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Sociedade do Descarte: estudo de caso do “ Lixão” do município de Rio Pardo / RS Ari Rocha da Silva 1 Charles Policena Luciano 2 Resumo Este trabalho visa apresentar um balanço de certas problemáticas ambientais e sociais que ocorrem no município de Rio Pardo / RS, especificamente, num antigo depósito de resíduos sólidos e em sua circunvizinhança, a Vila do Asseio, local periférico de residências populares desta cidade. Em relação a esta área, denominada por nós de “área de descarte”, buscouse levantar algumas informações e dados acerca da dinâmica sócioeconômica e das condições ambientais do lugar a partir de documentos e das legislações vigentes, reportagens de jornais, observações diretas e por intermédio de uma série de entrevistas com pessoas residentes neste espaço. Para isto, foram realizadas várias incursões ao local (Lixão e Vila do Asseio) o que nos possibilitou, a partir destas fontes de pesquisas, investigar as circunstâncias e problemáticas concretas do lugar. Na primeira parte do estudo, abordase o caráter e algumas circunstâncias de nossa sociedade, como aspectos do sistema capitalista de produção, bem como os seus efeitos ao meio ambiente, oriundos da sistemática descartabilidade de resíduos. Na segunda parte, contextualizase o município de Rio Pardo a partir de algumas particularidades territoriais, sócio econômicas e de sua legislação ambiental. Em terceira seção, analisamse as falas dos sujeitos que moram próximos ao que chamam de “lixão da cidade”, enfatizandose as problemáticas dos moradores, seus anseios, percepções dos problemas ambientais, condições de trabalho e saúde. Entre estas pessoas, 1 Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais (UFRGS), Especialista em Políticas Sociais e Mestrando do Programa de PósGraduação em Desenvolvimento Regional (UNISC). Bolsista CNPq. 2 Licenciado em Educação Física, Especialista em Políticas Sociais e Mestrando do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional (UNISC).

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Sociedade do Descarte: estudo de caso do “ Lixão” do município de Rio Pardo / RS

Ari Rocha da Silva 1

Charles Policena Luciano 2

Resumo

Este trabalho visa apresentar um balanço de certas problemáticas

ambientais e sociais que ocorrem no município de Rio Pardo / RS,

especificamente, num antigo depósito de resíduos sólidos e em sua

circunvizinhança, a Vila do Asseio, local periférico de residências populares

desta cidade. Em relação a esta área, denominada por nós de “área de

descarte”, buscou­se levantar algumas informações e dados acerca da

dinâmica sócio­econômica e das condições ambientais do lugar a partir de

documentos e das legislações vigentes, reportagens de jornais, observações

diretas e por intermédio de uma série de entrevistas com pessoas residentes

neste espaço. Para isto, foram realizadas várias incursões ao local (Lixão e Vila

do Asseio) o que nos possibilitou, a partir destas fontes de pesquisas,

investigar as circunstâncias e problemáticas concretas do lugar.

Na primeira parte do estudo, aborda­se o caráter e algumas

circunstâncias de nossa sociedade, como aspectos do sistema capitalista de

produção, bem como os seus efeitos ao meio ambiente, oriundos da

sistemática descartabilidade de resíduos. Na segunda parte, contextualiza­se o

município de Rio Pardo a partir de algumas particularidades territoriais, sócio­

econômicas e de sua legislação ambiental. Em terceira seção, analisam­se as

falas dos sujeitos que moram próximos ao que chamam de “lixão da cidade”,

enfatizando­se as problemáticas dos moradores, seus anseios, percepções dos

problemas ambientais, condições de trabalho e saúde. Entre estas pessoas,

1 Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais (UFRGS), Especialista em Políticas Sociais e Mestrando do Programa de Pós­Graduação em Desenvolvimento Regional (UNISC). Bolsista CNPq. 2 Licenciado em Educação Física, Especialista em Políticas Sociais e Mestrando do Programa de Pós­ Graduação em Desenvolvimento Regional (UNISC).

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encontram­se catadores de resíduos que dependem desta atividade como meio

de sobrevivência, além de um comerciante, de trabalhadores aposentados e

pescadores do rio Jacuí.

Abordagens de temas acerca do lugar em que se vive, seu ordenamento

territorial, confrontos entre os atores envolvidos, aspectos que dizem respeito

ao meio ambiente, ao trabalho, entre outros, são perspectivas de análise

cruciais na medida em que habilitam à reflexão, ao planejamento e ao

desenvolvimento do espaço social. Assim, os resultados obtidos permitem

constatar que o antigo Lixão do município de Rio Pardo foi estruturado em

condições inadequadas e que denota, atualmente, abandono físico, ambiental

e social por parte do poder público local. Em relação às condições e modos de

vida dos moradores que vivem juntos ou nas proximidades do depósito,

percebe­se a frágil articulação e aporte de capital social por parte de uma

população em estado de vulnerabilidade social, muitas vezes, extremo. Esta

perspectiva, desta forma, dificulta a possibilidade por parte da população

residente em colocar em pauta temas que digam respeito à sua melhoria de

qualidade de vida, capaz, inclusive, de exigir dos governos políticas de

desenvolvimento local de forma integral e articulada.

1. Introdução

Abordagens de temas acerca do lugar em que se vive, seu ordenamento

territorial, lutas e confrontos entre sujeitos relacionados, aspectos que dizem

respeito ao meio ambiente, entre outros, são perspectivas de análise

fundamentais na medida em que habilitam à reflexão e ao planejamento do

espaço social. Ainda mais quando percebemos que vivemos num tempo de

profundas mudanças e inovações que afetam o cotidiano das pessoas e

transformam permanentemente nosso modo de ser e de nosso ambiente. Estar

atento às condições que transformam o espaço social e dos componentes que

perfazem nossas vidas, são fatores imprescindíveis para que possamos

participar da organização daquilo que nos compõe e da forma na qual se vive.

Busca­se aqui enfatizar, através de um estudo de caso, alguns aspectos

sócio­ambientais do município de Rio Pardo / RS, tendo como preocupação

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entender como se configuram e se organizam certos espaços públicos deste

município. Especificamente, discutir certas dinâmicas sócio­ambientais frente à

organização de um local de depósito de resíduos sólidos desta cidade.

Rio Pardo, importante cidade do Rio Grande do Sul, capital Farroupilha

no século XIX, tem um importante patrimônio histórico e arquitetônico em sua

localidade. Cidade esta, banhada pela junção de importantes rios (Jacuí e

Pardo), detendo também, por sua vez, um importante manancial de recursos

hídricos e naturais. Em certos locais, inclusive, a população banha­se e utiliza­

se da pesca como fonte de suprimento alimentar, seja pelo auto­consumo do

pescador e de sua família ou para a comercialização do produto nas feiras

públicas da cidade.

Com população aproximada de 38 mil habitantes, o município

infelizmente também retrata problemas sociais graves e níveis de

vulnerabilidade social preocupantes, principalmente em lugares não priorizados

pelos governos públicos ­ 11,24% das pessoas são analfabetas (IBGE, 2002),

28,6% da população é composta por pessoas abaixo da linha da pobreza

(PNUD, 2000), sendo que uma grande parcela da população encontra­se na

periferia da cidade, vítima de graves problemas sociais, como o desemprego, a

infra­estrutura deficiente, a falta de saneamento básico e moradia adequada,

bem como dificuldades para o acesso à saúde e a educação de qualidade.

É importante também destacar, sendo uma das ênfases deste trabalho,

os graves problemas ambientais que se verifica na localidade de Rio Pardo.

Exemplo disto é uma área existente, com cerca de cinco hectares, perto de seu

principal rio, o Jacuí, onde até 2004 eram depositados ali os resíduos

domésticos, comerciais e industriais do município pela Prefeitura Municipal,

afetando o meio ambiente e prejudicando alguns moradores circunvizinhos a

esta área. A principal área residencial atingida é a Vila do Asseio, nome

sugestivo e contrastante com a vizinha área do depósito de resíduos, visto que

a coleta seletiva dos resíduos do município não é feita, ficando os resíduos, de

diversas naturezas e formas, dispostos a céu aberto. Embora exista na

Legislação Estadual a regulamentação de que a coleta seletiva seja posta em

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prática, sob a responsabilidade dos governos municipais (Art. 1º da Lei N.º

9.921, de 27 de julho de 1993, dos Resíduos Sólidos do Estado do Rio Grande

do Sul).

Assim, a análise do destino que se dá aos resíduos neste município,

pelos altos níveis de descartabilidade de materiais que caracterizam nossa

sociedade com seu alto nível de consumo, é fator preponderante para o

encaminhamento de possíveis propostas de qualificação do espaço urbano e

do desenvolvimento de melhor gestão dos recursos disponíveis. Por isso, este

estudo de caso justifica­se, tendo em vista que por esta localidade transcorre

uma importante malha hídrica do Estado, a qual vem sofrendo inúmeras

degradações pela proximidade de um “lixão”, bem como pelos problemas e

controvérsias com que vêm se debatendo a própria comunidade local por estar

próxima dos resíduos descartados por toda a sociedade.

Portanto, visa­se aqui realizar, a partir de uma introdução que realce o

modo de produção vigente e os problemas ambientais a ele relacionadas, um

balanço de certas problemáticas que ocorrem no município de Rio Pardo,

denominada aqui de “área de descarte”. Buscou­se levantar algumas

informações e dados acerca da dinâmica sócio­econômica desta localidade a

partir da observação direta, levantamento de publicações jornalísticas e por

intermédio de entrevistas junto a alguns moradores mais próximos do lixão em

destaque.

Conhecer o modo de vida dos moradores a partir de suas falas pode

possibilitar o conhecimento de como as pessoas percebem as circunstâncias e

particularidades em que vivem, ensejando­nos a pensar em propostas que

possam ser encaminhadas para que este público tenha um ambiente renovado

e uma melhor qualidade de vida no local em que habitam. Para isso,

realizaram­se várias incursões ao local (Lixão e Vila do Asseio) visando

observar de forma direta as circunstâncias e problemáticas do lugar, bem como

para consubstanciar uma análise a partir das falas dos sujeitos entrevistados.

Na primeira parte deste trabalho, aborda­se o caráter e algumas

circunstâncias de nossa sociedade, como aspectos do sistema capitalista de

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produção e consumo, bem como os seus efeitos sobre meio ambiente. Por

outro lado não deixamos de nos remeter aos cuidados que se deve ter contra a

degradação ambiental, caso se queira ter um ambiente saudável e qualificado

de moradia. Na segunda parte, o trabalho centra­se em analisar o município de

Rio Pardo a partir de algumas particularidades territoriais, ambientais, sócio­

econômicas e de sua legislação ambiental vigente. Na terceira parte, dá­se

destaque às falas dos sujeitos que moram próximos ao que chamam de “lixão

da cidade”, enfatizando as problemáticas dos moradores, seus anseios,

percepções dos problemas ambientais, condições de trabalho e saúde. Para

isso foram entrevistadas 12 pessoas, entre elas ex­catadores do Lixão, um

comerciante local, trabalhadores aposentados e pescadores do rio Jacuí, todos

eles residentes próximos ao depósito de resíduos.

Ao perfazer algumas trajetórias dos sujeitos ali envolvidos, busca­se

delinear alguns pontos da realidade local, introduzindo a possibilidade de se

abrir um debate a respeito das problemáticas e controvertidas relações que se

estabelecem na comunidade a respeito das condições sócio­ambientais deste

lugar. Desta forma, busca­se dar ênfase a uma necessária organização social,

construída a partir de um lastro de articulação e de confiança entre os sujeitos,

estruturando um capital social a ser disponibilizado pelos mesmos, sendo este

capital um dos possíveis pilares que podem embaçar uma reconfiguração do

espaço local, entrando como componente das lógicas estruturantes e das

dinâmicas que compõem as relações com outros segmentos da sociedade.

2. Globalização e os territórios de descarte

Observa­se atualmente um processo profundo e de intensas mudanças

de nosso cotidiano. Estas mudanças, muita vezes, desarticulam e deslocam o

jeito de ser e das formas de relações entre os sujeitos, mudando hábitos e

tradições até então praticados pelos indivíduos vivendo em sociedade. Pois, o

atual momento contorna um forte sentido de efemeridade, de certa noção de

que algo novo está por aparecer, visto ter­se a noção de que tudo pode ser

renovado em sua incompletude. Exemplo contundente são as renovações

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tecnológicas e os avanços das comunicações a partir de seus meios. A

completude não é algo tangível, só o vazio que tentamos preencher com algo

que está sempre no porvir. Novos emblemas e signos de consumo prometem

algo sempre melhor, muitas vezes tão efêmero quanto a sua propaganda. A

lógica é retratada, desta forma, pela ação ao consumo e só nos sentimos

pertencentes à sociedade se assim agimos. Nunca tivemos uma sociedade tão

marcada pelos símbolos e representações do consumo, cuja disseminação

somente pode alcançar sua maior força através da tecnologia que leva os

sujeitos a este tipo de vida, entre o consumo e o descarte.

Este sentimento de efemeridade talvez seja o fenômeno mais

perceptível do atual momento de nossa história, independente de classes

sociais. Porém, este sentimento não pode ser deslocado às meras

elucubrações subjetivas e que perfazem os anseios individuais de

determinados sujeitos, outrossim, este sentimento deve ser reportado a um

impulso mais forte, a uma matriz dinamizadora do desenvolvimento da

produção e do consumo de mercadorias que se acham interligados. Entre

crises e avanços, o sistema capitalista de produção se reestrutura a partir de

seus agentes, buscando soluções para sanar as dificuldades de elevação de

seus patamares de lucro. Com a crise dos anos setenta, que teve como um dos

pilares a crise de oferta de mercadorias e do modelo fordista como projeto

propulsor rígido de confecção das mercadorias, o capitalismo reconfigura­se

pela busca em suprir as demandas numa ótica de estrutura flexível e com forte

implementação de permanente renovação de sua produção. A nova ordem dos

empreendimentos empresariais é buscar a “aceleração do tempo de giro” das

mercadorias como solução para os graves problemas oriundos do sistema de

produção rígido caracterizado pelo sistema do fordismo precedente.

Toda essa indústria se especializa na aceleração do tempo de giro por meio da produção e venda de imagens. Trata­se de uma indústria em que reputações são feitas e perdidas da noite para o dia, onde o grande capital fala sem rodeios e onde há um fermento de criatividade intensa, muitas vezes individualizada, derramado no vasto recipiente da cultura de massa seriada e repetitiva. É ela que organiza as manias e modas, e, assim fazendo, produz a própria efemeridade que sempre foi fundamental para a experiência da modernidade. Ela se torna um meio social, de produção do sentido de

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horizontes temporais em colapso de que ela mesma, por sua vez, se alimenta tão avidamente (HARVEY, 2001, p. 262).

Um dos fenômenos desta nova investida do sistema capitalista será o

processo de globalização e da intensificação da busca de novos mercados por

empresas que se tornam cada vez mais transnacionais. Não só a intenção é

restabelecer o derrame de ofertas de produtos, mas também desestruturar as

organizações sindicais, descentralizando as ações empresariais que se dirigem

a novos territórios no intuito de explorar seus recursos humanos e naturais.

O atual movimento de globalização decorre de uma reconfiguração do domínio dos capitais na ordem mundial contemporânea neste último quarto de século. Para além da atual revolução tecnológica, assiste­se a um movimento de concentração e internacionalização do capital, de regionalização do mundo em blocos econômicos, de mudanças na cadeia produtiva, de substituição de matérias­primas, de restruturação e racionalização empresarial, de produção de subjetividades, baseando­se a economia, cada vez mais, na produção de conhecimento. (MANCE, 1998)

O movimento de globalização, desta forma, está vinculado a uma

estratégia empresarial instrumentalizada por novos meios técnicos

comunicacionais e pela intensificação da produção do conhecimento. Insere­

se a isso, um novo panorama das relações de poder globalizado, onde

empreendimentos transnacionais dominam de forma hegemônica os

enquadramentos econômicos e influenciam de forma mais veemente as

esferas políticas e sociais.

A tendência de tratar a questão econômica como aspecto supra­

predominante inseriu­se em nosso meio. Destaca­se a isso, a possibilidade das

"modalidades audiovisuais e massivas de organização da cultura...” em serem

simulacros “... subordinados a critérios empresariais de lucro, assim como a um

ordenamento global que desterritorializa seus conteúdos e suas formas de

consumo" (CANCLINI, 1996: 52­53). Para que isso aconteça, os negócios,

estimulados pelo acirramento da concorrência entre capitais mundializados,

acabam promovendo fortes tendências de direcionar e criar os desejos, as

demandas dos sujeitos, intensificando também sua intervenção nos gostos e se

apropriando de culturas e tradições, revertendo­as a seus interesses. A

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semiótica, magnetismo moderno de jogos de palavras e imagens que induzem

o público consumidor, incorporada às peças publicitárias, forma estas

tendências e serve como poderosa ferramenta na implementação do consumo

e na estratégia sempre renovada do maior giro e descarte de mercadorias

(MANCE, 1998).

O consumo­descarte­consumo talvez seja o esquema que represente de

forma mais fidedigna o aspecto propulsor por excelência desta nova etapa do

capitalismo, que busca renovar­se a partir de suas estafas com a divulgação de

seus signos visando o consumo individual ampliado, influenciando com isto as

relações sociais previamente estabelecidas.

No domínio da produção de mercadorias, o efeito primário foi a ênfase nos valores e virtudes da instantaneidade (alimentos e refeições instantâneos e rápidos e outras comodidades) e da descartabilidade (xícaras, pratos, talheres, embalagens, guardanapos, roupas, etc.). A dinâmica de uma sociedade “do descarte”, como a apelidaram escritores como Alvin Toffler (1970), começou a ficar evidente durante os anos 60. Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos (criando um monumental problema sobre o que fazer com o lixo); significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser (HARVEY, 2001, p. 258).

A forma desenfreada que sustenta a ótica de produção de mercadorias e

mantém o sistema de giros das mercadorias perfaz um circuito de alto

consumo, relegando ao meio ambiente e aos locais de consumo o ônus dos

danos ambientais, seja na extração intensiva de matéria­prima da natureza,

seja pelo destino inadequado dos materiais que não têm mais utilidade à

indústria e ao consumidor.

As sociedades encontram uma ordem de fatores que suscita extrema

preocupação com a sustentabilidade do planeta como um todo. Se os países

intermediários na escala do desenvolvimento econômico, como a Índia, país

bastante populoso, consumissem como alguns países ditos desenvolvidos,

como, por exemplo, os Estados Unidos da América, um profundo colapso

ambiental seria iminente diante da multiplicação de agentes poluentes e da

extinção de certos recursos naturais. Fenômenos sintomáticos disto, como o

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“efeito estufa”, já são perceptíveis como formas concretas de desastres

ambientais globais.

Embora o aumento de trabalhos científicos e ações de organizações

sociais sejam numerosos, uma consciência ecológica mais ampla e efetiva que

demova os infortúnios da degradação ambiental está longe de ser atingida.

Espera­se que se construa antes que a escassez e o acirramento do conflito

gerado por ela sejam os únicos a impulsionar a mudança desse “erro

epistemológico” a que estamos submetidos (FRANCO, 2001, p. 62). Espera­se

que a ocorrência de um consumo não alienado possa se dar pela...

... compreensão de que nele a produção encontra sua finalidade ou seu acabamento e que ele tem impacto sobre todo o ecossistema, isto é, de que o consumo é a última etapa de um processo produtivo e que as escolhas de consumo podem influenciar tanto na geração ou manutenção de postos produtivos em uma sociedade em que se garante a autonomia pública, quanto na preservação de ecossistemas, na reciclagem de materiais, no combate à poluição ou na promoção do bem­estar coletivo da população de sua comunidade, de seu país e do planeta. (MANCE, 1998)

Desta forma, em relação aos resíduos sólidos descartáveis, realce deste

trabalho, observa­se um grande despreparo das sociedades em compreender

que o destino de seus resíduos são parte do consumo e que deve ser pensado

como fonte alternativa do próprio consumo, condição, inclusive, revigoradora

do trabalho e da dignidade para muitas pessoas que sobrevivem da reciclagem

dos resíduos sólidos atualmente. Novas práticas de trabalho com os resíduos

sólidos podem ser pensadas buscando o seu aprimoramento e qualificação,

pois é...

...gravíssimo o quadro social que envolve a presença de crianças, adolescentes e adultos vivendo no e dos inúmeros lixões e muitas vezes em aterros sanitários controlados. Estas pessoas coletam alimentos e materiais recicláveis para daí extraírem sua sobrevivência. São pelo menos 35 mil crianças em lixões e uma estimativa de 200 mil a 800 mil catadores trabalhando em depósitos a céu aberto e nas ruas em todo o país. (GRIMBERG, 2005, p. 12)

Mediante as condições acima referidas, são poucas as ações dos

governos referentes aos investimentos na reciclagem de materiais, sendo a

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tônica das políticas a geração de verdadeiros lixões a céu aberto em várias

cidades do mundo.

Hoje, no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico ­ PNSB, realizada em 2000 pelo IBGE, coleta­se diariamente, cerca de 125.281 mil toneladas de resíduos domiciliares, sendo que 47,1 % dos mesmos vão para aterros sanitários. O restante, 22,3%, segue para aterros ditos controlados e 30,5% para lixões. Uma parcela mínima (nem contabilizada na pesquisa) é coletada seletivamente e destinada para a reciclagem. Cabe salientar que os dados referentes à destinação para aterros sanitários são passíveis de revisão, inclusive pelo IBGE, conforme matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo (28/03/2002): “os informantes (prefeituras) podem ter sido demasiadamente otimistas”. (GRIMBERG, 2005, p. 11).

Assim, ao se pensar em políticas públicas relativas à saúde e ao meio

ambiente, por exemplo, necessariamente deve ser apontada a matriz de

produção e consumo a que se está inserido como aspecto relevante a ser

trabalhado pelas políticas. Deve­se estar consciente que os recursos naturais

são esgotáveis e que as gerações futuras dependerão deles, bem como intuir

uma boa utilização dos espaços, revigorando os ambientes e reutilizando os

materiais recicláveis, sem a degradação das condições de trabalho de quem

executa a reciclagem.

Não bastam apenas saídas unilaterais ao destino dos resíduos sólidos,

mas se deve buscar medidas articuladas e complementares. As possibilidades

de materiais serem, de certa forma, reaproveitados são uma condição positiva

das políticas públicas. Mesmo porque, a partir do trabalho agregado de

inúmeros trabalhadores que vivem da reciclagem destes materiais, possa­se

adquirir com o tempo um maior valor e senso de responsabilidade por parte de

toda a sociedade, onde se descubra qual a melhor forma de reutilizar certos

materiais. O fator de preservação ambiental torna­se aí uma questão de

consciência e prática social sem precedentes, atingindo a dimensão temporal e

espacial do hoje e do amanhã, assim como uma questão de justiça social e

melhores condições de vida a uma grande parcela da população.

Repensar as práticas a partir dos referenciais culturais das

comunidades, introjetando os problemas de ordem global, é imprescindível

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para que se alcance outros patamares de organização e configuração de

políticas públicas e de ordenamento territorial. Para isso, os municípios,

invólucros territoriais onde se apresentam os problemas sociais e ambientais

em toda sua concretude, devem estar, a partir de seus cidadãos e do poder

público, disponíveis a discutir as formas de organização que se quer

estabelecer.

Um primeiro passo talvez seja conhecer a realidade para poder

diagnosticar possíveis formas de se trabalhar a questão ambiental em

sociedade. Para que isso aconteça, os próprios sujeitos que vivenciam e se

relacionam em seus espaços devem ser chamados para que esclareçam suas

condições de vida e seus desejos.

3. Rio Pardo como área de descarte

O município de Rio Pardo foi um dos quatro primeiros municípios criados

no estado do Rio Grande do Sul, quando da primeira divisão administrativa em

1809. Abrangia praticamente toda a porção oeste e norte do estado. Em 1822,

ocorreu o primeiro desmembramento que diminuiu significativamente o território

municipal. As modificações mais recentes do território do município de Rio

Pardo foram os desligamentos dos municípios de Pântano Grande em 1987 e

de Passo do Sobrado em 1992, bem como uma área anexada pelo município

de Santa Cruz do Sul em 1995. Atribui­se à falta de infra­estrutura, às longas

distâncias entre as localidades e a cidade de Rio Pardo, à indisponibilidade do

executivo municipal em atender às reivindicações destas localidades, as

influências diretas nestes desmembramentos. Esta perda de território também

está associada à identidade particular destes territórios desmembrados.

(RAUBER, 2004).

Atualmente, segundo dados da Fundação de Economia e Estatística ­

FEE e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ­ IBGE, o município de

Rio Pardo, possui uma área 2.050 km², com uma população de 37.783

habitantes, sendo que 26.041 residem na área urbana, divididos em onze

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bairros, sendo que 11.742 habitantes residem na área rural, distribuídos em

sete distritos. A sede do município está localizada junto à confluência dos rios

Pardo e Jacuí, esses dois importantes rios cortam o município e formam

diversas e pequenas ilhas, lagoas e praias. Ambos os rios têm sérios

problemas de degradação ambiental. O rio Jacuí, por exemplo, sofre com os

efeitos de contaminação e poluição, fruto do depósito de lixo urbano de Rio

Pardo, disposto inadequadamente em área próxima a sua margem ­

aproximadamente 300 metros.

Os principais fatores que influenciam a produção de resíduos sólidos

urbanos são: o tamanho da população, a taxa de urbanização, a variação

econômica e, principalmente, o grau de consumo dessa população. Ao tratar

da gestão dos resíduos sólidos na região do Vale do Rio Pardo, onde se

encontra Rio Pardo, Silveira observa que...

...a gestão ou a inexistência de gestão dos resíduos sólidos não é diferente em relação às outras regiões do país. Quando do Censo do IBGE, em 1991, cerca de 60% dos resíduos sólidos urbanos eram coletados direta ou indiretamente, na sua maioria, e eram depositados a céu aberto. (....) cabe lembrar que esse índice reflete apenas o percentual de resíduos que são afastados de sua fonte de produção, ou, ainda os que são retirados da vista da população, através da coleta municipal de lixo. (SILVEIRA, 2001, p. 310)

Esta autora aponta que a simples retirada dos resíduos não elimina os

seus efeitos, dada a dinâmica do processo de urbanização, a cidade não tarda

em chegar nas proximidades dos depósitos de lixo gerando conflitos com as

pessoas que habitam ou convivem no local. Essa é uma constante em muitas

situações em que ocorre a disposição dos resíduos a céu aberto em áreas

próximas a periferia urbana. Em função dessa destinação inadequada dos

resíduos urbanos aos lixões, que não adotam procedimentos técnicos

adequados, estes se tornam focos de contaminação do meio ambiente,

principalmente, dos recursos hídricos. No caso do lixão de Rio Pardo, Silveira

ainda afirma:

O município de Rio Pardo se depara com impactos sociais e ambientais causados pelo lixão, localizado próximo à Vila do Asseio, às margem do rio Jacuí e que serve de subsistência a diversos

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catadores, inclusive. Alternativas a esse respeito já estão sendo viabilizadas com o tratamento em uma unidade de triagem em nova área. (SILVEIRA, 2001, p.314)

A prefeitura municipal nesse sentido tem se manifestado apenas a partir

de pressão do Ministério Público, conforme reportagem do jornal Gazeta do Sul “Ações para recuperação do antigo lixão substituem multas” (de 16 e

17.07.2005), o qual noticiou que representantes da prefeitura e da Fundação

Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM) tinham assinado um termo de

compromisso prevendo adoção de medidas e condicionantes técnicos em

relação à degradação da área do antigo depósito de resíduos. Na mesma

matéria jornalística, informa­se que o Secretário de Meio Ambiente do

município manifestou a intenção da prefeitura, afirmando que iria elaborar um

projeto com medidas visando à recuperação do antigo lixão da cidade.

Outra reportagem da Gazeta do Sul, “Acordo proíbe despejo de resíduos no lixão” (19.02.2005 ­ Pág.18), fala do impedimento da prefeitura de Rio Pardo de continuar a colocar lixo no antigo depósito, como vinha acontecendo ao

longo do tempo, “há mais de quarenta anos”. A mesma reportagem trata de

uma reunião dos representantes da prefeitura com a promotoria pública e da

participação de moradores de bairro próximo do local. Diz a matéria: “a reunião teve a participação de moradores no Bairro Jardim Boa Vista, que entraram com uma ação por causa das queimadas no lixão e o descarregamento de material na área”.

O que se observa nessas reportagens é uma mobilização de uma parte

da sociedade na busca da solução para o problema e tendo em vista as

conseqüências do lixão, bem como, a participação do Ministério Público que

neste sentido vem se configurando como um agente importante na exigência

do cumprimento das legislações ambientais vigentes.

No entanto, essa não é uma questão recente e sua resolução talvez

ainda esteja longe de ser solucionada. Como já mencionado, o depósito de

resíduos é muito antigo e os embaraços da Prefeitura com a Justiça já

perfazem mais de uma década. A questão do antigo depósito de resíduos de

Rio Pardo se arrasta desde 1992, quando em 27 de maio daquele ano foi

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instaurado um inquérito civil público para apurar o funcionamento irregular da

área. (GAZETA DO SUL, 16 e 17.07.2005)

A legislação ambiental do município de Rio Pardo, encontrada até o

momento, mostrou­se de certa forma insuficiente para uma adequação legal

que subtraia os problemas descritos. Sobre o tema dos resíduos sólidos e

coleta seletiva não foi encontrado nada em específico. Em linhas gerais, na Lei

Orgânica do Município encontram­se algumas referências esparsas sobre meio

ambiente (Arts. 78, 80, 93 e 94). A Lei Orgânica faz referências ao tema meio

ambiente amparando­se fundamentalmente na Constituição Federal.

A Lei Municipal n.º 1.120 de maio de 2001, que criou a Secretaria de

Meio Ambiente, no Art. 2º, onde define as atribuições da Secretaria, chama

atenção quando se refere de forma particular ao uso de agrotóxicos nas

lavouras. Não menosprezando os impactos dos agrotóxicos, mas considera­se

que a referência exclusiva a esta questão, todavia, torna­se estranha e

limitada. Assim, o texto da Lei se refere a um problema ambiental específico e

deixam vagas outras questões importantes que compõem as preocupações

ambientais.

Diante disso, entende­se que, independente das características sócio­

econômicas e ambientais, o município deve buscar medidas que atendam

práticas adequadas que digam respeito ao meio ambiente e, por sua vez,

reconheça os problemas buscando alcançar um melhor padrão a esta questão.

Neste sentido, as soluções mais praticadas nem sempre são as mais

adequadas, como a abertura de novos lixões longe da cidade, o que

verdadeiramente posterga os problemas mais imediatos, degradando outras

áreas mais afastadas de sua população.

4. Área do Lixão e as Falas da Comunidade Envolvida

Esta seção visa contrastar as percepções dos moradores do município

de Rio Pardo, em especial, aqueles que estão próximos ao antigo Lixão do

Município ­ que teve suas atividades encerradas há aproximadamente um ano

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– quanto ao seu ambiente de moradia e aspectos concernentes a ele. Através

da análise das falas dos moradores do entorno pode­se compreender melhor o

contexto e as particularidades que constroem as diferentes percepções,

conhecimentos, modos de vida, dificuldades e perspectivas dos sujeitos locais.

Entrevistou­se para isso, um grupo de doze (12) pessoas, sendo alguns antigos

trabalhadores do Lixão e outros que apenas vivem bem próximos da antiga

área destinada aos resíduos deste município, sendo todos indistintamente

moradores da Vila do Asseio.

4.1 O depósito de resíduos na área continua

Na relação triangulada entre cidade, consumo e descarte, capitaneada

pela busca da diminuição do tempo de giro das mercadorias dentro do sistema

capitalista de produção, desenvolveu­se entre nós, grosso modo, um sentido de autonomia para nos desfazer de forma inadequada daquilo que

consideramos sem nenhum valor. Os poderes públicos também se tornam

omissos e não executam ações respaldadas por certas legislações

ambientalistas em vigor (Art.1º da Lei N.º. 9.921, de 27 de julho de 1993, dos

Resíduos Sólidos do Estado do Rio Grande do Sul), como a implantação da

coleta seletiva, por exemplo, muito menos realizam campanhas eficientes que

busquem conscientizar a população da necessidade de práticas adequadas de

gestão de seus resíduos.

A lógica do consumo renovado e do giro das mercadorias é refletida nos

depósitos de resíduos. Um exemplo disso é a forma como se relaciona a

sociedade rio­pardense com o depósito de resíduos sólidos que foi desativado

formalmente, mas que, segundo alguns moradores, ainda recebe muitos

resíduos deixados de forma clandestina por empresas e pessoas que mantêm

a prática de depositar resíduos no tradicional local de descarte da cidade.

Permanece assim, o local com seu fator característico de zona de descarte de

resíduos da população em geral. Segundo relato de um morador do local:

“Ainda colocam lixo no Lixão, vem caminhão particular que vem, de loja, de empresa de arroz. Ninguém controla”. (Pescador Aposentado, 73 anos).

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Pode­se constatar, em visita ao local, que, realmente, ainda recebe

muitos resíduos, muitos dos quais de origem comercial, como invólucros de

materiais fotográficos, cascas de arroz etc. Além do depósito de resíduos, não

podemos deixar de destacar o corte de árvores da mata ciliar entre o rio Jacuí

e a área do lixão. O corte de árvores atende o consumo de lenha a ser

queimada, o que frisa ainda mais a degradação ambiental daquele local e a

falta de preocupação de quem depreda este ambiente, bem como o descaso

do poder público em fiscalizar uma área que para a maioria das pessoas tem

pouco valor.

A situação de quem vive ali e trabalhava no lixão ficou ainda mais crítica,

pois além de o local ainda estar em péssimas condições, com o lixo

inaproveitável espalhado em sua área, gerando mau cheiro e atraindo insetos,

a forma regular do depósito de resíduos foi terminada, o que deixou as pessoas

sem atividades que lhes gerassem renda no local. Muitos se encontram com

dificuldades de manutenção de suas famílias, e percebe­se a indignação e o

desamparo destas pessoas.

4.2 Contradição entre os moradores a respeito da saída do Lixão.

O senso de individualidade e a falta de preocupação pelo meio ambiente

corroboram com que a sociedade não estabeleça também um diálogo de

responsabilidade sobre os problemas ambientais e de geração de trabalho

àqueles que não encontram alternativas e que viviam da cata de materiais no

lixão. Neste caso, acabam sendo importantes apenas as necessidades

imediatas dos indivíduos, embora vivendo em comunidade. Nos dizeres de um

morador, a saída do lixão naquele local “para uns foi bom, para outros foi ruim. Para nós foi ruim, uns não gostavam do cheiro do Lixão” (estudante, 14 anos que estava caçando pequenos animais para comer nas proximidades do lixão

com seu primo de 12 anos).

Desta forma, há pessoas que necessitam prover suas subsistências

através da coleta dos materiais descartados no lixão e até mesmo da caça de

pequenos animais encontrados entre os resíduos. De outro lado, há pessoas

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que moram nas bordas do Lixão e que possuem outras formas de renda,

desconsiderando a necessidade daqueles que dependem da reciclagem dos

resíduos para viver, preocupando­se apenas em solucionar seus problemas

imediatos advindos do mau cheiro dos resíduos acumulados no local. Pode­se

identificar esta atitude da população quando alguns referem que “a maioria das pessoas não gostavam do lixão, pelas moscas e pelo cheiro... foi bom tirar o lixão dali...”. (Comerciante, 46 anos).

Embora a ação dos moradores para o fechamento do lixão tenha sido

através de ofício abaixo­assinado, isso não caracteriza a existência de um

debate dos moradores baseado em princípios de cooperação entre os

mesmos. A ação apontada para o fechamento do lixão foi impulsionada pela

necessidade imediata em resolver os problemas dos moradores que se

consideravam prejudicados pela existência dos resíduos no local. Por

conseguinte, não houve um debate aprofundado entre os envolvidos para

solucionar os problemas de fundo, tais como o desemprego e a degradação do

meio ambiente local, limitando­se a apontar os problemas ocasionados pelo

odor, pela fumaça e pelas moscas que invadem as casas. A simples alternativa

de fechar o lixão oficialmente e transferi­lo para outro local demonstra a falta de

preocupação social com o desemprego de alguns e de preocupações

ecológicas, mesmo porque os impactos dos resíduos que permanecem no local

ainda são grandes.

Acho que o lixão saiu dali por um abaixo­assinado, não sei. A maioria das pessoas não gostava do lixão, pelas moscas e pelo cheiro. Foi bom tirar o lixão dali. Ainda continuam os restos lá. Faz tempo que eu não vou pra lá. (Comerciante, 46 anos).

O lixão estava naquela área há 40 anos e um grande número de

pessoas realizava ali, informalmente, a cata e triagem de materiais recicláveis e

sua posterior venda a uma pessoa que revende os objetos às indústrias que

reutilizam os materiais coletados. Com o “fechamento” do lixão e a perda da

freqüência regular de resíduos ali depositados, algumas pessoas que

dependiam daquele meio para auferir alguma renda, sofreram graves

conseqüências, dentre elas a falta de perspectiva de uma atividade geradora

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de renda e a sua subseqüente dificuldade de manutenção de suas condições

de vida. A forma abrupta com que se parou de depositar os resíduos na área,

para algumas pessoas foi um verdadeiro “fracasso”, pois dependiam daquilo

para viver, nos dizeres de alguns. Segundo um dos moradores, um de seus

vizinhos foi embora, inclusive, porque ali não tinha mais condições de viver

sem o depósito de resíduos, configurando assim uma migração influenciada

pela dinâmica do trabalho e de condições de sustentabilidade dos indivíduos.

Uma antiga moradora do local faz uma avaliação textual do

“fechamento” do lixão:

“O lixão quando eu cheguei aqui já tava há muitos anos ali. Mais do que eu tô aqui. Minhas guria trabalharam muito tempo lá juntando pet, latinha, papelão pra poder viver, porque é difícil viver em Rio Pardo. Tem muita gente desempregada aqui. Foi ruim tirar o lixão para quem trabalhava lá”. (Moradora, 64 anos)

O município de Rio Pardo, na tentativa de solucionar os problemas

oriundos do lixão, alguns já mencionados pelos próprios moradores, e por

pressão da FEPAM e Ministério Público, começou a transferir os materiais

descartados para o município de Minas do Leão, onde se encontram

desativadas algumas jazidas de carvão que agora servem como depósitos de

resíduos provenientes de vários municípios. A Prefeitura de Rio Pardo, além de

desconsiderar os custos com o recolhimento e o transporte do material, acaba

com esta decisão não permitindo que a atividade de reciclagem possa ser uma

alternativa de renda para aqueles trabalhadores que se encontram excluídos

do mercado formal de trabalho.

Para alguns a criação de uma Cooperativa de Catadores no Município, a

COTRALI, não produziu o sucesso esperado visto render pouco aos seus

associados, muito menos de quando se catava diretamente no próprio Lixão.

Com poucos incentivos e muitos catadores no município, o rateio da produção

da COTRALI fica abaixo do esperado pelos catadores, fazendo­os saírem da

Cooperativa, como confirma uma ex­catadora: “Lá na COTRALI dá muito pouco, uns 20 por semana. Lá embaixo, não (no Lixão). Num mês tirava 300, 350, 400, até mais. A gente catava papelão, pet, latinha e o ferro (ex­catadora

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do Lixão, hoje faz faxina em residências, 39 anos).

A política municipal em relação aos resíduos sólidos do município se

torna desta forma ineficiente, pois além de levar os resíduos para um aterro

sanitário distante, sem a possibilidade de serem reutilizados muitos dos

materiais jogados no lixo, deixa um grande número de pessoas sem a atividade

que lhes serviu como meio de renda.

As dificuldades com a falta de trabalho no Município fizeram um morador

sugerir para o Prefeito de Rio Pardo que falasse com o Prefeito do município

vizinho, Santa Cruz do Sul, cidade pólo da região, para que este consiga

empregos às pessoas que faziam a triagem dos resíduos do antigo lixão junto

às grandes empresas do setor fumageiro da região.

O problema é as dificuldades, já que não tem serviço. Eu mesmo tive com o prefeito Joni pedindo pra ele, que ele tivesse a santa misericórdia com este pessoal aqui tudo. Que ele fosse falar com o Prefeito de Santa Cruz, que ele arrumasse pra esta gente. Para uns eles arrumaram, começaram a chamar nas fábricas de fumo. Então uns pegam outros não pegam. Então nesta casinha ai, tem dois rapaz, mas eles não podem trabalhar, não tem, não tem. E a mãe deles é deficiente. (Aposentado, 70 anos)

As dificuldades desta população de baixa renda acabam ficando

indiscutivelmente mais delicadas com a saída do lixão em termos de recursos

econômicos. Evidenciava­se que a manutenção do lixão, da forma como

estava instalado no local era totalmente inadequada, como ainda permanece,

pois os resíduos ainda continuam a céu aberto e sem previsão de

reestruturação da área, mas para alguns era a única condição de trabalho que

dispunham.

4.3 Saúde e meio­ambiente

A influência da noção do consumo e descartabilidade de materiais

consubstancia a prática dos depósitos de resíduos, como acima frisado, sendo

estes espaços de descartabilidade cancros reprodutores de degradação

ambiental causando impactos de toda ordem. O espaço de descarte da

sociedade rio­pardense reproduz a noção destes problemas, independente da

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legislação que regula certas ações. Na prática, as legislações ambientais se

tornam inócuas e sem poder de reação num estado desaparelhado, com pouco

aporte executivo e nenhum projeto político para tal fim.

De certa forma, as pessoas notam o impacto ambiental que é refletido

através do lixão. Salientam o mau cheiro, o grande número de moscas e

mosquitos e a fumaça proveniente do lixão como fatores importantes e que

prejudicam seu ambiente. Embora alguns não se importem com isso, estando

suas preocupações mais voltadas ao dia­a­dia, na luta pela sobrevivência e

outras dificuldades, sem problematizar as questões de sustentabilidade

ambiental do lugar no médio e longo prazo.

O problema das enchentes é um agravante, porque impacta de forma

muito concreta a vida dos indivíduos. O lixão, situado numa área de várzea,

recebe as águas que transbordam do rio e levam os resíduos até bem perto

das casas e ao retornarem ao rio trazem uma grande quantidade de volta ao

leito do rio, poluindo o local de moradia e os recursos hídricos, atraindo ratos e

cobras para bem perto das moradias e “estragando”, inclusive, “a pescaria do pessoal” (Pescador, 25 anos).

Quanto aos males e doenças que o lixo pode trazer a saúde das

pessoas as opiniões são bem opostas. Uns salientam alguns males sofridos

por outras pessoas, nunca a si próprios; outros dizem que nunca aconteceu

nada, que “... sujeira não mata ninguém. Se sujeira matasse muita gente teria morrido”. (Aposentado, 73 anos). Talvez esta última referência seja até mesmo uma forma de superação das dificuldades de quem vive próximo ao depósito e

que tenta dirimir seus males através de uma auto­sugestão positiva dos

problemas encontrados.

Pelo desconhecimento dos reais efeitos dos resíduos sobre a saúde

pública, a necessidade de ser forte neste ambiente ou de se fazer forte é

condição viável àqueles que ainda se dispõem a conseguir certos

estratagemas que enfrentem o ambiente inóspito em vivem, seja pelas

condições naturais que ali são aportadas ou, principalmente, pela falta de

integração entre os que ali vivem e se encontram em estágios de

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vulnerabilidade social bastante avançados.

Considerações finais

Implementar políticas públicas referentes ao meio ambiente é se dispor a

enfrentar grandes desafios de nosso tempo. Estes desafios carregam uma

transversalidade e complexidade de temas importantes que dizem respeito à

cultura das comunidades, às relações sociais, às formas de trabalho, à

sustentabilidade do planeta e de gerações futuras. Enfim, dizem respeito ao

modo de ser e vir a ser dos indivíduos vivendo em sociedade, com toda a

bagagem de suas construções históricas, relações de poder e do avanço

proeminente da ciência e de novas tecnologias.

O panorama de Rio Pardo que buscamos retratar aqui nos introduz

numa problemática local da complexidade dos eventos e dos atores sociais

inseridos em uma determinada localidade. Os fenômenos de ordem global e do

sistema capitalista de produção por suas amplitudes, como não poderia ser

diferente, intercedem na realidade local e referendam alguns efeitos. Por outro

lado, a dinâmica local estabelece dentro do jogo de relações suas próprias

dinâmicas.

A área de descarte de Rio Pardo, como a de outras cidades brasileiras,

representa uma lógica inconseqüente e alienante por parte da cadeia de

produção e consumo da sociedade, oriunda de uma plataforma de consumo

sem a devida preocupação com o que, com o como, com o porquê de se

consumir; mais ainda, com o que fazer com aquilo que resta do que foi

consumido. A lógica do mercado induz e rege esta falta de iniciativa da

sociedade. Pode­se, a partir desta condição, afirmar que o desenvolvimento

futuro do planeta está em risco caso mantenha­se as formas atuais de

produção/consumo, bem como o descarte e o não aproveitamento de materiais

já utilizados.

Vigora, então, a necessidade das sociedades se repensarem e

buscarem estabelecer em suas práticas a noção de responsabilidade com

lastro de poder consubstanciado no capital social e político acumulado. Que

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esta responsabilidade se dirija a todos com um fundamento particular de

participação preocupada com os aspectos humanos, sociais e ambientais. A

construção de canais de debates e diálogo dentro das comunidades, a

interação ampla, o levantamento de assuntos relevantes e que dizem respeito

ao cotidiano das pessoas, devem ser lançados ao uso comum dos sujeitos que

se encontram afastados. Não basta apenas conhecimento técnico para isso,

mas vontade e capacidade política que agregue os indivíduos ao diálogo para

que o capital social seja construído na base das relações. Deve­se para isso,

discutir temas que digam respeito a todos e a cada segmento, estabelecendo

uma agenda de ações referentes, também, àqueles determinados grupos de

maior vulnerabilidade social.

Uma sociedade informada, educada e sensibilizada pelas causas sociais

e ambientais é uma sociedade cidadã, com possibilidades de criação de

aportes de reciprocidade e confiança, de uma homogeneidade cívica dentre os

diferentes, cultural e socialmente. Só assim poderemos combater a cultura do

desperdício e reduzir nossas áreas de descarte. Preconizamos que é só a

partir disto que chegaremos a projetar um desenvolvimento social e ambiental

sustentável, o qual venha a pressionar as esferas restritivas do mercado a

arrefecerem suas estratégias e, também, a conduzir as esferas do poder

público a programarem políticas condizentes aos anseios sócio­ambientais das

comunidades.

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