principais teses contidas na obra de

    Dahrendorf: a institucionalizao dos conflitos sociais.

    Ele argumenta que as lutas entre classes operrias e empresariado

    capitalista, tpicas da Inglaterra entre fins do sculo XVIII e primeira metade

    do sculo XIX e tpicas da Europa continental ao longo do sculo XIX,

    perderam sua intensidade e mesmo razo de ser, no sculo XX, em virtude

    da institucionalizao dos conflitos. Por isto, Dahrendorf entende: por um

    lado, o reconhecimento da legitimidade do conflito de interesses e, por essa

    via, da legitimidade dos grupos em litgio; por outro lado, o estabelecimento

    de procedimentos e de mecanismos voltados para amortecer a violncia dos

    choques tte--tte entre os grupos oponentes. No mbito das relaes

    industriais, ele refere-se ao desenvolvimento de negociaes coletivas e aos

    sistemas de conciliao, mediao e arbitramento. No domnio da poltica,

    Dahrendorf sublinha que na atualidade rgos legislativos e tribunais de

    justia desempenham funes similares. Darendorf conclui que os conflitos

    contemporneos deixaram de gravitar em torno da distribuio escassa de

    recursos dentro de limites aceitos, para gravitarem em torno do contrato, ou

    seja lutas em que o objetivo principal a lei e a ordem. Nessa linha de

    interpretao, o que passou estar no cerne do jogo poltico a maior ou

    menor capacidade de distintos grupos sociais influenciarem as estruturas

    normativas da sociedade. Em outras palavras, lutas em torno da

    desigualdade de poder e de autoridade. Em suas palavras: tanto nas

    empresas industriais post-capitalistas quanto nas capitalistas, existem

    algumas pessoas cuja tarefa controlar as aes de outros e emitir ordens e

    outras pessoas que devem deixar-se controlar e obedecer. Hoje, assim como

    h cem anos atrs, h governos, parlamentos e tribunais cujos membros tm

    a faculdade de tomar decises que afetam a vida de muitos cidados, e h

    cidados que podem protestar e modificar seu voto, mas que tm de

    obedecer lei. Na medida em que estas relaes podem ser descritas como

    relaes de autoridade, eu afirmaria que as relaes de subordinao e

    dominao perduraram atravs das mudanas do ltimo sculo. Acredito

  • 9mesmo que podemos avanar ainda mais. A autoridade exercida tanto na

    sociedade capitalista quanto na post-capitalista do mesmo tipo; nos termos

    de Weber, uma autoridade racional baseada na crena na legalidade das

    normas institucionalizadas e do direito de comando por parte daqueles que,

    atravs dessas normas, foram investidos com autoridade. A partir desta

    condio seguem-se muitas outras, inclusive a necessidade de

    administrao burocrtica. Mas estas ltimas baseiam-se, sobretudo, na

    desigualdade social fundamental da autoridade, que pode ser mitigada por

    seu carter racional, mas que, no obstante, permeia a estrutura de todas as

    sociedades industriais e proporciona o determinante e a substncia da

    maioria dos conflitos e choques (Dahrendorf, 1982: 73)3.

    Neste momento, a obra de Dahrendorf sofre um redirecionamento.

    Uma preocupao cada vez maior para com problemas de anomia na

    sociedade contempornea. Trata-se de um problema, em sua concepo,

    relacionado ao progresso da liberdade, progresso esse materializado pela

    multiplicao das oportunidades de vida4, cujos elementos constitutivos so a

    liberdade de escolha, por um lado, e as ligaduras, ou seja os vnculos que

    atam os indivduos sociedade. O advento da sociedade moderna significou

    incontestavelmente uma expanso das oportunidades de escolha, mas

    somente ao preo de desatar as ligaduras existentes (Dahrendorf. Apud Izzo

    [1991], p. 376-77). Esse o contexto em que surge Law and Order. Nesta

    obra, Dahrendorf sustm sua interpretao do dilema da sociedade

    contempornea: as lutas em torno do contrato so concomitantes a um

    processo reverso, qual seja caminhamos inexoravelmente para a anomia,

    isto , para a eroso da lei e da ordem, cujo principal indicador a atual

    incapacidade do Estado de cuidar da segurana dos cidados e de proteger-

    lhes os bens. Em que se apia essa constatao de Dahrendorf? Em fatos,

    mais propriamente nas tendncias mundiais ao aumento dos crimes e nas

    taxas sugestivas de uma retrao na capacidade punitiva do Estado.

    Segundo o socilogo, desde a dcada de 1950 e mais

    dramaticamente ao longo dos anos 60, verificou-se um aumento substantivo

    dos crimes contra a pessoa. As taxas de assassinatos dobraram no perodo,

  • 10

    especialmente nos Estados Unidos, Gr-Bretanha, Alemanha, Pases Baixos

    e Sucia. A tendncia para cima ainda mais acentuada quando se fala em

    assaltos, roubos e estupros. Em trinta anos, teria havido um aumento

    considervel do nmero de pessoas que vivem do crime, assim como um

    nmero crescente de vtimas. Em outras palavras, pode-se dizer que:

    primeiro, maior nmero de pessoas est violando as leis penais; segundo,

    maior nmero de pessoas figura como vtimas; terceiro, um universo

    considervel de comportamentos e bens protegidos pelas leis penais est

    cada vez mais vulnervel ofensa e ao ataque. Ademais, em funo mesmo

    da prosperiedade e do aumento da circulao da riqueza, novas modalidades

    de crimes surgiram, como aquelas relacionados ao trfico de drogas.

    Em princpio, nada disso tem muita importncia. Dahrendorf dir

    mesmo que o problema em si no o aumento dos crimes porm a maior ou

    menor tolerncia da sociedade em aceit-los e conviver com eles. Ocorre

    que, na sociedade contempornea, essa tolerncia teria chegado a seu limite

    mximo, haja vista as reaes e a ansiedade pblica diante da crescente

    ameaa do crime. Essa ansiedade pblica diz respeito, por conseguinte, aos

    significados que adquirem a eroso da lei e da ordem. Um desses

    significados aponta no sentido de que hoje maior a probabilidade de um

    criminoso se manter oculto comparativamente ao passado. Dito de outro

    modo, h fortes suspeitas, embasadas em estatsticas, de que apenas uma

    pequena parcela dos crimes cometidos seja conhecida, problema para o qual

    concorrem muitos aspectos (alguns deles identificados no texto, como:

    descaso da polcia para com delinqentes conhecidos, desistncia

    deliberada de punies, afrouxamento das punies ou incapacidade de se

    lidar com as infraes).

    Para Dahrendorf, ainda que se considere que ambos os fatos - isto ,

    crescimento dos crimes e crescimento das cifras negras (crime oculto) -

    sejam conjunturais e mesmo possam ser considerados dentro de uma

    normalidade qualquer, tais argumentos no elidem a existncia de um

    problema real de lei e ordem na sociedade contempornea, qual seja se as

    violaes das normas no so punidas de forma sistemtica, elas se tornam

  • 11

    em si sistemticas. Atinge-se assim o campo traioeiro, porm frtil da

    anomy, no entender de Dahrendorf no um estado de esprito, mas um

    estado da sociedade. A anomia uma condio social em que as normas

    reguladoras do comportamento das pessoas perderam sua validade. Onde

    prevalece a impunidade, a eficcia das normas est em perigo. As normas

    parecem no mais existir ou, quando invocadas, resultam sem efeito. Tal

    processo aponta no sentido da transformao da autoridade legtima em

    poder arbitrrio e cruel.

    Pois bem, para Dahrendorf, nas sociedades contemporneas assiste-

    se ao declnio das sanes. A impunidade torna-se cotidiana. Esse processo

    particularmente visvel em algumas reas da existncia social. Trata-se de

    reas onde mais provvel ocorrer iseno de penalidade por crimes

    cometidos. So chamadas de reas de excluso, a saber:

    1) nas mais diferentes sociedades, uma enorme quantidade de furtos

    no sequer registrada. Quando registrada, baixa a probabilidade de que o

    caso venha a ser investigado. O mesmo vlido para os casos de evaso

    fiscal, crime que parece ter institudo uma verdadeira economia paralela e

    para o qual h sinais indicativos de desistncia sistemtica de punio.

    Segundo Dahrendorf, a conseqncia desse processo que as pessoas

    acabaram tomando as leis em suas prprias mos;

    2) uma segunda rea afeta juventude. Dahrendorf constata que

    em todas as sociedades modernas os jovens so responsveis pela grande

    maioria dos crimes, inclusive os crimes mais violentos. No entanto, o que se

    observa a tendncia geral para o enfraquecimento, reduo ou iseno de

    sanes aplicveis aos jovens. Dahrendorf suspeita de que essa tendncia

    seja em grande parte responsvel pelo aumento da delinqncia juvenil;

    3) uma terceira o reconhecimento, por parte do cidado comum, de

    espaos na cidade que devem ser deliberadamente evitados, isto , o

    reconhecimento de reas que se tornaram isentas do processo normal de

    manuteno da lei e da ordem. A contrapartida desse fato tem resultado no

    rpido desenvolvimento dos sistemas privados de segurana o que se traduz

  • 12

    na quebra do monoplio da violncia em mos dos rgos e indivduos

    autorizados. Para Dahrendorf, se levado ao extremo esse processo conduz

    necessariamente anomia parcial;

    4) uma quarta rea de excluso diz respeito prpria falta de direo

    ou orientao das sanes. Para o socilogo alemo, quando a extenso das

    violaes s normas se tornaram bastante vastas, sua conseqente

    aplicao se torna difcil, por vezes impossvel. Motins de ruas, tumultos,

    rebelies, revoltas, insurreies, demonstraes violentas, invases de

    edifcios, piquetes agressivos de greve e outras formas de distrbios civis

    desafiam o processo de imposio de sanes. No h como distingir atos

    individuais de protesto macio de autnticas revolues, manifestaes

    coletivas de uma exigncia de mudana.

    Bem, penso que a exposio, at aqui realizada, recoloca as

    principais idias e argumentos de Dahrendorf no primeiro de seus ensaios.

    No vou deter-me nos ensaios seguintes, embora eles sejam to importantes

    para a arquitetura argumentativa de sua proposta de reconstruo da

    sociedade contempornea quanto o captulo inicial do livro. Permito-me,

    contudo, fazer algumas menes e tecer algumas consideraes na medida

    em que elas encaminham na direo de minhas reservas quanto s

    interpretaes de Dahrendorf a respeito dos fatos sociais contemporneos.

    No segundo ensaio, intitulado Buscando Rousseau, encontrando

    Hobbes, Dahrendorf anuncia sua proposta. Retormando e ampliando suas

    idias, ele afirma que o mundo contemporneo caracterizado tanto pelo

    enfraquecimento das sanes penais quanto pelo enfraquecimento das

    ligaduras (isto , liames sociais que transcendem mudanas culturais de

    curto prazo). Esse duplo processo deixou vestgios em fatos, entre os quais a

    reforma do direito penal alemo no incio dos anos 60. Dahrendorf critica as

    propostas alternativas que vingaram na reforma, introduzindo uma nova

    poltica criminal que advogava a recusa das penas que dessocializam o

    homem, tais como as de priso, princpio que em ltima instncia entendia o

    criminoso como ser carente de cuidados e no sequioso de punies. De

  • 13

    acordo com a anlise de Dahrendorf, o efeito prtico dessas concepes,

    aplicadas ao direito penal, foi a de enfraquecimento das sanes at s raias

    da impunidade. Na mesma direo, detm-se nas concepes de Habermas

    sobre a estrutura normativa da sociedade, aproximando-o das concepes

    contidas em Emlio e, por essa via, qualificando-o como o Rousseau

    contemporneo. Opondo-o s imagens de homem contidas no pensamento

    de Kant, conclui afirmando que o grande perigo da contemporaneidade

    justamente a impossibilidade de sustentar a sociabilidade insocivel do

    homem. Por isso, as solues para esse mundo passam necessariamente

    pela reconstituio do contrato, vale dizer, dos liames indispensveis ao

    funcionamento do contrato. Em sntese, sua proposta reside na

    (re)construo de instituies5.

    No terceiro ensaio, intitulado A Luta pelo Contrato Social, Dahrendorf

    cuida de contextualizar sua proposta. Para tanto, detm-se em um dos temas

    mais presentes em sua sociologia: os novos antagonismos da sociedade

    industrial. Aps uma anlise do processo histrico de institucionalizao ou

    democratizao dos conflitos sociais, ele vai identificar suas conseqncias

    em tipla direo: primeiro, o fracasso do Welfare State (Estado social) como

    mecanismo de transferncia de recursos para garantir a efetividade dos

    direitos de cidadania para todos; segundo, a emergncia de uma nova

    pobreza contituindo sete grupos principais (desempregados, idosos, famlias

    monoparentais, doentes e incapazes, os de baixa renda, mulheres solteiras

    com dependentes mais velhos e pobres internados em instituies). Todos

    eles extremamente dependentes de mecanismos de transferncia de renda

    e, mais vulnerveis, incapazes de se defenderem das redues dos

    benefcios do Estado social. Terceiro, uma nova exploso de litigiosidade,

    no mais entre patres e empregados ou entre ricos e pobres, porm entre a

    classe majoritria aqueles que esto empregados e usufruem os direitos de

    cidadania e as classes inferiores, compostas de indivduos excludos dos

    direitos e considerados dispensveis (aqueles que no dispem de cidadania

    como os imigrantes; aqueles que j a dispuseram mas no mais a possuem

  • 14

    na sua totalidade, como os idosos e aqueles que ainda no dispem e que

    encontram enormes dificuldades de acesso aos direitos, como os jovens).

    A concluso deste ensaio caminha no sentido de sugerir que esses

    conflitos instituem crises de legitimidade nas sociedades contemporneas,

    por isso entendendo-se sua incapacidade de fomentar lealdade a seus

    valores bsicos. Da porque a questo do contrato teria se tornado

    dominante. em torno dela que reside a alternativa proposta por Dahrendorf

    no sentido de um liberalismo radical cuja agenda incluiria enfrentar trs

    problemas bsicos: a insero dos jovens, o futuro do trabalho e o problema

    da lei e da ordem. Quanto a este ltimo, a proposta no pode se restringir ao

    velho remdio rousseuniano e sequer ser substitudo por polticas

    econmicas voltadas para uma justia distributiva. Segundo Dahrendorf, o

    reconhecimento de que a escalada do crime tem profundas razes sociais,

    ligadas falncia do Estado social (Welfare State) no conduz

    necessariamente a advogar iseno de sanes para os criminosos

    procedentes dos estratos mais pobres da populao. Por liberalismo radical,

    entende-se por conseguinte uma nova atitude perante s instituies, atitude

    firme e ao mesmo tempo moderada.

    Por fim, o ltimo ensaio, intitulado A Sociedade e a Liberdade (alis,

    no poderia ser diferente), cuida de apresentar a proposta desse liberalismo

    radical. A destacar, trs aspectos. Primeiro, um argumento de fundo que

    sempre esteve presente ao longo de toda a arquitetura argumentativa do

    texto. Indaga o autor: por que defender as instituies? Sua resposta

    simples e direta, embora suscite no poucos problemas. Trata-se de

    assegurar a sociabilidade insocivel do homem, base sob a qual as

    instituies configuram criaes humanas voltadas para a efetivao dos

    direitos do homem e para o controle sistemtico do poder. Da, a

    possibilidade de liberdade.

    Um segundo aspecto diz respeito ao fato de que, em termos de

    polticas pblicas, sua proposta incide nas reas de excluso anteriormente

    assinaladas. Em linhas gerais, ele sugere interveno nas seguintes

  • 15

    direes: (a) punir crimes atualmente no punidos; (b) ampliar o leque de

    oportunidades para os jovens, mas tambm exigir-lhes rigoroso respeito

    autoridade; (c) apoio s instituies de lei e de ordem, mediante

    estreitamento dos laos entre polcia e comunidades locais, o que em ltima

    instncia significa conferir uma abordagem institucional ao problema da lei e

    da ordem.

    Um terceiro aspecto, por fim, est relacionado, a uma espcie de

    atributo que ele agrega sua proposta de liberalismo radical. Trata-se de

    uma proposta que deve evitar tanto a anomia quanto a hipernomia (excesso

    de normas ameaando sufocar toda iniciativa e liberdade). Esse bte noire

    aponta para a necessidade de uma viso sobre o mnimo de respostas

    normativas e institucionais que o contrato social pode fornecer. Esse mnimo

    diz respeito justia com eqidade6, o que significa dizer que a justia no

    est ausente da construo normativa da sociedade.

    Creio que esse desenvolvimento ulterior encerra o debate institudo

    pelo texto de Dahrendorf. Em meus comentrios, vou privilegiar algumas

    questes em detrimento de outras, por mais interessantes e relevantes que

    estas possam representar sobretudo para a teoria sociolgica

    contempornea. Por exemplo, vou deixar de lado um dos alicerces

    epistemolgicos do texto sobre o qual se edifica a arquitetura argumentativa

    de Dahrendorf. Refiro-me sociabilidade insocivel do homem, princpio

    que sustm suas concepes de contrato social, conflitos, anomia e

    hipernomia, etc. Trata-se de um princpio seguramente inspirado na

    metafsica kantiana e que me parece propor problemas insolveis7. No

    mesmo sentido, no vou me ocupar detidamente de uma crtica aos limites

    postos pelos fundamentos liberais da Sociologia de Dahrendorf, embora no

    se possa ignor-los quando menos por suas implicaes tericas8.

    Eu gostaria, no entanto, de comear por uma pequena observao,

    margem do texto, para em seguida questionar-lhe os fatos. O que me parece

    estranho uma espcie de non-sense histrico que percorre o raciocnio e

    os argumentos de Dahrendorf. Por um lado, o texto prope-se a abordar os

  • 16

    novos antagonismos da sociedade contempornea, nuclearizados em torno

    das lutas pelo contrato social, os quais remetem a problemas de efetivao

    da lei e da ordem. Para tanto, recorre com freqncia ao contraste entre

    passado e presente, seja comparando as lutas sociais dos sculos XVIII e

    XIX com as do sculo atual, seja comparando a evoluo da criminalidade e

    das sanes, por exemplo, nos ltimos trinta anos. Essa comparao

    sempre feita a partir de um olhar que, do passado, v o presente. Ao faz-lo,

    v o presente em crise, ora como crise de legitimidade (em relao s

    normas) ora como crise de autoridade (em relao ao poder de imp-las). A

    imagem flagrante do texto a de decadncia. Da, os perigos disseminados

    por todo o tecido social: crime em excesso criando situaes sociais

    intolerveis, sanes no-aplicadas, gerao de reas de excluso etc.

    O tratamento dos problemas contemporneos nesses termos supe

    um anacronismo histrico, qual seja o de buscar-se inspirao no passado

    para compreender o presente9. Disso resulta inevitavelmente um paradoxo: a

    recuperao de uma linguagem tpica de fins do sculo XIX para reconstruir

    fatos contemporneos. Assim que se fala em anomia, crise de autoridade,

    eroso da lei, recuperao das instituies, tudo lembrando o universo

    sociolgico durkeimiano, forjado quela poca para dar conta dos elementos

    anmicos da diviso social do trabalho. No por acaso tambm que esses

    temas sejam empiricamente tratados sob os mesmos signos que socilogo

    francs reservara para dar conta daqueles elementos anmicos, como sejam

    o crime e o sistema de sanes. Como apontam Lagrange & Roch (1993),

    h uma impressionante associao entre as linguagens de fins do sculo XIX

    e fins do sculo XX. Nelas, o crime ocupa a face dianteira da cena pblica:

    converte-se em inquietao coletiva, em objeto de interesse por parte dos

    analistas e em alvo da moralidade pblica e dos princpios da organizao

    social, a despeito dos contextos sociais e polticos que marcam ambos

    perodos no serem comparveis.

    Desde fins do sculo XIX, diferentes observadores - jornalistas,

    literatos, historiadores, socilogos, artistas - da sociedade francesa

    vincularam o fim do sculo passado a uma era de degradao da ordem e da

  • 17

    segurana, simbolizadas pela desgenerecncia racial, pelos vcios morais,

    pela degradao dos valores, pela difuso de perturbaes mentais de toda

    sorte. Analistas como Joly e Tarde (apud Lagrange & Roch, 1993)

    constatam que a criminalidade vinha aumentando muito rapidamente desde o

    incio do sculo XIX. Mais do que a gravidade dos crimes, o que os

    preocupava era o crescente volume da pequena delinquncia, fenmeno

    interpretado como resultante de um relaxamento dos costumes. Les

    criminologes ont limpression dune transformation radicale de la socit,

    rapide et violente. Les cadres sociaux et psychologiques sont mis bas. Trop

    de ruptures se conjuguent pour permettre que la stabilit ncessaire se

    ralise. La socit, pense comme un organisme, est malade, et les maladies

    sont infectieuses. Le danger est dautant plus intense que la socit moderne

    en multipliant les contacts favorise limitation et la diffusion des conduites

    criminelles. Parmi les inquitudes de cette fin de sicle, les criminologues

    retiennent principalement certaines. Il sagit de ce quon porrait rsumer sous

    lide dune mort des communauts: la famille, le village, lautorit de lEglise

    et du gouvernement. (Lagrange & Roch, 1993: 85-86).

    Na cidade, o crime converte-se em atividade racional, pressupondo

    um clculo de custos e benefcios. Da que migrar do campo para a cidade

    destri as referncias territoriais e morais. Como apontava Joly, a emigrao

    peridica conduzia primeiro vagabundagem, depois delinqncia.

    Lagrange et Roch sublinham que o anonimato das multides urbanas no

    somente atraiu a ateno dos criminlogos, mas tambm de socilogos do

    incio do sculo XX como Weber, Tnnies, Durkheim e Simmel, todos

    impressionados com o aparecimento dessa nova figura da vida social: o

    outro, esse desconhecido. Na mesma direo, criminlogos criticam a crise

    da famlia. Sustentam que, quando a famlia claudica, o crime se expande.

    De modo geral, manifestaram-se preocupados com as desventuras da

    instituio familiar: a diminuio do nmero de seus membros, a dissoluo

    dos laos do casamento, os abortos. Para muitos, o divrcio tinha o mesmo

    estatuto moral do suicdio e do crime. Finalmente, os criminlogos

    responsabilizam os conflitos polticos pela elevao acentuada dos crimes.

  • 18

    Mais particularmente, o que est no cerne do debate a natureza do

    governo democrtico, cuja dinmica poltica, dissensual por excelncia,

    considerada carente de estabilidade e de elites moderadas. Suas razes

    reportar-se-iam Revoluo Francesa. Na leitura de Tarde, o egosmo e as

    pulses revolucionrias explicariam a estatstica criminal. Na leitura de Joly,

    quanto mais se avana no sculo, mais a autoridade se desorganiza. A

    presena das multides na arena poltica corromperia a sociedade, a escola

    e os sindicatos (Lagrange & Roch, 1993: 83-98).

    Ainda que se possa reconhecer a agudez de Durkheim e de seus

    contemporneos Tarde e Joly no diagnstico dos problemas da sociedade

    moderna, no h como deixar de reconhecer tambm as pronunciadas

    diferenas entre a sociedade por eles observada e a sociedade

    contempornea. Com isso, estou argumentando que, para serem

    compreendidos, os fatos contemporneos precisam ser vistos seno com os

    olhares da contemporaneidade. Reporto-me aqui a uma passagem de

    Foucault to sugestiva quanto enigmtica. Em Vigiar e Punir, comentando a

    atualidade das revoltas nas prises em todo o mundo e justificando seu

    interesse pela histria das prises, ele afirma: desta priso, com todos os

    investimentos polticos do corpo que ela rene em sua arquitetura fechada,

    que eu gostaria de fazer a histria. Por puro anacronismo? No, se

    entendemos com isso fazer a histria do passado nos termos do presente.

    Sim, se entendermos com isso fazer a histria do presente (Foucault, 1977b:

    32). Essa passagem oferece uma idia do modo pouco convencional como

    Foucault aborda a histria, os fatos pretritos e o presente. Nessa passagem,

    Foucault parece fazer meno ao anacronismo de nossos procedimentos

    usuais e habituais de reconstruo histrica, nos quais o passado lido,

    reconstrudo, perquirido, vasculhado com vistas a explicitar o presente e

    iluminar os caminhos do prprio curso histrico. Sob essa perspectiva,

    passado, presente e futuro encontram-se inexoravelmente atados, cabendo

    ao historiador explicitar seu sentido e direo. Trata-se em ltima instncia

    de uma histria circular. No no sentido que se lhe atribuam na antigidade

    clssica (de uma circularidade determinada pelo movimento natural da vida e

  • 19

    da morte, na busca incessantemente renovada da eternidade ); porm no

    sentido de um eterno retorno s origens. Assim, tudo est previamente dado

    e, por essa via, a explicao uma espcie de profecia que se auto-realiza.

    O anacronismo resulta portanto da eterna repetio do mesmo. No h lugar

    para o acontecimento. A histria no a atualidade do presente, do novo, do

    inesperado, do inaudito, do que muda e do que mudado. Penso que nesta

    passagem Foucault aponta para uma das mais espinhosas questes da

    epistemologia das cincias sociais: no existem fatos objetivos, porm

    construes histricas as quais, acrescentar ao longo desse livro, esto

    imersas em um regime de verdade e de poder.

    Ora, se assim , o que est justamente em causa no texto de

    Dahrendorf a atualidade e contemporaneidade dos fatos narrados como

    objetivos. Ao contrrio, os fatos apontados consistem em construes

    histricas e culturais, dependentes portanto dos regimes de poder e verdade

    em jogo, os quais, por isso mesmo, contrem nossa contemporaneidade. Por

    isso, possvel opor s interpretaes de Dahrendorf outras interpretaes,

    fatos contra fatos, para ao final perguntar o principal: qual , enfim, o regime

    de poder e verdade subjacente e que sustm a atualidade das demandas

    contemporneas por ordem social. Isso o que se procurar explorar e

    responder mais frente. Por ora, contentemo-nos em questionar-lhes os

    fatos.

    Diferentes analistas concordam que, aps uma perodo longo de

    relativa estabilidade (1860-1950) nas taxas de criminalidade, tenha se

    verificado, em diferentes sociedades, fortes tendncias para o crescimento

    dos crimes. Ao que tudo indica, essas tendncias manifestaram-se

    inicialmente nos pases de lngua inglesa e tradio anglo-sax, estendendo-

    se pouco a pouco para os pases de tradio catlica, inclusive aqueles

    situados na Amrica Latina (Robert & Van Outrive, 1993; Robert e outros,

    1994; Weiner & Wolfgang, 1985; Wright, 1987). No vem ao caso mencionar

    cifras para contrap-las s apresentadas por Dahrendorf. No entanto, no h

    como deixar de trazer o debate para o mbito da sociologia criminal (ou da

    criminologia como queriam alguns), justamente uma rea que aquele autor

  • 20

    procurou evitar. E, por que? Porque, a despeito das convergncias entre as

    afirmaes de Dahrendorf e as de especialistas, h inmeras ponderaes

    que no podem ser ignoradas e das quais se cercam os pesquisadores

    experimentados.

    De fato, essas avaliaes so feitas a partir dos crimes conhecidos,

    isto , dos crimes detectados e registrados pelas agncias encarregadas de

    controle da ordem pblica e de conteno da delinqncia. H transgresses

    que no chegam ao conhecimento da autoridade pblica. Entre o conhecido

    e o desconhecido, h um gap que, na literatura especializada, se

    convencionou chamar de cifras negras. Qual a extenso desse gap? Bem,

    pouco se sabe de concreto. Desde h duas dcadas, vm se aperfeioando

    as chamadas pesquisas vitimolgicas atravs das quais se busca examinar o

    movimento da criminalidade da perspectiva das vtimas e ao mesmo tempo

    mensurar o gap. Os procedimentos metodolgicos so altamente

    sofisticados, porm enfrentam obstculos srios porque lidam

    fundamentalmente com a memria das vtimas. Essa a razo porque os

    resultados ainda tm que ser vistos com algumas reservas10. Para se ter uma

    idia, no que concerne conduo de veculos sob efeitos do lcool, um

    Instituto de pesquisas sobre o trfico observou, h alguns anos, que apenas

    1 caso entre 20.000 era conhecido pela polcia. Talvez essas taxas sejam

    anlogas no que concerne ao uso de drogas ilcitas. Nos Pases Baixos,

    sabe-se que o volume de denncias de violncia em locais pblicos

    corresponde a cerca de 20% de todos os casos verificados. Assim, no se

    tem bases cientficas, fidedignas, para confirmar que tenha havido de fato um

    aumento da criminalidade nos ltimos trinta ou quarenta anos. Pode ser que

    as tendncias observadas reflitam outro tipo de comportamento: maior

    inclinao dos cidados em denunciar os crimes de que foram vtimas. Isso

    sugere, por conseguinte, que o sentimento de insegurana e medo diante do

    crime e o desejo de mais punies, em especial punies mais rigorosas,

    parecem responder por outras inquietaes que vo alm do domnio da

    delinqncia.

  • 21

    Mas, h outros aspectos dignos de reparos. Dahrendorf estabelece

    uma sorte de conexo direta entre o aumento dos crimes e o

    enfraquecimento ou iseno de punies. Estabelece, por conseguinte, uma

    relao de causalidade entre fatos diversos. Uma coisa o aumento dos

    crimes. Ele pode estar relacionado a diversas causas, como mudanas no

    comportamento delinqente, mudanas no comportamento das vtimas ou

    dos cidados comuns, mudanas nas formas habituais de sociabilidade com

    repercusso sobre os ilegalismos e sobre os prprios objetos da delinqncia

    (Foucault, 1977b). J a distribuio de sanes funo dos dinamismos do

    aparelho penal, em particular dos nexos entre as agncias policiais, as

    agncias de acusao (Ministrio Pblico), os tribunais de justia e o

    complexo prisional bem assim do empenho das autoridades em apurar os

    crimes. Assim, o crescimento dos crimes pode ser ou no acompanhado de

    um crescimento de sanes, por mais desejvel que seje a correspondncia

    entre ambos crescimentos do ponto de vista social e poltico.

    Alm do mais, h que se anotar duas constataes feitas pelos

    especialistas que contrariam sobremodo os fatos objetivos com que

    Dahrendorf pretende caracterizar a eroso da lei e da ordem na sociedade

    contempornea. Primeiro, os estudos so unnimes em mostrar uma forte

    tendncia, desde o sculo passado, na estatizao do controle penal e da

    sano (Cusson, 1990), tendncia que nada tem a ver com outra tendncia

    contempornea que a da privatizao dos servios de segurana, melhor

    dizendo dos servios de preveno e vigilncia contra o crime, cujo

    dinamismo atende aos estmulos de mercado (Erbs, 1990-91; Ocqueteau,

    1988, 1990-91; Ocqueteau & Pottier, 1995). Se as taxas de condenao

    pena de priso esto em declnio isso no significa um afrouxamento dos

    controles penais ou do sistema de sanes; antes, deve-se relativa

    diminuio da pena de supresso da liberdade no conjunto do arsenal penal.

    De qualquer forma, tem-se observado em contrapartida um aumento das

    taxas de encarceramento, prtica sob o encargo da polcia. Em segundo

    lugar, no verdade que as penas tenham sido amortecidas ou suavizadas

    nas democracias ocidentais. Estudos demonstram que nos Estados Unidos,

  • 22

    Inglaterra e Pases Baixos as tendncias tm se inclinado para a maior

    severidade das penas, nas duas ltimas dcadas (Hulsman, 1990).

    Nessa mesma direo, altamente discutvel a maior contribuio dos

    jovens para o aumento da criminalidade. bem que verdade que, em

    distintas sociedades, a delinqncia juvenil adquire maior ou menor

    gravidade, podendo mesmo contribuir de modo acentuado para a

    criminalidade, em especial a de tipo violento. Nunca demais lembrar que o

    envolvimento dos adolescentes com a criminalidade adulta suscita desafios

    agudos s polticas de proteo e preveno. Seja o que for, no h

    nenhuma evidncia emprica fidedigna de que aquela tendncia venha se

    generalizando e se tornando dominante, como pretende Dahrendorf. De igual

    modo, no aceitvel o argumento segundo o qual h, nas sociedades

    contemporneas, forte inclinao para proteger os jovens delinqentes,

    isentando-os da aplicao de sanes. Diversos estudos mostram que as

    tendncias da legislao da infncia e da adolescncia, perfilando a

    orientao de organismos normativos internacionais, tm sido no sentido de

    evitar abusos na aplicao de medidas ou na distribuio de sanes. Essa

    exigncia requer de parte dos agentes encarregados de implementar normas

    estatutrias o dicernimento rigoroso de situaes, determinando-se medidas

    diferenciadas segundo a gravidade das infraes, as quais inclusive prevm

    limitao de direitos e supresso de liberdade. Alm do mais, em no poucos

    pases, a maioridade penal ocorre aos quinze ou dezesseis anos, fazendo

    com que muitos jovens estejam, ainda adolescentes, sujeitos aos rigores da

    legislao penal aplicvel aos adultos (Lahalle & outros, 1994).

    Resulta desses questionamentos uma indagao inevitvel: por que

    uma reao punitiva seria mais adequada do que respostas no punitivas

    para os problemas de conflitualidade e litigiosidade das sociedades

    contemporneas? Por que o desejo obssessivo de punir, de punir mais e

    sempre com maior intensidade? Bem, pretendo avanar algo nessa direo a

    seguir.

  • 23

    Retomando a exposio anterior, pode-se dizer, perfilando

    Dahrendorf, que o crescimento da criminalidade e e o suposto aumento da

    impunidade resultam na eroso da lei e da ordem nas sociedades

    contemporneas. O Estado aparece como incapaz de cuidar da segurana

    dos cidados e de proteger seus bens, materiais e simblicos. No cerne da

    demanda por ordem se aloja no apenas o sentimento de que o passado

    se perdeu inexoravelmente pela avalange do progresso histrico,

    sentimento simbolizado nas imagens de pnico moral proporcionados pela

    concentrao urbana, pela crise da famlia, pela irrupo das multides na

    arena poltica. A perda sentida como ausncia de solidariedade, de

    esgaramento dos vnculos morais que conectam indivduos s instituies,

    ausncia sacramentada pelo definhamento da autoridade. Tudo se passa

    como se os interesses egostas suplantassem o bem comum. Seu sintoma, a

    exploso de litigiosidade entre o indivduo e a sociedade, to bem descrita

    por Durkheim em inmeras de suas obras, resultaria na desobedincia civil,

    na perda desse sentimento segundo o qual agir bem obedecer bem

    (Durkheim, 1963. Apud Fernandes, 1994: 83). Ademais, no cerne da

    demanda por ordem est paradoxalmente a reivindicao de mais

    legalidade porm no contexto de aguda crtica ao Estado democrtico de

    Direito. Na verdade, o que se reivindica no a lei como princpio de

    limitao do poder arbitrrio ou de instrumento de garantia de direitos;

    contudo, a lei como veculo de imposio autoritria da ordem, numa palavra

    de punio. Por isso, ao questionar o conservadorismo que subjaz leitura

    de Dahrendorf quanto ao cerne dos problemas contemporneos, busquei

    questionar-lhe os fatos. No apenas censurei-lhe sua leitura conservadora da

    histria como meus argumentos podem ser resumidos em quatro

    proposies: primeiro, a constatao de um aumento da criminalidade, nos

    ltimos trinta anos, matria controvertida; segundo, no h per si uma

    relao de causalidade entre o movimento da criminalidade e o movimento

    das punies; terceiro, no se constata uma tendncia para a suavizao

    dos sistemas de sanes, como pretende Dahrendorf; quarto, na mesma

    direo, no se sustm o argumento de que os jovens venham sendo

  • 24

    beneficiados com uma legislao punitiva branda, a despeito do crescimento

    da delinqncia juvenil.

    A esses argumentos, poder-se-ia acrescentar outros. Nunca demais

    lembrar que, a despeito dos avanos globais conquistados em termos de

    respeito dos direitos humanos, nas trs ltimas dcadas, as foras

    repressivas tenderam a se tornar mais agressivas e mesmo violentas no

    enfrentamento do crime. Isso tanto mais verdadeiro em sociedades com

    forte tradio autoritria, onde vigem regimes polticos no-democrticos ou

    que se encontram em processo de transio democrtica (ODonnell, 1988;

    Pinheiro, 1991a). Um outro aspecto a ser considerado que Dahrendorf, ao

    eleger a eroso da lei e da ordem como o cerne do problema

    contemporneo, no se inclina a indagar sobre os mltiplos significados da

    lei e dos direitos para diferentes grupos sociais. No Brasil, por exemplo,

    sabe-se atravs de alguns estudos e pesquisas que as diferentes classes

    sociais no se sujeitam obedincia dos estatutos legais sob qualquer

    princpio moral ou tico fundado na convivncia poltica pacfica. Terceiro,

    parte substantiva das propostas apresentadas por Dahrendorf, enfeixadas

    em torno do que ele nomeia de liberalismo radical, encerram as solues dos

    problemas contemporneos nos marcos de uma reforma institucional

    tendente seja a conferir maior racionalizao aos servios pblicos de

    segurana pblica, seja a estreitar os laos entre os cidados e sua polcia.

    Em outras palavras, parte das solues (insisto em sublinhar parte porque

    Dahrendorf sublinha outras que no se limitam ao mbito da reforma

    institucional) gravita em torno da maior eficcia operacional das agncias de

    controle da ordem pblica. Ora, no h quaisquer garantias de que reformas

    institucionais, por mais desejveis que sejam, possam baixar as taxas de

    criminalidade e, por essa via, oferecer ao cidado comum o sentimento de

    que tem seus bens, materiais e simblicos, protegidos.

    Impe-se assim retirar o debate sobre a criminalidade urbana e suas

    formas de conteno do campo onde ele se confinou, h cerca de duas

    dcadas, e persiste confinado. Cuida-se de problematizar11 a demanda por

    ordem que se encontra presentemente quer nas falas do cidado comum,

  • 25

    quer das autoridades encarregadas de formular e implementar polticas

    pblicas penais, falas freqentemente veiculadas pela imprensa escrita e

    pela mdia eletrnica e que inclusive no se encontra ausente do debate

    acadmico e do discurso cientfico. Nas acres crnicas da insegurana e do

    medo do crime, nos fatos e acontecimentos que sugerem a fragilidade do

    Estado em velar pela segurana dos cidados e proteger-lhes os bens,

    materiais e simblicos, nos cenrios e horizontes reveladores dos confrontos

    entre defensores e opositores dos direitos humanos inclusive para aqueles

    encarcerados, julgados e condenados pela justia criminal, tudo converge

    para um nico e mesmo propsito: o de punir mais, com maior eficincia e

    maior exemplaridade. Trata-se de propsito que se espelha em no poucas

    demandas: maior policiamento nas ruas e nos locais de concentrao

    populacional, sobretudo as habitaes populares consideradas celeiro do

    crime e de criminosos; polcia mais intolerante para com os criminosos;

    justia criminal menos condescente com os direitos dos bandidos e mais

    rigorosa na distribuio de sanes penais; recolhimento de todos os

    condenados s prises que devem se transformar em meios exemplares de

    punio e disciplina. Com nuanas entre os mais radicais que advogam pena

    de morte e imposio de castigos fsicos aos delinqentes e os mais liberais

    que pretendem o aperfeioamento dos instrumentos legais de conteno

    repressiva dos crimes, todos gravitam em torno de um imperativo categrico:

    o obsessivo desejo de punir.

    Um empreendimento desta ordem requer retomar o debate no mesmo

    terreno em que ele havia sido circunscrito por Dahrendorf; isto , o terreno

    dos conflitos e da litigiosidade na sociedade contempornea. Porm, uma

    retomada que enseja advertncias. Uma primeira advertncia: nas

    sociedades contemporneas no h mais espao para pensar conflitos numa

    verso liberal. Como se sabe, o pensamento liberal tende a privatizar

    conflitos cuja origem social. Os conflitos so vistos como conflitos entre

    indivduos entre si, entre indivduos e sociedade, entre indivduos e Estado.

    No sem motivos que a problemtica do crime e da punio tenha ocupado

    tanta ateno dos socilogos liberais. No registro liberal, essa problemtica

  • 26

    diz respeito ao confronto entre a conscincia coletiva (conscincia de um

    imperativo categrico, a sano) e a conscincia individual, materializada em

    torno da responsabilidade penal do criminoso. Dificilmente, fatos

    contemporneos como racismo, genocdio, excluso, narcotrfico configuram

    modalidades de conflito e litigiosidade enquadrveis nos estreitos limites

    ditados pela viso liberal. Portanto, preciso pensar esses fatos tendo por

    eixo no o indivduo, porm coletivos.

    Uma segunda advertncia: queiramos ou no, preciso ter claro que

    os fatos constituem narrativas sociais que instituem em determinados

    momentos histricos, por exemplo em conjunturas particulares, um certo

    arranjo de formas de solidariedade, de reciprocidade e de conflito. Trata-se

    de um arranjo precrio, dependente do confronto e direo que tomam as

    foras sociais em gravitao no interior de um campo determinado (social,

    poltico, cultural), precrio porque sempre sujeito a ser rearranjado e

    rearmado. Isso significa que, para compreender fatos, como os fatos

    contemporneos, preciso adotar uma atitude nominalista, evitando-se

    sejam as tentaes metafsicas - como a busca de um fio condutor ltimo,

    como a sociabilidade insocivel do homem (Dahrendorf) - sejam as

    inclinaes no sentido de atribuir estatuto de cientificidade s interpretaes

    (Foucault, 1979). Nominalismo significa antes de tudo trazer os fatos

    superfcie da sociedade, isto , faz-los emergir no torvelinho de prticas e

    representaes, sem meno a um sujeito demiurgo ou a intenes excusas

    que se escondem por detrs dos prprios fatos.

    *.*.*

    nestes termos que se pretende trazer para o debate um fato

    contemporneo: o crime organizado e, em especial uma de suas

    modalidades, qual seja o narcotrfico. Em que medida o crime

    organizado um fato contemporneo? Se no, em que consiste sua

    contemporaneidade?

  • 27

    Seguramente, o crime organizado no uma inveno recente. Ao

    que parecem sugerir estudos histricos, seus rudimentos podem ser

    buscados nos bandos milenaliristas que proliferaram pela Europa central,

    Itlia e Espanha desde a Idade Mdia. Sua verso moderna est

    profundamente marcada pelas organizaes da Itlia meridicional, em

    particular a Cosa Nostra, pelas organizaes do sul da Frana (Marselha e

    Crsega), em fins do sculo XIX e incio do XX, e sobretudo pelas

    organizaes americanas sediadas em Chicago e New York entre as

    dcadas de 1910 e fins da dcada de 1930. Muitas das caractersticas que

    hoje se observam no crime organizado j estavam de fato presentes

    naquelas formas anteriores de organizao delinqente. Por exemplo,

    caractersticas como: recrutamento preferencial de jovens; valor atribudo

    posse da arma de fogo donde decorre uma disposio gratuita para matar;

    monoplio altamente concentrado das atividades criminais; estruturas de

    mando rigidamente hierarquizadas e personalizadas, reatualizadas por rituais

    precisos e codificados segundo normas particulares e regidas pelo segredo;

    manuteno de milcias particulares em moldes militarizados; fixao de uma

    rede de informantes e espias. Nesse conjunto de prticas, lugar estratgico

    conferido corrupo. Sem a cumplicidade dos agentes pblicos, sem o

    estabelecimento de conluios entre o crime organizado e segmentos da

    burocracia estatal, certamente as atividades no teriam se expandido como

    de fato se expandiram, ainda que em ondas no sucessivas.

    Desde o esclarecedor estudo de Hobsbawn (1959, ed. bras.1970),

    sabe-se que o florescimento das mfias fenmeno social recente, datando

    do sculo XIX. Compreendem distintas formas de ao e de comportamento

    social, entre as quais se destacam trs: primeiro, uma atitude geral em

    relao ao Estado de Direito. As contendas entre grupos rivais no se

    resolvem mediante apelo a cdigos universais ou a tribunais de justia

    pblica. O nico cdigo reconhecido a omert (virilidade), cujo princpio

    fundamental interdita a prestao de informaes a autoridades pblicas.

    Esse tipo de comportamento social desenvolve-se em sociedades que no

    gozam de ordem pblica efetiva ou em sociedades cujos cidados encaram,

  • 28

    hostilmente, parte ou a totalidade das autoridades (como, por exemplo, nas

    cadeias pblicas ou no submundo fora delas) ou com menosprezo em

    relao a coisas realmente importantes (por exemplo, escolas) ou

    combinando ambas as coisas (Hobsbawn, 1970:49). Em segundo lugar, diz

    respeito ao patronato como forma de organizao dominante. Onde quer que

    tenham se instalado, as mfias tiveram por eixo um chefe, todo poderoso,

    em torno do qual gravitava todo um corpo de dependentes e colaboradores,

    constituindo fina e complexa rede de influncia capaz de oferecer e vender

    proteo. Na Siclia, o estabelecimento do patronato inviabilizou qualquer

    outra forma alternativa de poder contnuo. Terceiro, refere-se ao controle

    virtual e total da vida em uma comunidade qualquer por um secreto sistema

    de gangs. Neste particular, ressalta Hobsbawn, as mfias eram seno uma

    rede de gangs locais, controlando territrios determinados, via de regra uma

    comuna ou um latifundium, relacionadas entre si to somente por intermdio

    das migraes de trabalhadores para colheitas, atravs das ligaes entre

    proprietrios, seus advogados e as cidades, bem como por meio das

    inmeras feiras disseminadas pelo pas. Suas caractersticas essenciais:

    violncia desmedida, virilidade profissional, paratisismo e banimento, tudo

    controlado por rituais de iniciao e senhas meticulosamente padronizadas.

    Assim, ...a mfia (nos trs sentidos da palavra) forneceu uma mquina

    paralela de direito e de poder organizados; (...) Em uma sociedade como a

    siciliana em que o Governo oficial no podia ou no exercia um controle

    efetivo, o aparecimento de tal sistema era to inevitvel quanto a presena

    de um poder de gang, ou a sua alternativa, bandos privados e vigilantes em

    certas partes da Amrica do laissez-faire. O que distingue a Siclia a

    extenso e a coeso desse sistema privado e paralelo de poder. [...] No era,

    contudo, universal, porque nem todas as camadas da sociedade siciliana

    precisavam igualmente dele (Hobsbawn, 1970: 52-53). Na verdade, as

    mfias desenvolveram-se nas reas cujas atividades econmicas - pastos,

    pomares, minas -, se revelavam carentes de proteo vital diante dos

    freqentes furtos e assaltos de que eram alvo.

  • 29

    No incio, meados do sculo XIX, as mfias no assumiram de pronto

    sua faceta de organizao de gangs. Floresceram no curso dos

    acontecimentos que convergiram para a unificao italiana. Para os grandes

    e pequenos proprietrios de terra, sequiosos por se defenderem contra o

    explorador estrangeiro (o governo Bourbon ou o governo piemonts), as

    embrionrias mfias, de bases genuinamente populares, representavam um

    mecanismo de proteo social e de afirmao nacional local. Conforme

    anota Hobsbawn, essas primeiras organizaes estiveram presentes nos

    movimentos revolucionrios liberais de Palermo, de 1820, 1848 e 1960 assim

    como participaram do primeiro grande levante contra a dominao do

    capitalismo do Norte, em 1866. Na realidade, devemos supor que a Mfia

    comeou, verdadeiramente, a aumentar de poder (e abuso) quando se

    tornou um movimento regional siciliano de revolta contra os insucessos da

    unificao da Itlia, na dcada de 1860, e quando se tornou um movimento

    mais eficiente do que a guerra de guerrilha dos bandidos, paralela e

    contempornea, na Itlia continental e meridional (Hobsbawn, 1970: 60).

    Seu crescimento, expanso, auge e transformao foram impulsionados por

    trs circunstncias: primeiro, o surgimento de relaes capitalistas no interior

    da sociedade intaliana promoveu a politizao dos operrios fabris e dos

    camponeses que, com suas prticas polticas, vieram progressivamente

    substituir as velhas tticas de dio incontido e conspirador presentes nos

    massacres que caracterizavam os levantes locais. Com a emergncia dos

    novos atores sociais e polticos, a vocao revolucionria das mfias, seu

    espectro de movimento social de massas, declina acentuadamente,

    permanecendo restritos s reas mais pobres e atrasadas da parte oriental

    da Siclia.

    Em segundo lugar, o prprio modo como o capitalismo se desenvolveu

    contribuiu para acomodar interesses entre o Norte e o Sul. Nesta regio, a

    nova classe de proprietrios rurais - os gabellotti - e seus correspondentes

    urbanos no se confrontaram com os capitalistas do Norte. Antes,

    estabeleceu-se uma sorte de diviso social do trabalho. Como os

    proprietrios do Sul no estavam quela poca interessados no

  • 30

    desenvolvimento das manufaturas, se confortaram com a condio de

    fornecedores de produtos hortifrutigranjeiros para o Norte. Converteram-se

    em espcie de colnia agrria, dependente do vigor e do dinamismo

    econmicos das manufaturas setentrionais. Por fim, uma das virtudes da

    poltica liberal veio alimentar o poder das mfias. Com o poder do Norte, veio

    tambm a modernidade poltica, ou seja, a extenso do direito de voto. Para

    os poderosos do Norte interessava contar com o apoio e mesmo a

    subservincia poltica do Sul, mesmo que para tanto fosse necessrio

    subornar governos ou fazer concesses aos chefes locais. Se concesses e

    subornos pouco representavam, do ponto de vista financeiro, para o rico

    Norte, para o Sul representaram uma diferena mpar, at h pouco

    inteiramente desconhecida: a possibilidade dos chefes locais penetrarem no

    universo dos interesses poltico-partidirios. Os chefes mafiosos

    converteram-se em chefes polticos locais. A organizao poltica siciliana,

    i.e., a Mfia, passou ento a fazer parte do sistema governamental de

    patronato e a barganhar sempre mais efetivamente porque os seguidores

    incultos e longnquos levaram certo tempo para compreender que no

    estavam mais votando para a causa da rebelio. (...) O verdadeiro reino da

    Mfia j se estabelecera. Agora, era uma grande fora. Seus membros

    sentavam-se como deputados em Roma e enfiavam colheres na parte mais

    espessa do caldo do Governo: grandes bancos, escndalos nacionais

    (Hobasbawn, 1970: 63).

    Entre 1860 e 1890, as mfias reinaram quase sem contestaes. No

    final do sculo XIX, sua estrela comea a declinar. Hobsbawn identifica, aqui

    tambm, trs circunstncias que favoreceram seu declnio. Primeiro, a

    diversificao do mercado poltico comea a oferecer outras alternativas s

    massas de trabalhadores e camponeses que pouco a pouco se distanciam

    do poder de fogo dos chefes mafiosos. De fato, o aparecimento das ligas

    camponesas, dos socialistas e posteriormente dos comunistas, cuja

    expanso eleitoral entre fins do sculo passado e duas primeiras metades do

    sculo XX foi espantosa nas zonas rurais sob influncia dos mafiosos,

    contribuiu para a descoberta entre as classes populares de formas de

  • 31

    participao e representao polticas distintas das modalidades extremadas

    de terror empregadas pelos mafiosos em sua imposio e manuteno

    arbitrria da ordem local. Uma vez que a Mafia no podia mais controlar as

    eleies acabou por perder muito da fora que lhe vinha do patronato. Em

    vez de ser um sistema paralelo, era agora apenas um grupo poderoso de

    presso, politicamente falando (Hobsbawn, 1970: 65). Segundo, dissenes

    internas mfia logo se tornaram manifestas. Tratava-se de dissenes

    entre as velhas e novas geraes em regies onde os lucros eram escassos

    e no havia - ou ao menos no se vislumbravam - alternativas ao

    desemprego. De um lado, as velhas geraes constitudas de gabellotti cuja

    mentalidade paroquial pouco as diferenciava dos camponeses. De outro

    lado, as geraes mais jovens, constitudas dos prprios filhos e filhas dos

    gabellotti, melhor preparados do ponto de vista educacional do que seus

    genitores e gozando, por conseguinte, de status social mais elevado. O

    agravamento das tenses geracionais verificou-se justamente no contexto do

    estreitamento das oportunidades de sobrevivncia autnoma, o que

    condicionou muitos a derivarem para o crime. Esse inclusive o perodo de

    intensa migrao para os Estados Unidos. Terceiro, o advento do facismo foi

    fatal para as mfias. Os facistas no apenas desencadearam campanhas

    contra os mafiosos como a suspenso das eleies privou-lhes de

    persistirem se apropriando do aparelho estatal como instrumento de

    liqidao de grupos rivais bem como moeda corrente nas negociaes

    ilcitas em Roma. Assim, durante o interldio entre as duas guerras mundiais,

    as organizaes mafiosas tenderam ao desaparecimento, quando menos ao

    retrocesso. Renasceram em 1943, s vsperas do fim da II Grande Guerra.

    Se, ao renascer, no reconquistaram sua antiga influncia poltica e sua

    posio chave nos conchavos poltico-partidrios, modernizaram seus

    negcios em torno de atividades econmicas ilegais altamente rendosas

    como o cmbio negro, o contrabando e possivelmente o trfico internacional

    de drogas.

    De toda essa longa histria, reproduzida a partir do estudo de

    Hobsbawn, interessa ressaltar alguns aspectos. O nascimento, expanso e

  • 32

    declnio das organizaes mafiosas acompanharam pari passu as

    vicissitudes da vida econmica e poltica italiana. Nascido de um movimento

    social revolucionrio, de fortes bases e tradies populares, contra os

    usurpadores estrangeiros, transitou para uma forma de organizao poltica

    paralela ao poder de Estado. Combinando patronato poltico-social, regulado

    por rituais de referncia e reafirmao do poder arbitrrio do mais forte,

    justamente aquele que dispe da capacidade de mando e obedincia

    irrestritos, com formas modernas de representao poltica, as organizaes

    mafiosas traduziram, em determinado momento da histria social e poltica

    italianas, uma alternativa de participao no modelo de poder concntrico

    institudo pelos potentados do Norte, modelo alimentado pelo liberalismo

    poltico em voga quela poca, ltimo quartel do sculo passado. Tratou-se

    de uma cunha nesse modelo ainda que essa alternativa tenha sido nada

    democrtica porque pouco sensvel aos interesses e necessidades das

    classes populares. Na verdade, tudo sugere o quanto os processos de

    acumulao de riqueza e de acumulao e concentrao de poder

    tangiversaram as possibilidades de existncia das organizaes mafiosas,

    determinando-lhes inclusive sua deriva para o mundo da delinqncia, seja

    na prpria Itlia, seja nos Estados Unidos. Vale notar, contudo, que as

    organizaes mafiosas jamais se colocaram como uma necessidade

    intrnseca da prpria economia ou mesmo do desenvolvimento poltico.

    Nessa medida, no se constituram em pea essencial do poder poltico ou

    elemento indispensvel ao funcionamento legal do aparelho de Estado. Disto

    resulta tambm que no lograram expanso para alm de suas bases locais,

    s quais permaneceram via de regra aprisionadas. De fato, quando os lucros

    possveis e o poder disponvel estimularam as tenses entre as velhas e

    novas geraes de mafiosos, a alternativa foi emigrar e no a descoberta de

    outros territrios que pudessem servir de ampliao das redes e de

    acomodao dos interesses12.

    Ao que tudo parece indicar, na contemporaneidade o crime

    organizado reaparece, agregando novas prticas s tradicionais. O trfico

    internacional de drogas, uma de suas modalidades atuais mais significativas,

  • 33

    padece de problema semelhante. O narcotrfico compreende um conjunto

    diversificado de atividades e operaes, o qual articula, em nvel

    internacional, a produo (com todo o seu processo artesanal, semi-

    artesanal e industrial), a circulao, a distribuio e o consumo. Por

    intercambiar uma mercadoria proibida na maior parte das sociedades, o

    narcotrfico mobiliza toda uma economia subterrnea: distintos

    mecanismos de acumulao (que compreendem uma combinao de formas

    de assalariamento, semi-assalariamento, pagamento em espcie) geram

    uma renda da qual parte substantiva apropriada na remunerao de

    atividades de suporte ou subsidirias como o abastecimento de armas, a

    manuteno de milcias locais particulares, o treinamento e formao de

    pistoleiros profissionais e sobretudo manuteno de uma rede de

    colaboradores, destinada a facilitar o transporte da droga, pelos mais

    variados meios, atravs das fronteiras entre pases. Da a necessidade de

    consumir vultuosos capitais para garantir postos privilegiados de circulao,

    entre os quais campos particulares de pouso. Da tambm a funcionalidade

    da corrupo em toda essa economia subterrnea, sediada inclusive em

    aeroportos, portos e zonas aduaneiras e alfandegrias (Labrousse, 1994;

    Salama, 1994; Kozel & Lambert, 1992; Arrieta e outros, 1991; Schiray,

    1989,1992 e 1994; Fonseca, 1992)13.

    Alm do mais, essa modalidade de economia subterrnea

    altamente verticalizada e verticalizadora. Ela tende a colonizar outras

    modalidades delituosas, submetendo-as a seu domnio. Atividades

    anteriormente realizadas por soturnos e individualizados delinqentes ou por

    bandos isolados, como roubos, seqestros, contrabandos acabam

    articuladas ao narcotrfico. O caso do contrabando de armas exemplar. Ele

    presta-se no somente a modernizar e nutrir o arsenal blico sofisticado

    disposio dos traficantes, como tambm a proporcionar fonte de renda

    adicional. A propsito, convm relembrar que a circulao monetria

    fundamental nessa economia subterrnea, da porque a lavagem de

    dinheiro, atravs de operaes financeiras complexas e sofisticadas, porm

    dotadas de alguma segurana, to vital para a sobrevivncia do

  • 34

    narcotrfico. Da tambm o papel estratgico desempenhado pelas

    instituies bancrias cuja cumplicidade raramente colocada sob suspeio

    (Arlacchi, 1992; Lewis, 1994).

    No bastassem essas conexes que o narcotrfico estabelece com o

    mercado e o Estado, ele tambm encadeia e introduz microscpicos

    desarranjos no tecido social. No passado, a organizao delinqente tinha

    claro as diferenas entre o mundo da ordem e da legalidade e o mundo dos

    ilegalismos. Havia ntida distino entre trabalho e delinqncia. O

    narcotrfico rompeu com essa tradicional distino. Muitos dos jovens

    recrutados em massa para a organizao o so na condio de

    trabalhadores assalariados, no importando o posto que venham inicialmente

    a ocupar. Tal no significa contudo a introjeo de uma tica vocacional do

    trabalho ou a criao de uma solidariedade ombro a ombro. Ao contrrio,

    institui-se uma competitividade tal, movida por um individualismo exacerbado

    e por uma desconfiana extremada em qualquer um14. Radicalizada at s

    ltimas conseqncias, essa competitividade instituinte da guerra entre

    quadrilhas. Por isso, esses jovens, desde cedo socializados para o ingresso

    na guerra, o so tambm para lidar com a morte e sua iminncia. Aqui se

    revela um dos mais agudos paradoxos da contemporaneidade: no pice do

    processo civilizatrio, os avanos tecnolgicos esto colocando em evidncia

    a fragilidade da vida, os inmeros perigos e riscos que a cercam. Sob essa

    tica, talvez o crime organizado constitua de fato o cerne do problema

    contemporneo, menos pelos seus efeitos sobre a ordem e a legalidade e

    muito mais pelas incertezas que ele institui (Pecaut, 1991 e 1994; Arrieta e

    outros, 1991)15.

    De qualquer modo, o crime organizado tambm prope problemas

    novos, insolveis a curto prazo, para a Justia penal. O que tem sido

    evidenciado, seja no narcotrfico, seja nos casos de alta corrupo

    envolvendo agentes do Estado, que as leis penais no podem ser

    aplicadas do mesmo modo que so aplicadas s modalidades delituosas

    cometidas pelo delinqente comum. Os processos penais que tem como alvo

    o crime organizado, em especial o trfico internacional de drogas, ensejam

  • 35

    uma complexidade mpar. Em primeiro lugar, porque a natureza das

    operaes pouca conhecida. Envolve uma rede de atores, situados em

    mltiplos pontos da estrutura social com funes extremamente

    diferenciadas. Ademais, tudo funciona base do segredo, lei do silncio

    cuja transgresso severamente punida, no raro com a morte de um

    suspeito, o que arrasta atrs de si toda uma cadeia de tantos outros suposta

    ou efetivamente comprometidos com a ruptura do pacto. Com isso dilui-se a

    materialidade da infrao - a qual somente pode ser objeto de interveno

    judicial caso perfeitamente caracterizada sob o ponto de vista das exigncias

    legais - bem como se dilui a precisa identificao da responsabilidade penal.

    H ainda uma terceira situao. Diz respeito aquela em que tanto a

    infrao est perfeitamente caracterizada face aos requisitos legais quanto

    so conhecidos seus provveis autores. Contudo, a trama de tal forma

    intrincada que no se pode estabelecer uma relao de causalidade, um

    nexo entre a materialidade da infrao e seus possveis autores. Assim, a

    justia penal, fortemente influenciada pelos princpios liberais, cujo eixo

    principal repousa na suposio do livre arbtrio e, por conseguinte, na

    responsabilidade individual, fica impossibilitada de exercer uma de suas

    funes primordiais, qual seja a de assegurar a pacificao da sociedade

    mediante julgamento e responsabilizao dos atos considerados lesivos

    ordem pblica.

    Com isso, no mbito tambm do narcotrfico, a materialidade do delito

    e a responsabilidade individual no so passveis de perfeita e exata

    caracterizao. No sem motivos, quando a justia penal consegue exercer

    alguma interveno nessa rea, seus resultados so irrisrios e seus efeitos

    pouco eficazes. Por que? Na maior parte das vezes em que situaes como

    esta ocorrem, os acusados ou so consumidores, ou pequenos e mdios

    traficantes que no desfrutam de um sistema privado de proteo e de

    imunidades contra a ao da Justia. Essas intervenes contudo no

    resultam na desmontagem de toda uma organizao que se recompe em

    outros lugares e com novos recursos, e movida por outros indivduos,

    recrutados para desempenharem as distintas funes de transporte,

  • 36

    vigilncia, venda etc. Essa parece ser uma situao tpica, mesmo quando

    toda uma rede ou quadrilha tenha cado nas mos da justia penal.

    Exemplos de situaes como essa so encontrados cotidianamente na

    crnica policial de cidades como Rio de Janeiro e So Paulo16. Para o

    cidado comum, incapaz de compreender toda essa complexa rede de

    relaes sociais a qual subordina a corrupo e o trfico de influncias ao

    narcotrfico, o que de fato releva uma justia penal frouxa, inoperante,

    ineficiente, impossibilitada de ver reconhecida sua autoridade, conivente at

    por omisso com o crescimento da criminalidade urbana violenta. No h

    razes portanto para se estranharem as opinies favorveis ao justiamento

    privado e a outras modalidades privadas de punio e vingana, que

    compreendem, em sociedades como a brasileira, a aplicao de castigos

    fsicos e mesmo da pena de morte, isto , medidas que desprezam a

    mediao da Justia pblica.

    Em resumo, a partir de uma anlise crtica de ensaio de Ralph

    Dahrendorf sobre a eroso da lei e da ordem na sociedade contempornea,

    procurei desconstruir os argumentos contidos no ensaio sugerindo as

    mudanas que incidem sobre o modo de assujeitamento dos indivduos. Mais

    do que liberao dos indivduos dos liames e controles sociais, para alm de

    um problema de ligaduras, o que parece estar no centro das radicais

    transformaes da ordem neste final do sculo o modo como os indivduos

    governam a si e aos outros (Foucault, 1984). Para sustentar esta hiptese,

    tomei como paradigma de anlise um caso: a colonizao da criminalidade

    pelo crime organizado, em particular por ao de uma de suas modalidades

    mais emblemticas de produo da violncia no mundo contemporneo - o

    narcotrfico. Esse recorte analtico e emprico conduziu-me a indagar: em

    que medida o pluralismo jurdico, cujos contornos comeam a ser

    detectados, bem como as formas emergentes de contratualidade, no

    necessariamente enfeixadas no Estado, no estariam - ao promoverem

    mudanas no diagrama liberal (Ewald, 1986) -, incidido sobre tradicionais e

    convencionais concepes de responsabilidade penal centrada no indivduo,

    pouco compatveis com a emergncia e generalizao do crime organizado?

  • 37

    Bem, penso que essa breve e impressionista descrio do crime

    organizado sugere que os problemas sociais contemporneos so muito

    mais complexos do que aventou Dahrendorf. As formas explosivas de

    litigiosidade, nos mais diferentes campos da existncia social, no se

    acomodam s frmulas e parmetros ditados pela institucionalizao ou

    democratizao dos conflitos na sociedade industrial. Como Dahrendorf,

    concordamos que o crime e suas formas de punio representam um dos

    mais candentes problemas contemporneos. Discordamos contudo quanto

    natureza desse problema. Segundo me parece, o problema no reside na

    eroso da lei e da ordem, que seno um efeito, porm na inadequao dos

    controles sociais tradicionais e convencionais sociedade de risco (Ewald,

    1986), modo como se pode qualificar as sociedades contemporneas. Por

    isso, preciso repensar o estatuto do controle social na contemporaneidade.

    O controle social, algo mais amplo do que o controle da ordem pblica,

    parece ter esgotado suas funes no interior de modelos tradicionais. Por um

    lado, os mecanismos de presso social sobre o comportamento dos

    indivduos, que operaram sobretudo na esfera da moralidade, pblica e

    privada, no parecem suscitar nem o sentimento de medo, sequer o de

    angstia diante das possibilidades, sempre abertas, de violao das normas

    sociais. como se operasse uma sorte de dissociao entre as imposies

    morais e as prticas sociais. Segundo Roch, nos socits urbaines et

    complexes ont liber lhomme du contrle social. Elles ont ouvert des

    opportunits dans tous les domaines, et notamment en matire de

    dlinquance. [...] Mais linscurit nen constitue pas moins lexpression de

    nos socits faites de lieux anonymes ncessaires une circulation

    acclere des biens et des personnes, du declin de ltat dans ses capacits

    rgler la violence et imposer son sceau la socit. Linscurit souligne

    galement le dficit de confiance entre les personnes qui caractrise notre

    socit: entre ses membres, entre le systme politique et ses administrs. La

    confiance est pourtant un ingrdient essentiel de la vie sociale. Linscurit

    souligne le fractionnement entre groupes sociaux et ethniques, labsence de

  • 38

    dynamique dintgration collective, brisant net lillusion rpublicaine dune

    socit une et indivisible (Roch, 1994: 13-16).

    Por um lado, nunca demais lembrar. NA Educao Moral (1963),

    Durkheim defende a tese de que somente a submisso regra exterior,

    impessoal e abstrata capaz de conter as foras rebeldes que habitam o

    indivduo, contendo portando os apetites imoderados e o individualismo

    exacerbado. Essa luta de si para consigo traduz-se em educao moral cujos

    princpios fundantes so: disciplina, adeso a um grupo social e autonomia

    da vontade. Preenchidos esses requisitos, a sociedade pode funcionar em

    sua regularidade. Ora, a moralidade na sociedade contempornea parece

    justamente caminhar em sentido oposto. Em lugar da aposta no

    universalismo, na austeridade e no autocontrole, a moral contempornea

    hedonista e particularista, valoriza a espontaneidade, a dessublimao da

    vida pulsional, a inverso da relao paixo-razo, impulso e prazer como

    afirmadores da existncia (Sennett, 1987; Lash 1983 e 1986). Nesse

    movimento, no estranho que questes ticas tenham e venham sendo

    trazidas para o centro do debate contemporneo. De igual modo, no fora

    de propsito que a corrupo, uma prtica to antiga quanto rotineira em

    nossas sociedades, tenha se constitudo em problema social e poltico seno

    recentemente (Martins, 1994). No interior desse cenrio, parece pouco

    razovel fiar-se a obedincia s normas na existncia suposta de um sujeito

    autnomo, por natureza cioso das virtudes da disciplina social.

    Por outro lado, as ticas vocacionais, muitas delas dotadas de forte

    inspirao religiosa que, no passado, asseguravam o represamento das

    pulses e do desejo (Weber, 1974), se no mais parecem mecanismos

    slidos para conter os conflitos dos indivduos entre si e com a sociedade,

    muito menos ainda o so para evitar as tenses entre coletivos sociais. Est-

    se em plena era das paixes, sem que quaisquer interditos ou freios morais

    subjetivos consigam objetivar a experincia social. Os homens vem o

    mundo como espelho de si mesmo e no se interessam por eventos externos

    a no ser que desenvolvam um reflexo de sua prpria imagem. Deixaram de

    compartilhar um fundo comum de signos pblicos. Assim, torna-se

  • 39

    impossvel a busca do auto-interesse esclarecido (Sennett, 1987; Rouanet,

    1987). O sinal mais visvel desse processo reside na acentuada perda de

    eficcia da tica vocacional do trabalho, cujos efeitos se manifestam em

    todas as classes sociais, em particular entre as classes trabalhadoras.

    O esgotamento dos modelos convencionais de controle social sugere,

    por conseguinte, que preciso repens-lo. E repens-lo a partir do lugar

    onde ele foi originalmente concebido pela teoria sociolgica clssica, qual

    seja a sociedade. A complexa problemtica do controle social no se encerra

    no domnio exclusivo dos aparelhos repressivos de Estado. Com isso, penso

    que a crtica e problematizao das demandas contemporneas por ordem

    social sofrem um deslocamento em seu eixo de referncia: do poder poltico

    para o poder social. Tal perspectiva compreende a reflexo sobre as formas

    de interao e sociabilidade em emergncia, quer entre as classes populares

    quer entre as demais classes sociais, bem como as modalidades de

    socializao que informam o comportamento sobretudo dos jovens na

    sociedade contempornea e que fomentam variadas interpretaes acerca

    do uso das normas e de sua eficcia, prtica e simblica. Nesse terreno,

    impe-se investigar os modelos de autoridade em emergncia, repertoriando

    os mltiplos e atuais sentidos atribudos a todos os elementos que compem

    o universo normativo, como as leis, os direitos, as instituies, as sanes,

    bem como o peso que figuras de autoridade - como o pai, o patro, o

    conselheiro local, o delegado, o magistrado, o padre, a parteira, o grupo de

    pares etc. - ocupam resignificadas nos processos de socializao em curso.

    Tal perspectiva vem, nesse sentido, recuperar um dos objetos mais

    tradicionais da teoria sociolgica clssica cujas questes pareciam, at h

    pouco, completamente elucidadas, qual seja o processo de socializao.

    Por fim, uma agenda que se proponha repensar o estatuto do controle

    social, problematizando suas formulaes tradicionais e convencionais, no

    pode ignorar o papel do Estado no controle social, em particular no controle

    da ordem pblica. Todavia, esse papel no pode mais ser examinado em

    termos de eficcia ou fracasso. Dahrendorf afirma, nos ensaios citados, que

    um dos problemas fundamentais da sociedade contempornea que o

  • 40

    controle da ordem pblica na sociedade moderna foi inspirado em Locke e

    Rousseau, porm, ao implement-lo, essa mesma sociedade se encontrou

    face face, e mesmo se identifica, com o Estado leviat de Hobbes. Com

    isso, creio, o socilogo liberal est fazendo meno ao fato de que o controle

    social (inclusive o controle da criminalidade) se espreme entre duas foras

    antagnicas: por um lado, a anarquia social que seria decorrente de

    propostas irrealistas de justia social; por outro lado, o autoritarismo,

    inspirador de propostas que supem desprezo, suspenso ou violao de

    direitos individuais. Ora, impe-se neste captulo justamente colocar a

    questo fora desses termos dicotmicos. preciso problematizar a prpria

    natureza, perfil e funes do Estado na contemporaneidade, as quais

    extravazaram os limites ditados pelo modelo contratual de organizao

    societria. Como vem demonstrando vrios analistas, em particular

    Boaventura de Sousa Santos, cabe considerar que, na atualidade, o Estado

    cada vez mais caracterizado pelo pluralismo jurdico e pela coexistncia de

    mais de uma ordem jurdica no mesmo espao geopoltico, o que contrasta

    com as clssicas funes e caractersticas do Estado moderno. Nesse

    terreno, preciso lembrar que vivemos sob a gide uma uma civilizao do

    risco que arrasta atrs de si importantes conseqncias polticas, em

    especial para as formas de controle social penal, tudo enfeixado em torno de

    um Estado de Preveno. Trata-se de uma modalidade de organizao

    estatal, voltada prioritariamente para a preveno e para a segurana,

    tendente a orientar-se segundo normas e mecanismos decisrios que

    reorganizam sem cessar reaes a situaes de urgncia estrutural ou

    conjuntural (Wagner & Baratta, 1994). Trata-se, por conseguinte, de um

    Estado armado contra o perigo e que tende a ver inimigos por toda a trama

    do tecido social17.

    Para terminar, talvez se esteja agora em condies de lanar uma

    hiptese explicativa para uma questo anteriormente formulada: pode ser

    que a obsesso punitiva de nossa sociedade contempornea, materializada

    nas chamadas demandas por ordem social se explique justamente pelo

    modo de funcionamento da sociedade de risco que edifica toda uma imensa

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    e resistente superestrura de preveno e segurana (atravs da proliferao

    das sociedades de seguro e dos mecanismos de vigilncia privada) para

    fazer face aos medos, perigos e ameaas que tornam a vida humana, social

    e intersubjetiva, absolutamente incerta. Da por que, no bojo de fenmenos

    aparentemente to diferentes e distanciados no tempo e no espao, como

    sejam as catstrofes, as epidemias, os acidentes, o desemprego crnico,

    extremismos polticos, os crimes esteja um mesmo e nico problema: uma

    profunda crise de racionalidade que atravessa a sociedade contempornea

    de alto a baixo e que coloca sob suspeio todas as apostas nas virtudes do

    progresso tcnico, da modernizao e do bem-estar proporcionado pela

    sociedade industrial.

    *.*.*

    arece, por conseguinte, no