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SUMARIO

Apresentação .......................................................................................................................4

O ENCANTO DA TEORIA: LITERARIEDADE COMO RECURSO PARA A ANÁLISE ESTRUTURAL DE LA BELLE ET LA BÊTE - Danielle Alves da Rocha (UNIFESP); Ana Luiza R. Ghirardi (UNIFESP) ......... 11 A POESIA NO JUDICIÁRIO – CONTESTAÇÃO E DECISÃO - Maria Cecília Junqueira (UNICSUL) .... 35 O ABISMO E A MUDANÇA: UMA ANÁLISE ESTILÍSTICA DO POEMA “POR MOTIVO DE MUDANÇA” DE ANTÔNIO BARRETO - Carla Candido Gomes de Andrade (UNICSUL) ............... 45 GERAÇÃO, DE GILBERTO MENDONÇA TELES: UMA LEITURA ESTILÍSTICA - Solange Cristina Ferreira (UNICSUL); Guaraciaba Micheletti (UNICSUL/USP) ................................................... 61 DO LOCAL PARA O GLOBAL: DISCURSO, ARGUMENTAÇÃO E A CENTRALIDADE DA CULTURA - Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui (UEPA/USP/CAPES); Rita de Nazareth Souza Bentes (UEPA/USP/CAPES) ............................................................................................................. 69 A CONSTRUÇÃO DO ETHOS – UMA LEITURA DA REPORTAGEM PAQUERA TERCEIRIZADA DA REVISTA PIAUÍ - Mayara Evangelista Alegre (UNICSUL); ........................................................ 85 GÊNERO, INTERAÇÃO SOCIAL, MEMÓRIA E IDENTIDADE: UMA ANÁLISE DOS CONVITES DE CASAMENTO - Márcia de Oliveira Lupia (UNICSUL) ............................................................. 101 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER DURANTE O PERÍODO ELEITORAL: ANÁLISE DE DUAS CAPAS DA REVISTA VEJA - Jéssica Cristiane P. da Silva (UNITAU); Miriam Bauab Puzzo (UNITAU) ..... 118 PUBLICIDADE: ESPELHO ESPETACULAR DE NOSSA VIDA EMPOBRECIDA - José Adson Vasconcelos (UNICSUL) ..................................................................................................... 133 LÍNGUA PORTUGUESA NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR: UMA ABORDAGEM BAKHTINIANA - Agildo Santos S. de Oliveira (USP/CAPES) ................................................... 157 ORALIDADE E ENSINO MÉDIO: QUE ATIVIDADES SÃO PROPOSTAS NO LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS E PARA QUÊ? - Andréa Gomes de Alencar (USP) ............................................. 175 ENTENDENDO O ENSINO DA METÁFORA E DA METONIMIA - Maria Inês Batista Campos (USP); Isabella Duarte Chaves (USP)............................................................................................. 191 PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA NA TESSITURA DA HISTÓRIA/MEMÓRIA EM MATERIAIS DIDÁTICOS DO MST - Gesualda de Lourdes dos S. Rasia (UFPR); Luciana Vedovato (UNIOEST PR) ........... 213 ORGANIZADORES E AUTORES............................................................................................ 227 LINKS IMPORTANTES.................................................................................................................234

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Apresentação

Percursos e trajetórias sobre discurso, estilo e ensino

O enunciado é pleno de totalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de um

enunciado. (BAKHTIN, 2016, p. 59). A análise estil ística, que abrange todos os aspectos do estilo, só é possível como análise de um enunciado pleno e só naquela cadeia da comunicação discursiva da qual esse

enunciado é um elo inseparável. (BAKHTIN, 2016, p. 69).

O volume 5 da série Cadernos de Linguística: Pesquisa em Movimento tem

como tema: Discurso, estilo, ensino: diferentes práticas de linguagem, acolhendo

trabalhos de pesquisa que abordam a tríade que se manifesta no título e, na maioria

das vezes, entrelaçando esses elementos.

Na verdade, tudo de que se trata é discurso e todo ele se manifesta por um

estilo. No primeiro momento, pode-se pensar num estilo relacionado ao gênero da

composição, mas sempre se caminha para um ato individual de fala. Quanto ao ensino,

ele está em nossas ações diárias, assim, há alguns artigos em que a opção por

privilegiá-lo está mais presente e ainda que se discorra sobre Língua Portuguesa, a

centralidade volta-se para questões discursivas. São os modos de utilização da

linguagem e suas práticas observadas sob o escrutínio dos olhares perspicazes dos

pesquisadores.

Um livro é também uma narrativa de percursos, de histórias de pesquisas ou de

trajetórias, desse modo Cadernos de Linguística: Pesquisa em movimento têm buscado

contemplar a diversidade de estudos que se dedicam à linguagem em diferentes

modalidades de discurso e de seus gêneros. As epígrafes escolhidas para esta

introdução foram retiradas da nova edição brasileira de Os gêneros do discurso e os

trechos destacados sinalizam a importância da análise estilística para os estudos não

só literários, mas se estendem aos textos jornalísticos, de divulgação científica ,

artísticos e não especificamente só a poesia. Nessa perspectiva, o estilo se articula

constitutivamente com as relações dialógicas da linguagem, o que permite estabelecer

fronteiras incluindo o autor e seus múltiplos discursos.

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Neste volume 5, os artigos estão agrupados em dois eixos: 1. O discurso e suas

práticas em diferentes gêneros reúne sete artigos que analisam gêneros públicos

variados; 2. Práticas de linguagem e ensino. O primeiro abrange práticas e seus estilos

congrega quatro textos e mantém a diversidade de enfoque, voltando-se,

especialmente, para as discussões relativas ao ensino. Cada texto, você, leitor poderá

acompanhar os estudos em desenvolvimento ou já finalizados e análises que permitem

um aprofundamento do tema.

Assim temos o texto de Danielle Alves da Rocha e Ana Luiza Ramazzina

Ghirardi, analisando a estrutura discursiva do conto de fadas La Belle et la Bête

(BEAUMONT, 1756), trazendo uma leitura renovada das tensões narrativas que nele se

encontram. No artigo, estão apontadas a literariedade e os elementos constituintes da

narração e da narrativa, com apoio na distinção estabelecida por Genette (1972). A

primeira (récit) designa o ato narrativo produtor, é ação de narrar, o que acontece no

momento que é emitido ou lido um texto. Já a narrativa (diégèse) é o enunciado, o

discurso ou texto narrativo em si, no qual o tempo da enunciação e sua percepção

narrativa podem ser diferentes daquela apresentada na narração. As autoras

consideram também apropriações literárias de desdobramentos que ocorrem, via

intertextualidade, ao longo do tempo; buscam, ainda, apoio teórico em Roland Barthes

(1972, 1976), Gérard Genette (1972) e Antoine Compagnon (2010) para tecer

considerações sobre releituras da obra.

Na esteira do discurso poético, um estudo ligado ao jurídico, mas que reúne

poesia é analisado por Maria Cecília Junqueira. Trata-se de “A poesia no judiciário –

contestação e decisão” em que a autora focaliza gêneros que, mesmo tendo um

enunciado normalmente estável, como contestação e decisão judiciais, permitem a

inserção de marcas pessoais. Para tal, utiliza o processo 5030866-83.2013.827.2729,

da 4ª. Vara Cível, Comarca de Palmas, cuja contestação estava em versos, e para a qual

o juiz deu sua resposta também em versos. Assim é possível discutir os elementos

constitutivos dos gêneros, desde sua função, espaço de circulação, a posição dos

enunciadores, temáticas etc. indicando como deslocamentos são compreendidos. Essa

discussão também permite a compreensão das relações de estabilidade e instabilidade

apontadas por Bakhtin (2003, p. 262), em sua reconhecida formulação: “cada

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enunciado é particular e individual, mas cada tipo de utilização da língua elabora seus

tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do

discurso”.

Aparecem também na esteira do discurso poético, dois trabalhos práticos, que,

mesmo não tratando diretamente da questão do ensino, podem ser utilizados como

auxiliares no estudo da leitura de textos. O primeiro “O abismo e a mudança: uma

análise estilística do poema ‘por motivo de mudança’ de Antônio Barreto”, focaliza

traços do estilo do autor, relacionados ao contexto de produção. Carla Candido Gomes

de Andrade considera o fato de o poema ter sido publicado primeiramente na série na

“Revelações do abismo” para apontar que o poeta construiu uma ideia de mudança

difícil e abismal, e que é o eu lírico o principal objeto da mudança apresentada. Ao

longo de seu texto, a autora, descreve e interpreta elementos do enunciado: sonoros,

lexicais, sintáticos e semânticos que constituem o poema.

A cada estudo o leitor tem a oportunidade de entrar em contato com novas

análises e seguir o estudo dos recursos expressivos e de produção de sentido do

poema Geração, do poeta goiano Gilberto Mendonça Teles, publicado no livro Plural

de nuvens, de 1984. Esse é o artigo de Solange Cristina Ferreira e Guaraciaba

Micheletti que investigam aspectos sonoros, lexicais, sintáticos e semânticos, além de

intertextuais. A investigação objetiva marcar elementos do estilo do autor, em

especial, sua visão irônica quanto à inserção dos poetas nos movimentos literários do

século XX. Há uma espécie de apelo para uma leitura mais reflexiva e, ainda, que não

haja por parte das autoras intenções pedagógicas, é possível utilizar essa leitura para

focalizar-se os mencionados movimentos literários e suas características.

No campo das reflexões sobre as estratégias argumentativas e o fenômeno da

Centralidade da Cultura, Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui e Rita de Nazareth

Souza Bentes analisam a materialidade discursiva de uma interação entre dois

agricultores, habitantes de uma comunidade ribeirinha do Pará que vive da extração e

do comércio do açaí. Nesse evento discursivo, os interlocutores falam sobre o preço e

o comércio do produto, estabelecendo diversas relações. Utilizando como base teórica

a perspectiva discursiva da argumentação, as autoras descrevem como eles organizam

seus argumentos tendo por base os conhecimentos de sujeitos imersos em um modo

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de vida tradicional e a reprodução de premissas veiculadas pelos meios de

comunicação de massa. Do local para o global, o que se pode observar é um fenômeno

mundial potencializado pelas mídias e que tem reconfigurado a maneira como os

sujeitos, habitantes de grandes centros urbanos ou de comunidades isoladas no

interior do país, em escalas diferentes, interpretam e se apropriam de valores culturas

intercambiáveis.

O leitor encontra uma abordagem na esfera jornalística. Historicamente, os

textos jornalísticos buscam narrar o cotidiano com neutralidade, entretanto, nas

reportagens apresentadas na Revista Piauí, o que Mayara Evangelista Alegre nota é

uma posição mais literária, com interferências dos enunciadores. A autora elegeu,

como objeto de análise, a reportagem “Paquera Terceirizada”, da sessão Esquina, da

Revista Piauí, publicada em janeiro 2015. Partindo do princípio de que todo discurso é

constituído de escolhas que contribuem para a observação do que se representa,

ainda para a percepção das posições subjetivas de quem enuncia, bem como para a

construção da imagem daqueles que estão envolvidos no processo, o objetivo da

autora é verificar como atuam os elementos utilizados para a construção da cenografia

e do ethos discursivo.

Outra possibilidade de gêneros do discurso analisado está em “Gênero,

interação social, memória e identidade: uma análise dos convites de casamento”, de

Márcia de Oliveira Lupia. Ela utiliza a teoria de gêneros de Bazerman e os conceitos

sobre memória e identidade para analisar os pontos de estabil idade e instabilidade

apresentados em quatro convites de casamento (1948, 1985, 2014 e 2015). Os

objetivos dessa análise se prendem ao fato de que a pesquisadora se alia à perspectiva

da escola de estudos de gêneros norte-americana, que, influenciada pela Nova

Retórica e pelos estudos bakhtinianos, se caracteriza pelo interesse na natureza social

do discurso. Com sua análise, a autora constata que os pontos estáveis desse gênero

possuem estreita ligação com a memória e são responsáveis pela identificação de sua

classificação. Já os instáveis são de cunho pessoal e não são determinantes na

identificação do gênero convite de casamento.

Há também uma análise de Jéssica Cristiane Pereira da Silva e Miriam Bauab Puzzo, em

“A representação da mulher durante o período eleitoral: análise de duas capas da

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revista: Veja”. O objetivo central é analisar, de uma perspectiva bakhtiniana, o olhar

que a mídia direciona à mulher durante períodos eleitorais, a partir da verificação das

construções discursivas presentes em duas capas da revista Veja. A análise realizada

indica que as construções discursivas desvelam a ideologia da revista em relação a

mulher. As autoras demonstram que a Veja se utiliza de uma linguagem verbo-visual

carregada de implícitos, na qual deixa transparecer um discurso que questiona a

capacidade das mulheres em tomar decisões políticas, além de corroborar com o

fortalecimento de discursos marcados pela estereotipação e preconceito de gênero.

Na mesma linha, observando linguagem verbal e visual, em Publicidade:

espelho espetacular de nossa vida empobrecida, José Adson Vasconcelos realiza uma

análise discursiva de um dos anúncios publicitários da campanha Contos de Fadas

(2005), da marca "O Boticário, bem como do slogan veiculado durante essa campanha.

Nesse enfoque, o autor busca compreender como se constitui a construção de

sentidos e o processo persuasivo no discurso publicitário da referida marca, a partir da

recorrência à intertextualidade, do acionamento à memória discursiva e da

apresentação de cenas validadas ao coenunciador.

O leitor revisita também a prática escrita, defendida pela versão da Base

Nacional Comum Curricular (BNCC), ainda não aprovada pelo Ministério da Educação,

alicerçada, teoricamente, em Bakhtin e o Círculo, em específico, Ag ildo Santos S. de

Oliveira, em “Língua portuguesa na base nacional comum curricular: uma abordagem

bakhtiniana”, centra uma discussão nos conceitos de enunciado concreto, interação e

gêneros do discurso. O autor trata dos principais conceitos teóricos e observa as

questões políticas envolvidas na proposta. Por fim, salienta a importância do trabalho

com gêneros, considerando as esferas de produção e circulação.

Em “Oralidade e ensino médio: que atividades são propostas no livro didático

de português e para quê?”, Andréa Gomes de Alencar propõe uma reflexão sobre que

concepção de oralidade permeia as atividades propostas no Livro Didático de

Português do Ensino Médio, observando se esse encaminhamento contribui para uma

tomada de posição em relação ao uso efetivo da oralidade em sua prática social. Para

orientar esse percurso, traz como base teórica a noção de gênero do discurso,

enunciado e interação verbal, de Mikhail Bakhtin e o Círculo.Três volumes da coleção

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Português: contexto, interlocução e sentido (ABAURRE, ABAURRE e PONTARA, 2013d)

compõem o corpus, com foco nas atividades orais. Para a autora, os estudos

preliminares nos dão pistas de a exploração pouco aprofundada e efetiva para que o

aluno tenha “voz” nesse nível de ensino.

Os estudos voltados para os manuais didáticos reforçam a tendência do ensino

nos dois últimos artigos.

Em “Entendendo o ensino da metáfora e da metonímia”, Maria Inês Batista

Campos e Isabella Duarte Chaves discorrem sobre a didatização das figuras de

linguagem, em especial, a metáfora e a metonímia na obra Para entender o texto:

leitura e redação, de Platão; Fiorin. A questão que norteou a pesquisa foi compreender

a fundamentação teórico-metodológica das propostas didáticas baseadas nas

correntes da estilística greimasiana. O ponto de partida dessa análise foi recuperar,

resumidamente, os fundadores da estilística do início do século XX, trazendo os

alemães Karl Vossler (1872-1949) e Leo Spitzer (1887 - 1960) na corrente idealista, que

enfatizavam a criação expressiva individual, passando pelo francês Pierre Guiraud

(1912 - 1983) com a concepção de uma estilística da língua ou da expressão (linha

estruturalista do suíço Charles Bally), com ênfase à expressividade do sistema,

chegando ao brasileiro J. Mattoso Câmara Jr., para quem a estilística é a

expressividade da linguagem. Como objeto de análise, foi selecionada a lição 14,

“Metáfora e metonímia”, que se desenvolve do ponto de vista discursivo e sintático-

semântico. Os resultados mostram que as figuras de linguagem visuais, verbo-visuais e

literárias exploram mecanismos de produção de sentido sem reforçar as questões

estritamente gramaticais da língua. Trata-se de uma proposta pioneira e inovadora dos

estudos estilísticos no ensino médio.

“Práticas de resistência na tessitura da história/memória em materiais didáticos

do MST”, Gesualda de Lourdes dos Santos Rasia e Luciana Vedovato analisam como os

registros fundacionais sobre a questão agrária no Brasil constituem-se enquanto tecido

da memória, os quais, por se apresentarem como gestos de resistência, dão

visibilidade às contradições existentes nos espaços de luta pela apropriação da terra.

Para tanto, procedem a recortes do livro de História destinado a escolas de

assentamentos e acampamentos do MST, produzido por educadores do Movimento. O

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gesto analítico privilegia o processo de colonização e exploração do Brasil pelos

portugueses e, nesse contexto, a divisão da terra em capitanias e sesmarias e sua

subsequente distribuição, no capítulo do livro intitulado “Memórias Coloniais” . As

noções centrais mobilizadas são as de memória e acontecimento, formação ideológica

e formação discursiva, com vistas a perfazer dialeticamente o trajeto que vai do campo

teórico à linearização do discurso, pondo em cena os jogos de força que estão em tela

na narratividade didática da questão agrária no Brasil.

Em síntese, a coletânea buscou trazer diferentes abordagens em torno do tema

de discurso, estilo e ensino, enfrentando a singularidade de cada texto, autor, pontos

de vista.

Guaraciaba Micheletti

Maria Inês Batista Campos

Junho/2016

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O ENCANTO DA TEORIA: LITERARIEDADE COMO RECURSO PARA A

ANÁLISE ESTRUTURAL DE LA BELLE ET LA BÊTE1

Danielle Alves da Rocha (UNIFESP) Ana Luiza Ramazzina Ghirardi (UNIFESP)

Introdução

Ao longo de sua história, o gênero conto de fadas sofreu transformações

importantes em sua lógica de construção e transmissão. Inicialmente, essa narrativa

era propagada por uma tradição oral, passando, depois, a ser transmitida por meio da

escrita. Segundo Bakhtin (2003, p. 261- 264), o conto de fadas pode ser descrito como

um gênero considerado secundário2, exatamente por essas transformações, isto é,

porque inicialmente representava mitos orais transmitidos de geração em geração

estabelecendo-se apenas depois como forma literária escrita.

Scheneider e Torossian (2009, p. 132) ressaltam que histórias narradas em

contos eram difundidas desde a antiguidade e sua influência e relevância são

comprovadas. Segundo Vieira (2010, p. 2-3), essas narrações eram ricas, pois

contavam com múltiplos modos de comunicação como oral, escrita, visual e gestual,

além de uma clara intertextualização com textos anteriores.

No que diz respeito especificamente ao conto objeto desse estudo, La Belle et

la Bête3, Hisada (1998 apud SCHEINEIRDER E TOROSSIAN, 2009, p. 134), aponta como

primeira fonte que apresenta influência explícita na construção da narrativa do conto

francês a obra O Asno de Ouro, de Apuleio, filósofo do século II d.C.

1 Este artigo é o resultado da primeira fase da pesquisa, submetida à FAPESP, Do conto à quadrinização :

Impactos narrativos da transposição multimodal de La Belle et la Bête. 2 O enunciado, segundo Bakhtin (2008, 261-263), possui três características que são indissociáveis: o

conteúdo temático, o estilo e a construção composicional. Eles estão ligados em todo o enunciado e são determinados segundo o campo composicional específico, assim são denominados de gêneros dos discursos. Os gêneros dos discursos são classificados em dois tipos: os gêneros primários e os

secundários. O primeiro é simples, são breves réplicas do discurso cotidiano, etc. Por sua vez, o segundo é complexo e é a transmutação dos gêneros primários, formando uma estrutura fixa dentro da esfera da comunicação, como romance, dramas, etc.. 3 Tradução oficial do conto na língua portuguesa no Brasil é A Bela e a Fera, essa é a forma que aparece

na tradução do livro Contos de Fadas de Maria Tatar (2012) da editora Zahar.

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A primeira versão publicada do conto La Belle et la Bête, escrita por Madame

Gabrielle-Suzanne Barbot de Gallon de Villeneuve, ocorre em 1740 na coleção La Jeune

Amériqueaine et les contes marins. Segundo Durrenmath (2011, p. 6-16), Madame de

Villeneuve foi a primeira mulher a escrever esse tipo de conto na França. Escrito em

linguagem simples, tinha como objetivo educar e distrair jovens inglesas que

aprendiam francês; seu público alvo era, portanto, composto por jovens adultas.

Versões posteriores, para públicos diferentes, iriam alterar, por força desse novo

contexto, elementos presentes nessa primeira versão.

A segunda versão do conto, uma adaptação de Madame Jeanne-Marie Leprince

de Beaumont (1756), escrita para um público alvo de jovens prestes a se casar,

descarta três longas passagens do conto de Madame de Villeneuve. Durrenmath

(2011, p. 13-14) afirma que há omissões de descrições de encantamento do palácio, de

um sonho no qual Belle é encorajada pelo príncipe e pela fada a tomar cuidado com a

aparência, além de eventos sobre o passado de Bête. Madame de Beaumont suprimiu

ainda o erotismo e simplificou a história e o estilo literário, embora conservando as

linhas mestras da narrativa.

Essa foi a primeira transposição literária4 do conto, e viria a se tornar a versão

mais conhecida ao longo dos anos. Por isto, segundo Durrenmath (2011, p. 68-83), as

alterações introduzidas por Madame de Beaumont moldaram uma narrativa

referencial e impactaram a forma pela qual se produziram adaptações subsequentes.

Além da segunda versão do conto escrita por Madame de Beaumont (1756),

Durrenmath (2011, p. 13-20) cita algumas adaptações como ópera, peças de teatro,

livros, histórias ilustradas, poemas, filmes, romances, contos curtos. Mais

recentemente, a conhecida animação da Disney contribuiu para a reatualização da

fábula e sua difusão entre um público mais amplo por meio das novas tecnologias.

Vale ainda ressaltar que essa adaptação, Beauty and the Beast5 (1991), é inspirada no

conto de 1756, o que atesta o papel paradigmático do texto de Madame de Beaumont.

4 A transposição literária será melhor discutida mais à frente nesse projeto, mas segundo Vieira (2010, p.

2) as noções de adaptação e apropriações l iterárias são desdobramentos da intertextualidade, que estão

baseadas nos princípios de multimodalidade e intertextualidade. 5 Versão traduzida para o inglês do título original francês.

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Vieira (2010, p. 2-4) afirma que as noções de adaptações e apropriações

literárias são desdobramentos da intertextualidade, conceito recuperado em Barthes

por Sanders (2006 apud VIEIRA 2010, p.2). Na perspectiva de Sanders (2006 apud

VIEIRA 2010, p. 2), todo texto é uma permutação de textos, um empréstimo provindo

de relações a que se expõe, uma intertextualidade que pode relacionar-se com uma ou

mais fonte. A transposição literária, segundo Sanders (2006 apud VIEIRA, p. 3) é a

conversão de uma obra em outra forma narrativa, que pode ser uma romantização,

teatralização, quadrinização, dentre outras possibilidades. A narrativa transposta pode

ou não convergir com a estrutura da narrativa inicial.

Para tratar de um tema tão abrangente como as adaptações, transposições e

apropriações literárias, apresenta-se aqui um recorte com um corpus delimitado:

optou-se por verificar e analisar a estrutura discursiva do conto La Belle et la Bête

(1976), de Madame de Beaumont, visando ressaltar a sua literariedade e seus

elementos constituintes da narração e narrativa; esse recorte permitirá melhor

compreensão da constituição textual e literária do conto propiciando o avanço dos

estudos sobre transposição literária para outras mídias.6

A perspectiva teórica da literariedade será abordada a partir das contribuições

de Culler (1999a, 1999b) e Compagnon (2010a, 2010b), visando estabelecer as

características distintivas de um texto literário. As relações temporais de Benveniste

(1976) e Charaudeau (1992) auxiliarão na diferenciação das estâncias da narração e da

narrativa. No que concerne a contextualização do conto de fadas dentro das premissas

dos gêneros fantástico e maravilhoso, serão usados os conceitos teóricos de Cesarani

(2006), Propp (2001), Roas (2014) e Todorov (2008). Por fim, concretizam-se as

análises do texto literário do conto em relação aos conceitos teóricos.

Desenvolvimento e Introdução teórica

La Belle et la Bête, o Maravilhoso e o Fantástico

Tartar (2002, p. 63-65) afirma que praticamente todas as culturas conhecem

alguma narrativa cujo conflito central seja similar àquele que estrutura o conto La Belle

6 Este artigo é o resultado da primeira fase da pesquisa, submetida à FAPESP, Do conto à quadrinização:

Impactos narrativos da transposição multimodal de La Belle et la Bête.

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et la Bête, isto é, que apresenta os obstáculos que as personagens são obrigadas a

superar para se unirem em matrimônio. Para ela, esta é uma história exemplar do

amor romântico que demonstra o poder de transcender as aparências físicas, além de

ser uma trama rica em oportunidades para expressar as angústias de uma mulher em

relação ao casamento (em culturas em que os casamentos eram impostos).

As histórias moralizantes e educativas, destinadas a pregar moral e regras sociais,

passam a ter uma importância tão marcada no século XVII que acabam por se tornar

um gênero textual específico. Essas novas formas narrativas são habitualmente

conhecidas como contos de fadas. Para Scheneider e Torossian (2009, p. 135), elas se

distinguem das demais histórias infantis por apresentarem o uso da magia e

encantamentos como uma característica para a resolução de uma problemática

existencial na qual o herói ou a heroína tem o propósito de superar os obstáculos para

obter uma realização pessoal, financeira ou moral.

Com a interação direta com outras formas textuais, esse gênero transmutou-se e

gerou novas formas narrativas, denominadas, segundo Todorov (2008. P. 31),

estranho, fantástico e maravilhoso. Todorov (2008, p. 31-40) foi o primeiro a

sistematizar a teoria do fantástico e do maravilhoso; para ele, o efeito do fantástico

consiste em um momento de hesitação, de vacilação sobre aquilo que se lê e o

referencial de realidade que possui. O autor acredita que para que tal momento de

hesitação ocorra (2008, p. 37-40), o leitor deve se identificar com um personagem

particular e com o mundo apresentado na obra. Assim, segundo sua perspectiva, no

momento em que volta à sua realidade, o leitor deve escolher entre uma explicação

natural ou sobrenatural para os acontecimentos evocados na narrativa literária

comparando-a ao seu referencial de realidade. A estratégia utilizada para essa

diferenciação consiste em abordar os temas a partir da razão, estabelecendo uma

comparação com aquilo que se conhece e o que evade as suas diretrizes.

Todorov (2008, p. 43-63), denomina estranho a narrativa que apresenta uma

explicação racional para eventos que possuem regras desconhecidas, que não são

explicadas pela compreensão disponível das leis naturais e que necessitam de novas

regras para defini-las. Por outro lado, ele denomina maravilhoso os casos em que há a

criação de novas regras, aceitas dentro da narrativa como formas naturais que perdem

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a relação direta com a realidade; enquanto que no fantástico as narrativas se

estruturam a partir da representação da vacilação que o leitor sente ao se deparar

com um fato sobrenatural, sem uma explicação lógica.

Um estudo aprofundado sobre o maravilhoso todoroviano foi realizado por Propp

(2001, p. 91) que apresenta a divisão mais habitual que se faz desse gênero (os contos

de conteúdo miraculoso, os contos de costumes e os contos sobre animais). Propp

(2001, p. 91-112) extrapola essas classificações criando uma teoria e análise do conto

maravilhoso; em sua obra, o conto maravilhoso deve ser classificado em relação a

setes funções dos personagens que são fixas: O Agressor, O Doador, O Auxiliar, A

Princesa e o Pai, O Destinador, O Herói e O Falso Herói. Essas personagens fixas,

segundo o autor, realizam sequências idênticas de ações que se classificam em 31

funções7.

Para Roas (2014, p. 33), o maravilhoso ocorre quando o sobrenatural não entra em

conflito com o contexto em que os fatos ocorrem. Não há ruptura, pois não há

intervenção na ideia que se tem de “realidade”. Segundo o autor, nem mesmo os

personagens inseridos na narrativa maravilhosa, como gênios, fadas, e demais

criaturas extraordinárias produzem essa ruptura, uma vez que não intervém na

concepção e ideia de realidade que se tem e, portanto, não produzem o rompimento

de seus esquemas realísticos. De acordo com essa perspectiva, o elemento linguístico

introdutório “era uma vez” situa os elementos fora de toda atualidade e impede

qualquer assimilação realista. Portanto, na literatura fantástica, segundo o autor,

diferentemente da literatura maravilhosa, o sobrenatural é mostrado como natural,

em um espaço muito diferente do lugar em que vive o leitor.

Em relação ao maravilhoso, Todorov (2008, p.48) afirma que ele cria novas regras

em uma nova realidade para explicar o fato inusitado que ocorre na narrativa, e os

7As 31 funções são: proibição, transgressão da proibição, interrogatórios, informação sobre o herói,

embuste, cumplicidade, dano, carência, mediação, início da reação, partida, primeira função do doador, reação do herói, recepção do objeto mágico, deslocamento no espaço, combate, marca do herói, vitória, reparação do dano ou carência, regresso do herói, perseguiçã o, salvamento, chegada incógnito, falsa pretensão, tarefa difícil , tarefa cumprida, reconhecimento, desmascaramento, transfiguração, castigo e

casamento, agrupadas. Nem todas as funções estão presentes nas narrativas maravilhosas e nem todas aparecem ao mesmo tempo, contudo podem interagir em determinadas narrativas. Propp (2001) argumenta que elas se repetem, mas que as sequências permanecem as mesmas, derivadas de uma

regra de composição bastante rígida que orienta a narrativa: uma parte introdutória, um problema, a intervenção dos doadores, o retorno do herói e a solução do problema.

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fatos que na realidade seriam tratados como eventos incomuns são vistos como algo

corriqueiro. No conto La Belle et la Bête o fato de um homem sofrer uma maldição e se

tornar uma fera, ou haver uma bruxa ou fada é algo corriqueiro e visto de forma

natural dentro da narrativa. O mundo maravilhoso, segundo Roas (2014, p. 34), é um

lugar totalmente inventado em que as confrontações básicas que geram o fantástico, a

oposição natural e sobrenatural ou a oposição ordinário e extraordinário, não estão

colocadas. Nesse tipo de narrativa, tudo é possível, desde encantamentos, milagres,

metamorfoses, e outros fenômenos, sem que os personagens suponham que tais

eventos não sejam naturais.

Se a linguagem e a literatura refletem os desejos, necessidades e aflições sociais, e

se sofrem influências externas e internas em sua criação e desenvolvimento, não seria

de se esperar dinâmica diferente para a literatura maravilhosa e fantástica. Segundo

Roas (2014, p. 39), é necessário perceber a relação do fantástico e maravilhoso com o

contexto sociocultural e refletir sobre essa relação, pois toda representação da

realidade depende do modelo de mundo em que está inserido e a cultura em que se

insere. É nela que a realidade e a irrealidade, o possível e o impossível se definem em

sua relação às crenças às quais o texto se refere.

Roas (2014, p. 35-50) ressalta que a partir da década de 1980, houve uma mudança

em relação ao conto com o advento da narrativa curta, a valorização da fantasia e da

imaginação em contraste com a literatura voltada para o realismo social e

testemunhal. O gênero maravilhoso, como outros gêneros literários , elucida o autor,

vem sendo apropriado por novas mídias e tem, com isto, sofrido reconfigurações para

esses novos meios, refletindo a sociedade em que está inserido, e os elementos da

literariedade são essenciais para essas adaptações.

A literariedade é um conceito proposto por Jakobson (2007, p.19-26), no qual a

poesia é uma linguagem em sua função estética, sendo que o objeto de estudo da

literatura não é a própria literatura, e sim a literariedade que a compõe. Para o autor,

a literatura é uma expressão da função estética da linguagem, que é composta por

encadeamentos de seis fatores indispensáveis na conversação que se traduzem nas

funções: expressiva, conotativa, referencial, fática, metalinguística e poética. A função

poética, como enfatiza Jakobson (2007, p. 127-151), é dominante na obra e na

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linguagem literária, a palavra é a base fundamental e sua combinação e seleção geram

a literariedade de um texto.

Na visão de Compagnon (2010, p. 41-43), a literariedade é a reorganização de

um modo diferente, mais complexo, denso, dos mesmos materiais linguísticos do

cotidiano, pois as estruturas literárias não se diferem das estruturas linguísticas, mas

as organizações aplicadas a ela se tornam mais visíveis.

Culler (1999, p. 26-27) indica que a literariedade reside na organização da

linguagem que, por sua vez, a distinguirá da forma com que esta é usada em outros

meios, pois o deslocamento e a descontextualização da linguagem possibilitarão que

qualquer tipo de material seja interpretado como literatura.

Assim, percebe-se que, de acordo com a noção de literariedade de Jakobson

(2007), Compagnon (2010) e Culler (1999), toda a escolha de frases, tempos verbais,

encadeamento de ações irá reportar a mensagem intricada na narrativa, resultando

em uma interligação de linguagens e, muitas vezes, em uma retomada de intertextos.

Esse artigo analisa esse conceito através do conto La Belle et la Bête (2011).

Estrutura Discursiva

No estruturalismo de Barthes (1976, p. 25-26) a literariedade é uma função do

discurso, subdividida em níveis de significações que terão certo valor e se integrarão a

um nível superior. O autor (1976, p. 25) registra que a linguística possibilita a análise

estrutural da narrativa em uma conscientização do sistema de significação e sua

organização (níveis de significação), que propicia verificar os elementos e proposições

que as constituem.

Essas articulações, ou níveis, segundo Barthes (1976, p. 35), apresentam uma

relação hierárquica, cada unidade comporta suas próprias correlações, que não

poderão ser estudadas de forma independente, pois nenhum nível produz significância

sozinho. No conto La Belle et la Bête (2011), a semelhança entre o mercador e sua filha

Belle, mesmo que não evidenciada, está implícita no nível descritivo dos personagens.

Em um primeiro momento, o mercador é descrito como um homem preocupado com

a educação de seus filhos, por ter uma visão ampla da importância do conhecimento:

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Il y avait une fois un marchand qui était extrêmement riche. (...) et comme ce marchand était un homme d'esprit, il n'épargna rien pour l'éducation de ses enfants (...) (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 9)8

No segundo momento, Bête retoma o uso da palavra esprit. A fera contrapõe

através desse termo sua imagem à de Belle: “-Si j'avais de l'esprit, reprit la Bête, je vous

f'erais un grand compliment pour vous remercier [...] (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011,

p. 29)”9. Barthes (1972, p. 31) destaca que mesmo se o caráter de um personagem não

for nunca nomeado no texto, suas características estarão indexadas; no conto La Belle

et la Bête, observa-se um paralelismo entre a construção de personalidade e de

caráter entre pai e filha.

Outra comparação implícita é a diferença de caráter de Belle e suas duas irmãs

mais velhas. É pelo olhar externo que o distanciamento de Belle ocorre em relação a

outros personagens. Essa estratégia comporá um índice recorrente na narrativa:

Ses filles étaient très belles; mais la cadette surtout se faisait admirer et on ne l'appelait, quand elle était petite, que la Belle Enfant ; en sorte que le nom lui en resta, ce qui donna beaucoup de jalousie à ses sœurs. Cette cadette, qui était plus belle que ses sœurs, était aussi meilleure qu'elles. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 9) 10

A comparação da protagonista com suas irmãs mais velhas proporcionará,

dentro da narrativa, subsídios para a inveja, e o tratamento cruel que as irmãs

dispensam à filha caçula garantindo assim a progressão narrativa e o elemento de

catarse ao final do conto. No momento em que Belle percebe o real sentimento que

tem em relação à Bête, e após se declarar à fera (que se transforma em um belo

príncipe), os dois se casam e as irmãs são amaldiçoadas.

8 Havia certa vez um comerciante que era muito rico. (...) e como era um homem inteligente, não

poupou esforços para a educação de seus fi lhos (...)(LEPRINCE de BEAUMONT, 201 4 p. 17) 9 Se eu tivesse inteligência - disse a Fera - faria um grande elogio para agradecer você. (LEPRINCE de

BEAUMONT, 2014 p. 42) 10

Suas fi lhas eram lindas, mas a caçula, sobretudo, era admirada por todos. Quando pequena, era chamada de Bela. De modo que o nome permaneceu, provocando muita inveja em suas irmãs. Essa

caçula, que era mais bela que suas irmãs, também era mais bondosa que elas. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 19)

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A primeira aparição de Bête possui poucos elementos caracterizadores da

personagem: não há uma descrição clara do seu aspecto físico; sabe-se que é

horripilante e nada mais. O uso do adjetivo “horrível” reforçado pelo advérbio “tão”

indicam sua monstruosidade: “À cet instant il entendit un grand bruit et vit venir à lui

une Bête si horrible qu'il fut tout près de s'évanouir. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p.

9)”11. No caso de Belle, é a sensação que a visão de Bête que surgirá na narrativa; nem

mesmo ela, cheia de virtudes, poderá ficar imune à aparência medonha da besta:

La Belle ne put s'empêcher de frémir en voyant cette horrible figure, mais elle se rassura de son mieux et, le monstre lui ayant demandé si c'était de bon cœur qu'elle était venue, elle lui dit en tremblant que oui. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 22)12

A literariedade (Jakobson, 2007, p. 19-26), como citado anteriormente, é a

linguagem em uma função estética, que possui uma organização complexa e

particular, que dará sentido ao discurso. No caso do conto francês, pode-se sugerir que

essa literariedade acontece pela relação dos discursos que se alinham para passar uma

mensagem de superação, mudança e aceitação. A estrutura narrativa trará uma

semantização de significados que será essencial à construção do desfecho, em que há

a mudança de opinião de Belle em relação à Bête e, por fim, a transformação deste em

um belo príncipe:

- Non, ma chère Bête, vous ne mourrez point ! lui dit la Belle. Vous vivrez pour devenir mon époux. Dès ce moment, je vous donne ma main et je jure que je ne serai qu'à vous. Hélas! je croyais n'avoir que de l'amitié pour vous, mais la douleur que je sens me fait voir que je ... ne pourrais vivre sans vous voir.

A peine la Belle eut-elle prononcé ces paroles qu'elle vit le château brillant de lumières. Les feux d'artifice, la musique, tout lui annonçait une fête; mais toutes ces beautés n'arrêtèrent point sa vue. Elle se retourna vers sa chère Bête dont l'état faisait frémir. Quelle ne fut pas sa surprise? La Bête avait disparu, et elle ne vit plus à ses pieds qu'un prince plus beau que l'Amour, qui la remerciait d'avoir rompu son enchantement.

11

Na mesma hora, ouviu um grande barulho e viu se aproximar um monstro tão hor rível, que ele quase desmaiou. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 26) 12

Bela estremeceu ao ver aquela cara horrível, mas tranquilizou-se o mais que podia. E, quando o

monstro lhe perguntou se viera de boa vontade, ela respondeu, tremendo, que sim. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 34

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Quoique ce prince méritât toute son attention, elle ne put s'empêcher de lui demander où était la Bête. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 22)13

Por outro lado, Barthes (1976, p. 19-23) afirma que há certos tipos de unidades

de conteúdos que possuem caráter funcional14 específicos, que comportam uma

relevância específica na estruturação narrativa. Em sua obra, Barthes (1976, p.35-37)

denomina essas unidades de conteúdo de funções. Para ele (1976, p. 35-37), há dois

tipos principais de funções: as distribucionais e as integradas. As funções

distribucionais ou integrativas, no decorrer da narração, terão sentidos progressivos,

informativos. As funções distribucionais, por sua vez (1976, p.30-34), são subdivididas

em cardiais e catálises.

As cardiais são funções essenciais, funcionam horizontalmente e visam garantir

o sentido progressivo da narrativa: um momento de risco, um preenchimento do

espaço narrativo que separa as funções-articulações, por exemplo. Em La Belle et la

Bête, ocorre a perda dos bens familiares repentinamente, “Tout d'un coup, le

marchand perdit son bien et il ne lui resta qu'une petite maison de campagne, bien loin

de la ville. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 10)”15 Essa ação desencadeará outras

ações que desenvolverão a narrativa, como o encontro do mercador com a fera e a

ameaça de morte causada pelo roubo de uma rosa.

A segunda subcategoria, as catálises - funções de passagem - levam a ação de

um discurso narrativo para outra ação: elas podem acelerar, retardar, avançar o

discurso, antecipando elementos ou desorientando-os, sempre trazendo a ligação

entre o narrador e narratário. Em La Belle et la Bête, essa subcategoria pode ser

13

Não, querida Fera, não morra – disse Bela. -Vai viver para se tornar meu marido: a partir de agora,

dou-lhe minha mão e juro ser sua esposa. Pensei que só sentia amizade por você! Mas a dor que sinto demostra que não poderia mais vi ver sem você. Após ter falado isso, Bela viu o castelo brilhante de luz, os fogos de artifício, a música. Tudo anunciava uma festa. Mas, apesar de todas essas belezas, ela se

voltou para a sua querida Fera, cujo risco de morrer a fazia estremecer. Que surp resa! A Fera havia desaparecido, e havia um príncipe aos seus pés, mais l indo que o Amor, que a agradecia por ter rompido seu feitiço. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 51-52). 14

Segundo Barthes (1976 Anal, p. 27), para uma análise estrutural narrativo é necessário dividir as

unidades e segmentos dos discursos, definindo-as, para buscar as suas significações. O autor (1976, p. 27), define esses tipos de determinadas unidades que possuem funções de caráter funcional. 15

De repente, o comerciante perdeu sua propriedade, e só sobrou uma pequena casa no campo, bem

longe da cidade. Ele disse chorando aos seus fi lhos que deviam ir morar naquela casa, e que, se trabalhassem como camponeses, lá poderiam viver. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 18 -19)

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verificada nessa passagem: “Ses deux filles aînées répondirent qu'elles ne voulaient pas

quitter la ville et qu'elles connaissaient des jeunes gens qui seraient trop heureux de les

épouser, quoiqu'elles n'eussent plus de fortune. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p.

11)16. Nesse trecho, há uma ligação com o acontecimento anterior – perda da fortuna.

O trecho, além de informar a opinião das filhas mais velhas, evidência uma ligação

apresentada anteriormente do caráter e atitudes das moças, e suas consequências;

nesse caso, os rapazes não desejam casar-se com elas devido à péssima índole das

moças.

Já as funções integrantes, consoante Barthes (1976, p.34-35), são formadas por

duas categorias: o índice e os informantes. O índice serve como sistematização do

discurso que permite uma previsão das ações que ocorrerão futuramente na narrativa,

sendo relacionados às funções de predição; há sempre significações implícitas, uma

atividade de deciframento. No conto de Beaumont, Belle tem por hábito recusar os

pedidos de casamento dos jovens:

La Belle remercia bien honnêtement ceux qui voulaient l'épouser; mais elle leur dit qu'elle était trop jeune et qu'elle souhaitait tenir compagnie à son père pendant quelques années. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 10)17

A passagem acima exemplifica o índice, a função integrante que prenuncia

elementos narrativos, neste caso, a recusa da protagonista do pedido de casamento

feito por Bête no decorrer da narrativa repetidamente:

- La Belle, voulez-vous être ma femme?

Elle fut quelque temps sans répondre: elle avait peur d'exciter la colère du monstre en refusant sa proposition. Elle lui dit enfin en tremblant:

- Non, la Bête.

16

Suas duas fi lhas mais velhas responderam que não queriam deixar a cidade, e que tinham vários

pretendentes que ficariam muito felizes em se casar com elas, embora não tivessem mais fortuna. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 19) 17

Bela, como estava dizendo, agradecia sinceramente àqueles que queriam se casar com ela, mas falava

que era muito jovem e que pretendia fazer companhia ao seu pai por muitos anos ainda. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 18)

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Dans le moment, ce pauvre monstre voulut soupirer et il fit un sifflement si épouvantable que tout le palais en retentit; (...) (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 29)18

As funções integrantes informativas integram a narrativa, mas não

necessariamente contribuem para a linearidade da trama e sua caracterização. Elas

servem para dar autenticidade, marcação do tempo, como no trecho a seguir: “ [...]

Belle passa trois mois dans ce palais avec assez de tranquillité. [...] (LEPRINCE de

BEAUMONT, 2011, p. 31)”19. Servem ainda para informar a idade de um personagem

ou apresentá-lo:

Il avait six enfants, trois garçons et trois filles, et comme ce marchand était un homme d'esprit, il n'épargna rien pour l'éducation de ses enfants et leur donna toutes sortes de maîtres. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 9)20

Barthes (1976, p.55) ainda destaca as funções descritivas, que trazem detalhes para a

narrativa, somando elementos e significações como na descrição da entrada do castelo de

Bête: “Tout d'un coup, en regardant au bout d'une longue allée d'arbres, il vit un e grande

lumière, mais qui paraissait bien éloignée. [...] (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 15)”21.

Dentro da narrativa, essa descrição não encadeia uma ação direta, mas é uma preparação para

o inicio do desencadeamento narrativo.

A sumarização, por sua vez, ainda segundo Barthes (1972, p. 55-57), permite reduzir a

narração de um fato que percorre um espaço temporal grande em poucas linhas:

Belle passa trois mois dans ce palais avec assez de tranquillité. Tous les soirs, la Bête lui rendait visite et parlait avec elle pendant le

18

- Bela, quer ser minha mulher? Ficou algum tempo sem responder, com medo de despertar a ira do monstro ao recusar, e finalmente disse, trêmula: -Não, Fera. Naquele momento, o pobre monstro quis suspirar, mas proferiu um terrível assobio, que ressoou em todo o palácio. (LEPRINCE de BEAUMONT,

2014 p. 42) 19

Bela passou três meses no palácio, em relativa tranquilidade. (...) (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 43) 20

Houve até vários cavalheiros que quiseram se casar com ela, embora estivesse sem vintém. Mas ela

dizia que não poderia abandonar seu pobre pai à sua infelicidade, e que o seguiria em sua vida no campo para confortá-lo e ajudá-lo no trabalho. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 19-20) 21

De repente, olhando para o final de um longo caminho cheio de árvores, vi u uma grande luz que

parecia muito distante. Foi seguindo o caminho e viu que aquela luz estava saindo de um grande palácio, todo iluminado. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 24)

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souper avec assez de bon sens, mais jamais avec ce qu'on appelle esprit dans le monde. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 31)22

No trecho acima, é evidenciada a passagem de tempo, três meses, e a

repetição de ações, os encontros noturnos de Belle e Bête que criam momentos

propícios para a construção de intimidade.

Portanto, as funções de catálise, índice e informantes, aqui apresentadas,

segundo Barthes (1976, p. 35), têm como efeito um caráter comum, a expansão das

reações constituintes dos núcleos narrativos criando uma lógica de significação

narrativa. Ao analisar essas funções e aplicá-las a um texto narrativo, é possível

mapear a estrutura narrativa de cada obra. Em La Bêlle et la Bête, como foi

demonstrado, há o uso de todas as funções distribucionais e integrantes citadas acima

em vários momentos narrativos.

Discussão

As Instâncias Discursivas

A ideia de literariedade em Genette (1976) aproxima-se mais de Barthes (1972,

1976) no que se refere ao trabalho com a relação dos discursos e seus elementos

constituintes. No que tange as instâncias discursivas, Genette (1976) foi o primeiro a

diferenciá-las. Seu trabalho, por sua vez, influenciou as correntes teóricas

subsequentes.

Em sua teoria, o autor (1976, p. 23-25) distingue três elementos singulares do

discurso: récit (naração), diégèse (história), narration (narração). O récit, de acordo

com Genette (1976, p.25), é o tempo da narrativa, o ato de narrar que é concomitante

à ação narrar. Em La Belle et la Bête, o récit é dividido em cinco partes:

1. O estado inicial: apresentação dos personagens: o mercador, os filhos e seu

estado financeiro.

2. A mudança de posição social : o mercador perde a sua fortuna.

22

Bela passou três meses no palácio, em relativa tranquilidade. Todas as noites, a Fera ia visitá -la,

conversava com relativo bom senso durante o jantar, mas nunca com fineza ou mesmo inteligência. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 43)

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3. Uma nova mudança e o conflito: há uma nova esperança de o mercador

recuperar seus bens, mas essa esperança gerará o conflito; além de não

recuperar sua fortuna, no caminho de volta ele se perde e encontra o castelo

de Bête onde colhe no jardim a rosa que culmina na ameaça de morte.

4. A segunda mudança e o novo conflito: Belle assume o lugar do seu pai, convive

com a “fera”, retorna à sua casa por um período e não retorna para junto da

Bête no prazo combinado.

5. O clímax e a resolução do problema: Belle retorna ao castelo, encontra Bête

quase morta, confessa seu amor. Os dois se casam, e as irmãs viram pedras

como punição por suas maldades.

Genette (1976, p.211-216) ressalta que é possível contar uma história sem

precisar o lugar onde acontece, nem situá-la no tempo em relação ao ato narrativo.

Em La Belle et la Bête não há indicações da cidade ou país em que a história é

localizada. São citadas a casa familiar da cidade, depois a casa do campo e, em seguida,

o castelo de Bête, mas nenhuma notação espacial específica é evidenciada. Na

perspectiva do autor (1972, p.215), as determinações temporais da instância narrativa

são mais importantes que as determinações espaciais, pois a principal demarcação

temporal da instância narrativa é a sua posição relativa em relação à história.

Sob o ponto de vista de Genette (1972, p. 216), é necessário que se distingua o

simples ponto de vista da posição temporal a partir de tipos de narração: ulterior

(narrativa com a posição no passado), anterior (narrativa preditiva, normalmente no

futuro, mas que pode ocorrer no presente), simultânea (narrativa no presente, ocorre

no ato da ação) e intercalada (entre os momentos da ação).

Em La Belle et la Bête, o tempo narrativo é uma intercalação dos tempos nas

ações narrativas, pois o conto começa com a descrição de uma família com o uso do

tempo verbal Imparfait. Charaudeau (1992, p. 452-475) afirma que o Imparfait

exprime uma posição transposicional do presente atual em um momento que não é da

atualidade para o sujeito. Assim, para o autor, o Imparfait tem a característica de não

possuir uma exatidão temporal, pois o fato pode ser algo que ocorria anteriormente e

que é retomado em outros momentos na narrativa. Charaudeau (1992,470) ressalta

que o Imparfait produz um efeito de permanência no passado, pois é um tempo que

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lembra coisas congeladas ao longo do tempo: “Il y avait une fois un marchand qui était

extrêmement riche (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 9)”23

Outros trechos da narração são apresentados por meio do Passé Simple.

Charaudeau (1992, p. 460) ressalta que este tempo verbal exprime uma posição

anterior do relato no momento da enunciação: é um processo pontual, tendo como

função se contrapor ao Imparfait para essa produção de pontualidade e para colocar

em evidência as ações e eventos: “Tout d'un coup, le marchand perdit son bien et il ne

lui resta qu'une petite maison de campagne, bien loin de la ville” (LEPRINCE de

BEAUMONT, 2011, p. 10). 24

Benveniste (1976, p. 261-262) ressalta que os tempos verbais em francês não

são empregados como membros de um só sistema, eles são distribuídos em dois

sistemas, divergentes e complementares, cada um compreende somente uma parte

dos tempos verbais. O autor acredita que esses dois sistemas estão em uso e

concorrem, estando sempre permanentes e disponíveis para cada locutor,

manifestando assim dois planos de enunciação diferentes: história e discurso.

Benveniste ainda destaca que o enunciado histórico é reservado à língua

escrita, caracterizada por uma narração de acontecimentos passados, provindos de

determinados momentos temporais e que não possuem nenhuma intervenção do

locutor na narrativa. Para o autor, o enunciado histórico contêm três tempos: o aoristo

(passé simple ou passe défini), o imperfeito (inclui a forma em –rait classificada como

condicional) e o mais-que-perfeito, aqui se exclui o presente.

Já o plano do discurso, na ótica de Benveniste (1976, p. 267), é todo enunciado

que presume um locutor e um ouvinte, tendo o primeiro a intenção de influenciar, de

algum modo o outro. Comporta, segundo o autor, qualquer diversidade dos discursos

orais de qualquer natureza, tipo, nível, complexidade, incluindo os escritos que

simulam e reproduzem os discursos orais .

23

Havia certa vez um comerciante que era muito, muito rico. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 21) 24

De repente, o comerciante perdeu sua propriedade, e só sobrou uma pequena casa no campo, bem

longe da cidade. Ele disse chorando aos seus fi lhos que deviam ir morar naquela casa, e que, se trabalhassem como camponeses, lá poderiam viver. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 18 -19).

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No conto La Belle et la Bête, a construção textual ocorre através de um

entrelaçamento de tempos verbais. Há nos diálogos o uso do discurso, claramente

diferente do discurso histórico usado na narrativa, pois nesse caso há a oposição do

locutor com o destinatário:

- Elles ne méritent pas qu'on les plaigne! Nous sommes bien aisés de

voir leur orgueil abaissé: qu'elles aillent faire les dames en gardant

les moutons! (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 12)25

O trecho acima evidencia o que Benveniste (1976, p. 270) esclarece em seu

texto, o presente e o perfeito pertencem ao sistema linguístico do discurso, porque a

marca temporal do perfeito é o momento do discurso. Pode-se sugerir que o uso

desses tempos verbais nos diálogos distancia a ação do discurso entre os personagens

da ação narrativa, pois o momento do acontecimento é o caracterizador do aoristo.

Nessa mesma perspectiva, Charaudeau (1992, p. 452-475) indica que o Présent

exprime uma posição de coincidência entre o momento de realização do processo e o

momento da ação enunciativa, no momento em que se tem próximo a extensão

daquilo que se emite e o tempo que se emite.

Na teoria de Genette (1976, p. 159-266), há três principais instâncias narrativas:

o modo, o ponto de vista e a voz. A primeira categoria é a distância (relação entre

aquele que conta e o que se conta) e a segunda perspectiva (o ponto de vista): aquilo

que o narrador sabe (mais, menos, o mesmo), aquilo que não é localizado (onisciente),

a focalização externa (não onisciente), a focalização interna (uma posição fixa, variação

das posições, vários personagens). A terceira, ainda segundo Genette (1976, p.211-

266), é repartida em: heterodiegética (é o narrador que está afastado da ação

narrativa, relata as ações dos personagens e seus encadeamentos narrativos),

homodiegética (o narrador localiza-se na narrativa, é um observado dos fatos, uma

testemunha, relata o que vê sem, necessariamente, encadear ações narrativas) e

25

- Não merecem que se tenha pena delas! É muito bom ver esse orgulho quebrado. Que se façam de damas agora, suas pastoras . (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 19).

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27

autodiegética (o narrador está inserido no ato narrativo e suas ações encadeiam as

ações).

O narrador do conto La Belle et la Bête é heterodiegético, e o uso de verbos na

terceira pessoa do singular ou do plural evidenciam o seu distanciamento. Este

narrador mantém-se afastado dos atos narrativos sem encadeá-los ou retardá-los:

La Belle, après les premiers transports, pensa qu'elle n'avait point

d'habits pour se lever; mais la servante lui dit qu'elle venait de

trouver dans la chambre voisine un grand coffre plein de robes d'or,

garnies de diamants. Belle remercia la bonne Bête de ses attentions.

Elle prit la moins riche de ces robes et dit à la servante de ranger les

autres dont elle voulait faire présent à ses sœurs. Mais à peine eut-

elle prononcé ces paroles que le coffre disparut. Son père lui dit que

la Bête voulait qu'elle gardât tout cela pour elle, et aussitôt les robes

et le coffre revinrent à la même place. (LEPRINCE de BEAUMONT,

2011, p. 34)26

Segundo as premissas teóricas de Genette (1976), o trecho acima exemplifica o

fato de que o narrador é onisciente, pois descreve pensamentos e emoções dos

personagens e suas ações e intenções narrativas. Outra evidência é que mesmo tendo

as informações necessárias ao desenvolvimento da narrativa do conto, ele não

antecipa determinadas informações. Exemplo disso é o fato de não haver indício do

motivo principal da maldição de Bête, mesmo que ele afirme que a maldição ocorreu

por causa de uma feiticeira:

- Vous la voyez à vos pieds, lui dit le prince.

Une méchante fée m'avait condamné à rester sous cette figure jusqu'à ce qu'une belle fille consentît à m'épouser, et elle m'avait défendu de faire paraître mon esprit. Ainsi il n'y avait que vous dans le monde pour vous laisser toucher par la bonté de mon caractère:

26

Bela, após a emoção inicial, pensou que não tinha roupa para vestir, mas a criada disse que encontrou,

no quarto, um grande baú cheio de vestidos, todos de ouro e diamantes. Bela agradeceu a atenção da boa Fera. Pegou o vestido menos pomposo e disse à cri ada para ajustar ás outros, porque queria presentear suas irmãs. Mas, assim que terminou de falar, o baú desapareceu. O

pai disse que a Fera queria que fosse tudo para ela e, de repente, vestidos e baú voltaram para o mesmo lugar. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 46).

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28

en vous offrant ma couronne, je ne puis m'acquitter des obligations que j'ai pour vous. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 40)27

Genette (1976, p. 85-113) ressalta ainda que o modo possui duas

subcategorias: distância e perspectiva. A primeira consiste na relação daquilo que é

contado com o modo pelo qual é contado. A distância de La Belle et la Bête é ampla,

pois o espaço temporal dos acontecimentos abrange vários meses. Há passagens de

tempo entre a saída da família de sua casa na cidade e a ida para a casa do campo, e

depois há a passagem de tempo em que Belle fica no castelo. Em seguida, do tempo

que retorna e permanece na casa de seu pai. Pode-se sugerir que o tempo total

suposto pela narrativa seja de, no mínimo, um ano e cinco meses, visto que se passam

dois meses que a família começou a se adaptar a vida do campo: Elle eut d'abord

beaucoup de peine, car elle n'était pas habituée à travailler comme une servante; mais,

au bout de deux mois, elle devint plus forte et la fatigue lui donna une santé parfaite.

(LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 13)28

Em seguida, há a indicação de mais um ano transcorrido até a notícia que o

mercador poderá reaver seus bens: Il y avait un an que cette famille vivait dans la

solitude, lorsque le marchand reçut une lettre par laquelle on lui annonçait qu'un

vaisseau, sur lequel il avait des marchandises, venait d'arriver sans encombre.

(LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 13)29

Somam-se a esse tempo mais três meses que Belle permanece no castelo: Belle

passa trois mois dans ce palais avec assez de tranquillité. Tous les soirs, la Bête lui

rendait visite et parlait avec elle pendant le souper avec assez de bon sens, mais jamais

avec ce qu'on appelle esprit dans le monde. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 31)30

27

- Você a vê a seus pés - disse o príncipe. - Uma bruxa má me condenou a permanecer como Fera e me proibiu de demonstrar inteligência até uma linda moça aceitar se casar comigo. Assim, só você nesse mundo foi boa o suficiente para sentir a bondade do meu caráter! Ofereço-lhe a minha coroa.

(LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 52-53). 28

Teve muito desgosto no início, porque não estava acostumada a trabalhar como criada, mas, após dois meses, tornou-se mais forte, e a fadiga lhe deu perfeita saúde. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 20). 29

Fazia um ano que essa família vivia na solidão, quando o comerciante recebeu uma carta informando que um navio com mercadorias dele chegara ao porto. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 21). 30

Bela passou três meses no palácio, em relativa tranquilidade. Todas as noites, a Fera ia visitá -la,

conversava com relativo bom senso durante o jantar, mas nunca com fineza ou mesmo inteligência (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 43).

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As passagens temporais apresentadas no conto consistem no uso do recurso de

sumarização, conforme proposto por Barthes (1972, 1976) e assinalado anteriormente:

consiste no resumo de uma grande passagem temporal em poucas linhas através de

recursos denominados por Genette (1976, p. 97) de categorias de análises.

Essa é a grande diferença entre Barthes (1972) e Genette (1976,) quanto ao

uso e aplicação da sumarização. A sumarização, para Genette (1976, p. 97), o avanço

ou o retrocesso temporal, é feito por meio de prolepses e analepses. As categorias de

análise, na ótica de Genette (1976) são elementos linguísticos, semânticos e textuais

que encadeiam as ações narrativas; em sua perspectiva, são subdivididas em dois

grandes blocos: ordem e duração.

Estudar a ordem, na ótica de Genette (1976, p. 33-83), é confrontar a ordem de

disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a

ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na

história, na medida em que é mostrada ou pode ser inferida. Em sua classificação, o

autor (1976, p. 33 -83) designa três subcategorias da ordem: anacronia (designa as

diferentes formas de discordância entre a ordem da história e da narrativa), prolepse

(toda manobra narrativa que consiste em contar ou evocar de antemão um

acontecimento anterior) e analepse (toda evocação a um acontecimento anterior ao

ponto da história em que ela está).

No conto La Belle et la Bête há uma evocação implícita de uma prolepse

generalizada, que explicita de algum modo sua função:

Cette pensée ranima son courage. Elle ouvrit la bibliothèque et vit un livre où il y avait écrit en lettres d'or: Souhaitez commandez: vous êtes ici la reine et la maîtresse. «Hélas! dit-elle en soupirant, je ne souhaite rien que de voir mon pauvre père et de savoir ce qu'il fait à présent.» Elle avait dit cela en elle-même.

Quelle fut sa surprise, en jetant les yeux sur un grand miroir, d'y voir sa maison où son père arrivait avec un visage extrêmement triste ! Ses sœurs venaient au-devant de lui et, malgré les grimaces qu'elles faisaient pour paraître affligées, la joie qu'elles avaient de la perte de leur sœur paraissait sur leur visage. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 26-27)31

31

Abriu a porta com pressa e ficou impressionada com a grandiosidade do quarto. O que mais a

surpreendeu foi uma grande biblioteca, um cravo e vários l ivros de música. "Não quer que me entedie", disse, em voz baixa. E pensou: "Se eu fosse ficar apenas um dia aqui, não teria provi denciado tanta

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O espelho mágico será uma peça fundamental na narrativa, pois através dele

Belle verá o estado de saúde de seu pai e pedirá a permissão de Bête para visitá-lo

acionando assim o encadeamento narrativo que culminará no clímax: há uma

evocação indireta desse fato por meio do objeto.

Para Genette (1976, p. 46-49), a analepse é subdividida (1976, p. 48-49) em

analepses completas (compreende os segmentos que vêm preencher mais tarde uma

lacuna anterior da narrativa em que está inseria), analepses internas (o campo

temporal está compreendido na narrativa principal e apresenta um risco de repetição

ou colisão com os fatos os alterando) e as analepses externas (não comportam

nenhuma possibilidade de interferir na narrativa).

Mais en même temps, tout le monde disait:

- Pour la Belle, nous sommes bien fâchés de son malheur: c'est une si bonne fille ! Elle parlait aux pauvres gens avec tant de bonté; elle était si douce, si honnête !

Il y eut même plusieurs gentilshommes qui voulurent l'épouser, quoiqu'elle n'eût pas un sou. Mais elle leur dit qu'elle ne pouvait se résoudre à abandonner son pauvre père dans son malheur, et qu'elle le suivrait à la campagne pour le consoler et l'aider à travailler. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 12)32

Em algum ponto da história, Belle foi pedida em casamento por alguns rapazes.

Na linha narrativa não há esse fato explícito, logo o narrador evoca um acontecimento

anterior e externo para exemplificar, mais uma vez, o caráter da personagem. Esse

trecho, como dito anteriormente ao se discutir as teorias de Barthes (1972, 1976), é

também um elemento preditivo, justificando os futuros pedidos de casamento de Bête

recusados pela protagonista.

coisa". Esse pensamento a animou novamente Abriu a biblioteca e viu um livro onde estava escrito em: Deseje, ordene, você é a rainha e dona deste lugar. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 38 -39). 32

Mas, ao mesmo tempo, todos diziam: "Estamos bem tristes pela infelicidade de Bela. É uma moça tão boa! Ela falava com os pobres com tanta bondade, era tão meiga, tão honesta!". Houve até vários cavalheiros que quiseram se casar com ela, embora estivesse sem vintém. Mas ela dizia que não poderia

abandonar seu pobre pai à sua infelicidade, e que o seguiria em sua vida no campo para confortá -lo e ajudá-lo no trabalho. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 19-20).

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Em contrapartida, o estudo comparativo da duração de uma narrativa e da

história, como ressalta Genette (1976, p. 85-86), tende a ser complexo, visto que nada

pode medir sua duração. Segundo o autor (1976, p. 92 -111), a duração comporta a

elipse (omissão narrativa, ausência da pausa descritiva que afeta o tempo narrativo), a

pausa (suspensão da narrativa, por um momento, e descrição de um fato externo à

narrativa) e, a já estudada, sumarização.

A cena abaixo exemplifica a elipse temporal e a pausa:

La Belle, agréablement surprise, donna la main à ce beau prince pour le relever. Ils allèrent ensemble au château et la Belle manqua mourir de joie en trouvant, dans la grand-salle, son père et toute sa famille, que la belle dame qui lui était apparue en songe avait transportés au château. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2011, p. 40)33

Algum tempo antes – não é especificado no texto, ocorre uma elisão temporal -

Belle vê Bête se transformando em um príncipe e confessa o seu amor. Há uma pausa

narrativa que termina com a explicação do príncipe de que foi transformando naquele

monstro por uma fada má (esse trecho não explicita o motivo específico da

transformação, como mostrado anteriormente). Espera-se a reposta de Belle, mas o

narrador interrompe a ação para descrever a chegada de sua família, transportada por

uma fada boa até o castelo.

Considerações Finais

A partir dos dados levantados nessa análise narrativa, na primeira parte da

pesquisa submetida à FAPESP, teve-se como propósito elucidar alguns conceitos de

literariedade, de Jakobson (2007), Culler (1999a, 1999b) e Compagnon (2010a, 2010b),

e análise da estrutura discursiva, conceitos de Barthes (1972, 1976), e as instâncias

narrativas de Genette (1976) dentro do sistema narrativo do conto La Belle et la Bête.

Assim, optou-se por incluir uma parcela do material produzido nesse período para

33

Bela agradavelmente surpresa, estendeu a mão para o l indo príncipe se levantar. Foram juntos para o

castelo, e Bela quase morreu de felicidade ao encontrar, na grande sala, seu pai e toda a sua família, que a bela mulher do seu sonho trouxera até ali. (LEPRINCE de BEAUMONT, 2014 p. 53).

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ilustrar o trabalho feito até o momento apresentando trechos teóricos entrelaçados a

uma comparação literária do conto.

Este estudo teve como objetivo, como dito anteriormente, a compreensão da

estrutura narrativa e textual do conto para iniciar a segunda fase do projeto, o estudo

comparativo e analítico da transposição narrativa do conto La Belle et la Bête (2011)

em outro meio semiótico – HQ.

Por ser um dos contos mais conhecidos atualmente (Durrenmath, 2011, p. 68-

83), La Belle et la Bête (2011) possui várias adaptações ao longo dos anos que

comportam riquezas de detalhes e novas perspectivavas narrativas. Isso só é pos sível

graças à sua literariedade. Em um estudo sobre adaptação e transposição semiótica, é

necessário compreender a organização textual da obra para que se possa estudá-la e

compreender suas reinterpretações. Compagnon (2010, p. 41-43) evidenciou em seu

trabalho que a literariedade é a reorganização diferente e mais complexa dos materiais

linguísticos. Assim, através do estudo de sua composição, por meio das categorias de

análises e funções narrativas de Genette (1976) e Barthes (1972, 1976), é possível

analisar obras transportadas semioticamente para outros meios, no caso dessa

pesquisa a HQ La Belle et la Bête de L’Hermenier (2014).

Como Scheneider e Torossian (2009, p. 132) ressaltam, as histórias narradas nos

contos eram difundidas desde a antiguidade e sua influência e relevância são

comprovadas. Seguindo a teoria de transposição literária de Vieira (2010, p. 2-3), essas

narrações eram ricas, pois contavam com múltiplos modos de comunicação como oral,

escrito, visual e gestual, além de uma clara intertextualização com textos anteriores

que, ao longo de suas releituras, retomavam a narrativa “original”.

Entender a construção narrativa do conto permite a melhor compreensão de

sua transposição literária, visto que a narrativa da história em quadrinhos se apropria

de alguns elementos narrativos do conto La Belle et la Bête (2011) e os configura em

uma nova narrativa, apropriando-se das imagens, gestos, elementos orais e escritos

para recontar essa história.

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Referências

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BENVENISTE, E. As relações de tempo no verbo. In: Problemas de Linguística Geral.

São Paulo: Ed. Nacional, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1976, p. 260-283.

CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992, p. 452-

475.

COMPAGNON, Antoine. O que restou de nossos amores? In: O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 29 – 46.

______. A literatura. In: O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 29- 46.

CULLER, Jonathan. O que é literatura e tem ela importância? In: Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Becca Produções Culturais Ltda, 1999, p. 26 -47.

DINIZI, T. F. N. Tradução Intersemiótica: do texto para a tela. Catarina: Cadernos de Tradução, V. 1, nº 3, 1998. PLAZA, J. Transposição Intersermiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.

DURRENMATH, M L. L’adaptation d'un conte de fées littéraire au cinéma: l'exemple

de La Belle et la Bête de Walt Disney. Université de Lyon, Setembro, 2001.

GENETTE, G. O Discurso da Narrativa. Lisboa: Vegas, 1976.

JAKOBSON, R. Linguística. Poética. Cinema. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.

LEPRINCE de BEAUMONT, J.-M. La Belle et la Bête et autres contes. Italie: Éditions Larousse, 2011.

______. A Bela e a Fera. 1. ed. Tradução Marie – Hélène Catherine Torres; Ilustrações de Laurent Cardon São Paulo: Poetisa, 2014.

PROPP, V. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

ROAS, D. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Editora Unesp,

2014

SCHNEIDER, E.F.; TOROSSIAN, S. D. Contos de fadas: de sua origem à clínica

contemporânea. Minas Gerais: Psicologia em Revista, V. 15, n.2, 2009.

TARTAR, M. A Bela e a Fera. In: Contos de Fadas. Edição comentada & ilustrada, Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 63-83.

______. A leste do Sol e a Oeste da Lua. In: Contos de Fadas. Edição comentada &

ilustrada, Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 106-200.

TODOROV, T. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Editora Moraes, 2014.

VIEIRA, E. V. C. Das apropriações literárias: algumas considerações a respeitos da literatura e do suplemento de Derrida. Minas Gerais: Em Tese, V. 16, nº 13, 2010.

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VILLENEUVE, G-S. de. La Belle et la Bête. Paris: Éditions Gallimard, 2010.

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A POESIA NO JUDICIÁRIO – CONTESTAÇÃO E DECISÃO

Maria Cecília Junqueira (UNICSUL)

Em 2011, o advogado Carlos Antônio Nascimento contestou a decisão de um

juiz que representava uma determinada seguradora de carros, quando foi negado o

pagamento de um seguro, sob alegação de que o cliente, que ficou inválido devido à

colisão, residente em Palmas, no momento do acidente, em novembro de 2010, estava

no município de Pugmil e não no de Palmas. O advogado poderia fazer uma

contestação, de acordo com as estruturas redacionais do texto jurídico, seguindo o

modelo normalmente usado para essa situação, pois:

A constituição do texto jurídico obedece aos mesmos princípios redacionais do texto comum (...) deve ser claro e preciso, pois, representado nas diversas peças processuais – petição inicial, contestação, apelação, decisão etc. – leva a pretensão jurídica da pessoa que se envolve em uma demanda judicial. Nesse caso, exigem-se do profissional do Direito competência linguística e capacidade intelectual, pois ele deve dominar as técnicas da redação forense para veicular com propriedade sua mensagem jurídica. (VIANA, 2007, p 154)

Entretanto, apesar da esfera de ação jurídica e da estrutura composicional

padronizada da contestação, ele optou por uma organização textual em versos 34. O

advogado Nascimento compôs uma única estrofe, sem omitir as doutrinas e leis que

embasavam sua contestação, ou seja, seguiu as diretrizes do Código de Processo Civil

(CPC) brasileiro, além de preocupar-se em não ofender a outra parte no processo, o

juiz, como segue o enunciado:

O autor sobre o evento sete (07) vem falar Que lesado foi ao acidentar Por isso, procurou onde a demanda ajuizar Preferiu o domicílio do réu sem vacilar

34

Há outros casos de documentos jurídicos, seguindo a estrutura composicional em versos, como o

habeas corpus, em versos, de Ronaldo Cunha Lima, poeta e ex-senador, enviado a um juiz – documento que inspirou o advogado Carlos Antônio Nascimento.

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Sendo competência territorial pôde optar Seja, onde há sucursal ou onde morar Isso é jurisprudencial não precisa reafirmar Ademais, o réu sabe que deve pagar, Aqui ou em outro lugar Porém, para modificar, não basta alegar Prejuízo tem que demonstrar Sobre esse intento não conseguiu provar. Portanto, o autor para finalizar Pede para o doutor, a presente rejeitar Essa é a contestação, Parece de canastrão Mas, sem atrevimento. Pede, suplica o deferimento", (Carlos Antônio Nascimento)

Para surpresa do advogado e da seguradora, a decisão do juiz Zacarias

Leonardo, também seguiu a estrutura composicional em versos 35, diferentemente dos

modelos de decisão padronizados.

Esperava-se um outro tipo de enunciado, tanto da parte do advogado quanto

da do juiz, conforme as condições específicas e as finalidades da esfera de atividade

em questão, jurídica, e um processo de produção que fizesse relação de uma

linguagem e uma estrutura composicional mais herméticas, de acordo com os

parâmetros/modelos já estabilizados.

Tanto ao advogado quanto o juiz agiram por meio dos gêneros, os quais se

caracterizavam também pela tensão entre o individual e o coletivo, conforme postula

Bakhtin (2003, p. 262) “Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas

cada tipo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de

enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”.

Mesmo sendo a contestação e a decisão jurídicas, gêneros menos flexíveis,

mais estereotipados, menos individuais, de acordo com Bakhtin:

As condições menos favoráveis para refletir a individualidade na língua são as oferecidas pelos gêneros do discurso que requerem uma forma padronizada, tais como a formulação do documento oficial, da ordem militar etc. Nesses gêneros só podem refletir-se os aspectos superficiais, quase biológicos, da individualidade. (2003, p 265)

35

Anexo I

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Isso não significa que não possa aparecer um estilo individual, como

demonstrado nos enunciados apresentados pelos envolvidos, comprovando que o

gênero é relativamente estável e não fixo, pois ambos, advogado e juiz, abandonaram

os modelos padronizados de contestação e decisão jurídicas para inserirem suas

marcas pessoais.

Conforme já afirmamos, depois de lida a contestação do advogado, o juiz

escolheu o mesmo gênero em forma de versos, possibilitando que a ação entre os dois

fosse compreensível, como Bakhtin (2003, p 283) afirma:

Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determina construção composicional, prevendo o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não o dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível.

Sabe-se que os gêneros estão em constante mutação, mesmo nas esferas em

que há uma linguagem mais padronizada, hermética, entretanto, apesar das

alterações, é preciso sempre não se descuidar do enunciado, pois:

O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. (BAKHTIN, 2003, p 261 – 262)

As partes envolvidas no processo, advogado e juiz, em momento algum,

deixaram de mostrar suas intenções por intermédio da contestação e da decisão,

respectivamente, apenas optaram por transmitir seus pareceres “suas falas” pela

estrutura composicional do gênero com a cenografia do poema, escolha de uma forma

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- e, consequentemente, estilo -, não aleatória, mas a que consideraram melhor para o

propósito em questão.

Isso significa que, a cenografia foi instalada com base em cenas validadas,

contestação e decisão, de acordo com Maingueneau:

A cenografia implica, desse modo, um processo de enlaçamento paradoxal. Logo de início, a fala supõe uma certa situação de enunciação que, na realidade, vai sendo validada progressivamente por intermédio da própria enunciação. Desse modo, a cenografia é, ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra , ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo que essa cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar como convém. (MAINGUENEAU, 2013, p. 87 – 88)

Essa alteração não comprometeu os gêneros contestação e decisão, formas de

ação social, de perceber e de agir na sociedade, pois notamos os traços do grupo –

advogado e juiz – que compuseram os enunciados, como esclarece Marcuschi “os

gêneros são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social.

Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as

atividades comunicativas do dia a dia. São entidades sociodiscursivas e formas de ação

social incontestáveis em qualquer situação comunicativa (2002, p. 19).

Bakhtin já afirmava haver uma riqueza e variedades de gêneros pensando nas

inúmeras possibilidades de ação humana e as muitas esferas de atividade existentes e

considerava importante vincular o gênero com a esfera de atuação, pensando também

na historicidade dos gêneros e na instabilidade de cada gênero.

No ato de construção do enunciado do advogado e do juiz houve uma tensão

sócio-histórica, oriunda da necessidade produzida na esfera de comunicação jurídica,

ou seja, selecionaram um gênero que alargou as possibilidades e até aproximou as

esferas.

Para que o enunciado com a cenografia de poema selecionado tivesse sentido,

foi necessária uma relação entre as partes envolvidas, pois:

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39

O gênero somente ganha sentido quando se percebe a correlação entre formas e atividades. Assim, ele não é um conjunto de propriedades formais isolado de uma esfera de ação, que se realiza em determinadas coordenadas espaço-temporais, na qual os parceiros da comunicação mantêm certo tipo de relação. (FIORIN apud Bakhtin, 2003, p 76)

Notamos que tanto o advogado quanto o juiz tinham controle sobre o gênero

contestação e decisão, respectivamente. Eles não criaram novos gêneros ao

transformarem os documentos jurídicos, mas, por dominarem a esfera de

comunicação em que estavam inseridos e por vivenciarem as atividades dessa esfera,

em posição hierárquica validada, souberam controlar o elemento da estrutura

composicional do poema, gênero adotado, mantendo-o a serviço da contestação e da

decisão.

A transformação dos gêneros fez com que fossem aproximadas esferas, ou seja,

a instabilidade criada, no momento em que o advogado transformou o gênero

contestação, foi estabilizada quando o juiz criou seu enunciado, a decisão judicial, em

forma de texto poético.

Assumindo que, nos gêneros, há sempre uma estrutura organizacional, um

tema e um estilo. Nos enunciados analisados, o advogado e o juiz, apresentaram uma

construção organizacional: em versos e rimas; um conteúdo temático, na contestação:

a não aceitação da decisão inicial e, na decisão: o indeferimento do teor da

contestação; um estilo, no meio jurídico: escolhas lexicais e construção das estrofes.

No caso, houve um cruzamento entre os gêneros contestação e decisão com o

gênero poema, ou seja, transportaram para os versos - componentes característicos da

estrutura composicional do gênero poema -, outra estrutura composicional: a temática

e o estilo dos documentos jurídicos contestação e decisão.

Importante destacar que a contestação e a decisão judicial fizeram parte de

uma instância que dependia de respostas para que o processo seguisse e para que as

partes, cliente acidentado ou seguradora, soubessem qual era a posição e a decisão,

pois ambos dependiam dos pareceres.

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Quando o advogado optou em fazer a contestação em versos, sua intenção

inicial, inspirada no habeas corpus de um colega de profissão, era valorizar, chamar a

atenção e argumentar de forma não usual. Assim, escolheu uma maneira de

influenciar o juiz, fazendo-o pensar no pedido e a recebê-lo de forma diferente e,

quando o juiz aceitou a contestação (este poderia recusá-la pela posição hierárquica

que ocupava no sistema jurídico), referendou a contestação e legitimou o ato de

comunicação, ao “compor” a decisão, também, em forma de versos, ato que talvez

tenha sido um reforço de sua imagem.

Com isso, o juiz entrou no diálogo do enunciado concreto, a decisão, dialogou

com outro, a contestação, que veio antes e que aponta para que outros entrem em

diálogo com eles, como afirma Bakhtin:

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. (1988, p 88)

Uma situação semelhante ocorreu quanto um policial fez uso de um B.O. em

forma de versos36. No entanto, no caso dele, considerou-se uma punição: “Segundo a

assessoria de imprensa da PM mineira, o militar, que não teve o nome divulgado,

desrespeitou a técnica de redação dos documentos militares, o que poderá lhe render

uma punição”, (apud SPARANO, 2012, p 15 - 16) provavelmente porque o enunciatário

sentiu-se desrespeitado pelo fato de o enunciador, o policial, não ter legitimidade para

escrever o documento diferentemente da forma usual utilizada nas ações no domínio

policial.

Podemos concluir que, no caso do advogado e do juiz, os enunciados jurídicos

foram aceitos em todas as esferas, sem que a posição do enunciatário fosse

questionada ou avaliada de forma negativa, pois foi ponderado quem podia escrever

os enunciados, como deveriam ser escritos e para quem eram direcionados; o que não

ocorreu com o militar, pois, provavelmente, por não considerar esses fatos e, devido

36

Revista Metáfora, edição nº 16 – A poesia de um B.O.

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sua posição hierárquica, o ato de comunicação não foi considerado apropriado para a

situação em que se inseria e a resposta assinalou essa inadequação.

Finalmente, podemos afirmar que tanto a contestação quanto a decisão são

discursos de tipologia heterogênea, pois a estrutura composicional dos poemas, além

de trazer sequência expositiva, apresentou outra sequência argumentativa, no

momento em que o advogado e o juiz, por meio de seus argumentos, tentaram

convencer o enunciatário de seus pontos de vista, ora em favor do cliente ora em favor

da seguradora.

Considerações finais

Vimos que, em um determinado meio, o qual normalmente exigiria o uso de

um gênero mais específico, houve um cruzamento do gênero contestação e decisão

com o gênero poema, pelo uso dos versos e das rimas, além da manipulação do metro

do verso, sem, entretanto, comprometer o discurso dos enunciadores, pois os

envolvidos não omitiram em momento algum nas estruturas composicionais de seus

documentos, as doutrinas, as leis, diretrizes do Código de Processo Civil (CPC)

brasileiro.

Nessa enunciação dos gêneros, percebemos que a estrutura composicional, o

tema e o estilo foram apresentados de maneira coesa e coerente, permitindo aos

enunciadores, advogado e juiz, compreenderem os argumentos presentes nos

enunciados contestação e decisão, os quais refletiram as condições específicas e as

finalidades na esfera de ação jurídica, ou seja, houve correlação entre formas e

atividades.

Percebemos que, apesar de os gêneros contestação e decisão serem menos

flexíveis, o enunciado não foi comprometido quando o advogado e o juiz adotaram um

estilo individual, inseriram suas marcas pessoais, comprovando que o gênero é

relativamente estável (com ênfase nesse caracterizador) e não fixo.

Apesar da forma como os documentos jurídicos foram apresentados, em

momento algum pensou-se em descredenciá-los, pois, quando o juiz respondeu ao ato

de comunicação iniciado pelo advogado demonstrou, devido à sua situação

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hierárquica, que o documento apresentado pelo advogado não poderia ser recusado: a

instabilidade criada pelo advogado foi estabilizada no enunciado do juiz.

Finalmente podemos concluir que “o conceito de gênero é, portanto, um instrumental

para nos aproximarmos das relações que existem, existiram e existirão na nossa sociedade

possibilitando uma compreensão mais ampla e crítica do que sejam nossas ações, como

pensamos nosso entorno, como nos relacionamos por meio de gêneros.” (SPARANO et al,

2012, p 30).

Referências

BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora da Unesp/Hucitec, 1988.

FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016.

MAINGUENEAU, D. Tipos e Gêneros de Discurso. In ______. Análise de Textos de Comunicação. 6. ed. Tradução de Cecília P. Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2013.

MARCUSCHI, L.A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO. A.P.; MACHADO, A.R.; BEZERRA, M.A. (orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

COSTA, Lailton. Curiosidade: advogado peticiona em versos e juiz decide em prosa e poesia. Julho, 2015 In: Site do Poder Judiciário Tribunal de justiça - Estado de Tocantis. Disponível em: <http://www.tjto.jus.br/index.php/listagem-noticias/3544-curiosidade-advogado-peticiona-em-versos-e-juiz-decide-em-prosa-e-poesia>. Acesso: jun. 2016.

SPARANO, M. et. al. Gêneros textuais: construindo sentidos e planejando a escrita. São Paulo: Terracota Editora, 2012.

VIANA, J. M. Manual de redação forense e pratica jurídica. 3. ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2007.

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Anexo:

I -

PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE PALMAS

PROCESSO 5030866-83.2013.827.2729 4ª VARA CÍVEL

Vistos.

Itaú Seguros S/A em razão da ação de cobrança que lhe move XXXXXXXXXXX nos autos do processo cito acima manuseou a presente exceção de incompetência (...).

O excepto, em versos, impugna a exceção argumentando ter optado pelo domicílio do demandado e invoca precedentes acerca do tema. Requer o não acolhimento da exceção (evento 9).

DECIDO: "Em versos e jurisprudências responde o excepto; Não pode ser acolhida a exceção; acertado pontua; O juízo competente é do domicílio do autor ou do local do fato; Esqueceu-se a excipiente não ser escolha sua. A lei contemplou o domicilio do autor ou o local do acidente; Assim é mais fácil para a vítima do sinistro pensou o legislador; Em sua casa, com sua gente ou onde se feriu o requerente; Pareceu mais propício buscar lenitivo e reparo à sua dor; Mas, onde mora o requerente? Perquire o judicante; Mora em Palmas e se feriu quando no interior se encontrava; Em seu parágrafo único o artigo cem (100) soluciona o embate; O foro do domicílio do autor era escolha que bastava. A contestação não parece de canastrão; Pelo contrário, sem respaldo legal e sem assento; Parece, isto sim, a exceção, uma medida de protelação; Coisa de instituição financeira querendo ganhar tempo. De fato a jurisprudência é de remanso; Por outro lado a legislação é de meridiana clareza; Enquanto o requerente espera ansioso o desfecho; Navega tranquila a seguradora sob o benefício da destreza, É preciso colocar na espera um ponto final; Por isso, sem mais delongas, porque não sou poeta;

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Firmo de logo a competência do juízo da capital; É aqui que se deve resolver o quanto o caso afeta", Face ao exposto, nos moldes do artigo 100, parágrafo único do Código de Processo Civil, rejeito a exceção reafirmando a competência do Juízo da Comarca de Palmas para conhecimento e julgamento da questão. Após o término do prazo recursal, prossiga-se nos autos principais. Int. Palmas, 11 de junho de 2015

Zacarias Leonardo

(Juiz de Direito)

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O ABISMO E A MUDANÇA: UMA ANÁLISE ESTILÍSTICA DO POEMA “POR

MOTIVO DE MUDANÇA” DE ANTÔNIO BARRETO

Carla Candido Gomes de Andrade (UNICSUL)

Introdução

Na construção de poemas, muitas são as possibilidades de união entre

grafemas, fonemas, lexemas, sintagmas e frases, seja em versos, seja em estrofes. O

estilo e as intenções do poeta ficam marcados nos poemas por meio de suas escolhas

linguísticas e não linguísticas. Ler poesias implica considerar o máximo de aspectos

possíveis para ampliar as possibilidades de interpretação. Contudo, não são somente

os aspectos que envolvem produção e produtor, que devem ser considerados na busca

pela interpretação dos poemas. O leitor deve ser, também, considerado, pois, assim

como afirmou Heráclito de Éfeso, o sábio grego, não se pode entrar no mesmo rio duas

vezes, não é possível “ler” um poema duas vezes da mesma forma. Isso porque, a cada

vez que o lemos, podemos e costumamos ser tomados por sensações únicas e novas.

Analisar poemas, nessa perspectiva, é buscar respostas para algo que nos

inquieta. Uma palavra ou um som entrando por nossos olhos e/ou ouvidos salta logo a

nossa mente e ali ressoa rebelde em busca de sentido, tornando-se uma inquietação,

cujo remédio - a interpretação- costumamos encontramos no próprio texto.

Para mostrar esse processo de inquietação/análise/interpretação,

selecionamos como tema o poema “Por Motivo de Mudança” de Antônio Barreto,

buscando identificar qual é a mudança descrita no texto e demonstrar como o

processo acontece no poema em questão.

O poema “Por Motivo de Mudança”, escrito pelo poeta mineiro Antônio

Barreto, foi publicado em 1988, no livro Vastafala. Livro com o qual o poeta ganhou,

no mesmo ano, o Prêmio Nestlé de Literatura. O poema analisado, inicialmente, fazia

parte de uma série chamada Revelações do Abismo, título que iremos explorar, de

modo breve, mas com relevância, em nosso trabalho. A necessidade de considerarmos

o título da série em que se encontrava, inicialmente, o poema surge do fato de que a

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ideia de abismo e de mudança é constante dentro do texto. Sustentam essa ideia de

abismo e de mudança figuras de linguagem como antíteses e paradoxos. Esses

elementos auxiliam na construção de um cenário dinâmico, vivo e em transformação.

A própria estrutura do poema, com seus versos de ritmo livre, colabora com a

construção desse espaço.

Partindo dessas considerações iniciais, esse estudo almeja mostrar que a

principal mudança descrita no poema é a interna, sendo, portanto, o eu lírico agente

ativo e/ou passivo. Ele busca mostrar, também, que essa mudança é fruto de alguns

abismos e momentos difíceis enfrentados pelo eu lírico, que ainda não está concluída,

mas sim em processo. Para isso, destacaremos como, quando, e quais recursos não

linguísticos e linguísticos são utilizados pelo poeta para materializar a mudança

descrita. Nosso percurso inicia-se com a apresentação do poeta, do poema e alguns

dizeres da Estilística, e segue com a análise do mais superficial para o mais profundo, a

saber: “O abismo e as mudanças visíveis no poema”, em que faremos uma análise do

espaço em que o poema se desenvolve; “Sensações de complexidade, dificuldade e

continuidade: analisando o título e o corpo do poema”; e “ O eu lírico: agente ou

paciente da mudança?”; em que analisaremos o eu lírico e o seu papel no processo de

mudança descrito. Encerraremos com nossas considerações finais.

Desenvolvimento

Fundamentação Teórica

Antônio Barreto, como é mais conhecido o poeta batizado por Antônio de

Pádua Barreto Carvalho, nasceu em Passos, Minas Gerais, no ano de 1954, e, ainda

bastante jovem, iniciou o seu trabalho como escritor. É poeta, contista, romancista e

cronista, já tendo trabalhado para periódicos como o Pasquim, Estado de Minas, O

Estado de São Paulo, Jornal do Brasil. Bastante engajado em seu ofício como escritor,

com apenas 15 anos, escreveu junto aos estudantes da união Passensse, e com o

Grupoema, os periódicos Liba e Protótipo. Aos vinte anos fundou com escritores das

regiões Sul e Sudeste do Brasil, a Editora Cooperativa de Escritores, aos vinte seis, em

seu estado de origem, participou da fundação da Associação Profissional dos

Escritores. É um escritor internacionalmente reconhecido e bastante premiado,

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dentre seus prêmios destacamos: IV Bienal Nestle de Literatura Brasileira, com o livro

Vastafala; Prêmio Petrobrás de Literatura Brasileira, com o livro Espantário; Prêmio

Ezra Jack Keats, concedido pela Unicef; Prêmio Nacional Banco Mercantil de Poesia,

com o livro Guindaste. A enciclopédia Itaú Cultural apresenta-o como uma pessoa

possuidora das seguintes habilidades: Poeta; Historiador; Profissional das Letras e

Projetista. Aqui, destacaremos as suas habilidades como poeta e como projetista, isso

porque é destacável o cuidado que o autor teve com a construção de seu poema.

O poema, “Por Motivo de Mudança”, possui trinta e sete versos, distribuídos

em três estrofes da seguinte maneira: vinte e cinco, sete e cinco versos em cada uma.

É composto por versos de ritmo livre, que segundo Bechara, “não tem um número

regular de sílabas, versos e estrofes, nem são uniformes e coincidentes o número e a

distribuição das sílabas átonas e tônicas responsáveis pelo movimento rí tmico”

(BECHARA,2005, p.645).

Como o texto é escrito em versos livres, traz para a sua análise possibilidades

de análise semelhantes às encontradas na música. (TREVISAN, 2000, p. 210) afirma que

“A escrita é um esqueleto da riqueza verbal do verso”. Ele explica que costumamos

deixar de observar a riqueza auditiva dos versos livres, que assim como a música é

também constituído de pausas, retardamentos e acelerações. Destacamos que, tanto

para Trevisan (2000) quanto para (BECHARA, 2005, p.645), criar um vers o livre é um

trabalho árduo. Para aquele, o autor de versos livres precisa “ser duas vezes poeta

para produzir bons versos livres”, assim como o leitor deve “ser duas vezes leitor para

saborear a riqueza subliminal desse tipo de poema”; já para esse “ O verso de ritmo

livre exige do poeta uma realização tão completa quanto o verso regular. ”. Cientes

disso, apresentamos alguns conceitos propostos pela estilística, entendendo que eles

podem orientar a apreensão e a descoberta das riquezas implícitas do texto de

Antônio Barreto.

A Estilística é uma da disciplina da Linguística que tem como objeto de estudo o

estilo. Dentre as muitas definições para estilo, selecionamos como síntese para o estilo

que buscamos observar nesse trabalho, a de Guiraud (apud MARTINS, 2003, p. 02) “O

estilo é o aspecto do enunciado que resulta de uma escolha dos meios de expressão,

determinada pela natureza e pelas intenções do indivíduo que fala ou escreve”. Longe

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estamos de nos julgar aptos a desvendar todos os meios de expressão e,

principalmente, todas as intenções do indivíduo que escreveu o poema. Contudo, a fim

de realizar o que apresentamos como objetivo, buscaremos, auxiliados pela Estilística,

desvendar alguns dos meios de expressão utilizados pelo escritor, realizando uma

análise de quais intenções, ideias e sensações podem ser inferidas ou explicitadas com

essa utilização. Para isso, utilizaremos diversos campos de estudo da estilística, pois

Todos os fenômenos linguísticos, desde os sons até as combinações

sintáticas mais complexas, podem revelar algum caráter fundamental

da língua estudada. Todos os fatos linguísticos, sejam quais forem,

podem manifestar alguma parcela da ida do espírito e algum

movimento da sensibilidade. (BALLY apud BECHARA, 2005, p.618)

Dentro da Estilística, existem algumas denominações diferentes para os campos

que estudam os fenômenos linguísticos. Nesse trabalho, utilizaremos as definições

formuladas por Martins (2003), a saber:

A estilística léxica ou da palavra é aquela que observa os aspectos

expressivos alcançados pelo uso das palavras, sejam elas lexicais ou

gramaticais. Desse campo de estudo, trabalharemos com os valores

semânticos relacionados às escolhas lexicais do poeta e com as

metáforas;

A estilística do som ou fônica é aquela que analisa a expressividade

sonora das palavras e enunciados. Ela considera que os sons das

palavras são capazes de provocar sensações, de sugerir impressões e

ideias. Desse campo de estudo, trabalharemos com a aliteração, com o

uso expressivo da gama vocálica e com as pausas e suas evocações,

construídas por meio da métrica dos versos;

A estilística da frase é aquela que considera a sintaxe como atividade

criadora, sendo importante tanto por seus aspectos gramaticais, quanto

pelos seus aspetos estilísticos. É na frase que os valores expressivos das

palavras adquirem sentido e ganham tom particular. Nesse trabalho,

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observaremos o paralelismo sintático; as vozes verbais; elementos

essenciais, integrantes e acessórios da sintaxe da língua como: sujeito,

complementos verbais e adjuntos adverbiais;

A estilística da enunciação é aquela que considera que elementos fora

do enunciado devem ser considerados para que ele seja compreendido.

Dessa forma, na estilística da enunciação, existe um olhar para a relação

entre os protagonistas do discurso: locutor, referente e receptor. Não

ficando o analista preso somente às questões fonológicas, morfológicas,

semânticas e sintáticas do discurso. Aqui, trabalharemos principalmente

com o papel do locutor e com a explanação do referente. No papel de

receptores, estaremos de modo implícito, porém ativo na construção

das análises e das interpretações.

Discussões

O abismo e as mudanças visíveis no poema.

O tema do poema é mudança, contudo, não podemos deixar de considerar que

a ideia de abismo37, permeia todo o texto. Assim como não podemos desconsiderar as

habilidades de projetista do indivíduo escritor desse poema, que soube construí-lo de

forma que o abismo pudesse ser observado de um duplo aspecto: interpretativo e

visual. Retiramos e destacamos do poema algumas palavras e expressões importantes

para a compreensão do projeto estrutural do texto, são três pares de paradoxos (p) e

um par de antítese (a). No quadro 1, notamos como essas escolhas reforçam a

sensação de mudança e de abismo, pois elas descrevem mudanças de valores

semânticos, como: Liberdade vs. Prisão; Luz vs. Escuridão; Ficar vs. Abandonar; Bem vs.

Mal. Essas oposições são tão extremas que podemos visualizar a formação de um

abismo, que vai do inferno, nas profundezas da terra, até o céu.

1

37

O poema inicialmente fazia parte de uma série intitulada Revelações do Abismo.

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Ainda, pensando nos meios de expressão utilizados na construção do poema,

além das figuras de linguagem, destacamos a escolha feita por versos de ritmo livre.

Em versos dessa natureza, o poeta não conta com um número fixo de sílabas e pausas

para dar ritmo ao seu poema. Ele deve, portanto, utilizar outros recursos para

construí-lo. Em “Por Motivo de Mudança”, a escolha de Barreto por realizar um

projeto estrutural com versos de métricas bastante distintas, serve não apenas para

trazer ritmo e melodia ao seu escrito, mas também, amplia e materializa a sensação de

mudança e de abismo por ele apresentada. É como se o eu lírico fosse do céu ao

inferno, da escuridão à claridade e da liberdade à prisão, oposições semânticas já

marcadas linguisticamente por meio das antíteses e dos paradoxos, mas também

visualizadas em versos, como os em destaque abaixo. Neles podemos observar a

dissimetria entre os versos, com duas e treze sílabas métricas, o que torna o abismo

visível dando-lhe um aspecto material.

No quadro seguinte, reproduzimos todo o poema e alteramos a sua posição

para 90o à esquerda, nessa posição, podemos verificar que os dois versos são os

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exemplos mais emblemáticos da construção de um cenário de mudança e de abismo,

mas não são os únicos. Haja vista, a presença marcante de versos ascendentes e

descendentes. Essa presença auxilia e reforça a visualização de um processo de

mudança abismal ou extremo.

2

Sensações de complexidade, dificuldade e continuidade: Analisando o título e corpo

do poema

Anteriormente, vimos a descrição de um espaço drasticamente modificado.

Agora analisaremos parte da história que é contada dentro dele. Mostraremos que

toda aquela alteração não aconteceu de repente. Pelo contrário, ela fez parte de um

processo complexo, difícil e não concluído.

Entre os elementos que sustentam essa conclusão destacamos a presença do

paralelismo sintático. Com esse recurso, ao repetir expressões com o mesmo valor

sintático, além de auxiliar na construção do ritmo do poema, o autor arquiteta uma

narrativa marcada por sucessivas desventuras e decepções. Na primeira coluna do

quadro 3, observamos uma sequência de expressões que exercem a função de

complementos verbais, mais especificamente, de objetos diretos, e todos eles

relacionados a forma verbal “Oferece-se”. Na segunda coluna, verificamos a repetição

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de adjuntos adverbiais indicadores de modo, novamente relacionadas ao verbo

oferecer.

3

A ocorrência do paralelismo, observado no quadro não pode ser desprezada,

pois, pensando no texto como um projeto do dizer do projetista Antônio Barreto, que

possui, contando com o título, 37 versos, a presença de 19 com função semelhante é

relevante e essencial, para entender que não foi um, mas sim que foram muitos, os

componentes dessa mudança. O que nos permite continuar inferindo, o quão

complexa foi essa mudança.

Continuando nessa linha de demonstrar as dificuldades da mudança,

enfatizaremos outras evidências linguísticas (fonológicas, morfológicas, semânticas e

lexicais), encontradas no título e no corpo do texto, que apontam a construção de uma

narrativa constituída por um complexo, difícil, mas, também, contínuo processo de

mudança.

Sobre a complexidade e continuidade da mudança, observando os sons

encontrados no título. Nos exemplos abaixo, destacamos a expressividade alcançada

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pelo uso da gama vocálica3, que traz ao verso uma sensação de seguimento complexo

e movimentado. Nele (no título), é como se em um mesmo e pequeno quadro, o

artista utilizasse todos os matizes de sua paleta, no caso os matizes vocálicos de nosso

idioma, para expressar seus sentimentos. Enfatizamos, também, que a presença da

nasal4/ ã/transmite ao enunciado uma ideia de continuidade, que é ampliada

exponencialmente pela sua inserção na palavra lexical5 /dança/, palavra que, por si só,

graças aos valores semânticos a ela agregados, é capaz de indicar algo não estático e

em movimento.

• Por Motivo de Mudança3 – todas as vogais são utilizadas nessas quatro

palavras.

• Por Motivo de Mudança4 - a nasal /ã/ passa uma ideia de movimento, e de

continuidade.

• Por Motivo de Mudança5 - a presença da palavra dança reforça a ideia de

movimento.

Ainda sobre o título, e analisando as palavras sob uma perspectiva morfológica,

percebemos que a locução prepositiva /por motivo de/ que tem a função de ligar dois

termos entre si, estabelecendo entre eles uma relação de dependência, aqui não

realiza essa função, pois falta a ação a que se atribui a caus a/motivo, o que nos deixa

com a sensação de algo não acabado. Essa constatação reforça a nossa impressão de

mudança complexa e não concluída.

Para mostrar essa alteração, hoje, diferente de ontem, o autor constrói um

cenário desolador. Nesse espaço, o eu lírico, o amor, e/ou o objeto do amor, deixam

de existir (ao menos da forma como o eram antes da mudança), haja vista os versos 6

/— o poeta mudou de ramo —/

/que foram escritas no peito/ onde alguém se esqueceu/de

ficar/ 6

que deixam bastante clara essa alteração de status, poeta e “alguém” fora de cena,

restando apenas todo o peso negativo trazido pela escolha de palavras e expressões

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relacionadas a comércio7; violência8; ausência e/ou abandono9; dureza e/ou prisão10;

e escuridão11, conforme encontramos no próximo quadro.

4

As escolhas lexicais, visíveis no quadro 4 acima, sugerem-nos qual era a base

das relações vivenciadas pelo eu lírico. Pela presença delas, intuímos relações

mediadas pelo interesse financeiro, pela violência e pelo abandono. Assim como

inferimos que foram elas as possíveis causadoras de toda a mudança apontada no

poema.

Salientamos que talvez, isoladamente, essas expressões não fossem suficientes

para comprovar que os momentos de mudança passados pelo eu-poético foram de

dificuldade e de luta. Entretanto, a análise do nível fonológico feita de modo

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concomitante o seria. Voltando ao início do poema, no terceiro verso, podemos

observar um dos momentos de aperto, atrito e de pressão vividos pelo eu lírico. Em:

e por necessária deposição de armas12

a aliteração das vibrantes /r/ e das fricativas /s/, /z/, enfatiza essa sensação de

dificuldade, sugerindo a luta, o abalo e o estremecimento causados pelas armas

(vocábulo que por si só já indica luta, posto que é um instrumento de defesa ou de

ataque) que estão sendo depostas. Nesse trecho, recursos semânticos e fonológicos

são utilizados e edificam a nossa certeza, de que o tema mudança apresentado no

poema não pode ser explorado em um viés ameno. Restando-nos, agora, o desafio de

desvendar qual foi, ou é, o papel do eu lírico em toda essa narrativa conturbada.

O eu lírico: agente ou paciente da mudança?

O poema fala de uma mudança complexa e complicada, em franca oposição a

um eu lírico esquivo, um sujeito que pouco se mostra, escondendo-se pela maior parte

da narrativa. Essa fuga do cenário, que se assemelha a uma fuga da realidade, é

explicitada pelo uso excessivo de metáforas. Dos 37 versos apenas um poderia ser

entendido pelo seu sentido literal/ um álbum de fotografias. /, em todos os outros a

sua compreensão fica eivada de subjetividade, posto que os versos só podem ser

compreendidos em seu sentido figurado. Os versos dos exemplos 13 e 14 auxiliam

nessa conclusão. Principalmente, ao considerarmos que nada do que foi oferecido

neles, poderia de fato tê-lo sido, uma vez que um poeta não necessita ter um

endereço físico para o sê-lo e, que não se pode esconder nada no fundo do espelho,

mas sim atrás dele.

E por último, por falta de endereço,

— o poeta mudou de ramo - oferece-se dez musas mal cantadas o pistilo dos deuses o alçapão dos demônios e o alpiste dos anjos.13

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Conforme já demonstramos o eu lírico passou a maior parte do tempo oculto, e

foi somente no enxerto acima, na última estrofe, que o eu lírico, enfim, se revela. O

epíteto poeta, ali, parece surgir como uma derradeira lembrança do que ele gostaria

de deixar de ser: poeta. Sem muito sucesso, pois se o seu verso ainda continua, o

poeta ainda permanece.

Oferece-se, enfim, por motivo de mudança, a gaiola das metáforas o poleiro das imagens e a porta das palavras (a chave escondida no fundo do espelho)14

O trecho anterior, representa a segunda estrofe do poema, nela notamos que a

forma verbal oferece-se, estando flexionada no tempo presente, põe em evidência que

os objetos descritos, assim como as dores e decepções a eles relacionados, ainda

pertencem ao poeta. O que novamente constrói a sensação de mudança em processo

e, reforça nossa afirmação de que ele continua sendo um poeta.

Pleno do mesmo valor de continuidade e de incompletude, podemos destacar o

último verso dessa estrofe, quando ele expõe que a chave para abrir os objetos

descritos está dentro do espelho. Diante dessa afirmação, inferimos que se algo está

dentro do espelho é porque ainda pode ser encontrado dentro de quem o olha,

portanto do poeta.

Ainda sobre o poeta, percebemos que, assim como a não explicitação do eu

lírico, a ausência de pontuação do texto direciona-nos a visualizar novamente, um

sujeito arredio e com muita dificuldade para controlar a mudança em processo. A

presença de poucos verbos, muitas elipses e, principalmente, poucas ações executadas

pelo eu lírico prolonga essa sensação de dificuldade ou impossibilidade de reação

diante das mudanças. Essa noção é, consideravelmente, ampliada, quando

observamos que na maioria das vezes, o poeta esconde-se atrás de um sujeito que a

princípio não identificamos, por meio da construção /oferece-se/, e que esse verbo se

encontra flexionado na voz passiva em todas as suas cinco ocorrências. ( BECHARA,

2005, p. 222) afirma que não podemos confundir voz passiva com passividade.

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Contudo, nesse poema, a recorrência da voz passiva, auxilia na construção de um

sujeito verbal não atuante e inerte, ou seja, passivo.

A ideia de passividade do eu lírico prolonga-se para além do verbo oferecer. No

quadro abaixo, observamos que todas as outras ações do poema, com exceção de uma

/mudou/ - quando o eu lírico revela que ele, o poeta, foi quem mudou – são realizadas

por outras pessoas, o que junto com a presença da voz passiva- observada em seis

construções- reforça a sensação de passividade e de pouco controle da situação de

mudança.

5

Na tabela 5, verificamos na última linha que o poeta mudou e, sendo o poeta o

nosso eu lírico, temos uma falsa impressão inicial, ao identificarmos os elementos

essenciais da oração, que o sujeito estava ali, ativo e agente de suas ações. Contudo, o

verbo e o substantivo no papel de sujeito, não apontam para uma pessoa determinada

no discurso (1ª- eu/nós e 2ª pessoas do discurso- tu/vós), mas sim para uma pessoa

indeterminada, fora do discurso (3ª pessoa- ele/ eles). Ou seja, ao colocar-se na

terceira pessoa, novamente o eu lírico se mostra fraco e passivo, não se assumindo em

nenhum momento como responsável ou corresponsável pelas mudanças apontadas.

Alguns outros elementos do poema apontam para um sujeito fraco e/ou pouco

ativo. Quando o eu-poético se autodeprecia oferecendo dez musas mal cantadas,

mostra que ele não julgava a sua poesia boa. A escolha do pronome indefinido alguém,

como sujeito que esquecendo de ficar o abandona, indica a presença de várias pessoas

em sua vida amorosa, tantas que se tornaram apenas mais uma; ou pode indicar que

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aquela pessoa não foi importante em sua vida amorosa a ponto de se tornar

simplesmente “alguém”.

Assim, fechamos um quadro que buscou descrever como estava o eu lírico

depois de iniciado o processo de mudança e, em especial, buscava desvendar se ele

havia sido agente ou paciente nessa alteração. Descobrimo-lo como uma pessoa: 1)

fraca e arredia, já que mesmo quando se apresentou, o fez com insegurança; 2)

insensível, pois é alguém que possui um coração tão duro capaz de moldar o aço e

bater nas bigornas e que lamenta o abandono, mas não é capaz de se recordar

significativamente de quem o abandonou; 3) fantasiosa, já que oferece o que não

existe para ser oferecido e, principalmente, o que responde a nossa pergunta inicial, 4)

passiva, afinal, deixa de lutar e não se coloca em momento algum como sujeito agente

de sua própria vida.

Considerações finais

O trabalho apresentado é uma proposta de análise estilística. Iniciamo-lo já

cientes de que cada leitura que fazemos de um texto é única. Foram muitas as leituras,

assim como foram muitas as sensações e descobertas que deixamos de compartilhar,

para não fugirmos de nossos objetivos iniciais que eram os de mostrar que o processo

de mudança ainda estava em curso, que ele era complexo e difícil e, que o principal

objeto da mudança era o eu lírico.

Nosso percurso foi singular, posto que foi orientado por nossos instintos e

percepções a respeito do poema. Esperamos que ele não se torne limitador, mas sim,

inspiração para a construção de muitos outros.

Referências

ANDRADE, A. B. C. e MARQUESI, S. C.( orgs.) Abordagens da Linguística: Caminhos

para pesquisa. São Paulo: Terracota, 2008.

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BARRETO, A. Vastafala: poesia. São Paulo: Scipione: Fundação Nestlé de Cultura, 1988.

p. 33-34. Poema integrante da série Revelações do Abismo.

BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. 37 ed. rev. e ampl. 15ª reimpressão. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

ITAÚ CULTURAL. Antônio Barreto. Enciclopédia Itaú Cultura. Disponível em:< http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa3919/antonio-barreto. >Acesso em

23 de março de 2016.

MARTINS, N. S. Introdução à Estilística: a expressividade na Língua Portuguesa. 3. ed.

rev. e aum. São Paulo: T. A. Queiroz: 2000.

MICHELETTI, G. Um modo de ler poesia. In SPARANO M. (org.) Estilística: um modo de ler poesia. 2ed. rev. e ampl. São Paulo: Andross. 2006.

TREVISAN, A. A poesia: uma iniciação à leitura poética. Porto Alegre: Uniprom, 2000.

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Geração, de Gilberto Mendonça Teles: uma leitura estilística

Solange Cristina Ferreira (UNICSUL)

Guaraciaba Micheletti (UNICSUL/USP)

Introdução

O ato de ler implica entender o texto como um encadeamento de palavras, por

meio do qual as representações do mundo são realizadas. Para Iser, “o leitor se move

dentro do texto” (1999, v.2, p.12) e a leitura não é simplesmente um deciframento e

sim a atribuição de um sentido ao que subjaz em sua materialidade, ao preencher o

que ele chama de “espaços vazios”, desvendando o que se encontra entremeado no

não-dito de suas linhas.

Ao se interpretar, é necessário também estar atento para o fato de que “a

liberdade interpretativa do leitor se situa dentro dos limites que são impostos pela

tessitura do texto” (MICHELETTI, 2006, p. 20), de modo que, se um texto literário, por

ser plurissignificativo, admite várias possibilidades de leitura, no entanto elas se

encontram autorizadas na e pelas escolhas linguísticas do autor.

Tendo em vista que a mesma informação pode ser dita de diferentes modos, é

no estudo estilístico que conseguimos perceber a língua como “um repertório de

possibilidades, um fundo comum posto à disposição dos usuários que o utilizam

conforme suas necessidades de expressão” (MAROUZEAU, apud Martins , 2012, p. 21).

É dentro dessa perspectiva que, na Estilística, encontram-se os pressupostos

teóricos nos quais se embasarão os estudos dos recursos express ivos utilizados por

Gilberto Mendonça Teles no poema “Geração”, transcrito abaixo:

Sou um poeta só, sem geração, que chegou tarde à gare modernista e entrou num trem qualquer na contramão, e vai seguindo sem sair da pista.

A de quarenta e cinco me tutela, me trata como a um filho natural. Eu chego às vezes tímido à janela mas vou brincar no fundo do quintal.

Na poesia concreta, a retaguarda é que me vê brincando de arlequim.

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Às vezes fujo à rima e lavo um fardo de roupas sujas, não tão sujo assim.

A de sessenta e um foi de proveta, foi mágica de circo para um só. Ninguém me viu caçando borboleta ou pescando escondido o meu lobó.

Quem fez letra, cantou e usou bodoque que se fez marginal pela cidade, será que fez poesia ou fez xerox ou apenas tropicou na liberdade.

Uma visada irônica sobre os movimentos literários do século XX

No poema “Geração”, Gilberto Mendonça Teles, recorrendo a ironias sutis, faz

uma crítica à necessidade de o poeta dever estar inserido em um determinado período

literário. Isso se torna perceptível depois de uma análise dos elementos linguístico-

discursivos que constituem o poema, ou seja, quando focalizarmos sua estrutura em

versos decassílabos, seus aspectos fônicos (rimas, ritmo) seu léxico e, especialmente,

as relações intertextuais.

Iniciando pelo título e confrontando-o com o primeiro verso, já se nota um

primeiro índice de ironia: “Geração” é palavra de origem latina generatio, por sua vez

é derivada de “gerar” (generare), que significa linhagem, ascendência, indivíduos

pertencentes a uma mesma época, ou ato de gerar e ser gerado. A palavra é

recuperada no primeiro verso: “Sou um poeta só, sem geração, ”, mas modificada pelo

advérbio “sem”, de modo que o enunciador pretende apresentar-se como sem

nenhuma linhagem. Voltando ao primeiro segmento do referido verso, o adjetivo “só”

que se aplica a poeta pode agregar diferentes valores: trata-se de um poeta solitário,

ou apenas um poeta apenas?

Vai-se constituindo uma ambiguidade sobre o pertencimento ou não do poeta

a um determinado grupo, mais especificamente a um grupo com determinadas

características estéticas. Nota-se, ao longo dos versos, uma preocupação de o

enunciador em situar-se como poeta em algum segmento estético.

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Na sequência do verso anteriormente mencionado, “Que chegou tarde à gare

modernista” sugere uma explicação para “sou um poeta só”, com o enunciador se

declarando poeta filiado tardiamente à estética modernista:

“Sou um poeta só, sem geração,

Que chegou tarde à gare modernista

E entrou num trem qualquer na contramão

E vai seguindo sem sair da pista.

No primeiro verso, a aliteração dos sons sibilantes sugere a chegada do trem à

estação, ação essa finalizada com a presença da fricativa palatal presente em chegou,

presente no segundo verso, representando o som do trem ao parar.

A palavra gare estabelece uma intertextualidade implícita com o poema “ As

quatro Gares”, de Oswald de Andrade, publicado em 1927, no Primeiro caderno de

poesia do aluno Oswald de Andrade, no qual o autor discorre sobre quatro fases da

vida (infância, adolescência, maturidade e velhice), com extrema liberdade, com

palavras soltas, aparentemente sem ligação entre os versos, ou seja, sem prender-se a

nenhum cânone. Trata-se, portanto, de referência ao movimento modernista, e à

postura do enunciador diante da situação.

O terceiro verso traz a consequência do anterior, o uso do pronome indefinido

“qualquer”, posposto ao substantivo “trem”, confere ao substantivo um sentido de

pouca importância, ideia ratificada pelo uso do artigo indefinido. Deve-se notar,

entretanto, que se trata de um trem “na contramão”. Ao entrar “num trem qualquer

na contramão”, o poeta enunciador procura mostrar que não se afinou com os

princípios estéticos da “gare modernista”. Entretanto, é poeta, pois “E vai seguindo

sem sair da pista”. Verso que também expressa certa ambiguidade: trata -se de um

caminho próprio ou do rastro deixado pelo poeta da primeira geração modernista?

Na segunda estrofe o poeta se declara acolhido pela terceira geração

modernista, também intitulada “geração de 45”:

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A de quarenta e cinco me tutela,

Me trata como a um filho natural.

Eu chego às vezes tímido à janela

Mas vou brincar no fundo do quintal.

No verso inicial da estrofe há o título elíptico, “A ( geração ) de quarenta e cinco

me tutela, / como a um filho natural.”, retomando o tom irônico que permeia o texto,

ao usar o verbo “tutelar” e o sintagma nominal “filho natural”, pois tutelar, de acordo

com o dicionário Michaelis, significa proteger ou defender, “diz-se do anjo da guarda:

Anjo tutelar, que exerce tutela sobre; cuida, defende como tutor” e o termo “filho

natural” denominado juridicamente como “(filhos) ilegítimos dividiam-se em naturais

ou espúrios. Filhos ilegítimos naturais eram nascidos de pais que não estavam

impedidos de se casar. ” (QUEIROGA, apud Zeni, 2009, p. 62).

Sendo assim, é lícito inferir que, no tocante à terceira geração, a filiação se dá

de forma heterodoxa, ilegítima ou mesmo “Gauche”, palavra francesa, cujo significado

é esquerdo, torto, e aparece no poema com o qual Gilberto Mendonça Teles

estabelece um diálogo intertextual por intermédio do trecho “tímido à janela”,

claramente recuperando o Poema das sete faces, de Carlos Drummond de Andrade, no

qual o eu-lírico é “O homem atrás do bigode/ é sério, simples e forte. / Quase não

conversa”, ou seja, um observador, porém tímido.

O último verso da estrofe é uma oração coordenada adversativa, “mas vou

brincar no fundo do quintal”, e ela acaba dissolvendo o problema referente à filiação

ilegítima ou à sua origem torta, pois o poeta continua fazendo sua arte (brincar no

fundo do quintal), sem se importar com isso.

Assim, mesmo estando em um local marginal, na parte de trás da nobreza da

casa principal, o poeta não só segue com seu fazer poético como também abraça a

geração de 45, na qual “ houve de fato um movimento de recuperação de certas

formas tradicionais consagradas” (OLIVEIRA, 1999, p.548).

Assim, ao produzir seu poema, observamos a preocupação estética, já que

todos os versos são decassílabos com rimas intecaladas (ABAB) e, nesta estrofe,

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especificamente, com rimas ricas: tutela (verbo) / janela (substantivo); natural

(adjetivo) / quintal (substantivo).

Na terceira estrofe o poeta se insere na poesia concreta e na poesia social:

Na poesia concreta, a retaguarda

É que me vê brincando de arlequim.

Às vezes fujo à rima e lavo um fardo

De roupas sujas, não tão sujo assim.

O uso do enjambement confere aos quatro versos um alongamento das

informações. Nos dois primeiros, a partícula de realce “é que” dá destaque ao termo

anterior “retaguarda”, aludindo à geração de quarenta e cinco que acabou ficando

para trás, vendo seu filho natural seguir adiante, agora com a poesia concreta,

brincando de arlequim.

Nos dois últimos versos da estrofe ocorre mais uma vez a intertextualidade,

estabelecendo um diálogo com o Poema Sujo, de Ferreira Gullar, escrito no exílio, em

Buenos Aires, é uma “longa fala da memória, e o seu objeto real e imaginário, a cidade

do poeta, São Luís do Maranhão” (BOSI, 2001, p. 473).

Também neles, Gilberto Mendonça Teles lança mão do recurso do

enjambement e realiza um rompimento na informação presente no objeto direto “um

fardo de roupas sujas”, cuja quebra leva à reflexão de que as roupas sujas ligadas ao

elemento da intertextualidade, leva ao fato de Ferreira Gullar produzir poesia de

cunho social, portanto, “lavar roupas sujas não tão sujas assim” pode se referir ao fato

da denúncia presente nesse tipo de fazer poético.

Na quarta estrofe, o poeta goiano segue fazendo referências às gerações

modernistas. Desta vez é a de sessenta:

A de sessenta e um foi de proveta

Foi mágica de circo para um só.

Ninguém me viu caçando borboleta

Ou pescando escondido o meu lobó.

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O primeiro verso apresenta novamente a palavra que dá título ao poema

implícita e se refere à Geração de sessenta, caracterizada por ser “reunião de várias

posições estéticas, de variados procedimentos criativos, de múltiplos estilos, de

diversificadas posições políticas e ideológicas, de variada assimilação dos fazeres

poéticos anteriores. ” (PONTES, 2008, p. 01)

Porém, o que causa estranhamento à leitura é “e um foi de proveta”, pois,

seguindo a linha irônica assumida pelo autor, a conjunção assume valor adversativo e

esse “um” pode ser ele mesmo, filiado à geração de sessenta novamente de modo

heterodoxo, ou seja, não gerado nos moldes tradicionais, porém existe e faz poesia de

todas as maneiras, por meio da mágica, da caça ou da pesca.

Mais uma vez o poeta utiliza a palavra “só”, em “foi mágica de circo para um

só”, no entanto, agora, com o sentido de único, acompanhado da palavra “um”,

estabelecendo a quantidade, imprimindo a ideia de ser ele mesmo, já que ninguém o

percebeu em seu fazer poético.

Na estrofe que finaliza o poema, Gilberto Mendonça Teles destaca a produção

literária da década de setenta:

Quem fez letra, cantou e usou bodoque

Que se fez marginal pela cidade,

Será que fez poesia ou fez xerox

Ou apenas tropicou na liberdade.

A palavra “bodoque”, presente no primeiro verso, é o elemento responsável

pela presença da intertextualidade e nos remete à letra de Chico Buarque para a

música João e Maria.

Já no terceiro verso, a palavra “xerox” resgata a forma de reprodução dos

poemas vendidos pelas ruas das cidades, pelos próprios autores, sem editoras. Trata-

se da poesia marginal, produzida pela geração mimeógrafo que, curiosamente, surgiu

após o tropicalismo, mas, ironicamente, o poeta inverte o aparecimento em sua última

estrofe, finalizando com “tropicou na liberdade”.

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Outra observação que salta aos olhos de uma leitura apurada é a repetição do

verbo fazer em diferentes sentidos: “quem fez letra”, no sentido de compor, já que a

música não é de Chico Buarque e sim de Sivuca; “que se fez marginal pela cidade”,

com partícula reflexiva, no sentido de tornou-se, ação que o sujeito pratica e recebe, e

aqui está ligada ao fato de que eram poetas que escreviam, produziam e vendiam seus

poemas; e “será que fez poesia ou fez xerox”, nos sentidos de escrever e tirar,

respectivamente, em duas orações ligadas pela conjunção ou, parecendo ser uma

interrogativa pela presença da palavra “será”, entretanto, quando unido à leitura do

verso subsequente, “ou apenas tropicou na liberdade.”, com ponto final, pode-se dizer

que ocorre uma ampliação de sentido que “ou”, conjunção alternativa, neste caso

pode ser lida tanto como inclusiva ou exclusiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da leitura e da análise estilística do poema que compõe o corpus

desse artigo, mesmo sem esgotar os múltiplos aspectos focalizáveis, pudemos

perceber que a escolha lexical realizada por Gilberto Mendonça Teles, para o título,

leva-nos a entender que, apesar de se intitular Geração, apresenta-se permeado de

ironia para questionar o pertencimento cronológico a uma geração específica, e são

essas escolhas que nos autorizam a fazer esse tipo de reflexão.

O poeta goiano questiona a filiação ao selecionar expressões que configuram

uma geração (origem) fora dos parâmetros tidos como padrão na sociedade: filho

natural e de proveta. No entanto, ele passeia poeticamente pelas gerações literárias

referidas em seu texto, comprovando que não precisa pertencer a um movimento

específico para ser poeta, pois é possível transitar por todos.

Ele brinca de fazer poesia através das diferentes gerações e isso se prova por

meio da seleção verbal apresentada no poema, tais como, brincar, caçar, pescar,

cantar e tropicar, ironizando o fato de que, enquanto a preocupação de se enquadrar

num período se instala, ele, ludicamente, vai tecendo seu fazer poético.

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Ao brincar de fazer poesia, o autor goiano também constrói uma colcha de

retalhos por intermédio das referências intertextuais implícitas e explícitas, com as

diferentes vozes que compõem as gerações com as quais ele se identifica.

Referências

BOSI, A. História concisa da Literatura Barsileira. 39ª ed. . São Paulo: Cultrix, 2001.

CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

LAPA, M. R. Estilística da Língua Portuguesa. 9ª edição. Coimbra: Editora Limitada, 1977.

MARTINS, N. S. Introdução à Estilística: a expressividade na Língua Portuguesa. São Paulo: EDUSP, 2012.

Michaelis Moderno dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/definicao/tutelar_1061164.html . Acesso em 26/05/2016.

MICHELETTI, G. (coord.). Estilística: um modo de ler... poesia. São Paulo: Andross, 2006.

ZENI, B. S. A evolução histórico-legal da filiação no brasil. Disp. em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/641

Acesso em 28/06/2016.

ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol. 02. Trad. de Johannes

Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999.

TELES, G. M. Geração. Disponível em: https://cdeassis.wordpress.com/gilberto-

mendonca-teles/. Acesso em 28/03/2016.

PONTES, R. Sincretismo: A poesia da geração 60 e a do grupo SIN. Disp. em: http://encontrosliterarios.ufc.br/revista/20080811_arquivos/pontes_r_sin.pdf. Acesso em 28/06/2016.

OLIVEIRA, C. B. de. Arte Literária: Portugal- Brasil. São Paulo: Ed. Moderna, 1999.

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DO LOCAL PARA O GLOBAL: DISCURSO, ARGUMENTAÇÃO E A

CENTRALIDADE DA CULTURA

Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui (UEPA/USP/CAPES) Rita de Nazareth Souza Bentes (UEPA/USP/CAPES)

Introdução

As reflexões aqui presentes partem do pressuposto de que a língua e a

linguagem se realizam na interação, e que somente na materialidade discursiva, isto é,

na enunciação, um produto da atividade social, histórico e ideologicamente situado, é

possível descrever e interpretar as dimensões argumentativas do discurso.

No que diz respeito à dimensão argumentativa intrínseca ao discurso, Fiorin

(2016) situa a origem de tal acertativa nos trabalhos de Ducrot e Anscombre, nos

quais, diferentemente dos estudos clássicos aristotélicos, “a argumentação é o estudo

das orientações semânticas dos enunciados e dos encadeamentos que as expressam”

(FIORIN, 2016, p. 15), isto é, está localizada nos domínios pragmáticos e semânticos da

língua, e não no discurso.

Por sua vez, na tradição clássica, a argumentação é entendida como o conjunto

de estratégias discursivas utilizadas para persuadir o auditório, as quais podem ser

descritas e ensinadas. Para Perelman (2014, p. 4, grifos do autor), “o objeto dessa

teoria [a argumentação] é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou

aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento.”

Sobre os estudos da argumentação, Plantin (2008) faz uma retrospectiva

histórica e apresenta: a) os estudos clássicos da argumentação, principalmente aqueles

desenvolvidos por Aristóteles, os quais a vinculava “à lógica, ‘a arte de pensar

corretamente’, à retórica, ‘a arte de bem falar’, e à dialética, ‘a arte de bem dialogar’”

(PLANTIN, 2008, p. 9); b) a dura crítica que a retórica enquanto discipl ina sofreu na

virada do final do século XIX até o início do século XX, momento em que foi eliminada

do currículo das universidades republicanas, por ser considerada incapaz de produzir o

saber positivista, isto é, por não ter um rigor científico pautado no método histórico,

este considerado o método positivo por excelência; c) e o período pós -1945, marcado

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principalmente pelos debates introduzidos por Ducrot a respeito de uma dimensão

lógico-linguística nos estudos em torno da argumentação, e pela nova retórica de

Perelman que retoma os paradigmas dos estudos clássicos aristotélicos para propor o

estudo das “técnicas argumentativas”, o que para Plantin é um de seus méritos

essenciais, pois.

forneceu à argumentação uma rica base empírica de esquemas, que configuram a espeficidade dessa prática linguística. Nela a reflexão se encontra reorientada para a decisiva problemática dos topoi (esquemas, tipos de argumentos) e para a noção correlativa de entinema, quase sempre reduzida à de silogismo incompleto. A ideia de que algumas formas discursivas exatamente identificáveis desempenham um papel essencial na argumentação leva-nos a nos interrogar pela possibilidade de um inventário organizado dessas formas, ou seja, sobre as tipologias dos argumentos (PLANTIN, 2008, p. 45).

Diante da possibilidade de identificar, descrever e analisar as formas discursivas

a partir de tipologias argumentativas, nesse trabalho, especificamente, lançamos mão

da perspectiva discursiva da argumentação a qual, segundo Fiorin (2014), nos permite

identificar a retórica como precursora dos estudos do discurso: a “Rhetoriké é a arte

oratória, de convencer pelo discurso. A emergência da primeira disciplina discursiva

traz consigo a consciência da heterogeneidade discursiva” (FIORIN, 2014, p. 61). Nesse

sentido, ao retomar os estudos da retórica clássica à luz das questões da atualidade, o

autor considera os estudos da argumentação como a matéria vertente38 do discurso,

pois:

Quando se disse que a concepção da heterogeneidade linguística já estava presente na criação da retórica, não se quis dizer que a retórica é uma prefiguração, por exemplo, do dialogismo bakhtiniano, pois uma visão teleológica da ciência não se sustenta. O que se estava fazendo é ler os temas abordados pela retórica sob a ótica das questões teóricas modernas. Herdar a retórica significa, pois, de uma parte, levando em consideração séculos de estudos já realizados, descrever, com as bases dos estudos discursivos atuais, os

38

Sobre a Matéria Vertente, Castro (2015, p. 185) afirma que se trata da “matéria do poeta. O que é esta? São, sem dúvida nenhuma, as palavras em que consiste cada língua. E esta não enquanto código,

mas enquanto a matéria vertente da linguagem, pois é a partir da vigência desta nas palavras que o poeta figura a realidade e sua verdade".

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procedimentos discursivos que possibilitam ao enunciador produzir efeitos de sentido que permitem fazer o enunciatário crer naquilo que foi dito; de outra, analisar o modo de funcionamento real da argumentatividade, ou seja, o dialogismo presente na argumentação.

É nesse sentido que os aspectos argumentativos presentes no material

discursivo adiante analisado, permitem, virtualmente, resgatar fragmentos da vida

social de sujeitos situados sócio, histórico e ideologicamente. Nesse sentido, o debate

proposto por Stuart Hall (2007) a respeito da força organizadora que a cultura tem

tomado na vida em sociedade na modernidade tardia, a Centralidade da Cultura,

ganha seu espaço em nossas reflexões.

O diálogo que servirá como corpus para as reflexões aqui presentes tem como

tópico discursivo o comércio do açaí na região, mote que se espraia para a situação

política nacional, com considerações sobre o processo de impedimento da presidente

Dilma Rousseff e, por fim, retorna para o cenário político local. A análise das tipologias

argumentativas considera os tópoi, isto é, as crenças que sustentam as premissas,

como um fenômeno da Centralidade da Cultura: fruto das crenças e valores veiculados

pelos meios de comunicação, neste caso a televisão, que tem assumido um papel

central na formação ideológica, por se configurar como a principal fonte de

informação, junto com as rádios, dos sujeitos que habitam as margens dos rios.

Nesse sentido, nosso foco é demonstrar como estão expressos os argumentos

no logos (na mensagem), o qual está inscrito em um contexto sócio, histórico e

ideológico específico que se encontra entre as mídias globalizantes e a comunidade do

rio Meruú-açu, já que aquelas têm sustentado “os circuitos globais de trocas

econômicas dos quais depende todo o movimento mundial de informação,

conhecimento, capital, investimento, produção de bens, comércio de matéria prima e

marketing de produtos e ideias” (HALL, 1997, p. 209).

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A Centralidade Cultural: Discurso e Argumentação

Atentaremos, nessa seção, aos pressupostos teóricos que pautarão a análise do

corpus39 selecionado para este trabalho, um diálogo espontâneo entre dois produtores

rurais que vivem da extração do açaí e de seu comércio em Igarapé-Miri. Ambos são

moradores do rio Meruú-açu, rio que integra a bacia hidrográfica do município de

Igarapé-Miri, cidade conhecida como a “Capital do Açaí”, no Pará.

Para a análise desse contexto discursivo, passamos, primeiramente, a retomar

as reflexões sobre os estudos da argumentação como matéria vertente do discurso, e,

em seguida, a traçar considerações sobre a Centralidade da Cultura proposta pelo

estudioso da cultura, Stuart Hall.

Discurso e argumentação

É lugar comum afirmar que argumentação e discurso são indissociáveis (AMOUSSY

2007; FIORIN, 2014 E 2016; KOCH, 2004 etc.).

Percebe-se, portanto, que, por sua natureza dialógica, o discurso comporta como qualidade intrínseca a capacidade de agir sobre o outro, de influenciá-lo (...). Mas a argumentação, apresente ela ou não uma vontade manifesta de conduzir à aprovação, é sempre parte integrante do discurso em situação. Compete também ao analista descrever suas modalidades da mesma maneira que outros processos linguageiros (AMOUSSY, 2007, p. 122).

Ao defender a articulação entre a argumentação e a análise do discurso, Ruth

Amoussy (2007, p. 123) aponta para uma abordagem sobre o discurso que “relaciona a

fala a um lugar social e a instâncias institucionais, recusando assim a divisão

texto/contexto. ” É nessa perspectiva que o contexto histórico-social e ideológico e a

enunciação disponibilizam ao analista, materialidades discursivas passíveis de serem

abordadas em suas dimensões argumentativas.

39

Esse registro integra o corpus da tese, orientada pela Profª Drª Maria Inês Batista Campos, a ser defendida junto a Universidade de São Paulo. O referido registro tem a duração de dezenove minutos e

cinquenta e oito segundos e foi realizado, em abril de 2016, na residência de um dos informantes, no rio Meruú-açu, localizado em Igarapé- Mirí, município distante 117 km de Belém, capital do Pará .

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Contudo, vale asseverar que há no campo de estudo da retórica e, por sua vez,

da argumentação, abordagens restritivas que inscrevem o estudo da retórica na língua,

como a proposta por Ducrot (1972 e 1973) e Anscombre e Ducrot (1983), a qual marca

o momento lógico-linguístico dos estudos da argumentação associado ao campo do

estruturalismo, da lógica linguística e do cognitivismo proposto por Grize e a escola de

Nauchâtel (PLANTIM, 2008).

Por sua vez, para Fiorin (2016, p. 29), o caráter argumentativo do discurso está

circunscrito em sua natureza dialógica.

Ora, se a argumentação é a tomada de posição contra outra posição, a natureza dialógica do discurso implica que os dois pontos de vista não precisam ser explicitamente formulados. Na medida em que um discurso é sempre um discurso sobre outro discurso, todos os discursos são argumentativos, pois todos eles fazem parte de uma controvérsia, refutando, apoiando, contestando, sustentando, contradizendo um dado posicionamento. Todos os discursos são argumentativos, pois são uma reação responsiva a outro discurso.

Ao considerar o discurso e a argumentação como reações responsivas, Fiorin

abre caminho para o debate a respeito das contingências sociodiscursivas que têm

caracterizado o discurso, e, por sua vez, as técnicas argumentativas ali presentes.

No que diz respeito às técnicas argumentativas, Perelman (2014) afirma que

diferentemente da lógica formal – pautada em sistemas axiomáticos de caráter

coercitivos –, a argumentação, ao centrar-se no seu propósito

de influenciar, por meio do discurso, a intensidade de adesão de um auditório a certas teses, já não é possível menosprezar completamente, considerando-as irrelevantes, as condições psíquicas e sociais sem as quais a argumentação ficaria sem objeto e sem efeito. Pois toda argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso, pressupõe a existência do contato intelectual (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 16).

Nesse sentido, o autor chama a atenção para algumas condições prévias para a

argumentação: as pessoas e o objeto da argumentação. No que diz respeito às

pessoas, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014) citam o conjunto de condições

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necessárias à formação de uma comunidade dos espíritos: uma linguagem comum ou,

ainda, ser modesto para ser ouvido e não perder a qualidade da argumentação. Sobre

o orador e o auditório, podemos resumir que seja necessária uma aceitação mútua,

que tanto auditório como orador contribuam para o bom andamento dos propósitos

da argumentação: obter adesão daqueles a quem se dirige para então influenciá-los.

A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão próximo quanto o possível da realidade. Uma imagem inadequada do auditório, resultante da ignorância ou de um concurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais desagradáveis consequências (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 22).

Essa adequação ao auditório é, segundo o autor, imprescindível para obter sua

adesão. No que diz respeito à distinção proposta por Perelman acerca da persuasão e

do convencimento, o autor credita suas moedas no convencimento como estratégia

argumentativa passível de obter maior adesão, e afirma que a persuasão é uma

argumentação de menor alcance que a argumentação convincente, pois aquela valeria

para um auditório particular, enquanto esta obteria a adesão de todo ser racional.

São de inúmeras naturezas as premissas apresentadas por Perelman (2014) em

seu Tratado da Argumentação, porém nos limitaremos às técnicas argumentativas

constantes na terceira parte desse extenso tratado, mais especificamente as que

dizem respeito aos argumentos quase-lógicos.

Sobre os argumentos quase-lógicos, Fiorin (2016) explicita que para Aristóteles

há dois tipos de raciocínios: os necessários – fundamentados nas premissas

enunciadas, como exemplo tem-se os silogismos lógicos –; e os preferíveis – os quais a

conclusão não advém das premissas colocadas, sendo uma conclusão provável,

possível, plausível, mas não logicamente necessária. Nesse sentido, os argumentos

quase-lógicos “são aqueles que lembram a estrutura de um raciocínio lógico, mas suas

conclusões não são logicamente necessárias” (FIORIN, 2016, p. 116).

De maneira geral, Fiorin (2016) afirma que os nossos argumentos estão

pautados em raciocínios quase-lógicos, pois esses tratam da essência da argumentação

para operar com raciocínios preferíveis, dentro dos quais se pode destacar: os

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argumentos fundados no princípio da identidade (sujeito e predicado remetem ao

mesmo referente); argumentos fundados no princípio da não contradição (uma coisa

não pode ser e não ser ao mesmo tempo); e os argumentos fundados no princípio do

terceiro excluído (admite apenas a verdade ou a falsidade de uma proposição, não

recolhendo uma terceira proposição)

Sobre os argumentos fundados no princípio da identidade, destacamos: a

tautologia (juízos cujo predicado não acrescenta nenhuma informação); a definição

(consiste em declarar a essência de alguma coisa); a comparação (uma maneira de

definir que aproxima ou diferencia um objeto de outros); a reciprocidade (baseado em

uma identidade mútua, num princípio de simetria, numa equivalência); a transitividade

(se baseia na relação matemática assimétrica, em que se tem uma consequência

provável e não necessária); a inclusão e a divisão (pautada na relação entre a parte e o

todo); e o argumento a pari (argumento por semelhança, também chamado de regra

da justiça); regra do precedente (em direito teria como consequência a generalização a

partir dos casos particulares); argumentum a contrario (argumento pela oposição); e o

argumento dos inseparáveis (se faz uma associação indissociável entre duas situações,

porque considera que uma está inextricavelmente ligada à outra).

No que diz respeito aos argumentos fundados no princípio da não

contradição, Fiorin (2016, p. 139) chama a atenção ao fato de que “Todos os

argumentos que se baseiam no conflito de interesses estão fundados no princípio de

não contradição”, a respeito desse tipo de argumento temos: a autofagia e retorção

(aquele apresenta um caráter autodestrutivo porque faz surgir uma incoerência no

argumento, enquanto este último diz respeito ao ato de colocar em evidência uma

autofagia, fazendo o argumento voltar-se contra aquele que o enunciou); reductio ad

absurdum (redução ao absurdo, também chamado de argumento apagógico consiste

em tomar uma proposição como verdade, para dela tirar conclusões absurdas e, assim,

mostrar sua falsidade); e o argumento probabilístico (fundado em uma lógica

quantitativa, faz apelo à maioria, seja numérica, seja veiculada por sintagmas do tipo

“clamor popular”).

Quanto aos argumentos fundados no princípio do terceiro excluído, Fiorin

(2016, p. 145) destaca que esse tipo de “argumento é muito usado no discurso político,

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para exigir uma tomada de posição numa clivagem”, e são muito comuns, também,

nos discursos totalitários e extremistas. Nesse tipo de argumento, igualmente,

encontra-se o dilema, o qual se apresenta sobre a forma de um raciocínio com dupla

premissa, cujo desdobramento leva a uma conclusão idêntica, necessária e única.

A opção por enfocar somente os argumentos pautados nos raciocínios quas e-

lógicos se dá, de um lado, pelo fato das premissas presentes na estratégia

argumentativas presentes nos corpus caracterizarem-se, predominantemente, por

conclusões prováveis, possíveis, plausíveis, mas não logicamente necessárias e, de

outro lado, pela limitação própria do gênero artigo acadêmico, o qual pressupõe que

sejam delimitadas as abordagens e discussões aqui presentes. Cabe destacar, ainda,

uma característica que atravessa substantivamente e epistemologicamente os

argumentos presentes na materialidade discursiva do corpus desse trabalho: a

centralidade da cultura.

A centralidade da cultura

Diante do corpus, nos vimos impelidos a explorar algumas marcas enunciativas

que caracterizam o que Stuart Hall (1997) denominou de Centralidade da Cultura de

caráter substantivo e epistemológica.

Por “substantivo”, entendemos o lugar da cultura na estrutura empírica real e na organização das atividades, instituições, e relações culturais na sociedade, em qualquer momento histórico particular. Por “epistemológico” nos referimos à posição da cultura em relação às questões de conhecimento e conceitualização, em como a “cultura” é usada para transformar nossa compreensão, explicação e modelos teóricos do mundo (HALL, 1997, p. 208).

Segundo Hall, já vem ocorrendo substantivas mudanças na dinâmica da vida em

sociedade no contexto da modernidade tardia, conjuntura em que as atividades,

instituições e práticas sociais têm reverberado padrões que refletem a expansão dos

meios de produção, circulação e troca cultural, causadas pela popularização das

tecnologias e a revolução da informação. Hall (1997, p. 209) identifica que nesse

momento de aceleradas transformações, “a cultura tem assumido uma função de

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importância sem igual no que diz respeito à estrutura e à organização da sociedade

moderna tardia, aos processos de desenvolvimento do meio ambiente global e à

disposição de seus recursos econômicos e materiais.”

A compressão espaço-temporal, provocada pelas tecnologias informacionais,

repercutiu em mudanças na consciência popular que, pelo acesso às mídias, passou a

transitar entre o local e o global originando, assim, uma espécie de consciência global,

isto é, o local não é mais pensado isoladamente sem considerar o global. Contudo,

assevera Hall, a cultura global se alimenta da “diferença” e prospera por meio da

manutenção das culturas locais, mesmo que ainda seja para forjar um produto cultural

para o mercado mundial (a culinária regional, por exemplo).

É nesse movimento ininterrupto entre o local e o global, que a cultura toma

força na centralização do modo de vida das sociedades contemporâneas. Hall (1997, p.

215) defende que

A expressão “centralidade da cultura” indica aqui a forma como a cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes secundários, mediando tudo. A cultura está presente nas vozes e imagens incorpóreas que nos interpelam das telas, nos postos de gasolina. Ela é um elemento chave no modo como o meio ambiente doméstico é atrelado, pelo consumo, às tendências e modas mundiais. É trazida para dentro de nossos lares através dos esportes e das revistas esportivas, que frequentemente vendem uma imagem de íntima associação ao "lugar" e ao local através da cultura do futebol contemporâneo. Elas mostram uma curiosa nostalgia em relação a uma “comunidade imaginada”, na verdade, uma nostalgia das culturas vividas de importantes “locais” que foram profundamente transformadas, senão totalmente destruídas pela mudança econômica e pelo declínio industrial.

É quase impossível para o cidadão comum ter uma imagem precisa do passado histórico sem tê-lo tematizado, no interior de uma “cultura herdada”, que inclui panoramas e costumes de época.

Diante de tais considerações a respeito da força da cultura no modus operandi

do homem contemporâneo, ou na modernidade tardia como prefere Hall, passamos a

considerar as grandes corporações televisas como promotora e meio de circulação da

cultura global, as quais têm tido um papel determinante na construção da consciência

global das populações que habitam as margens dos rios na região amazônica.

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Para Stuart Hall não há como pensar esse homem, tanto na esfera interpessoal

como intrapessoal, sem elevar a “cultura” ao papel de protagonista no entendimento

“do quê” e “como” o mundo se move, e, por sua vez, vem determinando-o, pois é ela

“que faz o mundo mover-se; tem de ser vista como algo fundamental, constitutivo,

determinando tanto a forma como o caráter deste movimento, bem como a sua vida

interior” (HALL, 1997, p.215)40.

Diante de tais imperativos, resta-nos ponderar até que ponto, e em que

circunstâncias essa centralidade da cultura pode ser observada, descrita e analisada, a

ponto de identificar quais os reflexos da ideologia dominante, veiculada,

principalmente, pelos meios de comunicação de massa, na maneira das populações

tradicionais, caracterizadas por sua relação simbiótica com a natureza, admitirem as

contingências de sua vida.

Do Global ao Local: fragmentos da centralidade cultural no discurso e na

argumentação

O corpus41 é identificado como uma conversa espontânea entre dois

interlocutores: F1 (quarenta e sete anos de idade, cursou até o 3º ano do ensino

fundamental, é evangélico e vive do extrativismo do açaí) e F2 (sessenta e cinco anos

de idade, não escolarizado, evangélico, carpinteiro e extrativista de açaí aposentado).

O registro ocorreu sem o conhecimento e consentimento prévio dos interlocutores, na

varanda da casa de F1, o que garantiu a espontaneidade do diálogo, ao fim do registro

os interlocutores foram informados de sua existência e deram seu consentimento para

o uso em investigações acadêmico-científicas. O registro é composto de réplicas,

porém podemos observar marcadamente a assimetria, a partir de um determinado

momento, na participação dos interlocutores, ocasião em que F2 passa a dominar os

turnos.

40

“that ‘culture’ is no soft option. It can no longer be studied as some unimportant, secondary or dependent variable in what makes the modern world move and shake, but has to be seen as something primary and constitutive, determining its shape and character as well as its inner life.” (HALL, 1997, p.

215) 41

Para transcrição do corpus, util izamos as normas de transcrição usadas no projeto NURC.

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Para entender de maneira mais ampla do que os interlocutores estavam

falando, é importante pontuar algumas peculiaridades presentes no modo de vida

tradicional descritas por Diegues (2008, p. 89-90). Segundo esse autor, o modo de vida

tradicional tem características que o diferenciam do modo de vida urbano-industrial,

dentre as quais destaca: a) o fato do conhecimento ser transferido de geração em

geração pela oralidade; b) há dependência e simbiose com a natureza e com seus

ciclos naturais, os quais se refletem na elaboração de estratégias de uso e manejo dos

recursos naturais; c) a noção de território ou espaço em que o grupo social se reproduz

socioeconomicamente é marca de sua peculiaridade: a moradia e a ocupação do

território se dão por várias gerações; d) a atividade produtiva tem seu foco na

subsistência e o seu excedente é comercializado localmente para a obtenção de bens

de primeira necessidade; e) há reduzida acumulação de capital; f) a unidade familiar,

doméstica ou comunal, é pautada nas relações de parentesco e compadrio, as quais se

refletem no exercício das atividades econômicas, sociais e culturais; g) a importância

dada às simbologias, mitos e rituais estão associadas à caça, pesca e às atividades

extrativistas; h) a tecnologia usada é simples e de baixo impacto ambiental

sobressaindo-se as técnicas artesanais, as quais os membros dominam todo o processo

de trabalho até seu produto final; i) fraco poder político e a auto identificação, ou

identificação por terceiros, de pertencer a uma cultura distinta das outras.

Já no início do registro (1), podemos identificar o conhecimento profundo que

os interlocutores têm dos ciclos da natureza. Eles falam sobre as melhores estações

para o cultivo do açaí, em que a chegada do verão torna-se uma ameaça para a safra,

pois com o calor o fruto seca na árvore. Seus argumentos, regulados por seu

conhecimento empírico, caracterizam-se predominantemente pela transitividade, em

que a partir de premissas pautadas em pressuposições sobre as estações em relação

aos meses, no caso inverno (período de muita chuva) e verão (estiagem), trabalham

com consequências necessárias, isto é, caso chova teremos uma produção satisfatória,

mas do contrário, os meses de setembro e outubro serão amargos para a produção.

Trata-se de probabilidades, pautadas em eventos circunstanciais e não em premissas.

(1) F1 tomu acustumado cá safra aqui

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F2 éh::: éh de agostu em diante... de agostu em diante... setembro... ele vai... ele

vai estender um bucado nu invernu né

F1 va:::i... vai vai

F2 vai estende (tudo) no invernu... agora éh a entrada dele ( )

[

F1 vai... u invernu qui vem vai

dá...

F2 aqui tá tu... aqui nu matu tá tudu im vassura

F1 vai dá bem açaí... eu achu qui im todu lugá/

F2 eu tu isperandu qui... qui essa chuva mesmo aguenti

F1 em algum lugá/ qui você olha assim na bêra... nas bêra dus riu qui vê uns cachu

de açaí graúdo... qui logu aondi ingraúda mais né

F2 porque essa chuva aguentandu

F1 fundu de matu

F2 essa chuva aguentandu vai sustentá/...

[

F1 u::: u::: u::: a fruta lá... u cachu né

[

F2 éh:

F1 éh

F2 porque si entrá/ o verão aí::: seca tudu memu

Após esse primeiro momento, passa a ocorrer segmentações no tópico

discursivo principal (2), dando origem primeiramente ao subtópico: o preço do açaí no

mercado. As premissas a cerca da escassez do produto, têm como consequência o

aumento dos custos da produção, pois são necessários muitos peconheiros 42 para

42

Peconheiros – termo derivado de peconha, instrumento adaptado aos pés para auxiliar a escalada na palmeira de açaí. Os peconheiros são os apanhadores de açaí.

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conseguir encher uma rasa43, e, por sua vez, influenciam nos preços repassados ao

mercado consumidor. Trata-se de um argumento fundado na lógica da identidade e

caracterizado como argumento dos inseparáveis, pois está pautado em uma

associação indissociável entre duas situações: a escassez do produto e o aumento dos

custos da produção à alta de preços do açaí no mercado. Uma lógica do mercado, mas

não necessariamente um argumento de natureza lógico.

(2) F2 inda tem mais uma... inda tem mais uma... um dia desse eu falei prê ele... irmão 44 u

açaí depus qui ele cumeça... inda tem mais um detalhi... agora é (não) safra... mas só

que agora vucê pega oitenta... noventa... cem... cento i pucu numa raza du açaí...

só qui nu verão prucê fazê cem vai tê qui vendê três

F1 ((risos)) quatru... cincu raza

F2 éh... quatru... cincu raza

F1 (inda) tem u pecunhêru

F2 tem u pecunhêru i num sobra de nada ((risos))... éh:::

F1 tava falandu... eu tava falandu olha... agora... éh... esse mês passadu qui tava

vendendo aqui nu portu cento i cinquenta... centu i quarenta

F2 éh

F1 centu i cinquenta... na cidadi dava centu i oitenta... duzentus

F2 éh

F1 tava bom... a genti apanhava três raza de açaí

F2 mas credu... éh

F1 qué dizê qui agora além de... qui falhu... pru cara arrumá uma raza éh uma luta... u

preço ficu nessa situação

F2 falhu i abaxu u preço

43

Rasa – recipiente util izado para alocar o açaí extraído da palmeira, que também serve de medida para o escambo do açaí. Geralmente as rasas são feitas da palha retirada de coqueiros ou de folha de

bananeira. 44

Forma de tratamento entre os evangélicos.

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Identificada como outra segmentação do tópico discursivo principal, a do local

para o global, o exemplo (3) é um indício da centralidade da cultura (HALL, 1997), que

nesse caso tem como recurso argumentativo a regra do procedente, um recurso usado

no direito, o qual se assenta em generalizações a partir de um caso particular. Nesse

caso, F2 utiliza o impedimento da presidente Dilma Rousseff como evento

generalizante, afirmando, por fim, que “elis vão tirá tudu...num vai fica nenhum...”

(3) F2 i olhi irmão... essa crisi pelu qui eu veju... ela vai muitu tempu

F1 por causa dessi açaí geladu aí

F2 Cê sabi porque? Essa travanca dessi pessuá dessa... desse... dessa travanca pra querê

tirá a Dilza... a Dilma... elis vão... eles vão fazê tudu pra tirá ela agora... quandu

cessá... quandu cessá a bronca dela elis vão entrá cum u vici dela... viu?... pra tirá

eli... eles vão tirá... depus qui tirári eli... elis vão tirá u Eduardo Cunha da

presidência da câmara... inquantu elis num tirári tudi essi pessuau... eles num vão

tomá uma... uma decisão

F1 num vão se contê cum diz u

[

F2 não... elis vão tirá tudu... num vai ficá nenhum...

A impessoalidade e aparentemente imparcialidade com que os sujeitos do

discurso “eles” são apresentados pressupõe que se trata de entidades sem qualquer

afiliação político-partidária, acima do bem e do mal, são sujeitos exclusivamente

consumidos pela tarefa de afastar a presidenta Dilma Rousseff e, em seguida, afastar a

todos aqueles que estariam em sua linha de sucessão: seu vice Michel Temer e, depois,

Eduardo Cunha, o presidente da Câmara. A argumentação, pautada na regra do

precedente, tem como base a isonomia das ações de seus agentes, uma estratégia

discursiva própria do direito e que vem sendo empregada como estratégia para a

despolitização dos debates sobre o cenário político. Diante de tais indícios, há de se

conceder aos meios de comunicação de massa o sucesso em suas estratégias

manipuladoras as quais têm se utilizado da judicialização de um processo

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essencialmente político, para despolitizá-lo, isto é, o processo contra a presidente

Dilma Rousseff não é apresentado como sendo político, mas, exclusivamente, um

processo que compete à esfera judicial, pois trata-se de um crime de responsabilidade

fiscal.

Como poderoso instrumento de veiculação de ideologias, os canais de televisão

e as emissoras de rádio têm demostrado sua eficácia na propagação de valores e

ideologias dominantes. Por outro lado, por meio do combate aberto e ético analistas

do discurso vêm descortinando e apontando as estratégias discursivas que alojam as

inúmeras trincheiras mantidas pelas classes de dominação para a sua perpetuação no

poder.

Considerações Finais

Partindo de um enfoque argumentativo do discurso, em diálogo com as

reflexões presentes no trabalho de Stuart Hall acerca da complexidade da dinâmica da

vida social e o papel da cultura, a análise sobre a materialidade discursiva viabilizou a

possibilidade de detectar em que tipo de argumentos estão assentados os discursos

que, por um lado, demarcam a penetração da centralidade da cultura e, por outro,

assinalam as esferas que vêm afiançando as ideologias dominantes, e, por sua vez, a

manutenção das relações de poder historicamente constituídas e socialmente

mantidas.

Diante de tal cenário, é possível perceber de que maneira os meios de

comunicação de massa vêm utilizando estratégias discursivas capazes de criar

premissas pautadas, no caso das estratégias argumentativas aqui analisadas, em

generalizações para criar a falsa impressão de normalidade garantida pela

judicialização de um processo evidentemente político.

No que diz respeito ao modo de vida tradicional e aos conhecimentos ali

produzidos, para uma pesquisa que pretendeu se lançar às estratégias discursivas

usadas pelos sujeitos imersos nesse modo de vida, esse exercício analítico foi

revelador, pois apontou para a proximidade que há entre a materialidade discursiva e

a vida vivida, que apesar de não ser o foco principal desse trabalho, abriu caminhos

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para o debate sobre o processo de produção e reprodução dos conhecimentos de

comunidades e, ainda, de suas formas de conceber a influência sofrida nos eventos

locais pelos acontecimentos globais: a materialidade discursiva revelando a dinâmica

de um modus operandi que tem, na compressão do espaço e do tempo, uma marca de

sua singularidade.

Referências

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CASTRO, M. A. Leitura: questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2015.

DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. 6. ed. – São Paulo: Ed. Hucitec,

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______. Argumentação e discurso. Bakhtiniana, São Paulo, Número 9 (1): 53-70, Jan./Jul. 2014. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/17352. Acesso em: 12/08/2016.

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A CONSTRUÇÃO DO ETHOS – UMA LEITURA DA REPORTAGEM PAQUERA TERCEIRIZADA DA REVISTA PIAUÍ

Mayara Evangelista Alegre (UNICSUL)

Introdução

Sempre que se diz algo emergem significados constituídos pela história, pelo

contexto social, pela língua. Partindo da ideia de que todo discurso presume a imagem

daqueles que estão envolvidos no processo, tal postura traz uma construção da

imagem do que está sendo dito. Nesse sentido, as escolhas realizadas na construção

do texto permitem que se observe o que se pretende representar e, sobretudo, as

posições subjetivas de quem enuncia.

Na Análise do Discurso Francesa, conhecida como AD, surgida em 1960 sob

uma ótica interdisciplinar na articulação entre a Linguística, o Marxismo e a

Psicanálise, se analisam justamente os discursos, considerando os aspectos históricos,

sociais, culturais, ideológicos que cercam a produção de um discurso, assim como

também consideram os elementos gramaticais da língua. Nesse sentido, objetiva-se

observar como se dá a construção do ethos na reportagem Paquera Terceirizada

(anexo), publicada na seção Esquina da Revista Piauí, em junho de 2015.

Nos textos jornalísticos, historicamente, se tem a proposta de narrar o

cotidiano buscando a neutralidade de informações, no entanto se sabe que existe um

recorte de um universo de sentidos que pode ser mostrado por indicações explícitas

que tomam formato por meio da própria enunciação. Um bom exemplo da não

neutralidade é a revista Piauí, suporte da reportagem a ser analisada. Em suas páginas,

especialmente em seções como Esquina e História Pessoal, encontra-se, além das

características jornalísticas, uma postura mais literária que abre a possibilidade de uma

construção e percepção do ethos discursivo.

Com base em Maingueneau (1993, 2006, 2013 e 2015), busca-se perceber

como Paquera Terceirizada, reportagem selecionada para análise, possibilita a

construção de um discurso em que o ethos é percebível pela/na encenação da história

do sedutor profissional que é contratado por homens para tomar seus lugares nas

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conversas online, quando eles não possuem tempo ou habilidade para

relacionamentos engendrados na rede virtual.

Para o desenvolvimento desse trabalho, apresentam-se as noções de cenas da

enunciação e ethos para, em seguida, proceder a (des)construção do discurso e a

análise da cenografia e do ethos discursivo masculino do sedutor virtual.

Ethos e cena de enunciação

O conceito de ethos foi reformulado para a AD por Maingueneau, que o

entende como um conceito estendido aos enunciados orais, escritos, na modalidade

verbal, visual, ou verbo-visual, que podem representar uma pessoa ou até mesmo uma

ou várias instituições. Para Maingueneau (2006), não existe um ethos preestabelecido,

pois ele é construído na enunciação.

Por meio do ethos, o destinatário é convocado para um lugar, inscrito na cena

de enunciação, que o texto implica. Maingueneau, ao apresentar o conceito de cenas

de enunciação, recorre à metáfora teatral e utiliza a noção de cena para indicar a

representação que um discurso faz da sua própria situação de enunciação. Para o

autor, o termo “cena” apresenta a vantagem de referir-se, ao mesmo tempo, a um

quadro e a um processo, ou seja, ela é ao mesmo tempo, o espaço bem delimitado no

qual são representadas as cenas, e as sequências verbais e não verbais que habitam

esse espaço. Maingueneau (2015) considera que um texto não é um conjunto de

signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada. O

autor trabalha com três cenas que se integram: cena englobante, cena genérica e

cenografia.

Na cena englobante, observa-se o tipo de discurso resultado de um recorte de

setor de atividade social, por exemplo, um folder que se recebe e se identifica como

um discurso político ou um discurso publicitário. Nas cenas genéricas, têm-se definidos

os gêneros de discursos particulares, tais como a reportagem Paquera Terceirizada,

corpus de nossa análise. Em relação à cenografia, pode-se afirmar que ela é instituída

pelo próprio discurso, isto é, um discurso impõe sua cenografia de imediato, mas, por

outro lado, a enunciação, em seu desenvolvimento, esforça-se para justificar seu

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próprio dispositivo de fala. Ao mesmo tempo em que ela é a origem do texto, ela é o

que o discurso compõe, isto é, a cenografia legitima um enunciado ao mesmo tempo

em que ele a legitima também. É com a cenografia que o coenunciador se confronta

diretamente quando está diante de uma enunciação. Em relação a ela, Maingueneau

explica que

Todo discurso, por sua manifestação mesma, pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima. A marca que dá a palavra a uma funcionária de escritório que fala ao telefone impõe tal cenografia de algum modo logo de saída; por outro lado, é por intermédio dessa enunciação mesma que ela pode legitimar essa cenografia imposta se conseguir atingir seu público, fazendo com que as leitoras aceitem o lugar que lhes é consignado na cenografia. (MAINGUENEAU, 2015, p. 97)

O autor faz ainda a distinção entre cenografia e um cenário afirmando que

Com efeito, tomar a palavra significa, em vários graus, assumir um risco; a cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário, como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um espaço já construído e independente dele: é a enunciação que, ao se desenvolver, esforça-se para constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala. (MAINGUENEAU, 2015, p. 97)

Há cenografias relativamente estabilizadas, como nos casos de relatórios, ou as

que possuem diversidades, como no caso de discurso político, que pode modificar sua

cenografia de modo a persuadir o coenunciador, podendo falar como homem do povo,

ou homem experiente. Essa mobilização de cenografia se dá por meio da cena

validada, aliás, é ela que legitima a cenografia, em especial nesses casos.

As cenas validadas estão instaladas na memória coletiva, sejam elas modelos

rejeitados ou valorizados. Elas são os estereótipos que são comuns para a maioria das

pessoas na crença popular. Desta forma, pode-se ter o poder de persuasão de um

discurso levando o coenunciador a se identificar com um corpo investido de valores

sociais. As cenas validadas são as memórias discursivas denominadas pelo Ducrot

como topöi. Maingueneau (2015) exemplifica que uma conversa em família durante

uma refeição é o modelo de uma “cena validada” valorizada na cultura francesa. E,

explica que chama de cena validada e não cenografia validada porque

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“cena validada” não se caracteriza propriamente como discurso, mas como estereótipo autonomizado, descontextualizado, disponível para reinvestimentos em outros textos. Ela se fixa facilmente e, representações arquetípicas popularizadas pelas mídias. (MAINGUENEAU, 2015, p. 102)

A cenografia é, ainda, lócus de construção do ethos, ou seja, a imagem de si se

constrói dentro da enunciação e se mostra por meio de seu discurso. Para

Maingueneau (1993), toda fala procede de um enunciador encarnado que é

sustentado por uma voz – a de um sujeito situado para além texto. Com isso, pode-se

compreender que a subjetividade manifestada no discurso é concebida como uma voz

que não pode ser dissociada do corpo que enuncia.

Nesse sentido, a noção de ethos compreende a dimensão vocal e, também, o

conjunto de determinações físicas e psíquicas. A atribuição dessas características

físicas, “corporalidade”, e psíquicas, “caráter”, ao enunciador dão origem aos modelos

pré-construídos, os denominados estereótipos que circulam nos caminhos mais

diversos como literatura, fotos, cinema, publicidade. A respeito do universo de sentido

propiciado pelo discurso, o autor complementa afirmando que

impõem-se tanto pelo ethos como pelas “ideias” que transmite; na realidade, essas ideias se apresentam por intermédio de uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em uma experiência vivida. O texto não se destina a ser contemplado, configurando-se como enunciação dirigida a um coenunciador que é preciso mobilizar, faze-lo aderir fisicamente a um determinado universo de sentido. (MAINGUENEAU, 2015, p. 108)

Acerca disso, a construção do ethos se dá de forma a convencer o auditório

ganhando sua confiança. Maingueneau (2006) coloca, ainda, que não se trata de uma

representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica,

construída pelo destinatário por meio do próprio movimento da fala do locutor. A

qualidade do ethos remete a imagem do fiador, que por meio de sua fala, confere a si

próprio uma identidade compatível com o mundo que ele deverá construir em seu

enunciado. Com isso, o autor nos diz que, por meio do seu próprio enunciado, o fiador

deve legitimar sua maneira de dizer:

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Essa abordagem de ethos permite novamente que nos afastemos de uma

concepção de discurso segundo o qual os “conteúdos” dos enunciados

seriam independentes da cena de enunciação que os sustenta. Na verdade,

não podemos dissociar a organização dos conteúdos e a legitimação da

cena de fala. (MAINGUENEAU, 2015, p. 108)

A elaboração do ethos se dá, justamente, pela percepção complexa que

mobiliza a afetividade do intérprete, que tira informações do material linguístico, bem

como do ambiente. Maingueneau (2006, p. 70) assegura que “o poder de persuasão de

um discurso decorre em parte do fato que ele leva o destinatário a identificar-se com o

movimento do corpo por mais esquemático que seja investido de valores

historicamente especificados”.

Com isso, a construção dele, por natureza, acontece pela articulação do verbal

e não-verbal para provocar no destinatário efeitos que não decorrem apenas das

palavras.

O ethos de um discurso, segundo Maingueneuau (2008), resulta da interação

de diversos fatores: ethos pré-discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), assim

como também de fragmentos do texto em que o enunciador evoca sua própria

enunciação, ou seja, o ethos dito, processo que pode ser constituído de forma direta

ou indireta. A diferença entre o ethos dito e o mostrado inscreve-se nos extremos de

uma linha contínua, uma vez que é impossível definir uma separação nítida entre o

“dito” sugerido e o “mostrado” pela enunciação. Com isso, o ethos efetivo, que o

destinatário constrói resulta dessas interações. Observando o esquema a seguir, essa

proposição fica mais nítida:

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É importante enfatizar que, se cada momento histórico tem um regime próprio

de ethé, a leitura de textos que não pertencem a nossa esfera cultural é

frequentemente dificultada por haver graves lacunas para compreensão no que diz

respeito à perda dos ethé que sustentam a enunciação, isto é, de uma conjuntura a

outra, não são as mesmas zonas de produção semiótica que propõem como se diz e se

age; assim, os estereótipos de comportamento mudam.

Desta forma, pode-se dizer que não é possível reduzir a interpretação a uma

simples decodificação, é necessário se analisar o contexto como um todo. O poder de

persuasão de um discurso está no que leva o destinatário a identificar-se.

Uma leitura do ethos na reportagem da Piauí

Tradicionalmente, os textos jornalísticos possuem uma organização particular.

É o caso, por exemplo, do lead que constitui um recurso importante dentro das

técnicas de escrita, pois além de possibilitar a síntese do processo evenemencial,

também corrobora com a hierarquização das informações de acordo com os interesses

de quem enuncia. No entanto, nas reportagens da Seção Esquina, da Revista Piauí,

particularmente, na reportagem Paquera Terceirizada, percebe-se características um

tanto diferentes, tais como uma forma de escrita mais literária, portanto mais

subjetiva. Essa escrita possibilita, por exemplo, que se registre a presença de um

enunciador (I) que existe em um AQUI (um café na periferia de Paris), e um AGORA

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(após 2013, quando a personagem começou a trabalhar na Net Dating Assistant) e que

emite opiniões.

Paquera Terceirizada tem sua cena englobante no discurso jornalístico, pois se

predispõe a relatar um acontecimento destacável do processo evenemencial. Em

relação à cena genérica, caracteriza-se como uma reportagem, pois além de

apresentar uma informação, há a preocupação em detalhá-la. Nessa cena genérica,

extrapola-se o cotidiano e trata-se de fenômenos sociais de interesse geral. Essa cena

foge da rotina jornalística, especialmente da notícia, ao construir o texto com mais

vozes, destacando-se, assim, o discurso direto em detrimento do discurso indireto,

bem como com um grau maior de subjetividade.

Em relação à cenografia, primeiro, é necessário observar que, em seu primeiro

parágrafo, há uma identificação maior com o gênero sinopse de livro ou filme do que

com uma reportagem. Narra-se a história de Greg e Sandrine, um casal que se

conheceu em um site de relacionamentos, e a conquista de Sandrine pelas mensagens

sedutoras de Greg. Pressupõe-se um final feliz, mas, ao anunciar que Greg havia

contratado Adriem Tumsonet para tomar o seu lugar na paquera virtual, instiga-se a

continuação da leitura para descobrir o que, de fato, aconteceu ao casal.

Nesse parágrafo introdutório e no desenvolvimento da reportagem, a

constituição cenográfica estabelece-se interdiscursividade com a peça teatral Cyrano

de Bergerac (1897), de Edmond Rostand, baseada na vida de Hector Savinien de

Cyrano de Bergerac, escritor francês. Assim como na narrativa dramática, conta-se a

história de um homem que assume o lugar de outros para, em seus nomes, conseguir

um encontro amoroso. Se na peça teatral, o homem teme ser rejeitado, por isso se

esconde atrás de outro considerado mais bonito, na narrativa atual, o sedutor

profissional busca facilitar a vida de pessoas que [1] “não tem tempo, paciência ou

confiança suficientes para investir em interações virtuais”.

Essa cenografia parece transitar entre o jornalístico e literário. Jornalístico na

medida em que privilegia a informação, literário na medida em que transforma a

linguagem denotativa e referencial própria da mídia impressa em uma linguagem

subjetiva e conotativa. Nesse sentido, transforma o processo evenemencial quase em

ficção por meio de recursos linguísticos mais próximos da escrita literária.

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A ruptura com o modelo de reportagem não é a única ruptura existente, pois

antes do início da reportagem, no título Paquera Terceirizada rompe-se com a cena

validada de uma paquera, pois já não há uma relação biunívoca, mas tripartite, pois se

trata de uma paquera feita por outra pessoa, um terceiro elemento, externo ao

processo de conquista, contratado para desempenhar o papel de conquistador.

Considerando-se a nossa sociedade, a situação destacada, uma contratação

para uma conquista amorosa, foge do convencional, porque poderia denotar uma

“certa” incapacidade do homem de conquistar a mulher desejada, o deixando

vulnerável a julgamentos sociais de insegurança, ferindo, assim, à nossa sociedade

machista. Porém, na reportagem, ao destacar o conquistador contratado e ao associá -

lo, interdiscursivamente, ao Cyrano de Bergerac, valoriza-se o papel do sedutor e

dissolve-se a importância da fase de paquera e conquista, tal como em [2] “com a

terceirização da cantada online, o pretendente só precisa dar as caras quando o

encontro for marcado”.

No terceiro parágrafo em [3] “não é exatamente bonito – embora também não

seja feio. Moreno, de olhos castanhos e estatura mediana, ele não chama atenção pelo

físico, mas é bom de conversa e muito simpático”, tem-se a presença do enunciador (I)

que descreve de maneira subjetiva a personagem entrevistada, denotando, ainda, um

juízo de valor em relação à personagem, ao mesmo tempo que com o conector “mas”

o enaltece no quesito imprescindível para a conquista: ele ser simpático e bom de

conversa. Ao descrevê-lo estabelece-se, novamente, uma cenografia interdiscursiva

com a peça teatral, em que o personagem principal tinha medo de ser rejeitado por

ser feio. Assim como Cyrano, Adriem Tumsonet, personagem destacado na

reportagem, não tem em seus atributos físico o encantamento para a conquista, mas

em suas palavras.

Novamente, assim como a personagem teatral, o enunciador (I) apresenta

Tumsonet, como ocupante da posição (desconhecida) de terceiro vértice do triângulo

amoroso e informa que ele [4] “não se sente culpado por fingir ser outra pessoa”,

pois, para ele, o que faz é um serviço muito benéfico. Esse aspecto fere uma cena

validada de que os relacionamentos se baseiam em confiança e transparência não

havendo mentiras entre o casal.

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Na sequência, o texto nos traz as características dos clientes de Adrien e com

isso o reforço do trabalho que ele faz e da imagem que possui:

[5] A maior parte dos clientes da Net Dating é composta por homens rejeitados nos sites de relacionamento. Sujeitos que passam meses inscritos sem conseguir nenhum encontro. Tumsonet garante contar com a solução para todos esses casos. “Eu faço algumas mudanças no perfil, aprimoro a forma de abordagem e tenho sucesso rapidinho”, gabou-se. “Uma vez copidesquei um perfil ao meio-dia. Às três da tarde meu cliente estava conhecendo uma garota pessoalmente.

Quando no trecho [5] lê-se “A maior parte dos clientes da Net Dating é

composta por homens rejeitados nos sites de relacionamentos. Sujeitos que passam

meses inscritos sem conseguir nenhum encontro. Tumsonet garante contar com a

solução para todos esses casos.”, o enunciador (I) caracteriza os clientes da

personagem como “rejeitados”, desqualificando-os. Ao mesmo tempo confirma a

imagem de pessoa de Tumsonet como de “boa de conversa”, portanto de profissional

eficaz.

Essa mesma imagem de profissional competente é reforçada por meio do ethos

dito pelo enunciador (II), como em [6] “Eu faço algumas mudanças no perfil, aprimoro

a forma de abordagem e tenho sucesso rapidinho” e [7] “Uma vez copidesquei um

perfil ao meio-dia. Às três da tarde meu cliente estava conhecendo uma garota

pessoalmente”. No entanto, esse ethos dito corrobora com a construção de um ethos

discursivo convencido que é confirmado na escolha verbal da apresentação do

discurso direto: “gabou-se”, como também nos recursos linguísticos escolhidos no

discurso indireto: garantir [5], aprimorar e ter sucesso [6].

No trecho [8] “Se o perfil agradou e a garota veio conversar, nada de

bombardeá-la com perguntas. Para manter teso o arco da promessa, o segredo é

sugerir assuntos e deixá-la falar” (grifo nosso). Novamente, há uma cenografia

construída a partir da interdiscursividade. Neste caso, com o texto bíblico, mais

precisamente com Gênesis, quando se anuncia um arco-íris como sinal da aliança entre

Deus e todos os seres viventes. Na reportagem, o símbolo festivo e colorido é o sinal

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da promessa cumprida, ou seja, do sucesso da conquista virtual, que para manter-se

no encontro real, precisa do cuidado da não exposição.

Outro ethos discursivo mostrado por meio do discurso indireto do enunciador

(II) é o de um conquistador [9] “Um dos erros mais comuns da paquera virtual, disse o

profissional, é que os homens costumam botar as mulheres em pedestais”. Já em [10]

“Nada disso: elas precisam se sentir um pouco inseguras”, nota -se, ainda, um ethos

machista que prefere colocar a mulher em um plano inferior, fazendo com que elas se

sintam inseguras. Esse mesmo ethos é confirmado em [11] “Deve ficar claro que a

seleção vale para os dois lados – de vez em quando cai bem alfinetar a moça com

comentários levemente críticos”.

Esse mesmo ethos conquistador machista pode ser visto em outros trechos do

discurso indireto, tais como [12] “A teoria do charme de Tumsonet é baseada no clichê

segundo o qual as mulheres procuram homens protetores e autoconfiantes, enquanto

os homens procuram mulheres… bonitas” e [13] “É por isso que as técnicas se aplicam

apenas a eles, já que elas não precisam fazer nada além de aparecer bem na foto”. E

em trechos do discurso direto, tal como a resposta à pergunta do que acontece com as

mulheres feias no mundo da paquera, [14] “’Estão ferradas’, ele disse, rindo. ‘Estou

exagerando, mas é quase isso mesmo. O mundo é injusto’”.

Destaca-se que em [12] e [13] o enunciador (I) mostra-se irônico em relação às

propostas de Tumsonet, em [12], afirma que a sua postura é baseada em clichês

sociais, portanto não científicas, em outras palavras, não confiáveis, e em [13] ironiza a

forma passiva da mulher no flerte, apenas ser bonita, indicada pelo conquistador

virtual e o expõe a ira feminina ao descrever que ele ri das mulheres feias, sugerindo

que para elas não há lugar no mundo da paquera. Interdiscursivamente, retomamos os

versos do célebre poeta: “As muito feias que me perdoem/ Mas beleza é

fundamental”.

Em relação às posturas apresentadas pela personagem retratada na

reportagem, embora a aceitação de que outro homem realize a conquista em seu

nome, fuja a uma postura machista, a personagem Adrien Tumsonet ratifica um ethos

machista conquistador [14] “Sabe aquela frase ‘As mulheres se apaixonam por aquilo

que ouvem, os homens por aquilo que veem’? Por isso as mulheres usam maquiagem

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e os homens mentem? Acho que isso resume tudo.” Esse posicionamento pode ser

verificado no quadro a seguir.

Quadro 1

Os exemplos destacados e o quadro síntese ajudam a caracterizar, com base na

representação da personagem do que seja o mundo masculino e o mundo feminino, o

ethos de conquistador machista. Esse discurso machista baseia-se em estereótipos

enviesados do que seria socialmente certo e errado e o mais adequado para uma

conquista de sucesso.

Além da voz da personagem Adrien Tumsonet, existe a presença da voz da

jornalista Amanda Lourenço que assume o papel de principal enunciador, utilizando-se

de subjetividade e caracterizando suas opiniões a respeito da terceirização da paquera.

O quadro a seguir diferencia as posições da personagem e da jornalista.

Quadro 2

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Pode-se atribuir ao enunciador I um ethos irônico que assume uma postura

contrária ao machismo, embora não apresente uma postura feminista. Observa-se em

[15] “Tumsonet e os outros catorze assistentes disponíveis “otimizam” o tempo e a

lábia do freguês” a ironia a respeito da paquera terceirizada , considerada pelo

enunciador uma forma de tirar proveito e um ardil para convencer a mulher. Da

mesma forma irônica, classifica os clientes desse serviço como [16] “Homens

rejeitados nos sites de relacionamento”.

O enunciador (I) ainda expõe, com clareza, sua opinião sobre a paquera virtual

contratada ao caracterizá-la como [17] “métodos que variam dos relativamente

controversos aos francamente machistas”. Também dúvida da qualidade do método,

pois, ainda que de forma implícita, inclui a personagem Adriem Tumsonet entre os

homens rejeitados [18] “desde que sofreu uma desilusão amorosa, há alguns anos” e

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não confirma a sua exclusão desse grupo [19] “Hoje, Tumsonet garante ter dado a

volta por cima”.

Os quadros destacam as posições conflitantes entre homens e mulheres, vistos

sob a visão machista do sedutor virtual, bem como distingue o posicionamento

machista do enunciador (II) do posicionamento irônico do enunciador (I).

Considerações Finais

Este trabalho propôs analisar como se dá a construção do ethos na reportagem

da seção Esquina da Revista Piauí, seguindo a linha da Análise de Discurso Francesa,

sob os posicionamentos teóricos de Maingueneau (1993, 2006, 2013 e 2015).

Inicialmente abordamos as noções de cenas da enunciação e ethos, com as quais

pudemos realizar a (des)construção do discurso e a análise da cenografia e do ethos

discursivo masculino do sedutor virtual da reportagem Paquera Virtual. Com isso,

levantamos as marcas que compuseram o ethos da reportagem, bem como

evidenciamos a utilização de cenas validadas que legitimaram o discurso proposto.

Por meio da cenografia que transita entre o jornalístico e o literário, nota-se

que o processo evenemencial se transforma em quase ficção a partir das escolhas dos

recursos linguísticos. A construção do texto se dá com o uso do discurso direto e de

uma linguagem mais subjetiva. Desse modo, as vozes que emergem no texto são de

um “aqui” e “agora”, com o enunciador (I) na figura da jornalista e do enunciador (II)

na figura da personagem sedutor profissional. Ao longo da reportagem, pode-se

encontrar, ainda, a representação de estereótipos, a partir da visão da personagem, do

que seja o mundo masculino e o mundo feminino, nos seus comportamentos e ações.

Pode-se concluir que ao analisar os trechos da reportagem ficou nítida essa

construção de um ethos de sedutor profissional marcado por um discurso machista,

baseado em estereótipos enviesados do que seria socialmente certo e errado e o mais

adequado para uma conquista de sucesso e por um ethos irônico do enunciador (I -

jornalista) que assume uma postura contrária ao machismo e interage, muitas vezes,

desqualificando o enunciador (II) e emitindo opiniões.

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Anexo

PAQUERA TERCEIRIZADA Um sedutor virtual profissional

AMANDA LOURENÇO

Greg e Sandrine se conheceram pela internet, num site de relacionamentos. Greg, um sujeito sedutor, habilidoso com as palavras, mantinha Sandrine interessada. A troca de

mensagens ficou cada vez mais frequente até que decidiram se encontrar. Um ano e meio depois, os dois planejam morar juntos. Uma história de amor típica do mundo

contemporâneo. O que Sandrine nunca soube, porém, é que a pessoa com quem ela conversava pela internet não era Greg, mas Adrien Tumsonet, um dating assistent contratado pelo namorado.

Tumsonet, de 29 anos, morador de um bairro de classe média na periferia de Paris, está por trás de dezenas de encontros amorosos. Desde 2013 ele vende seus talentos

de sedução na Net Dating Assistant, empresa que ajuda solteiros – homens, principalmente – no universo da paquera online. O princípio é simples: a pessoa não

tem tempo, paciência ou confiança suficientes para investir em interações virtuais que podem não dar em nada? Tumsonet e os outros catorze assistentes disponíveis

“otimizam” o tempo e a lábia do freguês. Com a terceirização da cantada online, o pretendente só precisa dar as caras quando o encontro for marcado.

“Não recomendamos em hipótese alguma que nossos clientes revelem aos novos parceiros que recorreram a nossos serviços”, disse Tumsonet num café perto de sua casa. O dating assistent não é exatamente bonito – embora também não seja feio. Moreno, de olhos castanhos e estatura mediana, ele não chama atenção pelo físico, mas é bom de conversa e muito simpático. Não se sente culpado por fingir ser outra

pessoa. “Somos aceleradores de oportunidades. Quando o cara aparece lá no encontro, é ele sozinho. Não tem nenhum ponto soprando frases no seu ouvido.”

A maior parte dos clientes da Net Dating é composta por homens rejeitados nos sites de relacionamento. Sujeitos que passam meses inscritos sem conseguir nenhum

encontro. Tumsonet garante contar com a solução para todos esses casos. “Eu faço algumas mudanças no perfil, aprimoro a forma de abordagem e tenho sucesso

rapidinho”, gabou-se. “Uma vez copidesquei um perfil ao meio-dia. Às três da tarde meu cliente estava conhecendo uma garota pessoalmente.”

A mudança começa, obviamente, pela imagem: fotos de homens sem camisa ou ao lado de carros, nem pensar. “Selfie, então, deveria ser proibido por lei”, ensinou. Se o sujeito estiver com um ar muito nerd, o assistente manda deixar a barba crescer por cinco dias e providenciar uma jaqueta de couro: “É tiro e queda.” O perfil em si não deve entrar em detalhes, tampouco cair em autodefinições: “Em vez de dizer ‘Sou engraçado’, vai lá e conta uma história divertida.”

Uma outra dica, muito importante, segundo Tumsonet: “Flerte não é entrevista de emprego.” Se o perfil agradou e a garota veio conversar, nada de bombardeá -la com

perguntas. Para manter teso o arco da promessa, o segredo é sugerir assuntos e deixá-la falar. Um dos erros mais comuns da paquera virtual, disse o profissional, é que os

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homens costumam botar as mulheres em pedestais. Nada disso: elas precisam se

sentir um pouco inseguras. Deve ficar claro que a seleção vale para os dois lados – de vez em quando cai bem alfinetar a moça com comentários levemente críticos.

A teoria do charme de Tumsonet é baseada no clichê segundo o qual as mulheres procuram homens protetores e autoconfiantes, enquanto os homens procuram mulheres… bonitas. É por isso que as técnicas se aplicam apenas a eles, já que elas não precisam fazer nada além de aparecer bem na foto. E as mulheres feias? “Estão ferradas”, ele disse, rindo. “Estou exagerando, mas é quase isso mesmo. O mundo é injusto.”

A sedução online é um aspecto, apenas, de um interesse mais amplo de Adrien

Tumsonet: a sedução em geral. O rapaz passou a estudar as estratégias de conquista desde que sofreu uma forte desilusão amorosa, há alguns anos. Ele tinha planos de

casar e ter filhos com a amada, e tudo caminhava para esse fim. Até que um dia ela anunciou que estava apaixonada por um colega de trabalho e foi embora, sem mais.

“Eu achava que ela era a mulher da minha vida… Foi um período sombrio”, contou. Pouco depois de ser abandonado, ele começou a pesquisar sobre comportamento social na internet e descobriu as artimanhas da conquista: “Aos poucos fui percebendo que eu também havia contribuído para a partida dela.”

Hoje, Tumsonet garante ter dado a volta por cima. Além dos benefícios pessoais, sua

dedicação à paquera passou a servir como ganha-pão. Agora está pronto para consolidar sua reviravolta profissional. Quer deixar de lado sua formação – bem pouco

sedutora – como engenheiro e empregar no comércio seus talentos de bom comunicador, paralelamente à atividade de coach de paquera.

O rapaz se diz feliz em poder ajudar seus clientes – mesmo que por métodos que variam dos relativamente controversos aos francamente machistas. Quando nos

encontramos no café, na periferia de Paris, ele me disse: “Sabe aquela frase ‘As mulheres se apaixonam por aquilo que ouvem, os homens por aquilo que veem’? Por isso as mulheres usam maquiagem e os homens mentem? Acho que isso resume tudo.” Argumentei que, se é assim, talvez fosse útil as mulheres também aprenderem essas técnicas, para se defender. Olhando nos meus olhos, Tumsonet lançou mão de uma de suas estratégias de sedução: “Se defender de quê? Isso não é uma guerra.”

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GÊNERO, INTERAÇÃO SOCIAL, MEMÓRIA E IDENTIDADE: UMA ANÁLISE

DOS CONVITES DE CASAMENTO

Márcia de Oliveira Lupia (UNICSUL)

Introdução

A noção de gênero como ação social está vinculada à escola norte-americana

de pesquisa. Duas das influências que marcam a teoria de gênero tal como

compreendida e desenvolvida naquele contexto geográfico: a nova retórica45 e o

pensamento de Mikhail Bakhtin (CARVALHO, 2011, p.130) permearam as pesquisas

dos principais nomes dessa escola, como Carolyn Miller, John Swales e Charles

Bazerman.

Seus estudos foram de encontro às noções tradicionais de gêneros, as quais

consideravam, primordialmente, o conteúdo e a forma dos textos. Segundo Swales

(1990), hoje, gênero é facilmente usado para referir uma categoria de discurso de

qualquer tipo, falado ou escrito, com ou sem aspirações literárias 46 (tradução nossa). A

mudança proposta por esses pesquisadores é a de olhar para os gêneros considerando

o seu uso na construção de sentidos e ressaltando a importância que exercem na vida

dos indivíduos, afinal, eles são os protagonistas das interações sociais.

Charles Bazerman enxerga o gênero como uma categoria essencialmente sócio-

histórica e em constante evolução, sendo regulador de atividades sociais. Temos

gêneros altamente tipificados de documentos e estruturas sociais altamente

45

Segundo Carolyn Miller, em entrevista no bate-papo acadêmico com Charles Bazerman (2011), “A

nova retórica, pelo contrário, envolve a compreensão de que nossas intenções retóricas podem não ser

totalmente conhecidas por nós, de que nem sempre estamos totalmente conscientes do que ou por que

estamos fazendo (...) sempre temos em mente estratégias deliberadas quando falamos de retórica. A outra

dimensão que quem fala em nova retórica tenta distinguir em relação à retórica antiga é a inclusão de

formas de comunicação que vão além do falante público prototípico (...) isso inclui muitos, mas muitos

tipos de comunicação verbal e não verbal, a multimodalidade de que falamos um pouco antes. (...) poderia

haver uma retórica para a arquitetura, poderia haver uma retórica para um desfile, ou para uma

manifestação em massa; as pessoas passaram a se interessar muito pela retórica de memoriais, pelo

processo de memória, e pela criação de monumentos para eventos ou pessoas. Portanto, trata -se da

abertura da retórica para uma variedade de possibilidades de comunicação simbólica e uma abertura da

retórica para além do uso deliberado, consciente ou estratégico da linguagem”. 46

“Indeed today, genre is quite easily used to refer to a distinctive category of discourse of any type,

spoken or written, with or without literary aspirations” (SWALES, 1990, p. 33).

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tipificadas nas quais esses documentos criam fatos sociais que afetam as ações,

direitos e deveres das pessoas (BAZERMAN, 2011b, p. 21). Em sua pesquisa, o autor

condiciona nossas ligações com os gêneros como determinantes no desenvolvimento e

formação de identidades.

Uma análise de gêneros sob essa ótica deve alicerçar e aprofundar os estudos

de conceitos ligados à memória, já que memória e identidade se conjugam, se nutrem

mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma história de vida, um mito,

uma narrativa (CANDAU, 2014, p. 16).

Sob o viés teórico de gênero como ação social de Charles Bazerman e com apoio

nos estudos sobre memória e identidade, o presente texto tem por objetivo analisar as

estabilidades e instabilidades linguísticas encontradas no gênero convites de casamento

(1948, 1985, 2014 e 2015 - anexos A a D).

Para tanto, o trabalho está dividido em quatro partes: a primeira conta uma

breve história do convite de casamento, de seu surgimento e evolução até os nossos

dias; a segunda aborda a teoria sociorretórica dos gêneros de Charles Bazerman; a

terceira faz uma breve exposição sobre memória, identidade e as relações com o

gênero; e por fim, apresentamos a análise dos marcadores de estabilidade e

instabilidade dos quatro convites de casamento.

Breve história sobre os convites de casamento

Os convites de casamento surgiram na Europa. Antes da invenção da prensa de

impressão móvel de Gutenberg47 (1447), eles eram feitos oralmente, através do

anúncio em locais públicos pelos pregoeiros (town criers) e, qualquer um que ouvisse

sobre o matrimônio, poderia aparecer na cerimônia e na recepção. O analfabetismo

era muito grande naquela época. Somente a nobreza e algumas famílias ricas

contratavam monges com exímia caligrafia para confeccionar os convites.

As primeiras técnicas de impressão não eram capazes de proporcionar um

convite com traços finos em sua escrita. Somente a partir de 1642, com a invenção da

47

A prensa de tipos móveis, ou somente prensa móvel, é um dispositivo que aplica pressão numa

superfície com tinta, transferindo-a para uma superfície de impressão, geralmente papel ou tecido.

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chapa de metal, convites com melhor acabamento foram produzidos e o acesso à

classe média emergente passou a ser realidade. Em 1798, a litografia48 surgiu para

aprimorar ainda mais a produção dos convites, que passaram a ser produzidos em

maior quantidade.

Após o final da 2ª Guerra Mundial, a impressão da chamada “papelaria fina de

casamento” tornou a confecção de convites acessível à maior parte da sociedade. A

tecnologia auxiliou no desenvolvimento de outros métodos como a impressão

termográfica49, a impressão tipográfica50 e a gravação a laser. Essas técnicas

impulsionaram a confecção dos convites a um custo muito menor e foram

responsáveis pela propagação desse gênero.

Atualmente, com a diversidade proporcionada pelo aparato digital, os noivos

acabam incrementando os convites de casamento: alguns solicitam a confecção de

convites personalizados, contando um pouco da história do casal e utilizando a origem

desse relacionamento como tema da festa51; outros acabam utilizando websites de

casamento como o “iCasei”52 para detalhar sobre como e onde o casal se conheceu, os

padrinhos escolhidos, o local da cerimônia, a lista de presentes. Eles postam fotos,

recebem depoimentos e interagem com os convidados antes mesmo do dia da

cerimônia.

Os gêneros segundo Bazerman

Para o autor, gêneros são fenômenos de reconhecimento psicossocial (BAZERMAN, 2011b) e ordenam as relações sociais:

48

Processo de reprodução que consiste em imprimir sobre papel, por meio de prensa, um escrito ou um

desenho executado com tinta graxenta sobre uma superfície calcária ou uma placa metálica, ger. de zinco

ou alumínio. 49

Termografia é designação comum a todos os processos de impressão que envolvam o emprego de calor,

esp. o processo pelo qual se transmite relevo à impressão tipográfica normal, pulverizando -a com resina

que, aderindo à tinta fresca, funde-se e intumesce por aquecimento em estufa especial. 50

Tipografia é conjunto de procedimentos artísticos e técnicos que abrangem as diversas etapas da

produção gráfica (desde a criação dos caracteres até a impressão e acabamento), esp. no sistema de

impressão direta com o uso de matriz em relevo; imprensa. 51

Informação obtida em matéria do IG SP de 14/11/2011 de Cáren Nakashima e Livia Valim “Casais

criam convites de casamento que contam histórias: muito além de informar a data e a hora da cerimônia,

noivos optam por compartilhar com os convidados um pouco da sua história ”. Disponível em:

<http://delas.ig.com.br/noivas/cerimoniaefesta/casais -criam-convites-de-casamento-que-contam-

historias/n1597365075322.html>. Acesso em: 12 abr. 2016. 52

Site especializado no auxílio aos preparativos do casamento. Disponível em:

<https://www.icasei.com.br/quem-somos>. Acesso em: 12 abr. 2016.

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Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser. São frames para a ação social. São ambientes para a aprendizagem. São os lugares onde o sentido é construído. Os gêneros moldam os pensamentos que formamos e as comunicações através das quais interagimos. Gêneros são os lugares familiares onde nos dirigimos para criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são os modelos que utilizamos para explorar o não familiar (BAZERMAN, 2011a, p. 23).

Eles exercem influência sobre as atividades sociais e sofrem influência da

sociedade, cultura e história. A recorrência de algumas atividades em determinado

contexto é que dá status aos gêneros que usamos no cotidiano. Esse reconhecimento

é que faz a existência do gênero. A sua padronização no uso de circunstâncias

específicas é chamada pelo autor de tipificação. Os gêneros não tipificam apenas a

forma textual, eles modelam as atividades sociais. São a realização visível de um

complexo de dinâmicas sociais e psicológicas (BAZERMAN, 2011a, p.29).

Os textos produzidos por alguém no exercício de uma determinada atividade

correspondem, para Bazerman (2011b), a um conjunto de gêneros. Ess e conjunto

equivale a todos os gêneros utilizados por um ator social para exercer o seu papel

dentro do grupo em que está inserido. A identificação de um conjunto de gêneros

possibilita, por exemplo, o reconhecimento das atividades típicas de um determinado

profissional no desempenho de sua atividade.

A partir do momento em que são definidos os conjuntos de gêneros utilizados

pelas pessoas dentro de um frame, temos um sistema de gêneros. Esse sistema

permite-nos entender as interações entre as pessoas dentro de um contexto. A

interação entre as pessoas e os conjuntos de gêneros que estão envolvidos nessa ação

é chamada pelo pesquisador de sistema de atividades.

Tais conceitos podem ser utilizados como pistas de contextualização que

ajudam a identificar e compreender as relações sociais segundo os gêneros.

Estudiosos de outras áreas das Ciências Sociais olham para a maneira como certos

gêneros sociais têm criado poder, negociando relações entre grupos e dentro deles, e

criando um habitus naturalizado para relações políticas e contínuas (BAZERMAN,

2011b, p. 56). O gênero é visto como um “organizador” das relações em sociedade. É

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uma ferramenta para que os sujeitos possam comunicar-se de modo reconhecível, em

determinado contexto, e com consequências esperadas. Presume-se, portanto, que,

como existem diversas culturas, diferentes sociedades podem possuir diferentes

conjuntos de gêneros. E esses se modificam em consequência do uso, do tempo, da

tecnologia. Podem dar origem a novos gêneros, podem ser reinventados , podem

extinguir-se. Gênero e sociedade influenciam-se mutuamente.

Bazerman (2011b) ressalta que a Teoria dos Gêneros possui como lema a

“linguagem-em-uso como forma de vida”. Desse ponto de vista, os indivíduos são

orientados pelos gêneros para um espaço social comunicativo específico, onde:

(...) adotam o humor, a atitude e as possibilidades de ação daquele lugar - eles vão àquele lugar para fazer as coisas que ali são feitas, para desenvolver as ideias que ali são pensadas, para se sentir como ali se sente, para satisfazer o que pode ser ali satisfeito e para se transformar no tipo de pessoa que ali se pode tornar. (...) se passar a frequentar um certo lugar o tempo suficiente, você se transformará num típico frequentador do lugar- conhece o lugar, sabe como agir lá, o que dizer ali, quem pertence ou não ao lugar, e quem é novato. (...) ir ao lugar é apenas o primeiro passo, porque quando estiver lá, você precisará de acesso e encorajamento para se engajar com pessoas particulares em papéis específicos (...). Além disso, você passa a desenvolver e a se comprometer com a identidade que você está construindo dentro daquele domínio. Ademais, a extensão particular de sentimentos, impulsos e posições que você adota ao orientar-se para aquele mundo desenvolve-se na interação com as pessoas e atividades dentro daquele mundo (BAZERMAN, 2011b, pp. 109, 110, 111).

A partir do momento em que o indivíduo passa a “frequentar” gêneros, ele

“mergulha” em sua totalidade e absorve traços que são fontes de formação da

identidade. O autor exemplifica a atuação dos gêneros nas formações identitárias dos

profissionais através do contato que eles têm com gêneros em suas áreas de formação

ou de quando nós temos que preencher todos os anos o formulário do Imposto de

Renda53. Não importa a periocidade do contato com o gênero: eles deixam marcas nas

formações das identidades dos atores sociais. Da mesma maneira que os gêneros

53

Em seu livro “Gêneros Textuais, Tipificação e Interação” Bazerman expõe conclusões sobre sua

pesquisa de como os gêneros podem influenciar na construção identitária do indivíduo americano quando

este se encontra no momento de preencher os formulários de Imposto de Renda nos E.U.A. (Internal

Revenue Service). O gênero influencia as pessoas a agirem de acordo com as situações em que estão

inseridas (BAZERMAN, 2011b).

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sofrem transformações, as identidades também: elas vivem em processo contínuo de

transformação: à medida que, em séculos recentes, o mundo social tem se tornado

cada vez mais diferenciado, muitas atividades são realizadas em diferentes tipos de

situações sociais, tornando as atividades discursivas cada vez mais diferenciadas

(BAZERMAN, 2011b, p. 154). Essa diversificação do mundo social é decorrente de

fatores históricos, desenvolvimento das sociedades, das culturas e da tecnologia.

Luiz Antônio Marcuschi, na apresentação da obra de Bazerman “Gêneros

Textuais, Tipificação e Interação”, resume, de maneira simples, a linha de raciocínio do

pesquisador:

A posição de Bazerman é muito clara ao enfatizar que, no geral, não temos muitos problemas para reconhecer os gêneros como formas textuais típicas com funcionamentos específicos. Nós lemos os jornais, circulamos pela cidade, frequentamos restaurantes, livrarias etc., sem maiores problemas para identificar os gêneros escritos. Não temos nem mesmo problema para identificar e entender aqueles gêneros que aparecem pela primeira vez à nossa frente, pois eles em geral são extensões de outros preexistentes. Um gênero é condicionado por outro e não se dá solto na realidade sócio-histórica. Isso quer dizer que a própria vida social e a atuação são encadeadas por uma série de textos que funcionam como seus enquadres e, mesmo que os gêneros sejam bastante tipificados, eles permitem mudanças, conjugações, misturas, inter-relações. Dominar gênero é agir politicamente (MARCUSCHI apud BAZERMAN, 2011b, pp. 12, 13).

Gênero, memória e identidade

A concepção de gênero como ação social possui, como visto anteriormente,

ligação com a identidade. Podemos dizer, após a análise da afirmação de Anthony

Giddens, que gênero e memória também são relacionados:

Toda a experiência humana é mediada - pela socialização e em particular pela aquisição de linguagem. A linguagem e a memória estão intrinsicamente ligadas, tanto ao nível de lembrança individual quanto ao da institucionalização da experiência coletiva. Para a vida humana, a linguagem é o meio original e principal de distanciamento no tempo e no espaço, elevando a atividade humana além da imediatez da experiência dos animais. A linguagem, como diz Lévi -Strauss, é uma máquina do tempo, que permite a reencenação das práticas sociais através das gerações, ao mesmo tempo em que torna possível a diferenciação de passado, presente e futuro. (...) relação

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entre a escrita e o surgimento de sistemas sociais dinâmicos “quentes” (GIDDENS, 2002, pp. 28,29).

A partir da exposição de alguns conceitos implícitos nessa afirmação, podemos

estabelecer a ligação que existe entre gênero e memória. O primeiro deles é “a

experiência humana é mediada pela socialização e em particular pela aquisição da

linguagem”. Sob o ponto de vista da teoria de gênero como ação social, podemos

associar a essa observação o fato de que os seres humanos servem-se da linguagem

para comunicar-se e as trocas de informações não são feitas aleatoriamente: seus

enunciados são organizados dentro de um gênero. Quando Giddens cita Lévi-Strauss e

sua ideia de “reencenação das práticas sociais” e por consequência o “surgimento de

sistemas sociais dinâmicos ‘quentes’”, traduzimos a reencenação por recorrência dos

gêneros no cotidiano dos indivíduos, a qual cria padrões de orientação para a

interação social desses sujeitos, instituindo frames. A dinamização habitual dessas

molduras torna-as “quentes”, isto é, válidas ou aceitas dentro de uma sociedade.

“Linguagem e memória estão intrinsicamente ligadas , tanto ao nível da

lembrança individual quanto ao da institucionalização da experiência coletiva”. Faz-se

necessária uma explicação sobre memória antes da análise desse trecho. Em seu livro

“Memória e Identidade”, Jöel Candau (2014) conceitua a memória em três níveis:

protomemória, memória e metamemória. O conceito de protomemória é assemelhado

ao de Bergson (1999) quando ele cita a memória repetitiva ou a memória-hábito:

Uma memória de baixo nível, que sugiro denominar protomemória. Esta, tal como o ‘protopensamento’, não pode ser destacada da atividade em curso e de suas circunstâncias. O antropólogo deve privilegiar essa modalidade de memória, pois é nela que enquadramos aquilo que, no âmbito do indivíduo, constitui os saberes e as experiências mais resistentes e mais bem compartilhados pelos membros da sociedade (CANDAU, 2014, pp. 21,22).

Já a memória em si, é aquela que envolve recordações e lembranças. Segundo

Candau (2014), é a “memória propriamente dita” ou de “alto nível”. O último estágio

de memória, a metamemória, é a representação que cada um faz da sua própria

memória.

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Se Giddens coloca a linguagem como mediadora da comunicação social e os

gêneros organizam essas relações, a memória (no nível de protomemória) é onde

esses gêneros se instalam para que os atores sociais efetuem uma escolha a ser

utilizada em suas interações, respeitando suas formações identitárias e sofrendo

influências. Tanto os gêneros (e o conhecimento que cada um tem deles), quanto à

memória, e quanto à identidade não são totalmente estáveis:

No quadro de estratégias identitárias, os indivíduos operam escolhas sempre no interior de um repertório flexível e aberto a diferentes meios: representações, ‘mito-histórias’, crenças, ritos, saberes, heranças etc., ou seja, no interior de um registro memorial (CANDAU, 2014, p. 18).

A partir desses conceitos, conclui-se que o et cetera utilizado pelo autor inclui,

entre todas as suas possibilidades, os gêneros. O vínculo entre linguagem e memória

possui o gênero como um dos propulsores das relações humanas dentro da sociedade.

A afirmação de Giddens e os conceitos apresentados orientou-nos, dentro do

escopo da sociorretórica de Bazerman, a enxergar a conexão existente entre gênero,

memória e identidade: a linguagem está ligada a um enunciado (que surge da

necessidade de comunicação do ser humano), o enunciado estrutura um gênero (que

passa a ser regulador dessa interação social), o conhecimento de gênero vem das

relações sociais e é absorvido, mesmo que inconscientemente, pela protomemória; a

identidade é nutrida pela memória e o gênero é um dos meios que a memória possui

de influenciar a identidade.

Estabilidade e instabilidade no gênero convite de casamento

O convite de casamento é um gênero presente na sociedade há muitos anos.

Ele foi modificado e adaptado de acordo com a evolução do tempo, da civilização e da

tecnologia. Entretanto, essas mudanças não modificaram a finalidade desse gênero e,

sua perpetuação ao longo desses anos, trouxe-lhe uma carga memorial muito grande,

já que são artefatos de lembrança, guardados nas famílias como representação da

interação social daquele dia de comemoração. Segundo Candau (2014), os

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acontecimentos que permeiam as memórias de origem como o nascimento, batismo,

comunhão, casamento ou um novo começo por conta de uma migração, possuem

papel maior na formação das identidades individuais e coletivas. A fronteira entre a

protomemória e a memória mistura-se e faz-nos ampliar nossa visão nessa análise.

Ao abrirmos um convite de casamento, não precisamos ver em seu cabeçalho a

inscrição “Convite de casamento” para entendermos do que se trata. Como afirmou

Bakhtin (2003), os “gêneros discursivos são tipos relativamente estáveis”. Existem

algumas características inerentes a esse gênero e, por isso, ele fornece um meio para

que os indivíduos possam orientar-se e realizar situações de modo reconhecível, com

consequências reconhecíveis (BAZERMAN, 2011b, pp. 58, 59).

No convite recebido, não aparece impresso que precisamos vestir roupas

adequadas para a ocasião, ter algumas reações enquanto convidados, ficar quietos

durante a cerimônia religiosa e interagir com os outros convidados durante a

recepção. O habitus bourdieuniano das disposições, “recheados” de nosso

conhecimento sobre casamentos, nos orientam nessa situação e fornecem base para

nossas avaliações sociais. Assim, o senso prático é o que nos guia, como e quando

devemos fazer. É algo que absorvemos em interações sociais e em noss os contatos

com os gêneros, os quais são acionados pela protomemória.

A escolha de convites de casamento com os anos espaçados (1948, 1985, 2014

e 2015 – anexos A a D) proporciona um parâmetro mais apurado para a análise de

estabilidades e nos ajuda a fundamentar as ocorrências de instabilidades. Nos quatro

convites de casamento analisados, foram encontrados quatro itens estáveis e

recorrentes: o nome dos noivos, sem o sobrenome; o nome dos pais dos noivos com o

sobrenome (e em três deles, o endereço dos pais); endereços e nomes dos locais onde

foram realizadas as cerimônias religiosas e as recepções; e as datas e horas dos

eventos. As instabilidades encontradas foram: a existência de frases de amor como

introdução do convite (em dois deles); a organização dos enunciados no convite; o

formato dos convites; tipos de letras utilizados na impressão; e forma de junção dos

nomes dos noivos.

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Passemos a uma análise detalhada dos itens estáveis. Os nomes dos noivos,

protagonistas da interação social evocada pelo convite de casamento, encontram-se

em destaque, ao centro, sem o sobrenome. Segundo Candau (2014):

O nome próprio, e mais genericamente toda a nominação do indivíduo ou de um conjunto de indivíduos, é uma forma de controle social da alteridade ontológica. (...). Todo dever de memória passa em primeiro lugar pela restituição de nomes próprios. (...) chamar alguém por seu nome - e mesmo escrever corretamente seu sobrenome - é lembrar-se da atribuição e do reconhecimento social de uma identidade (CANDAU, 2014, pp. 67, 68, 69).

Em seguida, os nomes dos pais dos noivos com os seus sobrenomes, chamam

atenção nos convites. Eles aparecem para manter, segundo Candau (2014), a memória

genealógica e familiar. Os endereços dos pais dos noivos também possuem essa

função. O nome dos pais, com o sobrenome das famílias e o endereço de onde vivem

reforçam o vínculo identitário de origem dos noivos nesse momento de transição.

Sem dúvida, a aparição dos nomes dos pais remonta uma tradição social que é a dos

pais marcarem o final de suas responsabilidades com seus filhos, a partir do momento

em que eles formarão outra família; é como se os enunciados no convite traduzissem

em palavras a representação dos pais que encaminham seus filhos ao altar: “Atílio

Lupia e Júlia D’Ângelo têm o prazer de convidar V.S. e Exma. Família para assistirem ao

enlace de seu filho Odílio com a senhorita Helena”; “Sr. João Luciano Vieira, Sra.

Francisca Ivone Vieira, Sr. Mauro Sérgio Rocha Ferraresi e Sra. Maria Sueli Paulino

Pinto convidam para a cerimônia religiosa do casamento de seus filhos Leide &

Fernando”. Segundo Bazerman (2011b), o gênero é a parte palpável das interações

sociais e psicológicas dos indivíduos.

Os endereços são os espaços discursivos compartilhados dos gêneros.

Identidades e formas de vida são construídas dentro dos espaços sociais em

desenvolvimento, identificados por atos comunicativos reconhecíveis (BAZERMAN,

2011b, p. 114). Saber que o lugar da cerimônia religiosa é uma igreja “na igreja São

José do Ipiranga à Rua Brigadeiro Jordão” e que a comemoração será em um bar “no

bar do Centro Independência à Rua Costa Aguiar” situa o convidado sobre o que

esperar da situação, como ir e chegar, o que vestir, o que falar. Obviamente que, em

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uma igreja, as palavras que são proferidas não serão as mesmas que em uma

comemoração no bar. Saber que tanto a cerimônia religiosa quanto a recepção serão

em um buffet “no Buffet Sabores da Vida, Avenida Santos Dummont, 539”, coloca os

convidados em outro tipo de situação. Além de situar os convidados no mundo real e

no mundo da interação social, os endereços e locais são considerados pelos estudiosos

da memória como Candau (2014) “lugares de memória” ou “baliza da memória”. O

lugar está para a memória, assim como um canvas está para as pinturas. As pessoas

não se lembrariam de fatos, festas, acontecimentos ou eventos se eles não possuíssem

um cenário de interação.

Por último, analisaremos as datas e os horários. Como o gênero convite é

relacionado a um evento, as datas são essenciais. Elas misturam-se aos enunciados e

em todos os convites não possuem um formato fixo. A data facilita a orientação da

memória e fornece as referências a partir das quais os indivíduos organizam suas

existências (CANDAU, 2014, p.90). O convidado sabia que “ao soar as dezenove horas e

trinta minutos do dia doze de outubro de um mil novecentos e oitenta e cinco”, ele

deveria estar na igreja, à espera dos noivos “Zuleika” e “Carlos Alberto”. Os padrinhos,

o noivo e os convidados, sabiam que grande parte das noivas atrasa e, que, por

convenção, o casamento aconteceria apenas meia hora depois. O enunciado que

consta a informação da hora possui diversas interpretações, de acordo com o papel do

ator social nesse evento. Por isso, Bazerman afirma que o gênero é um regulador na

interação. As informações contidas em cada pedaço de seu enunciado interferem na

ação de cada um dos envolvidos. Os gêneros são coleções percebidas de enunciados.

Os enunciados são delimitados, têm começo e fim, ocupam lugar definido no tempo e

no espaço e são percebidos como portadores de algum sentido (BAZERMAN, 2011c).

Todos os aspectos estáveis do gênero convites de casamento possuem algo em

comum: ligação estreita com a memória. Por possuírem essa ligação com a memória,

esses quatro aspectos estáveis e em conjunto é que ajudam as pessoas a tipificá -lo

como “Convite de casamento”: ao vermos em um mesmo convite os nomes de um

casal ao centro, os nomes dos pais, nome e endereço de uma entidade religiosa, data e

horário de uma cerimônia e uma recepção, sabemos que é um convite de casamento.

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Os gêneros repousam na protomemória das pessoas e funcionam como

reguladores sociais, ajudando a estruturar o habitus, juntamente com outros saberes.

A memória utiliza o gênero como um dos meios de nutrir a identidade dos atores

sociais. O gênero em questão não exerce a mesma influência na formação identitária

de todos os envolvidos: aos convidados dá a pista da integração social em que serão

atores e introduzem-nos aos outros gêneros que aparecem no conjunto

cerimônia/recepção de casamento. Já aos noivos e aos familiares mais próximos, o

gênero influenciará de maneira diferente. Mas o essencial disso tudo é entender que o

convite de casamento é apenas um dos gêneros que irá ajudar a formar o quebra-

cabeça identitário dos indivíduos. Cada um de nós tem em nossa formação identitária

um pouco sobre convidado de casamento, algo que absorvemos com os gêneros nos

quais “mergulhamos” a cada casamento para o qual somos convidados e participamos

da cerimônia. Esse “saber” se expande ou se restringe a cada interação: somos

influenciados e influenciamos gênero, memória e identidade.

Quanto aos pontos instáveis, eles são o que de menos chamam a atenção no

gênero. Ao abrir o convite e deparar-se com a frase “Juntos, não há estrelas que não

possamos alcançar, nem sonhos que não possamos realizar!”, sabemos que esse

enunciado é parte integrante daquele convite de casamento, mas ele poderia aparecer

no gênero carta de motivação aos astronautas da NASA54. Não é o tipo de enunciado

que dá uma pista ao destinatário do convite de que aquilo é um convite de casamento.

As frases escolhidas por quem produz o gênero exprimem preferências pessoais

dentro do tempo e da sociedade em que vivem. Podem ser criações ou “emprestadas”

de músicas populares ou até mesmo de obras literárias: “Serás para mim único no

mundo. Eu serei para ti única no mundo”. Os outros aspectos instáveis como o

formato do convite, a cor, as letras utilizadas, a ordem de enunciados e a junção dos

nomes dos noivos por “&”, “e” ou “de seu filho Odílio com a senhorita Helena”, são de

cunho pessoal de quem articula o enunciado e, como não se encaixam no ciclo gênero-

memória-identidade, não são aspectos que ajudam a tipificar o gênero “Convite de

casamento”. Juntos, esses aspectos não são relevantemente suficientes para a

identificação desse gênero.

54

National Aeronautics and Space Administration

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Para finalizar a análise, cabe-nos retomar a importância da carga memorial do

gênero “Convite de Casamento” através de uma peculiaridade encontrada no convite

de casamento de 1948: as assinaturas dos convidados do casamento ao redor do

convite. Elas marcam a presença dos convidados, os quais, naquela época, não eram

fotografados ou filmados para serem “guardados” como lembrança do evento, já que

em 1948, a tecnologia das câmeras digitais era um recurso inimaginável e o preço dos

recursos que possibilitassem a recordação daquele evento não era acessível a qualquer

um. Claramente, nesse caso, a força do gênero transcende o nível da linguagem e

evidencia seu valor social, cultural e histórico, abrindo novos caminhos a serem

explorados pela Linguística e outras Ciências Sociais.

Considerações Finais

Caracterizada pelo interesse em pesquisas sobre a natureza social do discurso,

a escola de estudos de gênero norte-americana acabou estreitando os laços entre a

Linguística e as Ciências Sociais. O estudo dos gêneros como ação social, proposto por

pesquisadores como Carolyn Miller, John Sawles e Charles Bazerman passa a levar em

consideração o contexto e o sujeito cognitivo para entender a interação social através

dos gêneros.

Charles Bazerman conceitua gêneros como forma de vida, ordenadores sociais .

Ele acredita que os gêneros fazem parte da formação identitária dos sujeitos sociais e

que ao “mergulhar” nesses gêneros e frequentá-los, os indivíduos absorvem

conhecimentos que ajudarão a compor o habitus para que possam utilizar em

situações de interação na sociedade. Os gêneros nos influenciam e nós os

influenciamos: são modificados, geram outros gêneros e se extinguem com o passar do

tempo, do uso e das tecnologias.

Se os gêneros, segundo a ótica de Bazerman, possuem responsabilidade no

processo de formação de identidade dos sujeitos sociais, tornou-se necessária a

ampliação da teoria utilizada na análise desse trabalho para os estudos do conceito de

memória, já que identidade e memória possuem forte ligação. Assim como os gêneros,

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memória e identidade são fluidas, sofrem influências nas interações sociais e

influenciam-se entre si.

A análise dos corpora do texto, os convites de casamento (1948, 1985, 2014 e

2015), apontou como aspectos estáveis os nomes dos noivos sem os sobrenomes, os

nomes dos pais dos noivos por completo (em três dos casos acompanhados com os

endereços da família), os endereços do local da cerimônia /recepção e a data e hora do

evento. Todos esses pontos de estabilidade encontrados possuem uma ligação estreita

com a memória e, em conjunto, dão a possibilidade aos indivíduos de identificarem

esse gênero como convite de casamento. Ademais, introduzem “ingredientes” que

formam o sujeito-convidado, indivíduo capaz de interagir nesse contexto de acordo

com as dicas dadas no enunciado, introduzindo-o a um local social com gêneros

correlatos, os quais também são importantes para a consolidação dos seus saberes

sobre casamento.

As instabilidades localizadas nos convites são frutos de gostos pessoais e

tendências sociais, são “acessórios” nesse tipo de gênero. Frases que remetem ao

amor, organização dos enunciados, formato dos convites, tipo de letras e forma de

unir os nomes dos noivos não podem ser enquadradas ao ciclo gênero-memória-

identidade da maneira como os pontos estáveis, pois não exercem influência direta

nesse tipo de interação. Esses pontos não inserem os sujeitos no contexto casamento.

Ao final da análise, os objetivos propostos foram concluídos com sucesso e essa

linha de estudos onde o gênero, a memória e a identidade passam a s er estudados em

conjunto, ajuda-nos a traçar novos caminhos que estreitam ainda mais as pesquisas da

Linguística e das Ciências Sociais a fim de compreender o indivíduo em ação na

sociedade.

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BAZERMAN, C. Gênero, Agência e Escrita. São Paulo: Cortez, 2011a.

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acadêmico. Entrevista concedida ao Núcleo de investigações sobre gêneros textuais. Disponível em: <http://www.nigufpe.com.br/batepapoacademico/bate-papo-academico1.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2016.

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CANDAU, J. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2014.

HOUAISS, A. e VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Elaborado no Instituto Antonio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Portuguesa. Rio de

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ICasei [Internet]. São Paulo; 2007. Disponível em: <https://www.icasei.com.br>. Acesso em: 12 abr. 2016.

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<https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Wedding_invitation&oldid=711389307> .

Acesso em: 12 abr. 2016.

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Anexos

Anexo A – Convite de Casamento 1948

Anexo B – Convite de Casamento 1985

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Anexo C – Convite de Casamento 2014

Anexo D – Convite de Casamento 2015

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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER DURANTE O PERÍODO ELEITORAL:

ANÁLISE DE DUAS CAPAS DA REVISTA VEJA

Jéssica Cristiane Pereira da Silva (UNITAU) Miriam Bauab Puzzo (UNITAU)

Introdução

Em uma sociedade baseada na informação, na qual a mídia corresponde a um

importante espaço de produção e circulação, o jornalismo enquanto meio de

comunicação constitui-se de um relevante instrumento para a difusão de informações

relacionadas às questões culturais, políticas e econômicas que permeiam nossa

sociedade.

Tendo conhecimento que a mídia transmite um recorte particular da realidade,

na qual ideologias, valores e interesses são veiculados, o que consequentemente

influencia os processos constitutivos das identidades pessoais, assim como, suas

representações sociais, esta pesquisa tem como objetivo central analisar, de uma

perspectiva bakhtiniana, o olhar que a mídia direciona à mulher durante os períodos

eleitorais, a partir da verificação das construções discursivas presentes em duas capas

da revista Veja.

Ao escolher como gênero discursivo a capa de revista, buscou-se selecionar

capas que evidenciassem a mulher enquanto eleitora. Nesse sentido, a quantidade

reduzida55 de capas que direta ou indiretamente abordam esse assunto, por si só, já

demonstra desinteresse da mídia pelo assunto mulher e política, uma vez que ao

relacionar a mulher a outros assuntos como estética e família, a prevalência de capas é

maior.

Assim sendo, o corpus analisado de modo qualitativo, com base na

fundamentação teórica, constitui-se de duas capas da revista Veja construídas durante

os processos eleitorais para presidente ocorridos em 2006 e 2014, na qual mulheres,

55 Durante o período eleitoral de 2006, 2010 e 2014 foram identificadas apenas duas capas da revista Veja que abordavam na capa a mulher enquanto eleitora.

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enquanto eleitoras, receberam destaque. As capas em questão são as edições 1969 e a

2393, respectivamente publicadas em 16 de agosto de 2006 e 1 de outubro de 2014.

A fim de atender ao objetivo proposto, serão considerados a linguagem verbo-

visual, o implícito e explícito, a cultura da mídia, assim como os conceitos de

enunciado concreto, signo ideológico e dialogismo, presentes nas obras do Círculo de

Bakhtin (2004; 2011)56

.

Considerando que a capa possui um grande poder persuasivo, e que o sujeito é

constitutivamente dialógico, e que todo discurso é atravessado pelo discurso do outro,

este trabalho têm como propósito contribuir para os estudos na área, assim como,

suscitar uma reflexão crítica quanto ao discurso produzido pela mídia em relação a

mulher na política.

Este artigo organiza-se nas seguintes seções: fundamentação teórica, análise

das capas da revista e conclusão. A fundamentação teórica está dividida em duas

partes, a primeira denominada signo ideológico, enunciado e dialogismo está baseada

principalmente nas obras: Estética da criação verbal, e, Marxismo e filosofia da

linguagem, obras estas atribuídas aos integrantes do Círculo de Bakhtin; a segunda

parte denominada mídia e construção de identidades abordará o tema a partir da

perspectiva de uma “cultura das mídias”. Para a análise das capas e conclusão, este

trabalho focou no implícito e explícito e na linguagem verbo-visual utilizada limitando-

se a analisar as questões de cunho político somente quando estavam diretamente

imbricadas a mulher, não sendo assim passíveis de indissociação.

Fundamentação teórica

Dialogismo, enunciado e signo ideológico

Neste trabalho foi proposto o estudo do dialogismo, do enunciado e do signo

ideológico conforme a perspectiva bakhtiniana, devido ao fato de os estudos do Círculo

de Bakhtin, conceberem a linguagem em sua totalidade, considerando tanto o que a

linguagem tem de sistemático e invariável quanto o que ela tem de individual e 56 Neste trabalho não se discutirá a autoria dos integrantes do Círculo de Bakhtin, entre eles, Voloshinov, Medievdev, Bakhtin.

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variável, a observando em uso. Nesse sentido, Brait (2006, p. 22) reitera que a

perspectiva bakhtiniana entende a linguagem “como uma forma de conhecer o ser

humano, suas atividades, sua condição de sujeito múltiplo, sua inserção na história, no

social, no cultural pela linguagem, pelas linguagens.”.

No processo de comunicação todos os enunciados são considerados dialógicos,

pois todo enunciador ao produzir um discurso leva em consideração outros discursos.

Assim sendo, Fiorin (2006b) afirma que para Bakhtin, a língua tem a propriedade de ser

dialógica, pois todo enunciado é constituído a partir de outros, sendo inevitavelmente

ocupado, atravessado, pelo discurso do outro.

Desse modo, o enunciado não pode existir alheio as relações dialógicas, pois,

em todo enunciado há a presença de outros enunciados com os quais se estabelece

relações de concordância ou discordância. Para Faraco (2009, p. 59) na perspectiva

bakhtiniana “…cada enunciado é uma resposta, contém sempre, com maior ou menor

nitidez, a indicação de um acordo ou de desacordo; é um elo da corrente ininterrupta

da comunicação sociocultural.”.

Interpretando a teoria, Fiorin (2006a) alerta para o fato de que ao se falar em

dialogismo, muitas vezes vem à mente a relação entre enunciados já constituídos, ou

seja, enunciado anteriores. Contudo, o autor ressalta que o enunciado também está

relacionado aos enunciados que o sucedem dentro da cadeia da comunicação verbal.

Bakhtin (2011) destaca que o enunciado não está relacionado apenas aos elos que o

antecedem, pois, desde o começo o enunciado elabora-se em função de uma resposta.

Para Bakhtin (2011) é a partir dos enunciados que se ocorre o emprego da

língua e é no interior dos campos de atividade humana que os enunciados são

construídos, refletindo assim as condições e finalidades desses campos, que elaboram

tipos relativamente estáveis de enunciados, denominados gêneros do discurso. Nesse

sentido, Bakhtin (2011, p. 261) destaca que “O emprego da língua se efetua em forma

de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse

ou daquele campo de atividade humana.”.

Em relação aos enunciados concretos Bakhtin (2011, p. 296-297) declara que:

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Todo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo. Os próprios limites do enunciado são determinados pela alternância dos sujeitos dos discursos. Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera comum de comunicação discursiva.

Considerando o texto como a materialidade de um enunciado, Fiorin (2006b)

destaca que o texto se constitui como a manifestação de um enunciado através de um

conjunto de signos, e que, devido ao fato do enunciado não ser expresso somente

verbalmente, o texto também não se limita ao verbal, podendo assim, ter diferentes

formas de expressão.

De acordo com Bakhtin (2004) os signos são objetos que adquiriram um sentido

que ultrapassa o que lhe é particular; refletindo e refratando uma real idade, podendo

ser-lhe fiel, distorcê-la ou apreendê-la de acordo com determinado ponto de vista.

Assim, todo signo está sujeito a avaliações de caráter ideológico, no qual, pode-se

questionar se determinado signo é verdadeiro ou falso, bom ou ruim, justif icado ou

injustificado, entre outros. Nesse sentido, Bakhtin (2004, p. 32) considera que “O

domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente

correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico.”.

Considerando que a ideologia e o signo estão diretamente imbricados, Bakhtin

(2004) destaca que todo produto ideológico é um signo, e que não há ideologia sem

signos. Nesse sentido, Bakhtin (2004, p. 33) afirma que

Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como uma outra coisa qualquer. […]. Um signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior.

Desse modo, o signo ideológico somente emerge em terreno interindividual, a

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partir do processo de interação entre consciências individuais repletas de signos, o que

faz ser necessária a presença de indivíduos que estejam socialmente organizados, pois,

só assim um sistema de signos pode se constituir. Assim, frente as necessidades

enunciativas, interessa ao locutor a forma linguística enquanto signo e não sinal, pois,

pôr o signo ser variável e flexível ele permite novas significações. (BAKHTIN, 2004).

Na concepção do Círculo de Bakhtin a comunicação verbal se dá através de

enunciados, e a enunciação de um signo se dá através da enunciação de índices sociais

de valor, portanto, o enunciado é ideológico e evidencia uma posição avaliativa, não

podendo assim ser considerado neutro. Desse modo, Faraco destaca que nos

relacionamos com um mundo semioticizado, no qual “… a significação dos signos

envolve sempre uma dimensão axiológica, nossa relação com o mundo é sempre

atravessada por valores”.

Mídia e construção de identidades

Pressupondo que a cultura veiculada pela mídia produz material que possibilita

ao indivíduo se inserir e se reconhecer como membro da sociedade, é plausível

conceber que a mídia participa diretamente do processo de construção de

identidades.

Primeiramente é importante destacar que a mídia se constitui apenas de um

meio de transmissão, o qual Santaella (2003, p. 25), definiu como “… suportes

materiais, canais físicos, nos quais as linguagens se corporificam e através dos quais

transitam”. Frente a isso a autora destaca que a mediação social se dá a través do

signo, da linguagem e do pensamento que o meio veicula.

Para Santaella (2003) a cultura das mídias corresponde a uma cultura

intermediária, situada entre a cultura de massas e a cibercultura ou cultura do virtual.

Nesse sentido, a autora destaca que a cultura das mídias preparou o terreno

sociocultural para o aparecimento da cultura virtual, através de processos de

produção, distribuição e consumo comunicacionais.

Ao trabalhar com a ideia de uma divisão em eras culturais, compostas por seis

formações culturais (cultura oral, cultura escrita, cultura impressa, cultura de massas,

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cultura das mídias, e, cultura do virtual), Santaella (2003, p. 25) ressalta que o

aparecimento de uma nova era não significa a extinção da era anterior, pois, “… há

sempre um processo cumulativo de complexificação: uma nova formação

comunicativa e cultural vai se integrando na anterior, provocando nela reajustamentos

e refuncionalizações.”.

A onipresença dos meios de comunicação de massa, a alienação da sociedade,

a afirmação das aparências e o consumo exacerbado e passivo de produtos e imagens,

imagens estas consideradas como uma abstração da realidade; configuram a

sociedade do espetáculo. (DEBORD, 2003).

Considerando que a sociedade do espetáculo, conceito cunhado por Guy

Debord está cada vez mais presente Kellner (2003, p. 5) afirma que a vida político-

social está sendo submetida excessivamente à espetacularização, e que em relação às

identidades, a “cultura da mídia não aborda apenas os grandes momentos da vida

comum, mas proporciona também material ainda mais farto para as fantasias e

sonhos, modelando o pensamento, o comportamento e as identidades.”.

Feitas as considerações sobre a cultura das mídias, faz-se necessário conceber o

que vem a ser identidade na sociedade contemporânea, uma vez que, a cultura

apresentada na mídia fornece elementos para que as pessoas construam suas

identidades.

De acordo com Louro (2000), as identidades são construídas culturalmente e

são definidas uma em relação a outra, nesse sentido, há as identidades referências que

são aquelas que culturalmente ocupam uma posição central, servindo de parâmetro a

todas as outras identidades. Além disso, Louro (2000, p. 63) destaca que as

identidades se constituem no âmbito das relações políticas em meio a um jogo de

poder, no qual, “As identidades, constituídas no contexto da cultura, produzem-se em

meio a disputas, supõem classificações, ordenamentos, hierarquias; elas es tão sempre

implicadas num processo de diferenciação.”.

A identidade será apresentada aqui como algo múltiplo e fluído, e não como

algo determinado biologicamente, fixo e imutável. Nesse sentido, Sarup (1996, apud

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TILIO, 2009) considera a identidade como um processo que é construído na linguagem,

e que se constitui no e através do discurso.

Corroborando esta concepção, Tilio (2009) considera a identidade como uma

construção social e não como uma imposição biológica. Diante disso, Tilio (2009, p.

112) relaciona a identidade com a representação ao afirmar que “…ela se dá no âmbito

da representação: a identidade representa a forma como os indivíduos se enxergam e

enxergam uns aos outros no mundo.”. Nesse sentido, Kellner (2003, p. 9) afirma que

“os espetáculos da cultura da mídia mostram e dizem às pessoas como devem se

apresentar e se comportar.”.

Para Tilio (2009) as identidades são construídas no discurso e manifestam-se

segundo o contexto a qual são submetidas, de acordo com critérios culturais,

históricos e institucionais. Desse modo, Tilio (2009, p. 112) afirma que “As identidades

sociais emergem das várias práticas sociais e/ou discursivas das quais os indivíduos

fazem parte (raça, etnia, idade, classe social, gênero, sexualidade etc.)”.

Análise das capas da revista

Atendendo ao objetivo dessa pesquisa a análise terá como foco a mulher ao

tecer suas considerações, mesmo tendo ciência de que outras questões políticas

receberam destaque de forma explícita e implícita nas capas analisadas.

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Capa da revista Veja de 16 de agosto de 2006

Figura 1: Capa da edição 1969.57

Primeiramente é necessário situar esta capa em um contexto sócio-histórico

para que as inferências captem a ideologia presente por trás da linguagem verbo-

visual utilizada. Nesse sentido é importante destacar que a capa é datada de 16 de

agosto de 2006, período marcado pelas campanhas políticas para eleição do

presidente da república, sendo o atual presidente, Luís Inácio Lula da Silva candidato a

reeleição.

Uma leitura rápida e descomprometida com o contexto sócio-histórico no qual

a capa foi construída poderia erroneamente transparecer que a capa da edição nº

1969 visava dar destaque e reconhecimento à mulher nordestina, personagem esta

constantemente associada a notícias relacionadas à pobreza, e consequentemente

esquecidas quando a temática é política.

A maneira como a personagem recebe destaque na capa, seguida de um texto

que a situa enquanto sujeito dentro da sociedade, atribuindo-lhe uma identidade, e

acima de tudo voz, nos dá a sensação de que a capa em questão tinha a intenção de

valorizar as minorias – representadas na capa por uma mulher nordestina, negra e

57 Esta capa foi obtida no Acervo Digital da Veja. Disponível em: <http://acervoveja.digitalpages.com.br/home.aspx>.

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pobre – dando espaço para que estas também falassem sobre política, assunto este,

frequentemente confiado aos especialistas.

Uma análise que não considerasse quem é o leitor presumido da revista Veja

poderia interpretar que ao colocar uma pessoa comum e não um especialista, em uma

capa que tinha como temática a política, a revista passaria a mensagem de que o leitor

também tem voz e que a revista tem interesse em sua opinião. Contudo, esse efeito de

sentido dificilmente se concluiria, pois o leitor da revista não se reconheceria na

personagem escolhida para estampar a capa, pois a realidade cultural, social e

econômica destes são muito distante; o que dificultaria uma identificação com a

personagem.

Ao considerar superficialmente o contexto político na qual a capa em questão

foi construída – eleição para presidência – outras interpretações poderiam ser feitas,

como a de que a personagem a ser estampada na capa corresponde aos eleitores que

reelegerão o candidato Lula, uma vez que, o seu mandato anterior foi marcado por

programas sociais que atingiam principalmente a região nordeste do país, assunto este

que recebeu destaque durante a campanha do candidato. Além disso, ao utilizar o

termo “fiel da balança” para se referir aos eleitores que elegerão o candidato vencedor

a revista faz uma alusão ao apelido fiel, utilizado para se denominar os torcedores do

time Corinthians, time pelo qual declaradamente o presidente Lula torce.

Nesse sentido, como a revista Veja tem como histórico manifestar-se contra o

governo do Lula e o Partido dos Trabalhadores, pode-se inferir que através do implícito

a revista está utilizando-se da personagem em questão para apresentar aos seus

leitores quem seriam os “culpados” por reeleger o candidato Lula.

Retomando a questão da mulher, outro elemento importante que merece

destaque diz respeito ao fato de as mulheres, por muitos anos, terem sido excluídas

das decisões políticas do país, tendo direito ao voto somente em 1932, através do

decreto 21.076 do Código Eleitoral Provisório. Considerando, que a história da

participação das mulheres na política através do voto é muito recente, a frase que se

encontra em destaque na revista: “Ela pode decidir a eleição”, soa como algo

pejorativo ao produzir o efeito de sentido de que as mulheres estão despreparadas

para decidir o futuro do país.

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Além disso, ao colocar a mulher segurando o título eleitoral de forma

imponente, a revista evidencia que a mulher tem direito ao voto, independentemente

se esta está ou não preparada para tal responsabilidade, ou se tomará a decisão

“correta” conforme a ideologia da revista.

No que diz respeito ao significante plástico, a revista utiliza-se discretamente

das cores verde e amarelo como forma de evocar as cores da bandeira do Brasil. A cor

verde está presente principalmente no nome da revista e na camiseta da personagem,

e a cor amarela está sendo utilizada na frase: “Ela pode decidir a eleição”. Ainda em

relação as cores, a revista optou por utilizar no fundo nuances de marrom que se

aproximam da cor da pele da personagem, retomando assim visualmente as ideias de

negro e terra, estando a terra relacionada a região do nordeste.

Capa da revista Veja de 01 de outubro de 2014

Figura 2: Capa da edição 2393.58

Esta capa corresponde a edição 2393, datada de 01 de outubro de 2014,

período anterior ao primeiro turno da eleição para presidente no Brasil. Nesta disputa

58 Esta capa foi obtida no Acervo Digital da Veja. Disponível em: <http://acervoveja.digitalpages.com.br/home.aspx>.

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eleitoral os candidatos que tiveram mais destaque na mídia foram: Dilma Roussef (PT),

Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (PSB).

Em um primeiro momento chama atenção na capa a frase em destaque: “Todos

atrás dela”. Considerando o contexto político na qual foi criada esta frase, a revista

Veja coloca a mulher em uma situação de destaque ao afirmar que todos, referindo-se

aos candidatos à presidência, estariam interessados em conquistar os votos das

mulheres.

Tal afirmação não seria vista de forma pejorativa se a frase em destaque não

viesse acompanhada de construções discursivas que colocam em cheque a capacidade

da mulher enquanto eleitora.

Analisando primeiramente a imagem, em relação ao símbolo, podemos

identificar que no lado esquerdo do peito da personagem foram inseridos três broches

com os logos dos partidos dos três principais candidatos à presidência. Ao posicionar

os broches no lado esquerdo do peito, local destinado ao coração, órgão relacionado

aos sentimentos, cria-se o efeito de sentido de que a personagem não possui afeição a

nenhum partido ou candidato específico, dessa forma não é vista como uma eleitora

decidida e leal.

Corroborando essa ideia, no peito direito da personagem há um broche com os

seguintes dizeres: “Eu era indecisa. Agora não tenho mais tanta certeza”. Com essa

frase a revista explicita a ideia de que as eleitoras se encontravam em uma situação de

indecisão que ainda não se desfez totalmente.

Em relação ao significante plástico, a cor amarelo utilizada principalmente no

fundo da capa e no broche da personagem, e a cor azul utilizada na camiseta da

personagem, evocam as cores da bandeira do Brasil que, no contexto da capa,

retomam na cadeia de comunicação as ideias de eleição para presidência e

representação do país.

Outro elemento importante a se destacar é que a revista coloca a mulher no

centro da capa, porém a revista tem o cuidado de fazer um recorte no qual os seus

olhos e ouvidos não apareçam. Ao fazer esse recorte proposital a revista cria o efeito

de sentido de que a mulher não está vendo ou ouvindo o que está acontecendo, como

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se estivesse alheia à política, o que justificaria sua situação de indecisão. Ainda em

relação à imagem, o nome da revista está localizado de forma a cobrir a boca da

personagem, como se a mesma não tivesse nada a dizer.

Em relação ao texto da imagem: '‘Mais mulheres do que homens estão entre os

“órfãos do primeiro turno”, que não vão eleger o seu candidato predileto mas

definirão o resultado final da eleição.'‘, a revista coloca mais uma vez as mulheres em

posição de decisão. Por fim, ao analisar o contexto político, os braços cruzados da

personagem produzem o efeito de sentido de insatisfação em relação à política.

Considerações Finais

As construções discursivas presentes nas capas desvelam a ideologia da revista

Veja em relação à mulher, assim como, o seu posicionamento político. Considerando

que o objeto dessa pesquisa é a mulher representada nas capas da revista, o

posicionamento político da revista só foi considerado quando estava diretamente

imbricado ao objeto de análise.

Nesse sentido, identificou-se que a capa da revista se utiliza de uma linguagem

verbo-visual carregada de implícitos, na qual se estabelece uma vinculação entre a

imagem da mulher e a ideia de que esta possui o poder de decidir o resultado das

eleições. Tal ideia é sustentada em estatísticas que apresentam as mulheres como o

maior grupo votante em situações específicas, como a dos eleitores que constituíam o

grupo dos “órfãos do primeiro turno” na eleição de 2014, evidenciado na capa da

edição 2393 de 01 de outubro de 2014.

Através dessa vinculação e das escolhas feitas pela revista em relação ao

enunciado e linguagem verbo-visual utilizados, implicitamente a revista deixa

transparecer um discurso que questiona a capacidade das mulheres em tomar

decisões políticas, tais como eleger o presidente da república. Apesar desse discurso

aparecer de forma velada, ainda assim, corrobora com o fortalecimento de discursos

marcados pela estereotipação e preconceito de gêneros.

Em relação à capa da edição 1969, o discurso empregado pode suscitar não

apenas o preconceito de gênero, mas também, outros tipos de preconceitos como o

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racial e os direcionados a parcelas da sociedade de baixo nível econômico e de origem

nordestina.

A partir da análise realizada é concebível afirmar que as capas em questão

foram construídas a partir de um olhar hegemônico, no qual, as identidades

apresentadas (mulheres) não se enunciaram por si mesmas, ou seja, as mulheres

foram representadas nas capas sob a ótica da política dominante.

Frente a essas considerações e a realidade política vivenciada pelas mulheres

este trabalho busca estimular uma reflexão crítica quanto ao discurso produzido pela

mídia em relação à mulher e sua participação na política enquanto eleitora. Espera-se

que a partir de uma postura mais consciente com relação ao que a mídia produz, a

mulher consiga ocupar uma posição enunciativa que a possibilite construir uma

identidade política independente do discurso corrente.

Referências

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TILIO, R. Reflexões acerca do conceito de identidade. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades. Rio de Janeiro, v. 9, n. 29, p. 109-119, Abr./Jun. 2009. Disponível em: <http://publicacoes.unigranrio.com.br/index.php/reihm>. Acesso em: 28 jul. de 2015.

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PUBLICIDADE: ESPELHO ESPETACULAR DE NOSSA VIDA EMPOBRECIDA

José Adson Vasconcelos (UNICSUL)

Introdução

Dada a constante presença da publicidade em nosso cotidiano e o forte apelo

que ela mobiliza, tentando orientar nossas escolhas, modificar nosso comportamento

e influenciar nosso modo de ser, de pensar e de agir, julgamos relevante buscar

compreender de modo crítico o discurso publicitário como sendo um discurso que

veicula, reflete ou estimula determinadas visões de mundo e de valores sociais, bem

como modos de ser historicamente situados.

Nessa perspectiva, sem a pretensão de esgotar o assunto, esse trabalho

realiza uma breve investigação de um dos anúncios publicitários da campanha Contos

de Fadas, da marca “O Boticário” (2005), bem como do slogan veiculado durante a

referida campanha. Para realizar essa investigação, trabalharemos com o método

bibliográfico, recorrendo a conceitos da Análise do Discurso de Linha Francesa, como

intertextualidade, memória discursiva, cenografia e ethos.

Embora a referida campanha publicitária de "O Boticário" recorra ao universo

simbólico dos contos de fada, rememorando as protagonistas femininas dos contos

“Branca de Neve e os sete anões”, “Cinderela”, “Chapeuzinho Vermelho” e “O Dragão

e a Princesa”, para essa análise, trabalharemos apenas com o anúncio referente à

personagem Branca de Neve.

Nosso objetivo é, portanto, refletir e buscar compreender como se dá a

construção de sentidos e o processo persuasivo no referido anúncio a partir da

recorrência à intertextualidade, ao acionamento da memória discursiva e à

apresentação de cenas validadas ao coenunciador, que, por certo, é conhecedor das

personagens, das ações e das simbologias do referido conto "Branca de Neve e os sete

anões".

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Contos de fadas: um breve histórico

Originário da tradição oral, o conto de fadas é um gênero textual, de enredo

simplificado que se desenvolve em torno de uma única célula dramática e apresenta

número reduzido de personagens, quase sempre bastante tipificadas em suas

características. Também, com alguma frequência, a personagem protagonista dos

contos, normalmente representando o “Bem”, enfrenta com resignação dificuldades e

dilemas pessoais até obter o sucesso final e triunfar sobre o “Mal”, es se último, na

maior parte dos contos, representado por uma situação antagônica ou por um(a)

antagonista, como madrasta, bruxa, lobo, dragão etc. A esse respeito nos ensina o

psicólogo e professor austríaco Bruno Bettelheim:

nos contos de fadas o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de fadas o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida e a propensão para ambos estão presentes em todo homem. [...] O mal não é isento de atrações — simbolizado pelo poderoso gigante ou dragão, o poder da bruxa, a astuta rainha na “Branca de Neve” — e com frequência se encontra temporariamente vitorioso. Em vários contos de fadas um usurpador consegue por algum tempo tomar o lugar que corretamente pertence ao herói. (BETTELHEIM, 2004, p. 15)

A origem dos contos de fadas remete a um passado remoto, difícil de precisar.

De certo, nos primórdios de sua gênese, essas pequenas histórias eram transmitidas

oralmente de geração a geração e não eram raras as manipulações que nelas se faziam

a fim de estimular e influenciar comportamentos considerados adequados e desejáveis

aos ouvintes, como, por exemplo, a submissão feminina, reflexo das sociedades

machistas e patriarcais que negavam o livre-arbítrio às mulheres e as repudiavam, caso

fossem ativas ou independentes. Nessa perspectiva, os contos de fadas participam do

imaginário coletivo e revelam, desde tempos muito remotos, valores, virtudes, vícios e

ideologias universais ou próprios das sociedades em que circulam, razão pela qual,

para refletir as mudanças históricas e sociais, essas narrativas estão constantemente

sendo alteradas, reinventadas e atualizadas.

Há consenso de que o escritor francês Charles Perrault (1628-1703) tenha sido

o precursor do registro escrito dos contos de fadas, pois estabeleceu bases para a

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consolidação desse gênero textual, coletando diversas histórias por meio da

transmissão oral, registrando-as e, simultaneamente, concebendo uma base literária

mais sólida para a impressão de tais contos, dentre eles “Cinderela”, “Bela

Adormecida” e “Chapeuzinho Vermelho”. Posteriormente, na Alemanha do século XIX,

os irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), inspirados em Perrault,

também recolheram, adaptaram e registraram contos tradicionais como “Branca de

Neve”, “Rapunzel”, “João e Maria” e outros. Ainda no século XIX, o dinamarquês Hans

Christian Andersen igualmente contribuiu para impulsionar a difusão de contos de

fadas, mas preferiu criar suas próprias histórias : “O Soldadinho de Chumbo”, “A

Pequena Sereia”, “O Patinho Feio” e muitas outras. Durante o século XX, a difusão dos

contos de fadas ganharia outros suportes e formatos nas mãos do roteirista,

quadrinista e produtor cinematográfico estadunidense Walt Disney (1901-1966).

Disney representa uma das maiores contribuições à divulgação dos contos de fadas.

Mesmo sendo apontado por seus críticos como alguém que modificava e subvertia os

textos originais59, ele foi responsável por uma relevante propagação dos contos de

fadas e por manter vivo o encantamento de crianças, jovens e adultos por essas

narrativas, pois adaptou dezenas de contos de fadas, divulgando-os em quase todo o

planeta por meio da empresa de entretenimento que fundou, a “Walt Disney

Company”.

Como já mencionado, a campanha de "O Boticário" recorre ao universo

simbólico dos contos de fadas rememorando personagens femininas bastante

conhecidas. Acreditamos que esse resgate se dê porque as ideologias e simbologias

dos contos de fadas continuam ainda atuais e presentes na memória coletiva das

sociedades em geral. Desse modo, diversos profissionais da mídia continuam a se

apropriar das simbologias típicas desse gênero textual, incorporando-as a charges,

cartuns, histórias em quadrinhos, anúncios publicitários, filmes, desenhos animados,

59 Va le ressaltar que, nos séculos iniciais em que esse gênero foi se estabelecendo na imprensa, os

enredos, tal qual nos relatos orais, eram ainda repletos de terror, ti rania, violência e sadismo. O tema da morte

violenta, por exemplo, era recorrente nesse período e não havia maiores preocupações em expor os leitores — nem

mesmo as crianças — ao forte impacto da narração de deta lhes de mortes e vinganças violentas , o que foi

abandonado e modificado por Walt Disney, que estabeleceu certo romantismo, amenizou a violência e introduziu

fina l quase sempre fel i z a esses contos .

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telenovelas e outros gêneros, com o objetivo de modernizá-los, recontá-los, parodiá-

los, vender produtos, revelar o caráter e a dualidade humana, criticar, satirizar ou

ironizar pessoas e situações, dentre outros objetivos. Sendo assim, a busca ou a espera

pela chegada de um príncipe encantado tem sido a tônica de várias obras da literatura,

do cinema, do teatro e da televisão. A simbologia do lobo, do sapato de cristal, da fada

madrinha, da varinha mágica, do nariz que cresce ao mentir, entre outras, sobrevive há

séculos na memória coletiva e no imaginário popular. Expressões como “virar abóbora

à meia-noite”, “esperando um príncipe encantado”, “vivendo um conto de fadas”,

"virar sapo", "era uma vez...", “...e foram felizes para sempre”, e outras, são usadas há

muito tempo e permanecem com o mesmo sentido nos dias atuais. Também,

recentemente, fora criada a expressão “Boa noite, Cinderela” para se referir a crime de

roubo, promovido a partir do oferecimento de bebida com coquetel de substâncias

tranquilizantes e entorpecentes à vítima, o que provoca uma forte condição de

passividade, perda de consciência dos próprios atos, incapacidade para discernimento

e dificuldade de resistência a comandos de estranhos.

É possível que a longevidade desse gênero textual se dê porque apresenta —

de modo simplificado e acessível a qualquer pessoa — dilemas existenciais, bem como

nuances psicológicas e comportamentais do ser humano, posto que, em seus enredos,

são trabalhados temas como morte, envelhecimento, luta entre o Bem e o Mal,

atrocidades, exploração da mão de obra juvenil, vilania de madrastas ou padrastos,

competição entre familiares, pai ausente ou passivo, perda da mãe, falsidade humana,

sentimento de rejeição ou de inferioridade na família, submissão feminina, solidão,

decepções, busca do parceiro perfeito, etc. Os contos de fadas revelam verdades do

caráter humano, focando mais nas contradições e nos conflitos humanos do que no

aspecto exterior das personagens, posto que:

cada conto de fadas é um espelho mágico que reflete alguns aspectos de nosso mundo interior, e dos passos necessários para evoluirmos da imaturidade para a maturidade. Para os que mergulharam naquilo que os contos de fadas têm a comunicar, estes se tornam lagos profundos e calmos que, de início, parecem refletir nossa própria imagem. Mas logo descobrimos sob a superfície os turbilhões de nossa alma — sua profundidade e os meios de obtermos paz dentro de nós mesmos e em relação ao mundo, o que

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recompensa nossas lutas. (BETTELHEIM, 2004, p. 348)

Parece-nos que a campanha publicitária de “O Boticário” se vale dessa espécie

de “espelho mágico”, citado por Bettelheim com o objetivo de seduzir e persuadir um

público específico para que esse se reconheça nos anúncios, agregando valor a uma

marca e, consequentemente, consumindo os produtos a ela atrelados.

A campanha de "O Boticário"

Campanha publicitária é um termo empregado, sobretudo, na esfera

publicitária para denominar um conjunto de anúncios que mantêm unidade entre si. É

fruto de um único planejamento estratégico e, em geral, tem por objetivo a divulgação

de produtos, serviços ou marca. O peso de uma campanha publicitária é considerado

mais relevante e eficaz do que de um anúncio isolado. A esse respeito Públio (2008)

ressalta que por mais criativo que seja, um anúncio isolado não tem a mesma eficácia

e força de uma campanha publicitária completa com suas diversas peças mantendo o

mesmo conceito criativo.

A campanha publicitária denominada “Contos de Fadas” foi produzida pela

agência AlmapBBDO e estreou na mídia no dia 12 de maio de 2005. Seu ponto de

partida foi um longo anúncio televisivo, de exatos sessenta segundos, no qual é

narrada a história de vida de uma jovem, desde a infância até a entrada na fase adulta .

Nessa propaganda, acompanhada de música instrumental suave e de encenação, uma

voz masculina narra uma espécie de conto de fadas moderno por meio deste texto:

Era uma vez uma menininha que acreditava em contos de fada. Um dia, ela era Chapeuzinho Vermelho, chegou a conhecer o Lobo Mau de perto. Outro dia, ela era uma sereia pequena. Uma vez, pensou até que tinha encontrado o príncipe encantado! Mas, aí fizeram e la achar que era o Patinho Feio, e ela deixou de acreditar em contos de fada! O tempo foi passando, mas a história não terminou por aí... Um dia, ela encontrou a fada madrinha,60 que mostrou pra ela que a fantasia pode virar realidade. E ela passou a acreditar nela mesma. Hoje num dia, ela é Gata Borralheira, no outro dia é Branca de Neve,

60 A fada madrinha mostrada na cena referente a esse trecho do anúncio televis ivo não é um ser

sobrenatura l , mas s im a consultora dos produtos “O Boticário”.

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Rapunzel… Boticário. Você pode ser o que quiser. (AlmapBBDO / “O Boticário”, 2005)

É de se notar que essa peça introdutória da campanha evoca o universo dos

contos de fadas e o associa ao tempo contemporâneo. Também, o emprego do

substantivo “menininha” e do pronome “ela”, sem identificação específica, torna o

discurso representativo de qualquer pessoa do sexo feminino, atendendo, assim, ao

propósito de fazer com que o público se identifique com o esse formato moderno de

conto de fadas e assimile a marca que ele veicula.

Além do anúncio televisivo, compõem essa campanha publicitária um conjunto

de oito anúncios destinados à mídia impressa, sendo quatro anúncios publicados em

revistas61 voltadas ao público feminino e quatro outdoors reproduzindo os anúncios

de revista de modo mais simplificado. Cada anúncio é focado na protagonista feminina

dos contos “Branca de Neve”, “Cinderela”, “Chapeuzinho Vermelho” e “O Dragão e a

Princesa”, mas também faz breves referências masculinas a elementos como lobos,

cavaleiros, anões, dragões etc.

Nas narrativas originais rememoradas pelos anúncios impressos, Cinderela e

Branca de Neve são moças belas, bondosas, encantadoras e recém saídas da

adolescência e que sofrem desventuras e infortúnios causados, sobretudo por suas

madrastas62. Também, a princesa do conto “A Princesa e o Dragão” é uma jovem bela,

dócil e encantadora, que fora aprisionada por um dragão. As três jovens padecem por

um longo período até o momento em que são resgatadas triunfalmente por seus

respectivos príncipes. Apesar do sofrimento, ao longo da trama, elas não mudam o

caráter benévolo, suportam resignadas e são recompensadas com a chegada de um

príncipe e também com a experiência de viver um grande e "eterno" amor. Por outro

lado, a ingênua Chapeuzinho Vermelho, ainda está vivenciando um estágio anterior às

61 Os anúncios elaborados para ser veiculados em revistas foram publicados nas revistas Cláudia e Nova, da Editora

Abri l . De modo gera l , essas revis tas se destinam ao públ ico feminino das classes A e B.

62 A presença de madrastas nos contos de fadas se deve a dois fatos. Primeiramente, porque é his tórico que, em tempos passados, muitas mulheres morriam no parto, sendo muito comum socialmente a figura da madrasta , s i tuação que fora incorporada pelos contos de fadas remotos. Outra explicação, esta produzida pela psicanálise, é a de que as crianças precisam dividir a imagem da mãe entre os aspectos benevolentes e ameaçadores para que se s intam plenamente protegidos pelo primeiro, mas a lgumas, diante de um impasse com a mãe e, não

encontrando uma solução, pode criar a fantasia de que aquela não é a sua mãe e sim uma impostora de aparência semelhante. A mãe vista como dadivosa, por um tempo, pode se transformar em uma madrasta cruel se, no entender da criança, for malvada o suficiente para negar a lgo que o fi lho deseja . (Bettel heim, 2005, p 84-85)

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outras protagonistas, pois vive o início da adolescência. Ela não sofre com madrastas

ou irmãs "postiças", mas é perseguida por um lobo que poderia lhe fazer mal, o que é

entendido por alguns especialistas como uma história de sedução. O enredo desse

conto ajuda a remeter aos perigos que pode haver no caminho de crianças e

adolescentes ao se deparar com aliciadores sedutores e envolventes. No entanto, no

anúncio da campanha, a personagem Chapeuzinho Vermelho é representada por uma

jovem, já adulta, na mesma faixa etária das demais.

A rememoração dessas personagens nos anúncios está também vinculada ao

resgate dos valores e do caráter de cada uma delas. Cinderela e Branca de Neve, por

exemplo, se por um lado são marcadas pelo sofrimento, por outro são marcadas pela

boa índole. Contudo, essas protagonistas também se caracterizam pela passividade,

submissão, fragilidade e dependência, pois vivem à mercê de uma figura masculina

que as resgatem da condição de sofrimento, infortúnio ou adversidade. Cinderela e a

princesa aprisionada por um dragão dependem do surgimento de um príncipe que as

resgatem da situação em que estão inseridas. Branca de Neve depende da piedade do

caçador que lhe poupa a vida, da amizade e proteção dos sete anões e da salvação

redentora do príncipe. Chapeuzinho Vermelho depende do caçador ou de uma figura

masculina que a livre das garras de um lobo mal intencionado.

Outro aspecto comum entre as personagens escolhidas é o constante estado

de medo em que passam a maior parte da trama. Todas vivem amedrontadas e

acuadas nos cenários por onde se movem. Branca de Neve teme o caçador, a madrasta

e os perigos da floresta. Cinderela teme a madrasta e as “irmãs postiças”. A princesa

aprisionada teme o dragão. A única personagem que esboça alguma ação de coragem

é Chapeuzinho Vermelho, que por ingenuidade ou descuido não teme andar pela

floresta e conversar com estranhos, mas ainda assim, ao final, revela sua fragilidade e

temor, dependendo, assim, de outrem para enfrentar o lobo e, desse modo, salvá-la.

A materialidade do anúncio analisado

Todos os anúncios criados para mídia impressa que fazem parte dessa

campanha publicitária de “O Boticário” são multimodais, constituídos de texto verbal e

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imagem, e mantêm unidade coesiva. Todos eles têm em comum a imagem de uma

bela e impactante personagem feminina sobreposta sobre um fundo de céu azul e a

apresentação ou citação de um elemento simbólico de cada conto. Por exemplo, no

anúncio referente à Cinderela, é mostrado o sapatinho de cristal e o príncipe é citado.

No anúncio referente à Branca de Neve, que será analisado nesse trabalho, aparece a

maçã e são citados os sete anões, como se percebe na reprodução a seguir.

Figura 1: Branca de Neve (anúncio de revista)

Era uma vez uma garota branca como a neve, que causava muita inveja não por ter conhecido

sete anões, mas vários morenos de 1,90 m. O Boticário. Você pode ser o que quiser. Mais de

300 lojas esperando por você. www.boticario.com 0800 41 3011.

Fonte: AlmapBBDO / O Boticário

No conto original, a órfã Branca de Neve é perseguida pela madras ta por ter se

tornado uma bela moça, o que provoca inveja, ciúme e competição. Símbolo de beleza,

mas também de fragilidade, a encantadora Branca de Neve vive exilada na casa dos

sete anões até que, em uma derradeira tentativa de se livrar da enteada, a madrasta,

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disfarçada de velhinha e usando o artifício de uma maçã envenenada, causa o

adormecimento profundo da moça.

O anúncio da marca “O Boticário” rememora o trecho do conto em que,

tomada por inveja, a madrasta de Branca de Neve oferece uma maçã envenenada à

protagonista, elemento que, no conto, propiciou a perdição momentânea da donzela.

O vermelho, cor quente, se destaca no anúncio pela presença da maçã, mas também

aparece nas unhas de quem segura a fruta, na faixa do cabelo, nas alças do vestido e

nos lábios da personagem que representa Branca de Neve. A maçã que, na metáfora

bíblica, representa a tentação, é aqui oferecida por outra mulher, de unhas bem

cuidadas e pintadas, possivelmente não pela madrasta do conto, mas por outra mulher

mergulhada em inveja pelo fato de Branca de Neve ser sedutora, o que pode ser um

indício de competição feminina. Em contraponto ao conto original, no anúncio, Branca

de Neve é indiferente à oferta da maçã, seu olhar fixo no horizonte não está

direcionado para a fruta. Ao contrário, parece resistir à oferta, não demonstrando a

mesma ingenuidade e/ou fraqueza da personagem original.

Toda a cena do anúncio agrega a ideia de beleza e de sensualidade por parte da

personagem: o corte irregular do cabelo escuro contrastando com a pele clara, as

sobrancelhas arqueadas, o decote acentuado do vestido, revelando parte dos seios e a

boca fortemente delineada pela tonalidade vermelha do batom. Também, o estilo de

roupa, a aparência, a maquiagem e olhar determinado fazem associar a personagem a

uma mulher contemporânea, firme, decidida, independente, forte e sedutora.

Além da imagem da maçã, o ciúme e a inveja, simbolizados no conto original

pela madrasta e que representa a competição feminina, é rememorado no texto verbal

do anúncio pela palavra “inveja”, que atesta que a personagem, em decorrência de sua

beleza e sensualidade, continua a causar inveja em outras mulheres, mas, agora,

conforme o anúncio, por ter conhecido vários homens morenos e altos.

No anúncio em análise texto verbal e imagem se complementam. A frase inicial

— “Era uma vez uma garota branca como a neve — além de remeter à forma típica de

se iniciar o gênero conto de fadas, não deixa dúvidas quanto à identificação da

personagem que aparece no anúncio. Também, a imagem da personagem lembra em

muito o estereótipo de Branca de Neve eternizado pelos Estúdios Walt Disney. A

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continuação do texto, sobretudo os trechos “causava inveja” e “sete anões”, corrobora

a ideia de que realmente se trata da personagem Branca de Neve.

Esse anúncio publicitário publicado em revistas femininas foi também

complementado por um anúncio veiculado em outdoor (figura 2, apresentado a seguir

a título de conhecimento, mas não para análise). Nele, manteve-se a imagem de

Branca de Neve, contudo não há referência a ela no texto verbal. A figura apenas

aparece como representante feminina das personagens dos contos de fadas. Nesse

anúncio para outdoor, há referência a outra personagem não presente na história de

Branca de Neve, mas integrante de outros enredos desse gênero textual: a fada. Esse

anúncio realiza, portanto, uma retomada à propaganda televisiva, associando a figura

da poderosa fada madrinha às consultoras da marca anunciante, como se elas fossem

agentes de transformação, numa clara alusão ao que ocorre no conto “Cinderela”, em

que, de modo sobrenatural, usando uma varinha de condão, a fada promove a

transformação de uma moça má vestida e suja de borralho em uma donzela

encantadora, limpa e bem vestida, capaz de provocar à primeira vista um amor

arrebatador e incontrolável no príncipe da história.

Figura 2: Branca de Neve (anúncio de outdoor)

Conto de fadas não tem fadas, mas consultoras do Boticário. O Boticário. Você pode ser o que

quiser.

Fonte: AlmapBBDO / O Boticário

Importante ressaltar que não apenas a propaganda televisiva de "O Boticário"

introduz mensagens e conceitos que são retomados, reforçados e ampliados pelos

anúncios impressos, como também esses são corroborado pelo slogan — “Boticário.

Você pode ser o que quiser” —, que está presente em todas as peças da campanha.

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De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), slogan é

uma “expressão concisa, fácil de lembrar, utilizada em campanhas políticas, de

publicidade, de propaganda, para lançar um produto, uma marca etc.”. Trata-se,

portanto, de um bordão, uma frase de efeito, normalmente concisa, que sintetiza um

conceito de fácil assimilação para se manter e se fixar na mente do interlocutor. O

emprego de um slogan em campanhas políticas, publicitárias, comerciais, religiosas,

dentre outras, tem o objetivo de agregar valor, destacar qualidades e atributos a uma

candidatura, um partido político, uma instituição, um governo, um produto, uma

marca, uma ação social e cumpre um importante papel na fixação e memorização

dessas mesmas instâncias, incentivando ações de voto, de consumo, de compra, de

adesão etc.

O slogan da marca usado durante a campanha Contos de Fada não se destina

a promover um produto específico e sim a marca como um todo. O arranjo textual que

a compõem busca legitimar a mesma ideia de beleza e de independência suscitada

pelo conjunto de peças da campanha e tem como objetivo a aceitação e a adesão do

interlocutor às ideologias veiculadas na campanha de modo global. O enunciado “Você

pode ser o que quiser” é composto de uma frase principal (“Você pode ser o”) e uma

oração subordinada adjetiva (“que quiser”), introduzida por um pronome relativo

("que") que conecta e, simultaneamente, representa o termo que o antecede o

pronome demonstrativo “o”, que, nesse slogan, equivale a “aquilo” e tem a função de

predicativo do sujeito. A oração adjetiva “que quiser” funciona como adjunto

adnominal do predicativo do sujeito (“o”). Sintaticamente, trata-se, conforme a

Gramática Normativa, de uma oração subordinada adjetiva restritiva, pois restringe o

significado do termo antecedente, ou seja, especifica uma particularidade do que a

antecede.

Tomemos também, isoladamente, alguns dos termos que compõem o slogan. A

começar pelo emprego do pronome de tratamento você, forma preferida por grande

parte dos brasileiros em lugar do pronome pessoal tu. O uso do pronome você propicia

uma espécie de conversa direta com o coenunciador e ajuda a produzir não apenas um

aspecto de informalidade ao anúncio como também estabelece alguma proximidade

entre o enunciador e o coenunciador pelo fato de ser um tratamento comum,

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dispensado a pessoas com as quais, normalmente, se tem alguma intimidade.

Contudo, o principal aspecto a ser destacado nesse slogan é a escolha dos verbos. Na

locução verbal “pode ser”, o verbo poder, é um verbo modal, mas não funciona como

um mero complemento do verbo principal ser, pois poder é um verbo polissêmico e

sua inserção no slogan faz produzir diferentes efeitos de sentido ao enunciado, tais

como: é provável, é possível, é permitido [“ser o que quiser”] etc. No slogan, o verbo

poder é uma forma de sinalizar, direcionar e controlar a compreensão do

coenunciador, pois, normalmente, nesse tipo de construção, em decorrência da força

semântica do verbo, a tendência é considerar mais o sentido da ação evocada pelo

verbo modal – poder – que o sentido do verbo principal ser.

Também o emprego do presente do indicativo, em geral, costuma exprimir

um elevado grau de certeza em relação ao que se enuncia. Nesse sentido, o verbo

poder, no contexto do slogan, não apenas desperta para a possibilidade de ação, mas

também de certeza dessa realização. Assim, em “Você pode”, o enunciador está

afirmando que o coenunciador possui poder, capacidade e desenvoltura suficientes

para realizar as ações que o anúncio sugere, bastando, para isso, tomar uma decisão.

Do mesmo modo, o verbo querer apresenta carga semântica expressiva. Esse verbo

finalizando o enunciado do slogan ajuda a estabelecer projeções como: desejar, ter

vontade de, tencionar, almejar, buscar algo. Sua inserção no slogan atravessa os

sujeitos como se a mudança proposta em toda a campanha fosse também um ato de

vontade própria, uma busca, um desejo, posto que querer é um verbo modal volitivo,

pois exprime desejo, intenção, vontade. Desse modo, o emprego do verbo em questão

nesse slogan tenciona citar e/ou despertar a força impositiva da vontade como forma

de poder, visando obter adesão a esse pensamento para, consequentemente,

mobilizar, incentivar e encorajar a uma ação de mudança. Desse modo, o verbo querer

se equivale, no slogan, a poder.

Conforme Azeredo (2008), na construção dos enunciados, os verbos modais

revelam “atitude ou ponto de vista do enunciador relativamente ao objeto de sua

comunicação”. Assim, a escolha dos verbos em questão busca expressar atitude de

incentivo e, ao mesmo tempo, indicar certeza. Levando-se em conta também os

elementos que compõem o anúncio em análise, tanto no aspecto verbal quanto visual,

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o slogan realiza uma espécie de arremate ou conclusão, transferindo para o

coenunciador a capacidade para fazer acontecer aquilo que a personagem mostrada já

realiza. Ou seja, é sugerida uma tomada de posição.

As possibilidades de atribuição de sentidos ao conteúdo do slogan são variadas,

pois substituindo o pronome você pelo pronome eu, é possível que o coenunciador

assimile desse modo: [com “O Boticário”] sou capaz de ser o que eu que quiser / tenho

a possibilidade de ser como quiser / conseguirei ser o que quiser / tenho a capacidade

de ser o que quiser / posso escolher ser o que quiser / poderei me tornar o que quiser /

tenho o direito de ser o que quiser etc.

Em suma, o verbo querer nesse slogan designa uma nuance psicológica que

supostamente reúne as condições necessárias para “o agir” e o verbo poder, revela a

capacidade subjacente em cada pessoa para "fazer acontecer", isto é, tornar um

desejo em realidade pela força da ação. O emprego desses verbos no slogan tem um

caráter basicamente didático de ensinar a agir. Portanto, o emprego e a associação do

verbo poder ao verbo querer não é aleatório, pois o que se veicula no referido slogan,

veladamente, é o provérbio “Querer é poder”. É sabido que na gênese dos slogans há

parentesco e afinidades com as frases de efeito, frases feitas, fórmulas frasais, tais

como provérbios, máximas, clichês, jargões, todas com efeitos retóricos e que

apresentam características como: brevidade, condensação, autoridade, impacto,

comunicação imediata e linguagem simplificada. A esse respeito o professor Iasbeck

afirma que:

os provérbios são frases que primam pelo aspecto didático, veiculando ensinamentos de caráter prático e de cunho popular [...]. Através deles são mobilizadas e inculcadas as ideologias de poder, muitas vezes de forma sutil. [...] Não há neles argumentos lógico-verbais capazes de explicar sua competência persuasiva. [...] Pelos motivos pedagógicos de seus conteúdos são associados comumente a expressões de “sabedoria”. (IASBECK, 2002, p. 61)

Nessa perspectiva, o provérbio “Querer é poder”, embutido no slogan da

campanha em questão63, tem o objetivo de revelar uma verdade sumária, quase

63 Em sua obra A arte dos slogans (p. 65), o professor Luiz Carlos Iasbeck afi rma que “não é temário dizer que

grande parte dos provérbios pode se tornar um s logan, sem deixar de ser um provérbio, encabeçando uma

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inquestionável pelo coenunciador por se tratar de um ditado já cristalizado

socialmente. Aduz-se, assim, que a recorrência a um provérbio subjacente no slogan

pretende atingir o efeito da aceitação e da adesão imediata por trabalhar com

elementos já estratificados na memória coletiva, como veremos mais adiante.

O discurso do anúncio em análise

O anúncio em análise recorre a elementos dos contos de fadas, que são de fácil

compreensão por parte de qualquer público, independentemente de nível de

escolaridade, idade ou gênero; mas, como é comum no mundo da publicidade, busca

envolver e seduzir um determinado público-alvo, divulgando ideologias e conceitos a

serem aderidos. Para isso, faz uso de um cenário e de uma representação específica de

mulher, visando acolher respaldo, despertar desejos e, por consequência, vender

produtos da marca anunciante. Seus idealizadores recorrem ao universo dos contos de

fadas presumindo que o público a ser contemplado seja conhecedor dessas narrativas

e possuam ou possam desenvolver desejos e aspirações comuns às personagens

selecionadas para a campanha. Nesse sentido, considerando que toda enunciação é

sustentada por uma voz, daqui por diante, recorreremos a alguns conceitos da Análise

do Discurso, doravante AD, para tentar compreender as estratégias usadas nessa

campanha de modo a obter êxito comercial.

Um dos pontos mais relevante dessa campanha da marca “O Boticário” é a

relação de intertextualidade que ela mantém, por alusão ou citação, com o universo

dos contos de fadas, quer por meio das imagens quer por meio dos textos verbais. É

consenso para a AD que todos os textos comungam com outros textos, uma vez que

inexistem textos que não mantenham algum aspecto intertextual com outro, pois

"nenhum texto se acha isolado e solitário” (Marcuschi, 2008). Também, para

Charaudeau e Maingueneau (2008), a intertextualidade “supõe a presença de um texto

em outro”. Desse modo, o texto ora analisado é, sem dúvida, um anúncio publicitário.

No entanto, também é possível apontar diálogo com o conto de fadas a que faz

campanha publicitária que envolva diferentes mídias”, como é o caso da campanha de “O Boticário” que se va le de

um provérbio em seu slogan e foi veiculada em di ferentes mídias (TV, revis tas , outdoor).

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referência. Nesse sentido, é evidente que é esperado do coenunciador uma associação

direta não apenas à narrativa a que o anúncio faz menção, como também ao próprio

universo e às simbologias dos contos de fadas. A recorrência à intertextualidade, nesse

caso, funciona como estratégia de adesão, visando empatia e acolhimento das

ideologias veiculadas nos anúncios, pois, ao pressupor que o coenunciador tenha

conhecimento dos enredos evocados, espera-se o estabelecimento de familiaridade, o

que, possivelmente, produz em cada anúncio um efeito de verdade, como define

Charaudeau:

O efeito de verdade está mais para o lado do “acreditar ser verdadeiro” do que para do “ser verdadeiro”. Surge da subjetividade do sujeito em sua relação com o mundo, criando uma adesão ao que pode ser julgado verdadeiro pelo fato de que é compartilhável com outras pessoas, e se inscreve nas normas de reconhecimento do mundo. Diferente do valor de verdade, que se baseia na evidência, o efeito de verdade baseia-se na convicção. (CHARAUDEAU, 2012, p. 49)

Nesse sentido, o que está em jogo na enunciação do referido anúncio não é

tanto a busca de uma verdade em si, mas a busca de credibilidade junto ao

coenunciador. Dessa forma, a recorrência à intertextualidade visa obtenção de

familiaridade para validar a palavra emitida, a enunciação em si.

Charaudeau (2012) pondera que “o sentido de uma enunciação nunca é dado

antecipadamente”, ele se constrói ao término de um processo duplo de troca social

que envolve os processos de transformação e de transação. Nesse sentido, o processo

de transformação consiste em transformar o mundo a significar em mundo significado.

Desse modo, ao retomar, elementos, ações e personagens dos contos de fadas e trazê-

las para a contemporaneidade, aproximando-os das potenciais consumidoras, a

campanha realiza o processo de transformação e também recorre ao processo de

transação, que consiste em dar significação psicossocial a esse ato de linguagem e

fazer significar o mundo. Dessa forma, nenhum aspecto dos anúncios dessa campanha

é aleatório, cada escolha pressupõe antecipadamente a identidade do coenunciador,

seu papel social, suas aptidões, seus interesses etc.

Outro aspecto a se destacado nessa campanha é a recorrência à memória

discursiva. Para melhor compreender a ideia de memória discursiva, é imprescindível

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distinguir dois conceitos básicos delineados pelo linguista Jean-Jacques Courtine: o

intradiscurso e o interdiscurso, pois sempre há relação entre o já-dito em outros

lugares, por outras pessoas, em outros momentos (interdiscurso) e o que se está

dizendo no momento (intradiscurso). O intradiscurso representa a formulação dos

sentidos e o interdiscurso representa a constituição dos sentidos. Courtine propõe

uma representação em que um eixo vertical representando o interdiscurso (no qual

estariam todos os enunciados já-ditos e estratificados na memória) atravessa um eixo

horizontal, representando o intradiscurso (aquilo que estamos falando num dado

momento, em determinadas condições). Desse modo, a construção e produção de

sentidos estariam na confluência desses dois eixos. Nessa perspectiva, o intradiscurso

se relaciona com a materialidade da língua e com a linearidade do dizer, ao passo que

o interdiscurso se relaciona ao que está na profundidade da memória e dela aporta os

sentidos que se podem produzir sobre o discurso a partir das relações com outros

discursos já ditos. Desse modo, todo discurso é atravessado pela interdiscursividade,

pelas relações implícitas e explícitas com outros discursos. Nessa intersecção, a cada

formulação se recuperam e se atualizam aspectos desses outros discursos, ainda que

para refutá-los, combatê-los ou negá-los.

No anúncio em análise, a citação aos sete anões, a descrição da personagem e a

expressão “causava inveja”, materialidades do intradiscurso, faz resgatar na memória,

campo do interdiscurso, a personagem Branca de Neve. Do mesmo modo, a

formulação inicial “Era uma vez” faz ativar a ideia de contos de fadas, pois é típica do

gênero. Assim, essas formulações do "já dito", buscam resgatar o conto "Branca de

Neve"; no entanto, subverte-o, uma vez que, ao anúncio, são acrescentando

elementos de malícia e sensualidade, pois se elimina a figura unívoca do príncipe,

embora presente de modo subjetivo, e insere-se a informação de que a personagem

do anúncio conheceu “vários morenos de 1,80 m”, causando inveja a outras mulheres,

o que nos remete a ideologias predominantes de uma sociedade competitiva, como a

nossa, em que parecer, ter e conquistar costumam ser mais importantes do que ser.

Com efeito, a recorrência à memória discursiva nesse anúncio atende à mesma

estratégia da intertextualidade, que é a de estabelecer familiaridade para assegurar

empatia e aceitação do discurso e, assim, persuadir o coenunciador a adotar um jeito

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de ser em que vigora uma performance pessoal de sensualidade e sedução. Essa

representação feminina, subjacente em toda a campanha, supostamente, poderia ser

obtida pelo uso dos produtos da marca anunciante.

A ressignificação na maneira de ser da personagem Branca de Neve, também

adotada pelas outras personagens em todos os demais anúncios da campanha, ajuda a

construir a ideia de uma mulher não passiva, frágil ou dependente, como as

personagens dos contos de fadas, e sim uma mulher envolvente, atuante, decidida,

sensual, independente e, sobretudo desejada, pois teria o poder de causar forte

atração no sexo oposto. Todas essas características estão relacionadas ao ethos que se

quer construir de uma mulher contemporânea, mas que mantém o mesmo poder de

sedução típica das meigas e belas mulheres dos contos de fada.

Quanto ao ethos, originalmente, esse conceito foi apresentado por Aristóteles,

em sua Retórica, com dupla significação. Por um lado, designava as virtudes morais

que garantiriam credibilidade ao orador. Por outro, comportava uma dimensão social,

na medida em que o orador, ao se exprimir de modo adequado a um caráter,

convencia a plateia, sem que essa tivesse qualquer opinião previa acerca do orador.

Ou seja, o ethos era uma espécie de prova de persuasão cuja base estava na imagem

que o orador oferecia de si ao ouvinte, isto é, a imagem que o orador produzia de si

pelo discurso e não de sua pessoa real.

No campo da AD, sobretudo Ducrot e Maingueneau retomaram o ethos

retórico e desenvolveram uma concepção mais abrangente. Em primeiro lugar, o ethos

discursivo mantém relação com a imagem prévia que o coenunciador pode ter ou faz

do enunciador, essa ideia inicial, anterior à tomada da palavra é chamada de ethos

pré-discursivo — No caso de Branca de Neve, uma moça encantadora, doce e bonita,

contudo frágil, ingênua, passiva e dependente de outros. Em segundo lugar, o

enunciador deve legitimar seu dizer no próprio discurso, ou seja, ele se atribui uma

posição institucional e, ao enunciar, marca sua relação com um determinado saber,

não se manifestando apenas como um papel, mas também com uma voz e um corpo,

traduzidos também por um tom apoiado em um caráter e uma corporalidade

(Charaudeau e Maingueneau, 2004). É assim que, no anúncio em análise, constrói -se a

ideia de uma mulher despojada, ousada, avançada, independente e extremamente

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sedutora, corroborada pela imagem mostrada e pelas ações descritas.

Conforme Maingueneau (2013), “o tom dá autoridade ao que é dito”. Ou seja,

é o tom que permite construir uma representação do corpo do enunciador e não do

autor efetivo. A enunciação faz emergir uma instância subjetiva que desempenha,

portanto, o papel de fiador daquilo que é enunciado sob a perspectiva de um ethos

discursivo, legitimando sua maneira de dizer, que por sua vez remete a uma maneira

de ser. Assim, a qualidade do ethos sempre irá remeter à imagem do fiador que, “por

meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o mundo que

ele deve construir em seu enunciado”. Essa concepção apresentada por Maingueneau

(2013) permite concluir que os enunciados do anúncio em análise mantêm

dependência com a cena de enunciação que os sustenta e que os valida.

Diferentemente da visão retórica, para a AD, o ethos é parte constitutiva da cena de

onde emerge. Para Maingueneau:

o discurso pressupõe essa cena de enunciação para ser enunciado, e, por seu turno, ele deve validá-la por sua própria enunciação: qualquer discurso, por seu próprio desdobramento, pretende instituir a situação de enunciação que o torna pertinente. A “cena de enunciação” integra de fato três cenas, que proponho chamar de “cena englobante”, “cena genérica” e “cenografia”. (MAINGUENEAU, 2011, p. 75)

A cena englobante corresponde ao tipo de discurso veiculado: religioso,

publicitário, político, jornalístico etc. O coenunciador precisará sempre situar de qual

discurso emerge a enunciação para interpretá-lo. No caso do texto em análise, o

discurso veiculado é o da publicidade, ou seja, da esfera publicitária. Nele, se pretende

destacar as qualidades de uma marca comercial, criar a aceitação de que os produtos

dessa marca poderiam elevar a condição da mulher comum a de uma sedutora

princesa de contos de fadas.

A cena genérica está associada ao gênero do discurso, em particular, a uma

instituição discursiva. Cada gênero do discurso implica uma cena específica, como:

papéis dos interlocutores, circunstâncias e objetivos de produção, suporte material,

modo de circulação social etc. No caso em análise, o gênero é um anúncio publicitário

cujo propósito é persuadir, influenciar, estabelecer a ideia de necessidade com

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objetivo de criar o desejo de consumo e de estabelecer um jeito de ser no mundo.

Em relação à cenografia, ela é constituída pelo próprio texto, pois todo discurso

impõe de imediato uma cenografia. Nesse anúncio publicitário, bem como com os

demais da campanha, se estabelece uma cenografia amigável, por meio de um ethos

envolvente e sedutor, em que subjaz uma espécie de fórmula para obtenção de

sensualidade, criando a ideia de que as lojas que comercializam a marca são locais de

transformação, que os produtos de “O Boticário” são tão poderosos quanto as

varinhas de condão e que suas consultoras são como fadas . Assim, acerca da cena da

enunciação Maingueneau assinala que, tanto:

a cenografia, como o ethos que dela participa, implica um processo de enlaçamento paradoxal [...]. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquela de onde o discurso vem e aquela que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena de onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar. (MAINGUENEAU, 2011, p. 77)

A cenografia do anúncio é construída com base em cenas validadas, ou seja,

cenas já instaladas na memória, como modelos que se rejeitam ou que se valorizam,

que se acolhem ou que se repudiam. Nesse caso, os contos de fadas trazem

subjacentes a ideia de belas mulheres capazes de causar paixão imediata, à primeira

vista, em príncipes dispostos a casar imediatamente, ante a paixão despertada pela

beleza e o encanto de uma mulher. O anúncio em análise faz acrescentar ainda mais

essa ideia de sedução presente nos contos de fadas, o que certamente poderá ser

acolhido por grande parte do público consumidor. Nos contos de fadas, o poder de

sedução não é intencional, é espontâneo e natural, mas o anúncio parece oferecer

uma espécie de fórmula para a obtenção intencional desse suposto poder,

independentemente de ser ou não um atributo natural como ocorre às personagens

protagonistas desses contos. Assim, a cenografia é instaurada progressivamente no

anúncio por meio do dispositivo da enunciação, estabelecendo uma tentadora ideia de

beleza e sedução, características bastante desejadas em uma sociedade, como a

brasileira, que valoriza a aparência e a capacidade de sedução.

A especificidade desse ethos que revela poder, sensualidade, beleza e sedução

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remete à figura de um fiador que, por meio da enunciação, faz transparecer uma

identidade que está em pleno acordo com o próprio mundo que emerge do arranjo

verbo-visual do anúncio. Liberado por meio da enunciação, esse ethos sedutor ativa no

coenunciador a construção da representação de si mesmo, passando, desse modo,

provavelmente, a desejar a marca, os produtos e, sobretudo, a performance

anunciada.

Assim como o texto verbal e o texto imagético do anúncio, também o slogan

da marca visa corroborar a recorrência a essas cenas validadas referentes aos contos

de fadas e à personagem Branca de Neve, de modo a estabelecer familiaridade entre o

coenunciador e o conteúdo mobilizado no discurso do anúncio, bem como aceitação e

acolhimento das ideologias nele engendradas.

As ideias expressas pelos verbos querer e poder veiculadas no enunciado que

compõem o slogan, deixam transparecer uma impressão de que o sujeito interlocutor

é livre para escolher, contudo é, em verdade, uma falsa condição de escolha, pois a

citação nominal à marca, que precede a mensagem principal do slogan tem o claro

objetivo de submeter à condição de uso dos produtos de “O Boticário”.

Ademais, a liberdade que se evoca no discurso de “O Boticário” também está

submetida aos padrões de beleza disseminados pela sociedade, como ter boa

aparência, ser atraente, ser bonito(a), despertar desejo, ser sensual e sedutor(a). O

desejo que se deseja mobilizar prioritariamente nessa campanha, ainda que de modo

implícito e/ou subjetivo, é, portanto, o desejo pelo consumo de uma marca para

reforçar os padrões de beleza socialmente consagrados.

Por outro lado, o verbo ser presente no slogan resume uma condição: é

preciso “ser” bela e atraente para revelar poder, independência, sensualidade e

capacidade de sedução. A afirmação apresentada no slogan de que cada um pode ser

o que quiser associada à peça publicitária em análise não possibilita que a mulher opte

por ser pouco sensual ou descuidada com o corpo. A ideia de beleza veiculada é

determinante. Ainda que não seja um atributo natural de uma ou outra mulher, de

acordo com a campanha, a almejada beleza pode ser obtida por meio do consumo dos

produtos da marca anunciante, ideias bastante corroboradas, como já apontado, pelo

fato de a campanha mostrar as lojas de “O Boticário” como lugar de transformação e

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as suas consultoras como fadas madrinhas. De acordo com Rogério Chér (2008), nessa

campanha, a marca “O Boticário” está voltada para a missão de “magia de

transformação” e não se mostra diretamente como uma empresa que vende produtos

cosméticos. A esse respeito Chér afirma:

“Você pode ser o que quiser” é a frase que define seu negócio. O Boticário não se vê como fabricante de cosméticos e perfumes, mas, sim, como uma reafirmação de que podemos ser quem quisermos ser, ou seja, todos temos o direito de decidir como viver e de sermos do jeito que sonhamos ser. (CHÉR, 2008, p. 189)

No entanto, esse é apenas um modo de se mostrar e se legitimar por meio da

enunciação, pois, como vimos, essa possibilidade de liberdade, no interior da

campanha, está intimamente ligada à possibilidade de consumo e à obtenção de certa

performance. Desse modo, o discurso mobilizado (não apenas no anúncio em análise,

mas na campanha como um todo) parece estabelecer a ideia de que o sujeito controla

o próprio querer, que tem liberdade de escolha; no entanto, essa [suposta]

“liberdade” está intimamente atrelada ao consumo e a um modo determinado de ser e

de agir no mundo, ou seja, trata-se, conforme a Análise do Discurso de um dizer que

orienta um jeito de ser.

Por fim, embora o slogan, arremate do anúncio em estudo, à primeira vista,

apresente uma frase da modalidade declarativa, por meio de seu arranjo sintático e

semântico, em verdade, estabelece uma falsa ideia de opção e funciona mesmo é na

modalidade imperativa, pois prevê um interlocutor capaz de seguir uma espécie de

ordem velada, uma espécie de conselho, que é também um comando propício a

despertar desejo e incentivar o consumo.

Considerações Finais

Concluímos, portanto, que o anúncio em análise, não diferente do conjunto

de outros anúncios que compõem a campanha, tem a finalidade de suscitar a adesão a

uma maneira de ser, encarnada por meio da idealização e ressignificação das

personagens dos contos de fadas, legitimando uma subversão da ideia de mulher

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passiva e dependente da chegada de um príncipe encantado. Ou seja, o discurso

mobilizado no referido anúncio afiança e valida a ideia de mulher ativa, confiante em si

mesmo, mas principalmente, decidida e sedutora, ajudando a despertar, assim, o

desejo no imaginário coletivo de se equiparar à mulher encarnada no anúncio. A

respeito dessa prática, Maingueneau afirma:

a publicidade visa, com efeito, persuadir, associando o produto que vende a um corpo em movimento, a um estilo de vida, uma forma de habitar o mundo; como a literatura, a publicidade procura “encarnar”, por meio de sua própria enunciação, aquilo que ela evoca, isto é, procura torná-lo sensível. (MAINGUENEAU, 2013, p. 110)

Desse modo, compreendemos que não apenas o anúncio ora analisado, mas

todo o conjunto de anúncios da referida campanha tem o objetivo de despertar o

imaginário das mulheres, buscando ativar a memória discursiva para persuadir e

estabelecer, por meio de um ethos almejado de poder e sedução, intimidade com o

público específico para o qual a campanha fora criada, propiciando aceitação do que se

enuncia e, consequentemente, adesão à marca. Ao recorrer a essas estratégias,

procura-se fazer emergir a confiança desse público e o reconhecimento qualitativo da

marca, estabelecendo, inconscientemente, um encantamento com o padrão de mulher

validado na campanha e também o desejo de ser como essa mulher. Desejo esse que

nos faz recordar da afirmação feita por Bettelheim (2004) de que “cada conto de fadas

é um espelho mágico que reflete aspectos de nosso mundo interior”. Ao apresentar

uma espécie de novo conto de fadas, reinventado e atualizado, no qual se agrega uma

atitude mais ativa à mulher, a campanha se coloca como essa espécie de "espelho

mágico" e pretende que o público reconheça sua própria imagem, seus próprios

desejos e anseios nas peças publicitárias.

Recorrendo ao dizer de Maria Rita Kehll na obra O espetáculo como meio de

subjetivação (2004), “A publicidade vende sonhos, ideais, atitudes e valores para a

sociedade inteira [...] como se fossem a chave da felicidade.” Ou seja, a publicidade

busca afetar o inconsciente, pois lida com os desejos e as aspirações humanas. Ajuda a

despertar a noção de necessidade para, em seguida, ofertar serviços ou mercadorias

como forma de satisfação, de realização pessoal e, sobretudo, como fórmula para

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obtenção da felicidade. Na campanha de “O Boticário” a pres ença de belas mulheres e

suas ousadas performances de sensualidade e independência faz criar desejo e

identificação às mulheres comuns. Para Kehll (2004), mesmo quando o público não

consome as mercadorias anunciadas pela publicidade, consome as imagens produzidas

pela indústria do espetáculo publicitário. Além disso, não apenas as contempla como

também “se identifica com elas, [pois são uma espécie de] espelho espetacular de sua

vida empobrecida” (Kehll, 2004). Portanto, acreditamos que o anúncio aqui analisado,

reforçado pelo slogan da marca, por meio de suas estratégias discursivas, da voz e do

mundo que dele faz emergir pretende revelar uma espécie de reflexo em um suposto

“espelho mágico”, produzido pela indústria publicitária do espetáculo e, desse modo,

gerar um efeito de verdade, para, consequentemente, obter adesão e atingir os

resultados comerciais almejados. Nessa perspectiva, o discurso publicitário encarnado

nessa campanha, trabalha com um tema caro, que é a liberdade de escolha, enuncia

um ethos de liberdade e sedução, envolvendo o coenunciador num discurso ideológico

de liberdade, mas, simultaneamente, por meio da ultravalorização da aparência e do

forte incentivo ao consumo, submete independência feminina e liberdade de escolha

ao desejo por consumir e adquirir, ou seja, baseia-se no “ter" para "ser” ou mesmo

para apenas "aparentar ser".

Referências

AZEREDO, J. C. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008.

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2012.

______. MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

CHÉR, R. Empreendedorismo na veia: um aprendizado constante. Rio de Janeiro: Elsevier/SEBRAE, 2008.

IASBECK, L. C. A arte dos slogans: as técnicas de construção das frases de efeito do

texto publicitário. São Paulo: Annablume/Brasília: Upis, 2002.

KEHLL, M. R. “O espetáculo como meio de subjetivação”. In: Videologias. São Paulo:

Boitempo, 2004.

MAINGUENEAU, D. “Ethos, cenografia, incorporação”. In: AMOSSY, R. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2011.

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______. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2013.

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

PÚBLIO, M. Como planejar e executar uma campanha de propaganda. São Paulo:

Atlas, 2008.

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LÍNGUA PORTUGUESA NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR: UMA

ABORDAGEM BAKHTINIANA

Agildo Santos S. de Oliveira (USP/CAPES)

Introdução

Uma das discussões mais atuais na área da política da educação brasileira tem

sido a proposta da implantação de uma Base Nacional Comum Curricular, que vem

sendo discutida por vários setores da sociedade. O Ministério da Educação apresentou

a segunda versão de uma proposta preliminar do que poderão ser essas diretrizes, o

que equivale dizer que ainda é um documento provisório e em aberto, uma vez que

continua recebendo contribuições acerca de seu conteúdo.

Ao realizarmos leituras analíticas dessa versão preliminar, no que tange a área

da linguagem, sobretudo do componente curricular de Língua Portuguesa nos anos

finais do Ensino Fundamental, focalizando o eixo da produção escrita, conseguimos

reconhecer em muitas passagens do documento que a proposta de estudo é alicerçada

em alguns fundamentos teóricos do já conhecido de muitos de nós, Bakhtin e o

Círculo. Essa constatação nos levou a produzir esse texto por algumas razões, dentre as

quais destacamos: a necessidade dos professores identificarem qual é o fundamento

teórico constitutivo da proposta da Base no que tange o estudo da Língua Portuguesa,

bem como a indicação do objeto de estudo; em identificando a perspectiva teórica e

seu objeto de estudo, quais os principais conceitos dessa teoria que o documento

explora e a produtividade dessas concepções na aprendizagem e desenvolvimento dos

estudantes. Nesse sentido, buscamos discutir a proposta de estudos em Língua

Portuguesa, com foco na prática escrita, a partir da abordagem teórica assimilada.

O texto está organizado em quatro partes: na primeira, apresentamos, em

linhas gerais, a segunda versão da proposta preliminar da Base Nacional Comum

Curricular, especialmente a área da linguagem, do componente curricular de Língua

Portuguesa; na segunda, debatemos o conceito de enunciado concreto como unidade

da interação verbal, dos gêneros do discurso e do ensino de Língua Portuguesa,

apontando em quais obras esse conceito foi debatido pelos teóricos da corrente

representada; na terceira, tratamos do conceito de gêneros do discurso, bem como

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seu lugar nos estudos da produção escrita, que aponta ser estruturante, e localizando

essa concepção nas principais obras do Círculo; nas considerações finais, refletimos a

produtividade dessa abordagem nas diversas práticas de escrita e no exercício da

cidadania.

A Base Nacional Comum Curricular: focalizando a Língua Portuguesa e o eixo da

produção escrita

A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) trata-se de diretrizes acerca do

ensino nas escolas básicas, esse documento, que está em sua segunda versão,

portanto, passível de mudanças, uma vez que ainda está aberto a consultas públicas, é

“fruto de amplo processo de debate e negociação com diferentes atores do campo

educacional e com a sociedade em geral (BRASIL, 2016, p. 24), apresenta “[...] os

Direitos e Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento que devem orientar a

elaboração de currículo para diferentes etapas de escolarização (BRASIL, 2016, p. 24),

logo, não é o próprio currículo.

Parte-se do princípio do direito que os estudantes têm ao acesso e apropriação

a uma educação básica inclusiva que lhes garanta o direito de aprender e se

desenvolver. Obviamente, o caráter normativo da BNCC não é suficiente para que esse

direito seja plenamente garantido, são necessárias “[...] outras políticas e ações em

âmbitos federal, estadual e municipal, que permitam a efetivação de princípios, metas

e objetivos em torno dos quais se organiza” (BRASIL, 2016, p. 25). A BNCC exige

movimentos de vários eixos: i) política nacional da formação de professores; ii) política

nacional de materiais didáticos e tecnológicos; iii) política nacional de infraestrtura

escolar; iv) política nacional de avaliação da educação básica. Assim sendo, integra

uma ação mais ampla, a da Política Nacional da Educação Básica (BRASIL, 2016).

Ancorada nos princípios éticos, políticos e estéticos, que fundamentam os

Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento, na BNCC cada ciclo de ensino obedece a

esses direitos, os quais são uma espécie de bússola que subsidiam os objetos de

aprendizagem e desenvolvimento dos componentes curriculares. A proposta leva em

consideração as subdivisões etárias no interior de uma mesma etapa de escolarização,

para o Ensino Fundamental, por exemplo, temos: Ensino Fundamental anos inicias, do

1º ao 5º ano, e Ensino Fundamental anos finais, do 6º ao 9º ano. Nesse último ciclo,

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nosso foco nesse estudo, quatro são os eixos de formação que devem articular os

currículos, são eles: letramentos e capacidade de aprender; leitura de mundo natural e

social; ética e pensamento crítico; solidariedade e sociabilidade.

Nessa proposta, a caracterização dos estudantes, suas relações com os

diferentes conhecimentos e com os outros são importantes, pois a partir disso que se

dará a configuração do papel das áreas de conhecimentos (Linguagens, Matemática,

Natureza, Ciências Humanas e Ensino Religioso) e de seus componentes curriculares

(Língua Portuguesa, Educação Física, Arte e Língua Estrangeira Moderna, para a

primeira área; Matemática, para a segunda; Ciências, Física, Química e Biologia, para a

terceira; História, Sociologia, Geografia e Filosofia, para a quarta; Ensino Religioso,

para a quinta). Cada um desses componentes apresenta objetivos de aprendizagem e

desenvolvimentos específicos, além disso, há objetivos gerais referentes a cada área

que possibilitam o diálogo entre as áreas e os componentes curriculares. Como nosso

foco é o Ensino Fundamental nos anos finais, descreveremos, amplamente, seu

escopo.

A etapa do Ensino Fundamental nos anos finais caracteriza-se por ser composta

de estudantes em fase de transição de sua vida biológica, social, cognitiva e emocional.

Eles estão passando da infância para a adolescência, fase de mudanças significati vas,

na qual se observa uma mudança no modo de se relacionar afetiva e socialmente;

antes, muito dependentes, agora, almejando independência. Intensificam-se as

relações com pessoas de sua idade, bem como contestação de valores, em busca de

outros novos e próprios, nesse sentido, é muito comum os estudantes passarem a

avaliar os fatos a partir do ponto de vista dos outros, ou seja, pela alteridade. Tais

mudanças caracterizam sujeitos em transformações que exigem práticas escolares

diferenciadas que contemplem a inserção social desses jovens (BRASIL, 2016).

Os anos finais é a fase mais complexa desse ciclo de estudo, uma vez que o

jovem precisa desenvolver habilidades para apropriar-se das diferentes lógicas que

organizam os diversos componentes curriculares. Nesse sentido, ganha força a

perspectiva investigativa dos objetos de cada componente curricular como objeto de

investigações e como construções históricas humanas.

Na área da linguagem, a BNCC visa ampliar as práticas de linguagem

desenvolvidas nos anos iniciais do Ensino Fundamental, bem como a expansão dos

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repertórios dos estudantes, diversificação dos campos de atividade tanto àqueles que

os estudantes atuam quanto os mais amplos. O desenvolvimento de análise de várias

manifestações artísticas, corporais e linguísticas constitutivas da vida social. Procura-

se também propiciar vivências de situações de uso das linguagens em diferentes

contextos que ultrapassem a esfera do cotidiano, direcionando às atividades em

espaços públicos, nas quais os estudantes assumem diferentes papeis sociais, o que

permite a ampliação das interações com diferentes grupos sociais.

Dos quatro componentes curriculares que compõem a área de linguagem,

focalizaremos nos tópicos referentes à disciplina de Língua Portuguesa, em específico

o eixo da escrita, buscaremos localizar a perspectiva teórica bakhtiniana de linguagem

que fundamenta esse componente na atual BNCC. Para isso, discutiremos,

brevemente, a caracterização da língua Portuguesa nesse ciclo de ensino.

Na BNCC, o componente curricular de Língua Portuguesa, nos anos finais do

Ensino Fundamental, caracteriza-se por ser composto de jovens que se encontram

numa etapa de ampliação das suas interações com outros sujeitos, o que implica

interações sociais cada vez mais amplas, tais relações passam a ser mais marcadas

pelos posicionamentos críticos desses adolescentes. Nesse sentido, esse componente

compõe-se pelo aumento do contato com diversos gêneros pertencentes aos vários

campos da cultura. O desenvolvimento da disciplina deverá partir de práticas de

linguagem já vivenciadas pelos estudantes, bem como dão continuidade ao processo

de apropriação dos quatro eixos constitutivos do componente curricular: leitura,

escrita, oralização/sinalização e conhecimentos sobre a língua e sobre a norma.

Cada um desses eixos é composto de campos, essas esferas representam os

espaços de circulação dos diversos gêneros que deverão ser objetos de estudos na

disciplina, são eles: campo das práticas cotidianas, campo literário, campo das prá ticas

político-cidadãs e campo investigativo. Para cada referido campo sugere-se o trabalho

com um repertório de gêneros, o que não implica desconsiderar o diálogo entre esses

campos e os diversos gêneros pertencentes a eles.

Numa síntese, podemos compreender que no campo das práticas cotidianas o

objetivo é trabalhar os gêneros que circulam na comunicação diária, tais como cartas e

e-mails, assim como gêneros de esferas públicas como os gêneros jornalísticos, ainda

se abre espaço para os gêneros institucionais como os estatutos. Na esfera literária, o

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objetivo é que os estudantes leiam e apreciem as condições estéticas tanto na leitura

quanto na produção escrita, para isso, busca-se o trabalho com a narrativa e a poesia e

seus elementos constitutivos como espaço, tempo e personagens; procura-se ainda o

trabalho com as marcas estilísticas que compõe os elementos citados e os efeitos de

sentidos produzidos por diferentes recursos estilísticos. No campo das práticas

investigativas, enfatizam-se os gêneros didático-expositivos, bem como os impressos e

os digitais, que permitirão o exercício de elaboração de síntese apresentados em

forma de gráficos, infográficos, resumos, textos de divulgação científica etc. Por fim, o

campo político-cidadão, relativo ativismo dos sujeitos, aqui comporta textos das

esferas jornalística, publicitária, política, jurídica etc.

A seguir, apresentaremos uma tabela, na qual sintetizamos a organização da

Língua Portuguesa.

Fonte: Brasil (2016).

A Língua Portuguesa, na BNCC, é organizada tendo os quatros eixos

supracitados, dois deles, o da leitura e o da escrita, são organizados em quatro campos

comuns, ao passo que o eixo oralidade/sinalização em dois campos comuns aos eixos

anteriores, campo literário e campo investigativo, já o campo dos conhecimentos

sobre a língua e norma não especifica uma esfera para desenvolvimento dos seus

estudos, isso porque é sugerido que atrevesse todos os outros eixos.

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Na seção dedicada à escrita, lemos o seguinte:

O eixo da escrita compreende as práticas de linguagem relacionadas à interação e à autoria do texto escrito que tem por finalidades, por exemplo, expressar a posição em um artigo de opinião, escrever um bilhete, relatar uma experiência vivida, registrar rotinas escolares, regras e combinados, registrar e analisar fatos do cotidiano em uma crônica, descrever uma pesquisa em um relatório, registrar ações e decisões de uma reunião em uma ata, dentre outras (BRASIL, 2016, p. 344).

A caracterização do eixo da escrita é coerente com a proposta delineada na

área da linguagem. Nesse fragmento, é possível percebermos que há uma abordagem

para a produção de textos escritos, que dialoga com a concepção teórica de linguagem

bakhtiniana incorporada na BNCC. A linguagem é vista na sua integridade como

atividade social, ou interação discursiva, é produto da atividade humana, social e

historicamente localizados, o que significa dizer que há espaço e tempo específicos

constitutivos dessas interações; todas as vezes que os sujeitos agem socialmente o

fazem por meio da linguagem, a materialização da mesma é o que podemos chamar de

enunciado concreto (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010), unidade da comunicação

discursiva, dos gêneros do discurso e na BNCC objeto de estudo do componente

curricular de Língua Portuguesa em todos os eixos, ainda que no nosso trabalho

discutimos a produção escrita.

Assim sendo, essa é a abordagem teórica que fundamenta os estudos de Língua

Portuguesa, por essa razão, passaremos a discutir os principais conceitos advindo

dessa teoria dialógica da linguagem e localizando nos objetivos dos campos do eixo da

escrita a presença dessa perspectiva teórica, sendo o primeiro deles o de enunciado

concreto.

Enunciado concreto - unidade da interação verbal, dos gêneros do discurso e do

ensino de Língua Portuguesa

A concepção de enunciado é discutida em muitos textos tanto de autoria de

Bakhtin64 quanto de seus pares, principalmente Volochínov65 e Mediviédev66, o

64

BAKHTIN, M. O enunciado como unidade da comunicação discursiva. Diferença entre essa unidade e

as unidades da língua (palavras e orações). In: ______. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 11 – 70.

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primeiro par com mais profundidade. É em Marxismo e filosofia da linguagem67, texto

de 1929, que Bakhtin/Volochínov (2010) discutem o entendimento desse termo

quando debatem sobre as características da língua, da fala e da enunciação. O

entendimento de enunciado é construído num momento em que o Estruturalismo

linguístico divulgava a concepção de língua como unidade abstrata e objetiva, passível

de sistematização a partir das suas regras. Bakhtin (2016), em Os gêneros do discurso,

nos reapresenta a outro termo, que, segundo ele, deve ser o verdadeiro objeto de

análise para entender a constituição dialógica da linguagem, o enunciado. Assim, diz:

A indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico central no pensamento linguístico são o resultado do desconhecimento da real unidade da comunicação discursiva – o enunciado. Porque o discurso só pode existir de fato na forma de enunciados concretos de determinados falantes, sujeitos do discurso (BAKHTIN, 2016, p. 28).

Nesse sentido, Bakhtin passa a advogar sobre o entendimento de um elemento,

que é utilizado em todas as atividades da comunicação verbal. As diversas atividades

verbais são construídas por enunciados concretos, construídos pelos sujeitos numa

atividade social concreta, por isso afirma que “o enunciado não é uma unidade

convencional, mas uma unidade real” (BAKHTIN, 2016, p. 29). Por exemplo, numa

conversa informal entre amigos ou no discurso mais formal de uma autoridade de

Estado, o texto verbal é construído por inúmeros enunciados, não há condição de

ilustração, pois o enunciado existe, ele está mediando a interação eu – tu numa ou em

outra situação.

Além disso, segundo Bakhtin (2016), um ponto precisa ficar bem claro: oração e

enunciado não são as mesmas coisas. A primeira é unidade da língua, a segunda uma

unidade da comunicação discursiva, que tem uma esfera de produção, de circulação e

65

Cf. VOLOSHÍNOV, N. V. Palavra na vida e a palavra na poesia. Introdução ao problema da poética

sociológica. In: ______. A construção da enunciação e outros ensaios. Org. Trad. E notas João Wanderley Geraldi. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013b, p. 71 – 100. 66

MEDVIÉDEV, P. N. A l inguagem poética como objeto da poética. In: MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. E. Américo e S. Gril lo.

São Paulo: Contexto, 2012. p. 131 – 164. 67

Importante registrar que nessa obra, segundo a tradução em português, os autores util izam enunciado e enunciação sem uma nítida diferença entre os termos, o que nos leva a crer que, em alguns trechos d a

obra, enunciação signifique enunciado concreto, pois ambos os termos referem-se a um elemento da interação verbal, relacionado diretamente com a vida.

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recepção, há alternância de sujeito, intencionalidade discursiva; cada uma tem

especificidades que as caracterizam e as distanciam uma da outra. A oração é: um fato

gramatical, não é marcada pela alternância do sujeito, não leva em consideração a

comunicação real, não pertence a ninguém e as relações exteriores são ignoradas; já o

enunciado caracteriza-se pela oposição: não é um fato gramatical, mas sim histórico, é

marcada pela alternância dos sujeitos, leva em conta a comunicação verbal, pois o

enunciado é produto dela, pertence a um sujeito e os fatos exteriores não só são

levados em consideração como atravessam sua composição. Por essa razão, um termo

não pode, jamais, ser permutado pelo outro.

Destaquemos algumas das dimensões apontadas nas práticas de escrita na

proposta da BNCC:

O desenvolvimento de estratégias de planejamento, revisão, reescrita e avaliação de textos, considerando-se sua adequação aos contextos em que foram produzidos e o uso da variedade linguística apropriada a esse contexto; os enunciadores envolvidos, o gênero, o suporte, a esfera de circulação e a variedade linguística que se deva/queira adequar; A reflexão sobre os recursos linguísticos e multimodais empregados nos textos, considerando-se as convenções da escrita e as estratégias discursivas planejadas em função das finalidades pretendidas (BRASIL, 2016, p. 345).

Pelo ângulo da BNCC, o texto é considerado na dimensão do enunciado, uma

vez que é produzido por sujeitos situados em contextos específicos. A constituição do

texto ultrapassa as fronteiras linguísticas, porque há que se considerar o contexto de

circulação, os sujeitos envolvidos e suas intencionalidades discursivas, a escolha do

gênero e do suporte nos quais o texto tomará forma, bem como a seleção linguística

em prol das finalidades discursivas pretendidas, todas essas características nos fazem

compreender que o texto não é um conglomerado de frases, mas enunciados

concretos, produzidos em situações concretas e por sujeitos reais.

Em Palavra na vida e a palavra na poesia, segundo Volochínov (2013), há uma

relação direta entre o enunciado, visto como discurso, e o extraverbal:

A palavra na vida, com toda evidência, não se centra em si mesma. Surge da situação extraverbal da vida e conserva com ela o vínculo mais estreito. E mais, a vida completa diretamente a palavra, que não

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pode ser separada da vida sem que perca seu sentido (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 77).

Ou seja, se o extraverbal, a vida, for retirado do enunciado, possivelmente a

sua significação será alterada; não temos nenhuma certeza do contrário.

Essa ideia da palavra na vida, enunciado concreto, está presente nos objetivos

do eixo da escrita em todas as séries dos campos de estudo do componente curricular

em tela, como podemos ler em quatro dos objetivos do “campo da vida cotidiana” dos

6º, 7º, 8º e 9º anos, respectivamente: “Escrever textos que circulam na internet em

situações menos formais, da vida cotidiana (postagens na internet, e-mails etc.)”, bem

como “Comparar os diferentes modos de comunicação e formas de interlocução em

textos produzidos para/na internet”, “Escrever cartas, e-mails, posts para redes sociais

ou blogs, em situações/interlocuções mais formais” e “Escrever carta de solicitação

para ser enviada por e-mail” (BRASIL, 2016, P. 350 – 351). Percebamos que a produção

do texto escrito não está “centrada em si mesma”, ela surge sempre de

“interlocuções/situações” da vida, esse caráter originário da palavra na vida atravessa

a constituição de um texto, por exemplo, a palavra ou é orientada numa situação

formal ou informal, surge na internet e/ou circula na internet, essas condições são

constitutivas do sentido da palavra na vida.

Essa característica constitutiva do enunciado pode ser acrescentada a outro

caráter responsivo e dialógico do mesmo. Todo enunciado é uma resposta a

enunciados anteriores, sendo, portanto, responsivo; ele também é dialógico, uma vez

que estabelece relações de sentidos com outros enunciados anteriores e posteriores a

eles historicamente. Tal resposividade pode ser localizada ao longo de vários objetivos

de todos os campos explorados na Língua Portuguesa, destacamos alguns deles

pertencentes ao “campo político-cidadão” referentes aos anos finais do Ensino

Fundamental, dos quais destacamos os 6º e 7º anos: no 6º ano, “produzir textos de

diferentes gêneros – charges, tirinhas, que conjuguem linguagem verbal e não verbal

sobre fatos e eventos noticiados em diferentes mídias”; no 7º ano, “Produzir textos

com a linguagem adequada e estrutura pertinente ao gênero, que apresentem

encaminhamentos para a resolução de problemas que afetam a vida comum”; no 8º

ano” (BRASIL, 354). Nos dois objetivos expostos, é possível enxergarmos que todas as

propostas de produções surgem de provocações, ou um fato noticiado nas mídias, ou

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resolução de um problema que seja comum a coletividade, em ambos os casos a

escrita do texto surge como resposta a enunciados anteriores. Es sa é uma das

características da dialogicidade dos enunciados, nas ininterruptas interações verbais,

defendidas por Bakhtin e o Círculo, que procuramos representá-la na figura 1,

desenvolvida por Oliveira (2014, p. 36), intitulada Cadeia da Interação Verbal .

CADEIA DA INTERAÇÃO VERBAL

Fig. 1 – Cadeia da interação verbal

A interação é um fenômeno social e histórico entre e eu e o tu que

inevitavelmente se alternam, aquele que foi o eu será o tu em tantos outros

momentos e vice-versa; esses sujeitos estão sempre localizados no tempo e no espaço,

falam sempre como sujeitos sociais, que nos permite compreender que a linguagem

conhece dois centros de valores, o do eu e o do outro. As relações entre os sujeitos

não conhece um começo absoluto e um fim absoluto, ainda que haja uma unidade, os

enunciados têm um relativo acabamento num eterno incabamento, assim como eu

não inauguro a palavra no mundo, também não a encerro.

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Por último, o enunciado também é considerado como uma unidade dos

gêneros do discurso. Lembremos que os gêneros discursivos são formas típicas,

relativamente estáveis, de enunciados, o que será discutido a seguir.

Os gêneros do discurso: teoria e prática

No Brasil, a concepção de gêneros discursivos é, sem dúvida, o principal elo

entre Bakhtin e seus seguidores, sobretudo quando se trata de professores de Língua

Portuguesa da educação básica.

Para Faraco, há um “uso inflacionado no Brasil – em especial no discurso

pedagógico posterior à reforma do ensino de 1996 – da expressão gêneros do

discurso, tendo o texto de Bakhtin como referência” (FARACO, 2009, p. 122). Fica

indicativo que essa adesão na esfera pedagógica deve-se tanto à Lei de Diretrizes e

Bases, de 1996, bem como a outro documento posterior, os Parâmetros Curriculares

Nacionais, de 1998. Esse último traz explicitamente em várias passagens o termo

gêneros discursivos/textuais68 como principal objeto de estudo nas aulas de Língua

Portuguesa, tornando o uso dos gêneros nas aulas uma necessidade.

Indicações semelhantes são encontradas na BNCC, quando aponta o trabalho

com os gêneros em três de suas dimensões nas práticas escritas, leiamos:

- análise de gêneros, em termos de situação, em termos das situações nas quais são produzidos e dos enunciadores envolvidos; - a reflexão sobre aspectos sociodiscursivos, temáticos, composicionais e estilísticos dos gêneros a serem produzidos; - o desenvolvimento da autoria, como consequência da reflexão sobre a própria experiência de produção de textos, em variados gêneros e em diversas situações de produção (BRASIL, 2016, p. 345).

68

É muito comum nos cenários de produção e divulgação científicos brasileiros alguns autores tornarem

como sinônimas as expressões “gêneros discursivos” e “gêneros textuais”, mas é sabido que as perspectivas teóricas são diferentes. Enquanto a primeira se detém nos aspectos sócio-linguístico-discursivos, ou seja, dialógicos e extralinguísticos, a segunda se preocupará com os aspectos textuais, ou seja, l inguísticos, caracterizando os estudos da Linguística de texto. É necessário, também, assinalar que

nos PCNs as expressões são sinônimas, sim, mas os conceitos não; neste documento, há uma clara alusão à teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos, porém, naquele momento o acesso ao pensamento do estudioso russo, no Brasil, era por meio de tradução da tradução, principalmente da edição francesa,

que usou ora gênero discursivo, ora gênero textual, o que causou alguns ruídos nas traduções dos termos e o uso da sinonímia. Como se vê, a confusão não é por acaso.

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Assim sendo, os gêneros do discurso são (re)convocados a ser objetos de

análise e produção nas práticas escritas em Língua Portuguesa. Em seguida, passamos

a localizar e entender o conceito de gêneros discursivos nos estudos de Bakhtin e do

Círculo, bem como demonstraremos como essa perspectiva embasa a BNCC para o

componente de Língua Portuguesa no eixo da prática escrita.

Quando procuramos compreender os gêneros discursivos, recorremos

diretamente não só a Bakhtin (1952 – 1953 [2016]), em Os gêneros do discurso, mas,

também encontramos o tema, no terceiro capítulo da terceira parte de O método

formal nos estudos literários: introdução a uma crítica sociológica, de autoria de Pável

N. Medviédev (1928 [2012]); no segundo capítulo da primeira parte e no sexto capítulo

da segunda de Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do

método sociológico na ciência da linguagem, de Bakhtin/Volochínov (1929[2010]); “A

construção da Enunciação” (1930 [2013a]), de Volochínov; no quarto capítulo de

Problemas da poética de Dostoiévski (1929/1963 [2013]); e A teoria do romance I. A

estilística. (1934 – 1935 [2015]), estes últimos tendo apenas Bakhtin como autor.

Mais uma vez não é por coincidência que os estudiosos recorrem ao primeiro

texto citado, pois é nesse texto que temos um olhar mais analítico e problematizado

sobre os gêneros. Segundo Faraco (2009), Os gêneros do discurso é um texto de

arquivo tido como um texto inacabado, pois se acredita que Bakhtin dedicaria um

título inteiro sobre o tema, mas só conseguiu escrever duas substanciais partes: i) “O

problema e sua definição”, onde problematiza e define os gêneros e ii) “O enunciado

como unidade da comunicação discurs iva”, na qual estabelece a relação divergente

entre enunciado e oração, bem como situa o enunciado concreto como unidade dos

gêneros, uma vez que a comunicação se dá via gêneros. Desse modo, compreende-se a

relevância na busca desse texto.

É em Os gêneros do discurso que Bakhtin (2016) traz, novamente, o encontro

recíproco da língua com a sociedade quando diz:

Todos os campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana (BAKHTIN, 2016, p. 11).

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Seguindo esse entendimento, apreendemos que as nossas atividades, nos mais

variados papeis sociais circunscritos historicamente, são atravessadas pela linguagem

e, sobretudo, por uma de suas representações, a língua viva. Do mesmo modo que

essas atividades são variadas, as maneiras como utilizamos a língua também serão, e é

nesse sentido que trouxemos a voz do autor russo:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional (BAKHTIN, 2016, p. 11 – 12).

Ou seja, a variedade dos modos de utilização da língua se dá pelo caráter

variado da própria diversidade das atividades humanas. Analisemos como o seu uso

está ligado ao social: são as atividades sociais que pedem diferentes formas de

utilização da língua. Todos esses usos efetuam-se em formas de enunciados (escritos

ou orais), fazendo-nos compreender que essas atividades só se concretizam através

das formas típicas de enunciados. Por fim, essa concretização provém dos integrantes

das atividades das esferas humanas, ou seja, locutor e interlocutor. E tal realização é

concretizada a partir dos três elementos das formas típicas de enunciado: conteúdo

temático, estilo e construção composicional.

Todos esses elementos que arranjam o discurso têm seu lugar na sua

edificação. E, do mesmo modo, todos atravessam e se cruzam, formando um todo

enunciativo relativamente estável e heteroglóssico69. Isso acontece porque o todo

harmonioso de uma enunciação é lugar de tensão, de conflito, de arena.

Igualmente, não seria contraditório afirmar que os gêneros discursivos são

construções coletivas e com traços individuais, pois “cada campo de utilização da

língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos

gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2016, p. 12[itálicos do autor]). O que revela seu

69

Faraco (2009) esclarece-nos que heteroglossia é um termo que designa as vozes sociais que circulam um texto, tal termo não pode ser confundido com polifonia, que a bem da verdade é uma abreviação de “romance polifônico”, um gênero discursivo estudado por Bakhtin nos romances Dostoiévski. Cf.

FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias l inguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009. p. 45 – 97.

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caráter de coletividade, ao passo que “cada enunciado particular é individual”

(BAKHTIN, 2016, p. 12), haja vista, o sujeito que enuncia o faz sempre de sua

singularidade.

A tese bakhtiniana de que as esferas de atividade humana orientam a produção

dos gêneros do discurso é assimilada na BNCC. Todos os eixos de estudos para a Língua

Portuguesa têm as esferas como referências para os objetivos a serem alcançados em

cada etapa de ensino, para os estudos da escrita temos quatro campos, são eles:

Campo da vida cotidiana: campo de atuação relativo à participação em situações de produção escrita, próprias de atividades vivenciadas cotidianamente por crianças, adolescentes, jovens e adultos, no espaço doméstico e familiar, escolar, cultural e profissional. Alguns gêneros textuais deste campo: e-mails, cartas, post (em blogs e websites).

Campo literário: campo de atuação relativo à participação em

situações de produção escrita, na criação e fruição de produções literárias, representativa da diversidade cultural e linguística, que favoreçam experiências estéticas. Alguns gêneros textuais deste campo: Prosa: autobiografia, contos, minicontos, lendas, fábulas, crônicas, HQs, animes, mangás, peças teatrais, fanfics. Poesia: poemas de verso livre, poema de forma fixa – quadras, cordéis, poemas visuais. Campo político-cidadão: campo de atuação relativo à participação em situações de produção escrita, especialmente

de textos das esferas jornalísticas, publicitária, política, jurídica e reivindicatória, contemplando temas que impactam a cidadania e o exercício de direitos.

Alguns gêneros textuais deste campo: notícias, carta do leitor, artigos de opinião, charges, propagandas, anúncios,

classificados, panfletos, cartazes.

Campo investigativo: campo de atuação relativo à participação em situações de produção escrita de textos que possibilitem

conhecer os gêneros expositivos e argumentativos, a linguagem e as práticas relacionadas ao estudo, à pesquisa e à divulgação científica, favorecendo a aprendizagem dentro e fora da escola. Alguns gêneros textuais deste campo: entrevistas, relatos de experimentos, gráficos, infográficos, tabelas, documentário (BRASIL, 350 – 357).

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Como vemos, os campos elencados e caracterizados na BNCC são seguidos de

alguns “gêneros textuais” pertencentes a essas esferas. Obviamente, não podemos ler

que esses gêneros esgotam a exploração dos textos escritos nesses campos, são

apenas indicações. Ainda assim, é possível vislumbrarmos a relação dialógica entre

gêneros e esferas/campos de atividade humana. Entretanto, uma ressalva se faz

necessária, se conseguimos comprovar que a abordagem teórica utilizada pelo

documento é bakhtiniana, ainda persiste a realização verbal da expressão “gêneros

textuais”, que não pode ser encarada como sinônimo de “gêneros do discurso”. Rojo

(2008) realiza um precioso estudo a respeito da distinção não só entre os termos,

como também entre dos conceitos e de suas diferentes abordagens, aqui, cabe-nos

dizer que o projeto delineado pela BNCC vai de encontro com o projeto de Bakhtin e o

Círculo, que é o discursivo.

Voltando a discutir os excertos destacados, interessa-nos, também, frisar que

os gêneros são inesgotáveis porque assim também são as formas das atividades

humanas em todos os campos. Desse modo, as transformações nas ações sociais, que

são sempre históricas, são acompanhadas pela relativa estabilidade dos gêneros. Por

essa razão, os gêneros referidos nos campos descritos na disciplina em estudo,

precisam ser vistos como exemplos. Para se ter um conhecimento sobre essa relativa

estabilidade dos gêneros, um exemplo é necessário.

Nas sociedades em que as suas relações de complexidade são “ausentes”,

encontramos os gêneros mais imediatos, como o bilhete, carta pessoal, réplicas dos

diálogos, saudações, perguntas, respostas; já nas comunidades em que ess a

complexidade e a organização são mais presentes, são produzidos e circulados,

também, os gêneros mais elaborados que correspondem a essa complexidade, como o

e-mail, o editorial, a carta do leitor, petição, bula de remédio, manual de instrução, o

artigo científico, a dissertação e tantos outros. Esses dois segmentos são o que Bakhtin

denomina gêneros primários e secundários, respectivamente. Na organização dos

campos e distribuição dos gêneros, é possível percebermos a progressão dessas

complexidades de esferas e de gêneros.

Ainda sobre essa dualidade, vale salientar que muitas vezes os gêneros

secundários, no seu processo de formação, “incorporam e reelaboram diversos

gêneros primários” (BAKHTIN, 2016, p. 13). A comparação clássica envolve a carta e o

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e-mail. A reelaboração de um para o outro, respectivamente, explicita uma relação

dialógica em duas partes: primeiro entre o primário e o secundário, segundo entre os

gêneros e seus estilos presentes e utilizados na sociedade, pois é o desenvolvimento

dela que pede determinados gêneros e não outros; assim, a história dos gêneros

mantém uma relação marcante com a história da sociedade, mas, acima de tudo, é a

linguagem que atravessa, reciprocamente, a sociedade.

Muitas das ações com a linguagem só são possíveis apenas pelos gêneros.

Então,

[...] nesse repensar das experiências com a linguagem, o que se objetiva é, também, uma retomada do conceito de gênero como modo de articulação das relações dialógicas, como modo de organização das experiências com a linguagem (CAMPOS, 2007, p. 192).

Assim, temos a clareza de que os gêneros modelam nosso modo de agir pela

linguagem, ou seja, de nossas interações discursivas; além de esclarecer que sempre

pensamos pela heterogeneridade, em outros termos, pelas diversas formas típicas de

enunciados. Em prática, para argumentar sobre concepções de enunciado concreto e

do entendimento dos gêneros, o nosso modo de pensar passou pela inevitável

trajetória de pensar no gênero para só depois escrevermos. Assim, pensamos no/com

o gênero, logo em seguida, imaginamos nossos interlocutores, no contexto discursivo

em geral e, só depois, falamos ou escrevemos. Por essa razão, não é arriscado afirmar

que pensamos, agimos, ouvimos, falamos, lemos e escrevemos pela heterogeneridade.

Numa sociedade em que os bens culturais e os exercícios de cidadania têm a

escrita como principal elemento de inserção social, parece-nos coerente que na BNCC

os gêneros, numa perspectiva discursiva, sejam objetos de estudo da escrita, assim

como da oralidade, da leitura e dos conhecimentos sobre a língua e sobre a norma.

Considerações Finais

Consideramos ser indispensável que o professor de Língua Portuguesa tenha

consciência qual perspectiva teórica embasa os materiais didáticos, assim como suas

aulas e as diretrizes de ensino-aprendizagem. Por essa razão, investigamos a atual

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diretriz, ainda em curso, da BNCC para o estudo de Língua Portuguesa, anos finais, com

foco na escrita.

O percurso que fizemos permitiu-nos identificar a abordagem teórica que

alicerça não só o eixo da escrita, mas os outros três de estudos da Língua Portuguesa.

No nosso estudo ficou evidente que é a perspectiva dialógica de estudos da linguagem

de Bakhtin e o Círculo a lupa teórico-ideológica assumida. Em várias passagens do

documento, no eixo da escrita, é possível compreendermos que o texto, enquanto

enunciado concreto produzidos por sujeitos e materializado como gêneros do discurso,

deverá ser objeto de estudo, mas não o texto em sua imanência, e sim relacionados às

interações discursivas que as constituem e com o contexto extraverbal que os

atravessa como esferas de produção e circulação e seus interlocutores.

Na abordagem assimilada pela BNCC, a linguagem não é imanente, mas é

atividade, ou práticas discursivas. O que nos confere a pressuposição dos sujeitos, de

seus posicionamentos, dos seus centros de valores. Ass im sendo, o texto deixa de ser

visto como signo linguístico e passa a ser investigado como signo ideológico. Uma

prova disso são os campos ou esferas ideológicas que alicerçam os quatro eixos de

estudos da Língua Portuguesa, em especial da produção escrita.

Como “tipo relativamente estável de enunciado”, os gêneros são convocados,

no escopo de seus referidos campos, para serem estudados nas práticas de escritas,

antes de serem produzidos pelos estudantes. O que abre espaço para uma abordagem

investigativa do gênero enquanto produto da atividade humana, ou seja, aqui

interessa saber quem é o sujeito, qual sua intencionalidade discursiva, onde produz

seu discurso, onde o fará circular etc.

Acreditamos ser coerente assumir uma abordagem de estudo da linguagem

que a compreende como base da relação entre os homens e que permite ao estudante

exercer sua cidadania em diferentes esferas da vida.

Referências

BAKHTIN, M. (VOLCHÍNOV, V.N.). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Vieira. 14 ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. P. Bezerra (Org.). São Paulo: Editora 34. 2016.

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______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. P. Bezerra. 5 ed. Rio de Janeiro:

Forense universitária, 2013.

______. Teoria do romance I. A estilística. Trad. P. Bezerra. São Paulo: ED34, 2015.

BRASIL. Ministério da Educação. 2016. Base Nacional Curricular Comum. Disponível

online em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio Acesso em: 26 jul. 2016.

CAMPOS, E. A dimensão dialógica da linguagem. Vertentes (São João Del-Rei), v. 30, p. 191 – 201, 2007.

FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.

MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. E. Americo e S. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. p. 131 – 164.

OLIVEIRA. A. S. S. A arquitetônica das Apresentações em livros didáticos: o olhar, o

fazer, o dizer do eu sobre o tu. 2014. Dissertação (Mestrado em Letras). Ilhéus: UESC, 2014.

ROJO, R. Gêneros de discurso/texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao trivium? In: SIGNORINI, I.; BENTES, A. C.; et al. (Org.). [Re]discutir texto, gênero e

discurso. São Paulo: Parábola, 2008, p. 73 – 108.

VOLOSHÍNOV, N. V. A construção da enunciação. In: A construção da enunciação e outros ensaios. Org. Trad. E notas J.W. Geraldi. São Carlos: Pedro & João Editores,

2013b, p. 157 – 188.

______. Palavra na vida e a palavra na poesia. Introdução ao problema da poética

sociológica. A construção da enunciação e outros ensaios. Org. Trad. E notas J. W. Geraldi. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013a, p. 71 – 100.

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ORALIDADE E ENSINO MÉDIO: QUE ATIVIDADES SÃO PROPOSTAS NO

LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS E PARA QUÊ?

Andréa Gomes de Alencar (USP)

Introdução

O Ensino Médio passou a ser obrigatório a menos de uma década, a partir da

Emenda Constitucional n° 59, em 2009. Antes disso, era bastante comum o jovem

encerrar seus estudos escolares no Ensino Fundamental, em grande parte, para ajudar

sua família com seu trabalho. Se por um lado, a lei em si já é um avanço, por outro,

essa garantia de escolarização não se basta quando objetivamos uma formação

discente de qualidade, daí serem necessárias pesquisas que investiguem esse universo,

em diversos âmbitos.

Nesse artigo, situado no interior de uma pesquisa em andamento, voltaremos

nosso olhar para as atividades orais propostas no Livro Didático de Português do

Ensino Médio70, uma vez que este costuma ser, na maior parte das vezes, um dos

poucos livros a que o aluno tem acesso.

O estudo de aspectos relativos à oralidade torna-se significativo por

entendemos que, dentre tantas habilidades que devem ser desenvolvidas no Ensino

Médio, aquelas que se referem à modalidade oral da língua são, de maneira geral, as

que menos têm sido exploradas na prática docente, seja pela preocupação excessiva

com o vestibular e Enem, seja pela tradição escolar no estudo de estruturas

gramaticais da língua e, de maneira geral, pelo enfoque demasiado aos estudos

literários. Apesar disso, ao finalizar seus estudos e ingressar no ambiente de trabalho,

esse mesmo jovem sofre uma cobrança social no que se refere a saber se colocar em

situações orais de comunicação, apresentando suas ideias de forma clara, coerente e

consistente. Temos então uma demanda que nem sempre é atendida.

70

Doravante, LDP-EM.

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Dentre os objetivos declarados nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional para esse nível de ensino está “a preparação básica para o trabalho e a

cidadania do educando”. Interessa-nos entender, então, como isso se efetiva.

Considerando que uma formação cidadã sempre deve favorecer um trabalho

que estimule a participação em diversos níveis e com pleno domínio das várias

modalidades da língua, intentamos nesse estudo apontar como é feito o trabalho com

gêneros orais em um livro didático de Ensino Médio. Selecionamos, para tanto, a obra

Português: contexto, interlocução e sentido (ABAURRE, ABAURRE e PONTARA, 2013d),

coleção em três volumes aprovada no Programa Nacional do Livro Didático, PNLD 2015

(BRASIL, 2014), a partir da qual apontaremos o que é proposto para o trabalho oral em

diferentes seções do interior da obra e qual a concepção de oralidade que subjaz essas

atividades.

Enunciado, Gêneros do Discurso e Interação Verbal

Discutir sobre oralidade, em uma perspectiva bakhtiniana, é pensar a

produção oral como um enunciado concreto e, por isso mesmo, só considerável no

interior de uma prática social discursiva.

Para Bakhtin/Volochinov (1929/2002), a linguagem tem uma natureza sócio-

histórica, isto é, situa-se no meio social em que o indivíduo vive e dela não pode ser

apartada. A fala – ou a expressão concreta de realização desse dizer – deve ser, então,

compreendida na sua relação entre interlocutores, tempo/espaço e ideologias dentro

de um contexto histórico e social mais amplo.

Embora o conceito de “oralidade” não tenha sido diretamente abordado nos

estudos bakhtinianos, a noção de diálogo e interação verbal, presentes nas obras do

círculo, podem ser bastante úteis para elucidar essa noção.

Diferentemente da ideia defendida pelos estudos da conversação, em que o

diálogo é apenas a conversa face-a-face, ou seja, o ato conversacional em si,

Bakhtin/Volochinov (1929/2002) vão alargar essa concepção, afirmando que todo e

qualquer enunciado, seja oral ou escrito, dialoga com outros enunciados, deste e de

outro tempo e lugar, constituindo-se deles e reelaborando-os. Assim, para os autores,

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“a comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora desse

vínculo com a situação concreta”. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2002, p. 124).

Com vistas ao trabalho com oralidade na prática escolar, essa maneira de ver

desloca um estudo centrado apenas nas formas linguísticas em si ou no dizer individual

(subjetivo) de cada pessoa, e traz uma concepção em que o sujeito não só tem

responsabilidade pelo seu dizer, como também faz escolhas que não são aleatórias,

mas pautadas nas condições de produção e circulação do seu discurso. Assim, na

prática docente, considerando essa perspectiva de ensino, não são significativas

atividades de estudo da língua descontextualizadas ou não reflexivas, visto que a

situação de produção e a tomada de posicionamento são fundamentais para auxiliar o

educando.

(...) toda expressão tem uma orientação social. Em consequência, ela é determinada pelos participantes do acontecimento constituído pela enunciação, participantes próximos e remotos. A interação entre os participantes desse acontecimento dá forma à enunciação, faz com que soe de uma determinada maneira e não de outra: como pedido peremptório ou como uma súplica, fazendo valer os próprios direitos ou suplicando um favor, com um estilo simples ou altissonante, com segurança ou com timidez.

Precisamente essa dependência da enunciação às circunstâncias concretas em que ocorre tem para nosso exame um significado de extrema importância. (VOLOCHINOV, 1930/2013, p. 149)

É a partir desse afastamento de uma visão objetiva e idealista de língua – o

objetivismo idealista e o subjetivismo abstrato –, que emerge a concepção de

enunciado, o qual, segundo Bakhtin (1952-53/1979/2011, p. 274) “é a real unidade da

comunicação discursiva”, ou seja, é a realidade material da linguagem, constituída por

uma parte verbal – a língua – e outra parte extraverbal – a situação comunicativa.

A partir da noção de enunciado, podemos compreender o que Bakhtin e o

círculo denominam “gêneros do discurso”. O conceito aparece pela primeira vez em O

método formal nos estudos literários (MEDVIÉDEV, 1928/2012), ocasião em que a

importância de sua orientação para a vida será reforçada: “o gênero lança uma luz

sobre a realidade, enquanto a realidade ilumina o gênero” (op. cit., p. 201).

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O conceito, no entanto, foi posteriormente desenvolvido no ensaio intitulado

“Os gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1952-52/1979/2011), em que aparece assim

definido: “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da

língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciado, os quais denominamos

gêneros do discurso” (op. cit., p. 262).

A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero do discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes, etc. A intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero. (BAKHTIN, 1979/2011, p. 282)

Essa afirmação reforça a relação intrínseca entre os enunciados produzidos no

interior de uma situação concreta de produção e os gêneros discursivos, integrantes

de uma dada esfera social, que são utilizados pelos sujeitos para se comunicar na vida.

A grande heterogeneidade dos gêneros do discurso poderia ser um problema

para a compreensão de sua natureza. Por esse motivo, o autor vai afirmar que “é de

especial importância atentar para a diferença essencial entre os gêneros discursivos

primários (simples) e secundários (complexos)” (BAKHTIN, 1952-53/1979/2011, p.

263). Os primeiros seriam aqueles que circulam na vida cotidiana e estariam mais

ligados aos contextos de comunicação oral – embora não exclusivamente –, visto que

se desenvolvem em circunstâncias mais espontâneas e imediatas de comunicação,

como o diálogo familiar. Os segundos seriam os gêneros ligados à vida da cultura e,

ainda que não apenas escrito, estariam relacionados, em grande medida, a essa forma

de comunicação. Servem de exemplo, o romance, pesquisas científicas, anúncio

publicitário etc.

Esta noção de gêneros discursivos tomou força nos documentos oficiais para o

ensino brasileiro (BRASIL, 1997, 1998, 2000, 2002, 2006) e tem servido de base para o

desenvolvimento de propostas em Livros Didáticos de Português (LDP).

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Em LDP´s, o trabalho com gêneros orais formais públicos tem sido uma

possibilidade para o desenvolvimento da oralidade entre nossos jovens. A proposta

seria enfocar a reflexão sobre o uso da linguagem oral no interior de situações

comunicativas reais formais e públicas, ocasião em que o educando poderia refletir

não apenas sobre as escolhas linguísticas que deve fazer, mas principalmente

compreender que o modo de dizer dependerá dos interlocutores, da finalidade da

comunicação, dos interesses da esfera de circulação do texto etc. Nada mais distante

do pensamento bakhtiniano que propostas que visem apenas o reconhecimento de

estruturas dos textos ou de suas formas de linguagem características, sem relacionar

essas escolhas com o campo efetivo de sua produção, recepção e circulação.

Assim, entendemos que, em um trabalho com oralidade, numa perspectiva

bakhtiniana, mais que apenas ensinar formas da língua – ou do gênero discursivo – de

que os alunos poderão fazer uso para se expressarem em uma dada situação, é

fundamental também formar cidadãos que, assumindo uma consciência crítica, sejam

capazes de apropriar-se de diversas vozes para, então, saber interferir de forma

responsável na realidade da qual fazem parte.

Descrição da Coleção

A coleção analisada nesse estudo (ABAURRE, ABAURRE e PONTARA, 2013d) é

composta por três volumes que totalizam 1200 páginas (400 por volume).

Internamente, cada livro está dividido em três cadernos (Literatura, Gramática e

Produção de Textos), dentro dos quais estão dispostos os capítulos.

As atividades voltadas para o trabalho com oralidade aparecem em número

reduzido no sumário de cada livro, perfazendo um total de 16 páginas no conjunto dos

três volumes.

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Quadro 1 – Presença da oralidade no sumário da coleção

(ABAURRE, ABAURRE e PONTARA, 2013d)

No interior da obra, porém, também podem ser encontrados boxes, nos quais

se propõem alguma discussão sobre a linguagem oral ou com alguma proposta de

produção. O primeiro caso é observável no boxe “De olho na fala”, dentro do eixo de

gramática; o segundo, no boxe “Produção oral”, no eixo de Produção de Texto.

Cabe apontar que no eixo de Literatura, há outras sinalizações para o trabalho

com oralidade, na seção “Jogo de ideias”, as quais não foram acrescentadas no

sumário. Essa omissão, a nosso ver, já é um primeiro indício sobre a relevância que a

coleção evidencia em relação aos estudos da oralidade.

Para fins de recorte, apontaremos, nesse trabalho, o que é proposto nos

estudos desses dois boxes (“De olho na fala” e “Produção oral”) e da seção presente

no caderno de literatura (“Jogo de ideias”), a fim de termos um panorama geral do

enfoque da oralidade no interior dos três eixos de ensino.

Análise dos Dados

Oralidade como pretexto para o estudo normativo

No interior do eixo de gramática, o boxe “De olho na fala” chega com uma

proposta, conforme o manual do professor (MP), de “chamar a atenção do aluno para

situações em que determinadas estruturas linguísticas costumam provocar uma

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postura preconceituosa em relação a quem as utiliza.” (ABAURRE, ABAURRE e

PONTARA, 2013a, p. 18 - MP).

Esse tipo de boxe não está mencionado no sumário e é mais recorrente no

volume 2. O quadro a seguir evidencia o conteúdo proposto ao longo da coleção.

Quadro 2 – Propostas apresentadas no boxe “De olho na fala”

(ABAURRE, ABAURRE e PONTARA, 2013d)

Os conteúdos tratados, descritos no quadro anterior, buscam explorar

aspectos ligados à variação linguística (linguagem coloquial, situação formal/informal

para o registro da língua) ou ao uso expressivo da linguagem oral (prosódia para gerar

ironia, alongamento de vogais em advérbios). Na maioria dos casos, porém, serve

como instrumento para reforçar um conteúdo gramatical estudado, apontando a

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inadequação de algumas formas linguísticas em situações orais e/ou escritas,

conforme observamos a seguir.

Figura 1 – Boxe “De olho na fala”

(ABAURRE, ABAURRE, PONTARA, 2013c, p. 291)

Numa visão enunciativa de linguagem, o trabalho de reflexão linguística deve

ser entendido dentro de um contexto comunicativo, em que não só a língua seria

observada, mas a própria situação do uso e dos interlocutores envolvidos no discurso.

O fato linguístico apresentado não é, em si, um problema, mas a falta de diálogo que

não foi oportunizada ao aluno. Vale lembrar, por exemplo, que os boxes , espalhados

pela coleção apresentam as informações de forma expositiva, não propondo ao aluno

que se coloque, oralmente, frente ao que está sendo apresentado, nem ao menos para

trazer novos exemplos relacionados ao que é posto. Há, então, um apagamento da voz

do aluno, que não é chamado a se posicionar em nenhuma das vinte e nove vezes em

que o boxe aparece.

Além disso, passada dessa forma, essa informação pode levar à falsa ideia de

que é preciso ficar “de olho na fala”, pois nela costumam ocorrer os “erros”

gramaticais. As questões de variação, comuns no discurso oral, ficam minimizadas de

tal modo que a concepção normativa passa a ter papel central.

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Observamos assim que, na parte de gramática, a oralidade não é

desenvolvida, seja porque não oportuniza uma reflexão sobre aspectos próprios do

estilo da linguagem oral – hesitação, correção, repetição etc – seja porque não são

propostas situações para que o aluno tome a palavra e se coloque frente ao que lhe é

apresentado. A oralidade é, pois, apenas citada e usada como pretexto para o estudo

da escrita.

Oralidade como prática escolar

Identificamos a “oralidade como prática escolar” em atividades que propõem

apenas uma oportunização de conversa sobre determinado tema/assunto, sem que se

faça de fato uma intervenção para o ensino efetivo do gênero ou do estilo da língua

oral.

A coleção analisada apresenta uma proposta dessa natureza na seção “Jogo

de ideias”, presente no interior do eixo de literatura. Esta seção é apresentada em oito

momentos na obra. Desses, apenas dois são mencionados no sumário da coleção, os

quais destacamos no quadro a seguir.

Quadro 3 – Propostas apresentadas na seção “Jogo de Ideias”

(ABAURRE, ABAURRE e PONTARA, 2013d)

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De forma geral, as atividades aí propostas ocupam o espaço de uma página e

são encontradas ao final das unidades da parte de literatura. Estruturalmente, a seção

inicia-se com um parágrafo de contextualização, em que se apresenta uma orientação

temática relacionada com o conteúdo desenvolvido na unidade, seguido por tópicos

descritivos das etapas procedimentais a serem percorridas pelo aluno. A seção visa,

portanto, oportunizar um momento em que os alunos possam interagir, por escrito ou

oralmente, sistematizando conhecimentos já tratados na unidade didática.

No volume 1, os alunos são convidados a participar de uma mesa-redonda,

um debate e uma exposição oral. Se para os dois primeiros gêneros há um

detalhamento maior sobre os papeis de cada um no interior da prática comunicativa,

para exposição oral a proposta fica bastante reduzida, visto que ela orienta a facção de

um painel com textos do Trovadorismo, Humanismo e Classicismo e, para o momento

de exposição, as recomendações limitam-se a indicar quantas pessoas farão a

apresentação e qual conteúdo deve ser dito.

Apresentação do painel: Cada grupo deverá escolher dois representantes para apresentar ao “público” as obras escolhidas (uma para cada representante). Eles deverão fazer uma exposição oral para seus ouvintes, identificando as obras selecionadas e explicando os elementos e características que permitem associá-la a uma perspectiva teocêntrica ou antropocêntrica. Caberá a eles, também, esclarecer as possíveis dúvidas que surjam por parte do público. (ABAURRE, ABAURRE, PONTARA, 2013a, p. 104, grifos das autoras)

Não há orientações sobre para quem os alunos devem falar, qual a linguagem

mais adequada para esse “público”, como lidar com as hesitações, correções e

digressões próprias desse momento ou mesmo sobre a importância da entonação.

No volume 2, isso volta a se repetir na apresentação oral de um perfil virtual,

baseado em protagonistas de romances românticos do século XIX. Neste caso, a

atividade parece ainda menos preocupada com orientações sobre o momento de

apresentação, visto que reforça apenas a necessidade de o texto exposto estar em

tamanho ampliado.

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2ª etapa: Apresentação do perfil: No local escolhido para a apresentação dos grupos (sala de aula, laboratório de informática, etc.), dois representantes escolhidos pelas equipes deverão mostrar o perfil criado aos colegas, explicando, oralmente, os elementos que permitem identifica-lo como a personagem do romance romântico escolhido. Para essa apresentação, sugerimos que os grupos façam a impressão (ampliada) da página do perfil ou projetem a imagem da página para a sala toda, se isso for possível. Dessa forma, todos os colegas poderão visualizar os elementos destacados na apresentação oral que os representantes de cada grupo farão. (ABAURRE, ABAURRE, PONTARA, 2013b, p. 117)

Ainda neste volume, as atividades de exposição oral (ABAURRE, ABAURRE,

PONTARA, 2013b, p. 159 e 187) mencionam brevemente sobre o uso de tom de voz

apropriado para ser mais bem ouvido, clareza e objetividade da linguagem, além de

adequação desta ao contexto e aos interlocutores.

Por fim, no volume 3, considerando que o “Blog literário” trabalhará com

orientação para a produção escrita, apenas a atividade de “Apresentação oral e leitura

dramatizada” indica uma proposta pensada para o trabalho com oralidade. Nesse caso,

porém, retoma-se a mesma estrutura já vista em outros volumes, em que o foco é

apenas dizer o papel de cada um e o que deve ser dito, sem muita reflexão sobre como

fazer isso.

Em todos esses casos, as propostas de uso da linguagem oral parecem estar a

serviço de uma prática escolar, sem função de reflexão efetiva para levar o aluno a

compreender a oralidade, tanto em relação às características de enunciados orais,

quanto em relação a uma maior reflexão sobre o gênero discursivo selecionado.

Oralidade como pretexto para outros fins

Quando identificamos na coleção propostas em que se faz a menção a um

gênero oral, em que este não é explorado, mas está a serviço de outras práticas e/ou

atividades, entendemos que a oralidade é mencionada apenas como um meio para se

chegar a outro objetivo. São essas as atividades que comentaremos a seguir.

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O boxe “Produção oral”, localizado no interior das propostas do eixo de

“Produção de texto”, é apresentado em apenas dois momentos no volume 1 e uma vez

no volume 2.

Quadro 4 – Propostas apresentadas no boxe “Produção oral”

(ABAURRE, ABAURRE e PONTARA, 2013d)

A solicitação para a criação de um spot de rádio, no volume 1, ocorre no

interior de um capítulo em que estão sendo apresentados textos publicitários. Ao

aluno, a orientação sobre que gênero é este ocorre ao lado do boxe, como uma

entrada de verbete de glossário, em que se lê: “Spot de rádio: texto comercial para

transmissão radiofônica” (ABAURRE, ABAURRE, PONTARA, 2013a, p. 372).

O encaminhamento proposto leva o aluno apenas a escrever o texto,

considerando os interlocutores, mas sem possibilidade real de produção oral, visto que

em nenhum momento o aluno é orientado a divulgar oralmente o texto escrito.

PRODUÇÃO ORAL

Como poderia ser um spot de rádio para vender um raio de sol? Sob orientação do professor, dividam a classe em grupos de no máximo quatro pessoas. O professor sorteará para cada grupo um dos seguintes segmentos: executivos, adolescentes, mães, aposentados, pescadores. Pensem no perfil do segmento sorteado para o grupo de vocês e redijam o texto, que não deve exceder dois minutos. (ABAURRE, ABAURRE, PONTARA, 2013a, p. 372).

A proposta, então, parece ser apenas um pretexto para “mostrar” mais um

gênero da esfera publicitária, foco do capítulo, visto que não há ensino e nem situação

de circulação para a produção.

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Semelhante a isso é a orientação para facção de um debate, neste mesmo

volume. A orientação para a discussão sobre bullying ocorre como uma das etapas da

produção de um anúncio publicitário sobre esse tema. Assim, para se produzir o

anúncio, a sequência didática propõe: (1) pesquisar sobre o tema; (2) debater; (3) fazer

leituras sobre o assunto; (4) fazer novas pesquisas na internet; (5) elaborar o anúncio;

(6) revisar o texto. O debate, pois, serve como instrumento para a alimentação

temática, com vistas à escrita do anúncio. Para sua produção, são dadas algumas

questões a partir das quais os alunos devem expor sua opinião, fundamentando-a a

partir de fatos concretos. As orientações dadas limitam-se a isso, sem qualquer

reflexão sobre entonação, reflexão sobre a linguagem oral etc.

Por fim, a última orientação do boxe “Produção oral”, aparece no volume 2,

em um capítulo cujo gênero em estudo é a crônica. A proposta feita é a apresentação

oral de letras de canção que têm semelhanças com as crônicas.

PRODUÇÃO ORAL

Dividida em equipes de quatro pessoas, a turma deve montar uma seleção de “crônicas musicais”. Cada equipe deverá selecionar uma letra de canção que apresente um encaminhamento semelhante ao de uma crônica, ou seja, deve partir de uma observação ou experiência de caráter mais pessoal do eu lírico que motiva uma reflexão a respeito daquilo que ele observa ou vive.

Escolhida a letra da canção, a equipe deve organizar uma apresentação para a classe. Os integrantes do grupo podem cantar a música (acompanhados por instrumentos ou não), ou podem reproduzi-la. Cada equipe deverá fornecer para a classe a letra da canção escolhida, explicar para todos oralmente o que está sendo observado ou vivido pelo eu lírico e que reflexões ele faz a partir dessa observação ou vivência. Se a letra da canção apresentar outras características da crônica (se tiver humor, por exemplo), isso também deverá ser ressaltado. (ABAURRE, ABAURRE, PONTARA, 2013b, p. 359).

Mais uma vez, o objetivo maior é o reforço às características do gênero

principal do capítulo, sem preocupação com aspectos da oralidade. O trabalho

principal do aluno é pesquisar a canção. A “apresentação” restringe-se a uma

explicação de o porquê de essa canção ser adequada ao objetivo proposto. Há, então,

um esvaziamento da proposta de trabalho com a oralidade. Esta é usada apenas como

pretexto para reforçar as especificidades do gênero do capítulo.

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Considerações Finais

A análise empreendida a partir das seções e boxes da coleção evidenciou que

a oralidade como objeto de ensino não parece ter sido o foco de estudo nessa coleção.

Há, nela, uma predominância de atividades que, embora mencionem algum trabalho

com a oralidade, seja pela escolha de um gênero oral, seja pela menção a isso no

enunciado da proposta, não favorecem uma reflexão real das especificidades da

linguagem oral ou a construção bem clara sobre as características de um determinado

gênero relacionado a essa modalidade.

A concepção de oralidade advinda dessa proposta caracteriza uma visão em

que esta é entendida como atividade-meio e não como atividade-fim (BARROS-

MENDES, 2005), distanciando-se, assim, de uma concepção mais enunciativa de estudo

da língua/linguagem.

O pouco trabalho com oralidade e a opção por uma abordagem que não a

tome como objeto de ensino evidencia o apagamento da voz do aluno, visto que sem

propostas que favoreçam a tomada de posição em situações de interação oral, não há

como o Ensino Médio cumprir seu propósito de formar alunos capazes de exercer seu

papel de cidadãos nas mais diversas situações da vida. Assim, ao menos em relação à

oralidade, ainda há um longo caminho a percorrer nesse nível de ensino.

Referências

ABAURRE, Maria Luiza M.; ABAURRE, Maria Bernardete M.; PONTARA, Marcela. Português: contexto, interlocução e sentido. Ensino Médio, 1º ano. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2013a.

______; ______; ______. Português: contexto, interlocução e sentido. Ensino Médio, 2º ano. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2013b.

______; ______; ______. Português: contexto, interlocução e sentido. Ensino Médio,

3º ano. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2013c.

______; ______; ______. Português: contexto, interlocução e sentido. Ensino Médio.

2.ed. São Paulo: Moderna, 2013d. v. 1, 2 e 3.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 6.ed. Trad.

Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1952-53/1979/2011.

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São Paulo: Hucitec, 1929/2002.

BARROS-MENDES, Adelma das Neves Nunes. A linguagem oral nos livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental – 3º e 4º ciclos: algumas reflexões. 2005. 211p. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem). Programa de estudos pós-graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2005.

BRASIL. Ministério da Educação e da Cultura. Guia de livros didáticos – PNLD 2015.

Brasília: MEC/SEB/FNDE: 2014. Disponível em < http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/guias-do-pnld/item/5940-guia-pnld-

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______. ______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares

Nacionais: primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997.

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______. ______. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros

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ENTENDENDO O ENSINO DA METÁFORA E DA METONIMIA

Maria Inês Batista Campos (USP) Isabella Duarte Chaves (USP)

Introdução

Na Iniciação Científica intitulada “A metáfora e a metonímia nos materiais

didáticos”, o objeto de estudo escolhido foi a compreensão da estilística em manuais

didáticos, tema articulado ao projeto de pesquisa do CNPq “Letramentos, ensino e

memória: a teoria dialógica da linguagem”, da Professora Drª Maria Inês Batista

Campos. O ponto de partida do trabalho foi recuperar os fundadores da estilística do

início do século XX com os alemães Karl Vossler (1872 – 1949) e Leo Spitzer (1887 –

1960) na corrente idealista, que enfatizavam a criação expressiva individual. Já com

Pierre Guiraud (1912 – 1983) na França, a concepção foi de uma estilística da língua ou

da expressão (linha estruturalista do suíço Charles Bally), com ênfase à expressividade

do sistema.

Ainda procurando esclarecer o campo, a consulta a determinadas obras

especializadas brasileiras como a de J. Mattoso Câmara Jr. (1904-1970) permitiu definir

a Estilística como “disciplina linguística que estuda a expressão em seu sentido estrito

de EXPRESSIVIDADE da linguagem, isto é, a sua capacidade de emocionar e

sugestionar. Distingue-se, portanto, da gramática, que estuda as formas linguísticas na

sua função de estabelecerem a compreensão na comunicação linguística. A distinção

entre a estilística e a gramática está assim em que a primeira considera a linguagem

afetiva, ao passo que a segunda analisa a linguagem intelectiva" (CÂMARA JR., 1977, p.

110). Essa estilística linguística, como mostraremos a seguir, não contempla a

combinação de linguagens e estilos que fazem a singularidade da estilística do gênero,

proposta pelo russo Mikhail Bakhtin.

Observa-se, assim, que a estilística presente nos livros didáticos de português para o

ensino médio acaba se ocupando em boa parte das figuras de linguagem, ainda que não se

reduza a ela. Dessa forma, é relevante discutir como as propostas didáticas se aproximam/

distanciam do conceito de estilo, muitas vezes, com foco no sentido figurado da linguagem

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comum. Neste artigo, o objetivo é discutir a didatização das figuras de linguagem, em especial,

a metáfora e a metonímia no livro Para entender o texto: leitura e redação, de José Luiz Fiorin

e Francisco Platão Savioli, publicado pela primeira vez em 1990 pela editora Ática. Três

décadas de re-edições recomendam a obra e sua importância e na edição de 2007 sinalizam a

mudança do interlocutor na capa: dirigida a universitários.

Diferentes perspectivas do conceito de estilo

A consulta a duas obras especializadas indica que o termo “estilo” pode ser

abordado de diferentes maneiras, de modo que ainda de maneira breve vamos

retomar esse conceito para analisarmos o capítulo escolhido do livro didático. Segundo

Garcia, “estilo é a forma pessoal de expressão em que os elementos afetivos

manipulam e catalisam os elementos lógicos presentes em toda atividade do espírito.

Portanto, quando falamos em feição estilística da frase, estamos considerando a forma

de expressão peculiar a certo autor em certa obra de certa época” (1972, P. 85). No

entanto, ele não considera a finalidade comunicativa para a realização dessa seleção

de recursos da língua, desconsiderando, assim, o interlocutor.

A estilística do gênero, proposta por Mikhail Bakhtin, entre 1934-1935, partiu da

colocação dos principais problemas relacionadas à concepção da longa tradição de estilo e se

apoia na prosa romanesca para mostrar a variedade da linguagem viva.

A estilística tradicional desconhece o tipo de combinação de linguagens e de estilos em uma unidade superior e carece de um enfoque do peculiar diálogo social das linguagens do romance. É por isso que a análise estilística não se orienta no sentido da totalidade do romance, mas apenas de uma ou outra unidade estilística subordinada do mesmo. O pesquisador passa à margem da peculiaridade basilar do gênero romanesco, substitui o objeto da pesquisa e, em vez de analisar o estilo do romance, analisa algo que, no fundo, é completamente diverso (BAKHTIN, 2015, p.30).

Segundo Brait, a concepção bakhtiniana de estilo não está ligada ao que o

senso comum considera como estilo, algo subjetivo, que diz respeito somente ao

particular, ao individual, uma vez que a linguagem se baseia na relação e considera a

figura do outro. No seu profundo artigo, a pesquisadora recupera a citação do escritor

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e naturalista francês do século XVIII George Louis Buffon (1707-1788) “O estilo é o

homem” (1753), e mostra que o estilo depende, pelo menos, de um falante e um

ouvinte, elementos integrantes das obras artísticas. O ouvinte, por sua vez, está no

que se chama posição bilateral, ligada ao autor e ao herói, o que confere um caráter

social e determina a forma da enunciação e o estilo (BRAIT, 2013, p. 83-84). O estilo

pode ser entendido como as escolhas de recursos de linguísticos feitas pelo usuário de

uma língua a fim de gerar efeitos de sentido. No entanto, ele trabalha com esse

conceito a partir de uma perspectiva dialógica, em que essa escolha é de

responsabilidade do enunciador, o qual, por sua vez, deve levar em consideração o

enunciatário e o contexto social de enunciação. Dessa maneira, o estilo deve estar

presente no enunciado em função de uma proposta comunicativa. Com relação a essa

ideia de estilo como escolha de recursos linguísticos, a pesquisadora brasileira também

retoma o texto “O autor e o herói na atividade estética”, assinado por Bakhtin, e

mostra a definição desse conceito como conjunto operante de procedimentos de

acabamento. Essa definição é associada à relação entre o autor e a utilização que este

faz da língua, e Brait explica:

Via material impresso transparece, na verdade, a relação do autor com a vida, ou seja, o estilo artístico não trabalha com palavras, mas com os componentes do mundo, com os valores do mundo e da vida , podendo, portanto, o estilo ser definido como o conjunto dos procedimentos de formação e de acabamento do homem e do seu mundo (BRAIT, 2013, p. 87).

Em um texto com foco na discussão do ensino da gramática na escola, Bakhtin

se posiciona contra a abordagem normativa. Para desenvolver seu argumento, propõe

que o ensino precisa estar articulado com o ensino da estilística, para que o aluno

possa desenvolver um conhecimento da língua em uso. Então, explica o professor

Bakhtin, a gramática ensinada isoladamente não leva o aluno a compreender a língua e

menos ainda como utilizá-la. Ele mostra a importância do entendimento de que cada

uma das escolhas na língua provoca, de acordo com o leitor e o gênero discursivo.

A partir daí o filósofo russo destaca alguns aspectos do ensino de gramática

partindo de elementos da estilística, conduzindo os alunos a optarem por um período

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composto sem conjunção na produção textual. Esse procedimento atribui significado

linguístico ao conteúdo tradicionalmente gramatical, levando os estudantes a

compreenderem a importância das escolhas dos recursos linguís ticos para a

significação textual desejada, ou seja, a compreenderem a construção de enunciados

em sua realidade viva.

Ao voltarmos para as orientações apresentadas nos Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) com relação ao ensino da Estilística, na seção

dedicada às competências e habilidades, observamos as indicações:

Analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção/recepção (intenção, época, local, interlocutores participantes da criação e propagação de ideias e escolhas, tecnologias disponíveis etc.) (BRASIL, 2000, p. 14).

Sobre o estilo, apresenta a seguinte afirmação: “quanto mais dominamos as

possibilidades de uso da língua, mais nos aproximamos da eficácia comunicativa

estabelecida como norma ou a sua transgressão, denominada estilo” (BRASIL, 2000, p.

21). Em resumo, as aulas de Língua Portuguesa devem trabalhar não mais no limite da

palavra, mas “basear-se em propostas interativas língua/linguagem, consideradas em

um processo discursivo de construção do pensamento simbólico, constitutivo de cada

aluno em particular e da sociedade em geral” e “o estudo da gramática passa a ser

uma estratégia para compreensão/interpretação/produção de textos” (BRASIL, 2000,

p. 18).

Diferentes abordagens dos conceitos de metáfora e metonímia

Nesta seção, serão apresentados os conceitos de metáfora e metonímia sob as

perspectivas dos seguintes linguistas: Roman Ossipovitch Jakobson (1896-1982),

Oswald Ducrot (1930 - ), Tzevan Todorov (1939 - ), Pierre Guiraud (1912-1983), Othon

Garcia (1912-2002) e José Luiz Fiorin (1942 - ).

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Jakobson foi um dos criadores do formalismo, método de crítica literária

aplicada às narrativas e à poesia, e o transferiu para os estudos da linguagem, gerando

o estruturalismo linguístico. Dessa maneira, os conceitos de metáfora e metonímia

passaram a ser considerados não somente do ponto de vista literário, mas foram

atribuídos também aos signos, o que permitiu uma análise mais ampla, levando em

conta textos verbais e não verbais.

O autor explica que é possível combinar o signo linguístico de duas maneiras

diferentes: pela seleção e pela combinação. Na primeira, um signo pode ser

substituído por outro que é similar em um aspecto e diferente em outro, enquanto na

segunda, o signo sempre vem acompanhado de outros signos combinados. Nesse

sentido, o modo de processar a linguagem pela semelhança corresponde ao que se

conhece por metáfora (a substituição de um termo por outro semelhante

semanticamente ou analogia), a qual constitui um dos processos indispensáveis para a

comunicação (JAKOBSON, 1981, p. 42-78).

Os linguistas Ducrot e Todorov definem o conceito de metáfora como o

“emprego de uma palavra que se assemelha e no entanto difere de seu sentido

habitual” (DUCROT; TODOROV, 1977, p. 266).

Já Guiraud (1954) considera as figuras de linguagem a partir de uma

perspectiva relacionada com a Retórica, ou seja, como recursos para enobrecimento

do estilo de um texto. A metáfora se encaixa no grupo de figuras de palavras ou

tropos. Ela se refere às mudanças de sentido e podem ser de nove tipos, com várias

situações de ocorrência, embora não exploradas (GUIRAUD, 1978, p. 26-27).

No trabalho Comunicação em prosa moderna, Garcia apresenta uma

abordagem do conceito de metáfora semelhante a de Jakobson. Antes de apresentar a

definição, ele explica as possíveis motivações para a utilização deste recurso: “A

existência de similitudes no mundo objetivo, a incapacidade de abstração absoluta, a

pobreza relativa do vocabulário disponível em contraste com a riqueza e a

numerosidade das ideias a transmitir e, ainda, o prazer estético da caracterização

pitoresca constituem as fontes da metáfora” (GARCIA, 1972, p. 76-77). Assim, ela não é

utilizada somente na ausência de uma expressão mais adequada, mas também quando

um impulso “pede” a utilização da metáfora.

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Com relação à definição de metáfora, o autor explica que

Em síntese - didática -, pode-se definir a metáfora como a figura de significação (tropo) que consiste em dizer que uma coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo espírito entre um traço característico de A e o atributo predominante, atributo por excelência, de B, feita a exclusão de outros, secundários por não convenientes à caracterização do termo próprio A (GARCIA, 1986, p. 85).

Além disso, explicita que a metáfora pode ser de dois tipos: in praesentia,

quando os dois elementos comparados estão presentes na sentença; e in absentia,

quando apenas um dos elementos, o comparante, aparece. Por fim, a metáfora se

diferencia da símile pela ausência de expressões comparativas explícitas (como, tal

qual, tal como, parece, assemelha-se, etc.). A presença de um desses elementos

caracteriza a símile.

No trabalho Figuras de retórica, Fiorin classifica as figuras de linguagem como

tropos ou figuras não trópicas, e, cada uma delas, em subdivisões. Classifica a

metáfora como um tropo por concentração semântica: “A metáfora é uma

concentração semântica. No eixo da extensão, ela despreza uma série de traços

comuns a dois significados que coexistem. Com isso, dá concretude a uma ideia

abstrata [...], aumentando a intensidade do sentido” (FIORIN, 2014, p. 34). Por esse

motivo, o autor afirma que a metáfora tem um grande valor argumentativo. Ele ainda

resume essa figura de linguagem, dizendo que “a metáfora é, pois, o tropo em que se

estabelece uma compatibilidade predicativa por similaridade, restringindo a extensão

sêmica dos elementos coexistentes e aumentando sua toniciade” (FIORIN, 2014, p.

34).

No que diz respeito ao texto verbal, o autor afirma que a metáfora pode ser

encontrada nas dimensões da palavra, da frase e do texto. Entretanto, ressalta que

ela pode ser também visual, como um recurso comumente observado na publicidade

e na arte. No caso de textos verbais que se constituem inteiramente como metáforas,

como, por exemplo, as fábulas, dá-se o nome de alegoria.

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Metonímia

Ao mencionar a forma de processar a linguagem por combinação ou

contiguidade, Jakobson expressa a metonímia por um processo no qual um termo, ao

ser substituído por outro de mesma “família” semântica, permite que a parte adquira

o significado do todo, ou o todo adquira o significado da parte. Assim como a

metáfora, trata-se um mecanismo indispensável para viabilizar a comunicação.

A transcrição da definição de metonímia apresentada por Ducrot e Todorov, é

como o “emprego de uma palavra para designar um objeto ou uma propriedade que

se encontram numa relação existencial com a referência habitual” (DUCROT;

TODOROV, 1977, p. 267).

Para Guiraud, a metonímia também é uma figura que se encaixa no grupo de

figuras de palavras ou tropos. A definição dada a ela é breve, e afirma-se que a

metonímia consiste na expressão do continente pelo conteúdo (GUIRAUD, 1978, p. 26-

27).

Com base na Antiguidade, também as figuras são vistas como ornamentos e

podem ser do tipo ornamento fácil, quando pertencem ao grupo das figuras de

construção ou do pensamento (hipérbole, antítese, apóstrofe, entre outros), ou

ornamento difícil, quando são tropos (caso tanto da metáfora quanto da metonímia)

(GUIRAUD, 1978, p. 27).

Com relação à metonímia, Othon Garcia explica que ela consiste numa relação

qualitativa entre dois elementos, e mostra que essa relação pode ser de vários tipos,

os quais ele enumera como: “I) o autor pela obra; II) o continente pelo conteúdo; III) a

causa pelo efeito e vice-versa; IV) o todo pela parte e vice-versa; V) a matéria pelo

artefato (GARCIA, 1972, p. 82-83).

Em uma importante nota de rodapé (p. 83), Garcia se refere aos estudos de

Jakobson sobre a afasia, que foi publicado em português na coletânea Linguística e

Comunicação, de 1969, explicando que “a metonímia se baseia numa relação de

contiguidade, e a metáfora, numa relação de similaridade” (1972, p. 83).

Já Fiorin classifica a metonímia como um tropo por difusão semântica, na qual

um valor semântico é transferido a outro. Além disso, o autor afirma que esse tropo

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“dá uma maior velocidade ao sentido” (2014, p. 37). Com isso, ele pretende explicar

que quando um efeito é enunciado, por consequência, a sua causa também o é, e,

assim, a metonímia possui um grande valor argumentativo.

A metonímia pode ser desenvolvida em pelo menos nove tipos, os quais

representam relações de contiguidade. Elas podem ser de causa e efeito; instrumento

e autor; continente e conteúdo; lugar e objeto que o caracteriza; símbolo e aquilo que

é simbolizado; coisa e ser que ela caracteriza; símbolo e simbolizado; autor e obra;

marca e produto; abstrato e concreto; entre outros (FIORIN, 2014, p. 37-38). Por fim, o

autor resume:

A metonímia é, pois, o tropo em que se estabelece uma compatibilidade predicativa por compatibilidade predicativa por contiguidade, aumentando a extensão sêmica com a transferência dos valores semânticos de um para outro dos elementos coexistentes e aumentando sua aceleração com a supressão de etapas de sentido (FIORIN, 2014, p. 38).

Reforça-se, ainda, o fato de que esse tropo pode estar presente nas linguagens

verbal e visual e em outras linguagens, como, por exemplo, nas placas de trânsito.

Dos documentos oficiais a Para entender o texto

Nas últimas décadas do século XX, os documentos oficiais do Ministério da

Educação, como os PCNEM, apresentaram novas abordagens para o ensino da língua.

As novas propostas, no caso desse documento, são facultativas, no entanto, não são

efetivas se não forem, de fato, postas em prática. De acordo com os PCNEM,

A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido (...). Produto e produção cultural, nascida por força das práticas sociais, a linguagem é humana e, tal como o homem, destaca-se pelo seu caráter criativo, contraditório, pluridimensional, múltiplo e singular, a um só tempo (BRASIL, 2000, p. 5).

O documento acrescenta que “a organização do espaço social, as ações dos

agentes coletivos, normas, os costumes, rituais e comportamentos institucionais

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influem e são influenciados na e pela linguagem, que se mostra produto e produtora

da cultura e da comunicação social” (BRASIL, 2000, p. 6).

Com relação ao ensino de Língua Portuguesa (LP), critica-se um estudo da

linguagem que apenas vislumbre o seu caráter formal e desconsidere a sua relação

com o contexto, com a semântica e até com a gramática, pois isso retira do aluno uma

visão do caráter intra e intersubjetivo e social da linguagem. Afirma-se que

Considera-se que a compreensão das significações dadas, em diferentes esferas, às várias manifestações contribua para a formação do aluno, dando a ele a possibilidade de aprender a optar pelas escolhas, limitadas por princípios sociais, e de ter o interesse e o desejo de conservá-las e/ou transformá-las (BRASIL, 2000, p.7).

Assim, com relação ao ensino de LP, deve-se visar à comunicação, “processo de

construção de significados em que o sujeito interage socialmente, usando a língua

como instrumento que o define como pessoa entre pessoas. A língua compreendida

como linguagem que constrói e “desconstrói” significados sociais” (BRASIL, 2000, p.

17).

Esse conteúdo pode ser encontrado nos livros didáticos, com frequência, como

um apêndice da gramática, em um formato de listas de nomenclatura, definições e

exemplos, apontando para uma perspectiva tradicional do ensino da língua e da

linguagem. Entretanto, os documentos oficiais do Ministério da Educação, desde os

PCN, vêm propondo uma nova abordagem para o ensino de Língua Portuguesa, a qual

vise o estudo da língua em uso e promova uma reflexão acerca dos recursos

linguísticos.

De acordo com Cortina, Para entender o texto: leitura e redação atingiu “o

patamar dos best-sellers dos livros didáticos” (2015, p.70), uma vez que a obra foi

muito bem recebida pelo público e tem sido adotada por muitos professores de Língua

Portuguesa. Segundo Cortina, o livro pode ser considerado inovador porque foi

elaborado com base na perspectiva semiótica da escola de Paris e, dessa forma, não

traz o mesmo discurso e os mesmos objetivos dos demais livros didáticos presentes no

mercado.

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A coleção está organizada em um prefácio, 44 lições, apêndice, resumo,

resenha e bibliografia. As lições, como são chamadas no sumário (e não unidades e

capítulos), estão todas relacionadas, de algum modo, ao texto, enquanto nível de

análise.

FIGURAS 1 e 2: Capa e primeira página do prefácio

(PLATÃO; FIORIN, 1991)

(PLATÃO; FIORIN, 1991)

No prefácio, os autores defendem que o principal objetivo do professor é

capacitar seu aluno a ser “um leitor autônomo e um produtor competente de textos

[...] e Este livro se baseia antes no pressuposto de que a explicitação dos mecanismos

de produção de sentido do texto contribui decisivamente para melhorar o

desempenho do aluno na leitura e na escrita” (PLATÃO; FIORIN, 1991, p. 3).

Esse livro apresenta como proposta oferecer os conhecimentos necessários

para que o aluno possa ler e produzir textos com proficiência, articulando o contexto

sócio-histórico em que o texto foi construído e os mecanismos de estruturação do

significado. O conhecimento do sistema linguístico é atribuído pelos autores como

uma ocupação das gramáticas. Nas exposições teóricas do livro, os autores explicam

que a terminologia técnica será evitada tanto quanto possível.

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As lições estão estruturadas de maneira relativamente uniforme e constante e

são compostas por cinco momentos: “abertura” com uma imagem e a respectiva

legenda, com função de texto visual; “apresentação do conceito”; “texto comentado”,

tópico em foco; “exercícios”, baseado em novo texto ligado ao assunto da lição;

“proposta de redação”, atividades de produção escrita.

Ponto de partida: lição 14

Denominada “Metáfora e metonímia”, a lição se desenvolve do ponto de vista

discursivo e sintático-semântico, ela é composta de oito páginas. Na lição precedente,

intitulada “Conotação e denotação”, nota-se uma certa progressão na apresentação

dos conteúdos e uma complementariedade. Ao optar por essa apresentação dos

conteúdos, os autores do livro didático partem de conceitos mais gerais de produção

de sentido no texto para, então, chegar mais especificamente aos recursos linguísticos

que a viabilizam, e não o contrário.

Na lição em análise, seis textos compõem a sequência didática com a seguinte

organização:

Quadro 1

Fonte: Elaborado pelas autoras

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Para introduzir a lição, os autores apresentam na página do lado esquerdo, uma

fotografia na parte de cima da página: retrata um grande grupo de homens

aglomerados, envoltos pelas paredes de um caminhão que os transporta em uma

estrada e, ao longe, em plano superior, túmulos de um cemitério cercado por muros;

na parte inferior da página, a fotografia de três pés de pessoas diferentes calçando

chinelos e em situação precária. Pés postos lado a lado, mas não estão presentes seus

pares. De acordo com a legenda, há uma sugestão de “sofrimento de vidas que

perderam qualquer vestígio de lógica”. Dessa maneira, percebe-se que não se tratam

de figuras meramente ilustrativas, mas de textos visuais de função metafórica e

metonímica, respectivamente.

FIGURA 1: seção de abertura

(PLATÃO; FIORIN, 1991, p. 120)

Na primeira seção, “Metáfora e metonímia”, o tratamento dado ao poema “Lua

cheia”, de Cassiano Ricardo, é promovendo uma breve discussão sobre a utilização ou

não das palavras do poema com seus sentidos “próprios”. O resultado revela um

predomínio da necessidade de compreensão dos “mecanismos” que possibilitam esses

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tipos de uso da língua. Pode-se verificar que a abordagem não é por meio de

nomenclaturas da gramática nem por definições, mas uma análise da expressividade

do autor considerando o todo composicional do poema, o que permite ao aluno uma

compreensão do sentido estilístico. Os autores mostram ao aluno como foram

construídas as comparações entre o que se pretendia dizer e as expressões utilizadas

para dizer, esclarecendo a funcionalidade desse tipo de recurso e os sentidos gerados

no texto em questão. Somente ao final os autores atribuem o nome a cada um desses

mecanismos: metáfora e metonímia, ambas figuras de palavra.

FIGURA 2: Abertura da lição

(PLATÃO; FIORIN, 1991, p. 121)

Platão; Fiorin introduzem os dois “recursos retóricos” em duas seções

diferentes. Na seção “Metáfora”, o conceito é introduzido com uma frase ao aluno - “O

interior de São Paulo está coberto por doces mares, donde se extrai o açúcar” -, sem

referência indicando o contexto de que foi retirada a citação. Os autores se restringem

a discutir o significado denotativo e conotativo da palavra “mar” na frase dada e a

questionar “Por que se pode alterar o sentido da palavra ‘mar’?”, explicando pela

presença de traços comuns entre os dois sentidos, aparentemente desconexos

(“grande massa e extensão de água salgada” e “extensa plantação de cana”).

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Feita a comparação, explicam que os fenômenos de alteração de sentido

recebem o nome de metáfora e são “alteração do sentido de uma palavra ou

expressão quando entre o sentido que o termo tem e o que ele adquire existe uma

intersecção”(PLATÃO; FIORIN, 1991, p. 122). Após a conscientização do conceito,

apresenta-se um novo exemplo, também sem referências - “A urbanização de São

Paulo está sendo feita de maneira criminosa, porque está destruindo os pulmões da

cidade”- e explica-se a utilização de “pulmão” como um termo metafórico que

representa “árvore”, pela característica comum de oxigenar.

Os autores ainda orientam o aluno a reconhecer uma metáfora “quando, no

contexto, a leitura do termo no seu sentido próprio fica inadequada, imprópria”, e

exemplificam com a expressão “boião de leite” presente no primeiro poema

apresentado no capítulo, “Lua cheia”, mostrando a inadequação de interpretar a

expressão em seu sentido denotativo, mas a adequação de lê-la como “lua” para o

sentido do texto.

Na seção “Metonímia” (PLATÃO; FIORIN, 1991, p. 123), a mesma estrutura é

preservada. No início, pede-se ao aluno a observação da frase “Se o desmatamento de

nosso território continuar nesse ritmo, em breve não restará uma sombra de pé”, e,

em seguida, discute-se o significado da palavra “sombra” nesse caso, mostrando a

relação de implicação com a expressão “árvore”, na qual uma é efeito produzido pela

outra.

A partir desse exemplo, conceitua-se a metonímia como sendo “a alteração de

sentido de uma palavra ou expressão quando entre o sentido que o termo tem e o que

adquire existe uma relação de inclusão ou de implicação”, e aplica -se essa definição a

outro exemplo: “As chaminés deveriam ir para fora da cidade de São Paulo”. Nesse

caso, discute-se a utilização da palavra “chaminé” em lugar de “fábrica”, mostrando

que a primeira faz parte do significado maior da segunda. Assim, estabelece-se a

distinção entre as duas figuras de palavra. Os autores dizem que a metáfora consiste

numa intersecção de traços significativos enquanto a metonímia se dá por uma relação

de inclusão e implicação.

Mostrada a diferença, os alunos são orientados sobre como reconhecer uma

metonímia: “Quando a leitura do termo no seu sentido próprio produz uma

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inadequação, uma imprecisão de sentido”. Há um exemplo que também não carrega

referências, “No verão, o sol é mais quente do que no inverno”, sobre o qual se diz que

a palavra “sol”, se interpretada pelo sentido denotativo (o astro), tornaria a frase

absurda, levando a conclusão de que deve ser interpretada pelo seu efeito, o calor.

Conclui-se que a metonímia também pode se estender a todo o texto,

exemplificando essa afirmação por meio da seguinte frase: “Comerás o pão com o suor

do teu rosto. Esse pão custará lágrimas”. Explora-se o fato de o “suor” ser resultado de

“trabalho”, portanto, essa é a metonímia geral do texto, levando a compreensão de

“pão” como “alimento” e “lágrimas” como “sofrimento”.

Por fim, os autores comentam o desgaste de certas metáforas e metonímias, as

quais se tornaram clichês por esse mesmo motivo. Faz-se a ressalva da utilização desse

tipo de figura com cautela, visando o efeito de sentido clichê que se pretende gerar.

FIGURA 3: “Metáfora”; “Metonímia”

(PLATÃO; FIORIN, 1991, p. 122-123)

Após a apresentação desses recursos linguísticos, os autores introduzem a

seção “Texto comentado”, contendo o trecho da obra Vidas Secas, de Graciliano

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Ramos, em que aborda a intersecção de Fabiano com o mundo não humano (processo

metafórico).

Ao final do texto, os autores explicam aos alunos que o texto em questão está

construído basicamente com o auxílio do recurso linguístico da metáfora, mostrando

que “Fabiano, ao analisar-se, considera-se, sucessivamente, um homem, um bicho. O

bicho é o ser que, embora não sendo homem, sabe resolver problemas práticos, possui

uma certa esperteza”. Dito isso, os autores exploram essa afirmação, a fim de

explicitar ao aluno o efeito de sentido gerado a partir da utilização da metáfora: “O

texto pretende mostrar que Fabiano é um ser degradado, que está colocado num nível

infra-humano”. Para demonstrar isso, exploram outras expressões utilizadas no trecho

e mostram os sentidos colocados.

FIGURAS 4 E 5: Seção “Texto comentado”

(PLATÃO; FIORIN, 1991, p. 124-125)

Em seguida, há uma seção de exercícios, a qual contém sete questões sobre a

utilização dessas “figuras de linguagem” em um fragmento da obra Memórias

Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Podem ser observados exercícios

constituídos por duas partes: uma que traz uma afirmação, servindo de guia, e outra

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que solicita um retorno, uma resposta do aluno. As questões remetem ao trabalho

apresentado anteriormente sobre metáfora e metonímia e exigem uma compreensão

da utilização delas em um texto.

FIGURAS 6 E 7

(PLATÃO; FIORIN, 1991, p. 125-126)

Na seção final “Proposta de redação”, os autores propõem a leitura do poema

“O bicho”, seguido de uma breve explicação sobre a imagem construída no poema: o

homem, que, por meio de suas atitudes, se assemelha a um animal. Mostra-se ao

aluno que essa é uma construção metafórica, devido à intersecção estabelecida entre

os significados de “bicho” e “homem”, além de explicar que várias são as metáforas

que podem ser criadas a partir da intersecção de características humanas e animais.

Ao explicitar a informação, os autores estabelecem a intersecção entre os elementos

do texto que constroem a metáfora – bicho – homem. Depois da minuciosa leitura

compreensiva e dialogada, a proposta é para que o texto a ser redigido recupere o uso

da metáfora.

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FIGURA 8: Seção final

(PLATÃO; FIORIN, p. 1991, p. 127)

Considerações Finais

Cabe ressaltar a proposta pioneira e inovadora de Platão;Fiorin, que

introduziram o conceito de planos de leitura metafóricos e metonímicos dos textos. A

questão central é que há várias possibilidades de leitura do texto e não se detiveram

em reforçar as questões estritamente gramaticais da língua. A abordagem utilizada

pelos autores para o ensino da metáfora e metonímia serve para que os estudantes se

tornem leitores autônomos e produtores competentes de textos por meio da

“explicitação de mecanismos de produção de sentido”, como apontam no prefácio

(PLATÃO; FIORIN, 1991, p.3).

A abertura com a leitura de uma metáfora e uma metonímia visual é inovadora

para a época de publicação do livro e é interessante por extrapolar a construção

dessas figuras no limite verbal. Além disso, por meio dos textos visuais, foi possível

explicar os conceitos sem a necessidade inicial de apresentar uma lista ou

nomenclatura técnica. Esse aspecto é interessante, pois aproxima o aluno ao

conteúdo, em um primeiro contato, sem precisar recorrer ao serviço tradicional das

gramáticas. Além disso, torna mais concreta a observação do efeito de sentido gerado

pelas figuras naqueles contextos específicos.

Nas seções dedicadas somente à metáfora e à metonímia, no entanto, essa

característica positiva é deixada de lado e a exemplificação deixa a desejar, pois

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apresentam frases soltas, descontextualizadas, separadas de seu contexto de

circulação. Essa situação prejudica a compreensão do efeito de sentido real gerado e a

torna artificial, assemelhando-se à atuação das gramáticas bastante prescritivas, que

não se importam tanto com a unidade textual.

Os exercícios tomam como base o trecho fornecido de Memórias póstumas de

Brás Cubas. De modo geral, as perguntas são bastante interessantes, pois não

apresentam uma abordagem muito tradicional, frequente em diversos livros didáticos,

até mesmo da atualidade. Ao invés de trabalhar com a identificação, transcrição de

metáforas ou metonímias, as questões cobram um entendimento do significado e do

sentido dessas figuras no texto, ou seja, em um contexto determinado, com uma

esfera de circulação específica. Além disso, os exercícios propostos promovem uma

compreensão do texto como um todo, a partir da utilização das metáforas, o que vem

ao encontro da formação de um leitor proficiente.

Para exemplificar essa característica positiva dos exercícios, convém analisar

dois deles, a questão dois e a três.

O texto de base aborda as diferenças nas atitudes dos homens vivos e dos

mortos, mostrando como são contrárias entre si. O enunciado da questão 2

exemplifica algumas dessas atitudes, construídas por meio de metáforas, e dá seu

significado “coisas que as pessoas devem ocultar dos outros” (FIORIN, 1991, p. 126). A

pergunta feita, então, é “Que é que as pessoas devem esconder dos outros?”. Esse

exercício é interessante porque trabalha com o entendimento do significado das

metáforas naquele texto determinado e não somente com a identificação.

A questão 3 é uma continuidade da 2 e traz as palavras que se opõem as deste

exercício. Nessa questão, cobra-se novamente o significado dessas palavras que

compõem as metáforas no contexto de oposição de atitudes de vivos versus mortos,

narrada por aquele narrador específico.

Dessa maneira, os autores Fiorin e Savioli propõem uma abordagem

diferenciada para trabalhar com a metáfora e a metonímia, conteúdos normalmente

encontrados em apêndices das gramáticas. Essas figuras, em Para entender o texto:

leitura e redação, de modo geral, são estudadas de maneira contextualizada, ligadas a

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textos de esferas de circulação diferentes, o que promove uma melhor compreensão

do funcionamento e efeitos de sentido gerados em textos diferentes. A estratégia vem

ao encontro e favorece o objetivo final dos autores: tornar os estudantes leitores

proficientes e produtores competentes de textos, que compreendam recursos de

elaboração de sentidos. A obra com sólida base teórica apresenta consistente

orientação de ensino e de atividades quanto às figuras de linguagem.

Por fim, observa-se uma coerência no que diz respeito aos exercícios, pois não

se tratam de exercícios mecânicos de identificação, transcrição, mas de compreensão

do significado e do sentido em um texto. Assim, são questões que contribuem para o

entendimento da metáfora como um recurso importante na leitura e produção

textual.

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PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA NA TESSITURA DA HISTÓRIA/MEMÓRIA EM MATERIAIS DIDÁTICOS DO MST71

Gesualda de Lourdes dos Santos Rasia (UFPR) Luciana Vedovato (UNIOEST PR)

“A História é filha da memória” (Paul Veyne, 1998).

Introdução

Este estudo tem por objetivo analisar recortes do livro de História destinado a

escolas de assentamentos e acampamentos do MST, produzido por educadores do

Movimento. A análise visa observar como os registros fundacionais sobre a questão

agrária no Brasil constituem-se enquanto tecido da memória, os quais, por se

apresentarem como gestos de resistência, dão visibilidade às tensões e contradições

existentes nos espaços de luta pela apropriação da terra. Para tanto, a análise foca, de

modo mais específico, o processo de colonização e exploração do Brasil pelos

portugueses e, nesse contexto, a divisão da terra em capitanias e sesmarias e sua

subsequente distribuição, no capítulo do livro intitulado “Memórias Coloniais”.

Também atenta, neste entorno, para o modo como a presença do negro e do índio

foi/é discursivizada em suas relações igualmente contraditórias com a terra. O gesto

analítico volta-se para os espaços de ruptura no que tange ao modo de organização da

narrativa tendo em vista o leitor imaginário estabelecido e as designações

empregadas.

A análise do processo discursivo mobiliza centralmente as noções de memória

e de contradição, com vistas a perfazer dialeticamente o trajeto que vai do campo

teórico ao modo como a linearização do discurso põe em cena os jogos de força que

estão em tela acerca de como é dita/contada a questão agrária, de posse e distribuição

de terra no Brasil no âmbito do ensino. Entendemos que a luta pela terra, no que diz

respeito ao MST, materializa-se, pelo discurso da escola, na medida em que esta, com

seus instrumentos e práticas, se nega a reproduzir a história oficial e traz à baila

7171

Este estudo é fruto de pesquisas que contam com fomento da Fundação Araucária, pelo edital Pesquisa Básica e Aplicada/2014.

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lacunas não contadas, silenciadas. E, com isso, concretiza práticas simbólicas dos

sujeitos diretamente envolvidos com a questão em pauta. Desse modo, o livro didático

de História do MST apresenta-se como um conjunto de fontes que deslocam os

saberes sobre uma história linearizada, sucessiva, em que os eventos atendem aos

interesses da superestrutura e das instituições caudatárias do poder, conforme

apontou Vayne (1998), e propõe uma recontagem dos fatos a partir do real histórico

que abarca os camponeses na luta pela terra e, por fim, a organização como um modo

de resistir.

Sobre a Reconstituição da Memória da Colonização do Brasil em Materiais Didáticos

para Assentamentos do MST e os Espaços de Ruptura

Courtine (2009), na obra Análise do Discurso Político: o discurso comunista

endereçado aos cristãos, para estabelecer a relação entre memória e discurso, recorre

ao discurso de Georges Marchais, o Apelo de Lyon em 1976, quando o secretário-geral

do Partido Comunista faz um discurso endereçado aos cristãos, na tentativa de “união

do povo da França” (p.130). A política da mão estendida tinha como objetivo tentar

amenizar o efeito da crise econômica e distanciar-se do socialismo soviético, tentando

estabelecer uma aliança com a igreja. Entretanto, no início da fala do secretário, um

grupo de cristãos fundamentalistas começa a rezar o Credo e a ferida escancarada por

Pio XI de que o Comunismo era “intrinsecamente perverso” (p.103) estava novamente

sangrando. A memória, em termos de Courtine, “irrompe na atualidade do

acontecimento” (p.103). Brasil 2016, nas ruas de um bairro classe média alta de

Curitiba, um boneco com a camiseta e o boné do MST é malhado, como Judas, no

sábado de aleluia. Na camiseta os dizeres “ezercito do Estédile e do Lula”72 mais uma

vez a memória atravessa o acontecimento e se desdobra na forma de “domínio

associado” (FOUCAULT, 2005, p.111) e estabelece “uma rede de relações com outras

formulações que ela repete, refuta, transforma, denega” (COURTINE, 2009, p.104).

Quem é Judas? Quem são os julgadores de Judas? Quem Judas traiu para merecer a

morte? Quem o MST traiu para merecer a morte, o linchamento? Essas questões não

72

Linchadores malham o MST em bairro de classe média em Curitiba, por Jornalistas livres do dia 28/03/2016, disponível em < http://jornalistaslivres.org/2016/03/linchadores-malham-o-mst-em-bairro-de-classe-media-de-

curitiba/> acesso em 28/03/2016

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podem ser abordadas apenas pelo viés da atualidade dos enunciados, pois revelam

uma articulação com um conjunto de enunciados que falam enquanto práticas estáveis

no interior das FDs às quais pertencem, mas também como formulações que são

relacionadas diretamente ao acontecimento: tudo que sabemos sobre Judas, sobre a

traição dele para com Jesus, o filho de Deus, que desencadeou o calvário e a

crucificação é posto em jogo pela imagem do boneco enforcado. Mas a formulação da

inscrição na camiseta, a própria camiseta e o boné acionam nossa memória discursiva,

ou seja, “a existência histórica do enunciado” (COURTINE, 2009, p.106) diante da

atualidade discursiva: o encaminhamento fascista de alguns manifestos pelo

impeachment da Presidenta Dilma.73

Ao usarmos o exemplo acima temos por objetivo tornar material como a

colonização das terras brasileiras, ou ainda, a abordagem da colonização brasileira,

especialmente em materiais didáticos, cristalizou o efeito (ilusão) de que a

propriedade de terra no Brasil é algo da ordem do inquestionável, ou ainda, evidenciar

que a proposta de reforma agrária está diretamente relacionada ao Comunismo e, por

isso, assim como no discurso de Pio XI é perversa e precisa ser combatida. E conforme

nos lembra Orlandi (2012), a memória discursiva desses enunciados que atravessam o

linchamento do boneco são os que nos falam antes, em outro lugar e sobre os quais

(com os quais) estabelecemos, no processo discursivo, laços de concordância ou de

antagonismos.

Pêcheux (2015), no texto Papel da Memória, discute o lugar da regularização da

memória que estabelece com o acontecimento uma relação tensiva e dialética: a busca

da estabilidade pela estruturação repetitiva, a fim de criar uma ordem linear dos

eventos históricos. Tal relação, de acordo com o autor, faz parte de um jogo de força

entre a memória e o acontecimento:

Um jogo de força que visa manter uma regularização pré-existente com os implícitos que ela veicula, confortá-la como ‘boa forma’, estabilização parafrástica negociando a integração do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo. Mas

73 O Brasil, por ocasião da escrita deste trabalho, enfrente uma crise política similar àquela que levou ao período ditatorial: a presidenta Dilma, reeleita em 2014, está sendo acusada de integrar um esquema de corrupção da empresa

brasileira de petróleo - Petrobrás, fazendo com que a luta de classes tomasse as ruas.

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também, ao contrário, o jogo de força de uma ‘desregulação’ que vem perturbar a rede dos implícitos (PECHEUX, 2015, p.47).

Nesse contexto, a determinação dos sentidos nos materiais didáticos

encontrados nas escolas públicas, sobre os modos de ocupação e divisão de terra no

Brasil, via de regra, apresentam-se como um lugar do não conflito, em que a

regularização da memória é feita pela integração, por exemplo, da população indígena

ao acontecimento do ‘achamento’ das terras brasileiras de modo natural. Tal processo

de linearização é discursivisado pela repetição, nos materiais didáticos, da narrativa da

invasão portuguesa e pelo preenchimento das lacunas que pudessem ocorrer durante

o processo de leitura dos materiais didáticos convencionais, por meio do

reconhecimento da resistência indígena, mas só. Vale dizer que o atributo

“convencional” refere-se, aqui, aos materiais distribuídos, organizados e avaliados pelo

governo. O livro base para a relação com o do MST foi o História: Idade Média e

Moderna de Gislane Azevedo e Reinaldo Seriacopi, produzido pela Editora Ática sob a

nomenclatura de Projeto Teláris e é utilizado pelas escolas estaduais de Santa

Maria/RS. Ao falarmos da relação da História com a memória discursiva e a ideologia,

chamamos atenção para o modo como, nesse material, as Capitanias Hereditárias são

tratadas: “Esse sistema, implementado entre 1534 e 1536, constituiu em dividir o

território em quinze faixas de terras lineares e paralelas no sentido leste-oeste. A área

de cada capitania ia do litoral até a linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas

como limite entre as terras sobre o domínio de Portugal que pertenciam à Espanha. A

intenção do governo era que a inciativa privada assumisse a responsabilidade pela

colonização” (AZEVEDO e SERIACOPI, 2012, p.146). Há no excerto uma ressignificação

das expressões governo e iniciativa privada, como se fosse possível pensar em tais

relações naquele período. Mas, assim como no livro do MST, também os autores

trabalham com os efeitos de sentido, aproximando-os do contexto de produção

contemporâneo.

Contudo, o implícito da resistência a que nos referíamos anteriormente é

perturbado a partir do momento que a historiografia passa a ser escrita, também, a

partir da infraestrutura, dos movimentos sociais, quando a ordem dos eventos não

pode mais ser linearizada e a estabilidade da memória é comprometida. Para

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exemplificar a questão da repetição como tentativa de regularidade e planificação da

história, tomemos as sequências discursivas abaixo, tomadas de três materiais

didáticos convencionais diferentes, todos de escolas públicas, acerca da invasão

portuguesa:

SD1 Em 22 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral aportou na costa

atlântica da América do Sul, em uma região que batizou de Porto

Seguro (no atual estado da Bahia). Com isso, a Coroa portuguesa

dava início à conquista de terras na América, tomando posse de um

território que era habitado por indígenas há milhares de anos

(PELLEGRINI; DIAS; GRINBERG, 2010, p.94)74.

SD2 Em 22 de abril [último ano do século XV] uma esquadra chefiada

por Pedro Álvares Cabral chegou ao litoral do que hoje é o estado da

Bahia. Em nome do rei, os portugueses tomaram posse da região à

qual deram o nome de Ilha de Vera Cruz (AZEVEDO;SERIACOPI, 2012,

p.133)75.

SD3 A instauração de uma colônia portuguesa no território

americano não se deu imediatamente após a tomada de posse por

Pedro Álvares Cabral, em 1500 (VICENTINO;DORIGO, 2010, p.31)76.

Se observarmos a organização linguística das sequências discursivas vamos notar

que duas delas iniciam-se praticamente da mesma maneira: a data e o ano do

descobrimento, seguidos do lugar. Na SD1 nos chama atenção a presença do verbo

batizou, o qual aciona, pela existência material do rito, a memória de um conjunto de

signos ligados ao ato de batizar, transformando a terra brasileira não-pagã. Assim, a

estabilidade histórica do processo colonizador é configurada em torno da chegada dos

colonizadores: o discurso fundador do Brasil enquanto Brasil só existe porque os

portugueses aqui chegaram e, ao reforçar a identidade colonizadora, reforçam-se

também os meios de exploração impostos pelos portugueses, apagando a existência

74 Coleção Novo Olhar: História, v.2 São Paulo: FTD, 2010. (Coleção Novo Olhar). 75 Idade Média e Idade Contemporânea. São Paulo: Ática, 2012. (Projeto Teláris: História). 76 História Geral e do Brasil. V.2 São Paulo: Scipione, 2010.

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dos indígenas, das culturas e dos ritos existentes antes de 1500. Esse movimento,

entretanto, de tentativa de manter a lógica histórica é o mesmo que provoca

questionamentos e que desencadeia as fissuras no sistema cristalizado: e os povos que

aqui antes habitavam? Como foi a divisão das terras? Por que os índios precisaram ser

escravizados? A resposta para esses e outros questionamentos instaura na História e

no discurso o efeito de opacidade que, de acordo com Pêcheux (2015)

marca o momento em que os implícitos não são mais reconstruíveis, é provavelmente o que compele cada vez mais a análise de discurso a se distanciar das evidências da proposição, da frase e da estabilidade parafrástica, e a interrogar os efeitos materiais da montagem de sequências, sem buscar a princípio e antes de tudo significação ou suas condições implícitas de interpretação (PÊCHEUX, 2015,p.47-48).

Questionar os efeitos das sequências é questionar como se relacionam a

história e a política e, assim como Veyne (1998) o fez, desde uma perspectiva

foucaultiana, Pêcheux também nos fornece elementos para apreender que a história

está no seio da luta de classes, e que por isso precisa ser lida como uma estabilidade

sempre em vias de ruir diante do aparecimento de uma série de discursivizações que

não estavam na ordem superestrutural como, por exemplo, a sequência discursiva

abaixo:

SD4 Portanto, quando os europeus aqui chegaram, a América já tinha donos havia muito tempo, embora estes não soubessem o que fosse isso: ser donos. Podemos dizer que a luta pela terra no Brasil nasceu naquele mesmo instante em que os portugueses perceberam que estavam em uma terra sem cercas, onde encontravam tudo muito disponível. Os habitantes do local, então, diante de armas e intenções nunca imaginadas, teriam muito que lutar contra esse verdadeiro caso de invasão (MORISSAWA, 2001, p.57)77

O efeito de montagem de sequência linear, garantido pelo uso da repetição

linguística que inscrevia a estabilidade, via discurso, na História, é desmontado quando

a infraestrutura narra o acontecimento a partir de sua perspectiva: a interpretação

passa a ser um gesto de resistência às forças estruturais e reorganiza as questões

77 A história de luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001.

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linguísticas pondo à lume as contradições. Se nas SD1, 2 3 3 havia a perífrase verbal

tomando posse/tomada de posse como a forma de apropriação das terras no Brasil e

dissimulando o implícito de que as terras estavam abandonadas, ou não tinham donos

e por isso podiam ser possuídas, na SD4 esse conjunto de implícitos é desmanchado

pelo substantivo invasão sob a forma de complemento nominal. O que o confronto

entre as sequências discursivas produz também é a própria confrontação entre

sistemas econômicos distintos: de um lado o mercantilismo encaminhando-se para o

pré-capitalismo, e de outro o extrativismo de subsistência que ainda não tinha

nenhuma relação com formas de mais-valia. Então, as formas de narrar nos materiais

didáticos ocupam-se com perpetuar a narrativa determinada em ultima instância pelo

fator econômico (PÊCHEUX, 2009), condição que fica mais evidente conforme

avançamos na análise do material didático do MST.

Assim, no capítulo “Memórias Coloniais”, do livro didático do MST, o trabalho

da/com a língua é o de recontar ou contar de um lugar– a perspectiva da

infraestrutura – como ocorreu a colonização do Brasil. A questão que se pode notar é a

ruptura com o discurso do achamento e do descobrimento: há no material didático

uma crítica contundente ao discurso cristalizado nos materiais didáticos de que o Brasil

foi descoberto, ou ainda, “achado” por acaso, em um erro náutico. O movimento de

reconstituição aqui é feito pelo rompimento com aquilo que Vayne (1998) tratou como

o lugar do romance na História, ou seja, elementos que não podem ser preenchidos,

pois não dizem respeito ao modo de organização dos saberes das classes dominantes

(não fazem parte dos relatos dos vencidos), são escamoteados por cenas que beiram o

romanesco, fazendo com que o sujeito não questione os lapsos, as lacunas, criando a

ilusão de que aquilo que ali está narrado corresponda não apenas à sequência lógica

do desenvolvimento dos eventos, mas também à temporalidade real de tais eventos:

assim, o questionamento sobre o lugar da população indígena fica(va) delimitado ao

contato com os colonizadores, à catequização e ao primeiro modo de trabalho escravo

da colônia.

O ponto de vista proposto pelo material inscreve-se no da resistência: primeiro

considerando que a chegada dos portugueses foi planejada, uma vez que,

economicamente, encontravam-se em desvantagem em relação aos demais países

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europeus, por isso, demandava novas rotas e novos lugares para explorar. Além disso,

sem encontrar resistência, logo trataram de apropriar-se da terra (e não lutar por ela

como encontramos nos livros didáticos convencionais), para torná-las

hereditariamente pertencentes a algum nobre que escolhia quem ali trabalharia.

E na proposição de um lugar de narrativa que oferece voz para a infraestrutura,

o livro e o capítulo em questão deslocam a memória da ordem do factual para os

eventos não factuais e colocam a História no centro da discussão da ideologia: o que se

narra e o modo como se narra é organizado pela ideologia. Assim, observemos o

excerto sobre as Capitanias Hereditárias:

SD5 Eram 15 faixas de terra que variavam de 150 a 600 km de largura, estendendo-se do litoral ao interior até a linha imaginária de Tordesilhas. Olhe o mapa. Imagine você o tamanho delas! Era terra a dar com pau! Os donatários deviam povoá-las, explorá-las com recursos próprios e governá-las em nome da coroa, além de propagar a fé católica em suas terras. (MORISSAWA, 2001, p.58).

O enunciado grifado na Sd5 é o registro da língua fluida, como bem pontuou

Orlandi, (2009) e que não caberia em um material didático distribuído pelo governo,

por exemplo, ela deriva justamente para o lugar dos excluídos, onde a ordem da

formalidade da narrativa histórica encontra seu espanto na contradição: a militância

da narrativa surpreendendo-se com o fato de que já nos primórdios da divisão de

terras no Brasil dois fatores fundantes seriam (e são) perpetuados: a invasão de terras

pelas classes dominantes e a concentração de tais terras para a suposta produção da

demanda que antes era da Colônia e agora centra-se nos mercados mundiais.

Atravessa aqui, em forma de discurso transverso, um conjunto de valores históricos e

sociais relacionados ao lugar da luta pela terra, fazendo ressoar um sujeito que, ao

enunciar sobre a terra, fala de outro lugar, para outros sujeitos que não apenas

desejam saber a “história do Brasil”, mas que passam a questionar sobre o modo como

ela nos é narrada. Abre-se, assim, um novo feixe de saberes possíveis que

reconfigurarão a memória sobre a terra. Além disso, dissolve-se a intangibilidade da

memória criada pelo material didático convencional, pois fica estabelecido um diálogo

com outras vozes participantes do processo de apropriação da terra, especialmente,

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aqueles que não pertenciam à nobreza: Assim os hereges, os índios, os mouros e os

judeus não poderiam ter terra no Brasil. (MORISSAWA, 2001, p. 58). E uma vez

estabelecido esse diálogo, não há mais meios de fazer com que tais formulações não

afetem a produção dos efeitos de sentido sobre a terra no Brasil. Posto isso,

passaremos agora a discutir a relação entre descontinuidade e contradição.

A História como descontinuidade: os espaços de contradição

A perspectiva da história com a qual trabalhamos, reafirmamos, é aquela que

leva em conta os sujeitos imersos em práticas sociais concretas, logo, “têm o homem

como ator”, valendo-nos aqui de expressão de Vayne (1998). Em que pese tratar-se

isso de uma obviedade, a afirmação deste pensador reporta à postulação que ele faz

da história como narrativa apreendida sempre de modo lacunar e incompleto, porque

a partir de uma determinada perspectiva. Afirma ele que “A história é, em essência,

conhecimento por meio de documentos. Desse modo, a narração histórica si tua-se

para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio

documento” (VEYNE,1998, p.8). Efeito de sentido, diríamos nós, pêcheuxtianamente

falando e ainda sustentadas pelo arrazoado que o autor apresenta, especialmente

quando ele diz que “um livro de história não é, na realidade, o que aparenta ser; ele

não trata do Império Romano, mas daquilo que ainda podemos saber sobre esse

império” (VEYNE,1998, p. 12). Ora, não se trata de acesso ao conhecimento por

fragmentos de verdade que restaram verificáveis nas camadas investigativas, mas o

resultado do gesto de leitura-interpretação do autor-historiador, o qual, a partir de

suas escolhas, por entre espaços lacunares, compõe o livro como “um tecido de

incoerência”, cujo “caráter heterogêneo das lacunas não nos impede de escrever algo

a que se dá, ainda assim, o nome de história, e que não hesitamos em reunir a

República, o Império e a Idade Média em uma mesma tapeçaria, embora as cenas que

nelas bordemos não combinem umas com as outras.” (VEYNE,1998, p.12).

Se trouxermos essa concepção acerca do modo de fazer história para os

materiais didáticos oficiais que há décadas têm sido utilizados nos bancos escolares

brasileiros, resta neles fortemente marcada a presença da lacunaridade de que fala

Vayne. Em primeiro lugar porque a narratividade que ali se constitui fica estabelecida a

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partir de um efeito de simultaneidade, como se fatos e períodos se desencadeassem

na linha do tempo em uma sucessão explicitada por relações de causa e efeito. Em

segundo lugar, mas não menos importante e nem desvinculado do anterior, a

impossibilidade de abarcar o todo nessa sucessão implica que “os historiadores, em

cada época, têm a liberdade de recortar a história a seu modo” (VEYNE,1998, p. 13).

Gestos de “escolhas” de parte de quem organiza a narratividade, as quais não são

aleatórias, mas respondem a projetos políticos que orientam a ordem do dizer. Ou

seja, trata-se do real de que falam Gadet e Pêcheux (1984), não isento de falhas, e por

isso estando também o sujeito exposto à contradição. E isto porque, ainda consoante

Pêcheux, “todo processo discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes”

((PÊCHEUX, 1975, p. 92), do que derivam os efeitos de sentido. Se os livros didáticos de

história nos contaram os fatos do ponto de vista dos vencedores como princípio de

evidência, o material produzido pelo MST produz lugares de ruptura do interior da

uma FD que se inscreve essencialmente no lugar da resistência ao poder instituído e à

exploração dos mais fracos: despossuídos dos bens de produção, negros,

marginalizados, índios, imigrantes pobres, entre outros. Esses passam a ser os atores

principais da narratividade. E com isso fica estabelecido um deslocamento que institui

um outro espaço de memória:

SD6 Até pouco tempo atrás diziam que os índios eram preguiçosos e que, por isso, os portugueses preferiam trazer escravos da África. Só muito recentemente, conhecendo melhor sua cultura e seu modo de viver, passamos a entender e a respeitar os povos indígenas (MORISSAWA, 2001, p.19).

A Sd6 propõe uma recontagem de parte da história que compôs nossa

brasilidade. No que concerne à dimensão do trabalho, cujos respingos ainda ressoam

hoje, em uma memória que diz sobre o brasileiro “malandro”, “boa vida”, “fruidor do

samba e do futebol”, a narratividade do livro tenta consertar. Contudo, essa tentativa

se dá por uma via que não escapa à contradição, manifesta na materialidade da língua,

onde se cruza o real da história. Este ponto de encontro pode ser apreendido a partir

das seguintes pistas linguísticas:

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a) Na marcação temporal: na contramão do cânon dos manuais didáticos de

história, o livro em análise não mostra, no caso desta sequência que, no

caso, é uma caixa de comentário, uma datação específica, mas se vale de

marcadores como “até pouco tempo atrás” e “só muito recentemente”. De

um lado, essa estratégia joga com a desestabilização das datas pré-

determinadas para comemoração, do ponto de vista do vencedor; de outro,

gera efeito de sentido, pela indeterminação temporal, de uma mudança, na

ordem das coisas, sem causalidade aparente, em que pese a explicitação

que vem na sequência acerca da reconfiguração sobre os modos como os

indígenas passaram a ser vistos.

b) Na indeterminação da ordem do dizer: a indeterminação na ordem

gramatical, presente na forma verbal “dizer”, é correlata a uma certa

indeterminação na ordem do discurso. Trata-se da ordem do boato, o qual

é definido por Orlandi (2008, p. 134) como “notícia anônima que se

expande publicamente sem confirmação, um modo de dizer em que há

sempre uma diferença a significar, um ruído (protesto ou falta de

verdade)”. Contudo, exatamente por essa condição, trata-se de um fato o

qual, segunda a autora, reclama por interpretação, porque se trata de “um

fato substantivo da história” (ORLANDI, 2008, p. 135).

Assim, perguntamo-nos: era (ou é) discurso corrente que os indígenas eram (ou

são) preguiçosos? E a quem debitar essa discursividade? Em tempos do politicamente

correto, dificilmente algum segmento o assinaria embaixo. E, de outra parte, que

garantia temos de que o discurso sobre o imaginário do indígena como preguiçoso

cessou de circular?

c) Sobre a validação da ordem do dizer: aprendemos com Pêcheux (2006) que

a língua é sujeita ao equívoco, o que o autor nos mostra de modo magistral

no já antológico enunciado “On a gagné”. A partir do enunciado, é possível

perguntarmos, ensina-nos, ele, sobre as possibilidades de deriva acerca de

quem teria ganho as eleições na França de 81. Pensando na equivocidade

do enunciado em tela, podemos nos perguntar acerca de qual parcela da

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população passou a entender e a respeitar os povos indígenas, bem como

sobre os sentidos de “conhecer melhor sua cultura e seu modo de viver”,

considerando-se que esta cultura encontra-se, não raro, em processo de

silenciamento/interdição.

Atentemos para o fato de que a composição do enunciado a partir da

indeterminação pela ordem do dizer, aliada a uma ausência de validação nessa mesma

ordem, constrói-se pelo viés do boato e, ainda, com marcadores de tempo os quais

parecem suspender a história. E a partir dessa materialidade constituem estratégias as

quais dizem respeito aos modos como os saberes sobre história são tecidos no interior

do MST. Tais enunciados linearizam-se, com vistas ao ensino, em acampamentos e

assentamentos, em práticas que não são isentas de suas relações de contradição,

pondo em xeque a própria relação do sujeito sem-terra com tessitura de sua história.

Em que pese esse espaço intervalar, prevalece, na orientação do livro, a ordem da

infraestrutura, pela ruptura política que realiza em relação à narratividade até então

cristalizada, a partir da perspectiva da hegemonia estatal, na qual apenas os

vencedores angariavam espaços. Trata-se, no dizer de Rancière78, da assunção dos

“sem-parcela”, a qual instaura o próprio espaço do político.

Considerações Finais

“A História é filha da memória”, afirma Paul Veyne, coerente com a perspectiva

de história por ele apresentada, como constructo. E a memória, tomada em

perspectiva discursiva, não é lugar de inércia e de depósito, mas movência pura, onde

jogos de forças determinam a produção dos sentidos. Assim, os modos de contar a

História não são isentos das relações ideológicas, aliás, só é possível, dentro de uma

perspectiva materialista de compreensão da linguagem, interpretar (ler) os discursos

se consideradas as relações da história com a ideologia e a língua como um elemento

simbólico, por isso Pêcheux (1975) sabiamente enfatizou a importância dos processos

discursivos. A composição dos modos de narrar é fundamental para compreender

como as classes hegemônicas normatizam e estabilizam a História, mas também para

78 RANCIÈRE, J .(1996). O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed.34.

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saber como a infraestrutura organiza seus modos de resistência: seja escolhendo os

acontecimentos a serem discursivizados ou o modo como a língua funciona dentro

desse outro olhar para a História: os boatos, os marcadores de tempo, as escolhas

lexicais, por exemplo. E é sobre essa movência da memória que podemos tomar a

história como um tecido de incoerências, como também pontou Vayne (1998). Mas a

incoerência está, neste caso, justamente na tentativa de linearizar os acontecimentos

baseados na sucessividade e discursivisá-los considerando apenas os interesses

superestruturais. Por isso, a importância dos processos discursivos para olhar para o

que ficou de fora da narrativa histórica, da dispersão, como constitutiva da própria

história, instaurando das regularidades, no fio ininterrupto do narrar, a incerteza, o

deslocamento.

Diante disso, os recortes analisados colocam-nos ante de um processo

discursivo que diz respeito à relação materialidade linguística e materialidade histórica,

organizadas a partir de outras condições de produção que não são aquelas da classe

dominante, mas tomando como base as forças sociais, provocando deslocamentos da

memória sobre a terra no Brasil. Deslocamentos estes que não são isentos de

contradições porque, conforme afirmado, o real é exposto à falha, à descontinuidade

constitutiva da própria luta de classes. Agitações nas redes de filiações, como diria

Pêcheux, as quais poderão vir a produzir desestabilizações nas redes de memórias e

ressignificações em lugares institucionalizados, tais como, por exemplo, os vetores

norteadores da produção dos materiais didáticos de História não só em

assentamentos.

Referências

AZEVEDO, G.; SERIACOPI R. História Idade Média e Idade Moderna. São Paulo: Ática, 2012 (Projeto Teláris: História)

COURTINE, J.-J. [1981]. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Trad. Nilton Milanez e Carlos Piovezani Filho. São Carlos: EduFSCar, 2009.

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Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2005.

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GADET, Françoise e PÊCHEUX, Michel. Trad. B. Mariani e M.E. Chaves de Mello. A

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ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos, 10. ed. Campinas, SP: Pontes, 2012.

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VAYNE, Paul. Como se escreve a história. Trad. Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp.

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VICENTINO, C.; DORIGO, G. História Geral e do Brasil. V.2 São Paulo: Scipione, 2010.

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MINIBIO

ORGANIZADORES E AUTORES

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Agildo Santos Silva de Oliveira: Doutorando em Letras no Programa de Pós-Graduação

em Filologia e Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, no

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (FFLCH–DLCV–

USP). Orientado pela professora doutora Maria Inês Batista Campo. Mestre em Letras, Estudos

da Linguagem, pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Graduado em Letras:

Português/Espanhol. Desde 2009, desenvolve estudos com Livros Didáticos de Língua

Portuguesa para o Ensino Médio, aprovados pelo PNLEM e, atualmente, com Antologias

Escolares dos Séculos XIX e XX, tendo como referência teórica a filosofia da linguagem dos

estudos bakhtinianos e do Círculo, em específico as noções de gêneros discursivos, enunciado

concreto, relações dialógicas. Contato: [email protected]

Ana Luiza Ramazzina Ghirardi: Professora Adjunta 3 na área de língua e literatura

francesa do departamento de letras da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade Federal de São Paulo, possui mestrado e doutorado em Língua e Literatura

francesa pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado com pesquisa em estudos da

tradução (em sua relação com o ensino) no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.

Atua na área de Letras, com ênfase no ensino de FLE, e nas estratégias de construção da

linguagem literária. É credenciada no Programa de Mestrado em Letras da UNIFESP - campus

Guarulhos. É líder do grupo de pesquisa Língua e Literatura: interdisciplinaridade e docência

(CNPq). Sua pesquisa mais recente tem-se voltado, sobretudo, às relações entre língua e

linguagens, estrutura literária e estruturas linguísticas no ensino de FLE, além do impacto dos

conceitos de multimodalidade e de intermidialidade sobre noções tradicionais de língua.

Contato: [email protected]

Andréa Gomes de Alencar: Possui graduação em Letras (Português / Inglês) pela

Universidade Presbiteriana Mackenzie (2000) e mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da

Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005). Doutoranda em Filologia

e Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP), é professora no Curso de Letras no

Centro Universitário Ítalo-brasileiro, do qual foi coordenadora de 2011 a 2013. É Assistente

editorial da Revista científica “Linha D´água”. Autora de coleções didáticas de português para

os anos iniciais do Ensino Fundamental. Atua como consultora de editoras, fazendo leitura

crítica de obras didáticas. Seu foco de estudo recai sobre ensino/aprendizagem de língua

materna, livro didático de português e formação de professores. Integra o Grupo de Estudos

do Discurso da Universidade de São Paulo (GEDUSP) e o Grupo de Estudos da Linguagem do

Instituto Federal de São Paulo (GELIFSP). Contato: [email protected]

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Carla Candido Gomes de Andrade: Graduada em Pedagogia pelo Instituto Dottori de

Ensino Superior, DOTTORI (2009) e em Letras pelo Centro Universitário Módulo, de

Caraguatatuba. Possui Especialização em Tecnologias em educação a Distância pela

Universidade Cidade de São Paulo, UNICID, (2011). É mestranda do Programa de Linguística da

Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Faz parte do projeto Discurso em Cena da linha de

pesquisa Texto, discurso e ensino: processos de leitura e de produção do texto escrito e falado.

Especialista em Leitura e Produção Textual pela Faculdades Integradas Coração de Jesus

(FAINC) e em Educação a Distância pela Universidade Cidade de São Paulo (UNICID). Atua

como professora de Língua Portuguesa na rede Municipal de Caraguatatuba. Contato:

[email protected]

Cristiane Dominiqui Vieira Burlamaqui: Professora Assistente da Universidade do

Estado do Pará - UEPA. É Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua

Portuguesa da Universidade de São Paulo pelo convênio interinstitucional Dinte r USP/UEPA.

Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Pará (2005) e graduada em Letras pela

Universidade Federal do Pará (2002). É integrante do Grupo de Estudos de Linguagem e

Práticas Inclusivas da Amazônia (GELPEA) – UEPA/ UFPA e pesquisadora do Laboratório de

Pesquisa em Tecnologias da Informação e da Comunicação (LATEC) – UFRJ. Tem experiência na

área de Linguística, com ênfase na Linguística Aplicada atuando principalmente nos seguintes

temas: formação de professores de língua materna, as NTICs no ensino de português,

multiletramentos, novos estudos do letramento, produção de material didático para o ensino

de português e os estudos de Bakhtin e o Círculo. Contato: [email protected]

Danielle Alves da Rocha: Cursa a graduação em Letras, na Escola de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH - UNIFESP). É técnica em

Comunicação Visual pelo Senac. Foi monitora de Literatura Francesa voluntária sob a

orientação da Professora Doutora Maria Lucia Dias Mendes. Participou do grupo de estudo

Vertente do Romance ministrado pela Professora Doutora Maria Lucia Dias Mendes. Integrou

o grupo de estudos Fantástico e suas Vertentes organizado Professora Doutora Renata

Philippov. Atualmente, desenvolve projeto de Iniciação Científica na área de Língua e

Linguagem com bolsa FAPESP sob orientação da Professora Doutora Ana Luiza Ramazzina

Ghirardi. Além disso, é responsável pela organização dos encontros e gerenciamen to de

material selecionado e alocado em pasta em espaço virtual para os participantes da pesquisa.

Contato: [email protected]

Gesualda dos Santos Rasia: graduada em Letras-Português pela Universidade Regional

do Noroeste do Rio Grande do Sul e tem Doutorado em Letras pela Universidade Federal do

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Rio Grande do Sul, na área de concentração Teorias do Texto e do Discurso. Tem sólida

experiência como docente da Educação Básica e atualmente é professora da Universidade

Federal do Paraná, onde atua na graduação e na pós-graduação. Áreas de estudos e de

atuação: texto, discurso, ensino de portuguesa e formação de professores. Coordena o projeto

de pesquisa “A abordagem do texto em perspectiva discursiva na Educação Básica” e é

membro do grupo interinstitucional de pesquisa “Estudos do texto e do discurso:

entrelaçamentos teóricos e analíticos (UFPR-UNICENTRO). Coordena também Projeto de

Iniciação à Docência (PIBID-Português). Realizou, no ano de 2015, pós-doutorado na Université

Paris 8. Contato: [email protected]

Guaraciaba Micheletti: Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo

(1972), mestrado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São

Paulo (1983) e doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela

Universidade de São Paulo (1992). Atualmente é professora titular da Universidade Cruzeiro do

Sul, onde coordena o Curso de Pós-Graduação em Linguística. Aposentada da Universidade de

São Paulo, atuou até 2008 no Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa,

orientando alunos de Mestrado e Doutorado. Tem experiência na área de Letras, com ênfase

em Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: análise do discurso,

leitura, estilística, enunciação, ensino, poesia brasileira. Possui vários artigos e livros

publicados relacionados aos temas de sua atuação. Contato: [email protected]

Isabella Duarte Chaves: discente do curso de graduação em Letras da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Cursa bacharelado

com dupla habilitação em Português e Linguística e licenciatura em Português. Atuou como

monitora na disciplina Língua, Discurso e Ensino, ministrada pela professora Maria Inês Batista

Campos, na qual se trabalha com a análise de livros didáticos de Língua Portuguesa. É

orientada também pela professora e orientadora Maria Inês Batista Campos para a realização

do projeto de pesquisa de iniciação científica intitulado “A metáfora e a metonímia nos

materiais didáticos”, financiado pela Bolsa FFLCH. Essa pesquisa está articulada ao projeto de

pesquisa da orientadora, denominado “Letramentos, ensino, memória: a teoria dialógica da

linguagem”. Contato: [email protected]

Jéssica Cristiane Pereira da Silva: graduada em Biblioteconomia pela Universidade

Federal de Minas Gerais (2009); especialista em Educação pela Universidade de São Paulo

(2013); mestranda em Linguística Aplicada pela Universidade de Taubaté. Atualmente trabalha

como Bibliotecária no Instituto Federal de São Paulo, campus São José dos Campos, e possui

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interesse nos seguintes temas: Análise do Discurso, Política e Gênero. Contato:

[email protected]

José Adson Vasconcelos: graduado em Letras pela Universidade Camilo Castelo

Branco e mestrando em Linguística pela Universidade Cruzeiro do Sul. Durante mais de vinte

anos atuou em diversas funções no Magistério, como Professor de Língua Portuguesa,

Professor de Literatura e Coordenador de área de Língua Portuguesa, na rede pública e em

escolas privadas do Estado de São Paulo. É editor de textos e colaborador em várias editoras

de obras didáticas e de literatura. Desde 2006 é autor de livros didáticos voltados a alunos da

Educação Infantil e também do Ensino Fundamental. Contato:

[email protected]

Luciana Vedovato: professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, graduada

pela Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão/PR, mestre pela Universidade

Estadual de Londrina na área Estudos da Linguagem e Ensino e Doutoranda do Programa de

Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de Estudos

Enunciativos, do Texto e do Discurso. Como professora, atua nas áreas de Estudos Linguísticos,

nos programas de formação de professores do Estado do Paraná – PDE e nos cursos de

formação de professores de assentamentos e acampamentos do Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra (MST). No doutorado, trabalha nas questões referentes ao modo

como a língua, dentro da perspectiva discursiva, funciona como materialidade da resistência às

forças hegemônicas, nas escolas de assentamentos do MST. Contato:

[email protected]

Márcia de Oliveira Lupia: Possui graduação em Letras Português/Inglês pelo Centro

Universitário Assunção-UNIFAI (2002). Mestranda em Linguística pela Universidade Cruzeiro do

Sul (UNICSUL). Atualmente é servidora pública na Universidade Federal do ABC (UFABC)

pertencente ao quadro da Superintendência de Gestão de Pessoas e professora do Curso de

Língua Inglesa Presencial ofertado aos alunos e servidores pela Assessoria de Relações

Internacionais dessa mesma Instituição. Participa do processo de formação da equipe de

multiplicadores de conhecimento desenvolvido pela UFABC. Possui Inglês fluente e atua na

área do ensino de idiomas há 19 anos. Tem experiência em tradução e revisão de textos

acadêmicos e empresarias. Atuou em projetos voluntários na área da Educação. Participa do

Grupo de Pesquisa “Identidades Plurais e Representações Simbólicas”- IPLURES. Estudos e

interesse em: Língua Inglesa, Língua Portuguesa, Discurso, Memória, Identidade, Gêneros, EaD.

Contato: [email protected]

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Maria Cecília Junqueira: mestranda em Linguística do curso Teoria e práticas

discursivas: leitura e escrita - UNICSUL - Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo (2016), sob

orientação da professora doutora Ana Elvira Luciano Gebara. Possui especialização em Língua

Portuguesa, Compreensão e Produção de Textos - Faculdade de Educação São Luis (2009) e

graduação em Letras, Habilitação Tradutor e Intérprete Português Inglês - UNIBERO - Centro

Universitário Ibero-Americano (2001). Atuou como professora do Centro Universitário

Anhanguera de São Paulo (antigo Centro Universitário Ibero-Americano), de 1997 até junho

2015, ministrando diversas disciplinas na área de Língua Portuguesa. Trabalha também como

revisora de textos e elaboradora de material didático. Contato:

[email protected]

Maria Inês Batista Campos: Professora, pesquisadora, orientadora de doutorado e

mestrado na área de Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e

Vernáculas da Universidade de São Paulo. Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da

Linguagem/LAEL. Fez Pós-Doutorado na Universidade de Paris 8, França; na Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS); no LAEL/ PUC-SP. É líder do subgrupo Redes

bakhtinianas que integra o Grupo de Pesquisa GEDUSP (Grupo de estudos do discurso da USP)

e integrante do Grupo de Pesquisa “Linguagem, identidade e memória”. Algumas obras:

Gêneros em rede: leitura e produção de texto; Ensinar o prazer de ler; A construção da

identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil. Suas pesquisas dedicam-se aos seguintes

temas: a teoria de Mikhail Bakhtin e o Círculo, análise dialógica do discurso, ensino de língua

portuguesa, materiais didáticos. Contato: [email protected]

Mayara Evangelista Alegre: Mestranda em Linguística pela Universidade Cruzeiro do

Sul é especialista em Teorias e Práticas da Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero (2010) e

graduada em comunicação social com habilitação em jornalismo pela Universidade Cruzeiro do

Sul (2007). Tem experiências profissionais nas áreas de assessoria de imprensa/comunicação,

comunicação corporativa e comunitária, jornalismo impresso, produções midiáticas

comunitárias, leitura-escrita, gestão de projetos e relacionamento (nacional e multinacional)

de publicações online e offline, bem como no Terceiro Setor na área de comunicação -

educomunicação, atuando em projetos sociais de educação formal e não-formal. Contato:

[email protected]

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Miriam Bauab Puzzo: formada em Letras pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras

de São José do Rio Preto, mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo

(USP), Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo

(USP) e com Pós-Doutorado em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo (PUCSP). Professora aposentada no ensino público do Estado de São Paulo.

Professora aposentada de Língua Portuguesa da Faculdade de Comunicação Social da

Universidade de Taubaté (UNITAU), Professora Visitante do Programa de Mestrado em

Linguística Aplicada (UNITAU), integrante do GT Estudos Bakhtinianos da ANPOLL. Participa do

Grupo de Pesquisa (CNPQ), liderado pela pesquisadora Eliana V. Brito Kozma: Linguística

Aplicada e Comunicação Social: Estudos Interdisciplinares. Atua em projetos que tratam da

Teoria Análise Dialógica do Discurso, de Bakhtin e do Círculo e da linguagem verbo-visual de

textos midiáticos e literários. Contato: [email protected]

Rita de Nazareth Souza Bentes: Professora Assistente do Curso de Licenciatura em

Letras-Libras da Universidade do Estado do Pará - UEPA. É aluna do curso de doutorado

interinstitucional UEPA-USP no Programa de Filologia e Língua Portuguesa. Mestre em

Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN (2007); Especialista em

Língua Portuguesa: Teoria e Prática pela Universidade do Estado do Pará - UEPA (1999);

Especialista em Educação Informática pela Universidade Federal do Pará - UFPA (1996);

Graduada em Letras pela Universidade Federal do Pará (1991). Integrante do Grupo de

Estudos de Linguagem e Práticas Inclusivas da Amazônia-GELPEA, ligado à Universidade do

Estado do Pará (UEPA) e à Universidade Federal do Pará (UFPA), na linha de Estudos de

Letramento e Ensino de Línguas e na linha Práticas Educativas Inclusivas da Amazônia, atuando

especificamente na área dos Estudos Surdos. Contato: [email protected]

Solange Cristina Ferreira: Mestranda em Linguística pela UNICSUL, possui graduação

em Letras - Português e Inglês pela Faculdade de São Bernardo do Campo (1986) e em

Pedagogia (2012) - UNINOVE. É professora de Literatura, mas também lecionou Inglês e

Espanhol. Atualmente é Diretora Escolar na Prefeitura Municipal de Diadema e possui

experiência de 32 anos na área da Educação. Contato: [email protected].

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