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Revista Crítica

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n°11, vol. 1, 2015

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[-] Sumário # 11 vol. 1

EDITORIAL 4

OS MOVIMENTOS INDIGNADOS E AS LUTAS DE CLASSES 9

Entrevista de Charles Reeve a Stephane Julien e Marie Xaintrailles

ARTIGOS

ANTICAPITALISMO PARA O SÉCULO XXI 23

Um breve panorama da nova crítica do valor

Joelton Nascimento

ESTAMOS PERDENDO! 51

Do altermundialismo à indignação multitudinária:

balanço da resistência global quinze anos após Seattle

Raphael F. Alvarenga

A CATÁSTROFE COMO MODELO 74 Agronegócio, crise ambiental e movimentos sociais

durante o decênio 2003-2013

André Villar Gomez

Marcos Barreira

SOCIALISMO OU BARBÁRIE? 113 Daniel Cunha

A ESPUMA, A ONDA E O MAR DA REAÇÃO 118

Cruzando o fantasma autoritário brasileiro

Bob Klausen

O OTIMISMO E O PÊNDULO 134

O duro aprendizado de caminhar em terreno movediço

Douglas Anfra

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DESTINOS DO ÓDIO SOCIAL 140

E A ENCRUZILHADA DA ESQUERDA

Bruno Klein

“FOGO AMIGO” 144

A incubadora petista da avalanche conservadora

Paulo Marques

PASSEIO PELAS GREVES PARANAENSES 163

DA EDUCAÇÃO EM ALGUMAS NOTAS

G. Émeutes

SOBRE A MAIORIDADE PENAL 171

Uma ação preventiva do capital

Atanásio Mykonios

GERAÇÃO SARRAZIN 191

Breve esboço da gênese da nova direita alemã

Tomasz Konicz

ESTADO DE PESTE / ESTADO DE SÍTIO 202

Para reler A peste, de Camus

Cláudio R. Duarte

O QUE É UM COLABORADOR? 225

Jean-Paul Sartre

MISÉRIAS DO PRIMITIVISMO 238

Resenha de Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins

Daniel Cunha

COMUNIZAÇÃO NO PRESENTE 247

Théorie Communiste

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Editorial

―Nunca se viu tanto fim‖ – disse certa vez Robert Kurz – e ao que parece, antes

que o fim chegue e arranque de vez os fundamentos do chão, agora iremos penar

uma avalanche conservadora mundial cujo paralelo histórico será difícil de encontrar

nos livros, salvo nos anos da grande crise de 29, nos passos truncados e por fim

malogrados da esquerda nos anos subsequentes. Os anos da ascensão mais colossal

das forças reacionárias em escala planetária, momento que nos concerne de algum

modo ainda hoje, pois, como vaticinou Walter Benjamin, ―por trás de todo fascismo,

há uma revolução de esquerda fracassada‖.

Aqui circundamos o escopo desta edição de Sinal de Menos. Sem forçar a nota

nessa comparação histórica – mas sem tampouco abdicar de sua chave de leitura,

pois a barbárie neoliberal e as contraposições a ela tendem a recrudescer a partir de

agora – a atual avalanche conservadora brasileira e mundial e os obstáculos

teóricos e práticos de uma superação imanente da crise global são os temas mais

gerais deste volume da edição dupla da revista. Daí a encruzilhada sombria sugerida

pela capa de Felipe Drago.

Por aqui, em clave menor, a esquerda brasileira vai sofrendo mais uma grande

derrota histórica com a eleição do congresso nacional mais conservador desde 1964 e

a capitulação do governo petista recém-eleito em meio a uma crise econômica e

política em parte promovida por ele próprio, em parte porque vai inexoravelmente

batendo nos limites do financiamento interno, da concorrência e da crise globais.

No mundo todo, nessa conjuntura tenebrosa, brilha a luz bruxuleante de uma

grande presença-ausência: de um lado, ensaios de contestação teórica e prática da

sociedade das mercadorias, de outro, os aparelhos de coação e captura de todo

movimento vivo sob a jaula de aço das medidas de austeridade e de promoção

neoliberal de um mundo privado da razão, moldado pela economicização da vida até

a morte e as medidas de emergência reprodutoras do sistema.

No horizonte, apenas a ―tempestade perfeita‖ de uma ―direitização da direita‖

(Paulo Arantes) que ofusca toda visão e forja os seus filhotes mimados, amantes da

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jaula em que nasceram – nadando na superfície do mar de seus privilégios, ou muito

menos que isso – liberando o ódio e os cães de guarda contra quem pretende serrar

as suas barras. O risco é então o de regredirmos em toda linha numa espécie de

―contrarrevolução sem revolta‖, algo que vai dando nó na cabeça dos marcuseanos

herdeiros de 68. Com o que, para nós, então, é preciso repensar o que se tinha por

certo, a suposta rebelião ou revolução inscrita no curso do progresso das forças

produtivas, mas que é ainda pouco ou nada na falta da constituição de um

movimento prático de êxodo da imanência do Capital. Como já dizíamos na

apresentação da revista em nosso primeiro editorial: ―as crises que se desencadeiam

não são garantia alguma de superação social, tornando-se antes motivo para a

reflexão sobre as formas de converter tal negatividade cega em algo realmente

negativo e superador.‖

Após um longo intervalo devido à conjuntura movimentada do cenário

eleitoral, Sinal de Menos chega mais encorpada, com uma edição dupla. Este

primeiro volume contém artigos mais focados nos aspectos conjunturais, partindo de

uma ENTREVISTA de CHARLES REEVE sobre o renascer de movimentos

contestatórios no cenário mundial, da China à Europa e Estados Unidos, com

destaque para a crise social na Espanha e o movimento dos Indignados. O segundo

volume terá a honra de trazer uma entrevista com PAULO ARANTES, um dos

mestres da análise da formação brasileira e da crítica do estado de emergência

mundial, que se constitui como o pano de fundo teórico de muitas de nossas análises

nas duas edições.

A seção de ARTIGOS inicia-se com o texto de JOELTON NASCIMENTO,

ANTICAPITALISMO PARA O SÉCULO XXI – Um breve panorama da nova

crítica do valor, em que o autor apresenta em linhas gerais as teses defendidas pela

Nova Crítica do Valor (NCV), consolidada principalmente em torno das revistas

Krisis e Exit!, além da discussão de referências sobre alguns de seus precursores.

Escrito por ocasião dos 15 anos das manifestações de Seattle (novembro de

1999), o segundo artigo, ESTAMOS PERDENDO!, de RAPHAEL F. ALVARENGA,

propõe um balanço crítico do altermundialismo do início do século, contrastando-o

em seguida com formas de protesto e teorizações mais recentes.

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Em seguida, publicamos o ensaio de ANDRÉ VILLAR GOMEZ e MARCOS

BARREIRA, A CATÁSTROFE COMO MODELO – Agronegócio, crise ambiental

e movimentos sociais durante o decênio 2003-2013. Com riqueza de detalhes

empíricos e uma análise crítica refinada pelas lentes da crítica do valor, os autores

comparam e confrontam as ideologias e os reais custos socioambientais do complexo

agroindustrial brasileiro montado nas últimas décadas, apontando as

irracionalidades de tal modelo agrário.

Em SOCIALISMO OU BARBÁRIE?, DANIEL CUNHA comenta a reação

de certos setores da esquerda ao recente atentado na França. O que se desvela é que

certas ideologias identitárias pretensamente de esquerda do capitalismo de crise, na

falta de um arsenal crítico adequado, acabam por borrar a distinção entre as lutas

emancipatórias e o terrorismo e, no limite, acabam por legitimar a barbárie.

Na sequência, temos sete textos que pensam a ascensão conservadora no atual

contexto. Em A ESPUMA, A ONDA E O MAR DA REAÇÃO – Cruzando o

fantasma autoritário brasileiro, BOB KLAUSEN busca caracterizar as forças

conservadoras que retomaram o espaço público brasileiro nos últimos anos,

decifrando seu imaginário autoritário por meio das estruturas e práticas sociais que o

constituem. Em O OTIMISMO E O PÊNDULO: o duro aprendizado de caminhar

em terreno movediço, DOUGLAS ANFRA desdobra as dificuldades de organização

dos movimentos sociais na atual conjuntura, o que nos faz questionar todo

―otimismo da prática‖, considerando a relativa perda de força da mobilização de

esquerda e a ascensão da direita no país, ambos escapando a esquemas conceituais

prévios. No próximo artigo, DESTINOS DO ÓDIO SOCIAL E A

ENCRUZILHADA DA ESQUERDA, BRUNO KLEIN esboça uma fina análise

desse sentimento primário expresso pela direita nas ruas como uma espécie de

retorno do recalcado. O autor mede os possíveis riscos, nesse momento, de uma

adesão social dos oprimidos e estropiados a esse mecanismo compensatório, que os

levaria à identificação com uma classe cuja ideologia já não reivindica o menor verniz

de civilidade. Em “FOGO AMIGO” – A incubadora petista da avalanche

conservadora, PAULO MARQUES traça uma série de elementos históricos

envolvidos na capitulação do Partido dos Trabalhadores, da apologia indireta à

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participação direta na reprodução da ordem capitalista, por fim ajudando a chocar o

ovo da serpente desse ―fascismo à brasileira‖ que hoje vai pipocando nas ruas e no

espírito das massas. Em seguida, G. Émeutes, em PASSEIO PELAS GREVES

PARANAENSES DA EDUCAÇÃO EM ALGUMAS NOTAS, faz um balanço das

greves contra o governo tucano de Beto Richa e do processo de organização contra o

cerco autoritário que ele impõe. No próximo texto, temos o ensaio de ATANÁSIO

MYKONIOS, SOBRE A MAIORIDADE PENAL – Uma ação preventiva do

capital, o qual traça a relação entre o projeto de redução da maioridade penal e a

desvalorização da força de trabalho no país, segundo o jogo de determinações

econômicas, políticas e culturais. Finalmente, em GERAÇÃO SARRAZIN (Breve

esboço da gênese da nova direita alemã), de TOMASZ KONICZ, autor dos círculos

alemães de crítica do valor Krisis, Exit! e Streifzüge, passa-se à discussão da

configuração do neofascismo islamofóbico do PEGIDA e de outros aspectos da

reação e do caráter autoritário na Europa.

Em seguida, temos um texto de crítica literária. Trata-se da análise de um

romance clássico ainda hoje subestimado e mal interpretado: em ESTADO DE

PESTE / ESTADO DE SÍTIO – Para reler A peste, de Camus, CLÁUDIO R.

DUARTE busca arquitetar o ponto de vista de seus referentes históricos captados

pela malha de seus significantes enigmáticos, muitos inclusive surpreendentes, em

que é refletida tanto a experiência dos regimes de exceção, a partir da África colonial

francesa e da ocupação nazista na França, quanto a organização prática de uma

―revolta‖ fundada numa relação ética solidária entre indivíduo e grupos socialmente

construídos. Acompanhando esse ensaio, temos uma tradução de um texto

conhecido de JEAN-PAUL SARTRE, escrito logo após o fim da grande guerra: O

QUE É UM COLABORADOR? – o qual desenha uma fisionomia social e moral do

indivíduo que colabora com o domínio nazista e o governo de Vichy. Que fique aqui a

sugestão de se traçar um dia um paralelo deste colaborador sombrio com o

―colaborador‖ da empresa e do mundo neoliberal atual.

Em MISÉRIAS DO PRIMITIVISMO, DANIEL CUNHA resenha Há

mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, de Débora Danowski e Eduardo

Viveiros de Castro. O autor critica as suas tendências malthusianas e regressivas, que

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resultam de um déficit dialético e materialista da crítica do capital e das forças

produtivas, que no entanto podem soar atraentes no clima de ―fim do mundo‖ da

crise ecológica global.

A revista fecha com COMUNIZAÇÃO NO PRESENTE, do grupo francês

THÉORIE COMMUNISTE. Os autores buscam articular as noções de classe e

proletariado no capitalismo de crise – o proletariado como classe negativa e como o

seu próprio limite, que coloca a comunização na ordem do dia, aliando crítica radical

do valor e perspectiva de classe. Trata-se, de certa forma, do avesso da conjuntura.

Abril de 2015.

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OS MOVIMENTOS INDIGNADOS

E AS LUTAS DE CLASSES Entrevista de Charles Reeve a Stephane Julien e Marie Xaintrailles

Charles Reeve é o pseudônimo de Jorge Valadas, português exilado na França

desde os anos 60, após desertar do exército colonial português. É autor de várias obras

de reflexão política de tendência libertária, participante nos Cadernos de

Circunstância (1969-71) e no jornal Combate (1974-78). Nesta entrevista são

abordadas as lutas operárias na China e a crise capitalista atual e as suas

consequências qualitativas para as lutas sociais, em especial os novos movimentos dos

―Indignados‖.

Você escreveu vários livros sobre o capitalismo de Estado chinês. A China

se converteu em uma potência comercial no capitalismo mundializado.

Alguns o explicam pela não-convertibilidade de sua moeda e seu regime

repressivo. Por outro lado, há lutas operárias, ou ao menos é o que se diz.

Na ausência de sindicalismo independente, as greves são sempre

selvagens ou a situação é mais complexa? São sempre lutas reduzidas a

uma única empresa ou existem formas de coordenação ou de extensão a

setores produtivos ou cidades?

Para começar... pode haver sindicalismo independente e greves selvagens. Uma

greve é selvagem em relação à estratégia da burocracia sindical, ainda que esta seja

independente dos partidos. E um sindicato independente que funciona segundo o

princípio da negociação e da cogestão se opõe a toda ação autônoma dos assalariados

que possa incomodar a sua natureza ―responsável‖ e ―realista‖. A greve selvagem é uma

ação que mostra que os interesses dos trabalhadores não coincidem necessariamente

com os objetivos do sindicato, instituição negociadora do preço da força de trabalho.

Inversamente, houve na história do movimento sindical greves selvagens com objetivos

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reacionários, às vezes até racistas, como nos Estados Unidos e na África do Sul.

Na China a situação é certamente complexa. O sindicato único (ACFTU, All

China Federation of Trade Unions) está ligado ao partido comunista e fez o papel de

polícia da classe trabalhadora durante e após o maoísmo. Depois da ―abertura‖ (ao

capitalismo privado), se converteu em uma gigantesca máquina de gestão da força de

trabalho a serviço das empresas, incluindo as empresas estrangeiras nas Zonas

Econômicas Especiais. Está totalmente desacreditado entre os trabalhadores. Ele é

percebido como polícia e como apêndice da direção das empresas. Há alguns anos a

burocracia do Partido Comunista fez esforços para restituir algo de sua credibilidade

ao sindicato. Por exemplo, foram feitas campanhas demagógicas para ―organizar‖ os

mingong, ou seja, para introduzir certo controle do partido nessas comunidades

operárias marginalizadas, formadas por imigrantes do interior sem papeis dentro do

seu próprio país. Mas não houve nem efeitos e nem consequências e a imagem do

ACFTU entre os trabalhadores não mudou. Às vezes o poder central pressiona para que

as instâncias do ACFTU se posicionem contra esta ou aquela direção de uma empresa

de capital estrangeiro. Por outro lado, em lutas recentes se voltou a ver os capangas do

sindicato atacarem os grevistas e piquetes em defesa dessa mesma empresa. Isso prova

que essa organização, pela sua natureza, segue sendo, no fundo, reacionária e está ao

lado do poder, de todos os poderes.

Curiosamente, algumas organizações de espírito sindicalista independente, tais

como a China Labour Bulletin (Hong Kong, http://www.clb.org.hk/en) continuam, na

contracorrente e contrariamente ao que eles mesmos analisam, falando de uma

possível transformação do sindicato único em um ―verdadeiro sindicato‖ de tipo

ocidental. Se apoiam na atitude de alguns burocratas locais e regionais (sobretudo no

sul, em Guangdong) que tentam desempenhar um papel negociador a fim de apaziguar

a explosiva situação existente. Os militantes dessas organizações independentes (como

o China Labour Bulletin) compartilham a visão tradicional do movimento operário.

Para eles, a organização ―natural‖ dos trabalhadores é o sindicato, e apenas o sindicato

pode expressar a consciência dos trabalhadores, que sem a ajuda dos ―políticos‖ não

pode superar a consciência meramente sindicalista. Conhecemos o discurso. São os

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valores e princípios do velho movimento operário que se aferra à velha ideia

socialdemocrata.

Na China não existe sindicalismo independente, e não existirá enquanto a

forma política do Partido-Estado perdurar. Considerando a força do movimento

grevista há anos, a ausência de organizações criadas a partir da base explica o grau de

repressão do poder. E todas as greves são, por definição, selvagens, pois devem ser

feitas sem autorização e controle do ACFTU. Pois bem, todo movimento, toda luta,

implica uma organização, princípio da luta operária. Na China, nos encontramos

com organizações efêmeras, comissões de greve informais, formadas pelas

trabalhadoras e pelos trabalhadores mais militantes. Essas organizações sempre

desaparecem depois da luta. A maior parte do tempo, os trabalhadores mais ativos e

valorosos pagam caro; são presos, desaparecendo no universo carcerário. Existe a

impressão, faz algum tempo, de que o poder está mais tolerante, menos feroz na

repressão. Essas organizações informais não são reconhecidas, mas são menos

reprimidas. Essa mudança de atitude corresponde à crise profunda e complexa da

classe política chinesa, de suas divisões internas. Uma das facetas dessa crise é a

fratura existente entre os poderes locais e o poder central, chegando este último por

vezes a apioar os grevistas para debilitar os potentados locais. Por sua parte, também

os grevistas tentam atuar sobre essas divisões e antagonismos para satisfazer as suas

reivindicações. E o sindicato único, atravessado pelas divisões e frações do poder

político, está cada vez mais paralisado.

A última tentativa de criação de uma estrutura operária permanente, de

espírito sindicalista e independente do Partido Comunista, data de 1989, quando da

Primavera de Pequim, com a constituição da União Autônoma dos Operários. O

massacre de Tiananmen, em 4 de junho, golpeou particularmente esses militantes.1

Hoje existe uma rede de ONG's, criadas majoritariamente em Hong Kong, que

preenchem o vazio e desempenham um papel sindical, evitando com precaução

1 Charles Reeve e Hsi Hsuan-wou, Bureaucratie, bagnes et business, Insomniaque, 1997. http://www.insomniaqueediteur.org/publications/bureaucratie-bagnes-et-business

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qualquer confronto político com o poder.2

Até recentemente as lutas operárias ficavam bastante isoladas em empresas

ou regiões. Não obstante, é preciso relativizar esse isolamento e reconhecer que a

situação muda. Isolamento não quer dizer separação. Há uma unificação que se

realiza mediante reivindicações comuns, pela consciência de compartilhar o enorme

descontentamento social, de pertencer à sociedade dos explorados, de opor-se à

máfia do poder e dos capitalistas vermelhos. O papel das novas tecnologias, da

blogosfera em particular, é primordial.3 Quase estaríamos tentados a dizer que as

informações circulam hoje mais depressa na China do que em sociedades de

―informação livre‖ como as nossas, onde se pode dizer e saber tudo e não se diz nem

se sabe de nada; onde a informação está submetida ao consenso do que é

―importante‖, do que se considera ―informação‖. Na China, graças à rede das novas

tecnologias, uma luta importante, uma revolta popular ou manifestações contra uma

fábrica poluidora são rapidamente compartilhadas por centenas de milhares de

trabalhadores. Não é habitual que existam ―forma de coordenação‖, e as que existem

são totalmente clandestinas. Não obstante, hoje podemos constatar uma nova

tendência nessas lutas: a sua extensão. Há algum tempo as lutas saem rapidamente

das empresas e se dirigem aos centros de poder local, locais do partido, polícia,

tribunais...

Igualmente observamos como se estendem e generalizam as lutas nas zonas

industriais. Aumenta a solidariedade de classe e há trabalhadores que se deslocam

para apoiar os que lutam em outro lugar. A presença dos mingong, comunidades de

trabalhadores sem direitos, violentamente explorados, desempenha um papel

importante nessa extensão. É um processo em curso, vivido muito conscientemente,

e muito político, no sentido de que transborda rapidamente das reivindicações

imediatas e enfrenta os órgãos de repressão e de decisão da classe dirigente. Político

também no sentido de que essas lutas expressam o desejo de uma sociedade

diferente, de uma sociedade não desigual, não repressiva, não controlada pela máfia

2 Pun Ngai, Avis au consommateur, Insomniaque, 2011. http://www.insomniaqueediteur.org/publications/avis-au-consommateur 3 Les mots qui font peur, Insomniaque. http://www.isomniaqueediteur.org/publications/avis-au-consommateur

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do partido. Com efeito, o projeto democrático parlamentar de tipo ocidental,

defendido por correntes dissidentes, pode fincar raízes. É inevitável e lógico. Que

possa impor-se, encerrando toda perspectiva de emancipação social, também é

possível. Tudo depende, em última instância, da amplitude e radicalidade dos

movimentos sociais.

Na nota biográfica sobre Paul Mattick (pai) que publicou em “Marxisme,

dernier refuge de la bourgeoisie?”, você fala de um “esgotamento do

projeto keynesiano”. É mais ou menos o que dizia Pierre Souyri em seu

livro póstumo e inacabado “La dynamique du capitalisme au XX siècle”:

a utilização do Estado para “domar” a luta de classes e dinamizar o

investimento e a produção não sobreviveu aos avatares da crise

petrolífera e à mobilidade mundial do capital. Desde então o Estado

parece ter se tornado o alvo. Mas não se veem sinais do esgotamento do

projeto neoliberal que substituiu o keynesianismo, quando as populações

resistem aos excessos privatizadores dos serviços e os capitalistas têm as

suas reservas sobre o capital fictício a partir da crise de 2008?

É uma ótima ideia partir de Paul Mattick4 para voltar a falar de Pierre Souyri.5

Dois teóricos próximos, apesar dos caminhos diferentes e dos distintos contextos

históricos. Os dois são bem pouco conhecidos, quase nunca estudados, ignorados fora

de pequenos círculos radicais. Souyri ainda menos que Mattick, apesar de ter uma

carreira universária depois da sua participação em Socialisme ou Barbarie (onde

assinava como Pierre Brune). Souyri era sensível às ideias de Mattick, de quem era

leitor atento. O seu livro póstumo La dynamique du capitalisme au XX siècle (Payot,

1983) passou quase desapercebido e quase nunca é citado.

Mattick e Souyri compartilham a mesma teoria da crise capitalista, fundada

sobre a queda da rentabilidade do capital e as dificuldades de extração de mais-valia

necessária para a acumulação. Ambos consideravam que, ao contrário do que

4 Paul Mattick (1904-1981): http://bataillesocialiste.wordpress.com/mattick-1904-1981 5 Pierre Souyri (1925-1979): http://bataillesocialiste.wordpress.com/souyri-1925-1979

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mantinha a maior parte das correntes do marxismo radical (em relação à

socialdemocracia), o problema que a acumulação capitalista enfrenta é o da extração

de mais-valia, e não o da sua realização. Eles se distinguiram daqueles que explicam a

crise a partir do subconsumo, que eram e seguem sendo, no essencial, marxistas

keynesianos... ou keynesianos marxistas. As ideias defendidas por Mattick formam

parte de uma corrente mais ampla, da qual fazem parte, entre outros, Souyri na França

e Tony Cliff na Grã-Bretanha.

Souyri via na crise petrolífera de 1974 o indício de uma inversão no ciclo da

acumulação capitalista ocorrido depois da guerra.6 Em Le jour de l'addition7, Paul

Mattick filho (que foi companheiro político de seu pai, outro ponto em comum com

Souyri pai e filho...) demonstra igualmente como a crise de 1974 significou um giro a

partir do qual o capitalismo tentou superar a sua crise de rentabilidade mediante o

recurso constante e crescente do endividamento.

Para Souyri, o marxismo clássico (a socialdemocracia e a sua esquerda

bolchevique) subestimou as transformações do capitalismo e a sua capacidade de

integrar a classe trabalhadora. Por sua parte, Mattick analisou incessantemente o papel

que desempenhavam as organizações do marxismo clássico nessa integração. O debate

sobre a função e os limites do keynesianismo parte de constatar dita subestimação.

Souyri se interessou pela questão da transição ao capitalismo planificado, onde o

Estado interviria não apenas para corrigir os desequilíbrios da acumulação, mas

também conduziria uma economia racionalizada.

Sabemos que essa ideia é compartilhada por eminentes teóricos da

socialdemocracia, como Hilferding. Para Souyri, essa transição tornaria necessária a

integração capitalista do proletariado, já que a persistência da luta de classes tornaria

impossível a planificação. E é por isso que, nos anos 70, pensava poder concluir que

essa transição, essa capacidade do Estado para planejar a economia, não ocorreria.

6 ―La Crise de 1974 et la riposte du capital‖ Annales, nº 4, 1983 http://bataillesocialiste.wordpress.com/2010/06/18/la-crise-de-1974-et-la-riposte-du-capital-souyri-

1979-1-linflation-et-lattaque-contre-les-salaires 7 Em Le Jour de l‟addition (Insomniaque, 2009) http://www.insomniaqueediteur.org/publications/le-jour-de-laddition Uma versão ampliada desse texto foi publicada nos Estados Unidos em 2012, editada pela Reaktion

Books, e na Alemanha, pela Edition Nautilus.

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Como podemos confrontar essa ideia com o período atual? Mais do que

integrado, o proletariado atual está cambaleante, devido às medidas de reestruturação

capitalista. A classe capitalista não endossa esse projeto de racionalização da

economia; voltou, antes, a ideia do laissez faire, da mão invisível do mercado.

Portanto, é preciso voltar a colocar a questão sobre outras coordenadas. É o que fazia

Souyri, para quem, para além dos antagonismos de classe, há um ―problema mais

profundo: o da rentabilidade do capital e sua decadência‖ (La dynamique du

capitalisme au XX siècle, p. 29). De outra parte, Souyri afirmava que a ação reguladora

do Estado só foi possível em períodos de crescimento, e que quando ele se interrompia

os limites da intervenção do Estado se tornavam visíveis, ―... os primeiros sintomas da

desestabilização do sistema permitem estabelecer que as verdadeiras barreiras que

fazem frente à acumulação contínua do capital são aquelas que limitam a extração de

uma quantidade suficiente de mais-valia‖ (p. 30). ―A crise de 1974 demonstra com

clareza que a planificação de um crescimento contínuo é um mito que desaba assim

que a taxa de crescimento se contrai‖ (p. 38).

Portanto, é no problema da rentabilidade e da queda tendencial da taxa de lucro

do setor privado que se deve procurar o esgotamento do projeto keynesiano, de suas

veleidades reguladoras do capitalismo. Aqui Souyri converge com a análise dos limites

da economia mista analisados por Mattick. Para Souyri e para Mattick ―a rentabilidade

do capital privado sofreu uma erosão gradual que lhe retirou a capacidade de

autoexpansão‖ (p. 35). O que Keynes também reconhecia, e por isso pretendia

contribuir com uma ―solução‖ capaz de evitar uma possível ruptura social e os seus

perigos revolucionários. Pois bem, argumenta Mattick, essa ―solução‖, o

intervencionismo econômico, faz desaparecer as condições mesmas que a torna eficaz,

se converte no novo problema. O crescimento da demanda através da intervenção do

Estado atua sobre a produção global sem chegar a restaurar a rentabilidade do capital

privado e tampouco a continuidade da acumulação. Aumenta o endividamento e coloca

ainda mais peso na insuficiência dos lucros privados.

Hoje, enquanto vivemos os efeitos de uma profunda crise do capitalismo, os

debates sobre a sua natureza são raros ou se desenvolve em meios secretos. Ainda se

fala em ―crise monetária‖ sem explicá-la. A crítica do keynesianismo vem

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essencialmente dos neoliberais. E as vozes que se apartam do discurso oficial são de

economistas neokeynesianos. Esse é o caso, na França, do círculo Les économiste

atterrés ou de Fréderic Lordon, cujos discursos ocupam um lugar central na esfera de

influência pós-ATTAC e no Le Monde Diplomatique. Em um de seus últimos artigos,

Lordon propõe ―um grande compromisso político, o único que pode tornar o

capitalismo temporariamente admissível, o mínimo que deveria reivindicar uma linha

socialdemocrata minimamente séria (...)‖, que no essencial se resumiria na aceitação

da desestabilização criada pelo capitalismo em troca de um compromisso dos

capitalistas para ―assumir danos colaterais‖, ―fazer o capital pagar o preço das

desordens que ele recria incessantemente na sociedade com as suas relocalizações e

reestruturações‖. Esse ―grande compromisso‖ neo-socialdemocrata seria uma pálida

cópia daqueles do passado; nem sequer se trata de ―corrigir‖ ou ―evitar‖ as crises, mas

de ―viver com elas‖ e de ―pagar pelas desordens‖ engendradas pelo sistema (Fréderic

Lordon, ―Peugeot, choc social et point de basculhe‖, Le Monde Diplomatique, agosto

2012). Frente a essa ruína programática da ―esquerda‖ se pode medir a importância da

obra de Paul Mattick e da sua crítica do keynesianismo de um ponto de vista

anticapitalista.

Escreve Souyri: ―Entre uma economia onde o setor público está limitado e

subordinado ao capitalismo monopolista e uma economia onde o setor estatal é

predominante enquanto o setor privado tende a ser residual, existe uma diferença

quantitativa que tende a ser qualitativa. A sociedade burguesa não pode estatizar

completamente a economia sem deixar de ser sociedade burguesa‖ (Ibid., p. 18).

Esse debate, sobre a dinâmica do capitalismo e sua evolução possível em direção

a uma forma de capitalismo de Estado também está presente na obra de Mattick. Ele

considerava que os limites da economia mista podem colocar, no longo prazo, o

problema da expropriação do capitalismo privado pelas deduções do Estado,

transferências de lucros privados para o setor público. Tal dinâmica não pode deixar de

gerar a oposição da classe burguesa.

E a ―diferença qualitativa‖ suscita uma questão política importante. O

neoliberalismo atual é uma recriação ideológica militante frente a essa tendência e esse

perigo; é o reconhecimento pelos economistas burgueses dos limites da economia

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mista. Porém, e apesar do impacto desse discurso antikeynesiano, o nível da

intervenção do Estado desde o final da Segunda Guerra nunca foi tão alto. E, como

destacava Mattick, a diminuição dessa intervenção conduz as economias à recessão. A

asfixia do projeto neoliberal se encontra nessa margem estreita entre a ausência de

―capacidade de autoexpansão‖ do capitalismo privado e a impossibilidade de continuar

aumentando a intervenção do Estado na economia.

Assim sendo, esse perigo que ameaça a sociedade burguesa explica que os

capitalistas privados não possam contemporizar com as tendências intervencionistas.

E que as tendências políticas neoliberais não cedam. No longo prazo, a sobrevivência

da burguesia depende disso. O Estado não é a sua presa, ele segue sendo a sua

instituição política, da qual se servem para saquear o conjunto da economia, para

salvaguardar e fazer funcionar as redes de especulação, para apropriar-se dos

benefícios sem, para isso, reativar a acumulação. Não obstante, podemos imaginar

uma situação de levante social frente à qual a única forma de preservar o modo de

produção capitalista seria uma volta ao intervencionismo generalizado, a uma

estatização da economia, onde inclusive a burguesia se alinharia taticamente com um

programa ―socialista de Estado‖. Dotando novamente de sentido uma frase de Rosa

que Mattick retoma em uma epígrafe de seu último livro: ―A classe burguesa trava o

seu último combate sob uma bandeira impostora, a da própria revolução‖. Mas a

bandeira da socialdemocracia, do capitalismo de Estado disfarçado de ―socialismo

possível‖ está hoje em dia muito desacreditada. A socialdemocracia se extraviou no

pântano do neoliberalismo. Tendo em vista o estado de desenvolvimento das

sociedades e a experiência histórica acumulada, podemos esperar que tal situação

abriria a porta a outras possibilidades, a uma luta pela emancipação social.

Mas ainda não chegamos nesse ponto. Nesse momento os capitalistas se

assanham para aumentar a taxa de exploração, com a esperança de aumentar

substancialmente os lucros e inverter a tendência ao desinvestimento. Mas já em 1974

escrevia Souyri: ―Uma política excessivamente reacionária em matéria de salários

poderia fazer crescer no proletariado uma desesperança e uma ira perigosas, sem com

isso modificar sensivelmente a taxa de lucro de uma maneira positiva‖ (―La crise de

1974 et la riposte du capital‖, ibid). É a situação na qual nos encontramos hoje.

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Se a depressão das economias se aprofunda, isso provocará a desorganização

das sociedades. Também as lutas sociais sofrerão uma modificação qualitativa. A

resistência não será suficiente, a subversão da antiga ordem social aparecerá para

alguns como uma necessidade. Do ponto de vista do capitalismo, visto o nível de

acumulação a que se chegou, para reestabelecer a rentabilidade será necessário algo

mais do que a superexploração, uma destruição gigantesca de capital e de força de

trabalho. As guerras isoladas, delimitadas, como as que estão acontecendo, não serão

suficientes, enquanto o capitalismo, com a sua tecnologia nuclear, se encontra a partir

de agora frente à sua capacidade de autodestruição.

Estamos assistindo ao alvorecer de um longo período no qual o capitalismo

voltará a demonstrar a sua periculosidade como sistema. Ainda não somos capazes de

imaginar as consequências políticas. A alternativa ―emancipação social ou barbárie‖

volta a colocar-se em evidência. As formas que adotará um possível movimento

emancipador serão novas, assim como as da barbárie política, pois tampouco são

atuais as do velho fascismo, sistema político e social da contrarrevolução, variante

totalitária do intervencionismo de Estado. Ler hoje em dia Mattick e Souyri, entre

outros, pode nos ajudar a discernir onde nos encontramos e os caminhos a evitar.

As mobilizações atuais contra as medidas de “austeridade”, sob formas

diversas, como o movimento “Occupy” nos Estados Unidos ou os

“indignados” em outros países, constituem, para você, uma nova forma

da luta de classes? De maneira mais geral, como você analisa as reações

dos trabalhadores frente às consequências da crise capitalista que as

classes dirigentes nos fazem sofrer?

Podemos começar pelo final. Na Espanha, em 2011, os bancos arrancaram de

suas casas entre 160 e 200 pessoas por mês, evidentemente com a ajuda da polícia.

Esses números continuam aumentando. Ao mesmo tempo, o número de despejos

impedidos pelas mobilizações coletivas foi da ordem de um por dia. Se a desproporção

é enorme, isso não desfaz o fato de que existe um forte movimento de oposição aos

despejos. A partir daí ocorrem articulações com o desenvolvimento de ações de

[-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n°11, vol. 1, 2015

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trabalhadores na rua para ocupar – ―liberar‖, como dizem – imóveis vazios que

pertencem a bancos e sociedades imobiliárias. Grandes propriedades agrícolas

(pertencentes à agroindústria ou aos bancos) começam também a ser ocupadas pelos

assalariados agrícolas e desempregados, sobretudo na Andaluzia, na província da

Córdoba.

Essas ações diretas são exemplos de novas formas de ação realizadas por

trabalhadores que sofrem diretamente os efeitos das políticas de austeridade. Na

Europa, o caso espanhol é, sem dúvida, onde as lutas estão se radicalizando mais. E

essa radicalização, a popularidade dessas ações, não podem ser separadas do impacto

dos movimentos dos indignados, na Espanha no 15M. Nos Estados Unidos, onde o

movimento Occupy foi esmagado por uma forte repressão do Estado federal e das

autoridades locais, os grupos locais que ainda se reivindicam como Occupy estão

empenhados, igualmente, na luta contra os despejos nos bairros populares. Essas lutas

se caracterizam porque saem do marco puramente quantitativo da reivindicação

imediata. Se dirigem contra a legalidade e colocam a questão da necessária

reapropriação das condições de vida para aquelas e aqueles que fazem funcionar a

sociedade.

Os movimentos dos Indignados percorreram o seu caminho, com diferenças e

contradições, segundo as condições específicas de cada sociedade. Estão cheios de

contradições e ambiguidades, mas são diferentes de todos os que conhecemos antes.

Onde a sua dinâmica foi mais intensa, onde o movimento conseguiu ocupar por mais

tempo o espaço público, na Espanha e nos Estados Unidos, as divergências acabaram

tomando uma forma organizada, entre reformistas e radicais. Progressivamente, esta

última tendência, oposta ao eleitoralismo e à negociação, investiu a sua energia e a sua

criatividade em ações diretas, como o apoio a greves e ocupações de edifícios vazios,

ações contra os despejos, contra os bancos. Se diferenciam de formas de ação

precedentes, incorporam os becos sem saída e as derrotas do passado recente,

discutem os princípios do compromisso e das táticas de negociação.

Muito críticos da classe política e da corrupção e ela associada, questionam, de

forma mais ou menos extrema, os fundamentos mesmos da democracia representativa.

Buscam novas vias, se interrogam sobre a prioridade do enfrentamento físico com os

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mercenários do Estado e são particularmente sensíveis à necessidade de ampliar o

movimento. Duvidam dos projetos de gestão do presente, rechaçam a lógica

produtivista capitalista atual e colocam a necessidade de uma sociedade diferente.8

Essas preocupações são claramente antinômicas da atividade consensual e

normativa das instituições partidárias e dos sindicatos tradicionais. A energia criativa

liberada por esses movimentos propiciou a sua extensão social, às vezes para além do

que se poderia prever. Um exemplo recente: o grande movimento estudantil que está

sacudindo a sociedade do Quebec, apesar de ter começado com simples reivindicações

corporativas.9

Entre as ideias aportadas por esses movimentos, a da Ocupação parece ter

encontrado amplo eco. Assim como a proposta segundo a qual os interessados devem

atuar diretamente, por si mesmos, para eles próprios, para resolver os seus próprios

problemas. A insistência posta na organização de base foi um elemento motor desses

movimentos, pela constituição de coletividades não hierárquicas, que desconfia das

manipulações políticas, insubmissas ao carisma dos chefes. Quando a imprensa mais

contemporizadora (Paris Match e Grazzia, para citar apenas dois exemplos recentes)

se interessa de maneira paternalista pelos Indignados, é para lamentar que se tenham

distanciado da vida política tradicional e tenham rechaçado munir-se de chefes,

carências que, evidentemente, são apontadas como a causa principal do seu fracasso.

Nos Estados Unidos o impacto do movimento Occupy e suas ideias foi enorme,

e é muito cedo para analisar o seu alcance e as suas consequências.10 Se de início afetou

sobretudo os jovens estudantes-trabalhadores precários, que constituem uma fração

crescente da ―classe trabalhadora‖ em termos sociológicos, o movimento atraiu em

seguida, como na Espanha, a grande massa de precarizados do capitalismo

contemporâneo, de excluídos, sem teto e outros itinerantes da vida. Em muitas cidades

grandes eles ao final constituíam uma parte importante dos acampados na rua. Mas o

8 Grupo Etcétera, ―A propos du caminar indignado‖, Barcelona, março de 2012, publicado em Courant Alternatif, maio 2012: http://oclibertaire.free.fr/spip.php?article1177 9 ―La grève étudiante québécoise générale et illimitée: quelques limites en perspective‖. http://oclibertaire.free.fr/spip.php?article1215 10 Charles Reeve, Occupy, cette agaçante interruption du “business as usual‖. http://www.article11.info/?Occupy-cette-agacante-interruption#a_titre

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Occupy também cativou os setores mais combativos do movimento operário, os

sindicalistas de base. Isso diz muito sobre o estado de desenvolvimento no qual se

encontram os trabalhadores conscientes do beco sem saída do sindicalismo frente à

crise e à violência do ataque capitalista.

O mote ―we are the 99%‖, para além do seu simplismo redutor, destroçou a

expressão ideológica da ―classe média‖, categoria na qual se havia integrado todo

assalariado, todo trabalhador com nível médio de consumo, obviamente a crédito.

Revelou igualmente a tendência atual do capitalismo, a concentração da riqueza e do

poder em uma ínfima parte da sociedade. Assim, portanto, depois do Occupy, os

conceitos de exploração, de classe, de sociedade de classes voltaram à superfície do

discurso público. Em um vasto território-continente como os Estados Unidos, onde

conflitos, greves, mobilizações estavam cada vez mais separados uns dos outros, a

palavra Occupy constitui a partir de agora uma referência unificadora em toda luta

local ou setorial.

A ocupação da rua não é a ocupação de um local de trabalho. Mas nos Estados

Unidos e na Espanha, o espírito do Occupy e do 15M contaminou o ―mundo

assalariado‖. Encontra eco nos trabalhadores conscientes o fato de que a luta sindical

do passado não aspira a derrocada, nem mesmo o enfraquecimento dos movimentos

do capitalismo e das decisões agressivas dos capitalistas. O seu único objetivo diante da

decadência dos setores industriais é lograr um salário melhor, vender a própria pele

por um bom valor. Nesse sentido, a luta dos trabalhadores da Continental é um

exemplo. Empenhar-se para tornar viável uma empresa qualquer, um setor qualquer,

só leva ao adormecimento das vítimas. A ideia de ―autogestionar‖ uma empresa isolada

parece hoje mais irrisória, dada a mundialização do capitalismo. Veremos que forma e

conteúdo terá a luta futura na indústria automobilística francesa; se conseguirá

unificar outras lutas, outros setores onde a classe capitalista golpeará. Em um primeiro

momento o governo e os sindicatos se limitam a um discurso de ―reestruturação‖,

ainda que o setor automobilístico esteja submetido a uma competição mundial nos

mercados já saturados. Os militantes da esquerda sindical (a última tarefa histórica

dos trotskistas!) farão o que sabem fazer e sempre fizeram: criar um comitê de luta, ter

acesso aos livros da empresa e reivindicar a proibição das demissões. Para além disso,

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não têm nada a dizer, ou se autocensuram por considerações táticas sobre o sentido

social, humano e ecológico da produção de automóveis e sobre como e por que

salvaguardar tal lógica, uma produção que consome os homens e as sociedades.

Podemos, é claro, criticar os movimentos dos Indignados, ressaltar as suas

contradições e ambiguidades. Mas como podemos comparar esses movimentos que

sacodem por alguns meses as sociedades modernas, com o estado letárgico das lutas

operárias, onde atualmente não aparece a menor proposta alternativa, a menor ideia

de um mundo diferente, a não ser a resistência e o desejo de uma volta ao passado

recente, o mesmo que disparou o estado presente? Os movimentos Indignados são

―uma nova forma de luta de classes‖? São, efetivamente, uma forma de luta que

corresponde ao período atual da luta de classes. Despertam a sociedade e os

explorados mais conscientes fazendo-lhes ver os perigos do capitalismo, da

necessidade de abandonar a litania clássica da reivindicação imediata para colocar

questões sobre o futuro da sociedade. O movimento operário está velho e não pode

oferecer nem oposição e nem alternativa aos ataques capitalistas em curso. Está

morrendo, e é vão querer remediá-lo. É preciso construir um novo movimento a partir

das lutas daquelas e daqueles que se demarcam dos velhos princípios e formas de ação.

Isso levará algum tempo. O Occupy e o 15M, entre outros, abriram caminhos, formas

de ação. O trabalho da toupeira fará o resto. É apenas um breve adeus, e as formas e

conteúdos desses movimentos reaparecerão transformados, em outro lugar e outro

momento, em outros movimentos, com novas dinâmicas.

(Entrevista concedida em 15 de agosto de 2012, publicada originalmente em:

La Bataille Socialiste:

(https://bataillesocialiste.wordpress.com/2012/08/16/entretien-avec-charles-reeve/)

e

Trasversales 27: (http://www.trasversales.net/t27reeve.pdf ) .

(Traduzido da versão em espanhol por Daniel Cunha.)

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ANTICAPITALISMO PARA O SÉCULO XXI

Um breve panorama da nova crítica do valor

Joelton Nascimento1

The sky is falling Human race that we run

It left me crawling Staring straight at the sun

[O céu está caindo

A corrida humana que corremos Me deixou rastejando

Encarando diretamente o sol]

Josh Homme, Nick Oliveri (Queens of the Stone Ages)

INTRODUÇÃO

Neste artigo temos a pretensão de apresentar em linhas gerais algumas das teses

defendidas pela Nova Crítica do Valor (NCV), além de referências sobre alguns de seus

precursores. Pela designação NCV entendemos uma frente da batalha de ideias

anticapitalistas, que surgiram e se desenvolvem em torno de coletivos teóricos que se

apresentam publicamente sobretudo por intermédio de publicações abertas, em especial

as revistas alemãs Krisis e Exit!.

Comecemos por explicitar o que entendemos por ―anticapitalismo‖. Como todo

―anti‖, o anticapitalismo se define por aquilo contra o que ele se opõe. Uma teoria

anticapitalista, portanto, só pode ser assim considerada como tal quando for possível a

definição elementar do que seja a realidade social que se encontra sob a denominação de

capitalismo.

A palavra ―capitalista‖ começa a ser utilizada pela primeira vez no século XVIII

por economistas, para designar a figura do detentor de bens e valores que os emprega

1 Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Email: [email protected]

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para obter lucros. Foi usado nesse sentido por Adam Smith (1723-1790) e por Anne

Turgot (1727-1781), por exemplo. Se nos restringíssemos à definição dada por estes

autores capitalismo significaria o sistema econômico que tem em seu centro a figura do

capitalista. Anticapitalismo, neste contexto, seria apenas a teoria e a prática que

combateriam a figura do capitalista. Esta definição, todavia, seria extremamente

problemática, uma vez que para muitos dos autores deste período, como François

Quesnay (1694-1774) e o próprio Turgot, o representante mais exemplar de capitalista é

o fazendeiro e não o empreendedor da indústria (JESSUA, 2011). Seria preciso uma

ideia consistente sobre o que é o capitalismo para que sua crítica intelectual e prática

possa ter também consistência.

É neste sentido que dizemos que a teoria anticapitalista consistente nasceu

junto com o trabalho e a prática de Karl Marx (1818-1883) e seus colaboradores. E isto

pela simples razão de que antes dele ainda não era possível vislumbrar com nitidez os

contornos do que seria ―capitalismo‖. Do ponto de vista descritivo, a princípio,

poderíamos considerar o capitalismo como a grande indústria, movimentada pela

economia monetária do trabalho assalariado, regulada pelo estado-nação.

Poder-se-ia dizer que bem antes de Marx já havia ideias comunistas rondando a

modernidade, como as do publicista francês François Noël Babeuf. É perfeitamente

possível considerar Babeuf um comunista (ainda que um comunista ―primitivo‖ ou

―proto-comunista‖) pois é com ele que pela primeira vez se torna claro um programa

político e social de igualitarismo de tipo comunista (VOVELLE, 2000); trata-se de um

político e intelectual que se junta à longa corrente daqueles que fizeram de suas próprias

vidas uma batalha pela justiça e pela equidade. Contudo, dificilmente poderíamos

chamá-lo de anticapitalista, uma vez que a ordem social erguida pela grande indústria,

movimentada pela economia monetária do trabalho assalariado e regulada pelos

estados-nação, ainda não tinha se desenvolvido a ponto de delinear suas feições mais

básicas.

Talvez ele pudesse ser considerado anticapitalista no sentido que a palavra

―capitalista‖ tinha para Quesnay, isto é, no sentido de um sistema econômico centrado

na figura do capitalista individual, cujo exemplar mais típico é o fazendeiro. E, de fato, a

mais contundente das teses de Babeuf é contra a propriedade privada da terra, que,

segundo ele, deveria ser inteiramente nacionalizada e redistribuída equitativamente;

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imposta apenas como propriedade coletiva. A propriedade privada, todavia, não é um

princípio capaz de abarcar nenhum dos pilares principais do capitalismo mencionados

em nossa descrição do capitalismo dada acima.

Com Marx nasce uma teoria anticapitalista como delineamento de uma prática

comunista concreta, para além de objeções morais e de idealizações acerca de uma

sociedade futurista.

1. ELEMENTOS CENTRAIS DO MARXISMO TRADICIONAL

Ajudado pelo afastamento histórico, Ingo Elbe (2013)2 resumiu de modo

formidável as leituras da teoria marxiana centrais até então realizadas. Segundo ele,

depois dos escritos de Marx, temos em nosso acervo crítico o marxismo, ou o marxismo

tradicional, isto é, as interpretações dos escritos de Marx ligados primariamente aos

partidos políticos e representativos de trabalhadores. Temos, ainda, os marxismos, ou

modos dissidentes de leitura dos textos de Marx.

O marxismo tradicional é fundamentalmente aquele canonizado nas obras de

Engels e Kautstky e que serviram de base para o assim chamado marxismo-leninismo.

Esta leitura se acostumou e se adaptou inteiramente aos esquemas canônicos de leitura

voltados para as camadas ―exotéricas‖ das obras de Marx, isto é, os textos do filósofo e

líder operário que serviam sobretudo para a divulgação e para a agitação política3. Os

marxismos dissidentes, em especial o denominado marxismo ocidental e a Nova Leitura

de Marx (a neue Marx-Lektüre), se detiveram em uma leitura do Marx ―esotérico‖, isto

é, nos textos marxianos com maior densidade e alcance analítico e crítico.

Outrossim, os marxismos dissidentes se desenvolveram amiúde fora dos

partidos e mesmo de grandes instituições de pesquisa (exceção é a Escola de Frankfurt)

na condição sobretudo de um marxismo underground.

Ainda segundo Elbe, o marxismo tradicional tem como um de seus cânones

mais importantes a obra Anti-Dühring [1877] (1976) de Engels. Kautsky nunca

escondeu o fato de que todos os intelectuais à sua volta liam O Capital de Marx pelas

2 Todas as citações deste artigo de Elbe foram traduzidas pelo autor. 3 Segundo Marcel Van der Linden (1997, p. 448) o primeiro a propor a distinção entre um Marx

―exotérico‖ e um Marx ―esotérico‖ foi Stefan Breuer (1977). Distinção esta que exerceu um papel crucial em Robert Kurz ([1998], 2005) e nos demais autores da NCV.

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lentes deste livro de Engels; em grande medida pode-se dizer que o marxismo

tradicional é um ―engelsianismo‖ (2013, p. 2/13). Três são os pilares do marxismo

tradicional, segundo Elbe: 1) a tendência ao determinismo ontológico; 2) a interpretação

historicista do método formal-genético e 3) a crítica do estado restrita ao conteúdo.

Veremos a seguir rapidamente cada um destes pilares.

1.1- A tendência ao determinismo ontológico

A tendência ao determinismo ontológico é fruto bastante direto da busca

engelsiana de forjar a dialética como um método para se compreender, inclusive em

termos de determinação de causa e efeito, tanto os fenômenos da natureza quanto os

fenômenos de ordem social e histórica. A dialética é dividida drasticamente em ―dois

conjuntos de leis‖, a partir de onde se pode concluir que o pensamento ou a consciência

é entendida como uma imagem mental passiva do mundo externo. São pelo menos três

os desvios – e pode-se dizer, distorções – da concepção marxiana de práxis realizadas

pelo engelsianismo e que são fundadores do marxismo tradicional.

Segundo Marx, não só o objeto mas também a observação do objeto é

historicamente e praticamente mediada, e portanto não é externa ao modo de produção.

Engels, por seu turno, enfatiza que a observação da natureza tal e qual já constitui uma

observação ―materialista‖. ―O realismo ingênuo da teoria do reflexo sistematizada por

Lênin e outros – que resta presa à aparência reificada da imediação daquilo que é

socialmente mediado, do fetichismo de um em-si daquilo que existe apenas em uma

estrutura de atividade humana historicamente determinada – recebe seus fundamentos

já nos escritos de Engels‖ (ELBE, 2013, p. 2/13). Assim, uma visão pseudo-materialista

relaciona crua e não-mediadamente pensamento e ser, consciência e realidade material.

Em A Ideologia Alemã (1845-46), junto com Marx, Engels expressou o conceito

de derivação natural [Naturwüchsigkeit] como algo negativo, isto é, ali eles enunciaram

a ideia de superação das noções e leis sociais que permaneciam ocultas no inconsciente

dos agentes coletivos como se naturais fossem. Já no Engels de Ludwig Feuerbach e o

fim da filosofia clássica alemã (1886) desaparece este caráter negativo, para ele agora

era preciso apenas aplicar conscientemente no mundo social as ―leis gerais de

movimento‖ do mundo externo.

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27

Se nas Teses sobre Feuerbach (1845) Marx dizia que ―Todos os mistérios que

orientam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana

e na compreensão desta prática‖ (MARX, 1990, p. 34), Engels reduziu praxis à atividade

experiental das ciências naturais. De modo geral, ―Engels embrulhou junto [do

marxismo] o cientificismo de sua época, pavimentando o caminho para concepção

mecanicista e fatalista do materialismo histórico, mudando o enfoque de uma teoria

social da práxis para uma doutrina, uma teoria-reflexão contemplativa do

desenvolvimento‖ (id.).

Reduzida ainda mais às ―três leis da dialética‖ e aos ―cinco modos de produção‖,

a doutrina engelsiana do desenvolvimento foi elevada à categoria de doutrina oficial de

estado pelo stalinismo. A potência do estado soviético era constantemente proclamada

como advinda da capacidade de seus dirigentes de ―aplicar conscientemente‖ e de

―acelerar‖ os movimentos da história com base no conhecimento de suas ―leis‖, em um

misto paradoxal de voluntarismo e determinismo: a vontade tudo pode na medida em

que se conhece e aplica o conhecimento sobre as leis de movimento da realidade

objetiva independente dos agentes envolvidos nesta.

1.2 - A interpretação historicista do método formal-genético

Segundo Ingo Elbe, neste tópico o marxismo-leninismo é, ainda mais

explicitamente, engelsianismo. A interpretação de Engels da simultaneidade histórica e

lógica do livro 1 de O Capital é a dominante nos cem anos que sucederam a primeira

publicação deste livro.

Contra o pano de fundo de sua concepção de reflexo, Engels interpreta o primeiro capítulo de O Capital como uma apresentação simultaneamente lógica e histórica da ―produção simples de mercadorias‖ que se desenvolve no sentido das relações de trabalho assalariado capitalista, ―apenas despido de sua forma histórica e desviando das ocorrências casuais‖. O termo ―lógico‖ neste contexto não significa basicamente nada além de ―simplificado‖ (ELBE, 2013, p. 5/13)4.

4 As aspas indicam citações de Engels de sua resenha à Contribuição à Crítica da Economia Política

(1859) de Marx.

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A interpretação engelsiana da crítica da economia política marxiana como uma

obra fundamentalmente histórica, apenas refletindo ―logicamente‖ o desenvolvimento

histórico é o fundamento da tese de Hilferding de que ―de acordo com o método

dialético, a evolução conceitual corre em paralelo com a evolução histórica‖

(HILFERDING apud ELBE, 2013, p. 5/13). Mesmo um dos marxismos dissidentes, o

chamado marxismo ocidental, seguiu em grande medida esta tese de Engels-Hilferding.

O principal resultado desta tese é a visada ao passado com categorias e conceitos

próprios das sociedades capitalistas. Toda a história humana passa a, indiferentemente,

ser uma história da apropriação do trabalho alheio. Entretanto, a especificidade das

categorias valor e dinheiro são inteiramente subestimadas e a distinção marxiana entre

valor e forma valor fica inteiramente obscurecida5.

Até os anos 60, os teoremas de Engels continuam a ser transmitidos sem disputas. Junto com sua fórmula (uma vez mais tirada de Hegel) da liberdade como sendo a consciência da necessidade, e os paralelos esboçados entre as leis naturais e os processos sociais, eles deram sustentação para um ―conceito de emancipação‖ sócio-tecnológico de acordo com a seguinte premissa: a necessidade social (sobretudo a lei do valor), que opera anarquicamente e descontroladamente no capitalismo será, por meio do marxismo como ciência das leis objetivas da natureza e da sociedade, gerenciadas e aplicadas de acordo com um plano. Não o desaparecimento das determinações de forma capitalistas, mas, antes, seu uso alternativo é o que caracteriza este ―socialismo de adjetivos‖ (termo de Robert Kurz) e esta ―economia política socialista‖ (ELBE, 2013, p. 5/13).

1.3 - A crítica do estado restrita ao conteúdo

Observações engelsianas sobre o estado também encontramos em Anti-

Dühring, Ludwig Feuerbach e Origens da família, da propriedade privado e do Estado

(1884). Estes trabalhos são os cânones do marxismo tradicional a respeito do tema,

sendo tanto tomados como chaves da leitura para os textos do próprio Marx quanto

amalgamados indiferentemente com estes6.

5 A observação de Marx em uma nota de O Capital (1996, p. 205, n. 119) contra Smith e Ricardo,

caberiam, pois, como uma luva para o próprio Engels e seus seguidores. 6 Para um estudo marxológico que separa cuidadosamente as considerações de Marx das de Engels a

respeito do estado, cf. Tamy Pogrebinschi (2009), para um estudo confrontando os textos de Marx e os de Engels, cf. Norman Levine (1975).

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Em Ludwig Feuerbach Engels afirma que o fato de todas as necessidades nas sociedades de classe serem articuladas através da vontade do estado é ―o aspecto formal do tema – aquele que é autoevidente‖. A questão principal para uma teoria materialista do estado, entretanto, é ―qual é o conteúdo desta vontade meramente formal?‖ A resposta desta questão, baseada puramente baseada em conteúdo, concernente à vontade do estado é para Engels o reconhecimento de ―que na história moderna a vontade do estado é, como um todo, determinada pelas necessidades cambiantes da sociedade civil, em face da supremacia desta ou daquela classe, em última análise pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de troca‖ (ELBE, 2013, p. 5/13)7.

Gert Schäfer (1990, p. 99) já havia compreendido bem os limites desta

concepção engelsiana:

Mais tarde [em relação a 1886, JN] Engels assegurou que ―nós todos‖ colocamos e tínhamos que colocar ―o acento principal na dedução das ideias políticas, jurídicas e semelhantes, bem como nas ações mediadas através destas ideias, a partir das relações econômicas básicas‖. ―E ao fazer isto descuidamos do lado formal em benefício do conteúdo: o modo como estas ideias, representações, etc., surgem‖. Engels considerou esta falta de mediação entre conteúdo e forma (―sempre dei por esta falta post festum‖) como um dos ―lados da coisa, a qual... todos nós descuidamos, muito mais do que ela merecia‖ (Engels a Franz Mehring, 14/07/1893).

Retomando as observações de Schäfer, Elbe percebe que, para Engels, o estado e

seus desdobramentos políticos e jurídicos passam a ser explicados quase que

inteiramente pelo seu respectivo poder e pertencimento de classe. ―A partir deste modo

de considerar o estado histórico-universalmente fixado no conteúdo, pode-se deduzir

que Engels perde de vista a questão realmente interessante, nomeadamente, sobre o

porquê do conteúdo de classe no capitalismo tomar a forma específica da autoridade

pública‖ (2013, p. 5/13).

O resultado mais importante desta visão estreita do marxismo tradicional é que

ele concebe o planejamento econômico estatal e a socialização direta como equivalentes.

A tarefa do movimento operário passaria a ser ―comandar‖ o poder centralizador,

planejador e monopolizador advindo do desenvolvimento mesmo do capitalismo,

alterando-lhe somente o conteúdo classista, que, ademais, seria uma consequência

natural da ―obsolescência‖ da classe burguesa. E aqui novamente, caberia uma longa

mas crucial observação de Gert Schäfer:

7 As aspas indicam citações de Engels de Ludwig Feuerbach.

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Engels (também Hilferding e Lênin) confunde a sociabilidade específica da produção capitalista de mercadorias e o seu modo característico de planejamento com a produção imediatamente social. A ―produção‖ capitalista ―privada‖ não desaparece pelo simples fato de ser um capital da sociedade, ―produção para a conta associada de muitos‖ capitalistas. Não se elimina a ―inexistência de planificação‖ no capitalismo a partir do momento em que os trusts e outras formas semelhantes de organização do capital passam a conceber planos em larga escala. De fato, Engels tinha empregado um conceito de produção privada que se referia àquilo que hoje chamamos de capitalismo do empresário, e a ―falta de planejamento‖ era entendida por ele num sentido limitado; no seu entender, o fim da ―falta de planejamento‖ dar-se-ia através do controle de mercados tal como é exercitado nos trusts, o qual permite um planejamento de vendas, das quantidades e dos preços, o que coloca em cheque a ideia de que a livre concorrência constitui a forma única e absoluta de movimentar o capital. Entretanto, Engels passou ao largo do problema decisivo, que é o da relação da lei do valor com as novas formas assumidas pela monopolização e pela intervenção estatal; e mais tarde Lênin identificou falsamente a ―anarquia‖ do modo capitalista de produção com a efetividade desenfreada da ―anarquia do mercado‖, com o assim chamado capitalismo da concorrência (SCHÄFER, 1990, p. 132-133).

O estado, concebido apenas por intermédio de uma fixação de conteúdo, passa a

ser determinado inteiramente pela classe social que tem dominância sobre seus

aparelhos, sendo as classes, por sua vez, determinadas sobretudo pela propriedade

privada dos meios de produção; sendo esta última determinação, não obstante,

inelutavelmente jurídica ela própria.

Lênin escrevia com toda clareza em 1917 que para ele ―transição socialista‖

significava que ―todos os cidadãos se tornam empregados e operários de um só truste

universal de Estado‖, e assim, a ―sociedade inteira não será mais do que um grande

escritório e uma grande fábrica, com igualdade de trabalho e igualdade de salário‖

(LÊNIN, 2011, p. 153). Este pode ser visto como um desenvolvimento político-prático da

―crítica‖ engelsiana do estado.

2. ELEMENTOS CENTRAIS DOS MARXISMOS DISSIDENTES

Os anos 20 do século XX assistiram a uma forte retomada criativa da crítica

anticapitalista e, no seu ensejo, de leituras mais próximas dos textos de Marx e que

abririam novas chaves para sua leitura. Quatro obras se destacam como representativas

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deste momento: História e Consciência de Classe (1923) de Geog Lukács, Marxismo e

Filosofia (1923) de Karl Korsch, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, de Evgeny

Pachukanis (1924) e A Teoria Marxista do Valor (1924) de Isaak Ilitch Rubin.

As duas primeiras obras, do jovem Lukács e a Korsch foram fundadoras daquilo

que Merleau-Ponty chamou de ―marxismo ocidental‖ (2006)8. A redescoberta das duas

últimas obras nos anos 60 foram propulsoras de outra vertente de marxismo dissidente,

a Nova Leitura de Marx que, por seu turno, recebeu forte influência do marxismo

ocidental.

Intelectuais como Georg Lukács (1895-1971), Ernst Bloch (1885-1977), Karl

Korsch (1886-1961), Antonio Gramsci (1891-1937), Max Horkheimer (1895-1973),

Theodor Adorno (1901-1969), Herbert Marcuse (1889-1979), Alfred Sohn-Rethel (1899-

1990), Lucio Coletti (1924-2001), Henri Lefebvre (1901-1991), Galvano Della Volpe

(1895-1968) e Louis Althusser (1918-1990) têm em comum o fato de que propuseram

novas leituras e fronteiras para o pensamento anticapitalista que iam além dos cânones

do marxismo-leninismo.

Gramsci, por exemplo, criticava a uso da Revolução Russa de Outubro como

paradigma de revolução para o ocidente. Lukács esclareceu em grande medida a real

posição teórico-crítica de Marx a respeito da dialética e do materialismo, para além de

algumas das distorções e reduções do engelsianismo, tarefa também que se deu Karl

Korsch. Alguns importantes aspectos do marxismo-leninismo, porém, permaneceram

no chamado ―marxismo ocidental‖, como por exemplo, em Lukács e Gramsci a

centralidade do papel revolucionário para o proletariado fabril (ELBE, 2013, p. 6/13).

Para Elbe, entretanto, o marxismo ocidental pode ser caracterizado também

pelo que ele silenciou sobre:

A característica geral desta formação marxista – sua sensibilidade para o legado hegeliano e o potencial crítico-humanista da teoria de Marx, a incorporação de abordagens ―burguesas‖ contemporâneas para elucidar a grande crise do movimentos dos trabalhadores, a orientação para a metodologia, a sensibilização para os fenômenos psicossociais e culturais em conexão com a questão referente às razões para a falha da revolução

8 A expressão ―marxismo ocidental‖, como lembra Elbe, parece ter vindo logo que História e Consciência

de Classe foi publicado. Ela serve como referência geral mas já foi bastante e acertadamente criticada como referência a um conjunto de teses ou uma ―escola‖. O uso da expressão foi consagrado por Perry Anderson (1976).

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no ―ocidente‖ - provê a estrutura para um novo tipo de exegese restrita de Marx. Esta se caracteriza essencialmente pela negligência em relação aos problemas da política e da teoria do estado, uma seletiva recepção da teoria do valor de Marx, e a predominância de uma ―ortodoxia silenciosa‖ concernente à crítica da economia política. (…) Até meados dos anos 60 parece que nenhum marxista ocidental estendeu seu debate com as tradicionais interpretações de Marx para o domínio da teoria do valor (ELBE, 2013, p. 6/13).

De acordo com o competente estudo panorâmico realizado pela revista/coletivo

Endnotes, das retomadas da leitura de Marx, em especial de O Capital nos anos 609, se

destacam aquelas realizadas pela Nova Leitura de Marx [neue Marx-Lektüre] na

Alemanha. As principais razões para a vantagem da releitura alemã de Marx, segundo

Endnotes é que:

… o grande recurso cultural que Marx usava na crítica da economia política – o idealismo clássico alemão – não estava sujeito aos mesmos problemas de recepção do pensamento hegeliano que em outros países. Assim, enquanto na Itália e na França as novas leituras de Marx tendiam para um preconceito anti-Hegel como reação em face dos modismos hegelianos anteriores e contra o ―marxismo hegeliano‖, os debates alemães conseguiram esboçar um quadro mais matizado e informado do vínculo Marx-Hegel. Um fato crucial foi que eles viram que ao descrever a estrutura lógica da totalidade real das relações capitalistas, Marx em O Capital ficou em dívida não tanto com a concepção de Hegel de história dialética, mas com a dialética sistemática da Lógica. Assim, o novo marxismo crítico, algumas vezes denominado depreciativamente de Kapitallogik tinha menos em comum com o marxismo crítico anterior de Lukács e de Korsch do que com o de Rubin e Pachukanis. A Nova Leitura de Marx não era uma escola homogênea mas uma abordagem crítica envolvendo sérios argumentos e discordâncias que não obstante compartilhavam um certo direcionamento (ENDNOTES, 2010, p. 5/17)

Três são os autores mais expressivos deste primeiro momento da Nova Leitura

de Marx: Hans-Jürgen Krahl10 (1943-1970) cujos escritos mais importantes foram

recolhidos em Constituição e Luta de Classes ([1971], 2008), Hans-Georg Backhaus,

cuja obra principal, que foi gestada desde esses anos é Dialética da forma-valor ([1997],

2011) e Helmut Reichelt, o mais conhecido deles, cuja obra Sobre a estrutura lógica do

9 Outras releituras importantes deste momento foram as de Tronti e do obreirismo na Itália e a do

estruturalismo de Althusser na França, que, todavia, estão mais próximas das tentativas de releitura de Marx do marxismo ocidental e de seus limites.

10 Curiosamente, Krahl foi um dos líderes do movimento estudantil antiautoritário que interrompeu uma aula de Adorno em protesto, e Adorno, em resposta, chamou a polícia em um polêmico episódio que antecedeu sua morte em 1969. Krahl morreu em um acidente de carro no ano seguinte.

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conceito de capital em Karl Marx (2013) , pode ser apontada como a mais importante

da primeira ―rodada‖ de debates da Nova Leitura de Marx. Krahl, Backhaus e Reichelt

significam tanto uma ruptura quanto um desenvolvimento da reflexão filosófico-crítica

da Escola de Frankfurt. Mais ainda: a Nova Leitura de Marx rompeu definitivamente

com os limites engelsianos que comprimiam a leitura dos textos de Marx e as críticas do

capitalismo delas derivadas.

Nos debates alemães, e subsequentemente internacionais, a autoridade de Engels – assim como do marxismo tradicional que dela dependiam – foi compreensivamente desafiada. A Nova Leitura de Marx argumentava que nem a interpretação engelsiana, nem qualquer uma das modificações a ela propostas fez justiça ao movimento por trás da ordem e do desenvolvimento das categorias em O Capital. Em lugar de um avanço partindo de um estágio não-capitalista, ou um modelo simplificado hipoteticamente da produção mercantil simples até chegar a uma etapa posterior, ou um modelo mais complexo de produção capitalista de mercadorias, era preciso captar o movimento de O Capital como uma apresentação da totalidade capitalista desde o princípio, que se movia do abstrato ao concreto. Em Sobre a estrutura lógica do conceito de capital de Karl Marx Helmut Reichelt desenvolveu uma concepção que, de um modo ou outro, agora é fundamental para os teóricos da dialética sistemática: que a ―lógica do conceito de capital‖ como processo autodeterminado corresponde a ir para além de si do conceito da Lógica de Hegel. De acordo com este ponto de vista o mundo do capital pode ser considerado como objetivamente idealista: por exemplo, a mercadoria como uma coisa ―suprassensível ainda que sensível‖. A dialética da forma-valor mostra como, partindo da forma-mercadoria mais simples, os aspectos materiais e concretos do processo da vida social estão dominados pelas formas sociais abstratas e ideais do valor (ENDNOTES, 2010, p. 6/17).

Saído diretamente do debate aberto pela Nova Leitura de Marx, o assim

chamado ―debate derivacionista‖ recolocou em questão o problema do estado, de um

modo profundamente divergente do modo engelsiano-leninista. O modo distinto

conforme o qual Pachukanis colocou o problema foi redescoberto. Lembremos da

proposição pachukaniana:

O conceito de direito é aqui [em Plekhanov] considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; a questão da forma jurídica enquanto tal não é colocada. Contudo não há dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo concreto dos ordenamentos jurídicos nas diferentes épocas históricas, mas fornecer também uma explicação materialista do ordenamento jurídico como forma histórica determinada.

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Se renunciarmos à análise dos conceitos jurídicos fundamentais, obteremos apenas uma teoria jurídica explicativa da origem do ordenamento jurídico a partir das necessidades materiais da sociedade e, consequentemente, do fato de que as normas jurídicas correspondem aos interesses de tal ou qual classe social. Mas o próprio ordenamento jurídico permanece sem ser analisado enquanto forma, apesar da riqueza do conteúdo histórico que introduzimos neste conceito (PASUKANIS, 1988, p. 18-19).

Ainda que não se mostre consciente disso, Pachukanis colocou as premissas

engelsianas em cheque, de um modo muito semelhante àquele de Isaak Rubin (1980) ao

tratar dos problemas da crítica da economia política11. É por esta picada que avançam os

autores dos debates derivacionistas, dentre os quais se destaca Joachim Hirsch (1990,

2010)12.

Baseando-se na obra pioneira de Pachukanis, os participantes do debate da derivação do estado captaram a separação entre o ―econômico‖ e o ―político‖ como elemento próprio da dominação capitalista. Isto implicava que, longe de ser considerada como o estabelecimento de uma economia socialista e de um estado obreiro, como preconizava o marxismo tradicional, a revolução devia ser entendida como destruição tanto da ―economia‖ como do ―Estado‖. Apesar do caráter abstrato (e as vezes acadêmico) destes debates, começamos a ver agora como na Alemanha o retorno crítico a Marx sobre a base das lutas do final dos anos sessenta teve consequências concretas (e muito radicais) para a forma que concebemos a superação do modo de produção capitalista (ENDNOTES, 2010, p. 7/17)

O debate aberto pela Nova Leitura de Marx, que pode ser caracterizado pelo

recurso à dialética sistemática da forma valor se espalhou a seguir por vários países, sem

que necessariamente possamos encontrar nisso uma relação de influência direta, mas de

simultaneidade. Diversos autores mais ou menos ligados a movimentos sociais e mais

ou menos acadêmicos, se detiveram nas questões postas pela crítica marxiana das

formas sociais do valor. Estes autores podem ser relacionados aqui no que segue (de

modo não exaustivo): Roman Rosdolsky (2001), Cristopher Arthur (2004), Alfredo

Saad-Filho (2002), Werner Bonefeld (1992), Michael Eldred (2010), Michael Heinrich

(2004), Patrick Murray (2005), Geert Reuten (2005), Fred Moseley (2004), Felton

11 Como observa Endnotes (2010, p. 16/17, n. 51), Rubin pouco influenciou os debates alemães

inicialmente. 12 Para materiais sobre o debate derivacionista cf. (HOLLOWAY & PICCIOTO, 1978).

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Shortall (1994), Ruy Fausto (1983, 2002), Tony Smith (1993), Claudio Napoleoni (1980,

1988), Jean-Marie Vincent (1987), Ingo Elbe (2010, 2013), Massimo De Angelis (2007),

e, a nosso juízo, em destaque: Slavoj Žižek (2012, 2013), Moishe Postone (2006, 2014),

John Holloway (2003, 2013) e Kojin Karatani (2003, 2014).

3. A NOVA CRÍTICA DO VALOR

A expressão ―Nova Crítica do Valor‖ apareceu pela primeira vez no livro do

crítico social e ensaísta Anselm Jappe, As Aventuras da Mercadoria, publicado

originalmente em 2003 (JAPPE, 2006). Com esta expressão Jappe designava uma

vertente de teoria crítica anticapitalista à qual seu livro ainda é a mais poderosa síntese.

A NCV pode ser definida, inicialmente, como uma dupla releitura: ela é tanto

uma releitura da obra de Karl Marx quanto uma releitura do capitalismo, que toma

como base suas recentes transformações ocasionadas pelo decurso de seu próprio

desenvolvimento. Contudo, estas duas releituras se fundamentam mutuamente e de

modo complexo: a releitura de Marx é fundamento para uma nova teoria crítica do

capitalismo, e esta nova teoria crítica do capitalismo é o fundamento para uma nova

leitura de Marx. A NCV, desta forma, é uma tentativa de ir ―com Marx, para além de

Marx‖13 com fundamento em uma interpretação própria do desenvolvimento do

capitalismo após os anos 1970.

Não podemos, entretanto, deixar de notar que esta vertente teórico-crítica é, ao

mesmo tempo, uma ruptura e um desenvolvimento da Nova Leitura de Marx alemã. Ela

se delineia especificamente a partir do final dos anos 1980 junto com a atividade de

coletivos e de intelectuais independentes em torno da publicação Krisis14. Este esforço

se desdobra e se ramifica em diversas outras publicações, dentre elas a revista austríaca

Streifzüge (1996)15 e a mais importante, a nosso juízo, a alemã Exit! (2004)16. Tanto a

Krisis quanto a Exit!, entretanto, são publicações voltadas a estudiosos, com artigos

13 Este é o mote do projeto teórico do grupo alemão Exit! chamado Crítica do Capitalismo para o século

XXI. Há uma versão do projeto traduzida para o português em <http://obeco.planetaclix.pt/exit_projecto_teorico.htm>.

14 Cf. o material disponível em http://ww.krisis.org 15 Disponível em: http://www.streifzuege.org/ 16 Cf. material disponível em http://www.exit-online.org/

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teoricamente densos.

Esta vertente da crítica do capitalismo começou a ganhar alguma atenção no

Brasil quando da publicação do livro de Robert Kurz (1943-2012), O Colapso da

Modernização (1993), muito debatido, com defesas e críticas por parte de intelectuais

de esquerda brasileiros e que revelou uma diferente visão sobre as crises econômicas

dos anos 90. Outras obras de Kurz foram também traduzidas e publicadas (KURZ, 1997,

2004, 2010) a seguir; a manutenção de um portal eletrônico com textos da Nova Crítica

do Valor em Portugal também foi crucial para a divulgação dos trabalhos de autores

como Robert Kurz, Roswitha Scholz, Norbert Trenkle, Ernst Lohoff, Franz Schandl,

Claus Peter Ortlieb, Anselm Jappe e outros17.

3.1- A crítica do trabalho

A nosso juízo, um dos primeiros e mais expressivos pontos de

ruptura/desenvolvimento da NCV em relação à Nova Leitura de Marx se dá em 1995

com a publicação de um artigo de Kurz no nº 15 de Krisis, chamado Pós-marxismo e o

fetiche do trabalho ([1995], 2003). Trata-se aqui de um passo importante de construção

teórico-crítica do Manifesto Contra o Trabalho ([1999], 2003) que seria publicado 4

anos depois.

Desde os Grundrisse, chamado de ―laboratório de estudos‖ (Bellofiore)

marxianos de onde saiu O Capital, Marx se via às voltas com dois conceitos categoriais

de ―trabalho‖ dos quais a definição e a distinção seriam cruciais para sua madura crítica

da economia política. Em sua explanação metodológica – que na dialética marxiana não

se separa do objeto mesmo – Marx dá o exemplo da categoria de trabalho nos seguintes

elucidativos termos:

O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade, o ‗trabalho‘ é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples abstração. (...) A indiferença diante de um determinado tipo de trabalho pressupõe uma totalidade muito desenvolvida de tipos

17 Cf. <http://obeco.planetaclix.pt/>.

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efetivos de trabalhos, nenhum dos quais predomina sobre os demais. Portanto, as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto aparece como comum a muitos, comum a todos. Nesse caso, deixa de poder ser pensado exclusivamente em uma forma particular. Por outro lado, essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado mental de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo determinado de trabalho é para eles contingente e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação da riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em uma particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade burguesa – os Estados Unidos. Logo, só nos Estados Unidos a abstração da categoria ‗trabalho‘, ‗trabalho em geral‘, trabalho puro e simples, o ponto de partida da Economia moderna, devém verdadeira na prática. Por conseguinte, a abstração mais simples, que a Economia moderna coloca no primeiro plano e que exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, tal abstração só aparece verdadeira na prática como categoria na sociedade mais moderna. (...) Esse exemplo do trabalho mostra com clareza como as próprias categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas – justamente por causa de sua abstração –, na determinabilidade dessa própria abstração, são igualmente produto de relações históricas e têm sua plena validade só para essas relações e no interior delas (MARX, 2011, pp. 57-58).

O trabalho, como categoria abstrata, poderia ser pensado fora do tempo

histórico capitalista?18 Se sim, a crítica do capitalismo pode ser tida como uma crítica

―do ponto de vista do trabalho‖, sendo este último concebido como um contraprincípio

trans-histórico ao capital. Mas se não, então a crítica do capitalismo é também uma

crítica da sociedade do trabalho sans phrase; do trabalho como categoria social formada

e formadora da ―economia‖ e da ―política‖ próprias da sociedade produtora de

mercadorias. O Marx dos Grundrisse não desempata a questão, ele oscila a respeito

dela.

NO Capital, Marx encaminha o problema elaborando os conceitos de trabalho

abstrato e trabalho concreto. Estes seriam os correspondentes respectivos da natureza

bífida da mercadoria (valor e utilidade). Sendo o primeiro, o de trabalho abstrato, o

conceito que define a atividade humana na dimensão em que esta transmite valor à

18 Cf. o exame minucioso de Moishe Postone desse problema em (2006), em livro recém-publicado no

Brasil pela Editora Boitempo. Ver ainda Duarte (2009 e 2015).

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mercadoria e o segundo, o de trabalho concreto, o conceito que define a atividade

humana que transmite valor de uso à mercadoria em sua dimensão material e simbólica.

Não se trata, como se percebe, de dois fenômenos distintos, mas de duas dimensões de

um mesmo fenômeno. A caracterização bífida do trabalho nos conceitos de trabalho

concreto e trabalho abstrato é o modo encontrado por Marx para resolver o problema da

abstração social-real que existe no trabalho das sociedades produtoras de mercadorias;

para resolver sua oscilação anterior entre uma caracterização ―ontológica‖ supra-

histórica do trabalho e ao mesmo tempo sua crítica do modo histórico que o trabalho

apresenta em sua subsunção ao capital. Entretanto, a oscilação só foi lançada para

adiante, permencendo latente.

Nas seguintes passagens de O Capital, ela reaparece:

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza (1996, p. 297). O processo de trabalho, como o apresentamos em seus elementos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as formas sociais (1996, p. 303).

Assim, o processo de trabalho só pode ser concebido como processo que ―regula,

controla, e media o metabolismo do homem com a natureza‖, e portanto, como condição

eterna e independente de qualquer forma histórica de vida quando é pensado em sua

forma ―simples e abstrata‖! O trabalho concreto, criador de valor de uso, só pode ser

pensado trans-historicamente quando submetido a uma maneira ―simples e abstrata‖ de

raciocínio, que remete ao modo histórico de sua subsunção ao capital – tal como vimos

na passagem acima dos Grundrisse. É flagrante a oscilação marxiana em muitas

passagens como estas.

Em um artigo publicado na revista Krisis em 1995 Robert Kurz criticou esta

―duplicação‖ do conceito de trabalho, afirmando que, com ele, Marx apenas ―rasgou em

dois‖ a abstração real que se encontra no trabalho produtor de mercadorias. Seguindo a

própria argumentação marxiana, a ―dialética da forma valor‖, a conclusão mais

consistente a que se deveria chegar é que, assim como a mercadoria apresenta natureza

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bífida, o trabalho que a faz existir também a possui. Entretanto, Marx faz do aspecto

material, sensível, uma suposta ―âncora ontológica‖ onde uma dimensão do trabalho

pode aparecer como independente de sua determinação pela forma. Assim, na

caracterização da natureza bífida do trabalho produtor de mercadorias que se encontra

nos conceitos de trabalho abstrato e trabalho concreto, Marx persegue pois, apenas o

trabalho determinado pela forma, deixando de lado a aspecto social-real da abstração

contida no conceito mesmo de ―trabalho‖.

O famoso conceito de trabalho abstracto que daí surge é na verdade uma expressão estranha, uma duplicação retórica, como se falássemos de um ―verde abstracto‖, visto que a definição de algo como verde já é em si uma abstração. Marx por assim dizer rasga em dois a abstracção real: sua forma seria historicamente limitada, sua substância ou seu conteúdo seria ontológico. Assim temos, portanto, o ―trabalho‖ como eterna necessidade natural e o ―trabalho abstracto‖ como determinação histórica do sistema produtor de mercadorias. Marx prolonga por um lado a abstracção real decalcada na forma rumo ao ontológico e, de outro, tenciona salvar-lhe o caráter histórico e, desse modo, sua superação (KURZ, 2003, p. 9).

Segundo a interpretação de Kurz, este ―rasgo em dois‖ da abstração do trabalho

foi o tributo pago por Marx à ―imagem necessária e imanente que o movimento operário

faz de si mesmo‖ e que, segundo ele, pesa em diversos momentos da elaboração teórica

de Marx, a fazendo oscilar. Contudo, como ele observa: ―O marxismo do movimento

operário teve pouco a fazer com o conceito de ‗trabalho abstracto‘ e não o mobilizou

criticamente; em vez disso, preferiu prender-se ao conceito ontológico de trabalho

(enobrecido ‗conforme o valor de uso‘), a fim de legitimar-se de forma histórico-

filosófica‖ (id., ib.)19.

E o que é, pois, a abstração real do trabalho, visto pela sua essência ou

conteúdo?

Tal bipartição acha-se novamente na determinação daquilo que afinal é realmente abstracto no trabalho abstracto. Marx a desenvolve principalmente numa única direcção – a direcção da forma: como

19 Kurz retoma de modo minucioso seu estudo sobre o destino do conceito de trabalho abstrato em

(KURZ, 2005). Uma abordagem mais recente recoloca com bastante pertinência o problema marxiano do duplo caráter do trabalho, em um sentido bastante semelhante ao de Kurz. Cf. (HOLLOWAY, 2013). Para um comentário comparativo entre a abordagem de Holloway e a da Nova Crítica do Valor, Cf. Daniel Cunha (2014).

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abstracção real ―do‖ conteúdo material, como indiferença ao momento sensível, representada pela forma do valor e seu desdobramento no dinheiro, a coisa ―realmente abstracta‖. Não resta dúvida de que isso é de grande relevância. Mas o ―trabalho‖ produtor de mercadorias também é ―realmente abstracto‖ em um segundo sentido, que Marx não desenvolve sistematicamente: em sua existência como esfera diferenciada, separada de outras esferas como a cultura, a política, a religião, a sexualidade, etc., ou, noutro plano, separada igualmente do tempo livre... (id., ib.).

Para a NCV é impossível restringir-se à crítica do trabalho abstrato e não se

lançar na crítica da abstração do trabalho. E as implicações da crítica não apenas do

trabalho abstrato, mas da abstração-real do trabalho são muitas e variadas, e não cabem

nem preliminarmente no espaço deste artigo.

Começa neste ponto, a nosso ver, o ―pós-marxismo‖ da NCV. A ruptura com um

importante e basilar conceito da letra de Marx, em favor de seu espírito, a saber, a

dialética da forma valor. Em 1999, com a publicação do Manifesto Contra o Trabalho

(2003), no Brasil oferecido ao público pela editora Conrad, tais reflexões críticas do

trabalho irrompem com a força polêmica do manifesto20.

3.2 - Formas sociais de fetiche e luta de classes

Outro eixo controverso dos debates inflamados pela Nova Crítica do Valor – e

que um exame mesmo superficial é capaz de relacionar com a crítica do trabalho – é o

da obsolescência da luta de classes, tal como esta foi pensada pelo marxismo tradicional,

mas também pelo marxismo ocidental. No estilo cáustico que lhe era peculiar, Kurz

escreveu que quando se trata do tema das ―classes‖ e da ―luta de classes‖, é comum ver

as lágrimas escorrerem pelos olhos dos marxistas do movimento operário (2003b).

A ideia tão propagada e aceita de que o único anticapitalismo efetivo é aquele

que se coloca ―do ponto de vista do trabalho‖ e, por conseguinte, do ponto de vista do

contraprincípio sempiterno ao capital é o fundamento da visão da classe trabalhadora

20 Cf. o resumo e algumas teses complementares ao Manifesto contra o trabalho em (NASCIMENTO,

2014).

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como demiurgo da história de superação do capitalismo. Nas palavras de Kurz:

O aparelho conceptual da crítica radical tem de ser liberto do pó. A ―classe revolucionária‖ de Marx foi inequivocamente o proletariado fabril do século XIX. Unida e organizada através do próprio capital, tornar-se-ia o seu coveiro. Os grupos sociais, dependentes de salário das áreas derivadas de serviços, infra estruturas, etc. estatais e comerciais, podiam ser juntos ao ―proletariado‖ apenas como uma espécie de grupos auxiliares, e mesmo isto só enquanto este ainda dominava como núcleo de massas sociais nas fábricas produtoras de capital. Com uma inversão das proporções numéricas, como se tinha esboçado já desde o início do século XX (e fora reflectido apenas de forma superficial pelo antigo marxismo, p. ex. no debate de Bernstein) o esquema tradicional de classes e de revolução não podia continuar a passar (KURZ, 2003).

No marxismo-leninismo, como vimos, voluntarismo e determinismo se fundiam

em uma amálgama que muito bem se prestou a ser uma doutrina de estado autoritário.

Algo desse amálgama se contrabandeia para a teoria anticapitalista quando se trata de

conceber a ―luta de classes‖ como uma narrativa demiúrgica da história. Quanto mais

ela é invocada como razão teórica, menos há disposição para explicar o que ela poderia

significar nos tempos atuais. Em face das muitas transformações recentes, dentre elas,

em especial, a revolução industrial microeletrônica:

A ―luta de classes‖ está dissolvida como parte integrante deste sistema da concorrência universal, e tem-se revelado como mero caso especial desta, que de modo algum consegue transcender o capital. Pelo contrário, num baixo nível de desenvolvimento, ela foi directamente a sua forma de movimento imanente, quando ainda se tratava de reconhecer os proletários fabris como sujeitos civis neste sistema. Para poder concorrer, tem de se agir nas mesmas formas comuns. O capital e o trabalho são no fundo diferentes estados de agregação de uma mesma substância social. O trabalho é capital vivo e o capital é trabalho morto. A nova crise porém consiste precisamente no facto de que, através do desenvolvimento capitalista, a própria substância do ―trabalho abstracto‖ é derretida como base de produção de capital (KURZ, 2003).

As formas sociais constitutivas das sociedades produtoras de mercadorias

(valor, capital, estado) aparecem como naturalizações e, por conseguinte, como

―naturezas‖ secundárias da socialização. A luta por interesses sócio-econômicos

imanentes a estas categorias, como por exemplo, as lutas pelos direitos ao trabalho e ao

―justo‖ assalariamento foram importantes molas propulsoras da modernização

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capitalista. Não há como se negar este fato. Mas nas condições atuais de

desenvolvimento elas perderam o condão para guiar a transição para além do capital.

Nas palavras de Kurz:

Assim, a noção da ―luta de classes‖ perde a sua luminiscência metafísica, aparentemente transcendente. Os novos movimentos já não podem definir-se a si próprios, ―objectivística‖ e formalmente através de uma ontologia do "trabalho abstracto" e através da sua ―posição no processo produtivo‖. Eles podem definir-se apenas pelo conteúdo através daquilo que querem. Nomeadamente, o que querem impedir: a destruição da reprodução social através da falsa objectividade dos constrangimentos formais capitalistas. E o que querem ganhar como futuro: o emprego racional comum das forças produtivas alcançadas, de acordo com as suas necessidades em vez de conforme os critérios doidos da lógica capitalista. A sua comunidade já só pode ser a comunidade da fixação emancipatória do objectivo, e não a comunidade de uma objectivação definida pela própria relação do capital. A teoria ainda tem de encontrar um conceito para aquilo que a prática já está a executar tacteando no escuro. Só então os novos movimentos podem tornar-se radicalmente críticos de capitalismo, de uma maneira também nova, para lá do velho mito da luta de classes (2003).

Este tema tem provocado importantes debates. Alguns, por exemplo,

propugnam uma conciliação entre o tema da luta de classes e a crítica das formas sociais

da NCV (CUNHA, 2009).

3.3 - O limite absoluto interno da sociedade da mercadoria

Também fortemente atada tanto à crítica do trabalho quanto à crítica ao caráter

transcendente da luta de classes está a tese do limite interno absoluto das sociedades

produtoras de mercadorias. Anselm Jappe resumiu bastante bem esta tese em suas três

dimensões principais.

3.3.1 A contradição entre a realidade material e sua forma valor

Segundo Jappe (2006, p. 137), a crise ecológica de nosso tempo é a

externalização de uma contradição interna:

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O que vem hoje à luz do dia é uma crise muito mais profunda do que as que no passado desencadeavam desproporções quantitativas momentâneas. A contradição entre o conteúdo material e a forma valor conduz à destruição do primeiro. Esta contradição torna-se particularmente visível na crise ecológica e apresenta-se então como um ―produtivismo‖, como produção tautológica de bens de uso – produção essa que, contudo, mais não é do que a consequência da transformação tautológica do trabalho abstrato em dinheiro.

3.3.2 A contradição entre as necessidades de uso e sua forma valor

Esta contradição também se torna visível nos efeitos danosos de desigualdades

sociais, regionais e internacionais; ela se manifesta, por exemplo, na crise alimentar

global.

A produção de valor e de mais-valia, o único objectivo dos sujeitos da mercadoria, pode comportar também uma diminuição da produção de valores de uso, mesmo dos mais importantes. É o que se verifica no caso cada vez mais frequente da desindustrialização de países inteiros nos quais a produção se reduz aos sectores cujos produtos são suscetíveis de ser exportados, mesmo que se trate apenas de amendoim. A ―produção pela produção‖ significa a maior acumulação possível de trabalho morto. Os ganhos de produtividade, designadamente o aumento da produção de valores de uso, em nada alteram o valor produzido em cada unidade de tempo. Uma hora de trabalho continua a ser uma hora de trabalho, e se nessa hora se produzem sessenta cadeiras em vez de uma, tal significa que em cada cadeira está contida apenas a sexagésima parte de uma hora: a cadeira ―vale‖ assim apenas um minuto. O aumento das forças produtivas, empurrado pela concorrência, não aumenta de modo algum o valor de cada unidade de tempo: este facto constitui um limite inultrapassável à criação de mais-valia, cujo crescimento se torna progressivamente mais difícil. Para produzir a mesma quantidade de valor torna-se necessária uma produção sempre mais ampliada de valores de uso e consequentemente um consumo acrescido de recursos naturais. Ao proprietário do capital, se não quer ser eliminado pela concorrência, torna-se necessário produzir as sessenta cadeiras na esperança de encontrar uma procura compensadora. Pode inclusivamente tentar criar essa procura, sem levar em conta a relação real entre necessidades e recursos no interior da sociedade (JAPPE, 2006, p. 138-139).

3.3.3 A contradição entre a produtividade do trabalho e sua forma valor

As constantes inovações tecnológicas que, por um lado, foram impulsionadas

pelas urgências de aumentar a produtividade do trabalho subsumido ao capital, por

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outro lado entram constante e progressivamente em colisão com a lucratividade do

próprio capital.

...essa produtividade acrescida do trabalho – que enquanto tal poderia ser naturalmente um bem para toda a humanidade – produz de uma maneira directa o desmoronamento da sociedade baseada no valor. Paradoxalmente, o capitalismo atinge o seu próprio limite em virtude de sua força, a saber, a libertação das forças produtivas: o dispêndio individual de força de trabalho é cada vez menos o factor principal da produção. São as ciências aplicadas, bem como os saberes e capacidades difundidos ao nível social, que se tornam directamente a força produtiva principal. A necessidade de calcular o trabalho efectuado por cada um, e portanto o valor que lhe compete, transforma-se então numa ―couraça‖ que sufoca as possibilidades produtivas, porque o trabalho individual deixa de ser mensurável. O dispêndio de trabalho deixa de poder constituir a forma social da riqueza e deixa de ser a condição para que o indivíduo participe nos respectivos frutos. (…) Hoje em dia, porém, a separação dos produtores já não tem base material ou técnica e deriva exclusivamente da forma do valor abstracto, a qual perde assim definitivamente a sua função histórica (JAPPE, 2006, p. 140-141).

No desenvolvimento contemporâneo do capitalismo, a lógica do valor deixou de

ser um fator histórico ―civilizador‖ – como ainda parecia para o Engels e o Marx dO

Manifesto Comunista – para se tornar uma ―arcaica camisa-de-força‖ (2006, p. 141).

Fundamentalmente o que acontece é o seguinte:

Dissemos acima que a queda da taxa de lucro acompanhou toda a evolução do capitalismo. Mas durante muito tempo essa queda foi compensada, e mesmo sobrerecompensada, pelo aumento da massa de lucro. Bastava que o modo de produção se ampliasse mais rapidamente que a queda da taxa de lucro: se em dez anos, graças à utilização de novas tecnologias, a parte do capital variável (ou seja, a parte do salário) contida numa mercadoria decresce 20 a 10%, e portanto a taxa de lucro (supondo uma taxa de mais-valia, ou seja, uma grau de exploração, estável a 50%) diminui 10 a 5%, mas se ao mesmo tempo se produz três vezes mais mercadorias, então a massa de lucro cresceu 50% e pode portanto alimentar um ciclo alargado de produção. Esta possibilidade foi prevista por Marx e realizou-se efectivamente durante mais de um século. Contudo, é evidente que esta evolução há-de chegar um dia a um ponto em que a massa de lucro do capital global começará a diminuir até atingir um limite absoluto (JAPPE, 2006, p. 142).

O que nos mostra Jappe é que tais contradições estão como que ―armadas‖

desde a forma simples do valor e da mercadoria. E assim a ―sufocação progressiva da

produção de valor em virtude do aumento dos falsos encargos e do trabalho

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improdutivo, bem como a diminuição da massa de lucro que daí resulta, são, no plano

lógico, uma consequência inelutável das contradições de base da mercadoria‖ (JAPPE,

2006, p. 146).

Atingir tal limite, entretanto, ainda não leva a nenhum ―caos da crise‖. Ao

contrário, é a razão para outro salto para frente por parte do capital. Este salto, todavia,

só adia por pouco tempo as consequências inelutáveis do limite absoluto, e torna-os

ainda maiores. Assistimos, desde os anos 70, à financeirização e à ―ficcionalização‖ no

capitalismo (JAPPE, 2006, p. 148 e ss.; 2013, p. 35 e ss).

Rosa Luxemburgo considerava este limite interno absoluto teoricamente

verdadeiro, mas acreditava também que a ―luta de classes‖ encerraria o capitalismo

antes disso. Esse limite interno era como que a ―extinção do sol‖ de tão longínquo. Em

nossos dias, entretanto, parece que o ―sol‖ está minguando a olhos vistos a cada dia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A NCV ainda é uma vertente marginal nos debates anticapitalistas e sua

produção ainda se coloca sob o signo do subterrâneo, do underground Ŕ ainda que

alguns de seus impulsionadores, em especial Robert Kurz, Anselm Jappe e Roswitha

Scholz sejam relativamente bem conhecidos. A NCV não aparece no mapeamento de

Göran Therborn (2008) dos marxismos e dos pós-marxismo atuais; também não

aparece na enciclopédia dos marxismos contemporâneo organizada por Jacques Bidet e

Stathis Kouvelakis (2009), por exemplo.

Entretanto, são as condições de crise, que Foster e McChesney (2012)

denominaram de ―crise sem fim‖, que tornam as teses expostam pela NCV não menos

que urgentes. E neste particular, deveríamos aplicar ao próprio anticapitalismo o

conteúdo da 2ª Tese sobre Feuerbach de Marx: é na realidade prática e efetiva que a

força e o caráter terreno do pensamento devem ser julgados. Que tipo de teoria

anticapitalista é a mais verdadeira diante de uma crise sem precedentes da sociedade

produtora de mercadorias?

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ESTAMOS PERDENDO! Do altermundialismo à indignação multitudinária:

balanço da resistência global quinze anos após Seattle

Raphael F. Alvarenga

A Mathieu Hilgers in memoriam

Daqueles que virão, não esperamos que nos agradeçam por nossos triunfos, mas que se lembrem de nossas derrotas.

Walter Benjamin

Num momento em que a doutrina do ―fim da história‖ era lugar-comum e que ser

de esquerda, mesmo moderada, equivalia praticamente a andar por aí com uma lasca de

osso enfiada no nariz, não é o menor dos méritos do ―povo de Seattle e de Porto Alegre‖

ter colocado em questão o ―pensamento único‖, como se dizia então. Após dez anos de

sono dogmático neoliberal, novamente fora possível, pelo menos durante um breve

espaço de tempo, pensar e agir como se o capitalismo não fosse um fenômeno da

natureza. Não à toa, o movimento altermundialista foi visto por alguns como o mais

importante acontecimento de resistência antissistêmica dos últimos tempos1. Apenas

uma década após a queda espetacular do bloco soviético – hipócrita e histrionicamente

celebrada no momento em que escrevia estas linhas, com os 25 anos da derrubada do

Muro de Berlim, como se inúmeros outros muros, cercas e barreiras de controle, de todo

tipo e escala, não tivessem sido erigidos em todo o mundo de lá pra cá2 –, o chamado

―movimento dos movimentos‖ teria chegado perto de lograr algo como uma Primeira

Internacional em pleno século XXI, reunindo ecologistas, sindicalistas, trabalhadores

imigrantes sans papier, desempregados, indígenas e camponeses sem terra, feministas,

1 Cf. Michael Löwy, ―Négativité et utopie du mouvement altermondialiste‖, Contretemps, n° 11 (sept.

2004), pp. 44-50. 2 Cf. Mike Davis, ―The Great Wall of Capital‖, The Socialist Review, n° 282 (feb. 2004), retomado em I.

Stavans (org.), Border Culture, Santa Barbara, Abc-Clio, 2010, pp. 27-29.

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socialdemocratas, marxistas e libertários3. Tal tese foi reforçada por Slavoj Žižek, que à

época chegou a aventar a ideia de que, mais do que uma resposta ao 11 de setembro, a

subsequente Guerra ao Terror talvez tivesse sido, justamente, uma reação ao rápido

crescimento do movimento altermundialista, ―um meio de contê-lo e afastar a atenção

dele‖4. Também a repressão ao mesmo – a violência policial desmesurada, as agressões

e prisões arbitrárias, o controle abusivo, o fichamento e até casos reportados de tortura

de militantes em delegacias de polícia, não esquecendo o assassinato de Carlo Giuliani –

indicaria que a sua dimensão a um tempo global e concretamente universal5 era

encarada mais e mais como uma real ameaça aos poderes estabelecidos.

Salvo engano, não é o que pensam os amigos alemães, apesar de reconhecerem a

importância do caráter internacional do fenômeno. Para Anselm Jappe, por exemplo,

movimentos como a Attac (para ficarmos com o mais explicitamente reformista, talvez),

em lugar de criticarem radicalmente a ―valorização do valor‖ de certa forma ocuparam

―o lugar dos partidos sociais-democratas europeus a partir do momento em que estes

passaram completamente para o campo neoliberal‖; sua perspectiva, apesar de ―certa

retórica anticapitalista‖, além de ―totalmente reformista‖, encerrada ―dentro do universo

da política tradicional‖, seria ingênua ao opor a ―democracia‖ ao ―mundo descontrolado

das finanças‖6. Resumindo assim, parece realmente ser o caso. Ocorre que muita coisa

fica de fora nessa versão, em que se esquece uma lição fundamental formulada por Marx

na crítica ao programa dos partidários de Lassalle, a saber, que ―[c]ada passo do

3 Cf. Tom Mertes (org.), A Movement of Movements. Is Another World Really Possible?, London/New

York, Verso, 2004, e Philippe Corcuff & Michael Löwy, ―Pour une Première Internationale au XXIe siècle‖, Contretemps, n° 6 (fév. 2003), pp. 8-10.

4 Slavoj Žižek, ―Prefácio à edição brasileira: um ano depois‖, em Bem-vindo ao deserto do real! Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas (2002), trad. P. C. Castanheira, São Paulo, Boitempo, 2003, p. 14.

5 Cf. Slavoj Žižek, ―Posfácio: a escolha de Lenin‖ (2002), trad. L. B. Pericás e F. Rigout, em S. Žižek (org.), Às portas da Revolução. Escritos de Lenin de 1917, São Paulo, Boitempo, 2005, pp. 328-29: ―A promessa do movimento de ‗Seattle‘ está em ele ser o oposto do que a mídia diz que é (‗protesto antiglobalização‘): ele é o primeiro núcleo de um movimento global – global no que diz respeito a seu conteúdo (busca um confronto global com o capitalismo) e a sua forma (é um movimento global, uma rede móvel internacional, pronta a intervir em qualquer lugar, de Seattle a Praga). É mais global do que o ‗capitalismo global‘, já que chama suas vítimas para o jogo – isto é, os que estão excluídos da globalização capitalista, assim como aqueles que estão incluídos de uma maneira que os reduz à miséria proletária. [...] a globalização capitalista é ‗abstrata‘, centrada no movimento especulativo do Capital, ao passo que o movimento ‗de Seattle‘ representa a universalidade ‗concreta‘, tanto a totalidade do capitalismo global quanto seu lado obscuro e excluído.‖

6 Anselm Jappe, As aventuras da mercadoria. Para uma nova crítica do valor (2003), trad. J. M. Justo, Lisboa, Antígona, 2006, pp. 250-51.

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movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas‖7. Ora, no escrito em

questão, Jappe critica tão-somente programas, cita frases isoladas de ―manifestos‖ – os

quais estão de fato, ainda em termos de Marx no referido texto, repletos de ―superstição

democrática‖ e ―credulidade servil ao Estado‖ –, como se resumissem o fenômeno

altermundialista como um todo. O que se perde por aí é precisamente os meandros e os

vaivéns do movimento social real, o tortuoso (mas necessário) processo prático-coletivo

de conscientização, que inclui enganos teóricos, desenganos práticos, incontáveis

debates internos e entre os diferentes grupos, alianças e rupturas, preparações e táticas

formuladas ad hoc para lidar com impasses e conflitos reais8 (um exemplo típico: como

combater as tendências oligárquicas e as práticas oportunistas que costumam ter lugar

em tantos movimentos e organizações militantes?).

O mais grave em leituras assim, para ir direto ao ponto, é que elas passam ao

largo da dimensão fundamentalmente formadora de tal experiência de luta coletiva:

muitos estudantes e trabalhadores de diferentes estratos se politizaram com efeito no

fluxo contestatório desencadeado naqueles anos, sem mencionar a produção coletiva de

uma verdadeira contracultura política internacional, algo que há muito não se via9. Na

conclusão de seu livro-síntese sobre ―as aventuras da mercadoria‖, Jappe afirma que

para encontrar uma alternativa à sociedade capitalista – que na perspectiva da ―nova

crítica do valor‖ morrerá de morte natural e, segundo consta, em breve – não é preciso

elaborar utopias, bastando retomar, ―como verdadeira finalidade da sociedade‖, a velha

ideia aristotélica da ―vida boa‖, em torno da qual dever-se-ia ―organizar a reapropriação

dos recursos‖ expropriados pelo capital10. Ora, um ponto cego desta crítica consiste

justamente em supor como dada a capacidade de os sujeitos não somente quebrarem

coletivamente o feitiço da mercadoria, ou arrebentarem a mordaça do valor, mas a

própria capacidade de agirem em concerto (de fato, o que leva hoje, num contexto de

7 Karl Marx, carta a Wilhelm Bracke (5/5/1875), em Crítica do programa de Gotha, trad. R. Enderle, São

Paulo, Boitempo, 2012, p. 20. 8 No seio da própria Attac, diga-se de passagem, logo se destacou uma ala mais radical, composta por

marxistas e anarquistas, que se opôs aos mais moderados, à maioria neokeynesiana, dando lugar a verdadeiras cisões no interior de certas células, algo que ocorreu também em vários outros grupos altermundialistas. Cf. Sophie Heine, Le mouvement Attac en Belgique, Bruxelles, Centre de recherche et d‘information socio-politiques, 2008.

9 Para se ter uma ideia do que se tratava, veja-se Notes from Nowhere (org.), We are everywhere. The irresistible rise of global anticapitalism, London/New York, Verso, 2003.

10 Anselm Jappe, As aventuras da mercadoria, ed. cit., p. 266.

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concorrência universal e individualismo ferrenho, as pessoas a se agruparem em torno a

algum ideal ou objetivo elevado?), visando ao bem-viver em sociedade, na reapropriação

da riqueza socialmente produzida. Como se não houvesse resistências, dificuldades ou

obstáculos – subjetivos como objetivos – à produção coletiva autônoma de formas de

vida não capitalistas; como se não houvesse luta e interesses contraditórios, pontos de

vista inconciliáveis acerca do que seria a vida boa. Salvo má leitura, implícita na crítica

dos amigos alemães, ou ainda em diversas outras críticas semelhantes dirigidas ao

altermundialismo, haveria a suposição de uma propensão espontânea dos sujeitos (ou

das massas) à criação das normas do bem-viver coletivo, enquanto que a questão das

condições da formação de sujeitos capazes de agir autônoma e coletivamente na criação

da nova sociedade, bem como a questão das condições da constituição de uma cultura

comum da resistência no contexto do capitalismo em crise raramente são colocadas de

forma explícita. Sob este prisma, o rechaço de movimentos e lutas sociais imanentes é

precipitado, haja vista o fosso existente entre a construção da ordem social superior e a

capacidade intersubjetiva de se produzir e aprender novos comportamentos, os quais

não são dados de antemão, tampouco surgem espontaneamente em contexto de crise

das categorias sistêmicas fundamentais, mas costumam ter lugar precisamente no seio

de formas coletivas de resistência e transformação social11.

Com algumas exceções, a produção teórica altermundialista pode ter deixado a

desejar no que diz respeito à crítica ao capital, o que não impede que diversos grupos

militantes anticapitalistas da maior relevância, grupos de reflexão e de ação dos mais

radicais e bem embasados, como o nosso MPL, por exemplo, tenham tomado forma no

bojo da contestação altermundialista das inúmeras separações cavadas pela lógica

mercantil nas mais diversas esferas da vida cotidiana. Caberia não esquecer que as

experiências e os conhecimentos coletivos, o desejo de se apropriar coletivamente do

que há de mais avançado na busca de saídas para o presente, as interrupções do curso

espetacular do mundo pela vida real em alguns altos momentos, a intensidade e a

11 Para a questão da criatividade normativa e da força de resistência pressupostas mas não tematizadas

(supposées données) por diversas teorias sociais atuais, inspiro-me livremente de Marc Maesschalck, ―Subjectivation et transformation sociale: critique du renouveau en théorie de l‘action à partir de Karl Lévêque, Étienne Balibar et Louis Althusser‖, Les Carnets du Centre de Philosophie du Droit, n° 158 (2013), p. 6, bem como de Alain Loute, La création sociale des normes. De la socio-économie des conventions à la philosophie de l‟action de Paul Ricœur, Hildesheim, Georg Olms, 2008, pp. 271 ss.

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produtividade de certas amizades e a promessa vivida de uma existência menos

mesquinha e danificada... tudo isso participa já, de um jeito ou de outro, da utopia. Ou

por outra, como bem sabia Brecht, ―elementos da nova cultura [...] sempre vêm à tona

da maneira mais vigorosa no contexto da luta‖12. Rechaçar a totalidade daquele

movimento como reformista, tradicional ou ingênuo por desconhecer ou por não criticar

suficientemente ―o valor‖, equivale – para empregar uma fórmula algo batida mas não

menos justa neste caso – a jogar fora o bebê junto com a água do banho.

A par da contestação mais explicitamente anticapitalista, resumida pela fórmula

―No logo‖ (como se sabe, título de um influente livro de Naomi Klein, publicado quase

que concomitantemente às manifestações de Seattle), as bandeiras altermundialistas

mais conhecidas – dentre as quais haveria que destacar a democratização (ou um maior

controle popular democrático) de órgãos internacionais como a OMC, a OCDE, o FMI e

o Banco Mundial, o imposto progressivo sobre grandes fortunas e a taxação das

transações financeiras internacionais como meio de frear o capital especulativo (as

―bolhas‖ e os paraísos fiscais) e relançar o investimento do capital produtivo, a anulação

completa da dívida dos países do Terceiro Mundo, a quebra do monopólio da mídia

corporativa através da criação de canais alternativos de informação e debate de ideias (a

concepção da Indymedia foi um marco na época), a luta contra o agronegócio e o cultivo

de OGMs, por um ―comércio equitável‖ e uma ―economia solidária‖, e a denúncia do

Processo de Bolonha (que não se restringia a estabelecer as bases da privatização do

ensino superior em toda a Europa, mas cuja implementação, como o disse Žižek na

esteira de Kant, constituiu um verdadeiro assalto ao uso público da razão) – são decerto

demandas imanentes, ou reformistas, como se queira, mas que, além de revelarem a

regressão neoliberal então em curso, faziam avançar a compreensão tanto dos processos

sociais objetivos como das artimanhas de classe em jogo nas mais diversas esferas

(comércio, finanças, comunicação, cultura, produção alimentícia, educação...): as

supracitadas instituições internacionais deixaram claro que não eram democratizáveis,

ou seja, que quem ditava as regras do jogo era mesmo o capital, e apesar de factível em

teoria, digamos de forma um tanto sumária, a demanda pela taxação dos fluxos de

capitais não tem como ser atendida, não em termos capitalistas pelo menos (a nível

12 Bertolt Brecht, Diário de trabalho, vol. I: 1938-1941, trad. R. Guarany e J. L. de Melo, Rio de Janeiro,

Rocco, 2002, p. 103.

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nacional provocaria fuga de capitais, e a nível internacional, a tarefa se complica por

óbvias razões), e assim por diante. Mas por isso mesmo, com tais demandas, a um

tempo exequíveis em termos gerais e aparentemente impossíveis nas coordenadas da

presente ordem econômica mundial, e com a visibilidade que o movimento adquiriu a

nível internacional no início dos anos 2000, os donos do poder, o ―povo de Davos‖ (com

exceção de figuras circenses como Bono Vox, que jogavam para a plateia), foram

forçados a dar as caras sem carapuça. Como se sabe, nos anos 1990, após a queda do

Muro, prevalecia o consenso de que globalização do capital, que viera para ficar e diante

da qual não havia alternativa, era pós-ideológica e não sectária, além de sinônimo de

prosperidade geral; existia o mito de que ―livre-comércio‖ equivalia a ―povo livre‖, o que

significava que toda e qualquer dissidência era encarada como terrorista. Depois do

altermundialismo, que de fato expôs o reverso da medalha, já não se ignora tanto como

antes que a globalização do capital tem efeitos nefastos e que o jogo é esse mesmo, ou

seja, os interesses e a dominação de classe são algo menos dissimulados do que antes,

por vezes mesmo ditos com todas as letras, pelos principais protagonistas: ―It‘s class

warfare. My class is winning, but they shouldn‘t be.‖13 ―There‘s class warfare, all right,

but it‘s my class, the rich class, that‘s making war, and we‘re winning.‖14

***

Longe de significar o advento de um mundo mais democrático, plural e solidário,

ou de uma política internacional orientada no sentido da superação do corporativismo,

que lograsse efetivamente pôr o ser humano e a vida social acima do lucro das grandes

empresas e corporações, o relativo declínio em importância de instituições associadas

imediatamente à globalização neoliberal (OMC, FMI, Banco Mundial), contra as quais a

―galáxia altermundialista‖ primeiramente se constituiu, fez com que os movimentos que

a integraram tivessem que se confrontar com novos dilemas ligados a uma nova

conjuntura internacional15. Para além do cinismo esclarecido dos de cima, bem como do

aumento e da intensificação da repressão ao movimento, nada desprezíveis (em Gênova,

em 2001, começou a cair a ficha de que, ao contrário do que gostávamos de dizer então,

13 Warren Buffet, em entrevista a Lou Dobbs na CNN (25/05/2005). 14 Warren Buffet, cit. em Ben Stein, ―It‘s Class Warfare, Guess Which Class is Winning‖, The New York

Times (26/11/2006). 15 Cf. François Polet, Clés de lecture de l‟altermondialisme, Charleroi, Couleur Livres, 2008.

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não estávamos ganhando), houve de forma geral como que um esgotamento objetivo, já

mais do que patente quando da cúpula do G8 em Heiligendamm, em 2007 (a bem dizer,

e salvo engano, a explosão das revoltas nas banlieues francesas em 2005, deixando um

lastro de milhares de automóveis queimados, com estado de sítio declarado e tudo,

indicavam já, de forma um tanto sintomática, a derrocada do altermundialismo). Seja

como for, por volta de 2003 já se sentia que o que antes fora uma experiência política

bastante viva fixava-se mais e mais numa representação.

De toda evidência, em nível da própria práxis militante, não se pode deixar de

mencionar o desgaste das formas mais usuais dos protestos e encontros (manifestações

internacionais contra a guerra, sit-ins diante de embaixadas, bloqueios de conferências

de lideranças internacionais), que perderam bastante do appeal (sobretudo midiático)

de que gozaram de 1999 a 2003 aproximadamente, sem falar nos fóruns sociais

nacionais e mundiais, que se assemelhavam às vezes a uma versão esquerdista do

turismo de massa16. Além disso, ocorreu no seio de muitos grupos uma deterioração da

militância anticapitalista, que sub-repticiamente, sem que se percebesse exatamente

como, virava um fim em si, militantismo profissional, quando não dava lugar a uma

mercantilização da contestação, turning rebellion into money. Em muitos casos, com

efeito, o ―engajamento‖ já quase não se distinguia do ―empreendedorismo de si‖, isto é,

de um autocelebrador ativismo cidadão responsável, o qual acabaria assumindo um

papel de destaque na perpetuação da ordem social estabelecida cuja lógica de início se

criticava: a solidariedade e o voluntariado viraram mesmo moeda de troca17, e ao

movimento real de resistência global sobreveio a ―ideologia cidadã-negriana‖18, vale

dizer, a ideia do cidadão como cogestor da pacificação social – jovens de periferia (de

guetos, banlieues e favelas mundo afora, sendo os experimentos pacificadores cariocas

ponta de lança no processo) tornaram-se um alvo privilegiado: mobilizados e implicados

16 Nas palavras de Luiz Hernandez Navarro, quando do FSM de Belém em 2009: ―Depois de Nairóbi [em

2007], em que até empresas privadas financiaram o Fórum, teve quem falasse que a frase ‗outro mundo é possível‘ deveria ser trocada para ‗outro turismo é possível‘. Não estou exagerando. Dava impressão de que o modelo nascido em Porto Alegre encontrava seu esgotamento.‖ – cit. em C. Pont, ―O mundo mudou e está em crise. E o Fórum Social Mundial?‖, Carta Maior (31/01/2009).

17 Fenômeno para o qual já chamava a atenção, lá no início, Paulo E. Arantes, ―Esquerda e direita no espelho das ONGs‖ (2000), em Zero à esquerda, São Paulo, Conrad, 2004, pp. 165-189.

18 A expressão é do coletivo Tiqqun, Ceci n‟est pas un programme, Paris, Vlcp, 2006, p. 116.

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na própria exploração, passaram a participar do governo de si mesmos, interiorizando

todos os códigos, normas e práticas requisitados para governar, conduzir e... obedecer19.

Concomitantemente, em nível do discurso, a despeito da intenção progressista de

reconfigurar a política e a sociedade como um todo pela reafirmação de antigas

conquistas sociais bem como pela obtenção de novos direitos, de expandir o espaço

público para além da forma individualista burguesa, de aprofundar a democracia nos

mais diversos âmbitos da vida social e de reinventar novas formas de representação,

através do dissenso notadamente, verificou-se que ―o discurso político dos direitos da

cidadania – cuja validade intrínseca não o impediu de ser recuperado pela verbiagem

gerencial-solidária das mil parcerias fajutas entre tudo e qualquer coisa – estava

correndo por uma pista inexistente‖; constatou-se, enfim, ―que o neoliberalismo não era

apenas uma política econômica perversa a ser descartada assim que a correlação de

forças fosse menos desfavorável e substituída por uma macroeconomia de esquerda‖20.

Por último, mas não menos importante, em nível da vida cotidiana, que costuma

ser relegada a segundo plano em análises deste tipo, o aniquilamento da ação coletiva

altermundialista se deveu muito ao recrudescimento do neoliberalismo, esse monstro de

sete cabeças, cujos contornos e natureza real custamos a discernir, e que no fim das

contas diz respeito menos à ideologia do livre-comércio, ou da desregulamentação dos

mercados, do que à imposição de formas de seleção e eliminação mediante uma

construção política que institucionaliza a concorrência mais acirrada (ou seja, situações

e comportamentos de mercado) em âmbitos em que não se produz mercadoria (como na

universidade, para ficarmos com um exemplo emblemático)21. Tratar-se-ia então de

uma verdadeira fábrica de indivíduos empreendedores de si mesmos, dispostos a tudo, a

sofrer e a infligir sofrimento, para que o mundo gire a seu favor, ou, no limite, para não

19 Como vêm mostrando, entre outros, autores como Livia de Tommasi, Dafne Velazco, Maurílio Lima

Botelho e Fábio Magalhães Candotti, citados e comentados em Paulo E. Arantes, ―Depois de junho a paz será total‖ (2014), em O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência, São Paulo, Boitempo, 2014, pp. 371-76.

20 Paulo E. Arantes, ―Qual política?‖ (2006), em Extinção, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 287. 21 Cf. Pierre Dardot & Christian Laval, La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale,

Paris, La Découverte, 2009. Embora os autores procurem demonstrar que tal construção política não é mera decorrência de processos imanentes à dinâmica espontânea dos mercados, ou seja, não é mero efeito automático das leis imanentes do capital, no que têm razão, não podemos deixar de frisar, em contrapartida, que tampouco foi por acaso que tenha começado a ser implementada no fim dos anos 1970, num contexto de crise sistêmica mundial, a qual tem obviamente a ver com a própria lógica do capital, com as determinações da produção, o desenvolvimento das forças produtivas...

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ficarem de fora, não serem excluídos do jogo da concorrência mortal22. À vista disso, é

de se compreender que, em determinado momento (por volta de 2004, 2005, sobretudo

na Europa, mas não exclusivamente), muitos jovens (dentre os quais um número grande

de ex-militantes) buscaram na sociabilidade libertária e extática das noites sem fim das

grandes metrópoles, na beleza convulsiva e na pulsação viva de seus ambientes

aparentemente mais inclusivos e democráticos, experiências de deslocamento, ou uma

posição de alteridade radical, e por isso mesmo de atrito, vis-à-vis da existência posta;

buscaram, por outras palavras, uma saída ou alternativa utópica à ―claridade enganosa

do mundo invertido‖23, ao universo alienado, empobrecido e brutal do trabalho e do

consumo dirigido de massas, bem como ao circo da política oficial burguesa e à

militância reduzida ao business dos empreendimentos sociais e culturais. Naquele

contexto, a música eletrônica, ―música do tempo infinito‖, condicionava uma urgência,

mas o fato de não haver mais futuro, ou de o futuro já ter chegado, de só existir o aqui e

agora, paradoxalmente era percebido como uma abertura para uma radicalização da

experimentação o mais livre possível de outras razões de viver. Seja como for, embora

houvesse uma dimensão profundamente verdadeira no conteúdo onírico de tal

movimento de dissipação e evasão da vida ordinária (em todos os sentidos do termo), ―o

valor de uso social das drogas e da noite‖ não deixava de cair, de um jeito ou de outro,

nas malhas da alienação cultural administrada, que captura e sufoca as potencialidades

utópicas que por ventura contenha tal viagem aos confins da noite: ―O tempo da

tentativa de congregar em um vértice geral afetivo e estético uma juventude

desarticulada ante o fim do estado de bem-estar social europeu e pela radicalização do

individualismo de mercado, sonhando com uma identidade amorosa livre diante do

mundo nada livre do neoliberalismo confirmado, o projeto político festivo e coletivo do

sujeito do ecstasy, simplesmente se dissolveu na simbólica mais concreta e poderosa da

sociedade de mercado total. [...] A noite tecno administrada, indústria cultural da

autodissolução consentida, corresponde fortemente ao movimento da valorização

espetacular, empresarial e de massas, da cultura, como ordem compensatória de

existência e de vetor ideológico certo no capitalismo contemporâneo.‖24

22 Cf. Silvia Viana, Rituais de sofrimento, São Paulo, Boitempo, 2013. 23 Guy Debord, In girum imus nocte et consumimur igni (1978), em Œuvres, Paris, Quarto-Gallimard,

2006, p. 1780. 24 Tales A. M. Ab‘Sáber, A música do tempo infinito, São Paulo, Cosac Naify, 2012, pp. 88, 111 e 135.

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Ainda em nível das transformações ocorridas na vida cotidiana, é digno de nota

que aqueles foram os últimos anos em que a maioria das pessoas vivia mais na ―vida

real‖ do que diante de uma tela de computador, conectada ao não-mundo do

ciberespaço; as amizades, por sua vez, não haviam ainda degenerado em virtualidades

narcísicas, e o bem-estar individual não dependia tanto da apreciação e da aprovação

alheias, que nos dias atuais parecem se medir quase que exclusivamente pela

quantidade de curtições/likes que se obtém no curso de um dia... Para além das

platitudes usuais sobre as maravilhas tecnológicas informacionais e analógicas ou sobre

as incríveis possibilidades do admirável mundo novo das redes sociais virtuais

(ingenuamente celebradas como ―plataformas nas quais vozes dissonantes se conectam

e ganham escala‖), um estudo sério ainda está por ser realizado, destrinchando o laço

que une a introdução massiva das novas tecnologias digitais e microeletrônicas na vida

das pessoas – o que possibilitou uma nova volta no parafuso da cultura da acomodação

e do entretenimento infantilizado embrutecedor25 – à demissão, igualmente massiva, da

ação coletiva, notadamente a nível internacional26.

***

―Quando a pessoa atua através de uma dessas redes [Twitter e Facebook], não

reporta simplesmente. Inventa, articula, muda. Vive. [...] Talvez esta nova geração,

auxiliada pelas trocas e conexões possibilitadas pela tecnologia, faça a diferença de uma

forma que os que vieram antes não conseguiram.‖27 Curioso como, num outro texto, o

autor destas linhas deslumbradas chega à conclusão de que ―[m]uitos desses jovens

estão descontentes, mas não sabem o que querem. [...] cobrados de uma resposta sobre

sua insatisfação, no fundo, no fundo, conseguem perceber um grande vazio‖28. Em vez

25 Cf. Luli Radfahrer, ―Moleques mimados‖, Folha de São Paulo (29/09/2014), p. F6: ―Em muitos

aspectos, a Web parece ter se tornado o pátio de recreio do ensino médio, em que palhaços, valentões, escandalosos e esquisitos (incluindo na categoria fanboys, geeks e nerds) disputam espaço com seus draminhas pessoais, aparentemente incapazes de crescer ou enxergar além de seu próprio umbigo.‖

26 A respeito do impacto do ciberespaço sobre a vida social, veja-se a análise pioneira de Slavoj Žižek, The Plague of Fantasies, London/New York, Verso, 1997, cap. 4: ―Cyberspace, or, the unbearable closure of being‖.

27 Leonardo Sakamoto, contracapa de D. Harvey & outros, Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas, São Paulo, Boitempo/Carta Maior, 2012.

28 Leonardo Sakamoto, ―Em São Paulo, o Facebook e o Twitter foram às ruas‖, em E. Maricato & outros, Cidades rebeldes. Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, São Paulo, Boitempo/Carta Maior, 2013, p. 100.

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de exaltar o que supostamente se ganhou com o processo decentralizado brotando como

que por geração espontânea – portanto sem as mediações tradicionais de partidos,

sindicatos e movimentos sociais organizados – da insatisfação genérica e generalizada

da população com os problemas que não se resolvem por si sós, ou que não são

resolvidos – como se ouve com frequência – por ―incompetência congênita‖ dos

representantes políticos, talvez devêssemos ao contrário, até para contrabalançar o

entediante entusiasmo reinante a respeito, questionar o que se perdeu no caminho.

Diferentemente dos protestos altermundialistas dos anos 2000, que apesar da

heterogeneidade eram mais pontuais e precisos em suas críticas e exigências – pelo

menos no início, antes que suas reivindicações mais importantes não degradassem em

slogans inofensivos –, as mobilizações que tiveram lugar a partir da crise desencadeada

fins de 2008 pela queda do Lehman Brothers, resumidas por denominações como

―Indignados‖, ―Occupy‖, ―99%‖ ou ―A Voz das Ruas‖, possuem (para falar como os

detratores à direita) uma pauta um tanto difusa, ainda que também inclua a censura ao

sistema financeiro global e a defesa da criação, a partir de baixo, de novas formas de

partilha dos bens comuns. A exemplo do que se viu nas manifestações contra as políticas

de austeridade na Europa, a crise manifesta da democracia representativa dá vazão a um

rechaço generalizado (não de todo injustificado, mas no mais das vezes assaz abstrato)

dos governos e da representação política tradicional: ―Não nos representam!‖ é o seu

grito de guerra29. Os altermundialistas, não esqueçamos, também preconizavam a

radicalização da democracia e a reapropriação dos ―comuns‖ (reclaiming the commons

fora uma de suas principais bandeiras), como também já manifestavam reticências em

relação a partidos e governos (basta lembrar, por exemplo, o slogan Not in my name!

quando da segunda Guerra do Iraque, em 2003). A diferença principal, salvo engano, é

que, ao contrário do altermundialismo, como visto um movimento de movimentos, de

escala internacional, interligando lutas distintas contra um inimigo comum em todo o

mundo, a nova geração de manifestantes reúne, quando muito a nível nacional,

multidões de indivíduos isolados descrentes nas instituições, sejam quais forem. Daí a

pergunta (geralmente dirigida a eles pela direita): Ma che vuoi? Porque a multiplicidade

de ―demandas únicas‖ tem levado à dispersão, não surte efeito, sem mencionar a inépcia

29 Ou, de forma mais debochada: ―Que nos gobiernen, juzguen y cuiden las putas, ya que sus hijos nos han

fallado!‖

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organizativa (apesar de todo o enaltecimento entusiasmado das redes sociais virtuais

como formas mais avançadas e eficazes de mobilização), que faz com que pouca coisa ou

nada se acumule e se consolide30. Nestes quesitos, para dizer o mínimo, o MPL (surgido

em 2005) foi mais consistente e esteve muito à frente.

Por certo: ―Os herdeiros de Seattle, ou [das Revoltas do Buzu de] Salvador/

Florianópolis, levaram uma década para descobrir que não é nem a Economia nem a

Questão Urbana (estúpido?), mas os vinte centavos. Para tanto [...] foram necessários

que vários consensos-tabu fossem quebrados ao longo do processo, abrindo caminho até

esse resultado.‖31 Mas por isso mesmo, caberia não esquecer que não se tratou apenas (e

ponha-se aspas em apenas) da profanação da estratégia da não-violência32. Dito de

outro modo, foi preciso também passar pela economia e pela questão urbana, mais

precisamente, pela percepção da necessidade de se frear a especulação e os fluxos de

capital financeiro e pela reivindicação do direito à cidade, e foi preciso, outrossim,

reafirmar com todas as letras que outro mundo é possível/necessário (num momento

em que tal asserção estava longe de ser óbvia) e que o mundo não é (nem sempre foi,

nem deveria ser, embora esteja se tornando) uma mercadoria, para enfim chegar à

reivindicação maior da tarifa zero para o transporte coletivo, utopia concreta (para falar

como Ernst Bloch) que remete em questão nada menos que todo o sistema de alienações

ligado à economia política capitalista33. Em suma, para retomar o que dizíamos mais

acima, embora pareça evidente, o tempo da práxis não é exatamente o mesmo da teoria,

30 A propósito, Daniel Cunha lembra que, desde Junho, as passeatas mais ―coxinhas‖ – cada um com o seu

cartaz com mensagem individual, sem acúmulo, despolitizada – têm forma semelhante ao feed do Facebook, uma sequência de mensagens em geral individual-exibicionistas.

31 Paulo E. Arantes, ―Depois de junho a paz será total‖ (2014), em O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência, São Paulo, Boitempo, 2014, pp. 421-22.

32 No mesmo texto (p. 434), Arantes explica: ―Os vinte centavos não caíram do céu. Tampouco o céu foi tomado de assalto à maneira clássica. Foi preciso muito bloqueio, muito ônibus depredado, muita lixeira queimada, muito enfrentamento com a polícia, mas também muita assembleia de rua. [...] foi preciso, enfim, adicionar à desobediência civil uma forte dose de todas aquelas práticas que a paz armada de nossa interminável transição colocou na ilegalidade – ou manteve. Para que os vinte centavos caíssem foi preciso profanar, nos termos de nosso visionário Silvio Mieli – algo muito mais intolerável que as vidraças quebradas de agências bancárias e assemelhados de marca de luxo –, os santuários do único monopólio que realmente importa [nada menos que o monopólio da vida pública por parte do Estado, das instituições e das autoridades estabelecidas], e pior, por gente comum, autoconvocada [...].‖

33 Ainda nas palavras de Paulo E. Arantes, ―O futuro que passou‖ (entrevista), O Estado de São Paulo (23/06/2013), p. E2: ―Pelo tênue fio da tarifa é todo o sistema que desaba, do valor da força de trabalho a caminho de seu local de exploração à violência da cidade segregada rumo ao colapso ecológico.‖

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a qual tampouco é irrelevante, muito pelo contrário, e toda experiência digna do nome,

como sabe qualquer leitor de Hegel, implica de alguma maneira um processo de

aprendizagem que envolve engano e desengano, ilusão e quebra da ilusão, sem falar que

toda luta consequente exige organização, objetivos claramente definidos, planejamento

estratégico e acúmulo de forças – ou não? A crítica abstrata da luta política – tal como

encontramos em diversos grupos neoanarquistas – faz com que nos ludibriemos pela

solução definitiva, a ser arrancada de um só golpe no dia da insurreição que vem...

Dito isso, não se trata de enaltecer abstratamente a virtude da paciência, uma

espécie de estoicismo deslocado, tampouco de buscar uma posição de equilíbrio,

equidistante dos dois extremos, mas, talvez, se não for extrapolar, não faria mal

ressuscitar aquela ―dialética da paciência e da impaciência‖ que enformou boa parte do

pensamento, da atitude e do trabalho de Brecht durante os anos de guerra e exílio34.

Estranhamente, os que se mostram hoje mais impacientes, os que não querem mais

saber de mediações ou instituições, malgrado toda a agitação, todo o quebra-quebra,

põem-se de fato a esperar, pacientemente, pela insurreição a caminho. Salvo erro de

percepção, o momento atual exige exatamente o contrário, a saber, que sejamos

impacientes quanto ao fim, e menos quanto aos meios. Melhor dizendo, se apenas

esperarmos pela transformação radical, esta nunca virá; é preciso ―começar com

tentativas ‗prematuras‘ que – aí reside a ‗pedagogia da revolução‘ – no fracasso em

atingir o fim professado criam as condições (subjetivas) para o momento ‗adequado‘‖35.

Tentativa e erro, errar novamente, errar melhor. A tarefa mais difícil, abandonada

precipitadamente por quem acha que o desmoronamento do sistema se dará em virtude

de um desdobramento automático da lógica do capital, ou que o sujeito revolucionário

brotará, como que por geração espontânea, do seio do próprio processo produtivo

capitalista, consiste precisamente em conceber ―mediações culturais e políticas das

quais resultará a contestação do modo e das finalidades da produção‖36.

***

34 Cf. Leandro Konder, A poesia de Brecht e a história, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996, cap. 4. 35 Slavoj Žižek, In Defense of Lost Causes, London/New York, Verso, 2008, p. 360. 36 André Gorz, Misérias do presente, riqueza do possível (1997), trad. A. Montoia, São Paulo, Annablume,

2004, p. 52.

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Se o sujeito da transformação qualitativa não brota espontaneamente do modo

de produção capitalista (ao contrário do que reza a lenda da multidão supostamente

cooperativa, que já estaria socializando direta e positivamente os resultados da

produção), cabe não esquecer que no capitalismo o trabalho, práxis social alienada e

negativa que obstrui qualquer tipo de experiência formadora num sentido emancipador,

segue sendo a fonte de negatividade da qual ―pode emergir em ato a negação

determinada‖37. De novo, estamos na contramão da ideologia negriana atualmente em

voga, para a qual o trabalho imaterial das multidões ―autônomas‖ não teria nada de

negativo em si. Por certo, no curso do desenvolvimento do capitalismo observa-se, para

falar como Debord, uma queda tendencial do valor de uso: enquanto medida capitalista

da riqueza, objetivação do tempo de trabalho imediato, o valor entra progressivamente

em contradição com as possibilidades criadoras de riqueza criadas pelo tempo de

trabalho passado objetivado. Ocorre que a perspectiva negriana fica aquém de uma

análise minimamente satisfatória do problema. A este respeito, vale retomar, como

contraponto, a leitura de um autor como Moishe Postone, que procura mostrar que o

aspecto não-idêntico do valor de uso (que diz respeito à acumulação do tempo de

trabalho e de conhecimentos passados preservados) não encontra expressão nas formas

de aparição determinadas pelo valor (donde o caráter cada dia mais supérfluo de parte

considerável da atividade produtiva), razão pela qual novas formas de consciência,

ainda que vagas, tendem a emergir da tensão crescente entre o tipo alienado de trabalho

que continuamos a exercer (uma vez que o tempo de trabalho no capitalismo segue

sendo a única medida da riqueza socialmente produzida) e os tipos de atividade que

(não fossem os imperativos irracionais do capital) poderíamos ter como resultado da

acumulação do tempo de trabalho passado objetivado. É na experiência negativa do

trabalho notadamente que reside a possibilidade de descontentamento para com a

forma atual do trabalho, por conseguinte a possibilidade de surgimento da necessidade

social de atividades significativas como condição de uma plena realização individual e

coletiva, que só pode ser atingia por formas adequadas ao potencial implícito

37 Cláudio R. Duarte, ―A greve dos garis no Rio: são as águas de março fechando o verão sangrento com

vitória‖ (2014): <militante-imaginario.blogspot.com.br>

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desenvolvido nas forças sociais produtivas38. Com John Holloway, acrescentaríamos que

tal possibilidade, para que não permaneça apenas possibilidade vazia, para que se torne

impulso real, deve se enraizar nas lutas presentes, principalmente naquelas em que vem

à tona o antagonismo vivo entre o desenvolvimento das forças sociais produtivas e as

relações de produção vigentes39. Justamente essa tensão dialética se perde, apesar das

aparências, na perspectiva negriana, que põe a ―cooperação‖, a ―autonomia‖ e a

―liberdade‖ nas condições atuais da produção (o que em si já é uma enormidade) como

qualidades da ―democracia absoluta‖, da sociedade cooperativa de indivíduos livres e

autônomos, praticamente ao alcance da mão. Na esteira de André Gorz, diríamos que

Negri e Hardt escamoteiam questões das mais fundamentais, para as quais o capital tem

obviamente respostas próprias, que ademais são subtraídas a qualquer debate ou

contestação: ―[O] sistema de produção é concebido, gerido e organizado de maneira a

assegurar a maior autonomia possível dos trabalhadores em seu trabalho e em sua vida

fora do trabalho? A que e a quem servem os resultados de seu trabalho? De onde se

originam as necessidades que os produtos devem satisfazer? Quem define a maneira

pela qual as necessidades ou os desejos devem ser satisfeitos e, através deles, o modelo

de consumo e de civilização? E, sobretudo: que relações entretêm os participantes

atuais do processo de produção com os participantes potenciais ou periféricos, isto é,

com os desempregados, os intermitentes, os precários, os autônomos e os trabalhadores

das empresas subcontratadas?‖40

No início de novembro passado, três grandes sindicatos belgas organizaram uma

manifestação nacional que levou num único dia cerca de 150 mil pessoas às ruas em

Bruxelas. As razões para o protesto e para as greves regionais e a nível nacional que se

seguiram podem parecer anódinas ou insuficientemente anticapitalistas aos olhos de

autoproclamados críticos radicais, que veem com desprezo qualquer manifestação da

―finada luta de classes em torno do trabalho‖. Tampouco se trata de uma multidão de

indivíduos indignados demonstrando sua insatisfação com ―a corrupção‖, com ―os

38 Cf. Moishe Postone, ―Necessity, Labour and Time: A Reinterpretation of the Marxian Critique of

Capitalism‖, Social Research, vol. 45 (1978), pp. 739-88. Para uma boa leitura crítica desta perspectiva, cf. Cláudio R. Duarte, ―A potência do abstrato: resenha com questões para o livro de Moishe Postone‖, Sinal de Menos, nº 11, vol. 2, 2015.

39 Cf. John Holloway, Fissurar o capitalismo (2010), trad. D. Cunha, São Paulo, Publisher Brasil, 2013, p. 239.

40 André Gorz, Misérias do presente, riqueza do possível, ed. cit. p. 52.

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políticos‖, ou com a ―representação política‖ em geral, com a própria forma da política

burguesa, mas, em sua maioria, de trabalhadores que protestam contra um acordo

governamental a nível federal (que entre outras coisas prevê novas políticas securitárias

de exceção e o aumento da idade de aposentadoria de 65 para 67 anos até 2030, medida

esta vendida como ―um serviço de interesse geral para os desempregados de longa

data‖), sentido como prejudicial para a classe trabalhadora. Para além da questão do

poder popular, que também se põe de forma incisiva em momentos assim, é a questão

da verdadeira natureza do poder dos trabalhadores que se coloca de maneira

contundente. Ao invés de se retrair, como quando nos contentamos em dizer que ―não

nos representam, mas exigimos assim mesmo...‖, o campo do jogo político se amplifica

consideravelmente no momento em que a classe trabalhadora organizada mostra sua

força e busca impor (e não apenas influenciar indiretamente) o andamento das coisas.

Além disso, e mais importante, completando o que dizíamos acima, a recusa coletiva de

trabalhar mais abre espaço para ideias libertárias e comportamentos antissistêmicos,

ou, nos termos de dois autores franceses, pode dar vazão a ―contracondutas de

cooperação‖, imprescindíveis na produção de formas de vida emancipadas41 – este o

ponto cego de muitas teorias atualmente em voga, que, como visto, supõem como dados

tais comportamentos e contracondutas, em vez de algo que se forma paulatinamente no

seio de um movimento contestatório coletivo organizado.

O passo seguinte, como lembra Žižek a propósito de outros movimentos na

Europa, seria rejeitar explicitamente a tentação populista e nacionalista e reorganizar

novamente a luta anticapitalista a nível internacional, haja vista que medidas

antitrabalhistas (de austeridade, revogação de conquistas sociais, sucateamento de

serviços públicos etc.) estão sendo tomadas por toda parte42. Na mesma linha, seguindo

Simon Choat, diríamos que, ao invés de recorrer às fantasias espontaneístas sobre a

―multidão‖, precisamos mesmo é de uma nova articulação política em que alianças

sejam formadas e as diversas lutas (feminista, ecologista etc.) unificadas, alianças que –

41 Cf. Pierre Dardot & Christian Laval, La nouvelle raison du monde, ed. cit., p. 480. 42 Cf. Slavoj Žižek, ―Problemas no Paraíso‖, trad. N. Gonzaga, em E. Maricato & outros, Cidades rebeldes,

ed. cit., p. 108.

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eis o ponto – enraízem-se nas experiências concretas do desemprego e da exploração do

trabalho, sem nenhuma necessidade de evocar o ―povo‖ ou coisa parecida43.

***

―Não é a urgência dos problemas que impede a elaboração de projetos

alternativos de ruptura, mas antes a ausência de tais projetos que nos submete à tirania

da urgência.‖44 Não é a menor das ironias que uma das ―bíblias‖ do altermundialismo

tivesse por principal bagagem teórica a filosofia antidialética que consagra a ausência de

alternativas sob a alcunha de ―plano de imanência‖. Por outro lado, não admira que no

início dos anos 2000, quando as ruas de grandes cidades em todo o mundo vinham

sendo reclamadas por multidões ―nômades‖, aparentemente desgovernadas, a narrativa

de Império, calhamaço então recém-publicado, parecesse atraente e convincente aos

olhos de muitos participantes e simpatizantes dos protestos contra a globalização

corporativa e as guerras neoimperialistas que a acompanhavam: podíamos de fato

―sentir, nas entrelinhas, os odores e sons de Seattle, Gênova, e os zapatistas‖, o que faz

com que os limites da perspectiva negriana, de certo modo, digam algo a respeito dos

limites do próprio movimento de resistência global anticapitalista45. Tratava-se – a

exemplo do fizeram precedentemente, à direita, teóricos como Francis Fukuyama e

Samuel Huntington – de uma reabilitação extemporânea da Filosofia da História, mais

precisamente na forma de um discurso também ele sobre o ―fim da história‖46.

Diferentemente da perspectiva marxista clássica, aqui a contradição entre relações

sociais capitalistas e forças sociais produtivas não conduz a um impasse – ao nó górdio a

ser cortado pela instauração de uma verdadeira emergência, o estado de exceção dos

despossuídos –, mas a uma época em que, tendo-se superado a produção material

43 Simon Choat, ―Crowd, Power and Post-democracy in the 21st Century‖ (entrevista de 2013), em:

<http://obsoletecapitalism.blogspot.com.br/2013/10/simon-choats-interview-on-crowd-power_5.html>.

44 Jérome Bindé, ―Éthique du futur: pourquoi faut-il retrouver le temps perdu?‖, Futuribles (déc. 1997), p. 21, cit. em P. E. Arantes, ―Alarme de incêndio no gueto francês‖ (2006), em O novo tempo do mundo, ed. cit., p. 260.

45 Slavoj Žižek, The Paralax View, Cambridge/London, MIT, 2006, p. 261. 46 Cf. Paulo E. Arantes, ―Alarme de incêndio no gueto francês‖, art. cit., p. 277.

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fordista e taylorista47, ao capital só resta confiscar e expropriar os potenciais de

criatividade e cooperação coletiva inerentes ao celebrado trabalho imaterial. Tudo se

passa como se o capitalismo atual precisasse apenas de um empurrãozinho por parte da

multidão proletária informatizada para liberar o que de certa maneira já disponibiliza,

ao mesmo tempo em que captura e limita o acesso: ―Hoje a produtividade, a riqueza e a

criação de excedentes sociais tomam a forma da interatividade cooperativa através de

redes linguísticas, comunicacionais e afetivas. Na expressão de suas próprias energias

criativas, o trabalho imaterial parece assim fornecer o potencial para uma espécie de

comunismo espontâneo e elementar.‖48

Nesta perspectiva, que na superfície coincide com a marxista clássica, a produção

já estaria sendo socializada diretamente, em seu próprio conteúdo, demonstrando não

mais necessitar da forma capitalista que continua contudo a revesti-la (a mordaça do

valor, o fetichismo da forma mercantil, os imperativos da concorrência e da

rentabilidade...). Acontece que na atual fase, como salienta Žižek, o capital não é

47 Trata-se de uma história mal contada, para dizer o mínimo. Decerto, para o scholar que, pela janela de

seu bureau no campus de uma universidade europeia ou estadunidense, não vê mais fábricas ou indústrias fordistas, a tendência parece óbvia. Acontece que, globalmente, os números contradizem a suposta evidência. Para início de conversa, o trabalho está longe de estar sumindo do mapa: no início dos anos 1990 havia 2,2 bilhões de trabalhadores produzindo valor, ao passo que atualmente o número chega a 3,2 bilhões. Ademais, a revolução microeletrônica não suplantou de todo a produção industrial fordista (nos setores de manufatura, mineração, energia etc.). Houve de fato desindustrialização – e subsequente aumento do desemprego – nas economias mais desenvolvidas, onde a mão de obra industrial diminuiu em 18% entre 1991 e 2012. No mesmo período, entretanto, a nível global, a força de trabalho industrial cresceu 46%, o que significa que o mundo, ao contrário do que se costuma pensar, não está se desindustrializando. Para estes e outros dados, cf. Michael Roberts, ―De-industrialisation and socialism‖ (2014), em <https://thenextrecession.wordpress. com/2014/10/21/de-industrialisation-and-socialism>. Por essas e outras, há que se concordar com Mario Tronti, ―Per una critica dell‘immaterialismo storico‖, Alfabeta2, n° 9 (maggio 2011), p. 11: ―[...] não podemos jogar o knowledge worker, e nem mesmo os trabalhadores autônomos de segunda ou terceira geração, contra os operários de fábrica, que não são um resíduo em via de extinção, são uma considerável realidade social, civil e humana [...] na arena global do mundo que está por vir.‖ Na mesma linha, Daniel Cunha me chamou a atenção para o fato de que o ―trabalho imaterial‖ só é imaterial se se considera exclusivamente a última ponta da cadeia produtiva, porque a fabricação de laptops, iPhones, câmeras digitais, tablets etc. exige enorme dispêndio material, humano e energético, ou seja, mineração em locais muito específicos e nada etéreos – como o Congo, onde vige o trabalho escravo e infantil nas minas e uma guerra civil interminável em torno do ―ouro negro‖ (o país contém 70% das reservas mundiais de coltan, metal utilizado na fabricação de qualquer telefone celular), que já levou à morte mais de 4 milhões de pessoas – e exploração brutal do trabalho proletarizado em fábricas asiáticas – como a Foxconn, com suas altas taxas de suicídio –, sem falar no consumismo imbecilizado e anestesiador no ocidente (que também passa sob silêncio em Negri e Hardt), a reciclagem em condições insalubres... Aliás, outro aspecto material nada negligenciável do ―trabalho imaterial‖, como lembra ainda Daniel, é que ele produz grande quantidade de lixo, o chamado e-waste (ou resíduo eletrônico, repleto de substâncias nocivas), muito do qual vai parar de volta na África.

48 Antonio Negri & Michael Hardt, Empire, Cambridge/London, Harvard University, 2000, p. 294.

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simplesmente parasita das forças produtivas, mas exerce ainda um papel fundamental

na organização da produção, fazendo a mediação entre produção material e trabalho

com informação49. Acresce, por outro lado, que Negri e Hardt não podem ignorar que

―não há mercado por geração espontânea, quer dizer, sem a mão visível do poder

político‖50. Como se sabe, os dois autores jogam abstratamente com duas lógicas opostas

e heterogêneas (algo como um Fla-Flu filosófico entre o infeliz Descartes e o bom

Espinosa): a lógica da representação e a da expressão. A primeira, encarnada pelo

Estado e os partidos políticos, redundaria – e de fato redunda – numa democracia

insuficiente, limitada; já na segunda a democracia seria ―absoluta‖, uma vez que

indivíduos e movimentos sociais expressariam a pluralidade espontânea e a criatividade

livre da ―multidão‖ (devidamente informatizada, ça va de soi, conectada em rede e com

software de última geração a tiracolo).

Mas o que é a multidão? Num breve artigo publicado em fins dos anos 60

Pasolini tentava dar uma resposta à pergunta. Segundo o grande cineasta, do mesmo

modo que o público de teatro se distingue qualitativamente do público do cinema, assim

também a multidão se distinguiria da massa, a qual ―só é representável nas estatísticas

ou nas prestações de contas, e obedece a regras reativas médias, identificadas por

abstração‖. A multidão seria ao contrário um fenômeno urbano, que teria surgido com

os primeiros mercados, como o da antiga Alepo, na Síria. Por isso, teria por primeira

característica ―se mesclar com sua mercadoria: objetos de troca, de mercado e, hoje, de

consumo‖. Ela seria caracterizada ainda pela presença em carne e osso de um grande

número de indivíduos que teriam, por vezes, sentimentos comuns, como nos casos de

linchamento, ou ainda, de uma torcida num estádio durante uma partida de futebol51.

Sob este prisma, é curioso como Negri e Hardt, numa espécie de hegelianismo

distorcido, positivizam completamente o conceito e tomam a multidão como encarnação

da racionalidade no espaço público, como se não fosse travejada de paixões das mais

49 Cf. Slavoj Žižek, In Defense of Lost Causes, ed. cit., pp. 357-59. De passagem, sublinhe-se que,

examinado de perto, o discurso sociológico que exalta a ―sociedade do conhecimento‖, ou ―sociedade da informação‖, aparece como uma maneira assaz grosseira de legitimar ideologicamente o privilégio e a dominação das classes que têm acesso à educação superior, à informação e ao conhecimento (devo a observação a Cláudio R. Duarte).

50 Paulo E. Arantes, ―Alarme de incêndio no gueto francês‖, art. cit., p. 277. 51 Pier Paolo Pasolini, ―O que é multidão?‖ (1969), em Caos. Crônicas políticas, trad. C. N. Coutinho, São

Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 197-99.

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diversas e conflituosas. Curioso igualmente como distorcem até a filosofia de Espinosa

de que em grande medida se reivindicam. Decerto, para o filósofo holandês a multidão

não se reduz a uma turba exaltada e manipulável, politicamente incompetente, o que

não quer dizer que tudo o que venha dela seja bom e positivo. Como lembra Marilena

Chaui: ―A multitudo espinosana é, ao mesmo tempo, a guardiã da democracia e o maior

perigo contra a democracia. Essa contradição é o coração da política. [...] as paixões

[multitudinárias] não têm freios, e quando elas estão ligadas à forma da propriedade e

ao exercício do governo, você tem de realmente segurar a explosão passional ilimitada.‖

Donde a necessidade, em Espinosa, de o conflito das paixões ser ―mediado pelo direito

coletivo, garantindo um poder que sustente uma sociabilidade segura, pacífica e livre, ou

seja, o que Espinosa chama de democracia ou poder popular absoluto‖52.

Em resumo, digamos que o erro básico em que incorrem os inimigos da dialética

é separar as manifestações multitudinárias dos seus conteúdos específicos. Por que

razão mobiliza-se a multidão? Por que vai às ruas? Contra e/ou a favor de quê? Ora, de

tais questões não se ocupam Negri e Hardt, para os quais o verdadeiro problema reside

no fato de a dita multidão, que já encarnaria, sem mediação, a democracia absoluta, ser

ainda apenas em si53. Mas o que seria uma multidão para si? No caso da classe,

entende-se: o em si é posto pelo próprio processo capitalista, isto é, pela valorização do

valor, que tem por fundamento contraditório a exploração do trabalho, e a passagem ao

para si supõe conscientização desfetichizante, organização, formação prático-teórica de

um sujeito coletivo, ou de um grupo sujeito, um grupo que devém sujeito em luta, na e

pela luta de classe, que se subjetiviza primeiramente como força social antagonista do

capital. A despeito da aparência subversiva, para os autores de Império a história é um

pouco diferente, desnecessário frisar. Se os habermasianos, como se sabe, forneceram o

quadro conceitual de legitimação do Estado-Providência do pós-guerra e, mais adiante,

de seus desdobramentos belicistas cosmopolitas em nome da Paz Perpétua kantiana

(com todas as ―contradições performativas‖, Marcuse pelo menos nunca ignorou que

welfare, em contexto capitalista, de desenvolvimento desigual e combinado das nações,

52 Marilena Chaui, ―Pela responsabilidade intelectual e política‖ (entrevista), Cult, n° 182 (agosto de

2013), p. 15. 53 Detratores notórios do hegelianismo e da dialética, não deixa de ter sua graça notar a presença de uma

série de categorias hegelianas em seu discurso, usadas da maneira um tanto superficial, como notou ainda Slavoj Žižek, In Defense of Lost Causes, ed. cit., p. 353.

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costumava rimar com warfare), Negri e Hardt, a seu turno, encarregaram-se de

legitimar – se bem que o propósito aparentemente fosse o exato contrário, sedicioso – a

nova ordem mundial imperial. Noves fora o jargão pós-estruturalista, o torrencial jorro

poético-filosófico de inspiração deleuziana, o discurso da dupla difere relativamente

pouco, ao final, do discurso dominante. Em ambos a cidadania ativa aparece como ideal,

ou melhor, imperativo, e a multidão desgovernada (ou ―ingovernável‖, ―demoníaca‖, por

isso mesmo, na versão imperial, devendo ser administrada por medidas de exceção) não

passaria de uma sigla ideológica para ―sociedade‖, a qual não demandaria outra coisa

senão a permissão para ingressar no mercado da cidadania, com seus direitos e

responsabilidades. Uma multidão para si seria deste modo uma multidão proativa e

propositiva, composta de singularidades protagonistas responsáveis, e assim por diante.

As contradições de tal discurso saltam à vista: ―Fantasias de onipotência alternam-se

com ataques de impotência; a megalomania transforma-se abruptamente em depressão.

Por um lado, eles celebram o sujeito ‗multidão‘ como Criador de tudo; por outro lado,

ele é constantemente rebaixado pelo poder incompreensível do capital ou do ‗Império‘,

que transforma todos os seus ataques em derrotas.‖54

***

Para terminarmos com uma nota local, lembremos que foi preciso os protestos de

junho e julho de 2013 para que a onda negriana chegasse com tudo às praias

tupiniquins. Com acentos tropicalistas, como não podia deixar de ser, pairando a 10 mil

metros acima de esquerda e direita, a Rede Universidade Nômade é o retrato

involuntariamente satírico das teses sobre a ―multidão‖ e a ―constituição do comum‖,

conjugando num mesmo discurso pregação do êxodo e subordinação ao establishment,

resistência ―nômade‖ aos aparelhos de dominação do Estado e luta pela criação e

universalização dos direitos, tudo ligado ao ―desafio da mudança‖, quer dizer, para além

de toda polaridade, ―o desafio de construir uma política produzida por muitos e

diferentes olhares‖. Nos textos mais caricaturescos, publicados na ―revista nômade‖

54 Norbert Trenkle, ―As sutilezas metafísicas da luta de classes: sobre as premissas táticas de um estranho

discurso nostálgico‖ (2005), trad. P. Rocha, M. Barreira e D. Cunha, Sinal de Menos, n° 10 (2014), pp. 183-84. Discordo, de resto, de muita coisa neste texto, e lembraria, como contraponto, um importante artigo de Daniel Cunha, ―Penúltimos combates: a luta de classes como desejo reprimido no Krisis/Exit‖, Sinal de Menos, n° 1 (2009), pp. 80-92.

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Global Brasil, a multidão assume a forma de ―um enxame‖, que toma as mídias, ruas e

praças; o comum é descrito como ―um conceito em aberto‖, ―monstro em constituição‖,

―confluência de axés‖, ―quilombismo como ética‖...

Por essas e outras, mais do que nunca, contra a moralização da política, faz-se

absolutamente necessário politizar a moral. Um espírito desabusado, ou um caráter

destrutivo, daqueles que assume de bom grado o risco de ser mal interpretado,

sustentaria talvez que o principal ―avanço‖ das fatídicas Jornadas de Junho e Julho de

2013 não decorreu das tragicômicas conquistas imediatas (da revogação espetacular do

aumento da passagem, pouco tempo depois reimplementado, à promessa vaga de uma

Constituinte exclusiva para a reforma política, passando pelo Decreto n° 8243/14, que o

jornalismo delinquente, em nome da ―democracia‖, chegou ao cúmulo de chamar de

―comuno-fascistoide‖, ―o embrião de uma Justiça paralela‖, e que, na ressaca das

recentes eleições presidenciais, foi derrubado por uma Câmara de Deputados raivosa),

mas, quiçá ao contrário, do engendramento de uma contrarrevolução violentíssima

(durante a Copa tivemos uma pequena amostra do que se trata e do que teremos que

encarar daqui pra frente), o surgimento de um oponente compacto, que não teme

mostrar a que veio, um adversário potente (contando com o respaldo de toda a mídia

corporativa), no combate contra o qual – para além da ingênua crença espontaneísta

nas multidões negrianas, que, despolitizadas e desorganizadas, desprovidas de objetivos

estratégicos claramente à esquerda, acabaram apostando suas patéticas fichas na onda

―pós-política‖ da última salvadora da pátria – reside possivelmente a única esperança de

as forças progressistas que se insurgiram em Junho alcançarem a maturidade de um

verdadeiro movimento organizado de transformação social. É contra o retrocesso, o

embotamento geral e o irracionalismo endêmico, no combate à crescente tosqueira

fundamentalista, bem como ao conservadorismo e ao reacionarismo difusos, que as

classes espoliadas e as organizações de esquerda deverão se unir e elaborar

coletivamente uma estratégia de luta comum55. Mas não nos iludamos: a par da união

contra o inimigo comum, que não seria pouca coisa, mas que por si só não garante nada,

falta formação de base, em larga escala, falta politizar a contestação e defender uma

55 Para uma perspectiva crítica da conjuntura pós-Junho e seus recentes desdobramentos, veja-se os

textos de Cláudio R. Duarte publicados em seu blog: <militante-imaginario.blogspot.com.br>

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democracia popular radical contra as elites oligárquicas da Casa Grande e seus porta-

vozes na grande mídia golpista.

Tudo somado, não há razão para desesperar, embora estejamos de fato perdendo.

Como disse João Pedro Stédile após as últimas eleições: ―Nunca estive tão otimista.

Agora as coisas estão mais claras.‖

(verão de 2014-2015)

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A CATÁSTROFE COMO MODELO

Agronegócio, crise ambiental e movimentos sociais

durante o decênio 2003-2013

André Villar Gomez

Marcos Barreira

O setor agropecuário é considerado o mais ―eficiente‖ e ―competitivo‖ da

economia brasileira. Desde há alguns anos, ele vem ganhando mercados no exterior e

garantindo o saldo positivo da balança comercial. Mesmo sofrendo contestação de

ambientalistas e ativistas sociais, o modelo do agronegócio – considerado não no

sentido técnico da mera comercialização da atividade agrícola, mas em seu sentido

político atual – tornou-se, para a maior parte da opinião pública, um exemplo de

sucesso. Os números apresentados por seus defensores apontam que, em 2012, o

agronegócio foi responsável por 23% do PIB e 37% dos empregos (levando em conta a

indústria e o comércio ligados ao setor) gerados no Brasil.1

A formação dos primeiros complexos da indústria agrícola data dos anos 1960-

70, período de aceleração da modernização econômica nacional. Mas foi a partir da

década de 1990 que as bases do modelo atual foram lançadas. Com a

internacionalização das cadeias produtivas, a carne e os grãos se tornaram os principais

produtos nacionais de exportação. Este foi o efeito de duas décadas de políticas de

crédito subsidiado e de preço mínimo, praticadas em benefício dos grandes produtores.

Na agricultura, ganhou forma a dicotomia entre o segmento empresarial

internacionalizado (com base nas grandes propriedades) e uma ampla camada de

pequenos produtores rurais que permaneceram à margem das políticas de

financiamento estatal. O resultado foi a expulsão em massa das famílias pobres,

consideradas de ―baixa produtividade‖, que se deslocaram para as periferias dos centros

1 Roberto Rodrigues, ―Rumos do agronegócio brasileiro‖. Folha de São Paulo, 27 de set, 2012.

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urbanos. No início do século XXI, o setor agropecuário brasileiro deu um salto ainda

maior que o das décadas anteriores, tornando-se o segundo exportador mundial (atrás

dos Estados Unidos). O crescimento foi tão grande que esbarrou nos problemas de

infraestrutura e logística para escoar a produção. Desde então, é cada vez maior a

demanda dos produtores rurais por um sistema integrado de transporte e portos capaz

de acompanhar a mudança do modelo.

Um panorama desse setor revela grande diversidade: produção variegada de

alimentos, fibras, energia e outros produtos. Na produção da soja, entre 2000 e 2009, o

desempenho do Brasil passou de 4,2 bilhões de dólares para 17 bilhões. O complexo da

soja (grão, farelo e óleo) se espalhou por vários estados, liderados pelo Mato Grosso, que

concentrou quase 30% da safra 2011/2012. Em menos de 20 anos, a cultura da soja se

difundiu nos estados meridionais, passando pelo Centro-Oeste, até alcançar o Oeste da

Bahia e o cerrado maranhense. A agricultura desenvolvida nos últimos anos apresenta

elevado grau de tecnificação: na produção de fibras, uma variedade de eucalipto

transgênico foi desenvolvida diretamente para a fabricação de celulose. No estado de

São Paulo, a lavoura da cana-de-açúcar possui uma produção altamente mecanizada,

cerca de 70% do total. Quanto ao cultivo de grãos, especialmente nos casos da soja e do

milho, a tecnologia aplicada tem permitido aos produtores – considerados isoladamente

– a redução de suas áreas cultivadas (por outro lado, a maior produtividade estimulou a

ampliação da demanda, exigindo novas terras e mais produtores, além de resultar na

elevação do preço da terra). A maior parte dessa produção (130 milhões de toneladas na

última safra) é destinada à ração animal. Uma comparação com a produção de

alimentos como o arroz e o feijão, que atingiram, respectivamente, 12 e 3 milhões de

toneladas, permite calcular a importância econômica dos novos produtos. Outra

característica do modelo agrícola atual, tal como no caso da soja, é o seu caráter

exportador: das 38 milhões de toneladas de açúcar produzidas no Brasil, 26 vão para o

exterior; 75% da plantação de laranja, que tem no Brasil a maior produção mundial,

também é exportada. O algodão produzido no Centro-Oeste (com variedades

transgênicas mais resistentes) fez com que, em 10 anos, o país mudasse sua condição de

maior comprador para exportador. No entanto, grande parte do que aparece nas

estatísticas como ―riqueza nacional‖ é, na realidade, um resultado da integração do

campo às cadeias transnacionais, nas quais as terras locais são usadas como plataformas

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de exportação de grandes empresas globais. Por fim, além da capitalização da produção

de alimentos e ração animal, a agroindústria é responsável por aproximadamente 18%

da matriz energética brasileira, concentrando-se na fabricação do etanol (derivado da

cana-de-açúcar) e do biodiesel (óleos vegetais).2

1. “Exportar é o que importa”

Durante o período de crescimento econômico das décadas de 1960-70, a política

agrícola do regime militar caracterizou-se pelo subsídio (na forma do crédito rural e do

financiamento da comercialização) aos produtores com grande capacidade empresarial

e uma política de expansão da fronteira agrícola e colonização. Parte da ―modernização

conservadora‖, os complexos agroindustriais montados naquele período tornaram-se,

nos últimos dez anos, exportadores de commodities em uma escala e nível tecnológico

que não podem ser alcançados fora do modelo das grandes propriedades. A produção de

alimentos para o mercado interno, sem contar o que não é comercializado, continua

bastante dependente da agricultura familiar. Em alguns casos, ela é a principal

responsável pelo abastecimento da população (mandioca, feijão, milho, etc.).3 Por outro

lado, é pouco significativa a participação destes nos principais produtos da pauta de

exportações. Além disso, a grande propriedade exportadora ocupa uma pequena parcela

da força de trabalho. Com pouco mais de 24% das terras, a pequena agricultura é

responsável por 74% das pessoas ocupadas no campo.4

2 Em 2004, foi lançado o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel, integrado aos projetos de

geração de renda e desenvolvimento regional. O Programa tem como objetivo produzir biodiesel a partir de diferentes fontes e em diferentes regiões. Cf. ―Balanço energético nacional‖. https://ben.epe.gov.br/downloads/Resultados_Pre_BEN_2012.pdf

3 Não é segredo que a maior parte do que vai para a mesa dos brasileiros é produzida por pequenos agricultores. Essa situação apenas reforça uma longa tradição, que tem origem no latifúndio colonial, de privilegiar as grandes monoculturas exportadoras. Na formação histórica do território brasileiro, os primeiros centros urbanos do período colonial também foram abastecidos pelos pequenos produtores. Tratava-se, é claro, de uma produção vital para a reprodução da vida social, mas economicamente secundária em relação à exportação de produtos como o açúcar e depois o algodão ou o café. Nesse sentido, pode-se falar, com A. P. Guimarães, num ―tradicional desprezo votado pelo latifúndio às culturas alimentares‖. Citado por Graziano Neto. ―Questão Agrária e Ecologia: crítica da agricultura moderna‖. São Paulo, Editora Brasiliense, 1985 [segunda edição], p. 59.

4 Os números de 2006 apontam a mudança em curso no campo brasileiro: no censo agropecuário de 1995/6 (IBGE), a pequena agricultura, que ocupava 30% das terras, ainda era responsável por 86,6% dos empregos diretos e ao latifúndio cabiam apenas 2,5%. As propriedades de tamanho médio respondiam por 10,9% das ocupações. Cf. ―Censo agropecuário 2006‖.

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/2006/agropecuario.pdf

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O padrão produtivo que aparece hoje como um consenso entre analistas

econômicos e representantes do governo é menos uma evolução ―natural‖ da

concorrência econômica do que uma opção política. Ainda que a política agrícola vigente

esteja submetida a grandes pressões externas – tanto no que diz respeito às inovações

tecnológicas quanto à reorientação da produção – a velocidade com que se deu a

transformação do campo brasileiro indica a existência de um projeto bem definido.

Note-se ainda que, nos últimos anos, o BNDES tem sido usado como instrumento para

favorecer grandes empresas brasileiras, o que inclui o segmento do agronegócio. Não

obstante, o papel das exportações e os números referentes à geração de empregos fazem

parte dos mitos em torno da produtividade do agronegócio. Em primeiro lugar, porque a

orientação para a exportação exige uma mudança do perfil da agricultura, que passa a

privilegiar as demandas de crescimento de economias periféricas (notadamente a

China) em detrimento da produção de alimentos. Em meio a essa alteração, o Brasil

voltou a importar uma série de itens alimentares básicos, antes produzidos

internamente. Quanto à geração de emprego-renda, o setor agropecuário tem

apresentando uma tendência negativa devido ao padrão tecnológico utilizado. A

mecanização da lavoura é a principal responsável por essa tendência. Se comparado ao

volume de suas atividades, empresas que lideram o setor, como a Cargill ou o grupo

Maggi, criam poucos empregos diretos. Os números apresentados pelos defensores do

modelo atual para caracterizar a sua participação no PIB só podem ser obtidos com a

adição dos empregos relativos ao processamento industrial e à comercialização dos

produtos derivados dos novos complexos agroindustriais. Não se referem, portanto, à

ocupação no setor agropecuário, mas a uma imbricação de diferentes esferas da

economia que torna obsoletas as classificações da composição setorial e cujos números,

de fato, podem ser manipulados de acordo com os respectivos interesses.5 Em todo caso,

os êxitos maiores ou menores do modelo em questão têm sido aferidos em termos

5 Estamos diante dos processos – já bem avançados – de urbanização do meio rural (que inclui o

desenvolvimento de atividades não-agrícolas) e de industrialização da agricultura. Essas tendências acompanharam o decrescimento dos setores industriais tradicionais. Assim, o crescimento industrial verificado nos últimos anos refere-se à agroindústria, que, no entanto, continua a ser representada em muitas análises como um setor ―primário‖. Só assim o nível de ocupação na produção industrial pôde se manter estável (24% das ocupações) entre 1980 e 2008, como se vê, por exemplo, num livro recente de Márcio Pochmann. ―Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira‖. São Paulo: Boitempo, 2012.

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puramente quantitativos, sem consideração pelas suas implicações socioambientais.

Mesmo assim, as toneladas de grãos usadas como critério de ―desenvolvimento‖ não

podem dissimular a pressão dos grandes produtores rurais – através da chamada

bancada ruralista – para a não atualização dos índices de produtividade. Isso significa

que, ao lado de empreendimentos altamente bem-sucedidos, encontram-se as terras

improdutivas que sempre caracterizaram o espaço agrário brasileiro, agora disfarçadas

pelas cifras das exportações.6

A opção pelo padrão empresarial-exportador começou a se fortalecer na segunda

metade da década de 1990. Nesse período, ocorreu um novo salto tecnológico baseado

nos processos de mecanização e automação. As empresas transnacionais que dominam

o mercado da mecanização também se voltaram para o Brasil. Tudo isso tornou visível o

potencial de exploração agrícola do país. Mas, ao mesmo tempo, o período em questão

foi marcado pelo esvaziamento econômico, refletido nos altos índices de desemprego, na

desindustrialização e no endividamento dos produtores rurais. A abertura dos mercados

expôs à concorrência uma produção local (grandes, médios e pequenos) com baixa

produtividade e dificuldades de financiamento.7 De modo contraditório, o cenário da

segunda metade dos anos 1990 era de grande expectativa positiva, a despeito da

conjuntura recessiva, com dívidas elevadas e preços agrícolas despencando. Em 1997,

Fábio Meirelles, então presidente da Faesp, afirmava: ―a agricultura é que vai equilibrar

a balança comercial brasileira no longo prazo. Não será a indústria ou os

semimanufaturados, que até agora não conseguiram atingir o ponto de equilíbrio‖.8 O

motivo de tanta confiança era a base tecnológica, praticamente pronta para dar o

6 Uma vez que parte considerável dessas propriedades funciona como estoque de terras paradas das

empresas ―campeãs de produtividade‖, torna-se absurda a exigência do lobby da bancada ruralista –

ou Frente Parlamentar da Agricultura –, pela modificação do Código Florestal com o fim de expandir as atividades econômicas.

7 Em 1999, uma marcha de agropecuaristas chegou à Brasília trazendo como reivindicação a renegociação dos empréstimos com o Banco do Brasil. De acordo com o repórter Lúcio Vaz, que investigou os bastidores da negociação política envolvendo os interesses dos produtores rurais no Congresso, ―grandes produtores deviam milhões de reais, mas eles falavam que a maior parte da dívida era de pequenos e médios agricultores. Um projeto de lei tramitando na Câmara previa o perdão de até 60% de algumas dívidas [...] O interesse pessoal de alguns parlamentares na aprovação do tal projeto já estava evidente. [...] Um grupo de apenas 2% dos produtores rurais que tomaram empréstimos no banco oficial respondia por mais da metade dos créditos agrícolas concedidos pela instituição – algo próximo de R$ 13,7 bilhões‖. Lúcio Vaz. ―A ética da malandragem‖. São Paulo, Geração editorial, 2005, p. 149-150.

8 ―Um ano otimista para a agricultura‖. Manchete Rural, numero 118, abril de 1997, p. 26.

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―grande salto‖. Faltava apenas um projeto de reestruturação agropecuária. O principal

articulador político do agronegócio no período pré-Lula, Roberto Rodrigues, foi outro

idealizador da mudança necessária. Para ele, o setor agropecuário possuía dois

extremos: a agricultura de negócios, baseada na grande propriedade e ligada aos

complexos agroindustriais; e a agricultura de subsistência, sem condições de concorrer

no mercado. Entre elas, uma agricultura familiar com potencial competitivo a ser

integrada. Na perspectiva de Rodrigues, a massa de pequenos proprietários e sem-terras

teria que assumir ―outras funções‖ na sociedade. Para reverter os efeitos de duas

décadas de crise no campo essa massa seria subsidiada ―franca e abertamente‖ pelo

Estado, ―por um período de duas gerações‖.9 De presidente da Aliança Cooperativa

Internacional, um organismo mundial com sede na Suíça, Rodrigues tornou-se ministro

da Agricultura do primeiro governo Lula, em 2003. Pensando a agricultura sob a ótica

dos mercados internacionais, o novo governo desenvolveu um projeto abrangente que

combinava desenvolvimento tecnológico, demandas externas e programas sociais para

os desempregados do campo – exatamente o modelo propagado por Rodrigues no final

dos anos 1990. Desse modo, tornou-se evidente, no interior do governo Lula, a

contradição – que logo seria resolvida – entre dois modelos agrícolas.10 Ao invés de um

programa de modificação da estrutura fundiária capaz de conter o desemprego no

campo, o governo, com suporte na Lei complementar nº 87 (de 1996), que isentou de

impostos os produtos e serviços destinados à exportação, preferiu orientar-se pela alta

conjuntural do mercado de commodities.

No início do governo Lula, mais de 70% da força de trabalho do campo estava

ligada à pequena produção. Nos movimentos sociais – e também dentro do próprio PT –

desde há muito era debatido um programa de criação de empregos e geração de renda

através do incentivo à agricultura familiar, algo que só se tornaria viável com um novo

9 ―Política no prato‖. Globo Rural, número 157, nov. 1998, p. 100. 10 Essa contradição se manifestou nas perspectivas diferentes – ou até mesmo opostas – do Ministério da

Agricultura, capitaneado por Roberto Rodrigues e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, a cargo de Miguel Rossetto, um quadro da ala esquerda do Partido dos Trabalhadores. De início, quando as exportações ainda não haviam deslanchado, ambos os ministérios entraram em conflito com a política recessiva de ―superávit primário‖ do ministro Antônio Palocci.

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Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA).11 No campo político de esquerda, a reforma

agrária não era tratada apenas como um instrumento de compensação social; era, ao

contrário, uma peça fundamental no projeto de ―mudança‖ e de combate ao desemprego

que deu o tom da campanha eleitoral de Lula em 2002. Mas essa via foi dificultada pela

expansão do mercado externo para os produtos primários, especialmente as

commodities agrícolas. Criou-se, a partir daí, uma nova correlação de forças.12 No final

de 2003, ocorreu um incremento de 10% nas exportações e uma queda da atividade

econômica nos demais setores (processo que continuou nos anos seguintes e veio a ser

chamado de ―primarização‖ da economia).13 No governo, um defensor da política

agrícola voltada para os grandes produtores foi José Graziano, ministro extraordinário

de Segurança Alimentar (depois incorporado ao Ministério do Desenvolvimento Social e

Combate à Fome) durante o primeiro mandato de Lula. Nesse período, desenvolveu-se o

Fome Zero, definido como programa de segurança alimentar, mas igualmente como

―apoio à expansão local do emprego e da renda‖.14 Em 2007, como representante

regional da FAO, Graziano afirmava que ―as condições de mercado impostas pela

globalização – alta produtividade, escala elevada e sofisticação comercial –, tornaram

cada vez mais complexas a produção e a sobrevivência no campo‖, o que, segundo ele,

―descarta utopias agrárias ancoradas na mera repartição de lotes de famílias de

11 O Plano foi lançado no final de 2003. No entanto, o novo governo não estava disposto a realizar uma

intervenção na estrutura fundiária visando a desconcentração da propriedade. Tampouco foram criadas as condições para o desenvolvimento de uma cadeia produtiva baseada na agricultura familiar. Algumas medidas, como o Plano Safra, representaram um avanço parcial, mas não escondiam a prioridade do governo. Dos 20 Bilhões aplicados pelo Banco do Brasil na safra 2003/2004, 3,3 bilhões foram destinados à agricultura familiar (que teve grande dificuldade para liberar os recursos) e 16,7 aos demais setores.

12 Nos primeiros anos do governo Lula, antes que a economia se tornasse mais dependente da agricultura, a situação no campo brasileiro era mais favorável às mudanças de caráter distributivista: ―... existe muita terra ociosa no país e o grande capital não quer essa terra, ou, ao menos, não a está disputando. O governo poderia perfeitamente fazer um acordo com o agronegócio e fazer a Reforma Agrária apenas nas terras do latifúndio improdutivo, que estão muito baratas. Outro aspecto importante é que a população brasileira hoje é urbana. Isso quer dizer que o latifúndio não tem mais o peso político que tinha, não tem eleitorado que o sustente. Por outro lado, existem movimentos sociais organizados reivindicando a Reforma Agrária, que é uma bandeira de grande peso, simbólica para a esquerda‖. César Benjamin.―As transformações do PT e os rumos da esquerda no Brasil‖. Coord. Felipe Demier, Rio de Janeiro, Bom Texto, 2003. P. 85.

13 Para Frei Betto, que ocupou cargo de Assessor Especial da Presidência da Republica, dedicando-se ao programa Fome Zero, ―Lula afirmou na campanha que, antes de exportar alimentos, era preciso matar a fome do povo brasileiro. Ao chegar ao Planalto, mudou o enfoque, sobretudo porque a bóia de salvação econômica do governo, hoje, são as exportações agrícolas‖. A observação data de março de 2003. ―O calendário do poder‖. Rio de Janeiro, Rocco, 2007, p. 102.

14 José Graziano. ―Segurança alimentar: uma agenda republicana‖. Estudos Avançados, 17, 2003.

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produtores isolados para sua própria subsistência‖.15 Em 2012, Graziano volta à carga e

defende abertamente o agronegócio como parceiro no combate à insegurança

alimentar.16 O texto conjunto com Suma Chakrabarti, presidente do Banco Europeu

para a Reconstrução e o Desenvolvimento, publicado no Wall Street Journal, aposta no

papel do setor privado na ―missão de alimentar o mundo‖ e nas estruturas políticas

estáveis, isto é, aqueles países que oferecem melhores condições para os investidores

externos. Para os dois autores, não há oposição entre os pequenos agricultores e as

grandes empresas. Daí as propostas de estímulo à agricultura familiar, cuja

incongruência com a cadeia produtiva do agronegócio parece resolvida de antemão na

subordinação da pequena produção local ao negócio agrícola global.17

O modelo agropecuário consolidado na última década, ao contrário do que

presumem os representantes dos organismos internacionais, é tudo, menos seguro. No

caso brasileiro, ele tem se mostrado vulnerável à oscilação dos preços internacionais, o

que exige sempre mais subsídios estatais. Assim, a viabilidade econômica das

exportações continua dependendo dos fundos públicos: ―o tesouro gasta por ano cerca

de 9 bilhões de reais para sustentar a dívida dos ruralistas. Isso ocorre de diferentes

formas, incluindo a securitização‖.18 Números recentes, justamente no aniversário de

uma década do ―grande salto‖, indicam que o modelo atual, além de promover a

expropriação das terras e dos modos de vida ―tradicionais‖, desorganiza a produção e

ameaça a segurança alimentar – como se pode ver na necessidade crescente de

importação de itens básicos. Em 2012, o Brasil precisou ampliar em 50% a compra de

arroz: ―A colheita brasileira é estimada em 11,6 milhões de toneladas, representando

baixa de 15,1%, em razão da menor incidência de chuvas e redirecionamento da lavoura

para outras commodities de melhor remuneração‖.19 Pouco depois, o Ministério da

15 José Graziano. ―Reforma agrária no século XXI‖.

http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=44023 16 ―Hungry for Investment‖.

http://online.wsj.com/article/SB10000872396390443686004577633080190871456.html 17 ―Investir no combate à fome deixa um extraordinário retorno‖.

http://envolverde.com.br/noticias/―investir-no-combate-a-fome-deixa-um-extraordinario-retorno‖/ 18 Ariovaldo Umbelino de Oliveira. ―Soberania alimentar requer rompimento com o agronegócio‖.

http://www.mst.org.br/node/1862 19 ―Brasil vai aumentar em 50% a importação de arroz, diz FAO‖. http://economia.uol.com.br/ultimas-

noticias/valor/2012/08/06/brasil-vai-aumentar-em-50-a-importacao-de-arroz-diz-fao.jhtm

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Agricultura anunciou a importação de 200 mil toneladas de feijão para equilibrar o

mercado e conter a alta dos preços.20

Com a ―era Lula‖, o que se vê no campo brasileiro é o mesmo padrão produtivo

adotado pelo governo anterior, num contexto de enorme crescimento da demanda

externa, que ocasionou a subida dos preços das matérias-primas e produtos agrícolas.

Essa escalada dos preços, somada à desvalorização do Real a partir das medidas de

urgência adotadas em 1999 para debelar a crise financeira, fez do agronegócio

exportador uma prioridade do governo. Passada uma década, o latifúndio se renovou.21

Ainda que permaneça grande o número de terras improdutivas, a exclusão social no

meio rural ocorre, nos dias de hoje, também devido à alta produtividade – o que tende a

colocar em xeque a ideologia do desenvolvimentismo agrário. Trata-se, no entanto, de

uma produtividade destrutiva do ponto de vista ambiental, que intensifica a

concentração de terras e de poder político, representando uma espécie de ―revolução

conservadora‖ no campo. Por isso, o governo encabeçado pelo PT, que funciona através

de alianças com os grandes grupos econômicos, precisa travar a reforma agrária e evitar

o confronto com as empresas que atuam no território brasileiro. A fraqueza das políticas

de proteção aos pequenos agricultores resulta na subordinação das culturas autóctones

a uma lógica econômica segundo a qual é mais sensato degradar a terra produzindo

ração para porcos do que abastecer com alimentos as populações locais. Assim, as

estruturas arcaicas de poder no campo se modificam, mas a presença dos novos

empreendimentos subverte o sentido da produção agroalimentar em favor das

demandas do mercado.

20 ―Brasil precisará importar 200 mil toneladas de feijão, diz ministro‖.

http://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2013/06/brasil-precisara-importar-200-mil-t-de-feijao-para-equilibrar-mercado.html

21 A começar pelo processo de internacionalização: ―A incorporação de grandes extensões de terra, sobretudo, para a cultura de grãos tem sido fundamental para as grandes empresas do agronegócio. Enquanto no ano de 2001 em Iowa, nos Estados Unidos, um hectare de terra custava US$ 350, em Mato Grosso custava apenas US$ 57, o que está ensejando, inclusive, uma corrida de compra de terras de fazendeiros estadunidenses no Brasil como já se pode comprovar na Bahia, em Goiás, Tocantins, em Mato Grosso e no Maranhão‖. Carlos Walter Porto-Gonçalves. ―A globalização da natureza e a natureza da globalização‖. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. P. 248.

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2. Acumulação de catástrofes

A soja começou a aparecer nas estatísticas nacionais na década de 1950. Um

maior investimento ocorreu duas décadas depois, nas áreas de cultivo do Sul do país,

transformando a soja num dos maiores produtos da pauta nacional de exportação.22 Até

o final dos anos 1990 o estado do Paraná ainda era o maior produtor nacional.

Tradicionalmente, a cultura da soja utilizava, nos meses mais quentes, a mesma área e

os mesmos equipamentos usados no cultivo do trigo durante o inverno.23 Em 1970,

menos de 2% da soja produzida no Brasil vinha da região central. Dez anos depois, como

resultado da política de incentivos fiscais, o percentual havia chegado aos 20%. Desde a

criação da Embrapa Soja, em 1975, foram desenvolvidas ―adaptações‖ do cultivo

tradicional ao clima tropical predominante no Cerrado. Com estímulo econômico e

aperfeiçoamento técnico, a região central se converteu na maior produtora nacional de

grãos. Em 1990, ela já era responsável por mais de 40% da sojicultura – e continuou a

ampliar esse percentual nas décadas seguintes. Um terceiro fator decisivo: a abundância

de terras disponíveis a baixo preço se comparado aos estados meridionais. Essa marcha

para o Cerrado, porém, não indica uma transferência das culturas do Sul para o Brasil

central e sim um crescimento – em ritmos desproporcionais – nas duas regiões.

A expansão da agricultura comercial no Cerrado foi estimulada por iniciativas

como o POLOCENTRO, criado durante o governo do general Geisel, em 1975, para

desenvolver tecnologias aplicadas à região. Mas foi com o ―projeto piloto‖ do

PRODECER (Programa de Desenvolvimento dos Cerrados), quatro anos depois, que se

consolidou a ocupação produtiva através de um acordo entre Brasil e Japão para a

plantação de soja. Esse tipo de política indicava a escassez de novas áreas para a

agricultura no Sul e no Sudeste. No entanto, a cultura da soja ainda demoraria a

22 ―Foi no Sul do país, especialmente no Rio Grande do Sul e Paraná, que se deu a maior expansão da

produção de trigo e de soja, geralmente em áreas de colonização mais recente ou de emigrantes europeus (...) Portanto, a maior parte da produção é levada a cabo por pequenos proprietários, utilizando-se pouco trabalho assalariado e com a produção sendo comercializada principalmente por cooperativas‖. Bernardo Sorj, Estado e classes sociais na agricultura brasileira, Rio de Janeiro, Zahar, 1980, p. 53.

23 ―O acoplamento entre trigo e soja é natural, na medida em que eles se utilizam praticamente da mesma maquinaria e seu cultivo se dá em épocas diferentes do ano. Se, no início, a produção de soja foi até certo ponto atrelada à produção de trigo, a partir da década de 1970, com o boom dos seus preços internacionais, a soja passou a comandar a expansão do binômio‖. Idem.

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desenvolver todo o seu potencial econômico, e não só por razões de mercado. No final

dos anos 1990, a safra atingiu a marca de 30 milhões de toneladas. Foi o período de

maior ampliação da área agricultável da soja, que se consolidou em estados como Mato

Grosso, Goiás e Minas Gerais. Mas o salto que levaria o Brasil à condição de maior

produtor mundial – quase 90 milhões de toneladas em 2013 – só ocorreu a partir da

criação de um pacote tecnológico específico para os novos celeiros. Na realidade, seria

mais exato dizer que as tecnologias aplicadas ao clima e aos solos do Cerrado – como as

variedades com ciclo de maturação prolongado – são uma ―adequação‖ da região à

produção que se faz presente nos outros biomas, isto é, uma maneira de desenvolver no

Brasil central as mesmas culturas desenvolvidas em outras regiões.24 Nesse sentido, o

processo de adaptação do Cerrado à cultura da soja foi acompanhado da disseminação

de um grande número de doenças.25 Com o crescimento da produção, intensificaram-se

pesquisas para aumentar a resistência da lavoura às doenças causadas por bactérias e

fungos. Contudo, a expansão da monocultura, ainda nos anos 1990, fez com que

surgissem novos e maiores problemas fitossanitários. Na Safra de 2001/2002, aparece

uma nova praga, conhecida como ―ferrugem asiática‖, provocada pelo fungo

Phakopsora pachyrhizi, que se espalhou pelas plantações do Rio Grande do Sul ao Mato

Grosso. Neste último, a soja foi atacada em 1994 pelo Nematóide de Cisto e, em 1995,

pelo Cancro de Haste; no mesmo período, a plantação de algodão foi dizimada. Desde

então, foram introduzidas no mercado as variedades de soja ―resistentes‖ com base no

―melhoramento genético‖. Em geral, as doenças e pragas estão associadas a

desequilíbrios causados pela falta de rotação das culturas (a homogeneidade das

24 Do mesmo modo, muitos consideram que a exigência da utilização das máquinas e insumos industriais

que invadiram o campo brasileiro nos anos 1970 foi antes uma necessidade das indústrias que ofereciam tais produtos do que uma demanda real dos agricultores que os consumiram. Aqui, pode-se ver a força da ideologia da ―modernização tecnológica‖ – que tem sua base material (e política) no vínculo imposto aos produtores entre o crédito rural e a utilização dos insumos e maquinário industrial. Do outro lado da cadeia produtiva, à jusante, os padrões ―modernos‖ de comercialização dos produtos primários retiram ainda mais a autonomia dos produtores absorvidos pelos complexos agroindustriais. Note-se também que, antes da abertura econômica para o mercado mundial em curso nos últimos vinte anos, a agricultura brasileira chegou a vivenciar, durante a crise dos anos 1980, um período de ―regressão tecnológica‖ em decorrência da elevação do preço do petróleo e seus derivados. Cf. Francisco Graziano Neto. Op.cit. p. 74.

25 Segundo os técnicos da Embrapa, as perdas anuais causadas por mais de 40 tipos de doenças chega a 20% da produção. ―Tecnologias de produção de soja – Região Central do Brasil, 2004‖. http://www.cnpso.embrapa.br/producaosoja/doenca.htm

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plantações desencadeia e facilita a disseminação de pragas).26 O modo encontrado pelos

produtores para lidar com tais dificuldades não foi uma forma alternativa ou ―orgânica‖

de cultivo – inclusive porque é pequena a fração da produção destinada à alimentação

humana – e sim o controle químico do solo. Desde 1997, a Embrapa Soja atua em

pesquisas com sementes transgênicas. Em parceria com a empresa Monsanto, ela

incorporou às suas cultivares o gene de tolerância ao glifosato.27 A princípio, os novos

grãos usados para estabilizar o cultivo foram contrabandeados da Argentina. Em 2003,

a despeito do alerta de pesquisadores e ambientalistas, que levou muitos países

(especialmente a Comunidade Européia) a limitar e controlar a produção de alimentos

geneticamente modificados, o presidente Lula liberou o uso das sementes através de

Medida Provisória. Dois anos depois, era aprovada no Congresso a lei nacional de

biossegurança. O Brasil, que poderia ter se tornado uma ―reserva‖ livre da manipulação

genética, rapidamente tornou-se o segundo maior país em área plantada com

transgênicos.28

A cultura do milho é um exemplo ainda mais significativo da estruturação do

novo modelo agrícola: nos anos 80, ainda predominavam as pequenas e médias

propriedades pulverizadas em várias regiões. A abertura econômica e a nova onda da

―modernização‖ impulsionaram a produção de carne de frango (que chegou a se tornar

26José Lutzenberger já alertava que ―um ecossistema simplificado é tanto mais vulnerável quanto maior

for a simplificação. A ‗praga‘ é consequencia direta desta simplificação. Um desequilíbrio traz outro e inicia-se um ciclo diabólico que leva a agressões sempre mais violentas‖. ―O Fim do futuro? Manifesto Ecológico Brasileiro‖. Porto Alegre. Editora Movimento, 1980, p. 24. Assim, as alterações físicas, químicas e biológicas dos solos causados pelas monoculturas criam a demanda por novos agroquímicos. Este círculo vicioso de destruição, no qual as intervenções técnicas exigem procedimentos ainda mais agressivos, também pode ser observado nas condições cada vez mais artificiais da criação de aves ou bovinos, que facilitam a incidência e a propagação de doenças. Cf. Mike Davis, ―O mostro bate à nossa porta. A ameaça global da gripe aviária‖. Rio de Janeiro, Record, 2006.

27 O processo de modificação genética da soja ocorre a partir de um gene extraído de uma bactéria e ―bombardeado‖ sobre a semente para torná-la tolerante ao uso de herbicidas. Desse modo, é possível exterminar plantas daninhas sem afetar a soja. A marca comercial mais usada é a Roundup, da Monsanto, um herbicida sistêmico a base de glifosato que elimina toda a vegetação não ―programada‖ geneticamente para resistir.

28 Hoje, quase 90% da soja brasileira é geneticamente modificada. Isso coloca o Brasil na contramão da tendência atual. Inicialmente liberados com uma série de regulamentos e restrições, os alimentos transgênicos começam a ser contestados na Europa. São inúmeras as proibições, a exemplo do milho GM na Alemanha, que foi seguida por outros países. Dentro da Comunidade Européia instaura-se uma contradição entre países produtores (especialmente a Espanha) e consumidores. Isso demonstra que o interesse econômico é o principal argumento para a liberação dos transgênicos. Recentemente, a Hungria destruiu todas as suas plantações contendo sementes transgênicas. Na América Latina, o Peru proibiu todos os cultivos com transgênicos alegando defender os pequenos agricultores e a biodiversidade.

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um símbolo da fase de implantação do Plano Real). Consolidado o modelo, já no final da

década de 1990, a cultura do grão se tornou muito mais concentrada e orientada para a

produção de ração animal. Em pouco tempo o Brasil se tornou um dos maiores

exportadores mundiais. Conforme aumentavam a produção e os lucros, também

aumentava a presença das sementes transgênicas: ―Na safra 2009/10, do total de

sementes de milho comercializadas, 39% eram transgênicas. Esse índice saltou para

64% em 2010/11, considerando safra de verão e segunda safra. Já na safra 2011/12, os

materiais geneticamente modificados (GM) devem superar 70% das sementes

adquiridas pelos produtores‖.29

O incentivo às monoculturas de exportação transformou os novos celeiros

agrícolas em áreas de experimentação de tecnologias logo disseminadas por toda parte.

A maioria das pesquisas e avaliações dos riscos dos transgênicos é patrocinada pela

própria indústria da biotecnologia.30 Na perspectiva dos grandes produtores, as normas

da biossegurança são vistas como entraves ao ―desenvolvimento‖ e o princípio da

precaução no controle dos alimentos é atacado como reação ―ideológica‖ ao progresso

tecnológico. Por outro lado, a pesquisa avançada se aparenta cada vez mais com um

suporte técnico ―neutro‖ para empreendimentos econômicos potencialmente

destrutivos. Os efeitos imprevisíveis dos transgênicos sobre o organismo humano não

representaram um obstáculo. Nos Estados Unidos, onde foi criada a agricultura

altamente tecnificada que se alastra pelo mundo como uma praga, as leis de

biossegurança foram impotentes ante o poder das corporações. Lá o agronegócio se

consolidou usando a ―desregulamentação‖ da década de 1980, que, em nome do lucro,

transformava a saúde pública e a segurança ambiental em ―entraves burocráticos‖. O

Brasil, que vem seguindo o modelo norte-americano, tem metade de sua área cultivada

dominada pelos transgênicos. Por isso se tornou o segundo mercado da Companhia

29 Embrapa: ―Adoção do milho transgênico no Brasil é tema de debates‖.

http://www.embrapa.br/imprensa/noticias/2012/marco/2a-semana/adocao-do-milho-transgenico-no-brasil-e-tema-de-debates/

30 Durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, João Elmo Scheiner afirmava: ―Nascida nos laboratórios de biologia molecular, de bioquímica e de genética das universidades – instituições públicas de pesquisa – a biotecnologia está hoje sob o controle de gigantescas corporações privadas, que controlam desde a pesquisa até os mercados. Após apenas uma década de biotecnologia comercial, o quadro está definido: as decisões passarão a ser tomadas por megaempresas privadas‖. Citado por César Benjamin. ―Diálogo sobre ecologia, ciência e política‖. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, 1993, p. 173 n.

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Monsanto, a controladora do negócio das sementes GM e pesticidas. Esta empresa ficou

conhecida pelos métodos que empregou, junto ao governo dos Estados Unidos, para

fazer aprovar leis permissivas de biossegurança e pela forma como impõe seus produtos

aos agricultores.31 Recentemente, a divisão agrícola da multinacional alemã Bayer, cuja

atuação no mercado brasileiro ainda é incipiente, anunciou sua primeira variedade de

soja, que será comercializada a partir de 2015.

A unificação de segmentos como agricultura e biotecnologia tem sua origem no

esgotamento do modelo agrícola criado a partir da Revolução Verde – esta, por sua vez,

é um subproduto da hipertrofia da indústria química da II Guerra Mundial. A crescente

preocupação com os problemas ambientais levou ao questionamento do modelo de

agricultura praticado em larga escala nas décadas de 1960 e 1970, com seu ―pacote

tecnológico‖ baseado no uso intensivo de fertilizantes e pesticidas. Por isso, os primeiros

produtos derivados da biotecnologia foram apresentados como parte de uma ―agenda

ecológica‖ de soluções para a agricultura e o meio ambiente. Mas ao invés de buscar

tecnologias sustentáveis, o novo campo de pesquisas seguia em primeiro lugar o

princípio da lucratividade. As pesquisas em biotecnologia não podem ser pensadas sem

levar em consideração a necessidade das empresas de agroquímicos ampliarem sua

oferta de produtos num contexto de reestruturação da economia global após a crise do

petróleo em meados da década de 1970. De ameaça potencial, as técnicas de mutação

genética foram incorporadas por este setor, o que tornou possível condicionar o uso das

novas sementes aos seus produtos. O Roundup, comercializado pela Monsanto há mais

de trinta anos e vendido junto com a soja resistente ao glifosato, é apenas um exemplo

dessa agricultura ―sustentável‖ baseada na destruição química e na ameaça à

estabilidade genética. Essa mesma empresa é também responsável pela criação de

aditivos alimentares nocivos, como o aspartame, e pela fabricação dos herbicidas 2,4-D

31 São inúmeros os relatos de ações de corrupção, cooptação de autoridades, perseguição de pequenos

produtores e condenações na justiça por graves danos causados ao meio-ambiente e à saúde das pessoas, além de práticas econômicas desleais.

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e 2,4,5-T, que combinados resultam num desfolhante conhecido como Agente Laranja.32

Nada disso é acidental. Desde o século XIX, a indústria química tem se empenhado

numa produção de alimentos cada vez mais tóxica. Essa indústria se desenvolveu

alternando pesquisas entre a agricultura e a guerra – um dos símbolos dessa junção é o

cientista alemão Fritz Haber, Prêmio Nobel de química em 1918, que dividia suas

atividades entre a produção de fertilizantes e gases letais. Foi para atender necessidades

militares que surgiram produtos aparentemente inofensivos como a Margarina ou a

comida enlatada. Do mesmo modo, a empresa DuPont, criadora do composto químico

da marca comercial teflon, era em sua origem uma fábrica de pólvora. Na tradição

patriótica de Haber, fabricantes de pesticidas como as empresas alemãs Degesch e Tesch

produziam o gás Zyklon B, a base de ácido cianídrico, e abasteceram o empreendimento

de extermínio em escala industrial do regime nazista na década de 1940 – utilizado na

agricultura mundial, o mesmo veneno persiste em sua carreira genocida, contribuindo

para a disseminação de doenças provocadas pela ingestão de químicos.

Declarações de guerra à natureza têm feito parte, pelo menos desde o advento da

Revolução Industrial, da visão ocidental do processo técnico que se espalhou pelo

mundo. Longe de ser uma forma neutra de agir, a aplicação tecnológica da ciência tem

se caracterizado, especialmente nas últimas décadas, pela tentativa de subjugar a

natureza ou até mesmo de recriá-la conforme os princípios capitalistas de organização

social. Os experimentos de engenharia genética e a transgenia não constituem um ―mau

uso‖ da ciência. Na verdade, eles nos dizem algo sobre a essência da mentalidade

moderna e fazem, por assim dizer, com que esta se ―realize‖ plenamente. Só assim se

compreende que, nos dias de hoje, genes compatíveis com venenos empregados nas

lavouras sejam ―bombardeados‖ nos núcleos celulares das sementes ou que seja possível

criar um tomate mais resistente introduzindo-lhe um gene de peixe ou ainda recriar

32 Durante os anos 1965-9, a Monsanto foi uma das principais fabricantes do Agente Laranja, usado pelo

Exército dos EUA nas florestas da Indochina. O site da empresa esclarece a participação da mesma na Guerra do Vietnã: ―Temos grande respeito pelos soldados enviados para a guerra e por todos que foram afetados pelo conflito no Vietnã [...] Um dos legados daquela guerra é o Agente Laranja, para o qual as perguntas permanecem quase 40 anos depois. As forças armadas dos EUA utilizaram o Agente Laranja de 1961 até 1971 para salvar as vidas dos soldados americanos e aliados desfolhando a densa vegetação das selvas vietnamitas e, portanto, reduzindo as possibilidades de uma emboscada‖. http://www.monsanto.com.br/institucional/para_sua_informacao/agente-laranja.asp

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uma espécie com crescimento acelerado a partir da mistura com espécies não

relacionadas.33

As pesquisas com transgênicos são um caso exemplar, pois levam até o fim a

tentativa de produzir, em seu campo de observação, a fragmentação de elementos que se

apresentam de forma complexa na natureza. É menos uma forma de conhecimento do

meio natural do que um modo de intervir nele: trata-se de isolar determinados

elementos para introduzi-los em outros organismos, modificando o seu funcionamento

natural.34 No caso dos produtos transgênicos, o resultado dessa intervenção, que possui

algo do que o filósofo alemão Günther Anders chamou de ―cegueira ante o apocalipse‖,

não é apenas um aumento da produtividade, mas todo um conjunto de efeitos

descontrolados sobre o meio-ambiente e o organismo humano cujas causas mal podem

ser identificadas por procedimentos técnicos. Nesse sentido, é no corpo dos indivíduos

ou nos ecossistemas que os elementos separados em laboratório se unificam. A

instabilidade genética ou a contaminação do ar, das águas e dos alimentos que

consumimos não derivam de intervenções isoladas. Há uma multiplicidade de fatores

complexos que o método das ciências naturais, por definição, não é capaz de abranger.

Ainda que as pesquisas sobre os efeitos dos transgênicos fossem independentes dos

interesses dos fabricantes de produtos GM – o que está muito distante da realidade – o

entrelaçamento dos elementos desencadeados por sucessivas intervenções dos sistemas

técnicos torna cada vez mais difícil apontar relações diretas de causa e efeito, por

exemplo, entre um produto específico e uma doença. Tal fato tem servido de álibi para

33 ―É verdade que os seres humanos utilizam algum tipo de biotecnologia nas atividades agropecuárias há

mais de 10 mil anos (desde a revolução neolítica), e, portanto, produzem conhecimentos e técnicas aplicadas sobre os seres vivos. No entanto, essa forma de intervenção é qualitativamente diferente do que faz a engenharia genética. Até então só era possível fazer cruzamentos de variedades ou espécies aparentadas. Hoje, porém, tais barreiras foram franqueadas, tornando-se possível intercambiar artificialmente o material genético de dois organismos escolhidos ao acaso. Portanto, a manipulação genética passa por cima das barreiras biológicas que separam as espécies. Os mecanismos orgânicos naturais de evolução são colocados de lado e passa-se a realizar intervenções nas interações gênicas naturais‖. André Villar Gomez. ―Renovação tecnológica e capitalismo: tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza‖. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010, p. 96.

34 ―Vistos através da ótica do método científico-matemático, [os acontecimentos naturais] se apresentam como efeito de um conjunto de leis da natureza. Para conhecer uma única destas leis, é preciso eliminar as outras, ou seja, assegurar que seus efeitos se mantenham constantes. Neste procedimento analítico, na decomposição dos acontecimentos em fatores isolados, reside o vínculo entre as ciências da natureza e a técnica: à medida que se consiga isolar os fatores individuais, resulta possível recompô-los infinitamente e sintetizá-los em sistemas técnicos‖. Claus Peter Ortlieb. ―Objetividade inconsciente. Aspectos de uma crítica das ciências matemáticas da natureza‖. http://obeco.planetaclix.pt/cpo_pt.htm [Publicado na revista Krisis, n. 21-22, Nuremberg, 1998].

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liberar todo tipo de produtos e isentar de responsabilidade os seus fabricantes. É como

se as alterações no material genético não modificassem características essenciais de um

alimento e como se a falta de evidências sobre riscos imediatos de um produto específico

constituísse uma evidência científica da ausência de riscos. E mesmo produtos

reconhecidamente nocivos são usados sem restrições: quando, na cidade de Lucas do

Rio Verde, pólo econômico do interior mato-grossense, uma pesquisa constatou a

contaminação da água e do leite materno pelo uso de agrotóxicos, os defensores do

agronegócio não contestaram as análises, mas argumentaram que a enorme variedade

de produtos utilizados na região não permitia identificar os responsáveis diretos pela

contaminação das mulheres.

Outro caso de tecnificação em nível elevado ocorre na monocultura do eucalipto,

que vem se expandindo tão rápido no Brasil quanto a soja – e com o mesmo modelo de

produção em grande escala voltada para a exportação. A plantação do eucalipto é

tratada como uma colheita florestal de ciclo curto. Como um processo industrial

convencional, produz-se a biomassa que alimenta madeireiras, fabricantes de celulose e

carvão vegetal, o que excede em muito a simples extração de recursos naturais. Todo o

ciclo, que envolve o viveiro das mudas, o plantio e o tratamento da madeira é realizado

em grande escala, como um sistema racionalizado de produção em massa. Inicialmente,

são usados métodos de clonagem de matrizes selecionadas em laboratório – apenas 10%

do plantio segue as técnicas convencionais de semeadura. Recentemente, tornou-se

possível obter maior volume de madeira a partir das variedades transgênicas. As mudas

clonais, tratadas quimicamente no plantio, garantem uma produção uniforme que

facilita o manejo e dispensa mão-de-obra. Assim, as plantações de eucaliptos ganham a

forma de coberturas vegetais homogêneas e compactas. Essas ―florestas industriais‖ –

também chamadas de ―desertos verdes‖ – compõem uma massa vegetal que drena os

solos e elimina toda a biodiversidade.

O eucalipto é uma árvore comum na Austrália e na Indonésia e começou a ser

―importado‖ no início do século passado, no estado de São Paulo, para prover a

expansão das estradas de ferro no interior. Começou a ser plantado em pequena

quantidade, em vários locais e em convívio com outras culturas. No final do século XX, o

eucalipto era a árvore mais cultivada do Brasil. Isso se explica pelo seu crescimento

rápido (em cinco ou seis anos é possível cortá-las para determinados usos, embora o

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valor comercial das árvores mais antigas seja maior). Com a produção de celulose, os

grandes empreendimentos de eucalipto expandiram-se para além das áreas tradicionais

do Sul e do interior paulista, ocupando uma grande região no norte do Espírito Santo,

sul da Bahia e parte de Minas Gerais. Um programa de fomento desenvolvido a partir

dos anos 1990 pela Aracruz Celulose abrange mais de 50 municípios somente no pólo

produtor constituído por esses três estados – e para o qual foi desenvolvida, através do

melhoramento genético, uma espécie hibrida mais resistente. E a expansão continua.

Depois do impacto destrutivo do eucalipto nos Campos do Sul, surgiram novas frentes:

na região de Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, está em operação a maior fábrica de

celulose em linha única do mundo; no estado do Amapá, já se pode ver a substituição

das florestas primárias pelo cultivo da espécie originária da Oceania. Todo esse processo

foi fortalecido nos últimos anos pelo governo brasileiro, via BNDES. O resultado mais

recente dessa intervenção é a FIBRIA, criada em 2009 a partir da fusão das empresas

VCP (Votorantim), que atua no setor desde o início dos anos 1980, e a Aracruz Celulose.

O banco estatal é acionista e financiador da fusão, que integra a estratégia de

fortalecimento de grandes empresas nacionais.35

Para atender a escala e o ritmo da produção de madeira, a monocultura do

eucalipto provoca graves desequilíbrios ambientais. Além de concentrar as terras, ela

consome muita água, deteriora o solo e contamina o entorno. Embora tais impactos

sejam evidentes, não falta quem defenda o eucalipto, afirmando que seu plantio em

grande escala reduz a pressão sobre as florestas nativas e permite o ―reflorestamento‖ de

solos degradados.36 Independente da controvérsia sobre os usos e abusos das espécies

que compõe o gênero Eucalyptus, é fácil notar que nem só os solos e recursos hídricos

são atingidos, mas também os pequenos produtores expropriados de suas terras e as

populações remanescentes. No Espírito Santo, em Barra do Riacho, onde se localiza o

35 ―BNDES vai ajudar negócio entre Aracruz e VCP com até R$ 2,4 bilhões‖.

http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u492165.shtml 36 No entanto, sempre se pode argumentar que monocultura não é reflorestamento. Este não existe sem

que haja um crescimento espontâneo de espécies nativas variadas, com recuperação da biodiversidade e proteção das nascentes e beiras dos rios. O efeito da monocultura, ao contrário, é extinguir a maior parte das formas de vida. No Brasil, a velocidade da destruição provocada pelo monocultivo do

eucalipto foi tão grande que obrigou os produtores mais visados pelos órgãos fiscalizadores – sempre

com incentivos fiscais – a usarem novas técnicas de manejo, como entremear de matas nativas as novas plantações para minimizar os efeitos negativos da ―floresta industrial‖.

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único porto especializado no embarque de celulose, uma barragem da Aracruz assoreou

os rios da região e a empresa foi apontada por ambientalistas como responsável direta

pela contaminação das águas e dos animais. Ao destruir o entorno, a monocultura e o

tratamento da madeira se impõem como a única alternativa econômica. Cercando e

inviabilizado o cultivo tradicional da região, a indústria do papel passa a absorver, como

fornecedores de matéria-prima, as populações empobrecidas que antes viviam da pesca,

das pequenas roças e do extrativismo. Entre as mais afetadas na região estão as

comunidades indígenas Tupiniquins e Guaranis, que tiveram suas terras expropriadas.37

A construção da fábrica de celulose em Aracruz-ES também deslocou a força

populações indígenas e pescadores artesanais. Em 1998, um acordo de devolução parcial

das terras devolutas tradicionalmente ocupadas por estas comunidades foi firmado, mas

ficou reduzido a poucas famílias divididas entre a subordinação econômica à empresa e

a recomposição das áreas de mata nativa. Desse modo, parte dos povos da região foi

obrigada a participar da atividade do corte das árvores para garantir sua subsistência.

Em Encruzilhada do Sul, como em outros municípios gaúchos, a situação é semelhante.

Enquanto o governo estadual estimulava a ocupação das terras pelos grupos econômicos

responsáveis pela extração da madeira, a monocultura derrubava a mata nativa, cercava

as pequenas propriedades e poluía os rios: ―quem ainda não vendeu suas terrinhas e

insiste em ficar, convive com as visitas dos desesperados animaizinhos que fogem da

invasão. São mulitas, mão-pelada, gato-do-mato, ratões e capivaras famintos que

devoram tudo que vêem pela frente‖.38

A expansão do complexo agroindustrial da cana teve uma trajetória diferente dos

casos descritos anteriormente. Criado em 1975 a fim de impulsionar a indústria dos

biocombustíveis, o ProÁlcool declinou a partir de meados dos anos 1980 após o

chamado ―contra-choque do petróleo‖, que reduziu bruscamente o preço do barril de

37 A formação da sociedade brasileira se baseou nas monoculturas e no regime escravista. Estas práticas

eram uma condição para o processo de colonização voltado para o exterior, isto é, constituíam uma estrutura de produção que era indiferente a tudo que não pudesse alimentar o mercado mundial em formação. O fim destes que estão entre os últimos sobreviventes de um processo sistemático e brutal de extermínio dos povos nativos nos faz recordar a análise clássica de Caio Prado Junior sobre o ―sentido da colonização‖. Caio Prado descreve o papel das monoculturas de exportação na transformação do vasto território incorporado ao Império português em um fornecedor de gêneros tropicais, a partir da formação da economia da colônia como uma empresa ―destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu‖. ―Formação do Brasil contemporâneo: Colônia‖. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 31.

38 ―A monocultura que vai terminar na pobreza‖. http://www.mst.org.br/node/8258

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óleo bruto. Foi um período em que a distribuição do crédito rural demonstrou

claramente a opção do governo militar pelas culturas voltadas para a exportação e a

transformação em combustível. O programa foi retomado em 2000, depois de um

processo de redefinição. Ocorreu assim nova expansão dos canaviais, nas áreas

tradicionais do interior de São Paulo e litoral nordestino, avançando em seguida pelos

cerrados. Dessa vez, o programa de álcool combustível foi estimulado por uma

tecnologia de motores que permite o seu uso combinado com o da gasolina – uma

tecnologia desenvolvida para atender as exigências das leis de estímulo à produção de

etanol. Um novo cenário se desenhou nos últimos anos, fazendo com que o mesmo

programa de modernização adotado no passado fosse resgatado, mas agora como

estratégia energética sustentável para o século XXI. Desse modo, o etanol da cana-de-

açúcar foi apresentado como matriz energética renovável e alternativa aos combustíveis

derivados do petróleo.

Muito se pode dizer a respeito dessa ―alternativa sustentável‖. Antes de tudo,

deve-se considerar que a aceleração do consumo energético é determinada por um

modelo irracional de transporte e circulação intra-urbana. Também o processo de

produção da matéria prima dos novos combustíveis reforça uma tendência mundial de

destinação das terras agrícolas à produção de ―culturas energéticas‖.39 Essa nova

legitimação dos padrões de consumo exigidos pela indústria não obedece a critérios

reais de sustentabilidade; seu fundamento é uma racionalidade puramente econômica.

O que está por trás do desempenho recente do Brasil como um dos maiores produtores

mundiais e o maior exportador de etanol é o crescimento da produção de veículos e não

uma suposta sensibilidade ambiental. Esse é apenas o primeiro momento de uma

renovação da matriz energética mundial para a manutenção dos fins automotivos.

Enquanto muitos países começavam a substituir parte da gasolina pelo etanol, o

39 ―Calcula-se que o agroetanol da cana-de-açúcar no Brasil tem um equilíbrio de energia muito melhor do

que qualquer outro biodiesel, principalmente daqueles que são produzidos em regiões temperadas. A poupança de carbono do agroetanol da cana-de-açúcar brasileira é também, de longe, maior do que qualquer outro agrocombustível. No entanto, esse saldo positivo em energia e carbono ficaria substancialmente reduzido se fossem incluídos os custos de infraestrutura e exportação, mas, sobretudo, se forem contabilizados os demais impactos sociais e ecológicos de todo o processo de produção de agroetanol – incluindo o problema da segurança alimentar‖. André Vilar Gomez, op.cit., p. 175

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governo Lula aproveitou a demanda crescente para estimular a agroenergia com

incentivos à ampliação da oferta de cana e instalação de novas usinas.40

Desde o início da ―era Lula‖, o etanol se destacou como fornecedor de energia a

partir da biomassa. Na safra 2005/2006, a produção nacional foi de 17,47 bilhões de

litros, 10,8% maior do que a safra anterior. Em 2006/2007, os números foram ainda

maiores. No segundo mandato de Lula, essa tendência se reforçou. A prioridade da

política energética era construir grandes hidrelétricas e desenvolver a produção de

etanol. O novo ciclo de expansão da cana fazia parte da estratégia econômica adotada

pelo Brasil em parceria com os Estados Unidos, como atesta a aliança, firmada em 2007,

entre o então presidente George W. Bush e Lula para a produção de biocombustíveis

cujo objetivo estratégico era criar um mercado mundial de etanol.41 Dentro e fora do

país, surgiram críticas ao projeto, especialmente no que diz respeito ao problema da

ameaça à segurança alimentar. Em dezembro de 2009, Lula e Dilma Rousseff, sua

ministra de Minas e Energia durante o primeiro mandato, defenderam, no festejado

encontro de Copenhague, a transferência de tecnologia para a produção de etanol em

países pobres. Por trás da retórica humanitária e ambiental, o governo brasileiro

estimulava ao mesmo tempo a cadeia produtiva interna do etanol e a diversificação da

produção, necessária para viabilizá-lo como commodity no mercado mundial. Daí as

críticas ao efeito dessa política na redução das superfícies agrícolas voltadas para a

produção de alimentos – que vem resultando, em várias partes do mundo, em aumento

dos preços. No plano interno, as críticas foram rebatidas por porta-vozes do agronegócio

como Roberto Rodrigues, sempre enfatizando os ―ganhos de produtividade‖ induzidos

pelas pesquisas em biotecloogia, que supostamente permitiriam limitar o crescimento

espacial da agroenergia. No entanto, esse ponto de vista logo se modifica quando entra

em questão o potencial do setor: ―São 200 milhões de hectares ocupados com pastagens,

40 A região Centro-Sul é responsável por, aproximadamente, 90% da produção nacional de etanol, com o

estado de São Paulo produzindo 60%. Só a região de Ribeirão Preto, tradicional na indústria sucroalcooleira, conta com mais de 40 usinas e alta tecnologia. Os outros 10% são produzidos de modo mais rudimentar na região litorânea do Nordeste.

41 Em 2007, Roberto Rodrigues, já como ex-ministro, falava sobre o cenário que se avizinhava: ―É importante ressaltar que hoje ainda não existe um mercado para etanol, mas é fato que ele existirá. E para que isso aconteça, para que o etanol se torne commodity, o Brasil deve efetivamente criar estímulos para que outros países também produzam cana, concorrência que torna menor o nosso custo médio de produção e que incentiva o desenvolvimento para políticas de produção e comércio‖. Entrevista de Roberto Rodrigues, concedida em 29/08/2007 ao Conselho de Informações sobre Biotecnologia. http://www.cib.org.br/entrevista.php?id=47-

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dos quais 90 milhões são aptos para agricultura (entre eles, 22 milhões aptos para a

cana). Assim, estima-se que o País pode ampliar a sua área de cana para produção para

etanol em até sete vezes‖.42 Outra argumentação notável é a de Wladimir Pomar,

ideólogo da ―ala esquerda‖ do lulismo, encarregado de pensar a incorporação dos

movimentos populares do campo à lógica do negócio agrícola global numa duvidosa

união: ―Marcha-se para uma certa aliança, entre correntes contraditórias, de que é

necessário incorporar à produção agrícola todas as forças possíveis, na perspectiva de

aumentar substancialmente a produção de alimentos e de biocombustíveis. Isto

introduz nas questões agrícola e agrária brasileiras elementos novos, criando uma

situação que justifica o assentamento rápido dos 3 a 4 milhões de trabalhadores sem-

terra‖.43 Reciclando teorias modernizadoras sobre o caráter ―progressista‖ da expansão

da agricultura capitalista, Pomar afirma a atualidade de uma reforma agrária

democrática contra o ―subsistema do latifúndio improdutivo‖, isto é, uma reforma capaz

de ―desconcentrar e democratizar a parte não capitalista da estrutura agrária‖.44

Todas as grandes monoculturas estão relacionadas com processos locais de

desmatamento. Nas extensas áreas de cerrado – o bioma mais atingido pela ação

antrópica – o impacto é devastador: números oficiais indicam que 45% da vegetação

desapareceu, principalmente nos estados mais ao sul, mas a destruição avança com

rapidez nas fronteiras agrícolas. Com a desertificação dos solos e a demanda por novas

terras, estima-se que o cerrado do Brasil central pode se extinguir em poucas décadas.

Além da cobertura vegetal, também são visíveis os efeitos das atividades econômicas

sobre o subsolo, no qual se encontram amplos reservatórios aqüíferos que alimentam

várias bacias hidrográficas. O Cerrado sempre foi mais desprotegido em termos legais

do que outros biomas. Considerado ―pobre‖ em termos de recursos (mesmo sendo um

dos biomas que apresenta maior diversidade), ele não foi incluído na condição de

42 Roberto Rodrigues, ―O limite para crescimento da agroenergia tem a ver também com o tamanho do

espaço que daremos à biotecnologia nesse processo‖. http://www.cib.org.br/entrevista.php?id=47- 43 Wladimir Pomar, ―Os latifundiários‖. São Paulo: Editora Página 13, 2009, p. 117. 44 Ibidem, p. 122. Em seguida, o autor em questão especula sobre a passagem da grande propriedade

capitalista para uma estrutura de propriedade ―social‖, de modo que esse processo ainda teria o mérito de criar as bases para a supressão da propriedade privada. Ocorre que não só a correlação de forças do início de 2003 se inverteu nos últimos dez anos, uma vez que os antigos latifundiários começaram a perder espaço para os bancos e corporações internacionais, mas, além disso, numa conjuntura econômica desfavorável às exportações, os grandes produtores fariam rapidamente um giro para o mercado interno de alimentos – um cenário que já se desenha desde os impactos da crise de 2008, p.e. no setor sucroalcooleiro -, colocando em risco o que resta da agricultura familiar.

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―Patrimônio Nacional‖ na legislação em vigor, graças a uma visão que o considerava

uma simples reserva de terras. Foi a pecuária que liderou o desmatamento no Centro-

Oeste. Nos últimos 30 anos, o desenvolvimento técnico da agricultura começou a exigir

novas terras e mesmo os ―ganhos de produtividade‖ em terras ocupadas estimulou a

ocupação de novas áreas. Além disso, os projetos do Arco Norte e as novas hidrovias têm

permitido a expansão da soja para a Amazônia. Uma nova rota para escoar os grãos

permite a redução dos custos de transporte ligando diretamente áreas produtoras do

Oeste e Noroeste mato-grossenses e da região de Vilhena (RO) aos portos do Norte,

através de Porto Velho e Itacoatiara (AM), no coração da selva amazônica. Em

Rondônia, um dos estados mais desmatados, quase metade do território, a maior parte

da mesorregião Leste, foi arrasada. O que restou da cobertura florestal encontra-se em

Unidades de Conservação ou em Terras Indígenas que resistem às pressões econômicas

(especialmente a extração ilegal da madeira).

Na Amazônia, a dinâmica do desmatamento tem seguido um padrão bem

conhecido: as madeireiras abrem os caminhos na selva, enquanto as grandes

monoculturas do planalto central deslocam a pecuária e os cultivos menos rentáveis

para as áreas de floresta recém-derrubada. A floresta é substituída por pastagens e, em

seguida, pelas lavouras. O cultivo da soja e do milho tem se desenvolvido, desde o final

dos anos 1990, nas fronteiras consolidadas. Em Rondônia, este foi o tripé do

―crescimento econômico‖: pecuária extensiva, exploração madeireira sem regulação e

grandes lavouras mecanizadas nas áreas mais desmatadas. A exploração da madeira não

é a única atividade irregular. Os maiores produtores de soja da região são também os

campeões da grilagem, o que produz uma estrutura fundiária altamente concentrada. A

concentração da propriedade das terras – sempre maior nas regiões de elevada

produtividade – faz as cidades transbordarem em periferias abandonadas e obriga os

pequenos agricultores a buscarem terras mais baratas, avançando o desmatamento.

Desse modo, os complexos agroindustriais contribuem de duas maneiras indiretas para

a destruição das florestas: deslocando o gado e atividades menos estruturadas e

produzindo uma estrutura fundiária que não deixa alternativa de sobrevivência aos

pequenos agricultores senão ocupar áreas preservadas. Mas isso, obviamente, não exclui

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os casos de desmatamento direto para o plantio.45 Os dados referentes à safra 2011/12

contabilizados na ―Moratória da Soja‖, um pacto ambiental entre produtores do setor,

Ministério do Meio Ambiente e ONGs, revelam mais de 18 mil hectares de área

desmatada de forma ilegal na Amazônia.46 Esse monitoramento demonstra que a soja

continua a avançar pelo centro-norte do Cerrado e pelos estados de Rondônia e Pará. Se

a expansão da sojicultura não pode ser considerada a maior responsável pelo

desmatamento atual, também é pouco provável que ela se adapte às condições da

Amazônia. Nesta região, as áreas mais propícias para o cultivo da soja são as manchas

de cerrado, com seus solos planos e clima regular. De acordo com a WWF Brasil, nos

últimos anos, os maiores focos de desmatamento ligados diretamente à soja situam-se

nos estados do Maranhão, Bahia, Piauí e Tocantins.47 Mas é preciso ficar claro que a

Floresta Amazônica encontra-se fortemente ameaçada não por uma cultura em

particular, e sim pelo modelo agroindustrial, ao qual podemos somar a construção das

grandes barragens.48 A lógica destrutiva tende a se acelerar com o esforço do Brasil de

aproveitar a ―janela de oportunidades‖ surgida com a produção dos agrocombustíveis.

Essa concepção de ―desenvolvimento‖ baseada em grandes projetos enxerga as áreas de

floresta, em primeiro lugar, como fronteiras agrícolas e energéticas. Para os

pesquisadores da Embrapa, por exemplo, a Amazônia é considerada um trunfo

econômico, possuindo ―o maior potencial para o plantio de dendê do mundo, com área

estimada de 70 milhões de hectares‖.49 Além da indústria do óleo de palma, cuja

demanda internacional provocou a destruição das florestas do Sudeste Asiático, tem

45 ―Desmatamento na Amazônia para o plantio de soja cresceu 85% em 2011‖.

http://www.rondoniadinamica.com/arquivo/desmatamento-na-amazonia-para-o-plantio-de-soja-cresceu-85-em-2011-,26689.shtml

46 ―Plantio de soja na Amazônia resultou no desmatamento de mais de 18 mil hectares.‖ http://acritica.uol.com.br/amazonia/Manaus-Amazonia-soja-Moratoria_da_Soja_na_Amazonia-Plantio-Amazonia-resultou-desmatamento-hectares_0_799120140.html

47 ―Ambientalistas tentam minimizar impacto da expansão da soja‖. http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/01/130109_soja_ambientalistas_pai_jf.shtml

48 Segundo Paulo Artaxo, especialista em mudanças climáticas do Laboratório de Física Atmosférica da USP, quando o desmatamento atingir 20% da vegetação, a floresta pode entrar em um processo de regressão. Os números podem ser discutidos. De todo modo, conforme dados oficiais, 18% da floresta já foi desmatada. O que é importante frisar é que não é preciso que todas as árvores da floresta sejam destruídas para ela chegar ao fim. Quando o seu ponto de equilíbrio é atingido, os resultados negativos da destruição anterior impulsionam novos processos de decomposição, numa espiral de implosão de colapso do sistema sobre o qual ela se apoia. Cf. ―A marcha dos insensatos‖. http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/A-marcha-dos-insensatos/3/17758

49 Peres Rodrigues, José Roberto. Et.al. ―Biocombustíveis. Uma Oportunidade para o Agronegócio Brasileiro‖. Revista de Política Agrícola. Ano XIV No. 1. 2005. Ministério de Agricultura. Brasília.

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crescido a pressão econômica para a produção de etanol de cana-de-açúcar. Por isso, em

maio de 2013, foi aprovado pela comissão de Meio Ambiente do Senado Federal o

Projeto de Lei 626/2011, que ―dispõe sobre o cultivo sustentável de cana-de-açúcar em

áreas alteradas e nos biomas Cerrado e Campos Gerais situados na Amazônia legal‖50.

Deste modo, a floresta é consumida pelas bordas, notadamente nas partes Sul e Leste,

seguindo o padrão de desmatamento responsável pela supressão de grandes porções do

Cerrado, até que se afete o seu ponto de equilíbrio, seja através da soja, do eucalipto, da

criação extensiva ou das novas culturas ―energéticas‖, enquanto os rios são poluídos e os

modos de vida tradicionais inviabilizados.

As diferentes monoculturas produzem impactos sócio-ambientais desiguais, mas

possuem um denominador comum: de alguma forma elas contribuem para concentrar a

estrutura fundiária, contaminar ou exaurir recursos naturais e modificar a lógica da

produção em prejuízo dos mais pobres e da sustentabilidade. O resultado mais visível da

expansão agrícola é mudança nos ciclos hídricos, sinal da perturbação da estabilidade

do ecossistema. A contaminação das bacias e o uso intensivo de agrotóxicos ou o

desgaste no revezamento das culturas de milho e soja, que impele os produtores para

―terras virgens‖, são fatos indiscutíveis. Tomando o exemplo das plantações de cana-de-

açúcar, é possível identificar, nas regiões com menor desempenho econômico, como no

Espírito Santo, Minas Gerais ou Pernambuco, o grau de brutalização das relações

sociais. Em termos gerais, as lavouras que se desenvolveram a partir de 2001 geram

poucos empregos e não criam cadeias produtivas fortes, mas nesses estados a cultura da

cana-de-açúcar figura entre as atividades com maior incidência da exploração em

condições análogas à escravidão. O mesmo vale para as lavouras da soja nas regiões

mais remotas do país. As novas feições do trabalho escravo – um aspecto que sempre se

fez presente nas relações de trabalho no campo, como parte da nossa tradição, e que só

há poucos anos começou a ser combatido e assim mesmo de forma pouco decidida – são

as atividades forçadas, a servidão por dívida e o trabalho em condições exaustivas.51 A

partir de 2003, teve início um combate mais efetivo ao trabalho escravo por parte do

50 http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=127683&tp=1 51 Sobre a nova legislação contra o trabalho escravo cf. Ricardo Rezende Figueira e Neide Esterci.

―Escravidão contemporânea: disputas, leis e políticas públicas‖. Estados da plebe no capitalismo contemporâneo. Org. Cleusa Santos, Marildo Menegat, Ricardo Rezende Ferreira. São Paulo, Outras expressões, 2013.

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governo federal, com o lançamento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho

Escravo. No final daquele ano, o Ministério do Trabalho e a Polícia Federal libertaram

uma grande quantidade de trabalhadores. Essa política tem colocado em oposição

alguns setores do governo e os representantes do agronegócio e do latifúndio. A

mudança do texto do Código Penal (artigo 149) fez surgir uma nova concepção de

trabalho escravo que não se limita ao trabalho sob coerção, o que gerou, como resposta

dos grandes produtores rurais, a exigência de uma melhor definição do conceito de

―trabalho análogo à escravidão‖.52 Do mesmo modo, o governo tem enfrentado forte

resistência para aprovar a Proposta de Emenda Constitucional 438/2001, que expropria

para fins de reforma agrária terras nas quais há registro de condições de trabalho que

atentam contra a dignidade humana. Os conflitos políticos não são a única dificuldade.

Em 2004, na cidade de Unaí, em Minas Gerais, três auditores fiscais e um motorista do

Ministério do Trabalho foram assassinados no exercício de suas funções. De lá para cá

houve pouco avanço na esfera penal, com poucas denúncias e condenações (a começar

pela chacina de Unaí, cuja decisão sobre a condenação dos mandantes permanece

adiada pelo STF). Também na região situada entre o norte do Espírito Santo e o sul da

Bahia, as sobras do eucalipto são transformadas em carvão vegetal por trabalhadores

em situação ilegal – em grande parte mão-de-obra infantil – que vivem em condições

insalubres, sem direitos, expostos a resíduos químicos e jornadas extenuantes. Ao invés

de um combate sistemático a tais práticas e do estímulo às cooperativas, o governo

federal adotou, em 2007, a MP 410 (convertida na Lei 11.718 no ano seguinte), que torna

oficial a precarização das relações de trabalho no campo, permitindo ao empregador

―realizar contratação de trabalhador rural por pequeno prazo para o exercício de

atividades de natureza temporária‖.53

Ao contrário das aparências, as formas de exploração intensiva da mão-de-obra

dos trabalhadores rurais não estão reduzidas a um Brasil ―arcaico‖, como se fossem

resíduos de um passado de tradição escravista. Para José de Souza Martins, ―ao invés da

expansão capitalista no campo ter modernizado a mentalidade política dos grandes

52 ―Tendo em vista a nova redação do artigo 149, a categoria [trabalho escravo] tem sido compreendida

por procuradores e juízes do trabalho com um sentido amplo: basta haver condições degradantes de trabalho para ser tipificado como ‗crime de trabalho análogo à condição de escravo‘‖. Ricardo Rezende Figueira e Neide Esterci, op.cit, p. 23.

53 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/Lei/L11718.htm

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proprietários, acabou comprometendo a mentalidade dos capitalistas com os interesses

do latifúndio‖.54 Embora Martins considere essa inversão da ―missão civilizatória‖ do

capital como um obstáculo para a verdadeira entrada do campo brasileiro no mundo

moderno, o fato de as grandes empresas se tornarem proprietárias de terras e

reproduzirem novas modalidades de exploração representa apenas um aspecto

contraditório da ―modernização‖ ditada pelo atual estado do desenvolvimento

produtivo. Nos setores mais avançados do agrocapitalismo não é mais possível

empregar de forma rentável grandes quantidade de força de trabalho em lavouras e

colheitas. O incremento técnico resulta, então, na degradação das condições de trabalho

para alguns e no desemprego em massa para a maioria. Nas plantações de cana e

laranjais paulistas, a área agrícola mais desenvolvida do país, são cada vez mais comuns

os casos de morte por acidente ou por excesso de trabalho. As máquinas colheitadeiras

de cana (com altas taxas de produtividade) impõem à mão-de-obra remanescente um

prolongamento da jornada com intensificação do ritmo de trabalho. Trata-se de um

efeito direto da mecanização da lavoura: ―Na década de 1980, a ‗média‘ (produtividade)

exigida era de 5 a 8 toneladas de cana cortada/dia; em 1990, passa para 8 a 9; em 2000,

para 10, e em 2004, para 12 a 15 toneladas‖.55 Em face dessa busca incessante de

desenvolvimento tecnológico, a questão da ―mentalidade‖ dos proprietários torna-se

menos decisiva do que o padrão de competitividade dos mercados globais. Os salários

baixos – que indicam um retorno da mais-valia absoluta – são a condição para a

agricultura brasileira concorrer no mercado mundial, vale dizer, são antes uma

exigência do nível crescente das forças produtivas do que uma forma capitalista de

54 ―Mecanismos perversos de exclusão: a questão agrária‖. Exclusão social e a nova desigualdade. São

Paulo: Paulus, 1997, p. 85. 55 Cf. Maria Aparecida de Moraes Silva. “Mortes e acidentes nas profundezas do „mar de cana‟ e dos

laranjais paulistas‖. http://www.revistas.sp.senac.br/index.php/ITF/article/viewFile/112/129.

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reprodução de relações pré-modernas.56 Na mesorregião de Ribeirão Preto (SP), a

extrema exploração é constatada pela ocorrência de 21 mortes, supostamente por

excesso de esforço durante o corte da cana, no período de 2004 a 2007, além de elevado

número de acidentes.57 O modelo empresarial da modernização agrícola atual reduz

drasticamente a população de trabalhadores rurais. A maior parte deles não será

reintegrada e não apenas por causa da baixa qualificação, mas devido aos elevados

padrões de produtividade. Mesmo a expansão das atividades industriais de

beneficiamento é insuficiente. Para ficarmos com um exemplo revelador: a cidade de

Ribeirão Preto, centro econômico de um dos pólos mais dinâmicos do agronegócio

brasileiro, praticamente extinguiu sua população ocupada na agricultura. Junto com a

riqueza da cana-de-açúcar, que se concentra em poucas mãos, crescem as favelas e

prisões. Em 2012, mesmo após uma série de remoções, as favelas ainda concentram

uma população de 25 mil moradores. Já o número de presos é algo em torno de 4 mil.

Com a taxa da ocupação em atividades rurais correspondente a 0,03%, este setor

tornou-se numericamente inferior à população carcerária da cidade.58 Nas regiões mais

pobres do país o fenômeno se repete. A concentração de terras continua a produzir um

excedente populacional que ocupa até as periferias das cidades de porte médio. Para

além dos casos de precariedade das condições de vida causadas pela modernização do

campo, erroneamente atribuídos ao ―poder do atraso‖, a visibilidade dos êxitos

econômicos do agronegócio dissimula outro grande produto do capitalismo mais

avançado, a reprodução ampliada da pobreza urbana.

56 O processo de globalização produz uma uniformização dos ―tempos históricos‖. O que aparece como

arcaico e pré-moderno é a expressão direta de uma modernização que perdeu seu horizonte de progresso social. Na periferia do capitalismo essa modernidade se exprime no processo de regulamentação da precariedade, enquanto a força-de-trabalho das economias centrais é ―flexibilizada‖ – ambos de acordo com o nível crescente das forças produtivas. Nesse quadro, a ―produção ‗high tech‘ ou trabalho barato ‗low-tech‘ são para [as empresas transnacionais] pura e simplesmente opções que, de acordo com o cálculo dos investimentos necessários, situação do mercado, risco, situação da concorrência e demais condições estruturais, se podem utilizar e até combinar‖. Cf. Norbert Trenkle. ―Nem os baixos salários vos salvam! A ilusão do capitalismo da miséria e das prestações de serviços‖. http://www.krisis.org/1999/nem-os-baixos-salarios-vos-salvam

57 Maria Aparecida de Moraes Silva. Op.cit.

58 ―Agronegócio multiplica favelas e prisões‖. http://www.brasildefato.com.br/node/773

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3. Movimentos sociais e Reforma Agrária

Enquanto a absorção da agricultura pelo sistema industrial gera desemprego e

miséria urbana, os agricultores que permanecem produzindo são cercados pelas

monoculturas e têm suas opções reduzidas, como no caso da dependência em relação ao

mercado de sementes e equipamentos. As grandes propriedades impõem determinados

produtos e uma escala de produção que avança sobre o espaço das iniciativas

autônomas. Essa pressão duplamente negativa da modernização capitalista do campo

colocou os movimentos sociais de trabalhadores rurais em uma posição defensiva.

Desde o início do governo Lula, agravou-se a concentração de terras, de renda e

de poder no campo brasileiro. Isso significa que o modelo agrário continua a produzir

trabalhadores ―sem-terra‖.59 No entanto, a quantidade de novos assentamentos

diminuiu em relação aos governos anteriores. Na última década, não só as populações

continuaram a ser expulsas de suas terras, mas houve um aumento da violência no

campo causada pelas expectativas em torno da vitoria de Lula em 2002. O mesmo fator

subjetivo que serviu para ampliar a mobilização popular, também provocou um

aumento do temor dos ruralistas quanto a uma possível política distributivista no

campo. Lula atuou como mediador dos conflitos e – em contraposição ao período

anterior – o diálogo com os movimentos sociais foi ampliado. Mas, ao mesmo tempo em

que reconhecia a legitimidade da luta pela reforma agrária, o governo se articulava para

atender reivindicações dos grandes produtores. Nesse aspecto, o ―capital político‖ do PT

junto aos movimentos populares foi bastante vantajoso para os representantes da

modernização capitalista do setor agropecuário. Enquanto concentrava sua política de

distribuição de terras na Amazônia Legal – para não realizar desapropriações nas áreas

de concentração do agronegócio -, o governo liberava áreas de propriedade do INCRA

para a produção intensiva de soja em várias cidades do Mato Grosso e Rondônia. A

atitude complacente em relação à ―grilagem‖ das terras mostra que ―a política de

59 Defensores do governo, como o já citado W. Pomar, reconhecem que ―continua ocorrendo um constante

e perverso processo de expropriação dos lavradores proprietários. Eles vêm perdendo seus imóveis, em virtude de dívidas bancárias e outros motivos, numa média de 100 mil a cada ano. Se aceitarmos que o governo assentou, entre 2002 e 2007, cerca de 350 mil sem-terra em novas propriedades, isso significa que, ao invés de diminuir, o número de sem-terra aumentou, nesse mesmo período, em cerca de 150 mil. Essa situação tende a enfraquecer a possibilidade de um abastecimento seguro de alimentos para o mercado interno brasileiro‖. Wladimir Pomar, op.cit, p. 124.

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reforma agrária do governo Lula está marcada por dois princípios: não fazê-la nas áreas

de domínio do agronegócio e, fazê-la nas áreas onde ela possa ‗ajudar‘ o agronegócio‖.60

Na Amazônia Legal a questão da ―grilagem‖ é ainda mais complexa e se confunde com

as ―parcerias‖ que transformam assentamentos de reforma agrária em apêndices da

indústria madeireira. Aqui a postura do governo foi muito além da permissividade: seu

objetivo era ―legalizar a grilagem de mais de 182 milhões de hectares de terras públicas e

devolutas, constitucionalmente da reforma agrária, dos povos indígenas, dos

remanescentes de quilombolas e da proteção ambiental‖.61 Desse modo, uma ―reforma

agrária‖ reduzida à colonização de terras baratas foi colocada a serviço do agronegócio,

como também ocorre na relação entre os assentamentos rurais do Oeste paulista e os

usineiros da cana-de-açúcar, igualmente sob a forma de ―parcerias‖, para a produção do

biodiesel. Seguindo essa orientação, o Ministério do Desenvolvimento Agrário criou

linhas de financiamento idênticas para projetos agroflorestais de assentamentos rurais

com eucaliptos. A integração aos complexos agroindustriais ―continua a fomentar o

drama vivido pelas famílias, ocasionando distorção das perspectivas de cooperação

comunitária, imposição de valores competitivos e danos ambientais‖.62 Esse tipo de

política, que tem dividido o Movimento dos Sem-Terra (MST), elimina as práticas de

diversidade de culturas e constrange os assentados a se tornarem fornecedores de

matéria-prima para as fábricas e usinas ou a ceder parcelas de seus lotes para as

empresas encarregadas da produção.

Outra iniciativa do governo Lula, que figura entre as suas ―grandes realizações‖,

embora inacabada, é a chamada ―transposição‖ do Rio São Francisco. Na realidade, o

projeto consiste na integração desse rio que avança pelo semi-árido em direção às bacias

hidrográficas do Nordeste Setentrional. A obra, com centenas de quilômetros de canais

para a irrigação, contém todos os traços dos projetos faraônicos da era

desenvolvimentista e só é comparável, em termos de impacto ambiental, à construção

60 Ariovaldo Umbelino de Oliveira. ―Lula dá adeus à Reforma Agrária‖.

http://www.mst.org.br/node/6375 61 Ariovaldo Umbelino de Oliveira.―A questão agrária no Brasil: não reforma e contrarreforma agrária no

governo Lula‖. In Os anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 316.

62 Vera Lucia Silveira Botta Ferrante e Luís Antonio Barone. ―‗Parcerias‘ com a cana-de-açúcar: tensões e contradições no desenvolvimento das experiências de assentamentos rurais em São Paulo‖. Sociologias, vol.13, n. 26, Porto Alegre, 2011.

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de grandes barragens. Ao seu modo, ela também indica a falta de compromisso com a

Reforma Agrária: ao invés de apostar nas obras de pequeno e médio porte, a baixo custo

e sem impactos significativos, como o projeto P1MC de captação de água das chuvas, o

governo optou pelos interesses das construtoras e das grandes monoculturas que já

começaram a se desenvolver na região.63 Na Bahia, também governada pelo PT, onde a

irrigação começou a funcionar, ficou evidente o porquê da grandiosidade do projeto:

trata-se de viabilizar a escala da produção do agronegócio, beneficiando aqueles que

concentram a propriedade da terra, mesmo com os custos sociais e ambientais

implicados nessa alternativa. Desse modo, foi possível criar uma sólida base de

sustentação política, sem ameaçar as estruturas locais de poder.

Tudo isso nos coloca diante do problema da pobreza no campo. Se as populações

das áreas cobiçadas pela agroindústria capitalista continuam a ser deslocadas e se não

há disposição de modificar a estrutura fundiária nem mesmo das regiões mais

―atrasadas‖ em termos econômicos, antes se optando por transformá-las, através do

investimento estatal, em novas áreas de alta produtividade reservadas aos grandes

produtores, resta saber como gerir a miséria rural e urbana provocada por esse modelo.

Como se sabe, a principal resposta do governo foi a adoção dos programas de

transferência direta de renda para famílias em situação de extrema pobreza,

principalmente nas áreas de concentração do agronegócio voltado para a exportação.

Com 11 milhões de famílias assistidas, o ―Bolsa Família‖ – nascido no interior do

programa Fome Zero – está enfraquecendo as bases da luta pela reforma agrária, que

são recrutadas nas zonas rurais e nas periferias pobres das cidades. Depois da

implantação dos programas sociais de renda mínima, o número de acampados que

permanecem mobilizados caiu para menos da metade. Hoje o MST conta com cerca de

80 mil famílias acampadas, além do vínculo com centenas de milhares de assentados

63 O projeto P1MC foi iniciado em 2003 com financiamento do governo federal. Criado por uma rede de

organizações da sociedade civil que atuam na região do semiárido, ele estimula a participação da comunidade em um esquema descentralizado de mutirão para a construção das cisternas familiares e capacitação da população envolvida para a gestão dos recursos hídricos. Inicialmente, o governo visava a criação de 1 milhão de cisternas de placas de cimento. Em dez anos, foram construídas mais de 400 mil. Ao longo desse período, o atraso no repasse de recursos foi frequente e o projeto sofreu mudanças significativas, quando o Ministério da Integração Nacional privilegiou a compra de cisternas de plástico polietileno, material que se degrada com facilidade e duplica os custos do programa, sem falar na interrupção do processo de participação das famílias locais e na burocratização do processo de instalação, o que beneficia apenas os novos fornecedores.

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distribuídos pelo território nacional. Sua base social é constituída por famílias pobres

que não possuíam alternativa imediata de sobrevivência a não ser a ocupação de terras.

É comum a afirmação de que não existe relação direta entre a diminuição

continuada do número de ocupações e o ―Bolsa Família‖, como se essa redução se

devesse mais ao apoio dos movimentos sociais ao governo do que à desmobilização no

campo. No entanto, a própria Direção Nacional do MST assegura que esse tipo de

política tende a gerar apatia e acomodação nas famílias assistidas.64 É nas regiões que

concentram a porção mais carente da população rural que se estabelece com mais força

a relação entre pobreza e sujeição aos governos locais. Em tais circunstâncias, os

programas de transferência direta de dinheiro tendem a se perpetuar, forjando novas

relações de dependência.

A origem das lutas sociais protagonizadas pelo MST remonta ao final da ditadura

militar. A estratégia usada pelo governo para acabar com a guerra pela posse de terras

foi esvaziar o conflito através da colonização de áreas remotas. Esses projetos atraíram

trabalhadores rurais oriundos, em sua maioria, da região do semi-árido, que passaram a

viver das atividades temporárias disponíveis na nova fronteira agrícola. Nos anos 1980,

o ressurgimento da mobilização popular no campo – uma parte essencial da

―redemocratização‖ – evidenciava o fracasso do tipo de colonização incentivado pelo

governo. A maior parte dos trabalhadores que começavam a se organizar era formada

por ―posseiros‖ expulsos das terras por milícias rurais a serviço dos proprietários ou

simplesmente era composta por pessoas ―deslocadas‖ pelos projetos estatais de

construção de barragens. Tanto a colonização quanto o processo de militarização do

conflito, no início dos anos 1980, eram formas de contornar o problema da propriedade:

―em nenhum país do mundo titulou-se tantas vezes o mesmo pedaço de terra. A julgar

pelas escrituras registradas nos cartórios, a extensão territorial do Brasil está muito

acima dos 8 milhões de quilômetros quadrados estabelecidos pelos acordos

internacionais desde os tempos da colônia‖.65 Diante desse quadro, confrontaram-se no

campo brasileiro os proprietários apoiados em documentos falsificados e um ―explosivo

exército de agricultores sem-terra, estimado hoje em mais de 9,5 milhões de famílias‖.66

64 ―Stédile vê contra-reforma agrária no país‖. Estado de São Paulo, 27 fev., 2008. 65 ―A ordem subvertida‖. Veja, 13 de fevereiro de 1980, p. 22. 66 Ibidem, p. 23.

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O outro lado do conflito era a disputa judicial entre grandes proprietários: ―a indefinição

da propriedade gerou o comércio em larga escala de títulos de posse obtidos pelos mais

variados expedientes. Estabelece-se uma espécie de corrida, geralmente entre os

grandes e médios proprietários, na disputa por um mesmo lote: cada um aposta na

validade de seu papel, muitas vezes auxiliado por ‗forças de persuasão‘ formadas

sobretudo por jagunços e autoridades locais sensíveis ao suborno‖.67

Com o tempo, a pacificação das disputas no interior das elites rurais fez com que

as atenções se voltassem para o MST, que durante toda a década de 1990, período

marcado pela crise do sindicalismo, atuou como uma espécie de vanguarda dos

movimentos sociais.68 No período em questão, os movimentos ―camponeses‖

pressionaram os governos e conseguiram arrancar algumas conquistas, angariando

ampla base social. De qualquer forma, a maior parte dos assentamentos rurais que

resultaram da mobilização popular foi feita em lugares de difícil acesso e sem assistência

técnica adequada. Isto porque a distribuição de terras, além de insuficiente, foi apenas

um meio para evitar os conflitos e não uma reforma da estrutura agrária que ampliasse

a viabilidade econômica da agricultura familiar.

Levando em consideração os novos assentamentos e o modo de lidar com as

alternativas populares ao agronegócio, pode-se dizer que, num primeiro momento, o

governo Lula apenas deu continuidade ao programa ―residual‖ da reforma agrária

iniciado com o governo de F. H. Cardoso. Em 2003, já era possível constatar a falta de

iniciativa política em relação à reforma. As primeiras reivindicações do MST frente ao

novo governo, sempre identificado como aliado, diziam respeito à necessidade de

reestruturação do INCRA e à redefinição dos critérios de desapropriação das terras. Ao

mesmo tempo, o movimento estimulou a ampliação dos acampamentos na beira das

estradas como forma pacífica de pressão. Em janeiro de 2004, foi estabelecido como

meta o assentamento de mais de 10 mil famílias por mês. No entanto, as metas não

foram cumpridas. O governo fechou 2003 com apenas 14 mil famílias assentadas. Em

parte, a responsabilidade por esses números coube à política de superávit do ministério

67 Idem. 68 Não se pode esquecer que ―... a década de 1990 foi marcada por altos índices de violência contra os

camponeses. De acordo com a CPT, houve 197 assassinatos de sem-terra entre 1997 e 2002 por milícias financiadas por fazendeiros‖. João Alexandre Peschanski. ―A construção do socialismo sem-terra‖. Margem Esquerda Ŕ ensaios marxistas, número 11. Boitempo Editorial, 2008, p. 126.

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da Fazenda, que não liberou recursos. A partir da elaboração do novo PNRA, negociado

com os movimentos e o núcleo de gestores da política econômica, com estes defendendo

metas muito mais modestas, ficou estabelecido um novo objetivo: 400 mil famílias entre

2004 e 2006. Novamente, os números ficaram abaixo do esperado.69 Além disso, o

desrespeito sistemático às leis trabalhistas e ambientais continuou a ocorrer sem que o

governo assumisse uma postura firme para regular as relações no campo. As iniciativas

pareciam se concentrar todas na redução da situação de miséria, que atingia

preferencialmente um segmento desmobilizado da população. De acordo com João

Pedro Stédile, essa massa era composta por mais de quatro milhões de sem-terras,

muito pobres e ―pulverizados‖ nas fazendas do Nordeste e do Sul.70 Logo as ações de

combate à pobreza alcançaram a base social dos movimentos ou os segmentos que ainda

poderiam se organizar. As famílias acampadas nas estradas ou dispersas em áreas

afastadas dos centros urbanos foram cadastradas e passaram a receber cestas básicas.

Em muitas zonas rurais, o ―Bolsa Família‖ se tornou a principal fonte de renda. Diante

desse quadro, o MST assumiu uma posição de defesa das políticas públicas

emergenciais, mas não deixou de caracterizá-las como práticas assistencialistas. Um

comunicado da Secretaria Nacional do Movimento sobre a política de transferência de

renda afirma que ―a solução para os trabalhadores rurais é a realização de uma Reforma

Agrária Popular e um programa de agroindústrias em todas as cooperativas de

assentamentos, para garantir a produção de alimentos para toda a população e a

geração de renda para as famílias assentadas‖.71

Na concepção do MST, a reforma agrária é uma alternativa de desenvolvimento

nacional e não um instrumento compensatório ou uma luta corporativa dos

trabalhadores rurais. As lideranças do MST avaliavam que o maior empecilho às

mudanças estruturais no campo durante o governo Lula era a política econômica,

69 Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira, ―os resultados finais do II PNRA indicam que (...) havia apenas

163 mil famílias referentes aos assentamentos novos‖. Quanto à regularização fundiária, os números ficaram ainda mais distantes das metas negociadas. Para Umbelino, o não cumprimento das metas foi uma política deliberada do MDA/INCRA. Outros setores do governo, especialmente a equipe econômica, ligada ao modelo do agronegócio, pretendia limitar ainda mais os recursos e o número de famílias. Op.cit, p. 308. Sobre os números da ―reforma agrária‖ nos primeiros anos do governo Lula ver também Frei Betto, ―O calendário do poder‖, Rio de Janeiro, Rocco, 2007, pp. 368 e 505.

70 ―Sociedade em crise‖. Entrevista aos jornalistas Luiz Gonzaga Belluzzo, Mino Carta e Sergio Lirio. Carta Capital, São Paulo, 21 de set., 2005.

71 MST. ―Posição sobre a inclusão de acampados no Bolsa Família‖. 6 jul., 2009. Disponível em http://www.mst.org.br/node/6873

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sempre caracterizada como ―neoliberal‖. Ao longo do primeiro mandato do presidente

Lula, os movimentos criticaram a composição das alianças políticas do PT e

continuaram a reivindicar um projeto de desenvolvimento com distribuição de renda e

formação de mercado interno. Esse projeto, apresentado como um contraponto à

―hegemonia conservadora‖ no governo, se baseava no pensamento desenvolvimentista

latino-americano das décadas de 1950-60. Em resumo, o que estava em questão não era

apenas a reivindicação de mais recursos para os assentamentos, mas um projeto

nacional com uma clara compreensão do antagonismo entre a situação periférica do

Brasil na economia mundial e a perspectiva da reforma agrária. Do ponto de vista do

MST, essa compreensão exigia outro modelo de organização da produção: ―O governo

precisaria pensar uma política mais estável, que de fato priorize a organização de toda a

produção agrícola, baseada na pequena e media agricultura. Os grandes produtores,

auto-suficientes no agronegócio, que se virassem no mercado‖.72 A reivindicação de uma

política orientada para os pequenos e médios produtores, aliada à luta contra os

transgênicos, constituía um projeto em defesa da ―segurança alimentar‖ ameaçada pelo

latifúndio e pelo agrocapitalismo global. Mas, ao contrário das expectativas dos

movimentos sociais, o governo agia primordialmente em favor dos grandes

proprietários e do capital transnacional. Também as desapropriações foram caindo ano

após ano: ―Em 2007, o total desapropriado foi pífio: apenas 107 mil hectares, sem

contar outros 166 mil hectares referentes a processos concluídos em dezembro. Ainda

assim, muito aquém dos 555 mil de 2006, ou dos 977 mil de 2005‖.73 Em 2008, o

número de famílias assentadas foi ainda menor em comparação com o ano anterior.74

No segundo mandato, era grande o descontentamento dos movimentos aliados

face às posições do governo na questão agrária. Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira, ―o

MST detectou corretamente que o governo atual apóia o agronegócio‖.75 As lideranças

do movimento reconheciam que, no governo Lula, a reforma agrária havia saído da

72 Entrevista com J. P. Stedile. ―A crise na agricultura brasileira‖. http://www.mst.org.br/node/1865 73 Phydia de Athayde e Rodrigo Martins. ―Por que não anda a Reforma Agrária?‖ Carta Capital. 31 jan.,

2008. 74 ―Número de famílias assentadas cai 68% em comparação a 2007‖. O ESTADO DE SÃO PAULO. 18 nov.,

2008. 75 Ariovaldo Umbelino Oliveira. ―Sem enfrentamento, não há Reforma Agrária‖. Correio da Cidadania. 23

mai, 2007.

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pauta. No entanto, essa conclusão não foi suficiente para que retirassem seu apoio ao

governo. Essa contradição pode ser explicada em função da conjuntura de crescimento

do emprego e da renda, verificada a partir de 2006. O período de crescimento foi

interpretado pela maioria da Direção Nacional do MST, bem como pela maior parte da

esquerda brasileira, como sendo produto de uma postura ―neodesenvolvimentista‖

adotada pelo governo – ainda que não fique claro no discurso dessas lideranças em qual

momento se deu a alegada ruptura com o ―neoliberalismo‖. Na avaliação do MST, o

fortalecimento do agronegócio decorre das alianças conservadoras as quais o PT se

submeteu. A ―composição de classe‖ do governo (fala-se com frequência do ―apoio de

uma fração da burguesia‖) forçou sua ala progressista a rejeitar o modelo de agricultura

baseado na pequena e na média propriedade. O caráter ―pós-neoliberal‖ atribuído por

um segmento da esquerda à administração petista se deve a uma política de recuperação

dos investimentos estatais nos setores produtivos e aos programas de transferência de

renda. Assim, nos últimos anos, várias lideranças do MST substituíram a crítica do

modelo econômico por uma crítica mais localizada do modelo agrícola vigente. Para

esses críticos, a conjuntura inaugurada em 2006 – e de forma ainda mais evidente

durante a crise financeira de 2008 – seria marcada pela contradição entre a orientação

geral ―neodesenvolvimentista‖ e um modelo agrícola de caráter conservador. O limite

dessa crítica é dúplice: para além das interpretações acerca de um desenvolvimento

distributivista, o caso é que a expansão da economia encontra no agronegócio

exportador um dos seus pilares, de modo que não é possível separá-los como se

houvesse mais antagonismo do que convergência entre o investimento estatal

―produtivo‖ e a exportação de commodities. Pode-se dizer até mesmo que o modelo em

questão foi pensado a partir da vinculação com a plataforma exportadora do

agronegócio e não ―apesar‖ dela. Outro limite desse tipo de avaliação é a oposição entre

capital produtivo e capital financeiro (expressão que, na maioria das vezes, pretende

designar o rentismo e a especulação), tendo em vista que o assim chamado

―neodesenvolvimentismo‖ se baseia na dilatação do crédito ao consumo, o que converte

em ideologia a pregação em nome dos setores ―produtivos‖ contra o capital que rende

juros. É verdade que essa crítica limitada aos mecanismos de financiamento se deve às

dificuldades de aquisição de crédito por parte dos pequenos produtores, que tem menor

capacidade de investimento. Nesse sentido, ela não deixa de refletir um problema real,

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ainda que de forma truncada. Podemos acrescentar que, em tese, a ―reforma agrária

popular‖ defendida por figuras representativas como J. P. Stédile não está muito

distante das especulações de W. Pomar sobre o desenvolvimento do capitalismo

nacional – com a diferença de que este empurra o problema da socialização para um

futuro distante, numa conjuntura puramente imaginária, enquanto, aqui e agora, a

propriedade capitalista da terra destrói as bases da sobrevivência dos pobres do campo.

Já os ideólogos do MST não podem passar ao largo dos problemas imediatos da

população rural. Por isso, o discurso pró-desenvolvimento entra em contradição com as

demandas do movimento.76 Enquanto os governos encabeçados pelo PT se apóiam no

latifúndio exportador e executam as políticas sociais idealizadas pelos representantes

deste setor, os movimentos sociais – com o MST à frente – continuam a defender a

bandeira da modificação das estruturas agrária e fundiária visando a redução dos custos

dos alimentos e a proteção de rios e florestas. Também aqui uma posição coerente de

defesa da segurança alimentar, do cooperativismo e da viabilidade sócio-ambiental da

agricultura só pode conduzir à crítica do modelo de ―desenvolvimento‖ atual. 77

O crescimento das monoculturas de exportação pode ser comparado a um ―novo

ciclo‖ – ainda que efêmero – da economia brasileira. Seu impacto sobre a estrutura

social é literalmente devastador. A mistura de concentração da propriedade e

mecanização intensiva resulta obrigatoriamente na expulsão da mão-de-obra do campo,

76 Para os movimentos o resultado da administração petista da crise foi a desmobilização. Como destaca Raúl Zibechi, ―na década de governo do PT os conflitos pela terra não diminuíram, mas o primeiro escalão da organização (do MST), os acampamentos, tiveram um claro retrocesso. De 285 em 2003, ano da chegada de Lula ao governo, caíram para um mínimo de 13 acampamentos em 2012‖. Cf. ―El fin del consenso lulista‖. http://gara.naiz.eus/paperezkoa/20130707/411971/es/El-fin-consenso-lulista. Em entrevista recente, Gilmar Mauro, dirigente do MST, afirma que o governo Dilma só se compara, em termos de desapropriações de terras e políticas de assentamento, ao período militar. O movimento foi empurrado para uma posição ainda mais defensiva: as políticas sociais que, no período Lula, ainda eram criticadas como desmobilizadoras, tornaram-se a única referência ―positiva‖ do governo Dilma. ―O governo Dilma não fez nada em termos de reforma agrária‖. Entrevista a Piero Locatelli. Carta Capital, São Paulo, 10 de fev., 2014.

77 De qualquer forma, o modelo petista já apresenta limites evidentes, decorrentes do fim do período de crescimento econômico. Não é só nos grandes centros urbanos que surgem manifestações claras de descontentamento. A crise do breve ciclo extrativista atingiu vários setores do complexo agroindustrial – alguns deles, como o festejado setor sucroalcooleiro, tornaram-se deficitários. A crise do modelo baseado na demanda externa por produtos primários redefiniu os alinhamentos políticos nas regiões de concentração do agronegócio: enquanto a fronteira agrícola, mais dependente de crédito governamental e infraestrutura, preserva aliança com o governo, os setores consolidados, nos estados mais ao sul (São Paulo, Paraná, partes de Minas Gerais e Goiás, etc.), transformam-se em importantes redutos de oposição ao pacto lulista.

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isto é, na ampliação do número de pessoas ―sem-terra‖ e sem emprego. É um

crescimento sem desenvolvimento. No entanto, assistimos durante a última década ao

esvaziamento do debate sobre a reforma agrária e a restauração oportunista da tese da

vocação agrícola do Brasil. Muitos sustentam que a reforma agrária envelheceu, que não

cabe mais distribuir a terra, mas garantir uma condição digna para os agricultores que

permanecem ―com terra‖. Argumenta-se que novos assentamentos estariam fadados ao

fracasso econômico e que nem mesmo o número crescente de famílias expulsas do

campo justifica uma mudança de rumo. Ao mesmo tempo, o agronegócio – por maiores

que sejam as catástrofes sócio-ambientais que ele engendra – foi elevado à condição de

modelo. O ex-presidente Lula tratou os usineiros do setor sucroalcooleiro como

―heróis‖, enquanto Roberto Rodrigues apresenta os grandes produtores do Cerrado

como exemplo de sustentabilidade e uma senadora ruralista se vangloria da produção de

alimentos envenenados para a população de baixa renda. Ainda mais arrebatado é o

elogio que se pode ler na página da Embrapa, segundo o qual a soja é responsável por

nada menos que a implantação de uma ―nova civilização no Brasil Central‖.78

O desafio imediato para os movimentos sociais e para o pensamento de esquerda

é recolocar em pauta o sentido da produção e o combate à concentração de poder,

contra a ideia de que é possível ampliar indefinidamente – e com efeitos colaterais

desastrosos – a produtividade agroindustrial. Se os assentamentos rurais não se

desenvolvem por falta de investimento em uma cadeia alternativa de produção, isso

pode apenas significar que eles não serão integrados nos termos atuais e

consequentemente a pauta da reforma agrária se mantém viva. Além do mais, a

distribuição de terras pode ser considerada, por si só, desconcentração de poder. Trata-

se apenas de um primeiro passo para mudar a relação entre produção e consumo – e a

própria relação cidade-campo. Não se pode imaginar a criação de novas estruturas de

organização da produção agrícola, e o controle das suas etapas e da tecnologia

empregada, bem como a integração do cultivo do solo a outras esferas da vida social,

78 Cegos aos efeitos dessa ―nova civilização‖, aqueles que protestam contra as ―utopias distributivistas‖

são, para usarmos uma expressão de Günther Anders, ―utopistas invertidos‖. ―O dilema básico de nossa era é que ‗somos menores do que nós mesmos‘, incapazes de realizar mentalmente as realidades que nós mesmos produzimos. Portanto, podemos chamar a nós mesmos de ‗Utopistas invertidos‘: enquanto os Utopistas comuns são incapazes de produzir de fato o que são capazes de imaginar, nós somos incapazes de imaginar o que estamos de fato produzindo‖. Günther Anders, ―Teses para a Era Atômica‖. Sopro, n. 87, abr., 2013.

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sem que esse passo seja dado. Só assim será possível pensar um projeto agrícola voltado

para as necessidades sociais ao invés do mercado. Não é o caso de incorporar a

produção familiar aos segmentos produtivos, mas de fortalecer o seu papel na

reprodução social, ainda que ela permaneça secundária em termos econômicos. Esse

tipo de ―socialização‖ nada tem a ver com uma simples eliminação da propriedade

jurídica da terra na qual os produtores continuam dependendo do Estado para se

apropriar dos recursos. O que está em questão é a subordinação da produção a uma

racionalidade diferente, baseada na cooperação e na sensibilidade ambiental, ou seja,

num novo modo de conviver e produzir.

(Nov. 2013)

Post-scriptum

Os governos liderados pelo PT não apenas apoiaram poluidores, desmatadores e

adeptos do trabalho forçado, mas durante vários anos converteram essas práticas em

um ―modelo de sucesso‖. Agora, é com grande indignação que uma parte da esquerda

reage à nomeação de Kátia Abreu para o novo ministério. A senadora que mudou de

partido duas vezes para permanecer no palanque de Dilma representa uma facção do

agronegócio concentrada nas áreas de expansão da fronteira agrícola. Trata-se de um

segmento mais dependente dos recursos estatais do que os setores mais consolidados no

Centro-Sul. É difícil imaginar uma figura política que represente melhor o conjunto de

catástrofes produzidas pelo modelo agroexportador. Além disso, nas últimas eleições, o

peso político da facção liderada por Kátia Abreu foi certamente maior que o do ―voto

crítico‖ de esquerda. O que chamam de traição é apenas coerência.

(Jan. 2015)

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SOCIALISMO OU BARBÁRIE?

Daniel Cunha

Quem possui cópias da revista francesa Socialisme ou Barbarie deveria guardá-

las para a posteridade como registro histórico.1 Houve uma época na qual a esquerda

não tinha dúvidas sobre a escolha correta. Os debates e opiniões imediatamente

posteriores ao atentado terrorista à redação do Charlie Hebdo na França, porém,

mostram que em segmentos da esquerda militante brasileira atual, não se tem muita

clareza sobre que posição tomar. Aqui não nos referimos à esquerda mais

institucionalizada – PSOL, PSTU e PCB de uma ou outra forma se manifestaram contra

o terrorismo – mas principalmente àqueles que se identificam com o paradigma do pós-

modernismo e da ―multidão‖.

Muitas reações imediatas ao ocorrido foram de relativização – tentativas de

explicar e justificar o ocorrido a partir da crítica da obra dos caricaturistas assassinados.

Como se houvesse alguma maneira de justificar ou relativizar o feito a partir de algumas

caricaturas, quaisquer que fossem. Diante da cena do horror ensanguentado, buscou-se

explicações nas atitudes das vítimas, e não dos assassinos. O outro lado da mesma

moeda foi o chauvinismo: ―e as nossas vítimas?‖, ―sou Amarildô‖, etc. Publicaram-se

capas da revista fora de contexto e cheias de acusações, antes mesmo dos corpos dos

assassinados esfriarem. Aqui parece que emergiu uma espécie de ressentimento

culpabilizador de esquerda que merece estudos mais profundos. Žižek falou em

sentimento de culpa de esquerdistas liberais ocidentais: ―para estes falsos esquerdistas,

qualquer crítica ao Islã é rechaçada como expressão da islamofobia ocidental: Salman

Rushdie foi acusado de ter provocado desnecessariamente os muçulmanos, e é portanto

responsável (ao menos em parte) pelo fatwa que o condenou à morte.‖2

Mas qual a forma política dessa relativização e desse chauvinismo, da perda dos

1 Inspiro-me aqui em observação de Leo Vinicius. 2 Slavoj ŽIŽEK (2014), Pensar o atentado ao Charlie Hebdo, disponível em

http://blogdaboitempo.com.br/2015/01/12/zizek-pensar-o-atentado-ao-charlie-hebdo/

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princípios básicos de solidariedade da esquerda internacionalista, ou até mesmo da

orientação da solidariedade em direção aos assassinos fanáticos? Aqui é preciso voltar-

se para a ascensão do pós-modernismo e das políticas identitárias. Se não há princípios

universais, então a ―identidade‖ islâmica tem tanta legitimidade quanto a ―identidade‖

francesa, e sendo a primeira a parte ―oprimida‖, o excesso de horror por parte desta está

legitimado. Assim, a política identitária e o pós-modernismo levam a esquerda ao

pântano da simpatia pelo jihadismo, sem perceber que ele é o outro lado da moeda do

liberalismo, tanto quanto o fascismo ocidental. Não por acaso, o discurso de Le Pen e

dos pós-modernos sobre o corpo ensanguentado dos cartunistas foi formalmente

similar: enquanto os multiculturalistas os chamavam de ―racistas‖ e ―xenófobos‖, Le Pen

os acusava de ―anarco-trotskistas‖.3 Condenar com firmeza a atrocidade dos

fundamentalistas, para pós-modernos identitários, seria dar armas à xenofobia de Le

Pen. Tratam como incapazes e objetivam, assim, os próprios muçulmanos que querem

defender, como se todos eles tivessem o impulso irresistível de metralhar pessoas

quando veem uma caricatura de Maomé à sua frente. Não percebem que o que reforça a

xenofobia é, pelo contrário, a relativização da barbárie fundamentalista. Não percebem

que a identidade nacional ocidental e a identidade islâmica fundamentalista se reforçam

mutuamente, são os extremos de uma mesma constelação, cujo centro de gravidade é o

multiculturalismo liberal.

A face patética dessa esquerda desorientada em nosso país é que a solidariedade

e a defesa dos valores universais foram deixadas à trupe da Veja que, obviamente, as

apresentou com cores fortemente conservadoras e direitistas, mas ocupou o vácuo

deixado pela esquerda. A face trágica é que não perceberam que os assassinados eram

da esquerda. Os cartunistas do Charlie Hebdo são conhecidos na França como

esquerdistas que articulam o anticlericalismo, a iconoclastia e a polêmica – valores

caros à esquerda iluminista e libertária, ainda que tenham perdido a força crítica no

capitalismo avançado e certamente não agrade a todos. Opunham-se ao racismo, ao

fascismo, ao imperialismo francês. Recentemente haviam participado em um álbum em

homenagem a argelinos assassinados pela polícia francesa nos anos 60. E se não

3 Sobre a posição de LE PEN, ver http://www.publico.pt/mundo/noticia/lamento-mas-eu-nao-sou-

charlie-hebdo-declara-jeanmarie-le-pen-1681784

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poupavam a própria esquerda quando essa fazia papel ridículo, isto não os torna menos

esquerdistas, muito pelo contrário.4

A vacuidade teórica do pós-modernismo não lhe permite ver que a raiz tanto do

fascismo ocidental quanto do islâmico é a economia política. Quando, no contexto da

crise da valorização capitalista, simultaneamente nativos europeus perdem direitos em

programas de ―austeridade‖ e imigrantes são usados como exércitos de reserva para

baratear a força de trabalho, está feito o barril de pólvora nos países do Centro para o

surgimento de coisas como a Frente Nacional na França e o PEGIDA na Alemanha, e a

chance de detonação é tanto maior quanto mais fraca e desorientada for a esquerda.5 Na

periferia sem perspectiva do capitalismo (com financiamento de países do Centro)

floresce a outra face da mesma moeda, as verdadeiras empresas da morte que atendem

pelos nomes de Estado Islâmico, Boko Haram e outros, um novo tipo de fascismo

clerical globalizado, bem financiado e altamente profissionalizado.6 Ao mesmo tempo, a

experiência do PYD em Rojava, um enclave libertário, secular, internacionalista e

feminista em pleno Oriente Médio, é solenemente ignorada por essa esquerda

particularista que, ao que parece, assumiu que a ―revolução é impossível‖ e prefere o

irracionalismo da jihad e a defesa da cultura da burka.7 As comunidades curdas não

titubearam, chamando os terroristas de fascistas e pedindo solidariedade internacional

contra o terrorismo islâmico.8 Já a falta de critérios do multiculturalismo teve o seu

desfecho lógico.

A tragédia histórica para a esquerda consiste no fato que o islamismo integrista

chegou ao poder após a derrocada do socialismo real, que, por mais que tenha revertido

a um capitalismo de estado, garantia as condições da laicidade na vida social. Esses

grupos integristas colocaram a enorme regressão nos países do norte da África e do

Oriente Médio na conta do ―mundo ocidental‖, de forma ―concretamente‖ redutora, e

4 Cf., por exemplo, o relato de Michel LÖWY na entrevista ―Quem por último‖, O Estado de São Paulo,

10.01.2015. Disponível em http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,quem-ri-por-ultimo,1617840 5 Sobre o PEGIDA, ver o texto de Tomasz Konicz nesta edição da Sinal de Menos. 6 Sobre o novo fascismo islâmico globalizado, ver Tomas KONICZ, Barbárie globalizada: uma tentativa

de entender o fenômeno do Estado Islâmico. Disponível em http://o-beco-pt.blogspot.com.br/2014/10/tomasz-konicz-barbarie-globalizada.html

7 Sobre Rojava, ver o artigo de David GRAEBER, Porque é que o mundo ignora os revolucionários curdos na Síria? Disponível em http://www.esquerda.net/artigo/porque-e-que-o-mundo-ignora-os-revolucionarios-curdos-na-siria/34432.

8 Ver a nota das Comunidades Curdas: KCK Statement on the Paris Massacre, disponível em https://rojavareport.wordpress.com/2015/01/08/kck-statement-on-the-paris-massacre/

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não no sistema capitalista. Ironicamente, muitos desses ―antiocidentais‖ hoje vêm do

próprio Ocidente para somar-se às fileiras do Estado Islâmico, onde contribuem

inclusive para configurar a sua ―estética da crueldade‖ com as últimas técnicas do

Ocidente, da internet ao videoclipe profissional.9 O islamismo integrista é um fenômeno

moderno derivado da globalização do capitalismo de crise.10

Assim, a luta emancipatória é anticulturalista. O ponto de vista da liberação, sob

as condições do capitalismo globalizado, só pode ser o da desculturalização.11 Ou, como

diz John Holloway, ―proclamar uma identidade sem simultaneamente proclamar a sua

inadequação, dar a nós mesmos uma identidade sem simultaneamente afirmar que

existimos dentro-contra-e-mais-além desta identidade, significa fortalecer os muros da

prisão capitalista (...) Muito mais efetiva do que qualquer polícia secreta, a identidade é

a reprodução do capital dentro da luta anticapitalista‖.12

Que se deve combater o Estado policial e a xenofobia, não passa de obviedade de

ativistas. Mas que pós-modernos e identitários não sejam capazes de reconhecer o

fascismo em um assassinato coletivo covarde de cartunistas em seu local de criação por

um bando de fanáticos religiosos devido a alguns desenhos que não lhes agradam

denuncia a insuficiência teórica grave desse tipo de pensamento. Enquanto não houver

uma solidarização internacionalista, classista e secular de peso, não há chance de barrar

o processo de barbarização em curso e há grande chance de haver novos massacres

militares ocidentais no Oriente Médio, atingindo também inocentes. As retaliações aos

muçulmanos na França não demoraram a aparecer, inclusive na forma da defesa da

pena de morte e endurecimento contra os imigrantes, e o ―Je suis Charlie‖ em boa

medida se tornou uma espécie de ―coxinhismo‖ à francesa.

O irônico é que na relativização da barbárie e na culpabilização das vítimas do

atentado os pós-modernos tenham se encontrado com certos grupos de marxistas

ultraortodoxos e com o papa. Para o último, ―matar em nome de Deus é uma aberração.

9 Cf. Florian RÖTZER (2015), ―Ästhetik der Grausamkeit‖, Telepolis 17.01.2015. Disponível em

http://www.heise.de/tp/artikel/43/43886/1.html 10 Cf. Norbert TRENKLE (2015) Gottverdammt modern: warum der Islamismus nicht aus der Religion

erklärt werden kann. Disponível em http://www.krisis.org/2015/gottverdammt-modern 11 Cf. Ernst LOHOFF (2006) ―Gott kriegt die Krise‖, Jungle World 39, 27.09.2006. Disponível em

http://jungle-world.com/artikel/2006/39/18275.html 12 John HOLLOWAY (2013) Fissurar o capitalismo, Trad. Daniel Cunha, São Paulo: Publisher, 2013, p.

110-1.

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117

Mas não também não podemos provocar nem insultar a fé dos outros.‖13 Para os

primeiros, ―a causa da violência é o imperialismo e não o fundamentalismo religioso.‖14

Talvez a falta de ―disciplina‖ do Charlie lhes fosse insuportável, o que se junta a uma

visão de mundo dualista petrificada da época da Guerra Fria: quem luta contra o poder

imperial de alguma forma está comigo, não importa o que faça.15

Hoje, Socialisme ou Barbarie talvez precisasse de um subtítulo explicativo ou ao

menos de uma nota de rodapé. A esquerda sem universalismo secular regride à

legitimação da barbárie. Contra os fascismos, é a bandeira vermelha que tem de ser

erguida.16

13 http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2015/01/16/interna_mundo,466733/papa-

francisco-diz-que-daria-um-soco-em-quem-ofendesse-sua-mae.shtml 14

http://lcligacomunista.blogspot.com.br/2015/01/declaracao-do-clqi-sobre-o-caso-charlie.html 15 Para um argumento elaborado nesse sentido, ver Moishe Postone, ―History and Helplessness: Mass

Mobilization and Contemporary Forms of Anticapitalism‖, Public Culture 18 (1): 93-110. Disponível em português em http://o-beco.planetaclix.pt/mpostone5.htm.

16 Como diz Alain Badiou, que, mesmo critico do Charlie Hebdo, não deixa de chamar o atentado de ―crime fascista‖. Ver Alain BADIOU, Le rouge et le tricolore, http://www.lemonde.fr/idees/article/2015/01/27/le-rouge-et-le-tricolore_4564083_3232.html. Disponível em português (com má tradução do título) em http://blogdaboitempo.com.br/2015/02/04/o-vermelho-e-o-tricolor-alain-badiou-sobre-o-charlie-hebdo/

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118

A ESPUMA, A ONDA E O MAR DA REAÇÃO

Cruzando o fantasma autoritário brasileiro

Bob Klausen

―Custa muito ver que os vultos não são pedra mas sim gente. Esses vadios, meliantes, conspiradores, prostitutas, migrantes, trânsfugas de toda cor e marca, que em outro tempo Sua Excelência destinou àquele lugar, já não são mais gente tampouco, tem-se que desconfiar do que se vê. Vultos apenas. Não se movem, Senhor; ao menos não se movem com movimento de gente, e se por casualidade me equivoco, seu movimento há de ser mais lento que o da tartaruga‖. (Augusto Roa Bastos, Yo el Supremo)

1- Demorou mas a esquerda brasileira chegou a um consenso: há alguns anos

estamos sob o ataque da mais forte reação conservadora desde 1964.1 E é preciso

superar urgentemente diferenças internas para combater um inimigo de classe concreto,

embora difuso e com um momento fantasmático – nada menos que um imaginário

nacional autoritário, muito superior às nossas forças atuais.

2- O poder é por definição conservador e reprodutor do existente. No Brasil,

porém, como há muito observado pelos clássicos desde Machado de Assis, as estruturas

de poder são mais do que conservadoras (personalistas, patrimonialistas,

1 Ver as posições do MST, MTST, PCB, PSOL, PSTU e do sindicalismo (CUT, Conlutas, Intersindical etc.).

Cf. BOULOS, Guilherme. ―Sobre o 15 de março‖ e ―O pensamento coxinha‖ (ambos de 2015: http://controversia.com.br/15761 e http://controversia.com.br/15489); SAFATLE, Vladimir. ―Impeachment é pouco‖ (2015) e ―Escala F‖ (2012) (http://controversia.com.br/15000) ; IASI, Mauro. ―De onde vem o conservadorismo?‖ (2015) (http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/15/de-onde-vem-o-conservadorismo/) Acessos em 22.04.2015.

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territorialistas): são autoritárias e reacionárias até mostrarem eventualmente sua careta

ditatorial, fascista e exterminista. Isso, contudo, sem nunca perder a máscara do

liberalismo, da modernização, do nacionalismo, do moralismo, do cristianismo e do

familismo, encarnados socialmente pela autoproclamada ―gente de bem‖ ou ―gente

direita‖ (em que se ouve quase um ato falho: de bens e de direita).2 Seu telos

fantasmático é paralisar todo movimento social imanente do andar de baixo. Foi assim

em 64, na constelação oscilante de ―liberais conservadores, conservadores arcaicos,

liberais-internacionalistas, corporativistas-estatais, anticomunistas radicais‖, unificando

militares, empresariado nacional e internacional, classes médias urbanas, quadros

político-burocráticos e o imperialismo ianque.3 E está sendo assim após as Jornadas de

Junho4 e as eleições de 2014, conforme uma nova constelação de poder que inclui

funestamente um Partido que veio da esquerda.

3- Historicamente, seria válido dizer que as estruturas de poder no país foram

sitiadas – e que elas têm ―donos‖, estando voltadas apenas a manter os seus quadros

burocráticos, seu balcão de negócios e cargos, seus privilégios e a sua clientela. Uma tal

estrutura histórica tragou o Partido dos Trabalhadores, que por fim se lambuzou nesse

mar de lama e se entregou sem resistência a sua lógica mafiosa de pilhagem social,

servindo ao velho esquema da acumulação feroz, há muito conhecida na periferia. Um

2 Dentre a imensa bibliografia citável que move o nosso raciocínio, cf. em especial: SCHWARZ, Roberto.

Ao vencedor as batatas. São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades, 2000; Idem, Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973; FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005; FAORO, Raymundo. Os donos do poder. São Paulo: Publifolha, 2000, 2 vols. Além do bom resumo de: ARANTES, Paulo. Sentimento da dialética (na experiência intelectual brasileira). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

3 REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil. (Do golpe de 1964 à Constituição de 1988). Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 53; R. DREYFUSS, 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 2008.

4 Desde junho de 2013 uma onda conservadora havia prevalecido nas ruas e no clima cultural do país: ver os textos do Número especial de Sinal de Menos (2013): além da entrevista a Jungle World, os textos de Cláudio R. DUARTE, ―O gigante que acordou Ŕ ou o que resta da ditadura? Protofascismo, a doença senil do consevadorismo‖; Paulo MARQUES, ―A revolta e seu duplo‖; cf. também: Alexandre VASILENSKAS, ―O ovo da serpente nacional‖. Sinal de menos, nº 10, 2014.

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governo de ―ex-querda‖, sem mais nenhuma ―molécula de anticapitalismo‖5, que

terminou por terceirizar seu poder para as forças mais reacionárias do Brasil

oligárquico, latifundiário e burguês, em que o pequeno-burguês, real ou imaginário,

sonha em participar.

4- E assim também, ou pior, para as outras instâncias de governo. Em tudo, a

marca de uma verdadeira sociedade sem oposição, mais volúvel e ambígua do que a

diagnosticada por Marcuse na sociedade afluente americana: das câmaras de vereadores

municipais ao congresso nacional mais conservador das últimas décadas, passando

pelos governos estaduais com destaque para o Tucanistão paulista e para os consórcios

de saqueadores de Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro, com apoio maciço das

câmaras, do Judiciário, das polícias, da grande imprensa, das camadas médias. Depois

da curta ascensão da classe trabalhadora ao consumo via crédito, ganhos salariais reais,

incorporação de novos membros da família (em especial as mulheres) ao mercado de

trabalho, alguns programas sociais de inclusão, emprego formal e vários estímulos

estatais ao crescimento econômico, a porta finalmente vai se fechando até despedaçar o

mito da grande classe média.6 No rastilho da crise econômica aberta a partir de 2012-

2013, em que se vê a sombra dos machados da concorrência, do desemprego estrutural

(duplo: do capital e do trabalho) e da crise global numa era de emergência permanente,

o bloco conservador parece querer agora lacrar a porta do clube para sempre e encerrar

um pacto silencioso contra toda transformação qualitativa: uma espécie de

―contrarrevolução sem revolta‖, para parafrasear novamente o crítico alemão.

5- A atual cruzada contra a esquerda visa primeiramente a eliminar a

legitimidade e o poder de todo movimento social das classes subalternas e grupos

5 ―É totalmente vã a procura do sujeito antagônico clássico, pois seu apodrecimento ocorre pela

inexistência de qualquer molécula anticapitalista. A gangrena de um sistema que não cresce mais e só produz dívidas se alastra sendo todos a favor. Enquanto houver planeta para consumir, governos que cortam gastos e liquidam ativos públicos continuarão a ser reeleitos. E os governos autointitulados progressistas da América Latina estão entre os principais devoradores do planeta, sem falar que, como mostrou recentemente uma pesquisa de Lena Lavinas, para o Sul Global, o modelo de Transferências Monetárias Condicionadas (CCT, na sigla em inglês) revelou-se uma eficiente política de financeirização da pobreza‖. (ARANTES, Paulo. ―Entre os destroços do presente‖, Entrevista na revista Caros Amigos, 2015. http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/10/paulo-arantes-entre-os-destrocos-do-presente/ Acesso em 20.04.2015

6 POCHMANN, Marcio. O mito da grande classe média. São Paulo: Boitempo, 2014.

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socialmente discriminados e prejudicados. Depois do estelionato das eleições de

outubro, com o forte ajuste neoliberal, parcialmente forçado por tais interesses, que

ataca investimentos sociais e direitos conquistados, trata-se também de um acerto de

contas terrorista contra o que sai da linha justa da economia totalitária. Pois visa,

segundo os interessados, à retomada do ritmo ―normal‖ da acumulação, principalmente

em tempos de concorrência acirrada – isto é, e aqui eles silenciam, em tempos de crise

mundial e aprofundamento da dependência estrutural, que se tornaram a regra. E com

ela cada vez mais a necessidade de superexploração da força de trabalho e de redução de

custos face aos padrões de produtividade mundial praticamente inalcançáveis pelos

agentes e os lugares perdedores. O admirável mundo novo neoliberalizado tende a

atualizar e normalizar o velho apartheid nacional.7

6- Após os ataques especulativos contra a Petrobras e os bancos estatais, novas

privatizações, sucateamento do ensino básico e superior e da saúde via demolição do

SUS, redução de direitos estudantis e trabalhistas como seguro desemprego, paralisação

da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas, depois do PL para a destruição

da CLT via terceirização geral e da recente tentativa de ―flexibilização‖ da definição de

escravidão (!), do PL para a redução da maioridade penal, da difamação e neutralização

política do que sobrou do PT e de tudo o que é tido como entulho ―estatista‖ ou

―populista‖ proveniente da era Vargas, a próxima cartada será evidentemente

neutralizar, criminalizar e destroçar movimentos combativos e independentes como o

MST, o MTST ou o MPL. Poder Legislativo, Judiciário e grande mídia, com Globo,

Folha, Estadão e Veja à frente, querem retomar as rédeas da velha ordem conservadora

sob o figurino atualizado da ―austeridade‖, o novo nome da pilhagem neoliberal. Que

aliás renasceu após as cinzas aparentes de 2008, pois não se trata de uma ideologia ou

de uma simples política opiniática, mas de um agenciamento social e político ligado à

dominação total da forma-mercadoria como determinação da ação e do pensamento

contemporâneos e que se manifesta concretamente como tal reação às conquistas

7 KURZ, Robert. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996; Idem, ―Totalitarismo

econômico – Quem é totalitário?‖ In:__. Com todo vapor ao colapso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2004.

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sociais passadas e a retomada do poder de classe.8 Além disso, temas da luta social

reformista como as cotas raciais, os direitos indígenas, a agenda ambiental, a legalização

do aborto e da maconha, as pautas feministas e de gênero já estão também no alvo das

forças mais reacionárias da direita, com sua paranoia securitária e punitivista. Com a

esquerda enfraquecida e com o acúmulo sem par de tecnologias de repressão e controle

social, que vão do descrédito geral do marxismo ou de governos ―bolivarianos‖ (tidos

como ―socialistas‖) à perseguição de professores e conteúdos didáticos nas escolas tidos

como ―doutrinários e ideológicos‖ (não, é claro, dos think tanks neoliberais e capitalistas

em geral)9, das prisões preventivas de manifestantes à legislação antiterrorismo, dos

novos blindados a novos métodos de controle de multidões incluindo drones, além do já

tradicional gás lacrimogêneo, UPPs e caveirões, um novo golpe militar se torna

totalmente desnecessário por prazo indeterminado. Os lunáticos que pedem intervenção

militar ―constitucional‖ (!) conseguirão tornar o que hoje parece ridículo em simples

realidade. Pois na verdade o que está em curso, nesse estado de exceção surdo que vai se

instalando, em que reluz uma vez mais a ausência de revolta consistente ou realmente

ameaçadora do status quo, é mais que a neutralização de toda oposição política: é uma

guerra de extermínio, muito além do pensamento, contra os de baixo. Trabalho precário

em vias de se tornar praticamente absolutizado, desemprego e dessolidarização geral de

classe, desenraizamento social e econômico, estigmatização, exclusão e políticas baratas

de assistência social vão confinando com a lógica do encarceramento em massa e do

massacre diário de sujeitos ―descartáveis‖ e ―sem-valor‖.

7- Com o desmonte ou enfraquecimento da esquerda, a tarefa crítica, ao que tudo

indica, irá se tornar tendencialmente a partir de agora algo semelhante a uma

resistência à ditadura e ao fascismo histórico: nas ruas, nas empresas, nas escolas e

universidades, na mídia, nas redes sociais, nas câmaras legislativas, fóruns de discussão,

tribunais e vida cotidiana. A esquerda terá de repensar sua teoria, seu vocabulário, suas

táticas e estratégias de confronto. Reinventar sua formação de quadros e de bases de

8 Aqui, nos distanciamos um pouco de Harvey, ou de Foucault e Dardot & Laval (apresentados por:

ARANTES, O novo tempo do mundo, op. cit.) e nos aproximamos da crítica do valor de KURZ, ibid. 9 Ver o artigo de R. CONSTANTINO, ―Escola sem partido já!‖, 06.03.2015 – http://naofo.de/3gbp (acesso

em 10-04-2015), e os projetos de lei que estão sendo propostos nesse sentido em Brasília, Rio de Janeiro, Pará e outros estados da federação.

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mobilização, sua agenda política, suas bandeiras e, conforme a paranoia anticomunista

recrudescer, até mesmo suas cores e símbolos. O segredo será colocar no centro do

debate a reinvenção da crítica da economia política numa era de ofensiva neoliberal e de

crise estrutural da valorização enquanto crítica concreta de modelos de crescimento,

hoje fortemente excludentes, e das ilusões de um ―neodesenvolvimentismo‖ catastrófico,

que nem desenvolvimento é, pois cobra subordinações ao grande capital, reforça

dependências e destrói seus fundamentos econômicos e socioambientais – em suma, a

realização de um trabalho sujo velado por ideologias modernizadoras.10 O sinal negativo

de que sem megaendividamento público/privado e hecatombes socioambientais

periódicas não se sai da recessão programada pela estrutura do capitalismo atual – e

isso apenas adiando a hora de crises mais profundas, que já atingem também o centro

do sistema e que dificilmente podem ser evitadas sem cortes e ajustes como os de 2015

(a não ser é claro, e em tese por enquanto, através de uma política de esquerda de aberto

confronto com o capital). O capitalismo vencedor está emperrado e apenas consegue

adiar sua desvalorização e bancarrota – e a ativação de uma luta social de classes

generalizada.

8- Na base da questão da resistência, no entanto, está para ser travada uma

crítica das relações de dominação e de subjetivação em sua especificidade brasileira.

Porque no fundo nunca saímos do grande mar conservador – o país profundo das elites

personalistas e liberais de fachada, o país do homem cordial e volúvel, cruzando amiúde

os espectros de classe, sem qualquer compromisso social com o outro, o que tem suas

origens coloniais e prolongamentos ditatoriais e pós-ditatoriais. Ilusões à parte –

provenientes do espírito crítico formado durante certo tempo pelas universidades

públicas, os movimentos de esquerda e os setores liberais mais esclarecidos em

circunstâncias especiais, ou ainda do otimismo surgido com os governos petistas mais

populares e com a pequena ascensão de setores mais pobres da classe trabalhadora na

fase do reformismo fraco lulista – esse grande mar sempre provocou ondas periódicas

de reação conservadora e autoritária, além da espoliação e da violência cotidianas

10 Cf. o André VILLAR GOMEZ e Marcos BARREIRA, ―A catástrofe como modelo: agronegócio, crise

ambiental e movimentos sociais durante o decênio 2003-2013‖, nesta edição de Sinal de Menos; ARANTES, op. cit.

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sofridas pelos membros do enorme exército de trabalhadores baratos à disposição. Os

―avanços‖, quando se deram, foram sempre nessa areia movediça, com o andar de cima

de certa maneira ―consentindo‖ com a divisão do bolo, também com o fito de que nossa

desgraceira social (na opinião pública, na mídia, principalmente no estrangeiro) não

parecesse mais feia do que realmente é. Esta aliás a especialidade diplomática do

conselheiro Ayres, personagem dos dois últimos romances de Machado de Assis. Por

incrível que pareça, a ensaística crítica nacional, salvo as exceções de praxe11, ainda não

fez muita coisa na direção de identificar e caracterizar melhor as figuras mais recentes

desse mar de reação com fachada liberal, suas ondas e sua espuma autoritária ou

―fascista‖ (ou pelo menos que se assemelham a ele ou às nossas arcaicas figuras de

dominação do passado colonial).12

9- Isso não se trata de um diagnóstico governista como parte da esquerda

pseudorradical gostaria que fosse, sempre com a boa fé populista nas ―massas‖, que

estariam sempre ―vencendo‖. O fato é que a esquerda dormiu no ponto e se deslumbrou

com a aparente pacificação lulista até esquecer do clima profundamente hostil à

esquerda anterior e posterior a 89. Um clima que nunca deixou de ventilar os porões

reacionários ou os discursos liberais dominantes, mesmo durante a ―hegemonia às

avessas‖ da década passada. Se se quiser realmente traçar um diagnóstico do adversário

difuso de classe e da estrutura de poder autoritária, que muitas vezes reúne a elite e o

povão numa amálgama de posições ameaçadoras, temos de traçar uma longa linha de

continuidade, com inserção de descontinuidades importantes, mas que não

transformam radicalmente sua ―essência‖, apenas as repõem num nível mais alto de

violência, mais camuflada e mais misturada com novos elementos autoritários dentro

da lógica darwinista de apartheid social neoliberal. Esta última é impulsionada pela

nova era de concorrência total e cristalizada/reforçada territorialmente pelas

metrópoles bunkerizadas e segregadas, que não apenas ―isolam, confinam e banem o

11 Carecemos de algo como o excelente estudo de Antônio Flávio PIERUCCI, ―As bases da nova direita‖.

Novos Estudos Cebrap, nº19, São Paulo, 1987. 12 É óbvio que nunca tivemos fascismo propriamente dito, mas algo como um ―semifascismo verde-

amarelo‖ e simpatias fascistoides ou autoritárias no governo Vargas. Cf. CANDIDO, Antonio. ―Integralismo = fascismo?‖ in: __. Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 122.

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outro‖ como vão consolidando, no limite, uma ―mentalidade exterminatória‖.13 Em

especial, aqui, difundem-se os conteúdos ideológicos importados, principalmente pela

Revista de marginais instalada na Marginal do Pinheiros, diretamente da direita neocon

americana e europeia e dos think tanks ultraliberais, que incluem as ideias de

privatização geral e do Estado mínimo, ―meritocracia‖, restrição absoluta da política à

representação parlamentar plutocrática e aos poderes estabelecidos e coisificados, caça

aos direitos sociais e discursos de culpabilização e responsabilização individual pelo

sucesso ou o fracasso no acesso ao trabalho e ao consumo.14 O que hoje se traduz

cotidianamente, por exemplo, na difamação geral de cotistas e bolsistas de programas

sociais tidos como parasitas ou inimputáveis políticos, na crítica carrocêntrica a

ciclovias ou na perseguição às políticas de ocupação de terras ou de moradias no centro

ou em áreas limitadas de alguns bairros nobres (conforme o Plano Diretor de cidades

como São Paulo). A nova direita perdeu a vergonha de mostrar a que veio. Novo no front

passam a ser, então, a afirmação aberta e orgulhosa da direita como Direita

conservadora, a ressurgência do anticomunismo e a estratégia descarada de ―blaming

the poor” e ―blaming the Left‖ (―a culpa é do PT!‖), o que alguns anos atrás ainda

parecia aos sociólogos atentos uma exclusividade norte-americana.15

10- Por isso mesmo, no entanto, a tese da ―onda conservadora‖ precisa ser

criticada, mediada e superada. Porque não se trata exatamente de uma onda,

compreendida como um fenômeno passageiro, que vai e volta sem razão, mas de um

13 KOWARICK, Lúcio. Viver em risco. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo: Ed. 34,

2009, p. 92. 14 Para uma gênese dessa nova razão do mundo: HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism.

Oxford: Oxford University Press, 2005; ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014. Para uma análise da gestação dessa ideologia na imprensa dominante: SILVA, Carla Luciana. ―VEJA: o indispensável partido neoliberal (1989-2002)‖. Niterói: UFF/UNIOESTE, 2005 (tese de doutorado em História), disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/td/508.pdf (acesso em 01.03.2015)

15 Cf. PIERUCCI, op. cit. Como lembra Kowarick, a estratégia neocon americana consiste em ―blaming the victim, aberta e feroz culpabilização das pessoas que se encontram em precárias condições sociais e econômicas, pois esta situação é vista como fruto de sua própria e única (ir)responsabilidade. Mais ainda: nesta visão do problema, as políticas públicas só serviriam para reproduzir ou aumentar a anomia, a ociosidade, a indolência, a desestruturação familiar, o consumo de drogas e as várias formas de criminalidade‖ (KOWARICK, op. cit., p. 28). Para o autor essa culpabilização é trocada no Brasil pelo descompromisso social. De 2005 em diante, após o escândalo do mensalão e da forte inserção brasileira na economia global, não assistiríamos à ascensão da ideologia meritocrática e da culpabilização geral dos pobres?

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verdadeiro mar conservador formando um oceano aparentemente calmo, liso, com

vasos comunicantes dentro do sistema moldado pela grande ofensiva neoliberal

mundial. É o que permite entender processos sociais em curso na Grécia e na Europa

neofascista, em especial na Alemanha, França, Ucrânia, Hungria e Romênia, e também

na periferia mais exposta às tormentas do livre mercado e suas resistências sociais,

como na Tailândia, Venezuela, México ou Paraguai, muito além das zonas britânica e

estadunidense em que a agressão liberal renasceu, escondendo processos globais

completamente assimétricos e autoritários de ―acumulação por espoliação‖.16

11- No Brasil, tal ofensiva ganha ares mais fascistóides por motivos internos,

cujas raízes se encontram em sua formação histórica. Não se trata é claro do fascismo no

sentido histórico exato, um regime há muito superado17, mas de um movimento que a

ele às vezes se assemelha, a começar pela mobilização de cunho nacionalista,

apartidário, supostamente acima das classes. Afinal, será possível alguém se assumir

como fascista hoje? Por suposto, praticamente ninguém o fará, salvo a fauna neonazista

e neointegralista rediviva, apesar de se ver nas ruas e redes hoje diversas viúvas da

ditadura, fãs de torturadores e ditadores, ―bandeirantes‖ separatistas paulistas e

ultracatólicos da TFP com cheiro de naftalina e hálito de morte, às vezes transfigurados

em uma curiosa versão soft na forma do direitoso simpatizante da ―ditabranda‖ e de

toda velharia da propaganda anticomunista da Guerra Fria. Uma continuidade nessa

linha parece óbvia: basta pensar como foi tratada a esquerda radical na República Velha,

depois na era Vargas ou durante os governos oligárquicos, sem mencionar o seu ápice

no regime de 64, e a forma que os manifestantes dessa nova direita vão articulando seu

discurso de ódio no qual o impeachment de Dilma é apenas um detalhe num projeto

maior de vingança e ―rebelião das elites‖ (C. Lasch). O anjo benjaminiano da história

veria aí uma vez mais nesse continuum uma ―pilha de escombros‖.

16 Cf. HARVEY, op. cit., cap. 6. Para um panorama da nova direita na Alemanha ver o artigo de KONICZ,

nesta edição dupla de Sinal de Menos. Para uma visão geral da direita e extrema-direita nacional, ver os dossiês: http://www.esquerda.net/topics/dossier-221-nova-direita-populista-europeia http://marxismo21.org/direitas-politica-ideologia/

17 ―Trabalhos empíricos mais detalhados mostraram (...) que os verdadeiros capitalistas, mesmo quando rejeitaram a democracia, preferiram governos autoritários a fascistas‖. (PAXTON, Robert O. The Anatomy of Fascism. New York: Alfred A. Knopf, 2004, p. 227).

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12- Na superfície desse mar aparentemente liso, portanto, há o que poderíamos

denominar o homo economicus liberal – constituído por uma certa elite (ou candidata a

tal) flutuante, que inclui em si as grandes personificações do capital até a nebulosa de

microempresários e profissionais liberais, trabalhadores intelectuais e formadores de

opinião, e enfim os setores da classe média real ou imaginária (a chamada ―direita pão

com ovo‖), que cultivaram o fantasma aecista do ano passado. Sua fisionomia é mais ou

menos visível a olho nu nas ruas e nas redes: na série de ―capitalistas sem capital‖,

comediantes remediados hiperindividualistas com alergia a movimentos sociais e

sindicais, uma massa eleitora de tucanos, devota de FHC, Alckmin, Serra ou Aécio, ou

de qualquer direita ―antipetralha‖ tipo Eduardo Cunha ou Ronaldo Caiado, ensandecida

pelo moralismo seletivo anticorrupção (já que no fundo, no fundo ela pouco se importa

com as cifras bilionárias do Trensalão, do Suiçalão ou da Operação Zelotes, ou por

outra, com o desgoverno, o autoritarismo e o caos hídrico-social do Tucanistão

paulista), quando não fãs de privatizações e até da terceirização geral, enquanto a parte

mais elevada dessa turba mostra-se cínica e orgulhosamente como sonegadora de

impostos18, além do mais como turistas que ameaçam a três por dois fugir do Brasil para

Miami, uma ―gente diferenciada‖, racista ou criptorracista, em especial paulistas e

sulistas das ―varandas gourmet‖, em parte ainda fortemente machista e homofóbica,

mas em geral antenada e aberta ao ―Cosmos‖ da Oscar Freire, Alphaville ou Las Vegas,

todos amantes das vantagens da globalização, tida como puro processo técnico à

disposição dos mais esforçados, consumistas vidrados em smartphones e no culto da

própria imagem na internet, criando uma nação orgulhosamente capitalista, liberal nos

costumes e ―democrática‖, inimiga de Cuba, Venezuela ou Rússia (mas nunca de Arábia

Saudita, Dubai, China ou Israel). Uma conjunção terminal de semianalfabetos políticos

(―coxinhas‖) e com ódio da política, em geral especialistas em sua área profissional mas

semiformados e sobretudo acuados pelo medo da queda na dura competição do

mercado. Individualismo de massa, mentalidade narcísica de sobrevivência, darwinismo

social e cegueira histórica se reforçam mutuamente.19 No limite, uma massa que aparece

18 A defesa mais canalha dos grandes canalhas sonegadores foi feita pelo comentarista Paulo Martins em

rede de televisão, em 10-06-2013: ―A sonegação está alta, ainda bem!‖ https://www.youtube.com/watch?v=1kdGNNTYOjICf (Acesso em 10/04/2015).

19 LASCH, Cristopher. O mínimo eu. (Sobrevivência psíquica em tempos difíceis). São Paulo: Brasiliense, 1986.

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hoje totalmente zumbificada pelas redes e a grande mídia golpista (que invocou

ostensivamente as duas grandes manifestações de março e abril), servindo como cães de

guarda da elite, até caírem totalmente sob boatos de internet e visões conspiratórias da

história (p. ex., 42,6% de manifestantes do dia 12 de março de 2015 em São Paulo

acreditam que ―O PT trouxe 50 mil haitianos para votar na Dilma nas últimas eleições‖;

64,1% crê que ―o PT quer implantar um regime comunista no Brasil‖ e 55,9% crê que ―o

Foro de São Paulo quer criar uma ditadura bolivariana no Brasil‖).20 O detalhe do

horror, além das selfies com a PM, é que grande parte dessa classe média ―neoudenista‖

– que votou em Aécio mas que é contra o Governo que está implantando justamente o

seu programa privatizador – tem aceitado marchar ao lado de corruptos históricos,

militaristas, neofascistas e torturadores. São os oportunistas à la Tancredi, d‘O

Leopardo de Lampedusa: ―A não ser que nos salvemos dando-nos as mãos agora, eles

nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo

mude‖.

13- A esquerda e os ―petralhas‖ nesse esquema servem como um bode expiatório

geral: a infame quadrilha de vigaristas diretamente responsável por grandes roubos e

uma crise nacional catastrófica (esqueceram os anos 80 e 90?), que no inconsciente

deve soar como uma espécie violação generalizada da lei e um roubo de gozo.21 Nessa

ocasião, ―falar em fascismo pode até tranquilizar, na medida em que pensamos saber

algo a respeito.‖22 Digamos contudo que esse processo de ―direitização da direita‖

tradicional atualiza ―algo‖ da nossa fantasmática autoritária com seus elementos

parafascistas, acrescentando-lhe componentes neoliberais radicais. E que por isso

mesmo, aliás, torna-se muito mais perigosa para nós hoje do que o fascismo, na medida

em que é muito mais inconsciente e capciosa, pois tal fantasmática só dá bandeira

quando se percebe o processo ora em curso de desmonte de leis e proteções sociais, a

espoliação generalizada do trabalho, o extermínio de pobres e, em seu bojo, a

neutralização de toda oposição política digna de menção. No Brasil, o outro não existirá

20 Cf. a pesquisa empírica coordenada por Pablo ORTELLADO e Esther SOLANO em São Paulo, no dia

12.04.2015. (http://www.lage.ib.usp.br/manif/ Acesso em 20.04.2015). 21 Cf. DUARTE, ―O gigante que acordou – ou o que resta da ditadura?‖, op. cit. Antônio Flávio PIERUCCI

(op. cit.) já havia identificado algo desse processo nos anos 1980. 22 Paulo ARANTES, Entrevista para Sinal de Menos, no segundo volume deste número duplo da revista.

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mais: um processo de liquidação geral da inteligência que desponta como vimos em

tendências paranoicas coletivas, tal como desencadeadas nas democracias de baixa

intensidade no pré- e no pós-2ª guerra, segundo diagnosticadas por Adorno e

Horkheimer em seu livro clássico. O novo ―trabalho sujo‖ neoliberal não é possível sem

zelo colaboracionista de amplos setores, de um lado, e frieza e indiferença diante do

sofrimento alheio, do outro.23

14- A partir desse mar brasileiro constituído refluem ondas conservadoras de

tempos em tempos nas ruas, pelo menos desde 2013, agora manobradas pela grande

mídia e por grupos de centro-direita como o ―Vem pra rua‖ ou pela direita neocon mais

convicta como o ―MBL‖ e os ―Revoltados on line‖, em geral fãs de Reinaldo de Azevedo,

Rachel Sheherazade, Marco A. Villa, Olavo de Carvalho, Joaquim Barbosa e Jair

Bolsonaro, mas também da ideologia de Mises, FHC, Armínio Fraga ou Constantino. Em

meio ao ―vazio de representação‖, diagnosticado por diversos analistas, é esse conteúdo

cretino e autoritário que marcha nas ruas, querendo se impor no grito, com caminhões,

motocicletas e a tropa de choque: que tudo mude para ficar tudo como estava. Por fim,

na crista dessa onda, a espuma mais revolta, às vezes abertamente paranoica: a

extrema-direita e os grupos intervencionistas, de olavetes a adoradores da ROTA e das

Forças Armadas, em geral pedindo golpe militar ―constitucional‖ ou o extermínio puro e

simples do PT e da esquerda em geral (o bicho-papão Foro de São Paulo); grupos que

não são minorias irrisórias como se costuma pensar, além de possuírem um discurso

virulento que se espalha rapidamente.24 Que não nos enganemos, portanto, com essa

graduação: a passagem do mar à espuma furiosa de um tsunami reacionário seria mais

fácil do que se imagina. Para se ter uma ideia, em pesquisa empírica feita no dia 12 de

abril em Belo Horizonte, 50,5% dos manifestantes concordaram parcial ou totalmente

23 HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1985; ARANTES, Paulo. ―Sale boulot‖ in:__. O novo tempo do mundo, op. cit. Ver também o ensaio de Jean-Paul SARTRE, ―O que é um colaborador?‖, nesta edição de Sinal de Menos.

24 Basta acompanhar nas redes sociais os grupos pró intervenção militar e de fanáticos das FFAA. Sobre as ondas neofascistas anteriores a 2013, além dos dossiês supracitados, ver também: Fábio Chang de ALMEIDA, ―Neofascismo, internet e história do tempo presente‖ in: Sousa, Fernando P. e Silva, Michel G. (orgs.). Ditadura, repressão e conservadorismo. Florianópolis: Ed. UFSC, 2011. No dia 15/03 tais grupos deram o tom geral nos cartazes e no barulho da rua, tanto é que na segunda manifestação, no dia 12/04, os grupos ―democráticos‖ buscaram se afastar dos outros no espaço das avenidas para ficar menos feio.

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com uma intervenção militar em caso de desordem civil no país25 – o que para muitos,

como se pode imaginar, já estaríamos vivendo, pelo menos quando se toma como fato

uma ―ditadura bolivariana‖ do PT.

15- O que sustenta essa massa de direita nas redes é a expressão aberta de um

ódio social de classe, tão volátil quanto persistente, quando não se organiza nas ruas

(milagrosamente, pois só o faz mediante a bomba incendiária da mídia golpista). Nesse

momento ele se torna um fenômeno de transe coletivo. Noutros termos, um moralismo

cego e seletivo de tintas nacionalistas, que forma uma comunidade unânime diante de

um inimigo nacional, que os identifica como os ―justos‖, os ―pagadores de impostos‖ –

roubados pelo partido de socializadores do alheio e os populistas, pior ainda quando

têm eles a cara do povo. Um transe que lhes permite submergir a consciência numa

massa furiosa, expulsar o ódio de si e concretizá-lo num outro. Pode ser até mesmo

alguém vestido de vermelho ou um sósia do ex-presidente Lula (como no caso dum

repórter espancado por manifestantes). Por um lado, então, temos aqui um

masoquismo irrefletido, dado pela integral submissão ao sistema de poder e exploração

capitalista, por outro um sadismo explícito mas difuso, totalmente conformista e oposto

a qualquer subversão da ordem social. Uma ―simbiose‖ fantasmática gozosa contida no

coração dessa massa, oscilando entre tais posições subjetivas, que lhes dá uma face

dupla: o burguês cínico-voraz por dinheiro e o bom cidadão depenado, eriçado pela

causa nacional, o patrão explorador que é ―explorado‖ e vice-versa, o democrata liberal

que defende oligarquias e sonegadores, colaboracionista secreto da velha direita

latifundiária, terceirizadora e neoescravista, com o que nos aproximamos aliás da

configuração de classe da matriz colonial. Simbiose e ambivalência presentes no ―caráter

autoritário‖ tal como há muito estudadas por Reich, Fromm e os frankfurtianos, que

Machado mais uma vez foi um dos primeiros a apontar com o registro de seus detalhes

locais mais sórdidos na camada dos proprietários brasileiros, por exemplo na filosofia

25 LONGO, Ivan. ―Belo Horizonte: Manifestação contra o governo em perfil conservador e intolerante a

políticas sociais‖, Revista Forum, 14-04-2015. Acesso em 21-04.2015: http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/04/belo-horizonte-manifestacao-contra-o-governo-tem-

perfil-conservador-e-intolerante-a-politicas-sociais/

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non sense do Humanitismo, de tipo social-darwinista escarnecedor26; algo que Sérgio

Buarque identificou, por via conceitual, como o pêndulo do ―homem cordial‖: o

personalismo intimista, o ―horror às distâncias‖, junto ao descompromisso e ao

individualismo mais antissocial; de um lado, o arbítrio sem medidas, de outro, a

obediência cega às autoridades e a indiferença moderna para com os desvalidos. Quem

acompanha a defesa midiático-empresarial do PL da terceirização geral captura esse

fenômeno ao vivo e a cores. A zumbificação golpista então ganha pleno vapor: nas caixas

de comentários de jornais e revistas da mídia burguesa nas redes, um laboratório ao

vivo para entender os novos processos regressivos. Alienação do trabalho, coisificação,

ideologia e pseudocultura associados a um ódio cínico por tudo o que lembre

trabalhador, pobre e movimentos de origem na esquerda. Ao contrário, um amor pelo

trabalho alienado e pela nação plutocrática.

16- Pode sempre parecer que o "transe" moralista-autoritário será menor amanhã

e depois de amanhã, até mesmo – alto lá! – por efeito da aprovação da redução da

maioridade penal, da terceirização geral, da sangria e enterro do PT ou da

criminalização e neutralização final de toda oposição crítica. Não será isso um

laboratório de tendências para- ou protofascistas, que poderão ganhar nova hegemonia

após o interregno da chamada ―abertura democrática‖? Valeria testar empiricamente

um dia, como já sugeriram Safatle e Boulos, a presença de conteúdos da Escala F

(Fascismo) proposta em The Authoritarian Personality:27

1. Convencionalismo. Adesão rígida a valores convencionais, de classe média.

2. Submissão autoritária. Atitude submissa, acrítica diante de autoridades morais

idealizadas do próprio grupo.

3. Agressão autoritária. Tendência para procurar e condenar, rejeitar e punir pessoas

que violam os valores convencionais.

26 Cf. REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo [1933]. Porto: Escorpião, 1973; FROMM, Erich.

O medo à liberdade [1941]. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1983, p. 130-4; ADORNO, FRENKEL-BRUNSWIK, E., LEVINSON, D., SANFORD, R. The Authoritarian Personality. New York: Harper & Brothers, 1950; SCHWARZ, Um mestre na periferia do capitalismo, op. cit.; DUARTE, Cláudio R. ―Literatura, Geografia e Modernização social – espaço, alienação e morte na literatura moderna‖. São Paulo: FFLCH-USP, 2010 (tese de doutoramento).

27 ADORNO et alli, ibidem, p. 228-34, 248-50.

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4. Anti-intracepção. Oposição ao subjetivo, ao imaginativo, ao compassivo e ao sensível-

terno.

5. Superstição e estereotipia. A crença em determinantes místicas do destino do

indivíduo; a disposição para pensar em categorias rígidas.

6. Poder e ―Dureza‖. Preocupação com a dimensão submissão-dominação, forte-fraco,

líder-seguidores; identificação com figuras do poder; sobrevalorização dos atributos

convencionalizados do eu; asserção exagerada da força e da dureza.

7. Destrutividade e cinismo. Hostilidade generalizada, aviltamento do humano.

8. Projetividade. A disposição para acreditar que coisas selvagens e perigosas continuam

no mundo; a projeção exterior de impulsos emocionais inconscientes.

9. Sexo. Preocupação exagerada com ―comportamentos‖ sexuais.

Seria nos grupos de extrema-direita, abertamente intervencionistas e

reacionários – segundo minhas estimativas uns 50 mil entre os 300 mil na maior

manifestação em São Paulo no dia 15/03 –, que teríamos muitos itens da Escala F

contemplados, formando uma onda de sociopatia quase-paranoica. Os setores de

centro-direita (classe média e pobres), mais céticos e indecisos, compartilhariam talvez

de maneira plena os itens 1, 2 e 3. De modo fraco e parcial, os itens 4, 5 e 6, embora

como vimos eles pensem mediante categorias rígidas (a começar pelo próprio ideal do

impeachment e da ideia fixa da corrupção) e teorias conspiratórias.

No todo, advirta-se como tais itens têm se tornado hoje elementos de integração

na concorrência, que espremem a classe média contra a parede, em ―rituais de

sofrimento‖28: valorização de um Eu forte e aguerrido, disposto à competição ferrenha,

submissão às hierarquias e aos líderes tidos como naturais; moralismo de tipo linchador

ou seletivo contra quem pareça inútil, descuidado ou gozar "sem trabalhar"; anti-

intelectualismo e pragmatismo ferrenhos; disposição a pensar misticamente, seja via

dogmas religiosos, espiritismo, livros de autoajuda ou astrologia; e a afirmação de

hostilidade ao diferente, desprezo pelo próximo e mesmo aos direitos humanos.

17- Cruzar o fantasma autoritário brasileiro é superar o imobilismo que ele

28 VIANA, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013.

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agencia, institui e difunde como ideologia. É parar a máquina social de precarização,

culpabilização, invisibilização e carnificina através da crítica de suas estruturas sociais e

materiais de reprodução. A crítica da ideologia não significa nada sem o ataque à lógica

do mercado e de seu Estado em fim de linha.

(Outubro 2014-Abril de 2015).

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O OTIMISMO E O PÊNDULO

O duro aprendizado de caminhar em terreno movediço

Douglas Anfra

Estou chocado como estamos embebidos em otimismo, mesmo quando nos

achamos pessimistas.

Os partidários do PT acham que o partido é de esquerda e que haverá uma

mobilização a seu favor, com apoio dos trabalhadores, mesmo com o corte de direitos

sociais e trabalhistas neste momento de crise – cortes tanto de autoria do segundo

mandato de Dilma quanto de ameaças vindas do Congresso.

Os tucanos e a Folha de S. Paulo, que praticamente são a mesma coisa, acham

que controlarão placidamente a massa que estão invocando e acreditam que lhe darão

direção.

E, enquanto isso, militantes de esquerda e de movimentos sociais acham que uma

pauta racional dará forma a uma mobilização com tons profundamente emotivos, que

junta classes diversas, apesar da maior participação da chamada elite conservadora nas

ruas, conseguindo disputá-la.

Basta lembrar que a Folha e a grande mídia conseguiram pela primeira vez

chamar, praticamente sozinhas, gente à rua, sem depender da disputa de pautas contra

uma manifestação previamente convocada por movimentos sociais. No entanto, quem

foi às ruas não se colou nem na esquerda que achava que era dona das ruas, nem na

direita tradicional, que não conseguiu dar forma aos seus desejos corruptos, nem em

nada do que até agora se manifestou. Seu futuro é incerto, não pelas características

pontuais de sua vanguarda visível, que mais deseja manter privilégios que direitos, mas

por uma massa que apoia essas manifestações por outras razões mais concretas e

difusas, desde o aumento da luz e da gasolina até os cortes em direitos trabalhistas,

justamente algo que os diferencia de sua vanguarda e os aproximaria, na verdade, da

esquerda tradicional.

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A vanguarda dos atos pró-impeachment se distingue em blocos, ainda que

encontrem seu palco preferencial na aglutinação caoticamente orquestrada em torno de

algumas características comuns, como certa crença em um mérito exclusivo que

distinguiria os presentes em relação ao resto da população, opondo-se à pauta de

igualdade, defesa de minorias ou de direitos sociais. Sobre essa diferença, cabe notar

como certo senso político os impede ainda de seguir a fundo seus ideais, estratificando-

os ainda mais, com os privatistas, que resistem partir para uma campanha alucinada

pela defesa da privatização de serviços como saúde e educação, como fez o Tea Party

norte-americano, ou pelo fim dos direitos trabalhistas como um todo em nome do

patronato, ou, ainda, com grupos que enunciam o desejo de um golpe militar fundindo a

ideia de um golpe ditatorial como um prosseguimento da democracia.

Por curiosos que sejam, eles encontram apoio numa forma contraditória de

pensar, como fica evidente nas declarações individuais de suas lideranças, bem como na

própria prática, que demanda uma aglomeração social para a defesa de um

individualismo totalmente contrário a qualquer ideia de solidariedade, dando vazão a

uma intensa disputa cultural. Disputa que se coloca nas redes sociais por vloggers,

formas de comunicadores novos e jovens, e boots profissionais divulgando boatos pela

rede. Fica a impressão de que essas manifestações se inspiram em Gramsci, na intensa

disputa cultural, ao mesmo tempo em que acusam esta estratégia em seus inimigos à

esquerda (em geral, cabe lembrar, esses gramscianos são dos menos ouvidos na

esquerda quando levantam a importância da cultura).

Tudo isso traz um quadro novo que assusta e inspira pessimismo. Mas é preciso

dizer que isso é pouco, pois o pessimismo com o momento presente, que se assusta com

o volume de pessoas e as pautas que saem às ruas, volta-se à energia de um momento

específico, que não reflete toda a sua dinâmica. Como diria João Bernardo, a presença

de uma ideologia antissocial e antissolidária não nos deve causar estranhamento, uma

vez que essa característica já é natural das elites, inclusive em sua segregação não

apenas social, mas também racial (ainda que notáveis tentativas de se descolar desta

imagem estejam sendo feitas). Devemos nos refazer desse susto inicial, pois ele não dá

conta do perigo maior, relativo ao que poderia acontecer se parte dessa direita

conseguisse crescer entre os pobres, caso se separe de pautas mais impopulares e

escolha outros parceiros – atitude que parece ocorrer entre os (ex?) aliados do PT, que

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começam a se separar optando por um caminho mais puro e autônomo à direita,

somando-se aos outros atores presentes nas manifestações que ganham cada vez mais

autonomia.

Retornam, assim, as palavras de ordem que associam de modo analógico aquilo

que assusta na palavra fascismo, ignorando sua particularidade, pois o que deve

assustar no fascismo, a possibilidade de sua atualização, não é que uma elite ou certos

grupelhos sociais tenham uma ideologia próxima do fascismo – seja a teoria econômica

do austro-fascismo, seja o eugenismo nazi ou a mobilização pela ordem social e política

sob uma ideologia nacionalista, ou, ainda, uma organização social segundo uma ordem

religiosa e moralista como aquela do salazarismo. O que deve assustar é o possível fato

de que aqueles que sofrem com tal regime ou seus similares se mobilizem por ele. Isso,

sim, deve ser observado com atenção.

Passam os ciclos de mobilização e de tensão como pêndulos com amplitudes

maiores e menores, assim como se intensificam os fenômenos dentro dos períodos, e

isso nos assusta. No entanto, é muito pior se notarmos como há um deslocamento de

todo o plano para a direita, quando aparentemente o movimento cessa após as

oscilações da opinião pública. Isto aparentemente ocorre agora após o ciclo de atos

―anti‖ e ―pró‖ Dilma e da subsequente reação à PL 4330 da terceirização geral, que

provocou manifestações e reações nas redes sociais que chegaram inclusive a preocupar

os parlamentares do PSDB. Nesses casos, há uma oscilação da sensibilidade social de

um sentido ao outro, variando a pauta, que é disputada de momento a momento,

somando-se a uma restrição do espaço político em que essas ações e reações ocorrem.

Mas se notamos essa sensibilidade em toda sua amplitude a partir da frequência de

disputas culturais e políticas entre a direita e a esquerda, expressas nas mudanças de

pauta, notamos uma mudança de sensibilidade da opinião média das pessoas, o que foi

notável em relação a temas recentemente trazidos pelos antigos aliados do governo

agora assumidos como oposição. Um exemplo é a pauta da redução da maioridade

penal, considerando a mudança de sensibilidade das pessoas em relação a esses temas

em um passado não tão distante.

Notamos as oscilações curtas sem perceber todo um campo que se desloca e em

disputas nos terrenos de comunicação, cultura e sociabilidade, o que impede que as

pessoas consigam associar as informações, senão de modo contraditório, ao serem

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alimentadas por teorias da conspiração, que mudaram no geral a sensibilidade política

da opinião pública, enquanto a do próprio governo igualmente se deslocava. Assim,

pautas tradicionalmente de direita passam a ter o apoio de quem já foi considerado de

esquerda, sem supostamente contradizer seus princípios, chegando mesmo a ganhar

força para alterar as características dos próprios partidos. Algo como uma superfície

móvel serve de apoio ao pêndulo que oscila atraindo a nossa atenção enquanto ela se

desloca para um lado ou para outro.

Mais: ocorrem, ainda, ―infiltrações‖ de pautas conservadoras em partidos e

movimentos de esquerda diversos – infiltrações das quais quase ninguém pode se

acreditar livre para acusá-las no outro. Como exemplo, o caso do cabo Dacíolo pode nos

fazer pensar sobre como a aproximação de uma liderança popular trouxe problemas ao

PSOL, quando o partido descobriu que, apesar do apoio à sua liderança numa pauta

sindical, aparentemente não havia afora isso nenhuma concordância com ele em mais

nenhum pressuposto político. E mais: que formas religiosas, culturais e outras

identidades formam o seu repertório político e que, assim, a identidade de esquerda não

é algo claro ou natural, e, sim, uma construção política e social. Pensar isso leva a

questões como a de que talvez a identidade de classe possa ser suplantada por outras, e

que não é sequer automática (talvez a vitória definitiva de algo próximo ao que defendia

Althusser quando, ainda mais radical, dizia que não existe a classe em si mesma senão

quando existe como organização e consciência, e que nada garante um resultado

positivo para a classe).

Curiosamente, dizer isso parece inaceitável, pois para muitos ainda é um choque

a ideia de que movimentos de direita e conservadores tenham iniciativa, protagonismo e

inserção popular, o que se explica em parte por um isolamento da esquerda burguesa

apoiada em princípios apenas em relação às classes populares, com as quais raramente

se relaciona senão conceitualmente. Há outros motivos palpáveis, como o possível medo

de pensar essa questão aterradora, que envolve a possibilidade de uma mudança radical

do campo de disputa política na cultura, nos direitos individuais, no trabalho de base

etc. Isso tudo pode ter muito mais importância do que parece hoje, e talvez seja um

importante flanco de combate para a esquerda que milita e faz trabalho de base, apesar

de estar diretamente exposta a estas contradições, como a constante redefinição sobre o

que é a esquerda hoje, onde ela se insere e o que é possível fazer.

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Pensar sobre essas manifestações envolve algo difícil de compreender para quem

se nega a identificar os pontos que ligam as articulações políticas da conjuntura

presente, pensando apenas em momentos de irrupção de protestos e manifestações.

Antes que ocorram, é certo que algo já está acontecendo nas estruturas sociais, quando

os processos se desdobram e os atores se posicionam e se mobilizam. Quando eclodem

as expressões de massa, em geral, sua importância não está no palco em que se

manifestam, que é importante apenas por revelar as suas articulações, apoios e

expressar sua força. Nesse momento, pouco resta para a ação política pontual que deseja

ser capaz de interferir em seu curso. Quanto a isso, o exemplo de junho de 2013, que

talvez faça parte de uma conjuntura que passou, mostra como nem os governistas nem a

esquerda como um todo conseguem assumir que o MPL teve o Kairós, o senso de

oportunidade ligado a uma conjuntura que mudou radicalmente desde o momento em

que o prefeito Fernando Haddad se recusou a baixar o preço da passagem, o que

deixaria o ônus do aumento exclusivamente a Alckmin, que, ao final, baixou-a primeiro.

Após isso, seguindo longa campanha, a luta contra o aumento teve conjunções

inéditas para mobilizações de esquerda (modificando nossa relação com a forma do

protesto, da iniciativa e do volume de pessoas) e viu-se a iniciativa da direita disputando

os sentidos das mobilizações por vários caminhos, desde insuflar um pacifismo

imobilista que defendia a violência da PM, ou trazer à tona símbolos da unidade

nacional ou gritos contra a corrupção enquanto se defendiam partidos corruptos, dando

lugar a um cabo de força entre esquerda e direita com consequências inéditas para o

campo político geral. A sabedoria do movimento, cabe lembrar, deveu-se à capacidade

de encontrar um limite no ponto exato de esgotamento dos demais atores políticos de

2013, igualmente atônitos, como no balanço de um pêndulo, sem que se rompesse o fio,

e cujo movimento era alimentado por um novo motor emocional na juventude, o ódio. E

que, não se deve esquecer, por um "istmo", quase tudo se perdeu.

Quem esteve na Avenida Paulista no dia da suposta comemoração da vitória e da

última disputa simbólica entre os demais atores do processo, e que testemunhou a

expulsão dos partidos socialistas e movimentos sociais sabe do que estou falando: essa é

uma disputa política que envolve um deslocamento do senso comum à direita e com

grupos organizados ainda mais à direita ganhando força. Cabe compreender cada vez

mais qual é o sentido desse deslocamento ideológico, que não é de hoje, e atualizar

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nossas referências para as lutas políticas futuras, sabendo que estamos pisando em um

chão movediço.

Resumidamente, o importante a reter não é exatamente aquilo que nos deixa

pessimistas ou otimistas em eventos pontuais, mas é pensar no modo como ocorrem

esses eventos e o sentido que adquirem a partir de seus pressupostos culturais e

políticos, que não são dados, nem são óbvios, pois são construções sociais. Esse foco

mais amplo deve ser seriamente considerado nas próximas lutas, pois é ele que

determina o sentido político do apoio ou da recusa de nossas pautas em atos e

manifestações, muito antes destas ocorrerem.

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DESTINOS DO ÓDIO SOCIAL

E A ENCRUZILHADA DA ESQUERDA

Bruno Klein

As manifestações do dia 15 de março deste ano foram marcadas, de modo geral,

pelo antipetismo – hoje a senha para um anticomunismo baseado em fantasias

conservadoras. Houve de tudo: da insatisfação que não contesta a legalidade

institucional ao clamor por intervenção militar, passando pelo pedido de impeachment

da presidente petista – este que deu, no fim, o tom político majoritário à massa

encolerizada.

Um juízo apocalíptico: se ocorresse o impeachment, o ódio social poderia

encontrar satisfação, mesmo que ilusória. Sem o impeachment, para onde vai esse ódio?

Existe a possibilidade de que ele que seja recalcado na forma de um

comportamento cada vez mais violento e ressentido no cotidiano. A frustração do desejo

de transgredir a legalidade e mudar o céu da política a todo custo pode fornecer uma

aparência subjetiva de legitimidade para todo tipo de atrocidade no chão da vida social.

O indivíduo ressentido pode considerar que se esgotaram todos os meios esclarecidos;

pode chegar enfim à conclusão de que aqueles meios falharam e de que agora cabe a ele

e a seus consortes fazer com as próprias mãos, e na marra, o que entendem ser a solução

final. Isso em um contexto cultural regredido, que exalta as várias soluções finais

cotidianas, exemplares, embora a uma sempre se siga outra. Essa situação gera um

clima de guerra subterrânea e um entusiasmo guerreiro – o que, compartilhado, instila

coragem e autolegetimação.

A esquerda talvez deva se preparar – aqui, no modesto sentido de prever o pior –

para as mudanças que esse clima de guerra social deflagrada pode instalar. Se a

burguesia e suas franjas médias se derem conta de que a disputa política está viciada por

um mar de ignorância – que ela atribui à massa de estropiados na base da sociedade –,

elas podem não arquitetar um programa político próprio, nem mesmo um golpe, uma

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vez que o governo petista oferece as garantias básicas para a satisfação da classe

dominante, sobretudo. Essas garantias incluem mecanismos específicos favoráveis à

acumulação de capital – o financiamento dos famigerados players internacionais por

meio do BNDES, a política de priorização do superávit primário, etc. A hipótese de

golpe, não obstante muito alardeada, parece por isso uma veleidade. Elas podem, na

verdade, despejar todo ódio e ressentimento acumulados nessa cruzada fracassada

sobre seus subalternos e assemelhados. O funcionário da pequena loja de roupas ou do

supermercado na periferia pode estar na mira, bem como sua rede de amizades e seus

semelhantes. O gerente de uma unidade de uma multinacional, um tipo que se deve

supor vociferando contra os comunistas vagabundos na Avenida Paulista no dia 15 de

março, poderá encarnar o pior dos carrascos. No almoço com o responsável pelo setor

de RH, um conluio contra quem aparecer de vermelho. Tem-se a sensação de que, se

não foi possível impedir o PT e, em um delírio associativo, a esquerda, restou a opção

pelo ostracismo social de sua base e organizações. Essa situação reabriria a atávica caixa

preta do sadismo social das classes proprietárias brasileiras, acrescidas do moderno

gerente identificado à autoridade da vez.

**

Por que talvez a esquerda deva se preparar para um conflito sujo desse tipo?

Como pode ser razoável esperar toda forma de violação, assédio, demonstração de força,

humilhação etc., nos locais de trabalho e fora deles, pode também ser razoável que os

dominados se sintam compelidos à identificação com os seus algozes de classe. Uma

identificação transida por fantasia, sem dúvida, mas que em um contexto cotidiano

poderia ser encarada como uma salvação ante a violência e o arbítrio. Alguém poderia

supor que se trata de uma questão de sobrevivência – mental e material. Terminado o

período da conciliação política lulista, caracterizado pela mediação política

―conciliatória‖, ela pode degenerar em adesão social pura e simples a uma classe

dominante cuja ideologia já não reivindicaria o menor verniz de civilidade, fornecido

pelos apanágios da política, do direito e da razão.

Resta a pregação democrática à esquerda? A situação é curiosa. Com essa espécie

de ódio social, o consórcio da classe dominante faz a experiência da falsidade e dos

limites da política. Mas ela elabora essa experiência de uma maneira peculiar. Ela

reativa a sua ilusão retrospectiva da dominação pura e simples como a "verdadeira

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origem" de si e a única fonte da ordem. Com isso, a tradição do senhoriato colonial é

trazida ao presente, como numa epifania religiosa que revela a verdade há muito

esquecida. Tudo se passa como se a ordem social parecesse depender de sua capacidade

de mando. Mas também essa epifania é uma ilusão, já que nela a classe dominante não

pode usurpar a função de sujeito do capital, impotência que retroalimenta a ilusão sobre

sua origem e capacidade ordenadora com ainda mais frustração. Quanto menos sujeito

ela pode ser, mais violenta se torna a classe dominante brasileira. Dado o contexto

mundial de crise de valorização do capital, a fórmula se inflama.

Se essa hipótese tem um grão de verdade, a esquerda, na base da sociedade,

também precisa fazer a experiência da falsidade e dos limites da política. No entanto, ela

precisa fazer a sua própria elaboração dessa experiência. Diferentemente da classe

dominante e sua claque, a esquerda brasileira não terá nenhum fantasma atávico para

orientá-la. Ela não tem nenhuma capacidade de reavivar seu passado glorioso, já que

este para ela é, em grande medida, um trem desgovernado de violência. A elaboração

daquela experiência que lhe cabe passa pela perda de ilusões que a assombram no

presente.

Em um primeiro momento, tal elaboração tornaria incontornável admitir o fim

do lulismo. Essa é uma ideia já repisada, mas não é nada de banal. Implica decretar a

falência de uma forma de mediação política, o que, por sua vez, significa um abalo

sísmico nas expectativas políticas que orientaram a ação de grande parte da esquerda.

Em um segundo momento, aquela elaboração pode levar a uma lição – que, se não é

nova, precisa ser revisitada. A esquerda pode se confrontar com a necessidade de sua

independência de organização e de ação. Disso se seguiria uma volta ao chão da

sociedade e uma recusa estratégica à gestão do Estado. Estratégica, pois o momento é

defensivo e a institucionalidade dificilmente poderá ser jogada pela janela. (Uma

negação deste tipo seria fruto de uma nova elaboração da experiência, cujos

pressupostos, porém, não estão dados na experiência atual.) Essa situação, contudo,

pode abrir uma brecha histórica capaz de articular presente e futuro no aqui e no agora.

Por que essa é uma possibilidade? Porque uma elaboração da experiência no sentido

aludido faz o luto do que morreu; engaja-se em uma nova tarefa que, em princípio, não

repete as expectativas anteriores como mania; e, por fim, com o pessimismo que prevê o

pior, obriga a uma luta de vida e morte no plano imediato. Essa projeção para fora da

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máquina de massacrar gente, que é a história brasileira, difere da projeção retrospectiva

que anima e caracteriza a elaboração da direita que vai às ruas.

Tudo somado, as enrascadas dos governos petistas, tendo contribuído para

colocar os de baixo em xeque, como que pressionam o trabalho de elaboração coletivo

tanto quanto o desejo regressivo das forças da direita. Nesse momento crepuscular das

ilusões de todos os lados, talvez a esperança esteja em que o ódio social dos

dominadores encontre um adversário à altura.

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“FOGO AMIGO”

A incubadora petista da avalanche conservadora

Paulo Marques

O presente texto, exposto em aforismos, foi redigido no calor das discussões

geradas pelos intensos movimentos de 2007 e 2008 no Brasil. O leitor deverá se

perguntar sobre por que o mantivemos intacto, e não o atualizamos, dado que diversas

informações já estão ultrapassadas. Na verdade, o texto expressa um todo orgânico que

é testemunha dos debates engendrados dentro dos movimentos de base, oposições

sindicais e grupos de estudos de teoria crítica, naquele preciso momento – o segundo

governo Lula. Vai exposto aqui de forma inalterada, na medida em que ele esboça os

―andaimes‖ nos quais se erigiram as atuais condições de crise institucional.

No ano de 2003, o início do governo Lula foi marcado por reformas

previdenciárias que atacavam os aposentados e trabalhadores, bem como pela criação

de Fundos de Pensão como parte fundamental – e não midiatizada, intencionalmente –

destas reformas. Surgiram fortes contestações e greves de servidores públicos, e ocorria

a primeira cisão interna no governo do PT e na base dos movimentos que o apoiavam.

Porém, em 2005, com a eclosão do escândalo do "mensalão", pela primeira vez ficava

evidente a formação de uma camada de tecnocratas (um capitalismo sindical), e uma

primeira bolha de eclosão da crise da política institucional e do Estado. Isto nos rendeu

uma análise intitulada “A crise política é a crise da política”, publicada em 2005 no

Caderno Político da APROFAT (Associação de Professores de Filosofia do Alto Tietê). O

texto foi bem recebido em círculos de teoria crítica; porém, recebeu críticas importantes

de alguns marxistas radicais, conselhistas e autonomistas (verdadeiros autonomistas de

base classista, como João Bernardo e membros do Movimento Passe Livre, vale bem

dizer, não alinhados ao deslumbre pós-moderno com “multidões” que perpassa certa

corrente que se reivindica ‗autonomista‖ nos dias atuais.). Estas críticas apontavam para

a necessidade de uma análise embasada também em uma leitura da composição de

classe do governo petista, e não apenas em especulações abstratas sobre ―dominação

sem sujeitos‖ e categorias mercantis fetichizadas como entes em si. Era necessário falar

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dos homens, nos bastidores do espetáculo das coisas. Tratava-se da urgência de analisar

como estas categorias e o processo de crise são concretamente veiculados, como

relações entre pessoas mediadas pela forma-mercadoria.

“Algumas Considerações sobre o PT e o Governo Lula” surgiu, então, como um

aprofundamento e reescrita daquele ensaio anterior, incorporando e fundindo a análise

dos conteúdos e formas das relações sociais – porém, o texto circulou de mão em mão

em discussões e não foi formalmente publicado. Ainda, cabe acrescentar a criteriosa e

importante contribuição do recentemente falecido companheiro Dorival Macedo,

engenheiro desempregado, teórico afiado e militante comunista histórico, que rendeu

contribuições originais de debate que aqui foram incorporadas – junto aos debates com

mais duas pessoas, ambos ex-fundadores do PT expulsos em 1984; bem como as

discussões de membros de oposições sindicais docentes, do anarquismo organizado e a

ala independente da Intersindical. Assim, estas teses são produto de intensa discussão

coletiva e destas contribuições e análises valiosas, das quais o autor é apenas um

compilador.

O leitor notará que o texto expressa temáticas que já foram ultrapassadas. O

escândalo do ―mensalão” deixou temporariamente de ser grande manchete, quando se

iniciou o crescimento econômico acelerado. A crise capitalista eclodida em 2008 se

sucedeu a um período de intenso crescimento chinês e configuração dos BRICS, no qual

o governo brasileiro embarcou como ―carona‖, atraindo capitais com uma produção de

baixos custos e a formação de infraestruturas pelos planos PAC e IIRSA. Após a gestação

do capitalismo sindical baseado nos Fundos de Pensão e Participação nos Lucros e

Resultados, neste período engendrou-se um capitalismo de empreiteiras, guindado por

financiamentos habitacionais e capital fictício; e uma tendência do governo brasileiro

em se firmar na exportação de mercadorias energéticas, passando do etanol à obsessão

pelo pré-Sal. Configurava-se uma tecnoburocracia empresarial-sindical e uma espécie

de imperialismo brasileiro sobre a América do Sul e a África Ocidental.

As reformas sindical e trabalhista foram postas de lado – possivelmente devido à

pressão dos movimentos de 2007 e 2008; porém, o reconhecimento das Centrais e a Lei

das Centrais Sindicais cumpriram perfeitamente o papel de enquadramento sindical em

nível nacional. Mesmo os setores combativos ligados à Conlutas e Intersindical, foram

seduzidos pela possibilidade de criar um aparelho que recebesse verbas do Estado.

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Desde 2006, esta opção se colocou na fundação da Conlutas (CONAT), na qual

prevaleceu, da mesma forma que nas origens da CUT, o centralismo e o direcionamento

à formação de uma direção burocrática, em detrimento das mobilizações e organização

de bases. Foi esta cisão que levou muitos grupos e movimentos a abandonar a Conlutas,

e ao estabelecimento da Intersindical. Esta última depois se cindiu em duas

Intersindicais, uma das quais enfatizava a organização de base e calendários de ação

conjuntos, e a outra, ligada ao PSOL, a formação de uma Central Sindical oficial. No fim,

a Conlutas registrou-se no Ministério do Trabalho, tornando-se CSP-Conlutas, e

configurando uma central reconhecida juridicamente pelo Estado – e esvaziada de

movimentos de base. A Intersindical, cindida, enfrentou crescentes dificuldades.

Na verdade, o êxito explosivo das mobilizações nacionais de 2007, contra

tentativas do governo petista de modificar a legislação trabalhista (com leis de

flexibilização e contratação autônoma), seguido pela traição das burocracias sindicais –

especialmente da direção da APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do

Estado de São Paulo), que aceitou a criação de um fundo de pensão e desmobilizou o

epicentro de um enorme movimento grevista docente prestes a se iniciar e que dava

sustentação às greves do funcionalismo público paulista, das universidades estaduais e

de todo o movimento pelo país, que englobava ocupações de terras e reitorias – levou as

direções sindicais de esquerda a trocar a unidade pela base por um projeto de

construção de aparelhos burocráticos e Centrais Sindicais, o que determinou a

desmobilização de uma nascente oposição de esquerda ao PT, e a absorção do

sindicalismo de oposição restante pelo Estado. Desde então, as esquerdas deixaram um

espaço vazio e passaram de forma regressiva e reativa a cada vez mais defender (ainda

que indiretamente) o governo do PT como um ―mal menor‖ face à ascensão da direita,

gravitando ao redor deste – o que foi agravado pela debilidade em criar mídias

alternativas autônomas, fato que levou a esquerda nacional a se pautar pela propaganda

da blogosfera petista na internet.

Prevíamos, nas discussões daquele momento, uma escalada fascista a nível

nacional como reação à crise capitalista e fruto da desmobilização das lutas de classes.

Cabe lembrar que eventos aparentemente insignificantes – como o episódio das vaias

sobre Geisy Arruda pelo seu vestido curto, já eram significantes fatores que indicavam

um fascismo difuso em incubação no imaginário coletivo popular.

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De fato, esta escalada fascista ocorreu e se manifesta com toda a força no

presente momento – na medida em que as novas direitas políticas ocuparam o vazio na

sociedade deixado pelo PT e pelas esquerdas que gravitaram ao redor deste. O PT trocou

a crítica do capitalismo por um projeto ―desenvolvimentista‖ de gestão de crise e do

capital. Abandonou as lutas sociais de base, para se integrar ao aparelho de Estado,

formando uma ampla camada de novos-ricos e gestores. Dando aplicação a uma certa

leitura muito popular de Gramsci que preconiza a ―marcha por dentro das instituições‖ e

a ―disputa pela hegemonia‖, o movimento social de bases foi desmobilizado e seus

quadros em grande parte absorvidos para dentro dos aparelhos gestoriais – deixando a

classe trabalhadora e a sua resistência enfraquecidas e desorganizadas. O que restou da

esquerda radical, fragmentou-se cada vez mais em seitas que deliram ao sabor da

ideologia como falsificação e autoengano, ou em disputas de direção – o que agrava o

seu afastamento em relação às bases de trabalhadores. Igrejas pentecostais adentraram

a fazer adeptos de forma acelerada, por justamente captarem as malhas de solidariedade

comunitárias existentes na base da população, e fazerem o trabalho de bases que a

esquerda não faz, com uma linguagem muito mais acessível do que o ideologismo das

seitas políticas. Além disso, a promessa da abundância e enriquecimento oferecida pela

“teologia da prosperidade” é muito mais sedutora do que o ―socialismo da miséria‖ da

renúncia cristã ascética e franciscanista preconizado pelas esquerdas. Estas, como

―generais sem exército‖, deixam a luta de classes para se dispersar e fragmentar em

aspectos multiculturais, corporativismos diversos e discursos moralistas – ou se lançam

ao desespero de greves ou ocupações suicidas e reativas sem adesão de bases,

expressando pragmatismo e ativismo cegos. Além disso, a popularização de uma

pseudofilosofia e de “teóricos-pop” da direita com as formulações mais absurdas

possíveis expressa uma indigência intelectual que se tornou possível pelo ―silêncio dos

intelectuais‖ e o vazio provocado pela administração de crise petista. Assim, criou-se

uma grande fantasia, onde o PT é visto como tudo aquilo que ele não é: uma ―ameaça

comunista‖ a ser combatida pela ―nação em cólera‖. Ante o delírio da nova direita, boa

parte da intelectualidade de esquerda e a blogosfera governista retroalimentam este

mesmo delírio fundamentado nesta mentira comum: de que o PT seria uma gestão de

―esquerda‖. O único antídoto para a histeria paranóica emotiva e ficcionalizante que

tomou conta do país seria colocar as coisas no seu devido lugar e dizer o que deveria ser

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dito: que o PT não é de esquerda e muito menos socialista ou comunista, nem

aqui, nem na China.

A classe trabalhadora, ante o fracasso das ondas de lutas de 2007-2008, foi cada

vez mais absorvida pelo discurso do ressentimento, pela despolitização e uma frustração

do homem comum, que passaram a alimentar a direitização e os discursos de ódio

atualmente presentes. O PT, pelo seu projeto de governabilidade, aliou-se com o que

havia de mais retrógrado na sociedade brasileira – desde bancadas evangélicas, até

empreiteiras que financiaram a Ditadura Militar, o malufismo e ex-membros da

ARENA, além do fisiologismo do eterno ―centrão‖, o PMDB. Assim, como Maurício

Tragtenberg já descrevia em 1954 em seu artigo “Rússia atual: produto da herança

bizantina e do espírito técnico norte-americano” o processo de burocratização da

Rússia Soviética, de forma similar ocorreu uma “pseudomorfose” dentro do governo

petista. O termo, oriundo da geologia, descreve o processo pelo qual uma rocha é

esvaziada de seu conteúdo e preenchida por dentro por sedimentos de outra rocha

diferente, que se solidificam, consolidando uma rocha que se esconde sob a casca de

uma mais antiga. Tragtenberg usava esta metáfora para descrever a burocratização do

Partido Comunista da União Soviética. Esta mesma metáfora pode descrever o processo

do PT – que nunca deixou de ser um partido ―católico‖, e ―pragmático‖ ao estilo do

sindicalismo de resultados americano – que ao desmobilizar as lutas e organizações de

base dos trabalhadores, e se integrarem como gestores ao Capital, incubaram dentro de

seu governo o fundamentalismo religioso, o fisiologismo oportunista do PMDB, a

extrema-direita e o conservadorismo, que começam a romper a casca do ovo da

serpente. Assim, o PT incubou a serpente que começa a sair e querer livrar-se dele.

Tornou-se a ―Geny‖ nacional a ser apedrejada, e perigosamente permite que as

esquerdas se tornem o bode expiatório da crise, abrindo espaço para um perigoso

fascismo difuso, multicultural e ultraliberal na economia. Muito deste processo já podia

ser depreendido e antecipado desta análise que agora publicamos. Cabe fazer a pergunta

– se as esquerdas sairão finalmente da barra das saias do PT, se assumirão um

calendário de lutas práticas e concretas, fundadas na unidade pela base e um calendário

próprio, permitindo sua refundação, e a construção de um projeto radical antimercantil,

ou se naufragarão junto ao PT e seu projeto em colapso.

***

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Algumas considerações sobre o PT e o Governo Lula:

O PT como derrocada das esquerdas no Brasil

(escrito em meados de 2008)

1) O PT se desenvolveu dentro da perspectiva de gerir a economia capitalista, não de

superá-la. Sua crítica social não superou os limites do distributivismo e nem

mesmo a noção comum de socialismo como gestão estatal do Capital. Assim, o

partido e a burocracia sindical da CUT que lhe serviu de base funcionaram como

uma escola de gestores para assumir cargos burocráticos. E os teóricos do

partido, em peso, atuaram como ideólogos do desenvolvimentismo. A leitura

marxista feita nesse âmbito interpretou a teoria econômica de Marx no sentido

positivo, as categorias do capital como categorias a serem geridas, e

não superadas. O radicalismo inicial do partido não foi de fato uma negação do

mundo existente, mas uma crítica distributivista cega às formas de produção: a

produção mercantil, a lei do Valor, foram naturalizadas. Abriu-se mão de uma

leitura negativa (superadora), para uma leitura positiva (administradora) do

Capital.

2) O PT, como conseqüência, fetichizou a democracia liberal e orientou

gradualmente todo o foco de ação para a conquista de cargos dentro do aparato

sindical burocrático existente, parlamentos e depois no executivo. E o corolário

do processo é a atual gestão de empresas estatais, de ações e Fundos de Pensão. A

estratégia foi a entrada dentro do sistema, a ―colonização‖, o aparelhamento

infiltrador das instituições capitalistas pelos quadros que se convertiam em

gestores e saltavam das burocracias sindicais e acadêmicas (que lhes serviam de

escola e trampolim) para a gestão econômica. A democracia parlamentar foi

transformada numa vaca sagrada cujo objetivo seria a conquista da hegemonia.

Abriu-se mão da crítica das formas sociais, para se atribuir tudo a problemas de

gestão, problemas políticos e de hegemonia ideológica. A possibilidade de crítica

radical das estruturas sociais e das instituições foi deixada de lado em favor da

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―longa marcha dentro das instituições‖. Tal processo só poderia abrir espaço aos

carreirismos e o oportunismo.

3) O processo do PT está inseparavelmente ligado ao da CUT e do Novo

Sindicalismo do ABC. A evolução capitalista do PT e da CUT não representaram

uma ―vitória‖ das lutas operárias do ABC nos anos 80, mas sim a derrota e

destruição destas. A CUT se construiu sobre a destruição das comissões de

fábrica e a instrumentalização dos movimentos de base. Houve, desde o

princípio, um intenso conflito entre o grupo verticalista e cupulista, e o

movimento de base das comissões, mais horizontalista. No final, venceu o grupo

que hoje está no poder, que optou por entrar na estrutura sindical existente, bem

como nas instituições existentes. O Novo Sindicalismo logo envelheceu, e o lema

―CUT pela base‖, que era defendido no início não passou de mais um slogan. A

CUT, que pretendia superar o velho modelo sindical, dos Joaquinzões e Ari-

Campistas da velha guarda pelega do corporativismo de origem getulista, acabou

repetindo as mesmas formas de organização e práticas, mas com um discurso

mais classista, apenas.

4) Nasceu uma burocracia sindical, que serviu de base concreta para a edificação da

burocracia partidária. Mas, por muito tempo, por ser oposição, estar fora do

poder, faltarem recursos materiais e por ainda haver intensos movimentos

populares de base, tanto a CUT como o PT ainda não se degeneraram em passo

tão adiantado. Havia ainda muito de conteúdo de base ali presente. Este processo

de integração do partido-movimento ao Capital se deu lentamente e não sem

conflitos. A radicalidade das bases ainda forçava a representação a manter

alguma coerência ou alinhamento de esquerda, por muito tempo. A partir deste

ponto, se abrem dois caminhos diferentes: o caminho do movimento da base

(descendente) e o da representação (ascendente). A representação entrou numa

relação de oposição com as bases. O enfraquecimento e apassivamento das bases

fortalecia a representação. Ao mesmo tempo, a representação contribuiu

fortemente para a destruição dos movimentos de base, pois eram um obstáculo

ao seu projeto gestorial. O processo de refluxo da base foi o processo de ascensão

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das representações, que chegaram ao poder no momento em que praticamente as

bases não mais se apresentam organizadas.

5) Como percebeu Mauricio Tragtenberg em 1982, ―O voto universal é a aparência

do governo popular. Os eleitos acabam por emancipar-se da dependência do

povo, e a política torna-se ciência oculta que a população não entende. (...) O

Partido dos Trabalhadores que inicialmente constituiu uma esperança de

valorização da auto-organização dos mesmos, ao eleger o caminho eleitoral

tende a formar, em cada trabalhador vereador, deputado ou senador, um ex-

trabalhador. Se não definir com clareza seu objetivo em termos de mudança

estrutural, poderá ser cooptado pelo regime transformando-se em seu “braço

esquerdo”. A eleição de Mitterrand na França e de Gonzales na Espanha

mostram a tendência do capitalismo em crise optar por solução “social-

democrática” (reformar para não mudar). Isso, na França, tem levado

Mitterrand a propor o congelamento de salários e realizar uma política de

“austeridade”, na mesma linguagem que o ministro Delfim Neto usa aqui há

anos, e economistas do PMDB propõem como “solução alternativa” para a

crise: racionalização. Esse conceito pode significar para o trabalhador, a

manutenção das condições terríveis de trabalho, superexploração da sua força

de trabalho. Vença quem vencer as eleições, nada muda no interior das

fábricas, nos campos e nas oficinas. Nos escritórios, nos bancos, nos hospitais.

As relações hierárquicas de dominação e exploração continuarão as mesmas, só

que administradas por um governo que, em “nome do povo”, poderá pedir-lhe

“sacrifícios” e, se for o caso, usar o aparelho repressivo do Estado como

usaram-no todos que ocuparam o poder de Cabral até hoje.‖ (O voto e as ilusões

– 14 de Novembro de 1982 no suplemento ―Folhetim‖ do Jornal Folha de São

Paulo.‖)

6) Ninguém poderia ser mais profético do que Tragtenberg. O PT, a cada eleição,

produzia mais ex-trabalhadores. O processo de ganho de cadeiras em

parlamentos foi desviando o foco das lutas sociais de base e do movimento real

para a ilusão política-parlamentar. E a degeneração foi proporcional ao nível em

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que isso ocorreu. Dos discursos radicais de base que evocavam uma democracia

radical, chegou-se ao eleitoralismo mais tosco e populista. Dos velhos militantes

de base, sobraram quadros de oportunistas, especialistas em poder que

atualmente ocupam postos de comando e gestão da crise, através de métodos

assistencialistas, clientelismos, paternalismo, como manutenção de um projeto

de poder que inclui a ascensão social dos ex-operários ao poder.

7) A burocracia sindical também foi se degradando lentamente. Destruía comissões

de fábrica com práticas de delação e violência física. Optou por um sindicalismo

de negociação e representação, ao invés da organização de ―chão de fábrica‖. Para

se conseguir o monopólio da representação, o movimento de base ou era

enquadrado, ou destruído. Depois, a entrada do dinheiro do FAT (Fundo de

Amparo ao Trabalhador), dado por FHC, permitiu que a CUT (e demais centrais)

se tornasse gestora de somas vultosas de dinheiro e cumprisse um papel de

agência gerenciadora e treinadora de força de trabalho para o Capital.

8) Depois vieram os Fundos de Pensão (previdência), e a aceitação das ofertas

patronais de Participação nos Lucros e Resultados de empresa. Com estas

práticas, a burocracia sindical passou a se apropriar de parte da mais-valia dos

trabalhadores (o que antes só fazia através do imposto sindical). E indiretamente,

a enquadrar e gerir a força de trabalho. Assim, o sindicalismo cutista se tornou

um monopólio que administra e detém o capital variável (força de trabalho). O

aumento salarial passa a ser fonte de aumento dos descontos sindicais e imposto

sindical. Esta opção não se configurava como uma ―traição‖, mas como parte de

uma visão política de gestão do sistema e entrada dentro das instituições. Toda

fonte de recursos é vista, nesta perspectiva, como um aparelho de poder para o

partido. Os quadros tentariam, então, assumir a gestão de todos estes aparelhos.

9) Com todo este processo, de capitalismo sindical e práticas de negociação,

somados a uma concepção política redistributivista e gestora do mundo existente,

o PT e a CUT não tardaram a apresentar sinais fortes de cooptação pelos gestores

do Capital e empresas. Passou a fechar acordos e convênios com empresas; e no

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caso da negociação coletiva, bem como dos Fundos de Pensão e PLR, os

sindicalistas passaram a sentar-se à mesa e gerir o Capital de forma associada às

empresas capitalistas.

10) Gestão de Capital, profissionalização dos dirigentes, hierarquias sindicais,

estruturas sindicais burocráticas e com exércitos de especialistas em poder

profissionais. Quando as bases questionavam minimamente isto, a burocracia

sindical não dispensou práticas estilo Jimmi Hoffa: contratação de seguranças e

todas as conseqüências disto.

11) A intelectualidade petista, não sabendo preservar a autonomia da teoria, e ao

mesmo tempo, procurando ou desconhecer totalmente as práticas reais do

movimento (se isolando dentro dos muros acadêmicos) ou legitimá-las

descaradamente, continuou pintando de cor de rosa o partido. Agiu de forma

acrítica e cega em relação às degenerações do partido. Não teve autonomia

suficiente para criticar o processo de forma conseqüente, salvo raros casos. O

gangsterismo sindical simplesmente não existia, mas sim um ―projeto popular‖.

Ou então, era um ―mal necessário‖. Dentro das academias, com seus estudantes

militantes, praticamente nada se sabe do que passa nas bases.

12) Os ideólogos do partido forjaram uma fabulosa teoria do aparelhamento e do

bonapartismo, saqueando e distorcendo a obra de Gramsci. A estratégia seria

esta: formar uma escola de gestores que irão disputar a hegemonia das

instituições existentes e depois geri-las, num projeto de uma democracia ideal.

Nas academias floresceu uma horda de intelectuais e teóricos do poder e da

administração, economistas e especialistas em planejamento econômico. Ou seja,

planejar e gerir o mundo da mercadoria, abrindo mão de criticá-lo.

13) Ainda em 1989, quando das eleições presidenciais e quando Lula chegou ao

segundo turno contra Collor, o PT se encontrava ainda em processo de

tensionamento. Havia amplos movimentos de base e um enfoque classista na

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campanha. A queda do Muro, a campanha da direita, os golpes midiáticos

engendraram a derrota. A partir dali, o processo de degeneração que se

engendrava se esgarçou, o movimento de base entrou em declínio definitivo, e as

representações terminaram de se descolar das bases e seguir o rumo gestorial,

sobre os escombros do movimento de base. Uma vitória eleitoral ali não teria

conduzido a algo diferente que um governo de esquerda estilo chavista. Mas a

derrota foi o ponto de inflexão, a partir do qual a cisão interna do movimento se

tornou mais evidente.

14) A ofensiva ideológica do Capital em nível mundial, após a queda do Muro e o

colapso dos países ditos socialistas e do nacional desenvolvimentismo do terceiro

mundo, colocaram a esquerda em defensiva. O processo de crise global que se

abria com a Terceira Revolução Industrial inviabilizou definitivamente toda

tentativa de gestão nacional-desenvolvimentista em moldes estatistas. A

esquerda clássica desabou justamente com esta mudança estrutural. Somou-se a

este processo a reestruturação produtiva do Capital, que fragmentou e dispersou

as grandes aglomerações operárias e industriais, cedendo espaço à ilusão

ideológica do ―fim das classes‖, e acelerou a destruição das bases operárias. A

ameaça do desemprego também foi um poderoso fator de dissolução daquele

ciclo de lutas. A baixa da organização de base e das lutas foi o trampolim para a

ascensão dos quadros gestoriais das representações, bem como a concentração do

partido em setores de uma classe média (por exemplo, sindicalizando gestores de

empresa – como ocorre com freqüência nos bancos).

15) Com todo este processo, não houve nada absolutamente surpreendente na

chegada de Lula ao poder em 2002 e nas suas conseqüências. O PT não traiu os

trabalhadores depois que chegou ao poder, mas só chegou ao poder porque traiu

os trabalhadores desde o início. Ou melhor: o PT foi coerente com a escolha que

fez, com a positivação do sistema e a opção por geri-lo, ao invés de criticá-lo em

busca de sua superação. Nesta perspectiva, não houve traição, mas um processo

coerente com seus propósitos (e a destruição do movimento de base e das

dissidências internas).

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16) O PT poderia ser chamado, então, de Partido dos Gestores. Formou-se ali todo

um setor de técnicos e especialistas cujo único objetivo era a técnica e a gestão.

Com a moderação do discurso ao longo dos anos 90, o PT ganhou a adesão de

todo um setor da classe média raivosa e em proletarização, de quadros gestoriais

e ex-operários ascendidos à classe média, que usavam o discurso ―classista‖ de

esquerda para encobrir suas ambições de ascensão social ao posto da elite

gestorial.

17) A primeira Reforma da previdência, para além do saco de maldades do aumento

da idade de aposentadoria e a ruidosa taxação dos inativos (que serviu de cortina

de fumaça, onde as esquerdas ―radicais‖ cumpriram bem seu papel), conteve

como essência a transferência da maioria dos recursos previdenciários públicos

para Fundos de Pensão criados, que passaram a ser geridos pela poderosa

burocracia sindical e seu exército de técnicos acadêmicos (que possuem inclusive

fundamentação teórica para fazer isto).

18) Destes Fundos de Pensão, bem como das empresas estatais geridas pela

burocracia sindical, surgiu o dinheiro do ―mensalão‖. O mensalão funcionou

como um mero projeto de poder para aprovar as reformas. Dos crimes deste

governo, o desvio de dinheiro e a corrupção ainda são os menores, quando

comparados às reformas que atacam diretamente as condições de vida de milhões

de trabalhadores. A imprensa fez questão de destacar justamente os aspectos

superficiais (corrupção, cargos) gerando um circo ruidoso que encobre o projeto

de desmonte da legislação trabalhista e previdenciária. Não se tratou de casos de

corrupção individuais, mas de um projeto comum de toda uma elite tecnocrática

ascendida ao poder.

19) O PT, com a aprovação do Super-Simples, decretou o fim dos direitos trabalhistas

para os trabalhadores de micro e pequenas empresas. Facilmente, uma grande

empresa pode converter seus departamentos internos em micro-empresas

jurídicas (e os gestores viram proprietários, mas o Capital continua concentrado)

para burlar a legislação trabalhista. A Emenda 3 constituiu uma tentativa de

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liquidar a carteira de trabalho em prol da contratação de autônomos. Foi barrada

pela pressão popular. Mas a CUT sabotou o movimento produzindo um

movimento paralelo em apoio ao veto de Lula à Emenda 3. Convém lembrar que

Lula só vetou por questões de fiscalização trabalhista, mas nunca se opôs ao

projeto. De certa forma, as burocracias sindicais perceberam também que com a

Emenda 3, acabando a carteira de trabalho, acabariam os recursos que as

sustentam, pois a sindicalização cairia.

20) As Reformas da Previdência se resumem a: enxugamento da máquina,

aumento da idade de aposentadoria e transferência de recursos para Fundos de

Pensão, geridos pela tecnocracia do partido. Os Fundos de Pensão viraram

aparelho de poder do partido e fonte de recursos de campanhas. Alguns ideólogos

afirmam que a aquisição de Capitais e ações poderia ser uma arma dos sindicatos

para expropriar recursos e assumir o controle de empresas. De fato, a burocracia

sindical faz isto, mas os resultados são muito diferentes: a conversão dos

sindicalistas em capitalistas que se alimentam da exploração trabalhista. Em

casos extremos, os sindicatos podem mesmo se tornar poderosos patrões, como

os sindicatos europeus ou em Israel.

21) O Estado, em crise de financiamento justamente por ter de desonerar as

empresas capitalistas em crise (devido à queda da taxa de lucro), lança suas

estruturas sociais na caldeira do Mercado. A crise mundial da produção de valor

(mais-valia), gerada pela Terceira Revolução Industrial, atinge em cheio os

recursos do Estado, que sofre o desmonte. O Estado Restrito (Nacional) perde

toda a potência por falta de recursos e a economia totalitária é quem de fato

segura as rédeas. A Política (institucional) gira em falso, após perder sua função

modernizadora. Resta a ela a função de gestora da crise capitalista e da barbárie

social.

22) As Reformas Trabalhistas vão sendo feitas a conta-gotas, o que quebra a

resistência social. A lógica é simples: remover as barreiras à exploração

desenfreada de força de trabalho, possibilitando que com a superexploração

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(mais-valia absoluta – prolongamento de jornada e rebaixamento de salários) se

alivie a crise de valorização do Capital e se protelem os efeitos da crise. A China é

logo ali.

23) A Reforma Agrária não foi feita. O Latifúndio é acariciado e os usineiros se

tornaram na boca do presidente os ―heróis da nação‖. O número de mortes no

campo cresceu. Um acordo de exportação de etanol para os EUA ameaça

transformar o Brasil numa Arábia Saudita do álcool e aumentar o trabalho

escravo nos canaviais em proporções inimagináveis, com todas as conseqüências

ambientais: mais desmatamento e destruição do solo. E transpõe-se o Rio São

Francisco, ameaçando uma catástrofe ambiental, para não fazer reforma agrária e

não tocar no Santo Latifúndio no Nordeste. O governo aprovou lei que acaba com

a carteira de trabalho para os bóias-frias (cortadores de cana), alegando ―facilitar

o emprego‖.

24) Os movimentos sociais urbanos nunca foram tão reprimidos e perseguidos, e

sem proteção nenhuma do ―governo de esquerda‖. A cada dia, os pobres que

vivem em áreas irregulares são despejados pela ânsia voraz da valorização do

Espaço. As forças policiais que cumprem estes despejos praticamente viraram

tropas privadas a serviço das incorporadoras e da especulação imobiliária.

25) O Governo mandou as tropas brasileiras ao Haiti para reprimir os pobres e

treinar para a ocupação das favelas brasileiras. Se dissemina a lógica da

militarização das periferias, atendendo aos interesses da propriedade territorial,

das incorporadoras, especulação imobiliária e empreiteiras, a quem interessa

―varrer o lixo humano‖ para longe. Democracia para os ―incluídos e

consumidores‖, ditadura e absolutismo sobre os não-rentáveis.

26) A mídia, junto com toda a oposição moralista e facistóide da direita, contribui

com o Governo, ao fazer uma verdadeira cortina de fumaça espetacular que

encobre o pesadelo das reformas, da precarização do trabalho e perda de direitos

sociais – crimes que movimentam bilhões, ao passo que os escândalos de

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corrupção movimentam milhões. Mas estes são eleitos novela e circo popular. O

que é mais sério não se discute.

27) As políticas assistencialistas das ―bolsas‖ anestesiam a consciência de poderosos

movimentos sociais e retiram-nos das lutas reivindicativas, consolidando um

voto-de-cabresto pós-moderno e um projeto de poder assentado no paternalismo,

clientelismo e assistencialismo. Diga-se de passagem, a prática que o PT adota

dentro dos sindicatos em sua relação com a base é exatamente esta – manter as

bases em estado de passividade e submetidas por políticas assistencialistas.

Quando estas falham e a base quer se apresentar, recorre-se aos seguranças

particulares e a ação repressiva. Os movimentos populares e sindicatos, atrelados

ao Estado, perdem a autonomia de ação para converterem-se em base de apoio

do governo.

28) A Reforma Sindical se constitui num projeto de atrelamento das estruturas

sindicais ao Estado, através do reconhecimento das Centrais (entre as quais a

CUT e a Força Sindical, além de uma série de outras pequenas centrais fundadas

por oportunistas que apenas desejam receber verbas e repasse de dinheiro do

governo) e distribuição de verbas a estas. É a outorgação do Capitalismo Sindical.

Destruição das assembléias de bases, decisões pela cúpula. Criminalização da

greve, ―negociação coletiva‖ onde a burocracia sindical vende os direitos

trabalhistas em troca de ações (isso pode mesmo dispensar uma reforma

trabalhista, que será feita via sindicatos). Verbas milionárias distribuídas às

centrais – onde vale o provérbio ―quem paga a conta escolhe o cardápio‖ –

significa o atrelamento político dos sindicatos ao Estado, o fim da autonomia e

independência sindical (que no Brasil até hoje não existiu de fato, dado que nossa

estrutura sindical é getulista e tutelada pelo Estado, em molde corporativista de

cunho fascista). Enquadramento sindical (pelo Ministério do Trabalho e por uma

comissão especial), impossibilitar a criação de novos sindicatos (ao exigir

representatividade mínima), mas dá direito às centrais de criar ―sindicatos

biônicos‖ paralelos e assim destruir os sindicatos de oposição. Quebra da unidade

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sindical, para fragmentar os trabalhadores com o ―pluralismo sindical‖ e os

―sindicatos por empresa‖. Enquadramento e oficialização das comissões de

empresa (ao oficializá-las, permite-se ao patronato assumir o controle sobre

elas). O saco de maldades não fica nisto. Uma lista seria assombrosa.

29) A corrupção, o ―mensalão‖, os desvios de verbas e o aparelhamento do Estado,

que as revistas liberal-tecno-facistódes de classe média gostam de denunciar,

nada mais são que parte de um projeto de poder para justamente consolidar a

gestão econômica pelas burocracias sindicais e para viabilizar as reformas que

irão miserabilizar a força-de-trabalho a nível nacional, convertendo o Brasil num

grande México (com algo semelhante a um PRI no poder, inclusive). Só é possível

compreender a totalidade do projeto se analisarmos as relações entre a corrupção

e as reformas trabalhistas.

30) A chegada do PT ao poder também constituiu um meio fabuloso de

ascensão social para burocratas sindicais e partidários, ex-trabalhadores

convertidos em gestores e candidatos a classe dominante, que se tornaram

capitalistas ao entrar nos aparelhos de poder institucionais. Assim, temos um

exército de novos-ricos extravagantes, que fumam charutos cubanos, tomam

Romanée-Conti, andam de Land Rover, e possuem belas casinhas em Ilhabela

com belas garotas. Trocou-se o macacão pelo terno Armani.

31) O PT representou o fracasso e a consequente cristalização, institucionalização e

burocratização de todo um movimento de lutas sociais (de mais de 20 anos), bem

como sua integração ao sistema capitalista e transformação em mola propulsora

da administração e acumulação do Capital. Este processo não se deu sem

conflitos, conforme já dito. Nos encontramos, agora, no final deste ciclo, e em um

período de transição, onde elementos do velho se misturam ao novo, no qual não

temos uma visão clara e a fragmentação é muito grande. De uma forma geral, os

gestores de empresa perceberam que a estrutura sindical baseada na ―negociação

coletiva‖ é muito conveniente, por anular conflitos e possibilitar a recuperação do

movimento a serviço da acumulação do Capital. Não à toa, hoje, quando uma

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empresa nova abre em uma região, não raramente ela já chega com um sindicato

com direção eleita.

32) Como conseqüência da crise do Estado Restrito (Nacional) provocada pela

desvalorização econômica mundial (que mina as fontes financeiras do Estado,

que se alimenta justamente de tributar parte da Mais-Valia), bem como a

interligação transnacional das empresas, criando mecanismos de poder

transnacionais que organizam as condições gerais do Capital por cima dos

Estados Nacionais, a Política institucional ficou impotente ante a Economia. Já

cumpriu sua função nacional-modernizadora, e agora se converte num aparelho

do Estado Amplo mundial, cuja função é apenas a de administração de crise. O

PT, se chegasse ao poder há 30 anos, provavelmente estaria montando um

imenso Capitalismo de Estado (e boa parte das oposições de esquerda atuais ao

governo estaria batendo palmas e querendo cargos na gestão) com política

stalinista. Mas chegou ao poder no momento em que o poder do Estado Amplo

(Soberania das Empresas) superou e aparelhou totalmente o Estado Restrito

(Nacional), bem como o Estado nacional em crise e impotente ante a economia

descontrolada no piloto automático. O Governo do PT manifesta a crise da

Política e do Capital. O nacional-desenvolvimentismo clássico, já não mais

possível devido à crise de valorização, se torna um desenvolvimento estilo chinês,

às custas da exploração brutal de uma massa proletarizada no setor da mais-valia

absoluta. O Brasil funciona como um dos laboratórios mundiais deste processo.

33) Não podendo mais desenvolver a economia (o projeto ―positivo‖ do marxismo

oficial), o PT limita-se a gerir a crise. Assim, os diversos governos de esquerda no

mundo todo, se transformam em hábeis administradores da crise do capital e não

oferecem nenhuma alternativa à barbárie social que se alastra. Pelo contrário, o

fracasso dos projetos de esquerda e a falta de um projeto alternativo constituem

em terreno fértil para o neofascismo tecnocrático e impessoal do mercado e das

direitas moralistas. O discurso repressor culpa os pobres e seus ―representantes-

capatazes‖ pela crise e legitima a meritocracia e o extermínio social do ―lixo

humano‖ dos que não-trabalham, daqueles que foram declarados ―não-rentáveis‖

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pela Terceira Revolução Industrial. A multiplicação geométrica das empresas de

segurança privadas, os esquadrões de extermínios e a apologia facistóide como a

do filme ―tropa de elite‖ ilustram bem este quadro. As elites se fecham em

bunkers high tech cercados de favelas com ocupação militar. Esse é o caráter da

nova guerra mundial, a guerra de extermínio social.

34) As oposições da direita e do ―Cansei‖ legitimam o governo e suas reformas. Sua

briga é apenas por poder. O fracasso de um projeto socialista (o PT de fato tinha

um?) abre caminho para a direita mais raivosa e fascistóide, com o discurso da

moralidade, e da segurança pública do extermínio dos pobres. Não criticam o PT

por seu papel de cooptação e traição descarada, mas sim por terem origem

―operária e pobre‖, ―o presidente analfabeto‖, ―nordestino‖, e etc (justamente as

características mais positivas que o PT deixou de ter há muito tempo).

35) O Governo do PT se coloca como: a)morte histórica da esquerda

desenvolvimentista; b) manifestação da crise do trabalho; c)crise da Política

institucional, decorrente da crise de valorização; d) gestão de Crise; e) ascensão

social de ex-trabalhadores convertidos em técnicos e cujo único objetivo é a

técnica – representa na verdade o fracasso de toda a concepção do marxismo da

produtividade e que prescrevia a conquista do Estado visando o desenvolvimento

das Forças Produtivas. A mais importante lição que ele nos deixa é redescobrir o

Marxismo que faz a crítica radical das relações sociais e que não se dispõe a geri-

las para desenvolver a economia, mas sim negá-las e superá-las. A reorganização

das forças de resistência social é urgente, não a partir de utopias e programas

ideológicos abstratos e anacrônicos (que serviam para enquadrar e disciplinar a

realidade aos ditames do desenvolvimento econômico), mas sim a partir de uma

plataforma imediata de acordo mínimo visando barrar as reformas e a lógica de

barbárie social e a partir das forças reais acumuladas na luta, formular

alternativas. Paralelamente a isto, se faz necessária a construção de uma teoria

radical que sirva de expressão ao movimento, explique o que está acontecendo,

levante as questões que o espírito do tempo exige, e abra uma perspectiva radical

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de contestação da lógica do Capital e de seus efeitos destrutivos, visando

desarmar a bomba-relógio do Capital.

Referências

O aludido artigo de nossa autoria intitulado “A Crise Política é a Crise da

Política” foi publicado no Caderno Político 2, da Associação de Professores de Filosofia

do Alto Tietê (APROFAT), Editora Ilustra, 2005. O artigo mencionado de Maurício

Tragtenberg intitulado “Rússia atual: produto da herança bizantina e do espírito

técnico norte-americano” foi publicado originalmente em 5 de Abril de 1954 pela Folha

Socialista, e republicado em Educação & Sociedade, Campinas, vol. 29, n. 105, p. 969-

977, set./dez. 2008, disponível em

<http://www.scielo.br/pdf/es/v29n105/v29n105a02.pdf>, acessível nesta data de 29 de

Março de 2015.

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PASSEIO PELAS GREVES PARANAENSES

DA EDUCAÇÃO EM ALGUMAS NOTAS

G. Émeutes

Protetor solar fator 30

O ano de 2015 começou quente em terras paranaenses. Mais do que o verão

ensolarado na Ilha do Mel, as altas temperaturas eram resultado da luta encabeçada

principalmente por professores do ensino básico, engrossada pelos colegas do ensino

superior, contra o descontrole e destempero do desgovernador Beto Richa.

Os instrumentos de luta surtiram efeito de uma maneira animadora. Os

professores do ensino básico, por exemplo, organizaram duas assembleias históricas,

lotando um estádio de futebol (diga-se de passagem: o maior público num estádio em

terras paranaenses no primeiro semestre!), organizando acampamentos de vigília,

caminhadas que lotaram as ruas de Curitiba. Houve principalmente a ocupação da

Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (Alep). As táticas de ação direta se faziam

valer, como que deixando para trás o ímpeto já normalizado da negociação de gabinete.

Com isso, o ânimo geral diante da conjuntura de luta era visível.

Estaríamos diante de uma reação convincente ao ataque conservador que toma as

ruas do Brasil? Estariam os trabalhadores reaglutinando forças para o enfrentamento

contra a conjuntura de crise e agudização neoliberal? Seria o Paraná a ponta de lança

vanguardista que daria o tom dos enfrentamentos inevitáveis diante do quadro nacional

de ataque aos direitos dos trabalhadores? Estaria, enfim, chegando a hora de vencer,

para além do espasmo eventual, a incapacidade reinante de organização à altura do

tempo?

As greves dos trabalhadores em educação no Estado do Paraná desdobradas nos

primeiros meses de 2015 foram mais do que isso. De fato, o quadro é mais complexo,

pouco convidativo para um irradiante ânimo solar. O sol escaldante e o terreno árido

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exigem mais do que ânimo. Houve de tudo. Se vimos assembleias como não se faziam

desde fins da década de 1970, também vimos a fuga da luta nas ruas no momento em

que as organizações de direita de novo tipo passaram ao ataque. Se estivemos diante da

possibilidade de uma unidade sindical por tantos sonhada, vimos as brigas mais

mesquinhas e as dificuldades de sempre. Se a derrocada da figura do governo diante da

opinião pública foi vertiginosa, as organizações de trabalhadores não conseguiram

aglutinar a população em torno de sua simbologia.

Perceba-se: os tempos são de luta, os antagonismos sociais estão visíveis, mas

isso não levou para além da reação defensiva. Como colocar essa complexidade no

papel, no infernal calor da hora?

O que segue é uma tentativa de pensar sobre o momento enquanto ele se

desdobra. Poderia me concentrar em dar uma notícia, jornalisticamente detalhada,

sobre eventos e aspectos do processo. O recurso, porém, não faria jus à complexidade do

evento. A única forma textual que, parece-me, dá conta da questão é a montagem de

notas esparsas e gerais sobre pontos essenciais das greves. Com isso, a liberdade da

crítica se faz presente.

Passe o protetor solar de sua preferência, pois o sol que nos acompanhará

durante esse intuitivo passeio a que te convido não é nada prazeroso.

Barraca com dois dormitórios

Durante a campanha eleitoral de 2014, o governador do Paraná Beto Richa

(PSDB) resumiu em uma estrondosa promessa a sua plataforma para a reeleição: ―O

melhor ainda está por vir‖. Depois de disputar com figuras de peso como o ex-

governador e atual senador Roberto Requião (PMDB) e com a senadora e ex-ministra

Gleisi Hofmann (PT) e conquistar o pleito no primeiro turno (com uma boa margem,

ainda que longe de ser folgada), Beto Richa demonstrou que sua promessa era na

verdade uma ameaça. Ao contrário do que foi propagado com polpudas verbas e apoio

midiático ao longo da eleição, chegamos ao fim de 2014 com a informação de que o

estado do Paraná estava completamente quebrado devido à irresponsabilidade do

governo, mesmo com um significativo aumento na arrecadação de impostos e com

crescimento acima da (tendente à recessão) média nacional. Quem trouxe a escandalosa

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novidade não foi nenhum agente da oposição, mas o novo secretário da fazenda, Mauro

Ricardo Costa, dito especialista em ―austeridade fiscal‖.

A promessa-ameaça, agora capitaneada por Mauro Ricardo, começou a se

materializar ainda em 2014, ao fim do primeiro mandato de Richa. Ao enviar à

Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) um pacote com um conjunto de medidas de

ajuste fiscal, o governo se mobilizou para aprovar à base do tratoraço1 um aumento de

impostos como o ICMS e o IPVA e definir um novo teto para a Paraná Previdência,

seguindo a política adotada pelo INSS. Na passagem de ano, anunciou que não pagaria o

terço constitucional aos servidores que fossem usufruir férias em dezembro e janeiro. Já

em fevereiro de 2015 o governo de Richa enviou à ALEP um novo pacote, apelidado de

pacotaço, dessa vez dedicando a política de austeridade a atacar direitos dos servidores

públicos do estado, como mudança nos anuênios e quinquênios2, restrição da

autonomia universitária com a transferência da administração da folha salarial para o

sistema de pagamentos do estado (conhecido como sistema de RH META-04)3 e,

principalmente, o intento de usurpar o Fundo Previdenciário.

Amparado pela vitória em primeiro turno e pela soberba de praxe, Beto Richa

supôs que poderia botar para quebrar. Mas, quem chutou o pau da barraca foram os

servidores. Assim, a reação dos trabalhadores contra a política de austeridade fiscal foi

forjada pela pressa do governo.

Seguro morreu de velho

Dentre todas as propostas do governo, a mais proeminente é aquela que pretende

mexer no regime previdenciário próprio do estado do Paraná. Como todo sistema

1 Tratoraço foi o singelo apelido dado à truculenta política de aprovar projetos de lei na Assembleia

Legislativa do Paraná por meio da chamada Comissão Geral, que muda o trâmite ordinário de um projeto de lei, eliminando a discussão e aprovação nas comissões específicas (o que normalmente dura um mês em regime de urgência), passando a ser votado imediatamente no plenário (o que dura menos de uma semana em regime de urgência).

2 A proposta visava reduzir os quinquênios dos atuais 1% por ano trabalhado (totalizando 5% de aumento sobre o salário de cinco em cinco anos) para 0,1% por ano trabalhado (totalizando 0,5% de cinco em cinco anos).

3 O pagamento de salários do Estado do Paraná é gerido pelo sistema de RH META-04. Garantindo a prerrogativa constitucional de Autonomia Universitária, o pagamento dos salários das universidades estaduais é feito por sistemas específicos de recursos humanos de cada instituição. A Universidade do Norte do Paraná (Uenp) e a Universidade Estadual do Paraná (Unespar), instituições recentes, estão no META-04. A retirada dessas instituições do sistema de pagamentos do estado se tornou uma pauta dos movimentos grevistas.

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previdenciário, o paranaense é bastante complexo. O Paraná Previdência conta com três

fundos: o Militar, o Financeiro (responsável pelos benefícios daqueles que ingressaram

no serviço público até 2003) e o Previdenciário (responsável pelos servidores que

ingressaram a partir de 2004). O Fundo Militar segue regras próprias à carreira militar.

Os aportes mensais ao fundo financeiro, oriundos da contribuição do Estado e dos

servidores ativos e (desde dezembro de 2014) inativos, caem no Tesouro, que precisa

bancar aposentadorias e demais benefícios. O Fundo Previdenciário, que hoje conta com

uma quantia em torno de R$ 8 bilhões (entre aplicações financeiras, papéis e ações, bem

como imóveis) é superavitário em aproximadamente R$ 130 milhões (segundo os

cálculos do começo do ano, levando em conta dólar e juros em alta) – visando a

construção de uma Previdência que seja autônoma com relação a aportes mensais do

Estado. Diante da crise de caixa, o governo do Paraná não pensou duas vezes e resolveu

passar a mão nos R$ 8 bilhões na forma de fusão dos fundos financeiro e previdenciário

(ou seja, levando os R$ 8 bilhões pra o caixa do Tesouro). Informado por AGU e

Ministério da Previdência da ilegalidade da movimentação e pressionado pelas greves a

ser demovido da ideia, o governo recuou. Porém, com uma nova tática de usurpação do

dinheiro das aposentadorias. Trata-se de uma operação chamada ―segregação de massa‖

– no caso específico, mover os aposentados acima de 73 anos do Fundo Financeiro para

o Fundo Previdenciário. Assim, livrar-se-ia dos gastos com aproximadamente R$ 120

milhões com benefícios o que, no prazo de mandato de Richa, significaria a usurpação

de algo em torno de R$ 6 bilhões do Fundo Previdenciário, minguando sua

possibilidade de autonomia futura e diminuindo sua solvência (que hoje está em 55 anos

e que, com a manobra, iria para menos de 30 anos). É esse projeto que está em pauta

agora na Alep e contra o qual os servidores do estado se colocam. Se há um direito do

capitalismo democrático que mobiliza os trabalhadores, esse é a aposentadoria. O

ataque a esse direito é premissa de qualquer cartilha neoliberal.

Muamba de péssima qualidade

Um especialista em ―ajuste fiscal‖, tal qual o auto-proclamado Mauro Ricardo, é

uma peça política assustadora. Seus préstimos ao capítulo brasileiro do neoliberalismo

impressionam. Funcionário de carreira da administração federal como Auditor-Fiscal da

Receita Federal, tem uma longa ficha corrida de cargos de confiança assumidos desde a

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redemocratização, crescendo em importância particularmente durante o governo de

FHC: em 1995 tornou-se subsecretário de Planejamento e Orçamento do Ministério do

Planejamento, capitaneado por José Serra; assumiu a presidência da Superintendência

da Zona Franca de Manaus em 1996 e, em 1999, tornou-se presidente da Fundação

Nacional de Saúde (Funasa), novamente a convite de Serra, agora Ministro da Saúde.

Em 2002, a convite do então governador Aécio Neves (PSDB-MG, apesar de residir e se

entreter no Rio de Janeiro), assumiu a presidência da Companhia de Saneamento de

Minas Gerais (Copasa). Deixou o cargo em 2005, para estar à frente da Secretaria

Municipal de Finanças de São Paulo, cujo prefeito era... José Serra! Entre 2007 e 2010,

atuou como secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, sob a gestão do governador

José Serra. Voltou à secretaria de finanças o município de São Paulo sob a gestão de

Kassab (PSD-SP), entre 2011 e 2012, assumindo o mesmo posto na prefeitura de

Salvador sob o comando de ACM Neto (DEM-BA), até que foi contratado pelo

governador Beto Richa para promover a política de austeridade no Paraná.

O melhor está por vir: mas, para quem?

Leva para o xilindró

As cenas da ocupação da Alep são um momento à parte. Se há lição a se tirar das

greves, ela está na retomada dos instrumentos populares de luta. Quem não estava

dormindo e duvida do gigante acordado, sabe que a revolução não será tuitada. Enfim,

vale observar a ocupação e compreender que ali o acúmulo de conhecimento em torno

das ações diretas se fez presente – basta juntar lé com cré e intuir que tipo de

organização política nesse país ainda sabe fazer aquele trabalho com a capacidade

demonstrada.

Mas, o que quero mesmo lembrar foram dos instantes reveladores com os

deputados estaduais se esforçando para ir até o fim com o desejo do governo Richa em

ter seu pacotaço aprovado. Num momento de desespero absoluto, os deputados

tentaram entrar na assembleia ocupada e, na impossibilidade de fazê-lo à pé,

recorreram a um camburão para a tentativa. O momento de verdade dessa cena é

absoluto. Só faltou o camburão rumar para o xilindró.

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Cantinho do pensamento

As divergências sindicais são um elemento constitutivo da luta de trabalhadores

em todo lugar do planeta. Até aí nenhuma novidade. Mas, o quadro paranaense é

especialmente emaranhado no caso dos sindicatos das categorias ligadas à educação.

Com sete universidades estaduais, cada qual com sua complexidade sindical, o problema

é grande. Uma pequena notícia do emaranhado ajuda a entender os nós da luta.

Num universo de um pouco mais de 100 mil servidores estaduais, a maior

categoria do estado é a dos 70 mil professores da rede básica de ensino, capitaneada

pela APP-Sindicato (Associação Paranaense de Professores). A APP é hegemonizada

pela CUT, mas conta em suas fileiras uma combativa oposição, majoritariamente ligada

à CSP-Conlutas. A APP mantém ainda grande controle sobre o FES (Fórum das

Entidades Sindicais), que conta com mais 18 sindicatos de diferentes categorias e está

sempre à frente das negociações com o governo. Entre os professores de ensino

superior, há bastante divergência sindical. A maioria das organizações está ligada ao

ANDES (o sindicato nacional dos professores de ensino superior), mantendo a linha da

CSP-Conlutas. Mas, há universidades que têm sua base disputada por mais de um

sindicato, como é o caso de Maringá, que conta com um majoritário sindicato misto

(que atende professores e técnicos-administrativos) e com um sindicato menor

exclusivamente docente, ligado ao ANDES. A Universidade Estadual de Londrina é um

caso à parte, não compondo com nenhuma das associações. Como se pode imaginar, a

tendência é que as picuinhas e divergências sindicais se tornem, com o andar da

carruagem, preponderantes aos aspectos em luta.

Sala de justiça

A APP, que capitaneou os instantes mais decisivos de ação direta da greve (como

as assembleias no estádio de futebol, o acampamento diante da ALEP e sua posterior

ocupação), não poupou esforços também em negociar em separado das demais

categorias até o ponto em que passou a tirar a greve de campo – a base do sindicato,

contudo, obrigou seus dirigentes a recuarem de seu projeto original, estendendo a greve

por pelo menos mais dez dias, até que a judicialização da luta (aliás, também requerida

pelo sindicato) fizesse o seu papel de amedrontar os grevistas. Contra isso, fez-se

presente a ativa oposição interna à APP, organizada pela CSP-Conlutas.

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Com a saída da greve dos professores da rede básica de ensino, os professores de

ensino superior viram suas forças minoradas e partiram para a tentativa de forçar o

governo a enfim negociar alguns pontos de sua pauta. As divergências e acordos de

camarilha chegaram a seu ápice. O compromisso final entre governo e sindicalismo não

só não trazia ganhos aos trabalhadores como firmava um ambíguo acordo com o

governo em seu intento maior de usurpar a previdência. Os professores da UEL

protestaram muito com relação a esse compromisso, particularmente costurado entre

governo e os sindicatos de docentes do ensino superior ligados à CSP-Conlutas. Ao que

tudo indica, a pressa dos sindicatos do ANDES em conseguir um acordo, mesmo que

mequetrefe, para pôr fim à greve buscava erguer a moral do Sesduem, o sindicato

minoritário de docentes em Maringá. Os professores da UEL permaneceram mais uma

semana em greve, buscando adensar as negociações com o governo, mas estavam

completamente enfraquecidos diante do quadro geral.

No fim de abril, as greves estavam de volta pelos mesmos motivos de antes. Está

claro que os resultados alcançados nas jornadas anteriores foram quase nenhum. Mas,

principalmente, as desavenças entre as organizações estão se sobressaindo. Enquanto a

APP fazia força para negociar o inegociável, os sindicatos ligados ao ANDES retomaram

antes de todos as greves. A APP temia o crescimento da direita na rua pedindo a cabeça

de Dilma Roussef, tomando por ação mais acertada no combate às assim chamadas

forças fascistas justamente a retirada dos trabalhadores de combate. Nem é preciso

muito esforço para ver a burrice que o governismo petista gera. Os sindicatos do

ANDES, por sua vez, buscam um protagonismo que não tem. Mais uma vez, a base de

professores da APP obrigou o sindicato a voltar ao movimento grevista. A UEL, enfim,

resolveu adotar uma tática ―inovadora‖, a paralisação sem greve.

Nesse meio tempo, o governo se fez de morto. Recolheu o time de campo. Refez

suas concepções táticas. E retomou seu intento estratégico numa maneira mais leve e

bem-preparada. Apanhando cotidianamente da imprensa, resolveu lançar ameaças

contra jornalistas. Preocupado com novo acampamento e ocupação da Alep, destacou

um considerável batalhão policial e o poder judiciário de sempre. Como se vê,

austeridade se faz com arrocho e cassetete.

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Luzes da ribalta

No momento em que escrevo, os professores do Estado do Paraná estão

retomando as greves diante da persistência do governo estadual em perpetuar seu

projeto de arrocho e austeridade – tragédia ou farsa? O que se fará valer?

Acusado de ligações com esquemas de corrupção da Receita Estadual e, ainda

mais abjeto, com uma rede de pedofilia e prostituição infantil, o desgovernador Beto

Richa é criticado inclusive pelo principal sistema de comunicação no Paraná, a rede RPC

(afiliada da Rede Globo). Sindicatos fizeram de tudo para embaralhar o meio de campo,

transformando suas brigas internas no assunto principal das lutas. Mas, ao que tudo

indica, os servidores do estado não estão dispostos a vergar nem diante da burocracia

sindical nem da política de austeridade do governo. Com o quadro de crescimento da

direita no cenário nacional, num estado que não é conhecido pela contundência das

organizações de esquerda, a situação é preocupante.

É hora de botar a cabeça para funcionar.

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SOBRE A MAIORIDADE PENAL

Uma ação preventiva do capital

Atanásio Mykonios1

Introdução

A tendência ao recrudescimento nas formas punitivas emerge com toda a força,

dadas as condições políticas vividas desde 2013 no Brasil. Direita e extrema-direita

estão a pleno vapor a fim de aprovar medidas cada vez mais restritivas e coercitivas,

uma tentativa de mudança na Constituição Federal para propiciar a punição a jovens

com 16 anos de idade e acima dessa faixa etária. Esse cenário é uma realidade e a

perspectiva é que novas ações legislativas levem a outros conteúdos punitivos e

administrativos, como a privatização do sistema carcerário, a pena de morte, a

criminalização de movimentos sociais, a extinção de partidos de esquerda, etc. A

questão a que se propõe este artigo é a de discutir o problema da investida sobre o

Projeto de Emenda Constitucional que muda a maioridade penal de 18 para 16 anos. No

meu entender, o fundo desse confronto travado pelos meios de comunicação e por parte

de grupos estrategicamente posicionados em nome da direita e extrema-direita tem o

objetivo de criar mecanismos preventivos contra os pobres, uma vez que o sistema

capitalista está em uma crise na qual os pobres não terão perspectiva em seu interior, do

ponto e vista de sua utilização como trabalho vivo e como contingente rentável.

Contra a pobreza

A história do capitalismo é, dentre tantos de seus aspectos abjetos, a luta frontal

contra os pobres, não no sentido de eliminar a pobreza ou a sua condição estrutural,

muito pelo contrário, é uma luta sem tréguas contra as populações empobrecidas e em

1 Professor da UFVJM, Doutorando em Serviço Social pela UFRJ. Membro do Grupo Crítica Social e do

CEFIL – Centro de Estudos de Filosofia. ([email protected]).

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contínuo processo de empobrecimento. Perseguições, extermínio, segregações, leis

restritivas, dificuldades de acesso, precarização de serviços públicos, etc.

O espectro da violência institucional contra os pobres se volta contra eles mesmos

à medida que o aparato social emerge como um processo de formação contínua de

beligerância assumida na forma de políticas de Estado-nacional que sorrateiramente

investem contra os pobres a partir de ações diversas e distintas, que atuam para contê-

los em esferas sociais também diversas. Certas práticas ficam mais exacerbadas quando

a crise social aprofunda as lacunas deixadas pela impossibilidade histórica de proteção

social aos mais fragilizados no contexto das relações de exploração. Alguns avanços e

conquistas sociais, resultado de um intenso movimento social para a garantia por meio

do Estado-nacional, com política protetivas, são, via de regra, condicionados à própria

capacidade referida ao pacto social de distribuição de renda e benefício que, no entanto,

sofrem retrocessos quando a crise do capitalismo se instaura, uma vez que a história nos

mostra que o elo mais frágil é quem tem mais a perder nesse processo.

De fato, há uma mudança no enfrentamento da pobreza. Nesse sentido, o

movimento social representado pelas várias correntes que convergem à direita tem

como princípio criar mecanismos de contenção e confinamento de contingentes

populacionais que não se enquadram no mecanismo da rentabilidade social do

capitalismo.

Parece, à primeira vista, estranho notar que os discursos e práticas mais

conservadores agem em duas perspectivas que soam aparentemente antagônicas, mas,

no fundo, são convergentes e complementares. De um lado a posição contra o Estado-

nacional no que tange à condução e aos instrumentos relativos à economia política, a

falsa ideia de que o neoliberalismo é contra o Estado-nacional.

O neoliberalismo é a doutrina dos que defendem um Estado-nacional sob as

rédeas do controle total do capital, com relações entre setores não-financeiros e

financeiros, no surgimento da sociedade pós-industrial, da subsunção do particular ao

geral, da mercantilização dos institutos públicos, em que o Estado-nacional se torna um

agente econômico de forma ativa e ao mesmo tempo passiva. Nesse contexto, uma das

instituições que teriam a função social de proteção dos jovens e adolescentes está em

crise definitiva, a Educação formal e regular está desmoronando a olhos vistos, de uma

estrutura fordista que lhe deu a feição que ainda hoje prevalece na sua política de

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formação, com o fim desse período, agora a Educação formal e a escola agonizam sem

saber como lidar com a sua própria obsolescência.

É nesse contexto que, de fato, a educação formal e regular, mantida pelo Estado-

nacional, se torna um elemento emblemático dessa crise. Institucionalmente, a

educação não consegue mais proteger os jovens e adolescentes.

O neoliberalismo não e a doutrina do Estado mínimo. Ele não isenta o Estado das atividades de complementação econômica. Ao contrário, para ele o Estado deve preencher ativamente os vazios da malha produtiva e financeira, mas deve fazê-lo, não por meio de empresas próprias, mas preferencialmente adjudicando as atividades econômicas complementares, por meio de contratos de gestão, as empresas privadas. Entretanto, quando isto não e possível, como no caso da gestão monetária, o neoliberalismo propugna pela privatização funcional (ou seja, por uma gestão que e colocada nas mãos de uma elite tecnocrática que atua na esfera publica, de fato, como preposto do setor privado). Com o neoliberalismo, o Estado torna-se diretamente comprometido com a recuperação e manutenção da taxa de lucro num nível adequado para a continuidade do capitalismo.2 (p. 133)

De outro lado, a mão forte deste Estado-nacional é reclamada por parte daquelas

camadas na sociedade que têm poder de influência a fim de que controle as populações

em condições de vulnerabilidade econômica e social e de pretensa perspectiva criminal.

Ou seja, a mão forte do Estado-nacional de um lado contra os pobres e na outra, o afago

necessário às condições gerais de produção do capital.

Uma política social está em curso. Criar condições efetivas, sociais e políticas,

legitimadas por um processo de acúmulo discursivo em favor de mecanismos de

controle mais efetivos sobre os pobres em especial, é a marca dessa política social.

Investir sobre as populações que ameaçam a normalidade social é uma necessidade

imperiosa das camadas médias e das elites econômicas que exercem o poder político

sobre significativas esferas do ordenamento social e jurídico.

Quando se propala a ideia de que em determinadas regiões das grandes cidades, o

que falta é a presença do Estado, tem-se a impressão de que o que se quer, na verdade, é

a mão forte desse instrumento de força a fim de confinar em guetos os pobres,

notadamente os adolescentes e jovens em risco constante de ações criminosas.

Em seu curso sobre o socialismo, Durkheim (1928[1972]) afirma que o Estado

2 PRADO, Eleutério. Desmedida do valor: critica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã, 2005.

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é ―não uma potência coercitiva enorme, mas uma vasta e sábia organização‖. A experiência histórica nos mostra que tais aspectos não são incompatíveis em nada e que um aparelho estatal pode muito bem nos dias que corre, onde, apesar do discurso ambiente violentamente anti-estatal, a força pública, entendida em seu sentido próprio, desempenha um papel cada vez mais determinante na organização e na condução da vida nacional.3 (p. 19)

A cultura autoritária que marca a história do Brasil está presente em nossos dias

de várias formas, expressa por meio das ações de segurança que afetam os jovens e os

adolescentes no Brasil. A economia colonial teve como meio de produção fundamental o

trabalho escravo. Ele se torna o motor da produção econômica, o trabalho transformado

em condição de produção direta, ou seja, trabalho vivo sem remuneração, sem

assalariamento, apenas trabalho – vida e morte, que se reproduzia permanentemente

por meio da renovação dessa força de produção viva.

O tráfico transatlântico de escravizados mobilizava um grande número de pessoas e de capital. Para se ter uma ideia aproximada, calcula-se que cerca de 11 milhões de africanos foram trazidos à força para as Américas na condição de escravizados entre os séculos XVI e XIX. Este número não inclui aqueles que morreram durante os violentos processos de apresamento e de embarque na África, nem aqueles que não sobreviveriam à travessia do Atlântico. Destes, mais de um terço, ou cerca de 4 milhões foram trazidos para o Brasil. O que evidencia o alto grau de comprometimento dos brasileiros com o tráfico de escravizados.4 (p. 11)

Essa forma social historicamente determinada, criou profundas raízes na

memória e na cultura brasileiras. As elites econômicas, as oligarquias, as camadas

médias melhor remuneradas dos trabalhadores ainda carregam consigo a necessidade

de reprodução das relações de escravidão, mesmo em uma sociedade de características

liberais e burguesas.

Fazemos questão de, nas aparências das relações cordiais, não mais lidar com

essa chaga social e histórica, ao menos na casca social há um esforço para esconder as

heranças malditas desse processo histórico, as chagas sociais parecem não mais serem

refletidas a partir da escravidão. Especialmente os brancos que pertencem às ditas

3 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed., Tradução de

Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: F. Bastos, 2001, Revan, 2003. (Instituto Carioca de Criminologia) 4 CEAO/UFBA. História do Negro no Brasil: Unidade I: A escravidão no Brasil: Curso de Formação para

o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras. Módulo 2. Disponível em http://www.ceao.ufba.br/livrosevideos/pdf/livro2_HistoriadoNegro-Simples04.08.10.pdf, acesso em 26 de março de 2014.

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classes intermediárias de trabalhadores, a aquela fatia de trabalhadores com mais

especialização e remuneração, mostram um desconforto sobre esse elemento histórico –

a escravidão. Há uma imersão nesse modelo ideológico, social e econômico que

prevalece nas ações e no comportamento no exercício do poder, além da mentalidade

que continua de modo velado nas formas concretas e práticas diárias. Muita gente que

eu conheço, age publicamente a favor da igualdade racial e até social (do ponto de vista

material), mas, no íntimo, são claras em afirmar que não aceita e jamais permitirá que

seus filhos, brancos ou quase brancos, venham a ter relações com negros ou negras. Não

sabemos dizer se isso é segregação econômica ou social, ou ambas, etc., mas o fato é que

essa chaga social permanece.

No Brasil, a condição jurídica dos escravizados seguia a mesma norma do direito romano, a de ―coisa‖. E também como o direito romano, a escravidão seguia o ventre, o que significava dizer que todo o filho de escrava nascia escravo. Por serem juridicamente ―coisas‖, os homens e mulheres escravizados podiam ser doados, vendidos, trocados, legados nos testamentos de seus senhores e partilhados, como quaisquer outros bens. Na condição de ―coisa‖ eles não podiam possuir e legar bens, constituir poupança, nem testemunhar em processos judiciais.5 (p. 12-13)

Essa condição jurídica é relevante para compreendermos que a violência e o

autoritarismo que cobrem o Brasil têm um caráter estrutural, uma vez que esses

componentes não diferem das condições de propriedade e de negócio que ainda se

praticam no capitalismo nacional; o escravo representava a acumulação primitiva,

necessária. A riqueza produzida na forma de valor, pelo trabalhador brasileiro, é uma

das mais altas do mundo. Em outras palavras, o capitalismo explora com mais eficiência

a sociedade dos trabalhadores brasileiros.

Mas à medida que a escravidão sofre um revés porque os interesses das elites

passam a ser o de ingressar na ordem do capitalismo ocidental, mesmo que de modo

tardio, a lacuna jurídica herdada não foi solucionada e isto criou um vácuo nas relações

de poder e nas relações do poder econômico sobre a massa dos ex-escravos, o que os

transforma em um contingente definitivamente colocado à margem do processo de

produção assalariado e do ordenamento jurídico. Um dos modos de lidar com essa

realidade é instrumentalizar as formas de violência e autoritarismo, com vistas a não

5 CEAO/UFBA, Op. Cit.

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desviar o foco do ponto de vista do poder social que as classes dominantes exerciam e

permanecem a exercer, destarte a transformação das formas de produção de valor

estarem em um patamar novo no capitalismo atual. Dito de outro modo, o Brasil ainda

vive com um ressentimento histórico de conviver com ―ex-escravos‖, ou seja, as classes

dominantes ainda veem o pobre como alvo da dominação escravocrata, os mecanismos

de punição sobre estes se tornam ainda mais violentos.

A coisificação jurídica do escravizado fazia parte de uma estratégia de dominação que buscava desumanizar os escravizados e que ao mesmo tempo em que os destituíam de todos os direitos criava uma ideologia de subalternidade, segundo a qual eles seriam incapazes de refletir e contestar a própria condição.6 (p. 13)

Ainda temos de lidar com a ―coisificação‖ tanto nas relações quanto na forma de

como as pessoas se situam no contexto social. A criança, o idoso, a mulher, o preso, o

menor apreendido, os criminosos, todos, de uma forma intrigante, são tratados como

coisas. E isso se amplia cada vez mais, à medida que a sociedade que produz

mercadorias é completamente interiorizada pela consciência social e individual da lógica

de produção de mercadorias, isto é, a lógica do sistema está na consciência social.

As classes dominantes exercem o poder da construção ideológica no âmbito do

poder político, que é a expressão da transferência de dominação que tem início na

ordem escravocrata e que, posteriormente, se alastra pelas formas de exploração e

exclusão da população em geral, a começar pela negra e todos os seus contingentes

diversificados. Assim, corresponde a uma disseminação de um modo de exploração que

inclui o modo de expropriação e dominação, transformados em preconceito e

segregação social. Por vários meios, o estado de escravidão que impera na visão, não

mais e apenas dessas classes que correspondem a uma minoria social, se espalha por

toda a forma de relação social, as camadas mais diversas assimilam de geração a geração

o ódio contra os pobres em geral.

Muito significativo o ódio contra os oprimidos, que é latente na sociedade

brasileira. Não é nem um pouco estranho, portanto, que tenhamos em nossa origem,

fortes traços e tendências à violência como forma de regulação das relações sociais de

um lado e de conflitos sociais por outro. O autoritarismo é um poder que não é apenas

6 CEAO/UFBA, Op. Cit.

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exercido do ponto de vista da estrutura político-institucional, como um programa

estruturado para reprimir metodicamente sociedades, comunidades, opositores

ideológicos, etc., expressa um modo de ser que reverbera na ação cultural, mas tem

origem em relações materiais desiguais historicamente constituídas.

Nosso ambiente social é constituído de um modelo ideológico de violência

permanente – o autoritarismo tem várias faces, algumas explicitamente violentas,

outras de práticas veladas, alastradas no tecido social, tornadas naturais pela

consciência coletiva. Podemos então considerar que dentre as várias ideologias que

permeiam a sociedade brasileira, uma de caráter eminentemente próprio e que define

em parte o comportamento social é a consolidação de um espectro de violência que não

se expressa apenas nas contendas entre indivíduos, ou entre indivíduos e grupos, ou

entre grupos de maneira geral.

Aqui estamos a lidar com uma ideologia que permeia a vida e a sociedade, que

não se dissipa ao tentarmos diminuir os índices de violência, a sociedade brasileira,

mais do que ser um grupamento social violento, tem em sua consciência mais velada a

violência em dois níveis: 1) interiorizada e naturalizada, a sociedade está organizada na

forma de uma estrutura de caráter violento: instituições, Estado-nacional, família,

religião, polícia, educação, autoridades, etc., tudo deve estar marcado com a insígnia da

punição, repressão contínua, controle, segregação, criminalização e deve ser resolvido

por meio da força, se possível; 2) a violência do ordenamento social vigente:

capitalismo, exploração, regulação jurídica, prisão, etc.

É nesse contexto que dois mundos emergem, o mundo iluminado, onde os

homens e as mulheres caminham em direção a uma sociabilidade de cunho

eminentemente europeu, com seus costumes liberalizantes e uma estrutura social

determinada pelo capitalismo de inclusão; de outro, um mundo obscurecido pela

ignorância, pelo abandono, que serve como instrumento de dominação por parte de

grupos sociais privilegiados e pelos capitalistas associados. Um aspecto da violência

brasileira se caracteriza pelo fato de que há um esforço de iluminar o mundo

obscurecido que abriga a maioria do povo, abandonado até mesmo pelo processo

capitalista de exploração. Os brancos que representam as classes dominantes neste país

querem a todo custo fazer com que haja, por parte da massa imberbe, um conformismo

que se baseia em seu mundo iluminado, esclarecido, asseado, imune a infecções sociais,

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mentais e físicas, mundo este que tem o poder das armas, da comunicação, da expressão

das formas de organização política, de tal modo que os dois mundos não podem

coexistir, a não ser que os dois colapsem para que uma nova forma social seja capaz de

ser construída a partir do novo.

Esses dois mundos aparentemente antagônicos têm como condição um

desequilíbrio sistêmico indissolúvel. A ação das forças sociais que detêm o poder

econômico é de exigir que os sem-luz queiram de livre e espontânea vontade ingressar

no mundo das luzes, da paz eterna, das formas polidas e apolíneas desse mundo que

oprime, por meio de seus recursos imensos, os que não se veem em si nem conseguem

ingressar sem que lhes seja dado o cartão de aceite no mundo imaculado.

Isso tem como efeito uma assustadora fragilidade que afeta o cotidiano. A

depender do lugar social ocupado pelos sujeitos, tudo pode acontecer, assassinatos,

tortura, prisão, discriminação, segregação, etc. E mais, a mentalidade segregacionista ao

afetar de forma a influenciar apenas os brancos, torna muito clara a separação social e

econômica que deve haver entre os diversos contingentes e grupamentos humanos.

A violência é um dado estrutural de nossa sociedade.

A criminalidade infanto-juvenil

A criminalidade juvenil é uma característica não da polis, não dos grupamentos

sociais medievais, mas da civilização urbana desigual, fenômeno recente na história da

humanidade. Jovens praticavam crime por questões materiais, na história, somente

quando as condições sociais eram extremas. Culpar apenas aqueles que, pela

desigualdade econômica, cometem crimes, imaginando que é possível haver por parte

destes a expectativa kantiana da ética universal, é esconder o fato de que a ética

universal terá como referência um poder constituído e constituinte, o poder do direito é

o direito do poder, e, sobretudo, um lugar social de onde parte esse processo

constitutivo – o lugar social do poder econômico. A desigualdade está presente nessa

condição de criminalidade. No capitalismo, há uma tendência a sermos formados para

reprimirmos e odiarmos os explorados, inclusivamente de forma racional, criando

mecanismos de controle punitivo contra esses explorados, dando a impressão lógica de

que há uma lei que é universal e justa para todos. O que, convenhamos, convence

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muitos incautos, mas a prática mostra bem o resultado. O resultado é uma eficiência

estrondosa quanto à punição de um lado dessa balança.

A violência adolescente e juvenil é, sobretudo, uma característica da sociedade

industrial, urbanizada e de grande complexidade social. Nas ruas de Londres, no século

XVIII, era visível o abandono de crianças que vagavam pelas ruas em busca de comida.

A marginalidade engendrada pela estrutura capitalista tornou a criminalidade um fato

novo para a sociedade industrial e urbana. Esse é um fenômeno eminentemente da

modernização capitalista.

Um dos grandes problemas que o capitalismo enfrenta, cotidianamente, é o

fenômeno, criado por ele mesmo, do constante empobrecimento da maior parte da

população. Esse fator é de extremo constrangimento social, uma vez que se trata de um

processo em ebulição permanente, às vistas de todos.

As autoridades e os capitalistas em geral, lançam de diversos mecanismos de

contenção social, apesar de que, por outro lado, esses contingentes também são alvo da

sociedade produtora de mercadorias. No entanto, é muito difícil para a maioria das

pessoas reconhecerem que a violência que está imbricada no modo de segregação

capitalista, é um fato incontestável.

O discurso espetacular da violência atua com o escopo de transformar o processo

de empobrecimento numa pena capital sobre os próprios pobres. Sem dúvida, à medida

que se tem como premissa o mérito individual de ascensão material que implica

ascensão em outra posição social, somada às condições elementares determinadas pelo

discurso liberal da livre iniciativa, recai sobre o inválido social a responsabilidade sobre

determinados atos, notadamente no que concerne à violência e ao crime.

Evidentemente não podemos, de forma simplista, condicionar a violência ao

crime numa ligação direta. Pois nem toda ação violenta é um crime e nem todo crime é

praticado de forma violenta.

Porém, para este artigo, não nos compete, a princípio, formular as razões e as

causas tanto da violência quanto do crime do ponto de vista da infância e adolescência

em suas especificidades psíquicas ou jurídicas. Aqui estou a tratar de como o sistema

social impinge mecanismos de controle e punição a essa camada da sociedade

totalmente indefesa.

Desde a urbanização capitalista, a infância e a adolescência se tornaram um

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problema, especialmente em se tratando dessas categorias etárias confinadas ao regime

social da pobreza e da miséria. O trabalho parece ser a única solução viável do ponto de

vista da inclusão social de quem quer que seja. A proteção dada pelo capitalismo é uma

só – a inclusão no trabalho formal ou informal ou marginal, em outras palavras, a

proteção social contra qualquer crime é a aquisição e a posse do dinheiro.

O homem se torna cada vez mais pobre enquanto homem, carece cada vez mais de dinheiro para se apoderar do ser hostil, e o poder de seu dinheiro cai precisamente na relação inversa da massa de produção, ou seja, cresce sua penúria (Bedürftigkeit) à medida que aumenta o poder do dinheiro. – A carência de dinheiro é, por isso, a verdadeira carência produzida pela economia nacional e a única carência que ela produz. – A quantidade de dinheiro se torna cada vez mais seu único atributo poderoso; assim como ele reduz todo o ser à sua abstração, reduz-se ele em seu próprio movimento a ser quantitativo. A imoderação e o descomedimento tornam-se a sua verdadeira medida...7 (p. 139)

Por mais que se queira ampliar as razões da criminalidade, o fato que me parece

inconteste é que se trata de um problema de fundamento histórico do modo de

reprodução da vida social e mesmo individual – o dinheiro é a primeira e fundamental

necessidade no capitalismo.

Muitos são os dados e pesquisas que comprovam que a criminalidade praticada

por menores é insignificante no que tange a crimes hediondos. No entanto, esses

argumentos racionais não serviram nem servirão para convencer um grupo político que

tem a seu favor a massiva articulação dos meios de comunicação, criando um clima

extremamente favorável à aprovação da PEC 171.

A brutalidade é um elemento, ao que tudo indica, permanente na cultura

brasileira. Contra as mulheres, os pobres, os mendigos, os negros, as crianças, os

adolescentes, os idosos que não são mais produtivos. Ocorre nas ruas, nos hospitais, nas

prisões, nas escolas, no trânsito, etc.

Os números são alarmantes sobre a violência e a brutalidade, um pequeno

quadro mostra uma realidade absurdamente brutal em todos os sentidos.

Por dia, o equivalente a uma sala de aula inteira de menores é apreendida por policiais nas ruas do estado do Rio. Durante todo o ano passado, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), as polícias Civil e Militar

7 MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo

Editorial, 2004.

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apreenderam 8.380 menores de idade — uma média de 23 por dia. Nos últimos sete anos, o número tem crescido exponencialmente. Durante todo o ano de 2008, 1.806 menores foram apreendidos — quase cinco vezes menos do que em 2014.8

Esses números acima apresentados nos mostram a catástrofe social que recai

sobre o Brasil. E por que essa é uma catástrofe? Porque atinge efetivamente a imensa

maioria da população pobre, de trabalhadores, de mulheres, negros e marginalizados.

Somos uma sociedade brutalmente autoritária e estruturalmente violenta, em todos os

sentidos. A violência contra as mulheres é um destaque nesse panorama, tanto no que

tange ao assassínio de mulheres quanto ao estupro, isso mostra uma cultura de poder

em que os oprimidos, no caso as mulheres, enfrentam diariamente em todos os

quadrantes da vida. Por outro lado, a infância e a adolescência são um contingente

profundamente fragilizado, vítima de um processo de brutalidade imensa e que ainda

não encontra a proteção institucional e social.

A produtividade e o não-valor

Diminuir a maioridade para 16 anos, de certo modo não parece nada absurdo.

Mas a questão que está por trás desse processo de mudança na lei é a inconteste luta do

capitalismo contra as massas oprimidas e não-rentáveis, no sentido de controlar e

impedir o acesso especialmente de menores aos bens sociais em geral. Trata-se de um

sintoma, que tem ares de prevenção social. Isto se deve a que no início do processo

capitalista da fábrica social do valor, as crianças eram submetidas ao trabalho nas

fábricas. A ideia de produtividade, de se manter produtivo na ordem social da produção

de valor, é um constante mecanismo ideológico de dominação para o trabalho. O

adolescente é premido por todos os lados para ser um sujeito ativo, com produção e

resultados visíveis na escola, na família, na sociedade em geral.

A Educação pelo trabalho como prática disciplinadora e regeneradora da infância pobre brasileira esteve presente durante o império, mas é com o regime republicano e a inauguração de instituições assistencialistas com um forte caráter moralizador e de formação profissional, que tais práticas se

8 EXTRA. Em 2014, 23 menores foram apreendidos por dia pela polícia no Estado do Rio. Disponível em

http://extra.globo.com/casos-de-policia/em-2014-23-menores-foram-apreendidos-por-dia-pela-policia-no-estado-do-rio-15535336.html, acesso em 1 de abril de 2014.

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naturalizam e alcançam o imaginário popular.9 (p. 3289)

O trabalho ainda é o fulcro desse problema. Uma vez que não haverá condições

estruturais para criar postos de trabalho com forte rentabilidade de valor para o próprio

sistema em quantidade desejável para absorver contingentes significativos de pobres,

milhões de pessoas serão absolutamente deixadas à própria sorte. Esse processo é mais

do que previsível em todos os aspectos.

Se considerarmos o sistema de mercado ocidental, baseado na economia de concorrência, não um modelo (bem-sucedido), mas sim um elemento do mesmo processo histórico da modernidade que gerou também a sociedade do trabalho, supostamente antípoda, do ―mercado planejado‖, o colapso desta última está muito longe de sinalizar uma nova era de prosperidade capitalista. O Ocidente, que já entrou em seu estado de crise, e o Leste, que em seu colapso converteu-se num adepto da lógica capitalista da concorrência, estão mentindo um para o outro. Enquanto o Ocidente espera a salvação de sua situação sem saída cravando os olhos no passado irrecuperável do boom ocidental da época pós-guerra, o Ocidente, ao contrário, espera do colapso do Leste uma saída da sua própria acumulação de capital estagnante por intermédio dos ―novos mercados‖ que existem apenas na sua imaginação, sem compreender a ameaça que esse colapso representa para o sistema do mercado global. E isso apesar de poder estudar os processos reais que se dão em sociedades de colapso num exemplo vivo, a saber, no exemplo daquele Terceiro Mundo cujo destino o Leste está prestes a sofrer também.10 (p. 155)

Daí termos um espetáculo do colapso em frente aos nossos olhos, e essa crise

irrevogável do capitalismo, que nos leva a uma ilusão absurda, a de que é possível o

desejo de consumo se consubstanciar em uma condição de relativa autonomia ou de

reconquista da normalidade das relações de mercado. Necessidades só são de fato

criadas à medida que o processo de produção geral cria as condições para a exploração

do tempo de trabalho socialmente necessário à transformação de qualquer coisa

produzida em mercadorias.

Mas as necessidades materiais e os desejos humanos não fazem surgir nenhum mercado ou, em outras palavras, nenhuma capacidade aquisitiva produtiva. Esta pode apenas nascer da exploração em empresas de força de trabalho humana, realizada no nível mundial da produtividade. Mas essas condições

9 COSTA, Kátia Regina Lopes. ―A construção social do conceito de infância: algumas interlocuções

históricas e sociológicas‖. IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS ―HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL‖, Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN 978-85-7745-551-5.

10 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. 6ª. ed., Tradução de Karen Elsabe Barbosa, São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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prévias do próprio sistema são sistematicamente ignoradas nos condescendentes sermões dominicais dos especialistas e ideólogos ocidentais.11 (p. 156)

Os adolescentes e os jovens das periferias estão inseridos no contexto dramático

apresentado por Robert Kurz. Mais e mais, o acesso à aquisição de mercadorias se torna

um problema para o próprio sistema social do valor. Esses jovens e adolescentes são

atingidos em cheio pela falta de perspectiva, vivendo das migalhas que o próprio sistema

propicia, tendo de procurar na precarização das condições de trabalho algum ganho

substancial, esse contingente social está à mercê da própria sorte imposta pela

contradição do modo de produção capitalista. A questão não se reduz ao crime e à

violência, nem tampouco podemos, a princípio, definir que a precarização extrema da

vida social desses jovens e adolescentes leve a um processo de violência contra os que

detêm o poder econômico e político de adquirir mercadorias. O problema está, para as

elites, colocado como uma ameaça iminente, e elas necessariamente hão de encontrar

mecanismos de contenção, políticos e sociais, barrando qualquer possibilidade de que a

violência venha a se concretizar no cotidiano da vida social.

As elites

Esse conflito parece pender favoravelmente para o lado das classes dominantes,

pois elas ainda se sentem com a missão de civilizar, controlar, criminalizar e punir os

que praticam a delinquência.

Aqui é preciso insistir no aspecto ironicamente missionário com que parte das

elites e setores militares nacionais convergiram para a postura de uma suposta prática

civilizadora das massas empobrecidas no Brasil. A educação tem esse caráter de uma

estrutura que visava, sobretudo, incluir o Brasil no movimento internacional do capital e

de sua exploração.

Nesse contexto a educação teve papel primordial de ―civilizar‖, inculcando normas de convívio e boas maneiras. A ―moral‖ e os bons costumes tornaram‐se bandeiras de status das famílias abastadas financeiramente e mais um aspecto que os diferenciava dos pobres e ignorantes.12 (p. 3287)

À medida que a educação se torna sistêmica, regular, metódica e oficial, na forma

11 KURZ, Op. Cit. 12 COSTA, Op. Cit.

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de instituições de ensino públicas, perpassando todo o século XX, o adolescente e o

jovem se tornaram uma fonte de preparação para o trabalho. Estar ativo na escola e

obter boas notas, era o mínimo que um aluno deveria fazer, uma vez que havia sido

arrancado das condições de trabalho que desde a infância afetava as crianças, os

adolescentes e os jovens. A sociedade construiu um valor social para a educação, de

sorte que se tinha a impressão nítida de que esses alunos estariam protegidos, em

condições de serem preparados para a submissão ao trabalho abstrato.

Especialmente na era fordista de produção fabril, a escola estava preparada para

assumir o papel social de formadora das novas gerações de trabalhadores, uma missão

que está sendo destruída a olhos nus. O capital tinha condições de absorver as levas de

recém-formados e respirava-se o ar da eficiência escolar e das condições gerais de

ensino. A formação fordista é a formação científica transmitida por meio de um

processo etapista de conhecimentos necessários à produção, compartimentados.

Porém, quando essa era fordista entra crise e o modelo para a recomposição

orgânica do capital se dá em outra configuração, em que, sobretudo, a mecanização dá

lugar aos conhecimentos da informação que criam novas formas de produção, a escola

que tinha objetivo determinado, social e historicamente, pelo modelo fordista, entra em

crise. E o que era para ser um processo linear de preparação e formação, tornou-se um

grande obstáculo à nova socialização do capital, em que as massas despossuídas não

poderiam contar com essa forma social de aprendizagem. A apreensão cognitiva e a

atividade cerebral são, na atualidade em outras condições, não sequenciais nem

lineares, mas convergentes de forma circular. E esse processo é o reflexo de uma

mudança nas condições de produção, o trabalho vivo é continuamente descartado em

favor do trabalho morto. O que mantinha a disciplina social dos jovens sempre foi a

perspectiva do trabalho, a educação para o trabalho, o condicionamento e adestramento

para o trabalho.

Ora bem, se a escola não pode garantir que, na atualidade, a maioria tenha

condições de ser empregada na indústria e até mesmo na rede de trabalho fora da

indústria, e à medida que esse sistema educacional se torna obsoleto, a baixa

produtividade no que tange à rentabilidade desses jovens leva a um esgarçamento do

processo educacional e, por conseguinte, do processo social em geral. Sem garantias de

empregabilidade, e mesmo havendo tais garantias, a produtividade e a ocupação desses

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adolescentes e jovens se torna um problema social. O sistema social impingido pelo

capital se antecipa aos acontecimentos, com medidas preventivas.

Dentre as medidas preventivas, uma delas é a de criar a figura jurídica imputável

de pena para menores de 16 anos. Isto indica, a meu ver, que os observadores do

processo social anteveem os problemas que surgirão com a crise do capitalismo. Um

desses problemas diz respeito ao alto grau de volatilidade em que se encontram as

periferias dos grandes centros urbanos, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Há, de

certa forma, uma espécie de exército invisível, fruto de uma dinâmica social que impinge

aos mais pobres um estado de vida que lhes é indigno em todos os aspectos.

As elites se previnem com sua mobilização espetacular, com a atividade orgânica

da política e por meio de instâncias reguladoras, daí o avanço rápido da direita e de seus

mais extremos ditames, a extrema-direita e todos aqueles que se apresentam como

promotores da sociedade liberal, com forte discurso moralizador e um espectro

discursivo extremamente beligerante.

Os não rentáveis e a sua punição

A questão da produção capitalista cria, especialmente nas elites políticas e

econômicas, a ideia de que esse é o mote da civilização modernizante do capital, isto é,

formar para a produção e para o fazer, eis o aspecto da utilidade social dos indivíduos na

sociedade produtora de mercadorias. Especialmente no Brasil, esse eco civilizador está

presente desde a Primeira República e o esforço de controlar a população em condições

marginais se tornara um problema para as elites desde então.

Importante ressaltar que os modelos educacionais que surgiram no período republicano apenas aprofundaram discussões e constatações que, na verdade, iniciaram no final do século XIX, acompanhando as tendências internacionais. Dessa forma, percebe‐se que os moldes para um povo civilizado que ecoou definitivamente na Primeira República e a veemente necessidade de constituir uma nação a partir de um povo saudável, disciplinado e produtivo, tiveram início nos oitocentos brasileiro, que diferente das concepções cristalizadas pela historiografia tradicional, foi um período profícuo em políticas públicas educacionais na ânsia de alcançar os patamares de civilidade das sociedades europeias.13 (pp. 3285-3286)

Nesse sentido, me parece evidente que a nossa história está varada de grande

13 COSTA, Op. Cit.

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frustração por parte das elites e das classes que detêm o poder, dado o fato de que

enxergam a realidade brasileira eivada de uma série de fracassos sociais, em que

culpabilizam as massas inválidas do ponto de vista da produtividade eficaz. Fracassos

históricos que não são assumidos, mas marcados pela segregação social que no Brasil

possui um duplo caráter, de um lado, a herança escravagista e de outro a condição de

exploração determinada historicamente pelo modo de produção capitalista.

Diante desses anseios, médicos, juristas, políticos, clérigos, professores e militares se mobilizaram e passaram a atuar objetivando tornar a população saudável, disciplinada e produtiva. Pode‐se constatar isso por alguns fatos, tais como: o movimento higienista em algumas cidades brasileiras, a expansão de instituições disciplinares, tais como hospícios, reformatórios e escolas. (p. 3286)

Assim, a educação pública no Brasil se tornou um problema de difícil solução de

continuidade. A cultura que se vive há ao menos uma década e meia é a da militarização

social em detrimento da estrutura educacional que vê seu nível decair absurda e

gradativamente ao longo desse período. Um estado penal vem em substituição à

educação e às estruturas de proteção social. O processo de transformação por que passa

a sociedade é intrigante e preocupante. À medida que compreendemos essa

transformação, somos levados a comparar esse contexto com, por exemplo, os EUA, em

que a política de Estado a partir dos anos 1970 foi a de aumentar os conteúdos penais

em quantidade a fim de alcançar e aprisionar as populações mais fragilizadas – negros e

latinos (pobres na sua maioria). A política social de segregação agora passou a ter um

novo componente a seu favor, a lei e a pena, servem como artefato e pano de fundo para

o controle social por meio da criminalização dos mais pobres, tanto aqui no Brasil

quanto nos EUA.

A expansão e glorificação repentinas do Estado penal nos Estados Unidos a partir da metade dos anos de 1970, e depois em toda a Europa segundo os mesmos esquemas, vinte anos mais tarde, não correspondem a nenhuma ruptura na evolução da criminalidade: os crimes não mudaram bruscamente de escala ou de padrão durante esse período seja em um ou no outro lado do Atlântico. Esse fenômeno também não traduz um aumento da eficiência do aparelho repressivo que justificasse seu reforço, como querem fazer crer os responsáveis pelo mito acadêmico da ―tolerância zero‖ que se espalhou por todo o planeta. Não foi tanto a criminalidade que mudou, mas o olhar que a sociedade passou a ter sobre algumas ilegalidades de visibilidade pública, ou seja, no final das contas, sobre as populações deserdadas e desamparadas (por seu status ou origem) que começaram a recair a suspeita de crimes, desde

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o local que essas pessoas ocupam nas cidades, até os usos e tradições delas passaram a ser explorados nos âmbitos político e midiático.14 (p. 199)

À medida que os pobres se tornam visíveis no cenário social, por vários motivos,

os jovens que não conseguem um acesso adequado na proteção da malha social do

trabalho e da segurança à aquisição de mercadorias, sofrem as agruras de serem

estigmatizados pelas camadas que se situam em melhores condições materiais e são

fustigados pelos aparatos repressores tanto públicos quanto privados.

Liberdade de ação e penalização

A questão se aprofunda em aspectos mais interessantes. A liberdade social é

imputada exclusivamente ao sujeito social, que por uma absorção da forma mercadoria,

assume a condição de autônomo diante das escolhas na aquisição dessa mercadoria.

Essa condição subjetiva faz com que a própria sociedade capitalista exclua a relação

entre o todo e suas partes, condicionando as partes à sua própria responsabilidade

social e, especialmente no que tange à moral. A liberdade social está no restrito âmbito

das escolhas e da imperiosa necessidade de se conhecer as leis sociais impostas por um

ordenamento jurídico que é alheio às condições humanas fundamentais, restritivamente

a um controle social por meio da moral do trabalho.

Ela mantém da forma mais tosca possível o conceito de liberdade como um valor relativo exclusivamente ao indivíduo, deixando a esmo o problema tão importante para os gregos, ou para autores modernos como Hegel e Marx, da liberdade coletiva, e de como esta, ao mesmo tempo em que contém a liberdade do indivíduo, a amplia para horizontes inalcançáveis apenas por ele. Este conceito empobrecido de liberdade elimina a obrigatória relação do indivíduo com o caráter orgânico da sociedade, criando a falsa consciência de que este pode prescindir daquela.15 (p. 120)

Dessa forma, o conceito de liberdade relativo à coletividade encerra uma

contradição que a sociedade capitalista não está disposta a resolver. A contradição da

liberdade entre três termos que se relacionam. De um lado, o sujeito social

mercantilizado, de outro, o mito da coletividade que imagina ter a autonomia sobre si

14 WACQUANT, Loïc. ―Insegurança social e surgimento da preocupação com a segurança‖. Tradução de

José Emílio Medauar Ommati. In Panóptica. Ano 3. Número 19, julho-outubro 2010, pp. 198-213. 15 MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia,

2012. (Pensamento Criminológico, 18)

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mesma e, o terceiro termo é o sujeito histórico da forma mercadoria, que é o grande

poder fetichista da sociedade produtora de mercadorias. Os dois primeiros termos se

digladiam na quase certeza de que dominam seus campos de ação e sua identidade, no

entanto, ambos são dominados pelo sujeito sem rosto que exerce o poder numa espécie

de Leviatã capitalista. Mas por um motivo de osmose histórica e social, o coletivo, na

verdade, assume a liberdade do senhor da história – o valor, e age em nome do sujeito,

que tem a pretensa impressão de que está agindo por conta própria. Assim, exige-se dos

jovens a mesma consciência de quem assume o risco da relação da troca,

conscientemente – a lei está do lado de quem tem o poder de impô-la seletivamente na

sociedade burguesa.

Menegat dá um vaticínio que me parece ainda mais conclusivo quanto à relação

entre a estrutura da sociedade e o processo punitivo. ―Portanto, quando algo a respeito

da forma punitiva da sociedade muda, pode se ter a certeza de que é a própria estrutura

da sociedade que está mudando‖16 (p. 121), uma afirmação que implica a compreensão

da mudança das relações de produção e as formas sociais políticas que são concernentes

a essa estrutura do ponto de vista do ordenamento jurídico que a sustenta.

O tensionamento que ocorre nas esferas da relação social revela que a sociedade

capitalista é, por sua essência, segregacionista, sendo que neste aspecto característico, a

luta pelo confinamento de populações que apresentam ameaça ao processo produtivo é

mais consistente do que a ameaça às condições étnicas ou de grupos separados. É

evidente que os administradores do sistema se valem desses artifícios históricos para

confinarem ainda mais determinados grupos sociais, aqueles que se encontram à

margem do processo de produção e que, notoriamente, não oferecem perspectivas

rentáveis para as relações de troca em geral. Isto é, os pobres são perigosos para o

sistema porque podem criar um desequilíbrio funcional tensionando as formas de

aquisição de mercadorias, pois é disto que se trata em última instância.

Simplificando, a falta de rentabilidade, isto é, a incapacidade de gerar valor, em

virtude da imensa gama de trabalho morto inserido no processo da produção, gera uma

população em condições precárias no que se refere à possibilidade de acesso e aquisição

de mercadorias. Esse processo implica a tensão social elevada ao máximo. E nesse

16 MENEGAT, Op. Cit.

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espectro de mazelas, encontram-se aqueles adolescentes e jovens que estão a um passo

do mergulho sem volta no processo de esgarçamento do tecido social, por vários motivos

– família, abandono social, saúde, educação, proteção, etc.

Essas categorias-detrito – jovens desempregados e sem domicílio fixo, nômades e dependentes químicos à deriva, imigrados pós-coloniais sem passaporte e documentos nem relações fixas – subitamente se tornaram proeminentes no espaço público, sua presença indesejável e suas ações intoleráveis, porque eles são a encarnação viva e ameaçadora da insegurança social generalizada produzida pela erosão do salário estável e homogêneo (promovido pelo paradigma de emprego na época das décadas de expansão fordista entre 1945 e 1975) e pela decomposição das solidariedades de classe e de cultura que a estabilidade econômica sustentava em um quadro nacional claramente circunscrito.17 (p. 199)

A descrição refere-se aos EUA, mas a política de Estado no Brasil é a mesma, o

avanço sobre esses jovens e adolescentes, desempregados e sem futuro no comércio

social da troca de valores. A sociedade brasileira enfrenta o grande problema do

processo de produção, do fordismo ao toyotismo e deste para as novas formas de capital

associado, em que a produção de mercadorias não encontra um lugar fixo e em que a

exploração do trabalho vivo se torna um peso até mesmo para a extração da mais-valia

absoluta.

O que, afinal, a sociedade fará com essa população em grau cada vez mais

crescente? Deverá sustentá-la, confiná-la, exterminá-la? Criará mecanismos de

contenção e criminalização a fim de que seja colocada sob o tacão da força? Os guetos,

as prisões, a segregação serão formas alternativas a determinadas políticas sociais que

tentarão aplacar a miséria e a violência criminal nesses espaços geográficos urbanos.

Conclusão

É nesse contexto de profundo confronto social e desigual, que se torna cada vez

mais explícito e aberto, que as populações desprotegidas e lançadas à própria sorte estão

sob a ameaça de perseguições de toda ordem, mais do que qualquer outra camada da

sociedade produtora de mercadorias. Ao contrário, as ações que a direita promove no

Brasil são uma reação a um processo social de crise, que revela apenas o seu sintoma,

17 WACQUANT, ―Insegurança social e surgimento da preocupação com a segurança‖, Op. Cit.

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cujas causas estão na crise estrutural do capitalismo que assola o mundo todo. Com este

cenário, e tendo como muleta discursiva o empobrecimento dos argumentos e a fúria

destrutiva das classes dominantes, a tentativa de mudança da maioridade penal esconde

um processo de luta de classes evidenciado pela incapacidade de uma parte da

população em gerar valor conforme o modo de produção do capital. Trata-se, portanto,

de ação preventiva por parte dos gestores do sistema, contra adolescentes e jovens, com

escopo de garantir o controle social com medidas restritivas e punitivas, diante do

processo de colapso da própria sociedade das mercadorias. Nesse sentido, outras

medidas serão tentadas no Congresso e virá uma onda de retrocesso social até,

possivelmente, a inclusão da pena de morte.

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GERAÇÃO SARRAZIN*

Breve esboço da gênese da nova direita alemã

Tomasz Konicz

São assustadores os 70 minutos com os quais qualquer usuário do YouTube pode

torturar-se, digitando no sistema de busca ―Pegida: Die Interviews in voller Länge‖ e

assistindo o material sem cortes de entrevistas de apoiadores do PEGIDA,

disponibilizado por uma equipe de jornalistas do programa de atualidades políticas

Panorama do canal NDR.1 A NDR tomou essa decisão incomum porque um jornalista

da RTL que estava disfarçado de manifestante foi entrevistado, e houve denúncias de

manipulação.2 O exame do material torna óbvio, porém, que as declarações do jornalista

disfarçado foram as demonstrações mais reservadas e cautelosas de xenofobia,

enquanto muitos dos ―verdadeiros‖ apoiadores do PEGIDA tinham óbvia dificuldade

para manter seu ódio e sua raiva sob controle. Assim, as entrevistas oferecem uma rara

oportunidade de compreender a visão de mundo de um movimento de extrema direita

que geralmente rejeitou toda análise de seus delírios – com o lema: ―a ilusão é minha‖.

Duas linhas de argumentação carregadas de ressentimento destacam-se imediatamente

nas entrevistas: de um lado as queixas sobre baixos salários e pensões, sobre a crescente

precarização e tendências de decadência social, cujos responsáveis eleitos são

invariavelmente ―os estrangeiros‖, e, por outro lado, a firme convicção de que a

Alemanha seria um país ocupado e manipulado.

* Referência a Thilo Sarrazin, politico alemão filiado ao SPD (social-democrata), conhecido por suas

posições anti-imigração e a favor da precarização dos direitos sociais. [N. do T.] 1 PEGIDA (Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes – Europeus Patriotas Contra a

Islamização da Terra do Sol Poente), movimento atual de extrema direita, atuante principalmente em Dresden, onde realiza marchas regulares que já contaram com mais de 20 mil pessoas (em uma cidade de 500 mil habitantes). As entrevistas, em alemão, podem ser assistidas em https://www.youtube.com/watch?v=Bl0KPaLPL7g (parte 1) e https://www.youtube.com/watch?v=a7f2YOgLtco (parte 2). Acesso em abril/2015. [N. do T.]

2 O jornalista disfarçado é o primeiro entrevistado nos vídeos mencionados na nota anterior. [N. do T.].

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Isso vai desde a observação relutantemente murmurada de que ―a Alemanha não

seria um país soberano‖ até conspirações abertamente antissemitas – recompensadas

com o aplauso frenético dos manifestantes circundantes – segundo as quais as ordens

dirigidas à elite política da Alemanha viriam ―de Washington e de Tel Aviv‖. É

arrepiante a franqueza com que o aposentado que vive de pensão miserável se revolta

contra os alegres ―estrangeiros‖ que encontra nos trens, a caminho de seus empregos

com cujas baixas remunerações têm de sobreviver. Mulheres de meia-idade de boas

maneiras gritam, sob aplausos, que as fronteiras devem ser finalmente ―fechadas‖, sem

o que elas perderiam os cabelos. As queixas sobre as condições socioeconômicas em

deterioração passam diretamente ao ressentimento xenófobo ou antissemita. Todo o

mal vem de fora, enquanto a nação – ou, no delírio avançado, novamente a comunidade

nacional [Volksgemeinschaft] – é imaginada como potencialmente harmônica e livre de

contradições. E quando as políticas do governo não agradam essa nova direita alemã –

que obviamente iguala as suas ideias fixas e obsessões com o ―interesse da Alemanha‖ –

é porque essa elite política também está sendo dirigida a partir de fora.

Mobilização de ressentimentos

De onde vem esse aparentemente súbito movimento atual da extrema direita, que

com pose rebelde ataca a ―imprensa mentirosa‖3 e quer acertar as contas com o

establishment político da Alemanha? Para a maior parte das elites funcionais do país

esses desenvolvimentos são – ao menos por enquanto – obviamente inconvenientes.

Após inicialmente optar pela fracassada tática de ignorar, suas inconsistentes reações

vão da tentativa de integração e convites à discussão até as mais ou menos claras

condenações dessa arrancada da nova direita em direção à reconquista das ruas e da

hegemonia social.

Um exame nos arquivos da chamada ―imprensa mentirosa‖, os grandes meios de

comunicação, pode fornecer as primeiras pistas para a gênese da nova direita alemã. A

república berlinense viu após a reunificação quatro grandes mobilizações de

3 Lügenpresse (imprensa mentirosa) é um mote frequente nas marchas do PEGIDA [N. do T.].

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ressentimento que foram insufladas pelos meios de comunicação de massa, com as

quais se buscou objetivos políticos específicos. A atual limitação do direito de asilo

implementada no começo dos anos 90 pode ser apontada como um ato de fundação

informal da república berlinense, tendo sido acompanhada por uma onda de pogroms,

assassinatos de motivação racista e uma campanha de difamação insuflada por políticos

e meios de comunicação contra o ―abuso do direito de asilo‖. Esse foi o tempo prenhe de

ódio no qual abrigos de refugiados e imigrantes foram queimados, enquanto os meios de

comunicação de massa – tendo à frente o Der Spiegel, cuja edição de 9 de setembro de

1991 ilustrou um barco nas cores nacionais completamente lotado e ameaçado por uma

enchente de pessoas – e amplos setores da elite política, sobretudo do CDU4, usavam

uma retórica do tipo ―o barco está lotado‖ para vencer a barreira de dois terços para

aprovação uma emenda constitucional. A esquerda alemã também pode mobilizar o

ressentimento, como mostra a guerra do Kosovo levada a cabo pelo governo vermelho-

verde em 1999, quando uma furiosa campanha contra a Sérvia – enriquecida com a

retórica dos direitos humanos – acompanhou a primeira agressão bélica ilegal da

Alemanha após o fim da Segunda Guerra Mundial.

O passo decisivo que tornou a Alemanha um verdadeiro estado de servos, porém,

foi a implementação da Agenda 2010 e as leis trabalhistas Hartz. O endurecimento

draconiano da legislação trabalhista e a desregulação do mercado de trabalho, que

acarretaram massiva diminuição dos salários reais, o surgimento do maior setor de

baixos salários da Europa e uma intensificação geral do regime de trabalho, foram

insuflados com uma campanha de difamação sem precedentes contra setores

marginalizados da população: o Bild criou o ―Florida-Rolff‖5, a grande imprensa

procurava o ―desempregado mais perverso da Alemanha‖, o discurso do chanceler

dizendo que ―não existe direito à preguiça‖ e a selvagem ameaça de morte ―quem não

trabalha, não deve comer‖ deram coloração marrom à campanha. Durante a crise do

euro, quando a Alemanha forçou o restante da zona do euro ao desastroso regime de

austeridade, esse mecanismo ideológico banalizado – através do qual os perdedores da

crise são tachados como seus causadores – devia ser projetado somente ―para fora‖,

4 Democratas-cristãos, conservadores, partido de Angela Merkel. [N. do T.] 5 Referência ao caso de um aposentado que, supostamente, recebia pensão vivendo no exterior. [N. do T.]

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para o sul da Europa. A personificação ideológica das causas da crise funcionou não

mais com base nos ―parasitas desempregados‖, mas através da construção dos

―preguiçosos e irresponsáveis‖ europeus do sul. Foi notória a imagem de capa da Focus

de 22 de fevereiro de 2010, na qual uma estátua grega mostra o dedo médio ao leitor

alemão.

Em todas essas campanhas, as crescentes tensões relacionadas à crise – miséria

dos refugiados, guerra, pobreza, desemprego de massa, desintegração social, crises

econômicas – foram projetadas em direação a um ―exterior‖, para além da imaginada

sociedade do trabalho alemã livre de contradições. Precisamente esse mecanismo de

terceirização das causas da crise e sua personificação praticado pela indústria cultural se

tornam evidentes nas mencionadas declarações dos manifestantes do PEGIDA. E

obviamente o funcionamento diário da indústria cultural propaga esse ressentimento. O

Spiegel já alertou em 2007, em matéria de capa, para a ―silenciosa islamização da

Alemanha‖. A difamação de refugiados e asilados na Alemanha é produzida em massa e

diariamente, como no jornal Bild. Nessa medida o conceito de ―extremismo do centro‖

ganha contornos: os manifestantes apenas levam ao seu limite a ideologia fabricada

pelos meios de massa para a conquista de determinados objetivos políticos, eles exigem

uma campanha de difamação permanente da ―imprensa mentirosa‖, como ficou óbvio

na faixa central da manifestação em Dresden após os atentados de Paris: ―nós choramos

pelas vítimas da imprensa compreensiva!‖

Autonomia do ressentimento

Seria equivocado, porém, considerar os apoiadores da nova direita alemã como

meros seguidores ―seduzidos‖, que se deixam instrumentalizar por ―flautistas de

Hammelin‖ em sua rebelião conformista. A própria forma de sociabilização fetichista do

capitalismo promove diretamente nas massas a formação de uma estrutura de caráter

que é receptiva a ideologias de direita. A crise torna manifesta essa demanda latente

previamente existente – e portanto os meios de comunicação de massa atendem essa

demanda. O debate gerado por Sarrazin, no qual durante a implementação da Agenda

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2010 a imagem estabelecida do ―parasita social‖ foi enriquecida com ressentimentos

racistas e social-darwinistas, já apontava para tal ―autonomia‖ do ressentimento, que já

não era mais instrumentalizado para a conquista de objetivos políticos específicos. O

bestseller ―Deutschland schafft sich ab‖ [A Alemanha abole a si mesma] de Sarrazin, no

qual estratos sociais inferiores como os imigrantes árabes, rapidamente crescentes após

as leis Hartz, foram apresentados como defeituosos genéticos, serviu exatamente a essa

necessidade crescente de legitimação da exclusão e da marginalização de camadas mais

amplas da população, especialmente por parte da classe média. Nesse debate, que não

se iniciou com um objetivo político específico, mas a partir da crescente pressão

ideológica de crise sobre as classes médias e setores das elites funcionais, a nova direita

conseguiu pela primeira vez remover o tabu que pairava sobre a expressão pública do

ressentimento. Essa vitória de Sarrazin, com a qual algumas celebridades da política e

da cultura se solidarizaram, possibilitou o atual movimento PEGIDA, que ao fim apenas

recicla e agudiza o discurso então estabelecido.

Estamos lidando com uma Geração Sarrazin, que se articula imediatamente como

pequena minoria perseguida assim que se levantam objeções contra o seu

ressentimento. Com isso a direita toma para si a atitude ―politicamente correta‖ que

tanto odeia – eles creem firmemente que são vítimas de um ―racismo antirracista‖,

como descreveu precisamente um caricaturista francês. Além disso, é precisamente a

quase concluída penetração na sociedade com as novas formas e possibilidades de

comunicação da internet, que torna possível essa autonomia do ressentimento. Elas não

podem mais ser controladas pelos meios de massa ou serem ligadas ou desligadas sob

demanda do ―mainstream‖, mas desenvolvem uma vida própria na rede, elas se

transformam e se desdobram em incontáveis canais de informação, grupos de discussão

e fóruns baseados na internet, em uma infinidade incontrolável de variações do delírio.

Ocorre uma individualização do ressentimento, que é característica da atual ―dupla

dominação‖ na mente dos homens metropolitanos do capitalismo avançado, que os

meios de massa cada vez mais destituídos de exclusividade interpretativa e a livre

aquisição da informação constituem como uma comunicação em rede: o ressentimento

―tradicional‖ adquirido é desenvolvido e modificado sob direção própria.

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Legitimação da exclusão e concorrência de crise

Com isso essas fantasias diversas e confusas da nova direita, que ainda

dificilmente confluem para uma ideologia consistente, se apresentam como uma lógica

comum completamente interna ao capitalismo. Elas oferecem a legitimação do

desenrolar da crise. O objetivo da exclusão da sociedade do trabalho de partes

―supérfluas‖ cada vez maiores da humanidade promovida pelo processo de crise

encontra a sua legitimação ideológica nos correspondentes discursos extremistas, que

consideram inferiores os desempregados, europeus do sul e ―árabes‖, por motivos

racistas ou culturalistas. A crise, para a nova direita, não é um processo social de

crescente desenvolvimento das contradições, mas a consequência inevitável da essência

racial ou cultural dos indivíduos ou ―povos‖ afetados. Com o escudo da própria

―comunidade nacional‖ [Volksgemeinschaft] e com o fechamento das fronteiras para os

refugiados, a nova direita quer encerrar também a crise.

Simultaneamente, a nova direita legitima a crescente concorrência de crise: pois

obviamente tanto o populismo quanto o extremismo de direita, em todas as suas

formas, sempre tomaram de bom grado o princípio da concorrência e o modificaram e

promoveram de maneiras diversas. As ideologias de direita tomam emprestado desse

princípio da economia capitalista um sentido ―elevado‖ atemporal, através do qual eles

imaginam a concorrência como um princípio eterno da vida em sociedade: a amplitude

ideológica alcança aqui desde o darwinismo social de um Sarrazin até o sistema

maniqueísta delirante do nacional-socialismo alemão, que delira com uma eterna

concorrência e luta pela sobrevivência entre diferentes ―raças‖, em especial arianos e

judeus.

Ao fim e ao cabo todas as ideologias da desigualdade humana da direita populista

e extremista exibem um núcleo material realmente existente. Elas seguem – também em

sua variante nacional-socialista – um cálculo de custo-benefício, que se baseia na

internalização dos critérios de rentabilidade e formas de sociabilização capitalista, e

ganham um poder de atração especial em tempos de crise. A marginalização, a expulsão

ou simplesmente o assassinato de grupos populacionais (―estrangeiros‖, ciganos, judeus,

muçulmanos, homossexuais etc.), que são propagados pelos diferentes grupos de direita

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devem vir acompanhados de tangíveis vantagens materiais para a maioria da população.

Com a negação dos serviços sociais para as minorias ―inimigas‖, através de sua

discriminação aberta no ―mercado de trabalho‖ ou de sua expulsão ou confisco, a

posição material da maioria da população deve melhorar. Com as políticas concretas

racistas, as consequências da crise devem desaparecer, o que mais uma vez corresponde

a um aguçamento da política econômica neoliberal – e assim se encaixa no conceito de

―extremismo do centro‖.

Hegemonia do servilismo

Um importante fator adicional que funciona como incubadora de ideologias de

direita é o crescente espírito de renúncia e a relacionada frustração pulsional, que leva a

uma identificação autoritária com o sistema – acompanhada de crescente potencial

agressivo. Com a escalada das contradições aumenta também a pressão econômica

sobre todos os setores e camadas sociais; seja na forma de aumento da intensidade do

trabalho, benefícios sociais diminuídos ou perda de oportunidades de vida. A crescente

carga da valorização capitalista em crise deixa à maior parte dos assalariados, na

verdade, apenas duas opções: rebelião contra a loucura da crise ou identificação

irracional e submissão aumentadas. Mais tarde, com a implementação das leis

trabalhistas Hartz, a atitude submissa tornou-se hegemônica no ―estado de servos‖ da

Alemanha sob as ―restrições‖ da máquina de valorização do capitalismo avançado

colapsante levadas ao absurdo.

O portador da ideologia de extrema direita, marcado por uma estrutura de

caráter autoritária, internaliza os requisitos e especificações da valorização do capital.

Ele mergulha fundo no sentimento da heteronomia que é próprio da formação social

capitalista. Em crescente crise de identidade, ele intensifica a identificação do caráter

autoritário com o sistema existente, como Erich Fromm na famosa antologia

―Autoridade e Família‖ já em 1936 observou: ―quanto mais... crescem as contradições

internas da sociedade e quanto mais insolúveis elas se tornam, quanto mais catástrofes e

guerras e desemprego são ofuscados como poderes inevitáveis do destino, quanto mais

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forte e mais generalizada se torna a estrutura de pulsões sadomasoquista e, com isso,

quanto mais autoritária a estrutura de caráter, tanto mais o abandono e o destino se

tornam as virtudes e os prazeres mais elevados.‖

Esse sadomasoquismo resulta da imensa frustração já mencionada, que o caráter

autoritário em formação se impôs pela dinâmica da crise. Também aqui sempre se

acumulam grandes agressões, que procuram por um alívio. Quanto maior a frustração

das pulsões, maior a necessidade de descarga; o masoquismo exige satisfação sádica.

Essa fixação pode ser observada com nauseante perfeição na crise política alemã,

explicitamente nas crueldades que foram cometidas por Berlim contra a periferia do sul

europeu, justificadas com o fato de que na Alemanha sofreu-se e superou-se algo

semelhante durante a implementação da Agenda 2010. A aceitação submissa da

frustração e da dor concede o direito de provocar dor – esse é realmente o núcleo

sadomasoquista patológico de todo mote de direita sócio-darwinista sobre ―força‖,

―determinação‖ e ―dureza‖.

Adorno, em seu escrito ―Educação após Auschwitz‖, estabeleceu de forma geral

esse mecanismo psíquico que insta à ―descarga‖ da tensão psíquica reprimida em atos

violentos. Como ele observou, ―a raiva contra a civilização‖ é descarregada em um

esquema segundo o qual ―a violência é dirigida contra os mais fracos, principalmente

contra aqueles que são considerados socialmente fracos e ao mesmo tempo são

percebidos – seja isto verdade ou não – como felizes‖. Por isso aposentados alemães

desafortunados, que ainda precisam trabalhar na velhice, se revoltam contra imigrantes,

que eles imaginam como felizes ou sortudos [glücklich]. Nada é mais é mais odiado pelo

caráter autoritário infeliz do que a felicidade de pessoas que estão abaixo dele na escada

hierárquica capitalista. Adorno argumenta de maneira semelhante em ―O que significa

elaborar o passado‖. O nacional-socialismo aumentou o ―narcisismo coletivo‖ e com

isso, incomensuravelmente, ―a vaidade nacional‖, para, face à crescente frustração

diária, fornecer satisfações substitutas: ―os impulsos narcisistas do indivíduo, ao qual o

mundo embrutecido promete cada vez menos satisfação, mas que continuam a existir

sem amparo, enquanto a civilização lhes oferece tão pouco, encontram satisfação

substituta na identificação com a totalidade.‖ Esse diagnóstico bastante preciso de

Adorno é problemático apenas quando ele considera que as coerções fetichistas e

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absurdos da sociabilidade capitalista – aqui bastante análogas a Freud e seu famoso

―mal-estar na civilização‖ – como uma tendência geral do processo civilizatório.

O psicólogo social Oliver Decker colocou esse ―sistema circulatório autoritário‖

literalmente insano especificamente em relação com a economicização autoritária das

sociedades do capitalismo avançado atacadas pela crise: ―A constante orientação para

objetivos econômicos – mais precisamente: a exigência de submissão às suas premissas

– fortalece um sistema circulatório autoritário. Ela acarreta uma identificação com a

economia, por onde a compulsão à renúncia de vantagens acarreta agressão autoritária,

que se direciona contra os mais fracos.‖ A política neoliberal de renúncia a partir do

"centro", que foi aplicada a toda a Europa, traz com ela a agressão extremista autoritária

contra as vítimas da crise, baseada tanto no populismo quanto no extremismo de

direita. Quanto mais estrito o ditame da austeridade, quanto mais violentas as

turbulências econômicas por ele causadas, maior o ódio à vitima dessa crise política que

grassa entre todos os membros da sociedade, e que exibem as correspondentes

disposições autoritárias.

Finalmente, e isso se refere a Adorno no mencionado ―Educação após

Auschwitz‖, a ―consciência coisificada‖ do núcleo íntimo do extremista de direita,

constituída através da sociabilização capitalista totalizada, dá forma à educação

ideológica potencialmente eliminatória. A consciência coisificada seria sobretudo aquela

―que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio

condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado

modo‖. O portador da consciência coisificada mantém a sua identidade, e o seu ―ser-

assim – que se é de um determinado modo e não de outro – é apreendido

equivocadamente como natureza, como um dado imutável‖ e não como um devir

resultante da socialização. O mecanismo ideológico da personificação das causas da

crise, apresentado acima – assim como o processo de naturalização do capitalismo

correspondente –, evidenciam plenamente essa constituição psicológica patológica.

Disso resulta exatamente uma incapacidade de autorreflexão, que é característica de

praticamente todos os apoiadores do PEGIDA, a sua recusa de falar com a imprensa ou

mesmo de participar anonimamente de estudos e pesquisas. ―A ilusão é minha‖ –

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justamente porque sou assim, e não de outro modo, e sempre fui.

O sujeito automático e a imitação rançosa da subjetividade

A gênese da consciência coisificada só pode ser bem compreendida com a

reflexão sobre o caráter fetichista da sociabilização capitalista e da função social

totalizante do capital como sujeito automático, que é literalmente constituído

diariamente pelos sujeitos concorrenciais do mercado, mas desenvolve uma dinâmica

própria mediada através do mercado, ―pelas costas dos produtores‖ (Marx), que é

confrontada como um poder externo e alienado na forma de crescentes restrições

materiais de crise, exigências de mercado, tensões e contradições. Esse sentimento

generalizado de heteronomia, essa ―determinação estranhada‖ (Fremdbestimmung),

exala de todas as atuais ideologias da conspiração, que culminam no antissemitismo.

Adorno ao menos apontou isso, quando observou que pessoas de consciência coisificada

―se tornam iguais a coisas‖, para em seguida, se possível, tornar ―os outros‖ iguais a

coisas.

O que aparece aqui é a absurda posição do sujeito do mercado no automatismo

da valorização do capital. O sujeito automático, por um lado, faz das pessoas objetos de

seu movimento de valorização, coisas, mercadorias, que são transacionadas no mercado

– e que têm de se adaptar a essa forma mediada de dominação sem sujeito como uma lei

da natureza elaborada pelo homem com um sentimento subjacente de impotência. Ao

mesmo tempo, a única chance de viver uma rançosa imitação de subjetividade consiste

em, como máscaras de caráter (Marx) da economia, colaborar ―subjetivamente‖ com o

aperfeiçoamento da acumulação capitalista infinita – e assim novamente degradar ―os

outros‖ a objetos e ―tornar-se igual a coisas‖. No fetichismo excessivamente real, que o

sujeito automático perpetua, os corredores da esteira capitalista são sempre

simultaneamente sujeitos da acumulação e seus objetos impotentes. Todos os

corredores da esteira capitalista mundial funcionam como sujeitos-objetos do

movimento autonomizado da valorização, que eles próprios perpetuam, no qual as

relação concreta entre esses dois polos depende da posição hierárquica no processo de

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reprodução do capital. Somente a superação desse fetichismo removeria o chão da

extrema direita.

(Traduzido por Daniel Cunha

Título Original: ―Generation Sarrazin‖

Streifzüge 63 (2015)

Disponível em http://www.streifzuege.org/2015/generation-sarrazin )

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ESTADO DE PESTE / ESTADO DE SÍTIO

Para reler A peste, de Camus

Cláudio R. Duarte

―Esse tão selvagem rato, não teme inferno nem gato.‖

(Heinrich Heine, Die Wanderratten)

Tomado à distância, diminuídas as febres ideológicas do seu tempo e do nosso,

La peste (1947)1 pode figurar como um torso firme, com alguns desgastes e rachaduras

por certo, mas ainda capaz de estimular a reflexão. Existencialismo, estruturalismo, pós-

marxismo, pós-modernismo, mulculturalismo pós-colonial – nada parece poder

simplesmente reduzi-lo como experimento narrativo. É preciso então reler o romance e

descobrir sua coloração própria. O impulso mais comum da crítica é lê-lo do exterior:

reduzi-lo ao que se sabe sobre Camus, seus ensaios filosóficos, suas outras obras

artísticas, seus diários e declarações políticas, quando não ao que se sabe sobre o

existencialismo. Primeira questão de método, portanto: afastar tudo isso, buscar a

crítica imanente da obra. E isso porque, apesar das lacunas, o romance é mais crítico e

interrogativo do que a filosofia de segunda mão de Camus, ou do que outros projetos

artísticos seus. Tal como a obra de grandes como Kafka ou Beckett, ou Machado de

Assis, Carpentier e Roa Bastos dentre nós, a escrita camusiana tem certa relação com

uma experiência social que nunca realmente cessou: a experiência do estado de exceção

– a começar por aquela da ocupação nazista e dos regimes ditatoriais do Leste, mas

também, antes deles, de forma camuflada, e muitas vezes de modo insuspeito pela

crítica, o do colonialismo francês na Argélia.

1 CAMUS, Albert. La peste. Paris: Gallimard, 1947. Utilizei nas citações, com algumas emendas, a

tradução de Valerie Rumjanek Chaves: A peste. Rio de Janeiro: Record, s.d. Cito a seguir, no corpo do texto, respectivamente, os números das páginas do original e da tradução.

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Um inconsciente colonial

É o que aparece indicado já em seu primeiro parágrafo: ―Os curiosos

acontecimentos que são o objeto desta crônica ocorreram em 194..., em Oran. Segundo a

opinião geral, estavam deslocados [ils n'y étaient pas à leur place], já que saíam um

pouco do comum. À primeira vista Oran é uma cidade comum e não passa de uma

prefeitura francesa na costa argelina‖ (11/7). Se os acontecimentos da cidade infectada

se transformam numa metáfora dos nazistas na França (então chamados la peste

brune), antes de mais nada caberia dizer que o enredo histórico é moldado pela imagem

prismática de um estado de exceção secular – cuja senha filosófica camusiana será a

ideia do ―Absurdo‖ –, capaz de significar e expor para além de si as mais variadas

situações de emergência, exclusão, crime, transgressão e violência dentro da ordem

capitalista mundial. Na verdade muito anteriores ao regime nazista se considerarmos os

quadros do domínio colonial francês e da população argelina administrada Ŕ mesmo em

sua aparente exclusão do relato.2 Nesse sentido, Edward Said teria certa razão em dizer

que há uma espécie de inconsciente colonial no romance – que expulsa os árabes (e por

que não também os berberes) da representação.3 Para o crítico, isso teria um sentido

expressamente apologético: ele não só se referiria ao imperialismo francês de modo

vesgo, mas o apoiaria e o legitimaria. Essa acusação ocorre basicamente porque o crítico

egípcio desconsidera a relação intrínseca, no romance, entre os elementos do

imperialismo, nazismo e demais formas de estado de exceção modernas, que

transcendem o caso particular argelino, sem simplesmente cair numa fábula

universalista ou simplesmente fantástica. A crítica de Said não caberia mais à série de

intérpretes que reduzem o alcance do livro à questão da Ocupação e da Resistência

francesa e a uma moral abstrata?4

2 Para uma leitura do (neo)colonialismo como laboratório de um estado de exceção mundial permanente

cf. ARANTES, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007; Idem, O novo tempo do mundo Ŕ e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.

3 SAID, Edward. ―Camus e a experiência colonial francesa‖ in: __. Cultura e imperialismo [1993]. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

4 Cf. p. ex. SPRINTZEN, David. Camus: a Critical Examination. Philadelphia: Temple University Press, 1988. Para uma revisão geral dessas leituras mais ou menos redutoras, que vão de Sartre, Beauvoir, membros de Temps Modernes até Jean Pouillon e Roland Barthes, vide: FOLEY, John. Albert Camus: from the Absurd to Revolt. Stocksfield: Acumen, 2008, pp. 50-4.

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A coisa então é mais complicada ou, pelo menos, muito mais ambígua que isso.

Pois, como anunciado acima, haverá algo de deslocado, fora de lugar, que fará estourar

a fachada ordinária. Primeiramente, lembremos que A peste não é narrado em terceira

pessoa por Camus, de maneira direta, mas por um narrador em situação, um cronista

―objetivo‖ dos fatos, mas parcial e não onisciente, o médico Bernard Rieux. Inserido em

determinada posição social e de classe, esse trabalhador incansável, filho de operário,

toma o partido oposto, em certo sentido, às autoridades francesas – o que Said parece

simplesmente eliminar de seu campo de visão. Desde o início, então, um determinado

corte de classe – e não simplesmente étnico-nacional – se impõe, e não

imperceptivelmente, em seu relato.

Note-se, por outro lado, que há uma causa política identificável para a epidemia

da peste, como veremos melhor adiante, a qual é extrapolada como ―força absurda‖

apenas pela regra da composição pós-realista, que dá sinal da política de exceção em

geral, Ocupação e Colônia inclusos, em última instância remetendo ainda ao governo de

Vichy (1940-1944), que colaborou com a Ocupação e suspendeu a Constituição da

Terceira República. Outro detalhe simbólico político capital: além da separação e do

isolamento social, a peste impõe a sede, os tumores, a febre delirante e mais tarde, em

sua variante pulmonar (117/87), a sufocação e o silenciamento de suas vítimas. Eis aí

conotado, como sintoma do flagelo, o estado dos árabes e berberes politicamente

administrados. Por outro lado, se o ―estado de peste‖ chega a Oran de forma súbita e

enigmática, o ―estado de sítio‖ não vem gratuitamente, mas é principalmente

decorrência da reação social que esse estado provoca, e não do puro e simples resultado

do conformismo dos cidadãos de Oran, principalmente os do subúrbio da cidade, os

quais desencadeiam uma série de comoções, tumultos, incêndios, tentativas de fuga,

luta armada, saque de residências empestadas e em chamas – focos de revolta que

conduzem as autoridades ―a assimilar o estado de peste ao estado de sítio e a aplicar as

leis decorrentes‖ (159/120). Além disso, note-se que o romance foi escrito num contexto

de lutas de caráter legalista e reformista, pautadas pela construção de uma identidade

nacional, antes da radicalização dos movimentos insurrecionais abertamente

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anticoloniais no Maghreb e antes da Guerra da Argélia (1954-1962).5 Em certo sentido, o

romance prenuncia essa radicalização política e mesmo a invoca, como veremos ao final,

ao contrário do que argumentam Sartre, Barthes ou Said. Isso tudo já sinaliza que a

questão árabe não está simplesmente ausente do romance, como quer Said, mas como

veremos melhor adiante brilha como o outro administrado, sitiado e silenciado pelo

poder.

Certamente, Said tem razão quando lembra que o romance se concentra sobre a

vida dos colonos de origem francesa em Oran – chamados pieds-noirs – que, é bom

lembrar, historicamente expulsaram, pelos métodos de razzia, os árabes das melhores

terras das planícies, dos cargos administrativos e políticos, dos empregos urbanos, além

de terem de se submeter ao francês como língua oficial nas escolas, ao racismo

estrutural etc. O problema para Said então é que o ―romance realça e modela

silenciosamente os problemas de consciência e reflexão dos personagens franceses‖.6

Além disso, toda a ―estrutura da sociedade civil‖ representada no texto (a prefeitura, o

aparato da justiça, os hospitais, os restaurantes, o entretenimento etc.) ―é francesa,

embora administre sobretudo a população não francesa‖, que afinal morre

anonimamente em massa e que, segundo ele, seria a ―única que importa em termos

demográficos‖.7

O fato essencial a interpretar, contudo, é que o texto não se concentra nos ―bons‖

ou ―maus‖ representantes dos interesses coloniais franceses, mas desenha, num nível

maior de abstração, a estrutura da dominação burguesa moderna, do antagonismo e

da luta social, antes, durante e depois da grande peste. Para isso, o texto reata o

vínculo do mais moderno com o mais arcaico na história, incluindo aí os surtos de peste

negra de outras épocas e de outros territórios coloniais (Antiguidade greco-romana,

Idade Média europeia, Constantinopla, Cantão na China), a ideia do Apocalipse como

5 Para estudar o processo de (des)colonização e a sociedade argelina, cf.: FERRO, Marc. Colonization: a

Global History [1994]. London/New York: Routledgde, 2005; CANÊDO, Letícia B. A descolonização da Ásia e da África. São Paulo: Atual, 1994; BOURDIEU, Pierre. Sociologie de l‟Algérie. Paris: PUF, 1958/1961; cf. também a bela entrevista e o ensaio fotográfico sobre o povo argelino elaborado pelo

jovem Bourdieu: Idem, ―Pictures from Algeria – An Interview with Pierre Bourdieu – Franz Schultheis‖, Collège de France, Paris, June 26, 2001. http://www.fondation-bourdieu.org/uploads/tx_pubevent/bourdieu-excerpt-picturing.pdf. Há um pequeno documentário em vídeo com exposição de Schultheis: https://www.youtube.com/watch?v=exJ8C0mQ8GM (Acessos em 05-02-2015).

6 SAID, ibidem, p. 234. 7 Idem, ibidem, pp. 234 e 232.

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Revelação (a saber: a descoberta das implicações do individualismo burguês e

esclarecido) e, principalmente, os traços e vínculos inconscientes, isto é, recalcados e

deslocados pela representação ideológica do absurdo.

Esse desenho é feito de modo crítico desde as primeiras linhas dedicadas à

descrição da paisagem social e natural de Oran. Esta é comandada inteiramente pelo

cotidiano do comércio colonial: a preocupação ―très raisonnable‖ de ―fazer negócios‖,

―ganhar muito dinheiro‖ e ―enriquecer‖, numa vida assim tomada por ―desejos violentos

e rápidos‖ dos jovens, ou pelo ―vício‖ do jogo dos mais velhos, em geral ―pela ―falta de

tempo e de reflexão‖ (12-3/7-8) sobre a vida, a sociabilidade, o amor. Uma comunidade

que gira em torno da rotina da divisão do trabalho abstrato, da alienação da vida

privada e dos prazeres vulgares. O lugar do desejo é capturado pela alienação mercantil.

Mas então restaria saber por que essa visão interna, feita a partir do mundo

ideológico do colon francês na Argélia, ou, para ser mais exato, da consciência de

sujeitos divididos, dessubstancializados, abertos à determinação histórica, é a priori

desqualificada como um ponto de vista possível. Mais que isso, um ponto de vista

revelador e engajado, se relembrarmos que o dr. Bernard Rieux e seus companheiros

(Castel, Richard, Grand, Tarrou e Rambert) tomam o ―partido da vítima‖ e dos

―vencidos‖ (230 e 273/177 e 208) – dos subordinados, dos pobres, dos trabalhadores

dos subúrbios árabes, condenados em massa – e que não sem certa ponta de ironia são

chamados de ―concidadãos‖. Não por acaso, é nos subúrbios e nas fábricas da cidade que

surgem as grandes levas de ratos, pois é lá que a precariedade das condições sanitárias

é maior. Além disso, apesar de sua uniformidade, basta ver como, segundo o narrador, a

peste não atinge a todos por igual:

―A especulação interviera e oferecia, a preços fabulosos, os gêneros de primeira necessidade que faltavam no mercado habitual. As famílias pobres viam-se assim numa situação muito difícil, enquanto às ricas não faltava praticamente nada. Embora a peste, pela imparcialidade eficaz com que exercia seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre os nossos concidadãos, pelo jogo normal dos egoísmos, ao contrário, tornava mais agudo no coração dos homens o sentimento da injustiça.‖ (214/164, grifos nossos, tradução modificada.)

O contraponto, dentro desse grupo de personagens, é dado por Paneloux, o padre

católico que discursa aceitando a Peste como ―castigo‖ ou ―graça‖ divinos, e por Cottard,

o ―pequeno capitalista‖ que aceita e se entrega a ela – ambos funcionando como

―encarnações‖ da ideologia civilizatória e religiosa do Imperialismo e do

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Colaboracionismo.8 Poderíamos dizer, como tentaremos mostrar adiante, que Paneloux

e Cottard são as figuras mais vinculadas ao ―supereu obsceno da lei‖ fracassada – a base

material para a constituição do conteúdo de morte bem como da perspectiva política e

moral do romance. Como veremos, o estado de peste enquanto estado de sítio traz à

tona um conjunto completo de sintomas e fantasias sociais ideológicas. Seguramente aí

jaz o seu motor principal. Trata-se de focalizar essa consciência ideológica para

descobrir o que fica censurado e excluído pela abstração de sua forma – mas ganha

clamorosa expressão nas entrelinhas, através da crônica do médico, como a exposição

de um inconsciente político, e que se produz como verdade somente enquanto ficção

alegórica. Isso exige decifrar o seu princípio formal.

Combates com a forma: abstração e concreção alegórica

O que mais salta à vista na forma de A peste é a busca de uma narrativa sóbria,

límpida, clássica, ―contrastando vivamente com a atmosfera angustiosa na cidade

assediada e isolada do mundo‖, como bem observou Carpeaux.9 Essa prosa reta, que se

faz crônica de acontecimentos, é oposta à ―descontinuidade das frases cortadas‖ de

Mersault, o ―homem absurdo‖ de L‟étranger (1942), cujo relato morre e renasce a cada

linha, outra das proezas do escritor, tal como identificada por Sartre.10 Ora, essa

variação estilística reflete dois modelos de subjetividade ética e política

contemporâneos. Em vez do subjetivismo niilista de Mersault, A peste se forma através

da técnica de reunião de relatos de vários pontos de vista (do dr. Rieux, Grand,

Paneloux, Cottard – e de Tarrou, em especial), a partir da composição de diálogos e de

8 Cf. a radiografia feita por SARTRE, Jean-Paul. « La République du silence » [1944], « Paris sous

l‘occupation » [1945] e « Qu‘est-ce qu‘un collaborateur? » [1945] In :__. Situations III. (Lendemains de guerre). Paris: Gallimard, 1949 (vide a tradução deste último ensaio nesta edição de Sinal de Menos). Sobre a resistência e o colaboracionismo na França e na Europa em geral, cf. LLOYD,

Christopher. Collaboration and Resistance in Occupied France – Representing Treason and Sacrifice. New York: Palgrave, 2003; DÉAK, István. Europe on Trial: The Story of Collaboration, Resistance and Retribution during World War II. Philadelphia: Perseus/Westview Press, 2015, pp. 50-8; MAZOWER, Mark. O Império de Hitler – A Europa sob o domínio nazista. São Paulo: Cia. das Letras, 2013, Caps. 13 a 15.

9 CARPEAUX, Otto Maria. Tendências contemporâneas da literatura. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1968, p. 288.

10 SARTRE, Jean-Paul. « Explication de L‟étranger » in: __. Situations I. Paris: Gallimard, 1947, p. 109.

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anotações de seus companheiros, o que dá a Rieux o papel de uma ―testemunha

objetiva‖ (273-4/208-9) através de uma narrativa de base intersubjetiva.

A partir dessa espécie de sujeito coletivo dialógico, a crônica tenta superar alguns

pressupostos da forma tradicional do romance burguês, fundada no indivíduo isolado11

– e aqui, a meu ver, o interesse dessa pesquisa formal, que põe em jogo a dialética de

indivíduos isolados não mais isolados pela força das circunstâncias. Como crônica, ele

não se pretende à escrita da História, como observou Roland Barthes, pois não se

pergunta pelas causas.12 Por certo, ela não se põe a cavaleiro da História, nem força a

dobradiça do Trágico, mas o texto contínuo não deixa de recuperar o que fica para trás

no relato, de medir consequências e de refletir sobre elas – embora estrategicamente

não se pergunte pelas causas de maneira clara e direta. Pois se perguntasse claramente

pelas causas, ele desarmaria a própria situação cega e alienada que se propôs como

questão, destruindo sua força mimética primordial, que é representar o reino das

abstrações da sociedade anônima moderna. Não obstante, seus protagonistas agem em

conjunto sobre o que pensam ser suas causas e não se reduzem a uma ―moral do

silêncio‖.13 Esta última está muito mais do lado dos pied-noirs: os pequeno-burgueses

racistas, que se isolam ou pouco se misturam ao povo, adotam a ―língua dos mercados

(...) a crônica cotidiana‖ (75/55), ou assistem à tragédia como num teatro.14 É o que

provavelmente faz Rieux observar a estátua empoeirada e suja da República com

indiferença (83-4 e 87/62-3 e 65). Uma República de mônadas do dinheiro, que Camus

intui na raiz do individualismo ocidental, no homem reduzido à célula de trabalho e

consumo, bem como no ―culto da produção‖ e do ―soldado-operário‖, que estrutura o

mito coletivista do socialismo de caserna, com sua ―divinização da história‖, como

sucedeu no sistema soviético.15 Aqui, o romance questiona também os limites da

11 Cf. LUKÁCS, Georg. Teoria do romance. São Paulo: Ed. 34/ Duas Cidades, 2000. 12 BARTHES, Roland. ―Resenha do livro A peste, de Camus‖ [1954]. Folha de São Paulo, Caderno Mais!,

05/01/1997. (A polêmica completa entre Barthes e Camus encontra-se em: http://quebracorpo.blogspot.com.br/2010/04/peste-debate-entre-roland-barthes-e.html Acesso em 10-01-2014).

13 Idem, ibidem. 14 Marc Ferro lembra que em meados do século, 30% dos cidadãos de Oran votavam na esquerda, imersos

em pura falsa consciência: ―Embora racistas, negavam que o fossem, declarando obediência às ideias da Esquerda, da República. Não eram eles os descendentes dos proscritos das históricas jornadas de junho de 48, dos communards de 1871?‖ (FERRO, op. cit., p. 123).

15 CAMUS, Albert. L‟homme révolté. Paris: Gallimard, 1951, pp. 263, 173, 179, 257-9.

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consciência subjetiva e intersubjetiva no mundo da pequena burguesia e da tecnocracia

capitalista, que são os limites do individualismo e de um certo humanismo:

―Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios, em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem, diz-se que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções.‖ (41/30)

A peste cai sobre Oran, então, como uma ―abstração‖ (87/66) e é elevada, de

modo inteiramente reflexivo, a princípio construtivo alegórico do romance, o que vem

indicado aliás desde a epígrafe.16 Ela tem de ser entendida estritamente como um

princípio de alienação que mimetiza a lógica do capital e do estado de exceção

reinantes no laboratório colonial (na Argélia desde 1830). Dessa perspectiva, como em

Kafka, esse relato de Camus poderia ser considerado um romance que contém um

momento ―metafísico‖ de abstração, separação e desrealização da realidade cotidiana,

mas que diz respeito ainda a certo realismo crítico, não convencional. O que está além

da realidade (―meta-física‖) é causado pela ―segunda natureza‖ social. Na verdade, como

já apontamos, as causas políticas e sociais da peste, tal como da vida apartada e sitiada

de franceses, árabes e berberes, estão lá pressupostas, nas entrelinhas. Veremos que elas

são também materializadas como causa de um certo desejo difuso, externas à

consciência e às estruturas intersubjetivas.

Para começar a entender melhor esse ponto, basta analisar o trecho em que o dr.

Rieux conhece o jornalista francês, Raymond Rambert:

―Fazia [Rambert] uma pesquisa para um grande jornal de Paris sobre as condições de vida dos árabes e queria informações sobre o seu estado sanitário. Rieux informou-o de que esse estado não era bom, mas quis saber, antes de ir mais longe, se o jornalista podia dizer a verdade. - Certamente - disse o outro. - Quero dizer, pode fazer a condenação total?‖ (18-19/13; grifos meus.)

Rieux pretende fazer a condenação das condições de vida dos árabes na

imprensa metropolitana francesa, denunciando o péssimo estado sanitário do subúrbio,

16 A frase de Daniel Defoe: ―É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto

representar qualquer coisa que realmente existe por alguma coisa que não existe.‖ (6/1).

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que, basta lembrar, ―cheirava a fritura e urina‖ (53/40). O obstáculo aqui, por suposto,

é menos a falta de dados empíricos, facilmente observáveis pela proliferação dos ratos

na cidade, do que a provável censura do governo, tal como a que foi realmente sofrida

pelo jornalista Camus em Le Combat, na Argélia e mais tarde na França.

Na sequência, Rambert diz a Rieux:

―- Total, não, devo dizê-lo. Mas creio que essa condenação seria sem fundamento. Com delicadeza, Rieux disse que de fato semelhante condenação seria sem fundamento, mas que, ao colocar essa questão, procurava apenas saber se o testemunho de Rambert podia ou não ser feito sem reservas. - Só admito os testemunhos sem reservas. Não estou, pois, disposto a apoiar o seu com as minhas informações. - É a linguagem de Saint-Just – disse o jornalista, sorrindo.‖ (19/13)

Mas Rieux não quer ter nada a ver com Saint-Just, o ―Arcanjo do Terror‖,

personagem chave da conversão do ―niilismo‖ em ―revolta metafísica‖ na história,

segundo a visão filosófica de Camus.17

―Sem elevar a voz, Rieux disse que não sabia nada disso, mas que era a linguagem de um homem cansado do mundo em que vivia, mas que prezava, contudo, seus semelhantes e estava decidido a recusar, de sua parte, a injustiça e as concessões.‖ (ibid.).

Quando o estado de peste é declarado, a condenação das condições de vida – para

além da culpa subjetiva de autoridades isoladas – poderia ser feita na imprensa com

fundamentos precisos e concretos. Quando Rambert reencontra Rieux, dá-se o seguinte

diálogo revelador:

―- Antes destes acontecimentos – esclareceu o outro [Rambert] – vim pedir-lhe informações sobre as condições de vida dos árabes (...) - Ah, sim – respondeu Rieux. –Bem, agora tem um belo assunto de reportagem.‖ (81/60-1).

Rambert, contudo, estava apenas preocupado nesse momento em fugir para a

França, a fim de reencontrar a mulher. Mas fica claro, nesse trecho, que por trás da

abstração fantasmagórica da Peste temos um processo social concreto sendo indicado e

mostrado pelo narrador – em vez de descrito ou contado –, o que precisa ser

devidamente interpretado nas entrelinhas pelo leitor.

**

17 CAMUS, L‟homme révolté, op. cit., pp. 146 e ss.

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O preço da clareza e da sobriedade da forma é uma certa ―monotonia‖ de sua

exposição, que imita com perfeição e minudência a monotonia dos fatos na cidade

pestilenta. ―Sim, a peste, como abstração, era monótona‖ (88/65). A abstração aqui

mencionada tem muitos sentidos no texto – e aqui comparece a virtuose artística de

Camus. Na base, a abstração é a mímese de um processo real de abstração, alienação e

morte coletivas. Primeiramente, ela é sinônimo de separação e exílio da população

argelina do mundo. Mais que isso, esta se torna prisioneira da cidade sitiada, que a

administra como uma massa informe. Porém, antevê-se que os movimentos da massa

burguesa eram incaracterísticos e insignificantes desde o princípio. Isto já era a Peste,

apenas não estava explícito. Os fatos se sucedem monotonamente, entre a agitação e o

torpor, a espera e a melancolia, a violência e ―cenas de loucura‖ (86/65). Mais ou menos

no meio do relato (cap. III), com o avanço do flagelo e após o exílio forçado, o medo, a

quebra da associação dos sitiados e a revolta coletiva pontual, a abstração penetra fundo

na ―alma‖ da massa, constituindo quase uma ―sociedade dos mortos‖ (160/121), que

então perde a capacidade de subjetivação e valoração dos acontecimentos:

―Mas, perguntar-se-á, que aspecto tinham esses separados? Pois bem, muito simples: não tinham aspecto nenhum. Ou, se se prefere, tinham o aspecto de todos, um aspecto inteiramente geral. Compartilhavam a placidez e as agitações pueris da cidade. Perdiam as aparências do senso crítico ao mesmo tempo em que ganhavam as aparências do sangue-frio. Podia-se ver, por exemplo, os mais inteligentes fingirem procurar, como todos, nos jornais ou nas emissões radiofônicas, razões para acreditar num fim rápido da peste e conceberem, aparentemente, esperanças quiméricas ou sentirem receios sem fundamento ao ler considerações que um jornalista havia escrito um pouco ao acaso, bocejando de tédio. Os demais bebiam sua cerveja ou tratavam de seus doentes, preguiçavam ou se esgotavam, arquivavam fichas ou faziam girar discos sem se distinguirem muito uns dos outros. Em outras palavras: já não escolhiam nada. A peste suprimira os juízos de valor. E isso se via pela maneira como ninguém mais se ocupava da qualidade do vestuário ou dos alimentos que se compravam. Aceitava-se tudo em bloco.‖ (169/129)

A adaptação ao horror se naturaliza junto a uma espécie de normalopatia da

ordem do trabalho – por exemplo, o emprego da ralé desempregada nos serviços

sanitários e funerários de alto risco (163/124) – e do aprisionamento em massa

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(principalmente dos mais pobres), numa paisagem crepuscular.18 A Peste se torna então

―uma administração prudente e impecável de bom funcionamento‖ desse estado de

coisas (166/126-7), não obstante o nível de tensão dramática do texto aqui alcançar o

ápice, com a organização do grande crematório de pilhas de corpos. Nesse ponto

tenebroso do texto, sentimos o impacto da paciente construção dos dois primeiros

capítulos. O início lento descreve situações variadas, acumula dados aparentemente

inócuos, mas vai preparando o contexto da aparição do grande surto, articulando a

invasão dos ratos, mortos em massa, aos doentes, também mortos em massa. A

população se transforma em números exatamente tal como os ratos. E de forma

homóloga, no começo do fim da epidemia, quando os ratos retornam a circular pelos

subúrbios da cidade, a população também começa a circular pela cidade inteira. A

população de Oran, portanto, mantém uma estranha aproximação com os ratos. Valeria

especular as causas mais profundas dessa suprema abstração.

O inconsciente político na forma: Oran / Rat / Arab

Uma boa hipótese seria a de que o inconsciente político representado figuraria,

enquanto obra de ficção, os resultados de uma espécie de recalque socialmente

determinado – de modo algum simplesmente autoral –, ou antes, os resultados de um

processo social de foraclusão do simbólico dos resultados coloniais e da população

árabe em particular. Nesse caso, para além do moralismo de Said, como num delírio ou

alucinação coletiva, a população de Oran aparece em sua verdade negativa: como puro

objeto nas mãos de um grande Outro fora da Lei – a Peste e os seus administradores

estatais, escorados sob a capa da razão científica, da ordem e do dever. Um pouco como

na obra de Kafka (aludida por Cottard, que aparece lendo obviamente O processo,

59/44), o que está em questão no romance de Camus é o formalismo

18 Em certa medida, e mutatis mutandis, tal adaptação ao horror, que alcança o colaboracionismo, o zelo

ou a extrema indiferença diante do trabalho da morte, foi registrada nos campos de concentração nazistas, bem como no seio das cidades alemãs e europeias. Cf. KOGON, Eugen. L‟État SS [1946]. Paris: Seuil, 1970; PAXTON, Robert O. The Anatomy of Fascism. New York: Alfred A. Knopf, 2004. A mesma indiferença que vai penetrando hoje nas massas trabalhadoras sob o jugo da ofensiva neoliberal e da concorrência global, cf. ARANTES, ―Sale boulot – uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história (uma visão no laboratório francês do sofrimento social)‖ in:__. O novo tempo do mundo, op. cit., pp. 101-40.

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obsceno do Poder e da Lei social modernos, daquilo que proíbe o gozo e ao mesmo

tempo, funcionando como instância de um Supereu obsceno (numa espécie de curto-

circuito com a instância do Isso e da Coisa19), inflige o gozo à massa de sujeitos.

Primeiramente, no estado de peste, como dito anteriormente, temos a separação

e o isolamento dos indivíduos em relação aos prazeres vulgares; depois, quando a cidade

é lançada às portas da morte coletiva, temos a ―impressão ilusória de uma cidade em

festa‖ (78/58), um relaxamento da moral e dos costumes (114/85) até traços de

―excitação desvairada‖ crepuscular (115/86) e a busca saturnal de um ―gozo

desenfreado‖ (180/137) por parte dessa massa. Ao fim e ao cabo, uma reversão em seu

oposto: a destruição da própria massa, que a reenvia à adaptação e à apatia diante do

inominável. O regime colonial aqui se revela como instituição selvagem em sua

dimensão Real – uma ―ordem da peste‖ que tudo assujeita, aplaina, desfigura e

desencarna, até destruir a sensibilidade, a memória e a experiência (166-7/127)20, como

um Outro sem lei, que no limite apaga as fronteiras entre o princípio de realidade e o

vale-tudo. Em outros termos, um pouco mais especulativos: através da grande Peste é

como se a pulsão anômica do Capital irrompesse no coração do Real, destruindo as

coordenadas simbólicas pressupostas que o mantêm sob certo ―controle‖ ou dentro dos

contornos da realidade ―normal‖ (contratos sociais, direitos e ideologias da

equivalência, justiça, segurança, ciência etc.).

Daí a moldura quase alucinada do romance nesse capítulo III; daí também o

romance se escorar em torno das múltiplas fragilidades e falências da Lei pública: a

demora em aplicar ―as medidas profiláticas previstas na lei‖ (52/39); a insuficiência

geral das medidas de higiene e controle sanitário (62-3/47); o poder disciplinar

19 Para essa leitura de Kafka como base para a obra de Camus, inspirei-me parcialmente na sequência de

interpretações de ŽIŽEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos. (Hegel com Lacan). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, cap. XI; Idem, Eles não sabem o que fazem. (O sublime objeto da ideologia). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, pp. 187-92; Idem, A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 59-60, 159-69; Idem, Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011, pp. 98-110; Idem, Menos que nada. (Hegel e a sombra do materialismo histórico). São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 398-403.

20 Seria válido talvez traçar o paralelo com a figura do ―muçulmano‖ nos campos nazistas: AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008. Ver também a ―simplificação psíquica‖ costumeira do tipo ―concentracionário‖ registrada por KOGON, op. cit., pp. 338, 342-9.

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arbitrário do Estado sobre a população21; a precariedade dos contratos de trabalho na

cidade (o caso de Joseph Grand: 47-8/35-6); a discussão da moral paterna, da justiça e

da pena de morte (o caso de Jean Tarrou: 222-9/170-6); o destino divino ou os castigos

enviados pelo grande Outro (os sermões ensandecidos do padre Paneloux, defendendo a

―aceitação total‖ dos ―excessos da desgraça‖: 204/156); enfim, as manifestações diversas

da loucura e da ausência da lei (o caso de Cottard). Este último personagem, como o seu

nome indica, sofre da chamada ―síndrome de Cotard‖ ou ―delírio de negações‖ (um

grave tipo de melancolia22). É uma espécie de morto em vida, e se coloca contra ―todos

os outros‖ (56/42), sente-se perseguido e ameaçado, simpatiza com os pequenos e os

conservadores, impressiona-se com o ―estrangeiro‖ que mata um árabe na praia (o

leitmotiv de L‟étranger), contrabandeia gêneros de vida, tenta o suicídio, mas sente-se

―à vontade no terror‖ (181/138) e abandona-se à catástrofe, em suma, procura o ―gozo

desenfreado‖, goza e é gozado no estado de peste/sítio. É uma espécie de retrato

camusiano do niilista nos moldes do colaborador fascista.23

Ora, como aprendemos com Freud e Lacan, o que foi recalcado sempre retorna

simbolicamente distorcido como sintoma, enquanto o que foi foracluído da

simbolização retorna do exterior, no real. Como isso se dá no texto? Por um lado, como

estado geral de reificação, esquecimento ou o mal-estar difuso das páginas iniciais, de

outro como uma monstruosa proliferação de ratos, e assim, numa longa cadeia

metonímica de eventos, como uma Peste descomunal, a instalação do caos e do estado

21 Michel Foucault aponta que as estruturas de controle da peste, na França do século XVIII, seriam uma

das matrizes da forma do poder disciplinar e biopolítico contemporâneo, pautado numa espécie de ―coerção positiva‖ e ―individualizadora‖: ―O momento em que a peste se desencadeia é o momento em que, na cidade, toda regularidade é suspensa. A peste passa por cima da lei, assim como passa por cima dos corpos. Esse, pelo menos, o sonho literário da peste [em Artaud e Camus, com seu ―grande momento orgiástico‖]. Mas vocês estão vendo que houve outro sonho da peste: um sonho político da peste, em que esta é, ao contrário, o momento maravilhoso em que o poder político se exerce plenamente. A peste é o momento em que o policiamento de uma população se faz até seu ponto extremo, em que nada das comunicações perigosas, das comunidades confusas, dos contatos proibidos pode mais se produzir. (...) um poder inteiramente transparente ao seu objeto (...)‖. FOUCAULT, Michel. Os anormais (Curso no College de France, 1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 58-9. O mais correto seria dizer que o romance promove a conjunção do sonho literário com o sonho político, descritos por Foucault.

22 QUINET, Antonio. Psicose e laço social. (Esquizofrenia, paranoia e melancolia). Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pp. 192-5.

23 Segundo a fisionomia sartriana do colaborador, este não pertencia a uma classe exclusiva: era muito mais um ―fato de desintegração‖, de indivíduos marginais, socialmente desintegrados, passando pelo fascista típico, mas também pelo católico ultraconservador e o liberal anárquico de direita, buscando se integrar a uma sociedade autoritária. (SARTRE, « Qu‘est-ce qu‘un collaborateur? », op. cit., especialmente pp. 46-49). Em Camus, ver L‟homme révolté, op. cit., Cap. V.

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de sítio, da revolta, por fim, o exílio e a morte anônima da massa. Vale dizer: apresenta-

se como a explicitação da ―vida nua‖ (Agamben) excluída da simbolização, no interior

dos incineradores e das valas comuns (155-65/117-25), que reduzem a população a mero

resto excremencial.

Assim, os ratos remetem a outros significantes metonímicos, ou antes, a outra

coisa no real. Note-se que não são equivalentes à peste, nem é dito que são a sua causa,

mas antes suas primeiras vítimas – que se deslocam dos subúrbios para o centro, dos

porões para a praça pública. Ao modo de uma fantasia exata, o significante foracluído da

simbolização social – les Arabs –, retorna no real como esse pequeno ―objeto anal‖

aparentemente ameaçador – les rats –, dois significantes que se aproximam na

pronúncia em francês. Vale então perseguir o deslocamento dessa letra r isolada ou do

fonema ra (e às vezes da palavra rat) pelo texto. Note-se de início (sempre com a

pronúncia francesa em mente) o nome da cidade: Oran; em seguida, os nomes das

principais personagens ao redor de Bernard Rieux: Joseph Grand, Tarrou (rat ao

contrário), Raymond Rambert, Cottard (outra vez rat invertido), além dos médicos

Richard e Castel. Do outro lado do espectro social, as autoridades e a classe dominante,

a população estranha a esse grupo solidário aos árabes, têm nomes como Othon, Nicole,

Phillip, Marcel, Louis, González, Paneloux e seus ícones são outros: gatos (escarrados

pelo velho na frente da janela de Tarrou), é claro, o galo (francês) no bar de um

comerciante; ou a coruja e os cachorros comportados, associados por Tarrou ao homem

engomado e bem educado com sua família no hotel, enquanto a esposa submissa é

associada a uma ―rata preta‖ (32/24; em francês: souris noire, talvez para lembrar a

origem do pied-noir?). Entre tal gente grã fina, por isso mesmo, é proibido ―fala[r] de

ratos à mesa‖ – bem entendido: falar de árabes (―proíbo-o, daqui em diante, de

pronunciar essa palavra‖, diz o homem, ibid.). Forma-se uma rede de significantes

antagônicos, que parece remeter a um processo de recalque, bestialização e exclusão de

agentes históricos: o proletariado e os subversivos chacinados de Junho de 1848, parte

deles expatriados para a Argélia, para viver entre ―les arabes inhumains‖, como colons

que formariam em breve... parte da nova classe dominante no departamento argelino.24

24 Cf. nota 14. Para a arqueologia dessa semântica alegórica, em especial a bestialização nas Flores do Mal

de Baudelaire e nos Ratos Migradores de Heine, ver a pesquisa de: OEHLER, Dolf. O Velho Mundo desce aos infernos: auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris [1988]. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 31-45 e ss., 104, 350.

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Assim, compreenderemos melhor por que Rieux tropeça num rato morto no

―meio do patamar‖ do degrau, como um ser deslocado, fora da ordem ―normal‖ das

coisas: um real que ―não estava no lugar devido‖, claro, pois subiu e tomou um lugar ao

sol, surgindo no bairro saneado do centro. O sangue do rato morto, porém, ativa em sua

memória a doença de sua esposa (15-6/10) – com o que podemos compreender, em

Rieux e Tarrou mais explicitamente, talvez, a fenomenologia dessa ―identificação do

sujeito com o pequeno [objeto] a excrementício‖ de que fala Lacan25 nas fantasias do

obsessivo. Não seria essa a tonalidade do grupo em torno de Rieux? Sujeitos com um

―eu forte‖, caracterizados por um certo desprendimento do desejo, formações reativas,

identificação às demandas da mãe, oblatividade, moral do trabalho honesto, dedicação

integral ao outro, demanda de amor e de reconhecimento pela lei, enfim, um grupo de

amigos inibidos, mais ou menos reverentes às autoridades. É o que dá às ―formações

sanitárias‖ de Tarrou e Rieux o seu aspecto bem comportado e meramente paliativo,

renunciando a um confronto político efetivo com o domínio francês. Isso que os

detratores de Camus denominaram a ―moral de Cruz Vermelha‖ do livro26, que, no

entanto, deveríamos perguntar se não deveria ser posto na conta da verossimilhança

para com o processo social bloqueado, seja na colônia, seja na metrópole

(historicamente sitiadas). Em grande medida, então, por mais que se queira recusar,

como apontaram críticos como Barthes ou Sartre27, o conflito social desloca-se

inevitavelmente para a luta contra a Natureza (ou formas abstratas como o destino ou o

divino), com o qual Camus pode desdobrar confusamente, em termos de filosofia, um

certo ―evangelho‖ do absurdo e da revolta.

Porém, antes de dizer que batemos aí na limitação maior da obra – o que é

parcialmente verdade –, vale estudar por que esse limite pode nos levar também mais

longe do que o habitual. Pois essa posição conquistada não significa silenciar aquilo que,

25 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 8, A transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992,

pp. 206, 215-6; O Seminário, livro 10, A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, pp. 326-9.

26 Conforme Bertrand D‘Astorg (Esprit, nº10, 1947) e Francis Jeanson (Temps Modernes, maio de 1952), citados por FAUCON, Louis. La peste Ŕ extraits. Paris: Larousse, 1965, p. 28. R. BARTHES (op. cit.) também aponta a limitação do livro a uma Moral ou a uma ―ética da amizade‖, capturado por uma fábula naturalizante, que evita o confronto materialista entre os homens ou entre as classes; mais tarde (1955), preferirá o modelo antialegórico de uma ―literatura literal‖ (de Robbe-Grillet) (Idem, ―Littérature litterale‖ in:__. Essais critiques. Paris: Seuil, 1981).

27 BARTHES, op. cit. ; SARTRE, Jean-Paul. « Réponse a Albert Camus » in : __ . Situations IV: portraits. Paris : Gallimard, 1964, p. 118.

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nesse mesmo movimento, extrai o sujeito de sua individualidade empírica isolada,

idêntica a si mesma, fazendo-o representar o universal. Essa mediação de sujeito e

objeto, de singular e universal, é então, no livro, exercida por meio dos temas do amor e

da práxis.

Condição social (in)humana – mundo administrado

Isso tudo já contradiz, contudo, aquela clássica interpretação universalista do

romance como revelação do ―absurdo‖ e da ―revolta‖ de uma suposta ―condição

humana‖ em geral. É claro que qualquer alegoria estética, fundada no arbitrário do

signo, sempre sugerirá uma ideia geral estranha à representação de uma circunstância

particular. A determinação histórica se esfuma, passando para o trans-histórico, tal qual

sabemos de cor com o Brás Cubas de Machado. Camus recupera o tema do absurdo e da

peste mais tarde, no ensaio L‟homme révolté (1951), em termos de filosofia moral e

ontologia, que lembram as formulações do existencialismo:

―Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ela tem a consciência de ser coletiva, ela é a aventura de todos. O primeiro progresso de um espírito tomado pela estrangeiridade [saisi d‟étrangeté] é pois reconhecer que ele divide esta estrangeiridade com todos os homens e que a realidade humana, em sua totalidade, sofre desta distância em relação a si e ao mundo. O mal sofrido por um só homem se torna peste coletiva‖.28

Assim, para o Camus filósofo, a ―estrangeiridade‖, o ―absurdo‖, o ―mal‖ e a ―revolta‖ são

condições de uma estranha ―natureza humana‖29 resistente à história – os termos vagos

e genéricos de uma nova certeza cartesiana que serão origem, fundamento e mola para a

―resolução‖ de contradições em pensamento:

―na experiência cotidiana que é a nossa, a revolta joga o mesmo papel que o ‗cogito‘ na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ela é o lugar comum que funda sobre todos os homens o primeiro valor. Eu me revolto, logo nós somos‖.30

28 CAMUS, L‟homme révolté, op. cit., p. 35. 29 Idem, ibidem, p. 28. 30 Idem, ibidem, p. 36. Como apontava Marcuse: nesse momento de barbárie nazista, ―mais uma vez, o

pensamento encontra-se na situação cartesiana e pergunta por uma verdade certa e evidente que ainda possa tornar possível viver‖ (MARCUSE, Herbert. ―O existencialismo – Comentários a O Ser e o Nada (L‟Être et le Néant)‖ [1948] in:__. Cultura e sociedade, vol. 2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 51. Para uma boa análise das tensões entre Sartre e Camus, ver: SOARES, Caio C. ―Evangelhos da revolta. Camus, Sartre e a remitologização moderna‖. São Paulo: FFLCH-USP, 2010 (tese de doutorado).

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Mas por trás de tais teoremas filosóficos não haveria uma intuição histórica

perspicaz sobre os malogros revolucionários do século e sobre a forma do Estado

moderno (―o estado de sítio pouco a pouco se generaliza‖, diz ele de passagem31),

colocando corajosamente o dedo na ferida da esquerda socialista em plena Guerra Fria?

O ensaio identifica assim a lógica de uma ―revolta metafísica‖ na história, isto é, de um

niilismo e de uma metafísica do sujeito (de Sade a Nietzsche, de Saint-Just a Stalin), que

sem dúvida formavam parte do clima cultural do existencialismo francês, por um tempo

alinhado ao sistema soviético. Para ele, no entanto, o stalinismo nada mais era que a

realização da teoria de Marx como ―terror de Estado‖. O erro é clássico: a identificação

de teoria e práxis, ideologia e formações sociais complexas. Mas, para além disso, à

revolução ―niilista‖, ―assassina‖ e ―absoluta‖ propagada pelo terror stalinista, ele

contrapõe uma revolta ―concreta‖, ―limitada‖ e ―relativa‖ por definição: a luta

democrática por dignos limites de exploração do trabalho assalariado, não pela sua

utópica abolição, cujos modelos históricos seriam a ―Comuna‖ e o ―sindicalismo

revolucionário‖.32 Nada a admirar que o absurdo e a revolta se tornem perenes,

capturados no mau infinito do ciclo da acumulação, dando razão mais uma vez ao seu

Mythe de Sisyphe (1942).

Sem desprezar os exemplos históricos respeitáveis do filósofo, muitas vezes

parece-nos que A peste e toda a ação em torno do dr. Rieux é menos que isso, mas

também mais enquanto invenção literária e enquanto revelação de aporias reais da

filosofia engajada de seu tempo.

Não é por acaso então que para investigar as mediações, temos de perseguir o

significante dos ratos (e de sua letra R) sob o qual se oculta e produz o sujeito dividido,

interpelado pelo que Lacan denominou o ―discurso hegemônico na modernidade‖: o

discurso da ―nova tirania do saber‖ exercida pelo ―discurso da universidade‖ (implicado

no que alguns hoje denominam o capitalismo ―biopolítico‖ e na burocracia stalinista)

31 CAMUS, L‟homme révolté, op. cit., p. 129. 32 Idem, ibidem, p. 356 e 359.

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que atua sobre os sujeitos tratando-os como ―material humano‖.33 É com os

significantes desse discurso que podemos talvez clarificar várias relações em jogo na

narrativa:

Assim, a população de Oran é interpelada pelo estado de exceção e reduzida a

meros ―ratos‖, objetos fora da simbolização, i.e, ―objetos pequenos a‖ (S2->a): como

instrumentos de gozo, o material humano da ordem do trabalho, como diria Lacan, e no

limite, redutível à vida nua do homo sacer, como propõem Agamben/ Žižek. Sob o saber

científico (S2), com sua ideologia civilizatória, a do ―fardo do homem branco‖ etc.,

oculta-se o significante mestre (S1) da dominação colonial. Como produto desse laço

social temos então o sujeito administrado ($), aqui textualmente representado em uma

dupla vertente:

A) os ―concidadãos‖ supostamente servidos pelo Estado, ao nível da ideologia, no fundo

mantidos isolados e individualizados, privados de substância e geridos até a morte (a

―biopolítica‖ que se inverte francamente naquilo que Agamben chamou

―tanatopolítica‖34);

B) De outro lado, esse produto implica numa determinada subjetivação dessa posição

fantasmática de objeto; aqui, Rieux fulgura como o ―historiador dos corações dos nossos

concidadãos que a peste tornara dilacerados e exigentes‖ (125/93), e que tomando o

―partido da vítima‖ junta-se aos homens ―nas únicas certezas que eles têm em comum e

que são o amor, o sofrimento e o exílio‖ (273/208). Ou seja, o discurso gera

necessariamente uma certa revolta (a passagem de a - $) e uma certa demanda de novos

saberes (S2): criar formações sanitárias independentes do Estado, buscar novos soros

com o material precário disponível etc. Como espécie de resíduo, administrado por este

discurso dominante, há uma certa histericização do laço social e de seus sujeitos. Os

33 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1992, pp. 29-30, 76. Cf. sobre o tema: ŽIŽEK, Visão em paralaxe, op. cit., p. 393-4; Idem, Eles não sabem o que fazem, op. cit., p. 88-9; Idem, Menos que nada, op. cit., p. 619-23; Idem, Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 245-8, 304-5. Para uma boa introdução geral ao tema dos discursos: SKARE, Nils Göran. ―O dia-a-dia colonizado: Lacan, Lefebvre e os eventuais discursos cotidianos‖. Sinal de menos, nº10, 2010; QUINET, op.cit., Cap. 2.

34 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. (O poder soberano e a vida nua - I). B. Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

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ratos tomam o passo público, inicialmente nos ―bairros exteriores‖, nos subúrbios

árabes, depois aparecem nas ―fábricas e depósitos‖ (21/15), até chegarem aos bairros

comerciais do centro, nos bondes, repartições, escolas, cafés, hotéis e terraços usados

pela classe dominante. É como se os objetos fantasmáticos recalcados de Oran

retornassem como o ato falho da maquinaria de exclusão social. Vale citar a passagem:

―Dir-se-ia que a própria terra onde estavam plantadas nossas casas se purgava dos seus humores, pois deixava subir à superfície furúnculos que, até então, a minavam interiormente. Imaginem só o espanto da nossa pequena cidade, até então tão tranquila, transtornada em alguns dias, como um homem saudável cujo sangue espesso se pusesse de repente em revolução!‖ (22/16)

Jean Tarrou, o intelectual camusiano do livro, acha essa invasão deveras

―curiosa‖ e ―interessante‖, enquanto o velho espanhol pobre e asmático se alegra com

ela. A cidade toma medidas de emergência contra os ratos (―desratização científica‖) e

os conduz até o forno de incineração de lixo. O paralelo aqui é anunciado: mais tarde

será a população inteira de Oran que será convertida numa massa de ―ratos‖

descartáveis, lembrando a figura agambeana do homo sacer. Mais diretamente Cottard

é associado aos ratos, no momento da tentativa de suicídio. Como exatamente? Através

do ―gemido engraçado, até mesmo sinistro‖ que emite, enquanto poucas linhas adiante

o médico parecia ouvir ―pequenos guinchos de ratos‖ no intervalo de sua respiração

(24/18). Também Joseph Grand ―nada era além do pequeno funcionário municipal que

aparentava ser‖, e tem aspectos físicos e morais que o associam imaginariamente ao

animal (bigode amarelo, poucos dentes no maxilar superior, alto e curvado, ombros

estreitos e membros magros), com sua ―arte de resvalar pelas paredes e deslizar por

entre as portas‖... ―todos os sinais da insignificância‖ (47/35) do homem simples, mero

objeto de troca sem direitos reconhecidos. Camus certamente associa Joseph Grand à

série kafkiana de Josefs, e em especial, ao seu último conto ―Josefina, a cantora‖. Como

ela, Grand também quer ser artista. Por fim, o dr. Rieux escuta em uma oficina ao lado

de sua casa um ―silvo breve e repetido de uma serra mecânica‖, que retorna

periodicamente e se converte em ―um silvo do flagelo‖, um ―sibilar surdo‖ e ― bizarro‖ ou

um ―silvo doce e regular que o acompanhara durante toda a epidemia‖ (44, 73, 170/33,

130, 197) no cumprimento de seu ofício. Tal silvo pode ser associado aos ―guinchos de

agonia‖ dos ratos na invasão da cidade (22/15) e aos gemidos dos doentes nas casas,

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enquanto a serra envia-nos aos seus dentes, ao ato de corte e ruptura, ao trabalho

proletário, à irrupção contra a ordem.

Revolta – desengajamento

Por essas e outras, digamos então que o romance é melhor que a filosofia moral

de Camus35, lançando incertezas em seu trabalho conceitual e criando um contexto

narrativo mais opaco e preciso, em suma, mais sujeito à interpretação, apesar da

limpidez da escrita. A começar pelo fato evidente de que, no romance, esse engajamento

não está dado de antemão e não se torna imediatamente transparente. Só após o fim da

epidemia, a crônica de Rieux pode recontar o processo aparente, perguntando pelo

sentido, sem poder respondê-lo – e aqui entra o papel crítico do leitor, que precisa ler

nas entrelinhas. Se o romance ecoa a realidade do imperialismo e do apocalipse nazi,

por outro toma deles a necessidade urgente da resistência. Mas, ao contrário da

resistência histórica, não há respostas claras nesse sentido, e sim um texto a ser

interpretado. Lá onde ele parece claro, como nas recaídas na retórica humanista, por

exemplo, ele ofusca e perde voltagem. Ganha-a quando o social é modelado pela

violência anormal da natureza (social); dessa maneira, o romance reflete e respeita a

objetividade natural-social do poder e de suas calamidades, evitando o decisionismo

existencialista. Sem dúvida, a sobriedade do estilo busca afastar toda desmedida trágica,

todo pathos heroico e quase romântico de algumas obras engajadas de um Sartre.

Colocando a questão da moral e do sujeito ético no centro, abre questões sobre o sujeito

do desejo e da política.

É isso, e não uma opção estilística do autor, que engendra a abstração e a

tradução alegórica como métodos da composição. Já antes da Peste, Oran é uma

sociedade burguesa qualquer, semelhante a ―tantas outras cidades comerciais em outras

latitudes‖, um ―lugar neutro‖, ―banal‖, ―inteiramente moderno‖. O princípio de

abstração é ainda a base da autoconservação dos habitantes, traduzível numa obstinação

35 Como Adorno criticava as peças de Sartre: ―se estas servem mal como modelos de seu próprio

existencialismo é porque contêm em si, em vista da verdade, todo o mundo administrado que ele não quer saber; através delas aprende-se que não somos livres. Seu teatro de ideias sabota a razão para a qual ele inventou as categorias‖. (ADORNO, Theodor W. ―Engagement‖ in:__. Notes sur la littérature. Paris: Flammarion, 1984, p. 289).

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pela sobrevivência e a adaptação. Como tal, ela também é incorporada pelo dr. Rieux,

que, representando autoridades externas e sem recursos médicos, deixa de cuidar dos

doentes para simplesmente condená-los à morte tão logo é constatada a doença nas

casas. Nesse sentido, Rieux torna-se um representante do poder abstrato, mas que o

combate por dentro, não por fora. E ―para lutar contra a abstração, é preciso

assemelhar-se um pouco a ela‖ (87/66). O giro dialético, assim, é que ao afastar-se do

sensível, ele se afasta criticamente da função que é obrigado a exercer, o que o traz para

o chão do convívio de classe, solidarizando-o com os homens, com uma ideia concreta

do homem, o pobre dos subúrbios, para além do heroísmo e da santidade (230/177). A

abstração incorporada é afastamento do desejo imediato, da felicidade representada

pela sua esposa. Uma alternativa que levaria simplesmente à fuga da cidade. É o caso

inicial de Rambert, que buscava voltar para a mulher na França... mas com muito custo,

e aí vemos a força da continuidade da narrativa de Camus, ele também se converte à

luta, num processo de superação coletiva. A resolução teórica de tarefas práticas mais

urgentes é simbolizada por Castel, que em vez de esperar o soro vindo da Europa, estuda

os livros de medicina e produz um soro local, com o próprio bacilo da peste em Oran, da

mesma forma que Tarrou ―deixa de lado‖ as autoridades instituídas para organizar suas

formações sanitárias. Um saber racional imerge no concreto e cria o novo. Isso sugere

uma crítica a toda teoria alienígena imposta abstratamente e sem mediação nas práticas

locais. Aqui, a ética se afirma como o coração de toda política engajada.

Assim, o princípio de abstração, levado ao absoluto como moldura e ponto de

vista da narrativa, também se relativiza e se nega. Crônica testemunhal, o relato se

avizinha da busca de significações concretas do ensaio traçado por um médico social.

Assim, a abstração e a monotonia indicadas são também um momento entre outros, e

como tal só uma aparência, pois a situação vai se complicando e se agravando em escala,

entrecortada por capítulos de estudo de tipos humanos como Rambert, Tarrou, Grand,

Paneloux e Cottard. Como se vê, as personagens são e não são as ―simples sombras‖

descritas por Lukács.36 Após o romance, aliás, Camus transferiu o tema para uma peça

chamada L‟état de siège (O estado de sítio, 1948), tomando como base histórica a

Espanha do início do século, que culminara na ditadura de Franco. Aqui, no entanto, ele

36 LUKÁCS, Georg. La signification présente du réalisme critique [1955]. (Trad. Maurice de Gandillac).

Paris: Gallimard, 1960, p. 113.

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imprime um sentido alegórico didático muito mais enfático e também muito mais

pobre: o texto se torna mais unívoco e com traços de populismo, heroísmo romântico e

ontologia – no limite, a destruição da Peste está inscrita na ―velha regra da natureza‖37 –

isso sim, completamente inverossímil e absurdo –, justamente o que tinha sido mais ou

menos evitado pela ação dos camaradas em A peste, embora a peça seja mais

movimentada e possa despertar mais interesse para uma certa faixa de público.

**

O engajamento coletivo do grupo surge como ruptura de máquina técnico-

burocrática, como desengajamento diante do funcionamento ―normal‖ das coisas. Esta

explosão das coordenadas simbólicas, a passagem ao Real, é figurada explicitamente

também, de maneira magistral, pela cena no teatro em Oran, quando o ator que

representava Orfeu no inferno avança para ―a boca de cena de uma forma grotesca, com

os braços e pernas afastados no seu traje antigo‖, indo portanto em direção à plateia, em

seguida recuando e abatendo-se contra o ―cenário... anacrônico‖, fazendo simplesmente

evacuar a sala e suspender o espetáculo. A ―imagem do que era a vida de então‖: ―a peste

no palco, sob o aspecto de um histrião desarticulado e, na sala, todo um luxo tornado

inútil sob a forma de leques esquecidos e de rendas agarradas ao vermelho das

poltronas‖ (183/139). Por aí se vê como as objeções de um Said não têm cabimento, pois

se destroem por dentro toda a estrutura de representação, toda estrutura cultural do

Império.

O happy end da libertação não elimina as evidências da permanência do

negativo: a ―ausência de perspectiva‖, como reprovou o velho Lukács38 – já que o

submetido não deixa de ser essa espécie de Rato/Orfeu histriônico preso ao sistema de

administração colonial –, com o que a chave negativa da alegoria determina uma

condição inumana socialmente produzida e em transformação.

A obra termina lentamente, como que num longo fading. Por um lado, após a

morte de Tarrou, da esposa de Rieux e de Cottard, temos um belo desfecho negativo

como este:

37 CAMUS, Albert. ―Estado de sítio‖ in:__. Estado de sítio e O estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural,

1979, p. 135. ―É na mediocridade que eu os amo‖ – diz à Peste o herói Diogo, a respeito do povo de Cádiz (Ibid., p. 138).

38 LUKÁCS, ibidem, p. 113.

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―Entre esses amontoados de mortos, as sirenes das ambulâncias, os avisos do que se convencionou chamar destino, o tropel impaciente do medo e a revolta terrível de seu coração, não tinha parado de correr um grande rumor que punha de sobreaviso esses seres aterrados, dizendo-lhes que era preciso encontrarem sua verdadeira pátria. Para todos eles, a verdadeira pátria encontrava-se para além dos muros desta cidade sufocada. Ela estava nas matas perfumadas das colinas, no mar, nos países livres e no peso do amor. E era para ela, era para a felicidade, que eles queriam voltar, afastando-se do resto com repulsa.

Quanto ao sentido que podiam ter esse exílio e esse desejo de reunião, Rieux nada sabia.‖ (...) [mas] compreendia-o melhor nas primeiras ruas dos subúrbios, quase desertas.‖ (270/207, grifos meus.)

É nos subúrbios árabes, nas margens recalcadas da cidade oficial, que está então

a resposta. Está além dos muros desta cidade sufocada. No parágrafo final da obra, a

peste que arrasa tudo não arrasa a sociedade da mercadoria, que persiste isolando os

homens, produzindo-os como ―ratos‖ antagonistas da ―cidade feliz‖. Um desfecho de

mestre, que não poderia ser mais irônico:

―... o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar‖. (...) ―Ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada‖. (...) ―E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz‖ (279/213).

(2012-2015).

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O QUE É UM COLABORADOR*?

Jean-Paul Sartre

O príncipe Olaf, que acaba de voltar à Noruega, estima que os colaboradores

representam 2% da população total. Não há dúvidas de que a porcentagem na França foi

mais ou menos análoga. Uma pesquisa entre os diferentes países ocupados permitiu

estabelecer uma espécie de porcentagem média dos colaboradores entre as coletividades

contemporâneas. Porque a colaboração, como o suicídio, como o crime, é um fenômeno

normal. Simplesmente, em tempos de paz ou nas guerras que não terminam em um

desastre, tais elementos da coletividade permanecem em estado latente. Como os

fatores determinantes estão ausentes, o ―colaborador‖ não se manifesta nem aos outros,

nem a si mesmo, ocupa-se dos seus negócios, talvez seja patriota, porque ele ignora a

natureza que traz em si mesmo e que se revelará um dia em circunstâncias favoráveis.

Durante a guerra atual, que permitiu isolar a colaboração, como se faz a uma doença,

havia um jogo apreciado entre os ingleses: tentava-se determinar, passando em revista

as personalidades de Londres, quais as que teriam colaborado se a Inglaterra tivesse

sido invadida. Esse jogo não era tão tolo: era o mesmo que dizer que a colaboração é

uma vocação. E, de fato, não era surpresa entre nós: bastava conhecer Déat1 ou

* Sartre utiliza a palavra collaborateur e não collaborationniste, mesmo que possa ter o mesmo sentido

que adquiriram posteriormente ambos os vocábulos sobre a história da ocupação nazista na França. O colaboracionista tem um sentido mais próximo à designação daqueles que colaboraram voluntária ou involuntariamente visando àvitória da Alemanha, já entre os historiadores, a colaboração no sentido de collaborateur designa um tipo de acomodação servil ou ideológica à força ocupante alemã como um fato consumado contra o qual não se podia lutar.

1 Marcel Déat foi um militante socialista que posteriormente adere ao que ficou conhecido como o neo-socialismo (posição contrária ao reformismo, conquistando direitos por manifestações e ações, assim como à ideia de revolução, preferindo a colaboração construtiva com o Estado), aproximando-se da ideologia ocupante e do modelo sindical fascista, participando como colaboracionista e membro do partido Rassemblement National Populaire e que havia assumido a posição do ultrapacifismo.

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Bonnard2 antes da guerra para achar natural que eles se aproximassem dos alemães

vitoriosos. Portanto, se é verdadeiro que não se colabora por acaso, mas sob a ação de

certas leis sociais e psicológicas, convém definir aquilo que se denomina um

colaborador.

Seria um erro confundir colaborador e fascista, se bem que todo colaborador deve

aceitar, por princípio, a ideologia dos nazis. De fato, certos fascistas notórios se

abstiveram de pactuar com o inimigo porque consideravam que as condições não eram

favoráveis à aparição de um fascismo em uma França enfraquecida e ocupada, antigos

cagoulards3 passaram à resistência. Diversamente, encontrava-se certo número de

radicais, de socialistas, de pacifistas, que consideravam a ocupação um mal menor e que

fizeram boas relações com os alemães.

Do mesmo modo, devemos evitar equiparar o colaborador ao burguês

conservador. Certamente a burguesia estava muito hesitante após Munique. Temia uma

guerra em que – Thierry Maulnier4 o disse claramente – se consagrasse a vitória do

proletariado. É o que explica a má vontade de certos oficiais da reserva. Mas se a

burguesia fez corpo mole na guerra, não se deduz disso que ela pretendesse se entregar à

Alemanha. Todos os operários, quase todos os camponeses resistiram: a maior parte dos

colaboradores, é um fato, foram recrutados entre os burgueses. Mas não se pode

concluir que a burguesia enquanto classe era favorável à colaboração. Antes de qualquer

coisa, ela forneceu numerosos elementos à resistência: a quase totalidade dos

intelectuais, uma parte dos industriais e dos comerciantes militaram contra a força

ocupante. Se quiséssemos definir um ponto de vista estritamente burguês, valeria mais

2 Abel Bonnard foi um poeta escritor e ensaísta amigo de Paul Valéry, Marcel Proust, Collete e Paul

Morand, membro da academia francesa, antiparlamentarista, próximo a Georges Valois e antigo seguidor de Maurras, deixa o nacionalismo anti-germânico para aderir à colaboração como ministro de Vichy.

3 Cagoule, literalmente cúculo, um tipo de capuz medieval, era o nome que designava os grupos da Action Française, uma aliança de extrema direita que visava derrubar a aliança de esquerda que governava a Terceira República.

4 Pseudônimo de Jacques Talagrand, escritor e crítico de direita que fez oposição à terceira república e antes da ocupação defendeu o fascismo por via de uma forma mais literária mas se aproximando da Action Française, que mantinha uma linha de extrema direita, mas afastada da colaboração.

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dizer que a burguesia conservadora era em seu conjunto pétanista5 e attentista.6 Foi

dito que os interesses do capitalismo são internacionais e que a burguesia francesa teria

lucrado com uma vitória da Alemanha. Mas esse é um princípio abstrato: tratava-se, no

caso, de uma subordinação pura e simples da economia francesa à economia alemã. Os

empresários industriais não ignoravam que a finalidade da Alemanha era destruir a

França como potência industrial e, consequentemente, destruir o capitalismo francês. E,

como a burguesia francesa, que sempre confundiu a autonomia nacional com a sua

própria soberania de classe dirigente, não teria compreendido que a colaboração, ao

fazer da França um país satélite da Alemanha, contribuía para arruinar a soberania

burguesa? Oriundo geralmente da burguesia, o colaborador se volta imediatamente

contra ela. Para Déat, para Luchaire7, o gaullista8 era o protótipo do burguês que ―não

compreendeu‖ porque ele tem sua fortuna.

Na verdade, a colaboração é um fato de desintegração e ela foi, em todos os casos,

uma decisão individual, não uma posição de classe. Ela representa originalmente uma

fixação em formas coletivas estrangeiras de elementos mal assimilados pela comunidade

indígena. É nisso que ela se aproxima da criminalidade e do suicídio, que são também

fenômenos de desassimilação. Em toda parte em que a vida social permaneceu intensa,

entre os lares religiosos ou políticos, esses fenômenos não encontraram lugar. Logo que

fatores diversos interferiram e provocaram um tipo de hesitação social, eles apareceram.

Assim podemos tentar uma classificação em traços grosseiros do pessoal da

colaboração: ela se recruta entre os elementos marginais dos grandes partidos políticos:

5 Os seguidores do Marechal Philippe Pétain, herói francês da primeira guerra mundial ao conseguir

conter os motins que se iniciam nas tropas sob influência da revolução de 1917 que posteriormente seguirá carreira acadêmica e será recebido na academia francesa de letras por Charles Maurras e Paul Valéry, posteriormente se torna embaixador francês na Espanha pós-Franco e assina o armistício com a Alemanha. Foi empossado como chefe do estado autoritário de Vichy, experimentando uma revolução nacional direcionada contra seus inimigos, como os socialistas, os marxistas, a laicidade e a ideia de igualdade.

6 Attentisme foi o nome dado à atitude de espera pela definição política na situação que se instaura após a ocupação da França pela Alemanha.

7 Jean Luchaire foi um jornalista e dono de jornais que evolui do pacifismo expresso no jornal Notre Temps à colaboração com o jornal Les Nouveaux Temps, tornando-se embaixador das relações entre França e Alemanha logo depois da ocupação, sendo empresário no jornalismo com posições pró-colaboração.

8 Seguidores do general De Gaulle, que, apesar de conservador e discípulo de Pétain, manteve a linha de uma resistência à dominação alemã até a libertação.

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Déat, Marquet9, que não puderam ser assimilados ao partido socialista S.F.I.O.10;

Doriot11, excluído do partido comunista; entre os intelectuais que têm abjeção pela

burguesia, sua classe de origem, sem ter a coragem ou a simples possibilidade de se

integrar ao proletariado: Drieu de la Rochelle12, que foi obcecado a vida toda pelo

fascismo italiano e o comunismo russo, Ramon Fernandez que foi por um tempo

simpatizante do comunismo e que depois abandonou o partido comunista pelo Parti

Populaire Français, P.P.F., porque, como dizia, ―eu amo os trens que partem‖ (essa

oscilação perpétua do fascismo ao comunismo, do comunismo ao fascismo é típica nas

zonas marginais da burguesia). Entre os fracassados do jornalismo, das artes, do ensino:

é o caso de Laubreaux13, que foi crítico do Je Suis Partout.14 Vindo do Nouméa para a

conquista de Paris, jamais assimilado, aturdido desde sua chegada à França por um

processo de plágio, ele balançou por muito tempo entre a direita e a esquerda, foi

secretário infiel de Henri Béraud15, depois redator do Dépêche de Toulouse, grande

órgão radical-socialista do Sudoeste, antes de encalhar nas fileiras dos neofascistas

franceses.

Mas numa comunidade não há somente casos individuais de desintegração:

grupos inteiros podem ser destacados da coletividade por forças que se exercem sobre

eles de fora: é o ultramontanismo, por exemplo, que explica a atitude colaborativa de

certos membros do alto clero. Já existia entre eles, mesmo antes que entrassem em

contato com uma potência ocupante, um tipo de atração em direção a Roma e que agiu

como força desequilibradora. O baixo clero, ao contrário, solidamente enraizado na sua

terra, galicano, muito distanciado de Roma, mostrou-se em seu conjunto ferozmente

9 Outra liderança socialista que se tornará ministro de estado e de interior dos governos colaboracionistas,

em geral voltado a um modelo autoritário, especificamente focado nas administrações e obras públicas e que aderiu ao ―neo-socialismo‖ que fundamentou o programa dos colaboracionistas.

10 A Seção Francesa da Internacional Operária. 11 Curiosamente, Doriot, antiga liderança das juventudes comunistas foi expulso quando tentou construir

alianças entre os comunistas e socialistas contra o fascismo e é expulso por esse motivo. Depois, ao fundar o Parti Populaire Français, inclina-se à direta criando a Légion des volontaires français contre le bolchevisme que combaterá a URSS no front russo incorporada ao exército alemão e se torna importante liderança do colaboracionismo enquanto o PPF se torna o principal partido de inspiração fascista na França.

12Pierre Drieu la Rochelle, escritor francês colaboracionista e veterano da primeira guerra. 13 Alain Laubreaux jornalista colaboracionista francês. 14 Je suis partout: le grand hebdomadaire politique et littéraire foi um jornal de política e crítica literária

de extrema direita e antissemita ligado inicialmente a Maurras, mas posteriormente se aproximando à colaboração com o nazismo.

15 Jornalista e romancista colaboracionista.

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resistente. Acima de tudo, a Revolução Francesa, na falta de desejo e poder de levar até

o fim os seus princípios, deixou subsistir na margem da comunidade democrática um

resíduo que se perpetuou até nossos dias. Seria exagerado defender, como tem sido

feito, que a França foi dividida em dois depois de 1789. Mas, de fato, enquanto a maioria

dos burgueses se acomodava a uma democracia capitalista que consagrou o regime da

livre empresa, uma pequena parte da classe burguesa permaneceu à margem da vida

nacional francesa porque ela recusou se adaptar à constituição republicana. Para os

―emigrados do interior‖, realistas da Action française16, fascistas do Je Suis Partout, o

desmoronamento de 1940 foi, antes de tudo, o fim da República. Sem ligação real com a

França contemporânea, com nossas grandes tradições políticas, com um século e meio

de nossa história e de nossa cultura, não estavam protegidos de modo algum contra a

força atrativa de uma comunidade estrangeira.

Assim, podemos explicar esse curioso paradoxo: a maioria dos colaboradores

foram recrutados entre aqueles que chamávamos os ―anarquistas de direita‖. Eles não

aceitaram nenhuma lei da República, se declaram livres para recusar o imposto ou a

guerra, e recorriam à violência contra seus adversários a despeito de seus direitos

reconhecidos por nossa Constituição. No entanto, é sobre a concepção de uma ordem

rigorosa que eles apoiavam sua indisciplina e sua violência. E quando ofereceram seus

serviços a uma potência estrangeira, acharam muito natural que ela estivesse submetida

a um regime ditatorial. É que, de fato, esses elementos, cuja anarquia marca somente a

desintegração profunda, precisamente porque eles mais sofreram essa desintegração do

que a desejavam, não cessaram de desejar, em contrapartida, uma integração radical.

Nunca assumiram a liberdade anárquica da qual desfrutaram, jamais a levaram em

conta, pois eles não tinham a coragem de derivar as consequências de sua atitude

rigorosamente individualista: eles perseguiam na margem da sociedade concreta o

sonho de uma sociedade autoritária à qual pudessem se integrar e se fundir. Assim eles

preferiram a ordem, que a potência alemã lhes parecia representar, à realidade nacional

da qual eles estavam excluídos.

16 Movimento de extrema-direita francês iniciado durante o caso Dreyfuss no século XIX como resposta à

intervenção da esquerda francesa no debate. Sob a influência de Maurras, a Action française conjugou uma linha monarquista, contra-revolucionária, contra o legado da revolução francesa, anti-democrática, e que dava suporte ao integralismo entre o Estado e a Igreja.

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Portanto, nenhuma classe, enquanto tal, tem responsabilidade pela colaboração.

Ela não manifesta sequer, como se acreditava, certa falência do ideal democrático: ela

mede somente os resultados, no seio das coletividades contemporâneas, do jogo normal

das forças sociais de desintegração. O resíduo social, praticamente negligenciável em

tempos de paz, torna-se muito importante nos casos de uma derrota seguida de

ocupação. Seria injusto chamar a burguesia de uma ―classe‖ de colaboração. Mas nós

podemos e devemos julgá-la enquanto classe pelo fato de a colaboração ter sido

recrutada quase exclusivamente em seu seio: isso basta para mostrar que ela perdeu sua

ideologia, sua potência, sua coesão interna.

Não basta ter determinado a zona social da colaboração. Há uma psicologia do

colaborador, da qual podemos tirar proveitosos ensinamentos. Certamente, pode-se

decidir a priori que as traições são sempre motivadas pelo interesse e a ambição. Mas

se, talvez, esta psicologia, em termos gerais, torna mais fáceis as classificações e as

condenações, ela não corresponde totalmente à realidade. Houve colaboradores

desinteressados, que desejaram em silêncio a vitória alemã sem tirar proveito de suas

simpatias. A maior parte daqueles que escreveram na imprensa ou participaram do

governo eram os ambiciosos sem escrúpulos, isso é certo. Mas alguns ocupavam, antes

da guerra, cargos demasiado importantes para dispensá-los de uma traição. E que

estranha ambição: se verdadeiramente essa paixão é, no fundo, a busca de um poder

absoluto sobre os homens, havia uma contradição manifesta na ambição do colaborador

que, posto à cabeça do pseudogoverno francês, só podia ser um agente de transmissão.

Não era seu prestígio pessoal, mas a força dos exércitos ocupantes que lhe conferia sua

autoridade. Sustentado pelos exércitos estrangeiros, ele só podia ser um agente do

estrangeiro. Aparentemente primeiros na França, se o nazismo houvesse triunfado, eles

seriam apenas os milésimos na Europa. A verdadeira ambição, se os princípios morais

não lhes tivessem sido suficientes, poderia os conduzir a resistir: o chefe de um pequeno

grupo de maquis17 tinha mais iniciativa, mais prestígio e autoridade real do que Laval18

jamais teve. Se queremos compreender a atitude dos colaboradores, é necessário então

17 Grupo de resistentes durante a segunda guerra mundial com atividades de sabotagem e guerrilha. 18 Pierre Laval, um antigo dirigente socialista da S.F.I.O. e figura importante da terceira república que se

torna posteriormente colaborador de Vichy e braço direito de Pétain.

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considerar sem paixão e os descrever com objetividade de acordo com suas palavras e

atos.

É evidente que todos eles acreditaram de início na vitória alemã. Não se concebe

um jornalista, um escritor, um industrial ou um político que aceitasse lucrar quatro

anos somente através das vantagens da ocupação, sabendo ou pressentindo que sua

aventura temerária terminasse em sua prisão ou em sua morte. Mas esse erro intelectual

que permitiu compreender sua atitude não saberia justificá-la: eu conheci muitas

pessoas que, em 1940, acreditavam que a Inglaterra perdera. Os fracos se abandonaram

ao desespero, outros se trancaram numa torre de marfim, outros, enfim, começaram a

resistência por fidelidade a seus princípios, pensando que a Alemanha podia ter ganho a

guerra, mas que restava em seu poder fazê-la perder a paz. Se os colaboradores foram da

conclusão da vitória alemã à necessidade de se submeter à autoridade do Reich é porque

havia entre eles uma decisão profunda e original que constituía o fundo de sua

personalidade: a de se curvar ante o fato consumado, fosse qual fosse. Essa tendência

primeira que eles decoravam com o nome de ―realismo‖ tinha suas raízes profundas na

ideologia de nosso tempo. O colaborador está infectado com essa doença intelectual de

nosso tempo chamada de historicismo. A história nos ensina, com efeito, que um grande

acontecimento coletivo levanta, a partir de sua aparição, ódios e resistências que,

mesmo sendo às vezes muito belos, serão mais tarde considerados como ineficazes. Os

que se dedicam a uma causa perdida, pensavam os colaboradores, podem bem parecer

belas almas – não são menos perdidas e atrasadas no seu século. Eles morrem duas

vezes porque são enterrados com os princípios em nome dos quais viveram. Os

promotores do evento histórico, ao contrário, quer se trate de César, de Napoleão ou

Ford, talvez sejam responsabilizados por seu tempo em nome de uma certa ética. Mas

cinquenta anos, cem anos mais tarde só se recordará sua eficácia e serão julgados em

nome dos princípios que eles mesmos forjaram. Tenho revelado cem vezes entre os

homens mais honestos professores de história, nos livros mais objetivos, essa tendência

a interiorizar os fatos ocorridos simplesmente porque eles ocorreram. Eles confundem a

necessidade de se submeter ao fato, enquanto pesquisadores, com certa inclinação a

endossá-lo moralmente, enquanto agentes morais. Os colaboradores assumiram para si

essa filosofia da história. Para eles, a dominação do fato é acompanhada por uma vaga

crença no progresso, mas em um progresso decapitado: a noção clássica de progresso,

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com efeito, supõe uma ascensão que se aproxima indefinidamente de um termo ideal.

Os colaboradores se consideram muito positivos para crerem sem provas nesse termo

ideal e, em consequência, no sentido da história. Mas, se eles rejeitam essas

interpretações metafísicas em nome da ciência da história, eles não abandonam, porém,

uma ideia de progresso: para eles, este se confunde com a marcha da história. Não

sabemos para onde vamos, mas, se há mudança, é porque há melhoria. O mais recente

fenômeno histórico é o melhor simplesmente porque ele é o mais recente: nós

pressentimos que ele contribui para dar forma à figura humana, esse esboço ao qual

cada instante que passa traz um retoque, somos tomados por um tipo de pitiatismo, e ao

qual se abandona passivamente às correntes que se esboçam, flutuamos em uma direção

desconhecida, conhecemos as delícias de não pensar, de não prever e de aceitar as

obscuras transformações que devem fazer, de nós, homens novos e imprevisíveis. Aqui,

o realismo dissimula o medo de se fazer o ofício do homem – esse ofício teimoso e

limitado que consiste em dizer sim ou não segundo princípios, em ―empreender sem

esperar, a perseverar sem sucesso‖ – e um apetite místico do mistério, uma docilidade

em relação a um futuro que se renuncia forjar e sobre o qual nos limitamos a

conjecturar. O hegelianismo mal compreendido tem, certamente, algo a dizer. Aceita-se

a violência porque todas as grandes mudanças foram baseadas em violência e se confere

à força uma obscura virtude moral. Assim, para apreciar seus atos, o colaborador se

posiciona no futuro mais distante: essa aproximação com a Alemanha, que ele jogava

contra a Inglaterra, nós a consideraríamos uma ruptura do engajamento e uma falta

injustificável de palavra. O colaborador, ainda que vivesse em nosso século, a jugava do

ponto de vista dos séculos futuros, com a legitimidade do historiador que julga a política

de Frederico II. Ele já havia encontrado até mesmo um nome para essa conduta:

tratava-se, simplesmente, de uma ―inversão das alianças‖19 que tinha seus antecedentes

e exemplos numerosos na história.

Acredito que essa maneira de julgar o evento à luz do futuro foi para todos os franceses

uma das tentações da derrota: ela representava uma forma sutil de evasão. Saltando

19 No original renversement d‟alliances referindo-se ao termo com que os historiadores designam a

reviravolta diplomática implicada no Tratado de Versalhes de 1756 nas relações entre Áustria, Inglaterra, França e Prússia, em particular, sobre o caso da inversão das relações entre a França de Luís XV e a Prússia de Frederico o Grande que deixam de ser amistosas para serem a partir de então hostis.

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alguns séculos adiante e se voltando ao presente para contemplá-lo de longe, recolocado

na história, ele se transformaria em passado e se mascarava seu caráter insustentável.

Desejava-se esquecer uma esmagadora derrota olhando apenas para suas consequências

históricas. Esquecia-se, porém, que a história, ainda que compreendida

retrospectivamente e em grandes blocos, é vivida e feita no dia a dia. Essa escolha pela

atitude historicista e essa ―passadização‖ contínua do presente é típica da colaboração.

Os menos culpáveis são os idealistas desiludidos que, deixando de propor em vão seu

ideal, acreditaram de repente que era necessário impô-lo. Se, por exemplo, o pacifismo

francês forneceu tantos recrutas à colaboração era porque os pacifistas, incapazes de

travar a guerra, tinham decidido ver no exército alemão a força que realizaria a paz. Seu

método havia sido até então a propaganda e a educação. Ele se mostrou ineficaz. Então,

persuadiram-se de que mudavam somente de meios: eles se colocaram no futuro para

julgar a atualidade e viram a vitória nazista trazer ao mundo uma paz alemã comparável

à famosa paz romana. O conflito com a Rússia e depois com a América não lhes abriu os

olhos: eles viram apenas males necessários. Assim nasceu um dos paradoxos mais

curiosos desse tempo: a aliança dos pacifistas mais ardentes com os soldados de uma

sociedade guerreira.

Por sua docilidade aos fatos – ou, antes, a este fato único: a derrota francesa – o

colaborador ―realista‖ criou uma moral invertida: no lugar de julgar o fato à luz do

direito, ele funda o direito sobre o fato; sua metafísica implícita identifica o ser e o

dever-ser. Tudo aquilo que é é bom, e tudo aquilo que é bom é porque é. Sob esses

princípios, ele construiu prontamente uma ética da virilidade. Tomando emprestado de

Descartes sua máxima: ―procurar antes vencer a mim próprio que vencer o mundo‖20,

ele pensa que a submissão aos fatos é uma escola de coragem e de dureza viril. Para ele,

tudo aquilo que não parte de seu ponto de vista em uma apreciação objetiva da situação

é apenas um sonho de mulher e um devaneio vazio. Ele explica a resistência não pela

afirmação de um valor, mas por uma vinculação anacrônica a costumes e a uma

ideologia que estão mortos. Ele esconde, apesar disso, essa contradição profunda: a de

20 Citação de memória de Sartre da terceira parte do Discurso sobre o Método de René Descartes ―Ma

troisième maxime était de tâcher toujours plutôt à me vaincre que la fortune, et à changer mes désirs que l'ordre du monde‖. Na tradução feita por Jacó Guinsburg e Bento Prado Jr. na terceira parte do discurso do método ―Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo‖.

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que ele próprio escolheu os fatos de onde quer partir. A potência militar da Rússia, a

potência industrial da América, a resistência teimosa da Inglaterra sob a ―blitz‖, a

revolta dos europeus subjugados, a aspiração dos homens à dignidade e à liberdade –

todos esses eram também fatos. Mas ele escolheu, em nome do realismo, não os levar

em conta. De onde deriva a falha interna de seu sistema: esse homem que fala sem

cessar da ―dura lição dos fatos‖ reteve apenas os fatos que favoreciam sua doutrina. Ele

está sempre de má fé, na pressa de descartar aquilo que o embaraça: é assim que Déat,

quinze dias depois da entrada dos alemães na U.R.S.S., não tinha pudores em escrever

―Agora que o colosso russo desmoronou...‖21.

Dando como certa a vitória alemã, o colaborador procura substituir as relações

jurídicas de reciprocidade e de igualdade entre as nações e entre os homens por um tipo

de ligação feudal de suserano e vassalo. Chateaubriant22 se considera como o servo mais

fiel23 de Hitler. Por falta de ser integrado na sociedade francesa e de se submeter às leis

universais de uma comunidade, o colaborador procura se integrar em um sistema novo

em que as relações caem na singularidade e se estabelecem de pessoa a pessoa. Seu

realismo o ajuda: o culto do fato particular e o desprezo do direito, que é universalidade,

o conduzem a se submeter às realidades rigorosamente individuais – um homem, um

partido, uma nação estrangeira. Desde então sua moral, variável e contraditória, será a

pura obediência aos caprichos do suserano. Dèat se contradiz cem vezes, segundo as

ordens que lhe chegam de Abetz. Ele não sofre com isso: a coerência de sua atitude

consiste justamente em mudar o ponto de vista tantas vezes quanto o mestre queira.

Mas essa submissão feudal não se dá sem uma contradição profunda. Se Maquiavel era

o mestre teórico dos ditadores, Talleyrand era o modelo do colaborador. Esse ambicioso

se contenta com um papel subordinado: mas é porque ele pensa estar jogando um jogo.

Sua fidelidade à Alemanha é sujeita à caução. Quantos políticos favoráveis a Vichy ou

parisienses não repetiram durante a ocupação: ―Os alemães são crianças, eles têm um

21 Em La Leçon de Stalingrad (in: France – U.R.S.S., no. 115, April 1955), Sartre cita esta passagem de

modo ligeiramente diferente como ―o colosso de pés de argila desmoronou‖: ―Le colosse aux pieds d'argile s'est effondré.‖

22 Alphonse de Châteaubriant foi um escritor animado de certo misticismo católico que desde a primeira guerra se torna partidário da reconciliação entre a França e a Alemanha, que se torna colaboracionista e partidário do Front révolutionnaire national que organiza os grupos colaboracionistas.

23 No original homme-lige, uma relação de vassalagem da tradição franca em que se escolhe o mais importante entre os vassalos e usualmente somente se poderia seguir um único suserano.

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complexo de inferioridade frente à França: nós os teremos onde desejarmos‖. Alguns

desejavam suplantar os italianos no seu papel de ―brilhante segundo lugar‖, outros

calculavam que sua hora chegaria quando a Alemanha e a América quisessem que uma

terceira potência preparasse o terreno para as negociações. Tendo colocado a força

como fonte do direito e como o apanágio do mestre, o colaborador reservou a si mesmo

a astúcia. Ele reconhece, então, sua fraqueza e esse pastor da potência viril e das

virtudes masculinas se acomoda nas armas do fraco, da mulher24. Destacam-se, entre os

artigos de Chateaubriant, de Drieu, de Brazillach25, curiosas metáforas que apresentam

as relações entre França e Alemanha sob o aspecto de uma união sexual em que a

França desempenha o papel feminino. Certamente, a ligação feudal do colaborador com

seu mestre tem um aspecto sexual. Se concebemos um estado de espírito da

colaboração, se adivinha nele um clima de feminilidade. O colaborador fala em nome da

força, mas ele não tem a força: ele é a manha, a astúcia que se apoia na força. Ele é o

próprio encanto e sedução, uma vez que pretende jogar com a atração que a cultura

francesa exerce, segundo ele, sobre os alemães. Parece-me que há aí uma curiosa mescla

de masoquismo e homossexualidade. Os meios homossexuais parisienses, aliás,

forneceram numerosos e brilhantes recrutas.

Mas aquilo que constitui talvez a melhor explicação psicológica da colaboração é

o ódio. O colaborador parece sonhar com uma ordem feudal e rigorosa: havíamos dito

que isso é o grande sonho de assimilação de um elemento desintegrado da comunidade.

Mas se trata somente de um devaneio. De fato, ele odeia essa sociedade onde não

conseguiu desempenhar um papel. Se ele sonha em lhe dar o freio fascista, é para

submetê-la e reduzi-la à condição de máquina. É típico que Déat ou Luchaire ou

Darnand26 fossem perfeitamente conscientes de sua impopularidade. Escreveram cem

vezes, com total lucidez, que a imensa maioria do país desaprovava sua política Mas eles

24 Certamente a comparação das figuras do feminino neste texto pelo jovem Sartre é problemática,

especialmente quando pensamos se ele apresenta um paralelo entre o feminino (como mulheres ou a homossexualidade) e a força ocupante, como já foi problematizada para este texto em comparação com a peça de época pouco posterior As moscas por Hedwig Fraunhofe. Vide: [http://www.genderforum.org/issues/gender-disgussed/gender-and-the-abject-in-sartre/page/5/]

25 Robert Brasillach foi outro autor e escritor do Je suis partout. 26 Soldado herói da primeira guerra que se torna voluntário no conflito entre a França e a Alemanha,

posteriormente entra na política influenciado por Pétain, se tornando líder da Milícia Francesa, grupo militante armado anticomunista e antissemita que fazia um trabalho análogo ao da gestapo no solo francês.

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xtoestavam longe de deplorar a indignação e o furor que provocavam: eles lhes eram

necessários. Sob essa ótica, concebiam que havia abaixo deles uma totalidade impotente

e inutilmente revoltada, aquela comunidade francesa em que eles não podiam se fundir

e que os excluía. Como eles não puderam vencê-la por dentro, eles a subjugariam do

exterior. Eles se integrariam à Europa alemã para violar essa nação orgulhosa. Pouco

lhes importava serem escravos de Hitler, se eles poderiam infectar a França inteira com

essa escravidão. Essa era a natureza particular de sua ambição. Em Drieu la Rochelle, as

coisas não eram tão simples: ele começou por se odiar a si mesmo. Ao longo de vinte

anos, ele se pintou como um deslocado, um desintegrado, um ―homem sobrante‖ e

sonhava para si mesmo uma disciplina férrea que ele era incapaz de seguir

espontaneamente. Mas esse ódio de si se tornou – como testemunha Gilles – um ódio ao

homem. Incapaz de suportar essa dura verdade: ―Eu sou uma criança frágil e covarde,

entregue às minhas paixões‖, quis se ver como um produto típico de uma sociedade

inteiramente podre. Sonhou com o fascismo para ela quando bastaria dar a si mesmo

regras estritas de conduta: desejou aniquilar o humano em si mesmo e nos outros,

transformando as sociedades humanas em formigueiros. Para esse pessimista, o

advento do fascismo correspondia, no fundo, ao suicídio da humanidade.

Realismo, recusa do universal e da lei, anarquia e sonho de uma obrigação férrea,

apologia da violência e do ardil, feminilidade, ódio à humanidade: características que se

explicam pela desintegração. O colaborador, tivesse ou não a ocasião de se manifestar

enquanto tal, é um inimigo que as sociedades democráticas portam perpetuamente em

seu seio. Se nós desejamos evitar que ele não sobreviva à guerra sob outras formas, não

basta executar alguns traidores. É necessário, tanto quanto possível, encontrar a

unificação da sociedade francesa, ou seja, o trabalho que a Revolução Francesa de 89

começou, e que é aquele que só pode se realizar com uma revolução nova, aquela

revolução que se tentou em 1830, em 1848, em 1871 e que sempre foi seguida de uma

contrarrevolução. A democracia sempre foi de fascistas porque ela tolera, por sua

natureza, todas as opiniões, convém que se faça enfim leis restritivas: não deve haver

liberdade contra a liberdade.

E como a tese favorita do colaborador – tanto quanto do fascista – é o realismo, é

necessário aproveitar nossa vitória para ratificar a derrota de toda política realista.

Certamente, convém se submeter aos fatos, de tirar lições da experiência: mas essa

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flexibilidade, esse positivismo político devem ser somente os meios para realizar um fim

que não se submete aos fatos e que não tira deles sua existência. Dando o exemplo de

uma política baseada sobre princípios, contribuiremos para que desapareça a espécie

dos ―pseudo-realistas‖. Diante deles, de fato, a resistência, que terminou por triunfar,

mostra que o papel do homem é de saber dizer não aos próprios fatos quando tudo se

faz crer que a eles se deve submeter. Certamente, é necessário querer vencer primeiro a

si mesmo antes de se querer vencer o destino, mas se é necessário vencer primeiro a si

mesmo, isso é para, finalmente, se poder melhor vencer o destino.

La République Française, editado em Nova Iorque, agosto de 1945.

(Sartre, Jean-Paul. Situations, III. Paris: Gallimard, 1949.)

(Trad. e notas: D. A.)

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MISÉRIAS DO PRIMITIVISMO

DANOWSKI, Débora e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio

sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2014, 176 p.

Os terráqueos primam pela estupidez. Transformaram o seu belo

planeta num deserto contaminado... Embora a civilização dos

terráqueos não seja tão atrasada, eles insistem em dilapidar a natureza.

Tamanha estupidez não pode ser tolerada... Avante Hidrax! Destrua

tudo o que tiver pela frente!

(Dr. Gori em Spectreman, ordenando o seu monstro criado a partir da

poluição para que destrua as forças produtivas)1

Daniel Cunha

O fim do mundo, não sem motivos, está atraindo as atenções. É o tema que

Danowski e Viveiros de Castro se propõe a investigar. O livro comenta um mosaico de

dados e interpretações filosóficas, antropológicas e histórico-culturais que o tornam

uma leitura instigante, oferecendo um bom panorama ideológico do espírito do (fim do)

tempo. Interessa-nos mais aqui, porém, o seu movimento do todo, que é este: a partir de

um mosaico dos discursos, imagens e mitologias atuais sobre o fim do mundo (ciência,

literatura, cinema, filosofia), passa-se à antropologia dos povos ameríndios (com a sua

cosmologia própria e relação diversa com a natureza) e chega-se, finalmente, à

conclusão política apologética do ―devir-índio‖, do ―incessante redevir-índio‖. É claro

que no livro as passagens não são tão abruptas, mas com esse exagero inicial

pretendemos expor de início a essência do movimento do livro, que é a do curto-circuito

entre antropologia e política. Ainda que as duas primeiras etapas do movimento do

livro sejam as mais interessantes, nos concentraremos aqui na terceira, que é onde se

concentram os problemas. Esses problemas não são poucos, e fazem o livro, apesar de

1 No primeiro episódio da série, ―Dr. Gori, o criador de monstros‖:

https://www.youtube.com/watch?v=HqlukRAANFw

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toda a sua aparência ―alternativa‖ e ―verde‖, escorregar inapelavelmente para um

reacionarismo brutal, talvez de maneira total ou parcialmente inconsciente. Trata-se de

uma boa plataforma para a crítica do aqui chamaremos de ―primitivismo‖ – a crítica

ideológica reacionária, malthusiana e misantrópica das forças produtivas, decorrente de

um marcado déficit dialético, recaindo em uma espécie de ―síndrome do Dr. Gori‖ –,

ainda que se apresente de forma mais erudita que o habitual.

Decorre daquele curto-circuito mencionado que o livro, apesar de tratar de um

problema essencialmente material – a ultrapassagem dos limites de ―sustentabilidade‖

da influência humana nos ciclos materiais do planeta –, o livro é recheado de

metafísica: Gaia, Pachamama e um conflito entre ―Terranos‖ ou ―Povo de Gaia‖ e

―Humanos‖ (os ―modernos‖) sobre bases puramente idealistas são conceitos centrais na

tese desenvolvida. São os ―Terranos‖ que, em seu ―devir-índio‖, sobreviverão à

catástrofe ecológica global. Nota-se uma total ausência da crítica da economia política,

que é o elo perdido pelos autores no seu imprudente salto mortal. No caminho,

dispensam (com acerto) o marxismo tradicional em roupagem high-tech – o

―aceleracionismo‖, que parece crer na teleologia histórica da Segunda Internacional,

com a nuance de que se propõe a ―acelerar‖ o hiperdesenvolvimento das forças

produtivas, no que lançam mão inclusive do vanguardismo bolchevique, para que,

afinal, o Comunismo desde sempre prometido chegue mais cedo, deixando a crise para

trás. Mas os autores param por aí, talvez acreditando que essa roupagem baste para

caracterizar uma leitura crítica e atualizada de Marx.

Disso resulta uma série de fraquezas teóricas que acabam minando

inapelavelmente a sua capacidade de apreender o movimento real e, portanto, a

efetividade do seu sentido político. Por exemplo, ao invés de problematizar o sujeito

burguês, os autores tomam ao pé da letra o discurso iluminista do ―antropocentrismo‖

da modernidade. Bons leitores de Marx sabem que a forma do sujeito moderno deve ser

problematizada, e que a inversão capitalista de sujeito e objeto tende a fazer do capital o

―sujeito automático‖ ao qual se subordinam as ―máscaras de caráter‖, que são ―sujeitos-

sujeitados‖ enquanto meros agentes da valorização do valor (tanto ―trabalhadores‖

quanto ―burgueses‖). Da mesma forma, na seção intitulada ―a espécie impossível‖,

deixam de mencionar que essa espécie torna-se socialmente impossível (no capitalismo)

porque a sua atividade vital é convertida em trabalho alienado (ou, mais tarde na obra

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marxiana, trabalho abstrato, produtor de valor) pelo capitalismo, e é isso o que impede a

sua realização como espécie ou ser genérico (Gattunswesen).2 Ao perder esse horizonte

crítico, recusam a universalidade e recaem no pós-modernismo identitário: ―Se não

existe um interesse universal humano positivo, é porque existe uma diversidade de

alinhamentos políticos dos diversos povos ou ‗culturas‘ mundiais‖ (p. 121) – e a

expectativa pelo ―positivo‖ universal (que de fato não existe, o universal só pode ser o

negativo) apenas revela um déficit de pensamento dialético. Impressiona que os autores

conhecem esses dois momentos-chave da obra marxiana – o trabalho alienado da

juventude e o fetichismo da mercadoria da maturidade – mas as tenham relegado a duas

notas de rodapé.3 Dessa forma, ao longo de toda a obra o ―capitalismo‖ é mencionado

sem nenhum rigor conceitual, à moda moralista, como quando nomeia uma série de

multinacionais como os inimigos dos ―Terranos‖ (como se pudesse existir empresa

capitalista ou lógica empresarial ―boa‖) ou quando se refere ao colonialismo como o

choque do ―Planeta Mercadoria‖ contra a América.

A essa fraqueza conceitual na determinação do capitalismo se une uma visão

mística da realidade material. Parece que o déficit de compreensão da metafísica real do

capitalismo corresponde a uma inflação de motivos metafísicos para a sua superação –

―intrusão de Gaia‖, ―Povo de Pachamama‖, etc. O ápice ocorre quando os autores

parecem levar ao pé da letra as cosmologias antropomórficas ameríndias: ―a guerra de

Gaia opõe dois campos ou partidos povoados de humanos e não-humanos – bichos,

plantas, máquinas, rios, glaciares, oceanos, elementos químicos‖ (p. 133). E eis que

voltamos a uma visão animista do mundo, onde tudo tem ―alma‖ e é capaz de constituir-

se como ―inimigo político‖ (p. 134) (!), dos elementos químicos aos oceanos! O que se

propõe não é que o homem torne-se sujeito ao organizar-se politicamente para superar

o capital, mas a aderência a um conjunto de fantásticas superstições.

Daí também a desatenção dos autores para com os requisitos materiais. De fato, o

―devir-índio‖ é levado a sério no que se refere ao plano da técnica, na forma da apologia

2 Ironicamente, os autores criticam Chakrabarty por não utilizar o conceito marxiano de Gattunswesen

para descartar a ―espécie‖ como ―impossível‖ (p. 111, n. 131), mas a sua própria crítica fica truncada, ao não mencionar que, para Marx, o que nega o Gattungswesen é a alienação do trabalho. Para uma exposição detalhada desse argumento, além dos Manuscritos marxianos de 1844, ver HOLLOWAY, John (2013), Fissurar o capitalismo, trad. D. Cunha, Publisher, especialmente a parte IV.

3 Talvez por não compreender bem nenhum dos dois, como discutido na nota anterior no primeiro caso e mais adiante para o segundo.

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à ―gambiarra‖ (p. 133) e da ―bricolagem tecnoprimitivista‖ (p. 159) – nisso contrariando

o ceticismo de Latour, um dos inspiradores do livro. Ao invés de criticar a forma da

técnica moderna, configurada que é pela valorização do valor, pela lógica empresarial da

transformação de dinheiro em mais dinheiro, e assim libertar o potencial liberador da

técnica avançada de sua forma fetichista para que possa ser configurada e utilizada para

a satisfação das necessidades humanas sensíveis, os autores parecem rejeitar a técnica

avançada e a grande escala em bloco. Cientes, no entanto, de que 7 bilhões de pessoas

(10 bilhões em algumas décadas) não podem viver como caçadores-coletores

―tecnoprimitivistas‖, os autores, ao invés de tentar provar a viabilidade disso,

perguntam: ―o que sabemos nós das transições demográficas que aguardam a

humanidade até o final deste século ... se considerarmos que podemos chegar a 4oC de

aumento de temperatura média global ...?‖ (p. 129, grifo meu). Aqui o primitivismo

revela a sua veia malthusiana, ou seja, indireta e um tanto envergonhadamente admite-

se que a humanidade só pode viver à base da romantizada ―gambiarra‖ se bilhões de

pessoas pereceram, o que é referido tecnocraticamente (!) como ―transições

demográficas‖. Não falta nem mesmo o clássico ―há gente demais no mundo‖ (p. 129).4

Para ilustrar essa tese neomalthusiana, os autores usam (em uma nota de rodapé)

o argumento do consumo energético – a civilização já consome entre 12 e 15 terawatts, e

necessitaria de 100 TW se todos os países se desenvolvessem ao nível de consumo de

energia dos Estados Unidos (p. 127, n. 154). Caso tivessem apreço pelos dados materiais,

os autores poderiam constatar que a energia renovável (solar, eólica e hidráulica)

disponível somente em áreas facilmente acessíveis do planeta é de mais de 600 TW – 40

vezes mais do que o consumo energético global atual.5 Também utilizam mal o conceito

de ―pegada ecológica‖ (sem citá-la) para validar a sua tese malthusiana: ―se todas as sete

bilhões de pessoas do mundo adotassem o American way of life (...) seriam necessárias

cinco Terras‖ (p. 129). Não há rigor científico nessa informação. Hoje, a análise da

―pegada ecológica‖ global indica que se consome o equivalente à capacidade

4 Aqui há uma aproximação com o ecologista neoliberal Garrett Hardin e sua ―ética do bote salva-vidas‖,

onde não há espaço para todos, ao contrário de uma (bem operada) ―espaçonave Terra‖. Garrett vai às últimas consequências, colocando-se contrariamente à assistência aos pobres. Ver HARDIN (1974), Garrett Lifeboat Ethics: The Case Against Helping the Poor, http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_lifeboat_ethics_case_against_helping_poor.html

5 Cf. JACOBSON, Mark e DELUCCHI, Mark (2009). ―A path to sustainable energy‖, Scientific American (November 2009), pp. 58-65.

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regenerativa de 1,5 planetas. Caso as tendências demográficas e de consumo

permaneçam inalteradas, esse valor é projetado para 3 planetas, em 2050.6

Imprescindível, ainda, é notar que mais da metade dessa ―pegada‖ é devida às emissões

de carbono.7 Ou seja, uma transição energética permitiria o nível de consumo global

atual sem exceder a capacidade regenerativa da biosfera. Portanto, os cinco planetas são

possivelmente um ato falho de quem toma o desenvolvimento histórico futuro como

favas contadas, para daí fazer tabula rasa reacionária da luta política e das forças

produtivas.

O problema, portanto, não é o consumo energético em si, mas o consumo de

energia fóssil, devido às emissões de carbono. O problema não é de escassez energética

em termos físicos, mas em termos político-econômicos, o buraco de agulha da

valorização do valor. O que é necessário no plano da técnica é uma transição energética,

que deve ser feita com certa velocidade para evitar as consequências mais graves do

aquecimento global (aqui o momento de verdade do ―aceleracionismo‖). Dados

empíricos mostram que a energia necessária para um alto índice de desenvolvimento

humano (IDH) é de 3,5 kW por habitante.8 Em um mundo com, em breve, 10 bilhões de

habitantes, seriam necessários 35 TW – mesmo que os países ricos diminuam o seu

―excesso energético‖ que não contribui para o nível de vida, isso corresponde a um

aumento do consumo energético global para que toda a população mundial tenha acesso

a um bom padrão de vida. Pode-se argumentar que com a abolição da ―anarquia do

mercado‖ (obsolescência programada, cadeias produtivas irracionais, máquina de

publicidade, desperdício, etc.) esse valor seria muito menor, para o mesmo resultado em

termos de nível de vida. Mas ainda que fosse possível reduzir esse consumo pela metade,

ainda seriam 18 TW. O discurso malthusiano-primitivista aproxima-se aqui, com a sua

apologia do decrescimento energético, do discurso da austeridade – abrir mão do

6 Cf. GLOBAL FOOTPRINT NETWORK,

http://www.footprintnetwork.org/ar/index.php/GFN/page/world_footprint/(acesso em fevereiro/2015).

7 Cf. BORUCKE, Michael el al (2013) ―Accounting for demand and supply of the biosphere‘s regenerative capacity: The National Footprint Account‘s underlying methodology and framework‖ Ecological Indicators 24: 518-533, Fig. 5.

8 Sobre a correlação entre consumo energético e variáveis como mortalidade infantil, expectativa de vida e analfabetismo, ver GOLDEMBERG, José (2001). Energia, meio ambiente e desenvolvimento, EDUSP, pp. 42-52.

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conforto e sacrificar-se não é justamente o que se pede em ―ajustes‖ de governos

neoliberais?

Mesmo quando tentam suavizar o primitivismo tecnológico com o que chamam

de ―agenciamentos sincréticos de alta intensidade‖ (p. 150), na qual algumas tecnologias

―modernas‖ estão incluídas, como a internet (p. 131) – juntamente com coisas como a

―psicopolítica do tecnoxamanismo‖ (sic) –, falta uma análise material. Fiquemos no

tema mais terreno da internet. Para a construção de computadores, circuitos eletrônicos

ou mesmo cabos de rede é necessária a mineração em locais muito específicos do

planeta. Grande parte da produção de cobre, por exemplo, concentra-se em cinco países,

um terço apenas no Chile. Ou seja, uma tecnologia como a internet pressupõe fluxos

materiais intercontinentais que são incompatíveis com o que os autores chamam de

―mundo humano permanentemente diminuído‖ (p. 127). O mesmo para a construção de

painéis solares, por exemplo. Mesmo que pensemos em termos de reciclagem (que

nunca é 100% eficiente), são necessários sistemas industriais complexos e sistemas

avançados de transporte e infraestrutura.

Com essas críticas, não estamos desprezando o papel da antropologia no

entendimento da crise civilizacional pela qual passamos. Pelo contrário, a antropologia é

uma ferramenta preciosa para relativizar o capitalismo, para demonstrar que a forma

de produção e sociabilização do capitalismo, e a correspondente forma de sujeito e

formas de consciência derivadas, são historicamente específicas, e não ontológicas – e

que, portanto, as coisas podem ser diferentes não apenas no passado, mas também no

futuro. É surpreendente, porém, que o conceito marxiano do ―fetichismo‖ tenha sido tão

subestimado na obra aqui discutida – relegado a uma nota de rodapé. A prova de que os

autores não entenderam a teoria do fetichismo de Marx, no entanto, é que nessa nota

eles dizem que ele reabriu, ―talvez inadvertidamente, um rico filão analítico sobre as

relações profundas entre economia e teologia na metafísica ocidental‖ (p. 100, n. 115,

grifo meu). Ora, essas relações foram apontadas por Marx de forma absolutamente

consciente, como uma leitura atenta d‘O capital o demonstra inequivocamente, desde o

primeiro capítulo sobre o fetiche da mercadoria, perpassando toda a obra até os juros

como forma mais desenvolvida de fetiche, já no terceiro livro. É justamente o fetichismo

que nos faz ainda não-sujeitos, ou, como diria Marx, ainda estejamos na ―pré-história da

humanidade‖, sob o domínio de uma economia autonomizada, onde se tem ―relações

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sociais entre coisas e relações coisificadas entre pessoas‖, na vívida alusão de sua obra

principal. ―O ‗totem‘ da sociedade moderna é o valor, e o poder social que é projetado

sobre este totem é o trabalho, enquanto atividade fundamental do homem na sociedade

produtora de mercadorias‖, como diz Anselm Jappe.9

Tudo isso posto, é evidente que os direitos dos povos indígenas não estão aqui em

discussão. De fato, a superação do capitalismo pode ser considerada, como dizem os

zapatistas, como a emergência de um ―mundo onde caibam muitos mundos‖. Zapatistas,

aliás, que sabem bem que são indígenas e mais que isso, não se restringindo a essa

identidade: ―detrás de nosotros estamos ustedes‖.10 Certamente aí cabem os mundos

indígenas, ou mesmo de ―modernos‖ que queiram realizar o seu ―devir-índio‖, tal como

nunca caberão no capitalismo. Porém, a transposição imediata dos valores e

cosmologias indígenas para a sociedade ocidental é um evidente equívoco. A sociedade

capitalista precisa ser superada a partir da sua imanência, de suas próprias

contradições, para libertar o seu potencial emancipatório que é truncado pela forma-

mercadoria e pelos seus agentes de classe. É certo que o nosso capitalismo periférico

possui especificidades, mas isso não se resolve com anacronismos do tipo ―o Brasil é

uma gigantesca Aldeia Maracanã‖ (p. 158). O Brasil nasceu como um empreendimento

capitalista, e esta já foi a nossa primeira catástrofe ecológica (a devastação do pau-brasil

de nossa costa), e essas marcas profundas no sujeito não se apagam com simplesmente

dizendo que ―somos todos índios‖. É preciso negação determinada, não a tabula rasa da

crítica reacionária. Se é verdade que a noção teleológica de ―missão civilizatória do

capital‖ nunca teve sentido para além do seu próprio desenvolvimento intrassistêmico

(que nunca foi para todos), o capitalismo foi a única forma social que permitiu que a sua

própria forma social viesse à consciência.

9 Anselm JAPPE (2006) As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor, Antígona, p. 217.

Sobre as consequências disso para o assim chamado ―Antropoceno‖, ver meus textos: CUNHA, Daniel (2015) ―The Anthropocene as Fetishism‖, Mediations 28 (2): 65-77 (http://www.mediationsjournal.org/files/Mediations28_2_06.pdf) e (2012) ―O Antropoceno como alienação‖ em Sinal de Menos no. 8.

10 ―Detrás de nosotros estamos ustedes. Detrás de nuestros pasamontañas está el rostro de todas las mujeres excluidas. De todos los indígenas olvidados. De todos los homosexuales perseguidos. De todos los jóvenes despreciados. De todos los migrantes golpeados. De todos los presos por su palabra y pensamiento. De todos los trabajadores humillados. De todos los muertos de olvido. De todos los hombres y mujeres simples y ordinarios que no cuentan, que no son vistos, que no son nombrados, que no tienen mañana.‖ Do discurso de abertura do I Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo. (http://palabra.ezln.org.mx/comunicados/1996/1996_07_27.htm)

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O livro de Danowski e Viveiros de Castro, assim, se é interessante como

apresentação de um mosaico pitoresco sobre o ―apocalipse‖, acaba ele mesmo caindo

nas redes desse ―mosaico de curiosidades‖ com a virada primitivista do seu final – um

chamado à ―incivilização‖ (p. 130) que recorre a motivos supersticiosos e malthusianos

para justificar e tornar artificialmente inexorável um ―futuro pós-catastrófico‖ em ―um

mundo humano permanentemente diminuído‖ (p. 127) – poucas vezes a regressão

social foi tão bem descrita. Talvez por isso mesmo a teoria da crise desenvolvida pela

crítica do valor11, que os autores provavelmente não conhecem, pois que ainda marginal

nos debates atuais, possivelmente seria um incômodo nesse livro. Ela é demasiado real,

historicamente determinada, não-teleológica e crítica. A crise é a contradição em

processo – entre uma forma de sociabilização baseada no trabalho abstrato e suas forças

produtivas hiperdesenvolvidas que eliminam a necessidade desse trabalho abstrato, e o

aumento irracional do processamento material que causa a crise ecológica é

consequência disso.12 O que precisamos não é de fatalismos malthusianos aliados a pós-

modernismos identitários e superstições fantásticas (metafísica é a lógica do capital!),

mas, como diz J.-P. Dupuy, de ―catastrofismo esclarecido‖13: a projeção de que a inércia

nos levará à catástrofe deve inspirar nossos projetos políticos para mudar de futuro. Ou

como diz Günther Anders, citado no próprio livro, no que talvez seja o seu melhor

momento:

―Se nos distinguimos dos apocalípticos judaico-cristãos clássicos, não é apenas por temermos o fim (que eles, de sua parte, esperavam), mas sobretudo porque nossa paixão apocalíptica não tem outro objetivo senão o de impedir o apocalipse. Só somos apocalípticos para podermos estar errados‖ (p. 114)

Os autores do livro, porém, desperdiçam a força da invectiva de Anders (que é

bastante citado ao longo do livro, mas sempre parece fora de lugar). Eles antes

pressupõem um apocalipse inevitável para a imensa maioria dos habitantes do planeta –

o que, além de politicamente desmobilizante, é cientificamente equivocado, posto que

ainda é fisicamente (e politicamente) possível evitar o pior – para o triunfo final de um

11 Por exemplo, por Robert KURZ (1991) em O colapso da modernização, Paz e Terra. 12 Como demonstrado por ORTLIEB, C. P., ―Uma contradição entre forma e conteúdo‖, disponível em

http://o-beco-pt.blogspot.com.br/2010/06/claus-peter-ortlieb-uma-contradicao.html Original: Exit! 6 (2009)

13 DUPUY, Jean-Pierre (2009), Pour un catastrophisme éclairé: quand l‟impossible est certain, Seuil.

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―novo povo‖ – a pequena vanguarda da gambiarra: ―seria ridículo imaginá-los como a

semente de uma nova Maioria‖ (p. 159). Trata-se de uma visão bastante diversa

daqueles projetos generosos e universais de libertação plena da alienação, da carência,

da exploração, do sofrimento e da superstição e de realização plena do potencial

humano que, em sua diversidade, costumamos chamar de ―esquerda‖.

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COMUNIZAÇÃO NO PRESENTE

Théorie Communiste

No curso da luta revolucionária, a abolição do Estado, da troca, da divisão do

trabalho, de toda forma de propriedade, a extensão da situação onde tudo está

livremente disponível à medida que a unificação da atividade humana – em uma

palavra, a abolição das classes – são ―medidas‖ que abolem o capital, impostas pelas

próprias necessidades da luta contra a classe capitalista. Revolução é comunização; ela

não tem o comunismo como projeto e resultado, mas é o seu próprio conteúdo.

Comunização e comunismo são coisas do futuro, mas é no presente que temos

que falar sobre eles. Esse é o conteúdo da revolução vindoura que essas lutas sinalizam

– nesse ciclo de lutas – cada vez que o próprio fato de agir como classe aparece como

uma restrição externa, um limite a ser superado. Em si mesmo, lutar como classe

tornou-se o problema – ela se tornou o seu próprio limite. Assim, a luta do proletariado

como classe sinaliza e produz a revolução como a sua própria superação, como

comunização.

Crise, reestruturação, ciclo de luta: sobre a luta do proletariado como

classe como o seu próprio limite

O principal resultado do processo de produção capitalista sempre foi a renovação

da relação capitalista entre o trabalho e suas condições: em outras palavras, trata-se de

um processo de auto-pressuposição.

Até a crise do final dos anos 60, a derrota dos trabalhadores e a seguinte

reestruturação, havia de fato a auto-pressuposição do capital, de acordo com o último

conceito, mas a contradição entre proletariado e capital se localizava nesse nível no

interior da produção e confirmava, nessa própria auto-pressuposição, uma identidade

de classe trabalhadora, através da qual o ciclo de lutas foi estruturado como competição

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entre duas hegemonias, dois modos rivais de gerenciar e controlar a reprodução. Essa

identidade era a própria substância do movimento operário.

Essa identidade dos trabalhadores, sob qualquer forma social e política de sua

existência (do Partido Comunista à autonomia; do Estado Socialista aos conselhos

operários), repousava inteiramente na contradição que se desenvolveu nessa fase de

subsunção real do trabalho sob o capital, entre, de um lado, a criação e desenvolvimento

da força de trabalho empregada pelo capital de maneira progressivamente coletiva e

social, e de outro, as formas de apropriação pelo capital dessa força de trabalho no

processo imediato de produção, e no processo de reprodução. Essa é a situação

conflituosa que se desenvolveu nesse ciclo de lutas como identidade dos trabalhadores –

uma identidade que encontrou suas características distintivas e suas modalidades

imediatas de reconhecimento na ―grande fábrica‖, na dicotomia entre emprego e

desemprego, trabalho e treinamento, na submissão do processo de trabalho à

coletividade dos trabalhadores, na relação entre salários, crescimento e produtividade

dentro de uma região nacional, nas representações institucionais e tudo o que isso

implicou, tanto na fábrica quanto no nível do Estado – isto é, na delimitação da

acumulação em uma área nacional.

A reestruturação foi a derrota, no final dos anos 60 e anos 70, de todo esse ciclo

de lutas fundado sobre a identidade de trabalhadores; o conteúdo da reestruturação foi

a destruição de tudo o que se tornou um obstáculo à fluidez da auto-pressuposição do

capital. Esses obstáculos consistiam, de um lado, em todas as separações, proteções e

especificações que foram erguidas para opor-se ao declínio do valor da força de

trabalho, à medida que evitava que a classe trabalhadora como um todo, na

continuidade de sua existência, de sua reprodução e expansão, tivesse que enfrentar a

totalidade do capital como tal. Por outro lado, havia todas as restrições à circulação,

rotatividade e acumulação, que impediam a transformação do produto excedente em

mais-valia e capital adicional. Todo produto excedente deve poder encontrar o seu

mercado em qualquer lugar, toda mais-valia deve poder encontrar a possibilidade de

operar como capital adicional em qualquer lugar, isto é, de ser transformado em meios

de produção e força de trabalho, sem nenhuma formalização do ciclo internacional

(como a divisão em blocos, ocidente e oriente, ou centro e periferia) predeterminando

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essa transformação. O capital financeiro foi o arquiteto dessa reestruturação. Com a

reestruturação que foi completada nos anos 80, a produção de mais-valia e a reprodução

das condições dessa produção coincidiram.

O ciclo de lutas atual é definido fundamentalmente pelo fato de que a contradição

entre as classes ocorre no nível de suas respectivas reproduções, o que significa que o

proletariado encontra e conforta a sua própria constituição e existência como classe na

sua contradição com o capital. Disso resulta o desaparecimento da identidade de

trabalhador, confirmada na reprodução do capital – isto é, o fim do movimento operário

e a falência concomitante da auto-organização e da autonomia como perspectiva

revolucionária. Porque a perspectiva de revolução não é mais questão de afirmação da

classe, ela não pode mais ser uma questão de auto-organização. Abolir o capital é ao

mesmo tempo negar a si mesmo como trabalhador e não se auto-organizar como tal:

trata-se de um movimento de abolição de empresas, de fábricas, do produto, da troca

(sob qualquer forma).

Para o proletariado, agir como classe é atualmente, por um lado, não ter outro

horizonte a não ser o capital e as categorias de sua reprodução, e por outro, pela mesma

razão, é estar em contradição com e colocar em questão a sua própria reprodução como

classe. Esse conflito, essa fissura na ação do proletariado, é o conteúdo da luta de

classes e é o que nela está em jogo. O que agora está em jogo nessas lutas é que, para o

proletariado, agir como classe é o limite de sua ação como classe – essa é agora uma

circunstância objetiva da luta de classes – e que o limite é construído como tal nas lutas

e se torna pertencimento de classe como restrição externa. Isso determina o nível do

conflito com o capital, e gera conflitos internos às próprias lutas. Essa transformação é

uma determinação da atual contradição entre as classes, mas em todos os casos a prática

específica de uma luta em um dado momento e em dadas condições.

Esse ciclo de lutas é a ação de uma classe trabalhadora recomposta. Ela consiste,

nas principais áreas de acumulação, no desaparecimento dos grandes bastiões da

proletarização dos empregados; na terceirização do emprego (especialistas em

manutenção, operadores de equipamentos, caminhoneiros, carregadores, estivadores

etc. – esse tipo de emprego agora perfaz a maior parte dos trabalhadores); no trabalho

em empresas ou locais menores; numa nova divisão do trabalho e da classe trabalhadora

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com a terceirização de processos de pouco valor agregado (envolvendo trabalhadores

jovens, com frequência temporários, sem perspectiva de carreira); na generalização da

―produção enxuta‖; na presença de trabalhadores jovens cuja educação quebrou a

continuidade de gerações que se sucedem e que em sua grande maioria rejeitam o

trabalho de fábrica e as condições da classe trabalhadora em geral; e em offshoring.

Grandes concentrações de trabalhadores na Índia e na China fazem parte de uma

segmentação global da força de trabalho. Elas não podem nem ser consideradas como o

renascimento alhures do que desapareceu no ―Ocidente‖ em termos de sua definição

global, nem em termos da sua própria inscrição no contexto nacional. O que definia a

identidade da classe trabalhadora era um sistema social de existência e reprodução, e

não a mera existência de características quantitativas materiais.1

Das lutas diárias à revolução, só pode haver uma ruptura. Mas essa ruptura é

sinalizada no curso diário da luta de classes cada vez que o pertencimento de classe

aparece, nessas lutas, como uma restrição externa, que é objetivado no capital, no

próprio curso da atividade do proletariado como classe. Atualmente, a revolução se

baseia na superação de uma contradição que é constitutiva da luta de classes: para o

proletariado, ser uma classe é o obstáculo que a sua luta como classe deve ultrapassar.

Com a produção do pertencimento de classe como uma restrição externa, torna-se

possível entender o ponto de não-retorno da luta de classes – a sua superação – como

uma superação produzida, na base das lutas atuais. Em sua luta contra o capital, a classe

se volta contra si mesma, isto é, ela trata a sua própria existência, tudo o que a define em

sua relação com o capital (e ela é nada mais do que dessa relação), como limite da sua

ação. Os proletários não libertam a sua ―verdadeira individualidade‖, que seria negada

pelo capital: a prática revolucionária é precisamente a coincidência entre a mudança nas

circunstâncias e na atividade humana ou autotransformação.

Essa é a relação pela qual podemos falar atualmente de comunismo, e falar dele

no presente como um movimento real e existente. Hoje é um fato que a revolução é a

1 Para que a Índia e a China possam se constituir como o seu próprio mercado interno deveria haver uma

verdadeira revolução no campo (isto é, a privatização da terra na China e o desparecimento da pequena propriedade e do arrendamento na Índia) mas também e sobretudo uma reconfiguração do ciclo global do capital, suplantando a atual globalização (isto é, isso implicaria a renacionalização das economias, superando e preservando a globalização, e uma desfinancialização do capital produtivo.

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abolição de todas as classes, à medida que a ação como classe do proletariado é, para si

mesma, um limite. Essa abolição não é um objetivo a ser alcançado, uma definição de

revolução como norma a ser atingida, mas um conteúdo atual do que a luta de classe é

em si. Produzir o pertencimento de classe como uma restrição externa é, para o

proletariado, entrar em conflito com a sua situação prévia; isso não é ―liberação‖ e nem

―autonomia‖. Esse é ―o passo mais difícil a ser dado‖ no entendimento teórico e na

prática das lutas contemporâneas.

O proletariado não se torna com isso um ser ―puramente negativo‖. Dizer que o

proletariado existe apenas como classe no e contra o capital, que ela produz todo o seu

ser, a sua organização, sua realidade e constituição como classe no capital e contra ele, é

dizer que ele é a classe do trabalho produtor de mais-valia. O que desapareceu no ciclo

atual de lutas, em seguida à restruturação dos anos 70 e 80, não é essa existência

objetiva da classe, mas sim a confirmação de uma identidade proletária na reprodução

do capital.

O proletariado só pode ser revolucionário ao reconhecer-se como classe; ela se

reconhece como tal em todos os conflitos, e tem de fazê-lo tanto mais na situação na

qual a sua existência como classe é o que ela tem de confrontar na reprodução do

capital. Não podemos nos enganar sobre o conteúdo desse ―reconhecimento‖. O

proletário reconhecendo-se como classe não será um ―retorno a si‖, mas a total

extroversão (uma auto-externalização) quando ele reconhece a si mesmo como uma

categoria do modo capitalista de produção. O que somos como classe é imediatamente

nada mais do que nossa relação com o capital. Para o proletariado, esse

―reconhecimento‖ consistirá de fato numa cognição prática, num conflito, não de si

mesmo para si mesmo, mas do capital – isto é, a sua des-objetivação. A unidade da

classe não pode mais ser baseada na luta por salários e demandas, como um prelúdio

para a sua atividade revolucionária. A unidade do proletariado só pode ser a atividade

pela qual ele abole a si mesmo ao abolir tudo o que o divide.

Das lutas por demandas imediatas à revolução, tem de haver uma ruptura, um

salto qualitativo. Mas essa ruptura não é um milagre, não é uma alternativa; nem é a

simples constatação da parte do proletariado de que não há nada mais a fazer a não ser a

revolução, diante do fracasso de todo o resto. ―A revolução é a única solução‖ é tão

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inepto quanto a fala sobre a dinâmica revolucionária das lutas baseadas em demandas.

Essa ruptura é produzida positivamente pelo desdobramento do ciclo de lutas que a

precede; ela é sinalizada na multiplicação de fissuras no interior da luta de classes.

Como teóricos, somos as sentinelas dessas fissuras, e as promovemos no interior da

luta de classes do proletariado através das quais ele coloca a si mesmo em questão; na

prática, somos atores delas quando estamos diretamente envolvidos. Existimos nessa

ruptura, nessa fissura na atividade do proletariado como classe. Não há mais nenhuma

perspectiva para o proletariado sobre a sua própria base como classe do modo

capitalista de produção, além da capacidade de superar a sua existência de classe na

abolição do capital. Há uma identidade absoluta entre estar em contradição com o

capital e estar em contradição com a sua própria situação e definição como classe.

É através dessa própria fissura no interior da ação como classe que a

comunização se torna uma questão do presente. Essa fissura no interior da luta de

classes, na qual o proletariado não tem nenhum horizonte além do capital, e portanto

simultaneamente entra em contradição com a sua própria ação como classe, é a

dinâmica desse ciclo de lutas. Atualmente a luta de classes do proletariado tem

elementos ou atividades identificáveis que sinalizam a sua própria superação em seu

próprio curso.

Lutas produzindo teoria2

A teoria desse ciclo de luta, como apresentada acima, não é uma formalização

abstrata que então provará que se conforma à realidade através de exemplos. É a sua

existência prática, ao invés de sua veracidade intelectual, que a prova no concreto. Ela é

um momento particular de lutas que já são elas próprias teóricas (no sentido que elas

são produtoras de teoria), à medida que elas têm uma relação crítica em relação a si

mesmas.

Na maioria das vezes não se trata de declarações bombásticas ou ações ―radicais‖, mas

todas as atividades de saída ou rejeição de sua própria condição por parte do

2 Os exemplos são em sua maioria franceses; a publicação desse texto no exterior fornece a oportunidade

de testar as teses que são aqui defendidas.

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proletariado. Nas lutas atuais em torno de demissões, os trabalhadores frequentemente

não mais demandam manter os seus empregos, mas, ao contrário, cada vez mais lutam

por boas indenizações. Contra o capital, o trabalho não tem futuro. Já era muito

evidente nas assim chamadas lutas ―suicidas‖ na fábrica da Cellatex (França), onde os

trabalhadores ameaçaram lançar ácido no rio e explodir a fábrica, ameaças que não

foram concretizadas mas que foram muito imitadas em outras lutas em torno do

fechamento de fábricas, que o proletariado não é nada se é separado do capital e não

possui nenhum futuro em si mesmo, por sua própria natureza, a não ser pela abolição

daquilo pelo que ele existe. É a desessencialização do trabalho que se torna a própria

atividade do proletariado: tanto tragicamente, em suas lutas sem perspectivas imediatas

(ou seja, suas lutas suicidas), como demanda por essa desessencialização, como nas

lutas dos desempregados e precarizados no inverno de 1998 na França.

O desemprego já não está mais claramente separado do emprego. A segmentação

da força de trabalho; flexibilidade; terceirização; mobilidade; estágios; e empregos

informais borraram todas as separações.

No movimento francês de 1998, e de forma mais geral nas lutas dos

desempregados nesse ciclo de lutas, a definição dos desempregados que foi o ponto de

partida para a reformulação do emprego assalariado. A necessidade do capital de

medir tudo em tempo de trabalho e de colocar para si a exploração do trabalho como

questão de vida ou morte é simultaneamente a desessencialização do trabalho vivo em

relação às forças sociais que o capital concentra em si. Essa contradição, inerente à

acumulação de capital, que é uma contradição no capital-em-processo, toma a forma

muito particular da definição de classe em relação ao capital; o desemprego da classe

chama para si a condição de ser o ponto de partida de tal definição. Nas lutas dos

desempregados e precarizados, as lutas dos proletários contra o capital faz dessa

contradição a sua própria contradição, e a promove. O mesmo ocorre quando

trabalhadores demitidos não pedem empregos, mas indenizações.

No mesmo período, os empregados da Moulinex que se tornaram redundantes

atearam fogo no prédio de uma fábrica, inscrevendo-se assim na dinâmica desse ciclo de

lutas, que faz da existência do proletariado como classe o limite de sua ação de classe.

De maneira semelhante, em 2006, em Savar, 50 quilômetros ao norte de Dhaka, em

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Bangladesh, duas fábricas foram incendiadas e outras centenas foram saqueadas depois

que os trabalhadores ficaram três meses sem pagamento. Na Argélia, pequenas

demandas salariais se transformaram em rebeliões, formas de representação foram

desconstituídas sem que outras fossem formadas, e foi a totalidade das condições de

vida e reprodução do proletariado que entrou em jogo, para além das demandas dos

protagonistas imediatos da greve. Na China e Índia não há perspectiva de formação de

um vasto movimento operário a partir da proliferação de vários tipos de ações baseadas

em demandas afetando todos os aspectos da vida e da reprodução da classe

trabalhadora. Essas ações baseadas em demandas frequentemente se tornam,

paradoxalmente, a destruição das condições de trabalho, isto é, da sua própria raison

d'être.

No caso da Argentina, as pessoas se auto-organizaram como desempregados da

Mosconi, trabalhadores da Bruckman, moradores de cortiços... mas ao se auto-organizar

eles imediatamente se depararam com o que eles eram como um obstáculo, que na luta

tornou-se aquilo que tinha de ser superado, e que foi visto como tal nas modalidades

práticas desses movimentos auto-organizados. O proletariado não pode encontrar em si

mesmo a capacidade de criar outras relações interindividuais, sem inverter e negar o

que ele é nessa sociedade, isto é, sem entrar em contradição com a autonomia e a sua

dinâmica. A auto-organização é talvez o primeiro ato da revolução, mas todos os atos

seguintes são direcionados contra ela (ou seja, contra a auto-organização). Na

Argentina, foram as determinações do proletariado como classe dessa sociedade (ou

seja, propriedade, troca, divisão do trabalho, relação entre homens e mulheres) que

foram efetivamente enfraquecidas pela maneira como as atividades produtivas foram

levadas a cabo, isto é, nas modalidade reais da sua realização.

Na França, em novembro de 2005, nos banlieus, os amotinados não

demandaram nada, eles atacaram a sua própria condição, eles tornaram seus alvos tudo

aquilo que os produz e define. Os amotinados revelaram e atacaram a atual condição

proletária: a precarização mundial da força de trabalho. Ao fazê-lo, tornaram

imediatamente obsoleto, no momento mesmo no qual tal demanda poderia ser

articulada, qualquer desejo de ser um ―proletário normal‖.

Três meses mais tarde, na primavera de 2006, ainda na França, como um

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movimento baseado em demandas, o movimento estudantil contra o contrat première

embauche (CPE [primeiro contrato de emprego]) só podia compreender a si mesmo

tornando-se o movimento geral dos precarizados; mas ao fazê-lo ele iria ou negar a sua

própria especificidade ou seria inevitavelmente obrigado a colidir mais ou menos

violentamente contra todos aqueles que mostraram nos motins de novembro de 2005

que a demanda por ser um ―proletário normal‖ se tornou obsoleta. Alcançar a demanda

através da sua expansão seria, com efeito, sabotá-la. Que credibilidade havia numa

ligação com os amotinados de novembro baseada no ―emprego estável para todos‖? Por

um lado, essa ligação estava objetivamente inscrita no código genético do movimento;

por outro, a própria necessidade dessa ligação induziu uma dinâmica interna de amor e

ódio, igualmente objetiva, no interior do movimento. A luta contra o CPE foi um

movimento de demandas cuja satisfação teria sido inaceitável a si mesma como

movimento de demandas.

Nas rebeliões gregas, os proletários não demandaram nada, e não consideraram a

si mesmos como opositores do capital como fundamento de nenhuma alternativa. Mas

se esses motins foram um movimento da classe, eles não constituíram uma luta naquilo

que é a própria matriz da classe: a produção. Foi dessa maneira que esses motins

tiveram a conquista chave de produzir e mirar o pertencimento de classe como uma

restrição, mas eles só puderam alcançar esse ponto ao confrontar o piso de vidro da

produção como o seu limite.3 E as maneiras pelas quais esse movimento produziu essa

restrição externa (os objetivos, os desdobramento dos motins, a composição dos

amotinados) foram intrinsecamente definidos por esse limite: a relação de exploração

como coerção pura e simples. Atacar instituições e formas de reprodução social,

tomadas em si mesmas, por um lado, foi o que constituiu o movimento e o que

constituiu a sua força, mas isso foi também a expressão dos seus limites.

Estudantes sem futuro, jovens imigrantes, trabalhadores precarizados, são todos

proletários que vivem todos os dias a reprodução da relações sociais capitalistas como

coerção; a coerção é incluída nessa reprodução porque eles são proletários, mas eles a

experimentam diariamente como separada e aleatória (acidental e não-necessária) em

3 ―Piso de vidro‖, em oposição a ―teto de vidro‖ (barreiras para a ascensão na carreira profissional das

mulheres, restringindo suas oportunidades e influência nos locais de trabalho) [N. do T.]

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relação à produção em si. Ao mesmo tempo que lutam nesse movimento de coerção que

eles experimentam como separado, eles apenas concebem e vivem essa separação como

uma lacuna em sua própria luta contra esse modo de produção.

É dessa maneira que esse movimento produziu o pertencimento de classe como

uma restrição externa, mas apenas dessa maneira. É dessa maneira que ele se localiza

nesse ciclo de lutas e é um dos seus momentos históricos determinantes.

Em sua própria prática e em sua luta, os proletários se colocaram em questão

enquanto proletários, mas apenas autonomizando os momentos e instâncias da

reprodução social em seus ataques e em seus alvos. A reprodução e a produção de

capital permaneceram estranhas uma à outra.

Em Guadalupe, a importância do desemprego, e da parte da população que vive

de benefícios e/ou da economia informal, implicam que as demandas salariais são uma

contradição em termos. Essa contradição estruturou o curso dos eventos entre, de um

lado, o Liyannaj Kont Pwofitasyon (LKP), que se centrava nos trabalhadores

permanentes (essencialmente nos serviços públicos), mas tentou manter unidos os

termos dessa contradição através da multiplicação e da infinita variedade de demandas

e, por outro lado, o absurdo das demandas salariais centrais para a maioria das pessoas

que participavam das barricadas, da pilhagem e dos ataques aos prédios públicos. A

demanda foi desestabilizada no próprio curso da luta; ela foi contestada, assim como a

sua forma de organização, mas as formas específicas de exploração da população inteira,

herdadas de sua história colonial, conseguiram evitar que essa contradição explodisse

mais violentamente no coração do movimento (é importante notar que a única morte foi

a de um sindicalista morto numa barricada). Desse ponto de vista, a produção do

pertencimento de classe como uma restrição externa foi mais um estado sociológico,

mais uma espécie de esquizofrenia, do que algo em jogo na luta.

Em geral, com a explosão da atual crise, a demanda salarial é atualmente

caracterizada por uma dinâmica que não era anteriormente possível. É uma dinâmica

interna que surge como resultado da totalidade da relação entre o proletariado e o

capital no modo de capitalista de produção, tal como ela emergiu da reestruturação e tal

como está agora entrando em crise. A demanda salarial mudou de significado.

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Na sucessão de crises financeiras que nos últimos vinte anos ou mais regularam o

modo atual de valorização do capital, a crise do sub-prime é a primeira que tomou como

seu ponto de partida não os ativos financeiros que correspondem a investimentos de

capital, mas ao consumo de residências, e mais precisamente das residências mais

pobres. Nesse aspecto, ela inaugura uma crise específica da relação salarial do

capitalismo reestruturado, no qual a contínua diminuição da fração dos salários sobre a

riqueza produzida, tanto nos países do centro quanto nos emergentes, permanece como

definitiva.

A ―distribuição de riqueza‖ deixou de ser essencialmente conflituosa no modo

capitalista de produção para tornar-se tabu, como foi confirmado no movimento recente

de greves e bloqueios (outubro-novembro de 2010) que sucederam a reforma do sistema

de previdência na França. No capitalismo reestruturado (dos quais estamos

experimentando o começo da crise), a reprodução da força de trabalho foi submetida a

um duplo desacoplamento. Por um lado, um desacoplamento entre a valorização do

capital e a reprodução da força de trabalho e, de outro, o desacoplamento entre o

consumo e o salário como renda.

Evidentemente, a divisão da jornada de trabalho entre trabalho necessário e

mais-trabalho sempre definiu a luta de classes. Mas agora, na luta em torno dessa

divisão, é paradoxalmente na definição do proletariado até o âmago do seu ser como

classe deste modo de produção, e como nada mais, que se torna evidente na prática, e

de maneira conflituosa, que a sua existência como classe é o limite da sua própria luta

como classe. Esse é atualmente o caráter central da demanda salarial na luta de classes.

No curso mais trivial da demanda salarial, o proletário vê a sua própria existência como

classe objetivar-se como algo estranho a ele, ao ponto que a própria relação capitalista a

coloca em seu coração como algo estranho.

A crise atual estourou porque os proletários não puderam mais pagar as suas

dívidas. Ela estourou na própria base da relação salarial que levou à financialização da

economia capitalista: cortes de salário como requisitos para a ―criação de valor‖ e

competição global no seio da força de trabalho. Foi essa necessidade funcional que

retornou, mas de maneira negativa, no modo histórico de acumulação de capital com a

detonação da crise dos sub-prime. Agora é a relação salarial que está no núcleo da crise

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atual.4 A crise atual é o começo da fase de reversão das determinações e da dinâmica do

capitalismo como ele emergiu da reestruturação dos anos 70 e 80.

Duas ou três coisas que sabemos

É porque o proletariado é não-capital, porque ele é a dissolução de todas as

condições existentes (trabalho, troca, divisão do trabalho, propriedade) que ele encontra

aqui o conteúdo de sua ação revolucionária como medidas comunistas: a abolição da

propriedade, da divisão do trabalho, da troca e do valor. O pertencimento de classe

como restrição externa é portanto em si um conteúdo, o que quer dizer uma prática, que

se supera em medidas comunizantes quando o limite da luta como classe se manifesta.

Comunização não é nada mais do que medidas comunistas tomadas como simples

medidas de luta pelo proletariado contra o capital.

É a escassez de mais-valia em relação ao capital acumulado que está no coração

da crise da exploração: se, no coração da contradição entre o proletariado e o capital

não houvesse a questão do trabalho que é produtor de mais-valia; se houvesse apenas

um problema de distribuição, isto é, se a contradição entre proletariado e capital não

fosse uma contradição pela própria coisa, nomeadamente o modo capitalista de

produção, cuja dinâmica ela constitui; isto é, se ela não fosse ―um jogo que produz a

abolição das suas próprias regras‖, a revolução seria apenas um desejo piedoso. O ódio

ao capital e o desejo de outra vida são apenas as expressões ideológicas necessárias

dessa contradição para-si que é a exploração.

Não é através de um ataque pelo flanco da natureza produtora de mais-valia do

trabalho que a luta baseada em demandas é superada (o que sempre retornaria a um

problema de distribuição), mas através de um ataque pelo flanco dos meios de produção

como capital. O ataque contra a natureza capitalista dos meios de produção é a sua

abolição como trabalho absorvedor de valor para valorizar a si mesmo; é a extensão da

situação na qual tudo é livremente disponível, a destruição (talvez física) de certos meios

de produção, a sua abolição como fábricas onde é definido o que deve ser um produto,

isto é, as matrizes de troca e comércio; é a sua definição e absorção em relações

4 É a crise na qual a identidade de superacumulação e subconsumo se afirmam.

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individuais intersubjetivas; é a abolição da divisão do trabalho tal como ela está inscrita

no zoneamento urbano, na configuração material dos prédios, na separação entre cidade

e campo, na própria existência de algo que pode ser chamado de fábrica ou ponto de

produção. Relações entre indivíduos são fixadas em coisas, porque o valor de troca é por

natureza material.5 A abolição do valor é uma transformação concreta da paisagem na

qual vivemos, é uma nova geografia. A abolição de relações sociais é um tema bastante

material.

No comunismo, a apropriação não possui mais nenhuma moeda, porque é a

própria noção de ―produto‖ que é abolida. Obviamente há objetos que são usados para

produzir, outros que são diretamente consumidos e ainda outros que são usados de

ambas as formas. Mas falar de "produtos" e colocar a questão da sua circulação, sua

distribuição ou ―transferência‖, isto é, conceber um momento de apropriação, é

pressupor pontos de ruptura, de ―coagulação‖ da atividade humana: o mercado em

sociedades de mercado, o de-pósito onde os bens estão livremente disponíveis em certas

formas de comunismo. O ―produto‖ não é uma simples coisa. Falar em ―produto‖ é

supor que um resultado da atividade humana aparece como finito em relação a outro

resultado ou à esfera de outros resultados. Não devemos seguir a partir do ―produto‖,

mas a partir da atividade.

No comunismo, a atividade humana é infinita porque ela é indivisível. Ela tem

resultados concretos ou abstratos, mas esses resultados nunca são ―produtos‖, pois isso

geraria a questão da sua apropriação ou de sua transferência de algum modo. Se

podemos falar em atividade humana infinita no comunismo, é porque o modo

capitalista de produção já nos permite ver – ainda que contraditoriamente e não como

um ―lado bom‖ – a atividade humana como um fluxo social contínuo global, e o

―intelecto geral‖ ou o "trabalhador coletivo" como a força dominante da produção. O

caráter social da produção não prefigura nada: ele apenas torna a base do valor

5 "Aquela coisa [dinheiro] é uma relação coisificada entre pessoas... é valor de troca coisificado, e valor de

troca não é nada mais do que a relação mútua entre as atividades produtivas das pessoas" (Marx, Grundrisse).

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contraditória.

A destruição da troca implica o ataque dos trabalhadores aos bancos que mantêm

as suas contas e as de outros trabalhadores, tornando necessário viver sem eles; implica

os trabalhadores comunicando os seus ―produtos‖ para si mesmos e para a comunidade,

diretamente e sem um mercado, e com isso abolindo a si mesmos como trabalhadores;

implica a obrigação de toda classe de organizar a si mesma e produzir comida nos

setores a ser comunizados, etc. Não há nenhuma medida que, em si mesma, tomada

separadamente, seja o ―comunismo‖. O que é comunista não é a ―violência‖ em si

mesma, nem a ―distribuição‖ da merda que herdamos da sociedade de classes, nem a

―coletivização‖ de máquinas sugadoras de mais-valia: é a natureza do movimento que

conecta essas ações, as sublinha, as tornam os momentos de um processo que só pode

comunizar ainda mais, ou ser esmagado.

Uma revolução não pode ser levada a cabo sem medidas comunistas: dissolver o

trabalho assalariado, comunizar suprimentos, roupas, casas; tomar todas as armas (as

destrutivas, mas também as telecomunicações, comida, etc.); integrar os despossuídos

(incluindo aqueles de nós que tiveram se reduzido a esse estado), os desempregados,

agricultores arruinados, estudantes desenraizados que largaram os estudos.

A partir do momento em que passamos a consumir livremente, é necessário

reproduzir aquilo que é consumido; é portanto necessário tomar os meios de transporte,

de telecomunicação, e entrar em contato com outros setores; ao fazê-lo, encontraremos

a oposição de grupos armados. O confronto com o Estado coloca imediatamente o

problema das armas, que só pode ser resolvido com a configuração de uma rede de

distribuição para apoiar o combate em um infinidade quase infinita de lugares.

Atividades militares e sociais são inseparáveis, simultâneas e mutuamente

interpenetrantes: a constituição de uma frente ou de zonas determinadas de combate é a

morte da revolução. A partir do momento em que os proletários desmantelam as leis das

relações mercantis, não há volta. A profundidade e extensão desse processo social

conferem carne e sangue a novas relações, e permitem a integração de cada vez mais

não-proletários para a classe comunizante, que está no processo de simultaneamente

constituir-se e dissolver-se. Elas permitem a abolição em extensão cada vez maior de

toda competição e divisão entre proletários, fazendo disso o conteúdo e o

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desdobramento de seu confronto armado com aqueles que a classe capitalista ainda

pode mobilizar, integrar e reproduzir em suas relações sociais.

É por isso que todas as medidas de comunização terão de ser uma ação vigorosa

pelo desmantelamento das conexões que ligam nossos inimigos e o seu suporte

material: esses terão de ser rapidamente destruídos, sem possibilidade de retorno.

Comunização não é a organização pacífica da situação onde tudo é livremente disponível

e de um modo de vida prazeroso entre proletários. A ditadura do movimento social de

comunização é o processo de integração da humanidade no proletariado que está em

processo de desaparição. A delimitação estrita do proletariado em comparação a outras

classes e a sua luta contra toda produção de mercadorias são ao mesmo tempo um

processo que compele o estrato da pequena-burguesia assalariada, a classe do

gerenciamento (intermediário) social, para se juntar à classe comunizante. Os

proletários não ―são‖ revolucionários como o céu ―é‖ azul, meramente porque eles ―são‖

assalariados e explorados, ou mesmo porque eles são a dissolução das condições

existentes. Em sua autotransformação, que tem como ponto de partida o que eles são,

eles se constituem como classe revolucionária. O movimento no qual o proletariado é

definido na prática como o movimento da constituição da comunidade humana é a

realidade da abolição das classes. O movimento social na Argentina confrontou e

colocou a questão das relações entre o proletariado e o desemprego, e o estrato médio

excluído. Ele forneceu apenas respostas extremamente fragmentadas, das quais a mais

interessante é sem dúvida a da sua organização territorial. A revolução, que nesse ciclo

de lutas não pode ser outra coisa senão comunização, supera o dilema entre as alianças

de classe leninistas ou democráticas e o ―proletários sozinhos‖ de Herman Gorter: dois

tipos diferentes de derrota.

A única maneira de superar os conflitos entre os desempregados e os que

possuem empregos, entre os qualificados e os não qualificados, é levar a cabo medidas

de comunização que removem a própria base dessa divisão, desde o começo, no curso da

luta armada. Isso é algo que as fábricas ocupadas na Argentina, quando confrontadas

com a questão, tentaram apenas marginalmente, geralmente satisfazendo-se (cf. Zanon)

com alguma redistribuição caridosa a grupos de piqueteros. Na ausência disso, o capital

jogará com essa fragmentação ao longo do movimento, e encontrará os seus Noske e

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Scheidemann entre os auto-organizados.6

De fato, como já mostrado pela revolução alemã, trata-se de dissolver os estratos

médios tomando medidas comunistas concretas que os compelem a começar a juntar-se

ao proletariado, isto é, para alcançar a sua ―proletarização‖. Hoje em dia, em países

desenvolvidos, a questão é ao mesmo tempo mais simples e mais perigosa. De um lado,

uma massiva maioria dos estratos médios é assalariada e, logo, não possui mais uma

base material para sua posição social; o seu papel de gerenciamento e direção da

cooperação capitalista é essencial mas sempre tornada precária; a sua posição social

depende do mecanismo muito frágil da subtração de frações de mais-valia. Por outro

lado, porém, e pelas mesmas razões, a sua proximidade formal do proletariado os força

a apresentar, nessas lutas, ―soluções‖ alternativas nacionais ou democráticas que

preservariam as suas próprias posições.

A questão essencial que temos que resolver é entender como podemos estender o

comunismo, antes que ele seja sufocado nas garras da mercadoria; como integramos a

agricultura, para não ter que trocar com agricultores; como nos livramos de relações

baseadas na troca de nosso adversário para impor a lógica da comunização das relações

e da tomada dos bens; como dissolvemos o bloqueio do medo através da revolução.

Para concluir, o capital não é abolido pelo comunismo, mas através do

comunismo, mais precisamente através da produção. De fato, medidas comunistas deve

ser distinguidas do comunismo: elas não são o embrião do comunismo, mas a sua

produção. Não se trata de um período de transição, mas da revolução: comunização é

tão-somente a produção comunista do comunismo. A luta contra o capital é o que

diferencia as medidas comunistas do comunismo. A atividade revolucionária do

proletariado sempre tem como seu conteúdo a mediação da abolição do capital através

da sua relação com o capital: isso não é nem um ramo de uma alternativa em

competição com outro, nem comunismo como imediatismo.

(Título original: ―Communization in the Present Tense‖

6 Gustav Noske e Phillipp Scheidemann, membros da ala moderada do partido social-democrata alemão.

Apoiaram a entrada na Primeira Guerra Mundial como ―medida defensiva‖ [N. do T.]

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Disponível em: https://libcom.org/library/communization-present-tense

Traduzido para o inglês por Endnotes;

Traduzido para o português por Daniel Cunha).

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SINAL de MENOS ISSN 1984-8730

Edição:

Cláudio R. Duarte (São Paulo)

Daniel Cunha (Porto Alegre)

Felipe Drago (Porto Alegre)

Joelton Nascimento (Cuiabá)

Raphael F. Alvarenga (São Paulo)

Rodrigo C. Castro (São Paulo)

Capa desta edição: Felipe Drago

Contribuições:

A revista aceita contribuições e

comentários críticos, que serão

avaliados quanto ao conteúdo, o

estilo e a adequação à linha

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