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ANO 19 - Nº 229 - DEZEMBRO/2011 - ISSN 1676-3661 EDITORIAL JULGAMENTOS VIRTUAIS NO TJSP: UM DESAFIO NÃO SÓ PARA OS ADVOGADOS ..............................................................1 O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE Juarez Tavares .............................................................2 AUSÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E A POSTURA DO JUIZ À LUZ DO ART. 212 DO CPP Aury Lopes Jr. ...............................................................3 O RECONHECIMENTO DE PESSOAS E COISAS COMO UM MEIO DE PROVA IRREPETÍVEL E URGENTE. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO ANTECIPADA Mariângela Tomé Lopes .......................................6 DOLO E GESTÃO TEMERÁRIA (ART. 4º, PARÁGRAFO ÚNICO, LEI 7.492/86) Luís Greco ......................................................................7 O STF E O HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO: O DIREITO PENAL AINDA É A “INSUPERÁVEL BARREIRA” DA POLÍTICA CRIMINAL! Gisele Mendes de Carvalho ...............................9 LEI MARIA DA PENHA EM FAVOR DO HOMEM Iara Boldrini Sandes .............................................10 LOMBROSO ENTRE NÓS: A PERSISTÊNCIA DA PERSONALIDADE COMO CRITÉRIO DE AUMENTO DE PENA NO DIREITO BRASILEIRO Marcel Soares de Souza ....................................12 PODE O MINISTÉRIO PÚBLICO MANIFESTAR-SE SOBRE A RESPOSTA À ACUSAÇÃO ANTES DE O JUIZ A APRECIAR? Luiz Guilherme Rorato Decaro......................13 A PRISÃO PREVENTIVA PARA A GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA NA LEI 12.403/11 Gabriel Bertin de Almeida................................14 RELEITURA DO CRIME PREVISTO NO ART. 89 DA LEI DE LICITAÇÕES Rodrigo Gomes Monteiro .................................16 COM A PALAVRA, O ESTUDANTE EXPANSÃO DO DIREITO PENAL COMO RESPOSTA AO QUESTIONAMENTO DO PRETENSO OBJETIVO PUNITIVO: O DESVELAMENTO DO LIMITADO PODER DO CONTROLE PENAL Vinicius Gomes de Vasconcellos .................18 DESCASOS OS TRÊS P’S… E MAIS ALGUNS Alexandra Lebelson Szafir ...............................19 CADERNO DE JURISPRUDÊNCIA O DIREITO POR QUEM O FAZ.................1513 JURISPRUDÊNCIA ANOTADA Supremo Tribunal Federal .......................1516 Superior Tribunal de Justiça...................1517 Tribunal Regional Federal .......................1518 Tribunal de Justiça........................................1519 EDITORIAL JULGAMENTOS VIRTUAIS NO TJSP: UM DESAFIO NÃO SÓ PARA OS ADVOGADOS Como uma bomba que cai do céu. Foi deste modo que muitos receberam a Resolução 548/11 do Tribunal de Justiça de São Paulo, a qual instituiu os denominados julgamentos virtuais. A critério da turma julgadora, agravos internos ou regimentais e embargos de declaração poderão ser julgados virtualmente. Caberá ao relator determinar a prévia ciência das partes pela imprensa oficial para o fim de preparo de memoriais ou eventual oposição em cinco dias, à forma de julgamento, bastando a de qualquer delas, sem necessidade de motivação, para impedi-la”. A Resolução, porém, foi mais longe: admite a possibilidade de apelações, mandados de segurança e habeas corpus também serem julgados de maneira virtual, desde que, para eventual oposição ou sustentação oral, seja concedido o prazo de dez dias às partes. Há ao menos duas questões que merecem ser destacadas. A primeira diz respeito à cautela com que se procura introduzir a inovação. Qualquer veto das partes ___ sim, é disso que se trata, porque oposição sem fundamentação é veto ___ impede o julgamento virtual. Isso já revela que se trata de um experimento. Portanto, parte-se do princípio que a aceitação dos envolvidos domina a aplicação da virtualidade, o que revela o caráter democrático da proposta. A segunda questão atina com a validade da reali- zação dos julgamentos virtuais. Em recente discussão que a Folha de S. Paulo propiciou, na prestigiada seção “Tendências e Debates”, de 22.10.2011, o Presidente do Conselho Federal da OAB, Ophir Cavalcanti, manifestou-se contrariamente à proposta, afirmando que “o problema é estrutural e não virtual”. Partindo da premissa de que a Resolução em questão escamoteia as deficiências estruturais e crônicas do Judiciário, passou a criticar abstratamente seus “hábitos” e sua “estrutura”. Por outro lado, o Desembargador Renato Nalini, do TJSP, defendendo o novo método de realizar julgamentos, começou com um desafio: só pode ser contra a Resolução “quem não conhece ___ ou não interessa conhecer ___ como são decididas as causas” (“deixem a justiça evoluir”). Os atores da cena forense parecem não se ouvir. Sim, a Justiça tem problemas estruturais, mas a inovadora proposta não os escamoteia e, tampouco, os perpetua. Joga a favor da celeridade e, por pa- radoxal que seja, favorece também a qualidade das discussões públicas nos casos em que os profissionais atuantes (advogados, membros do Ministério Público e desembargadores) assim o exigirem. De fato, com o desafogo da pauta de julgamentos, será possível discutir, com mais tempo e mais aprofundadamente, as questões de maior relevo e nas quais há dissen- so. O que não se pode admitir é que o tempo da sessão pública seja tomado por julgamentos que, na verdade, só na aparência são colegiados. Hoje, os julgamentos de agravos processam-se mecanicamente e podem funcionar muito bem no ambiente virtual. Não é incomum, nas justiças estadual e federal, presenciarmos julgamentos em bloco, por exemplo: do número 7 ao 32 da pauta, “estou negando provimento”, diz o relator; ao que o presidente responde: “é o resultado que se proclama”. Não é para isso que os juízes se devem reunir em sessões públicas. Estas devem ser reservadas para os casos que reclamem discussões e nas quais as partes queiram intervir com suas susten- tações orais e eventuais questões de ordem, aliás, tão importantes para evitarem-se erros judiciais. É preciso ter claro que a inovadora proposta do TJSP pode, sim, representar um avanço, porque, no caso, salvo o desinteresse da parte, não atinge com- pulsoriamente os processos nos quais caiba a defesa oral. Assim, sem prejuízo para a defesa dos litigantes, a Justiça porá à prova um método que representa a consagração de algo que já ocorre na prática com a prévia troca de votos. Se funcionar bem, a experiência poderá ser ampliada, sempre respeitando o sagrado direito constitucional à ampla defesa. Por fim, uma palavra sobre a publicidade dos julga- mentos. Decisões monocráticas ganham vida quando publicadas. Hoje, quando, no Tribunal, um punhado de casos é decidido em bloco, só se terá efetivo conhe- cimento do conteúdo das decisões com a publicação. No julgamento virtual, valerá a mesma coisa. Dessa forma, se, amanhã ou depois, ações penais originárias também forem julgadas no ambiente virtual, terá que mudar o entendimento de que o marco interruptivo da prescrição é o do dia em que se finalizou o próprio julgamento e não o da publicação do acórdão, pois, na- quela data, a decisão tornou-se pública (RTJ, 87/828; RSTJ 30/104). No julgamento virtual, a publicidade dar-se-á com a publicação no Diário Oficial. O que não se pode admitir é que o tempo da sessão pública seja tomado por julgamentos que, na verdade, só na aparência são colegiados. (...) Não é incomum, nas justiças estadual e federal, presenciarmos julgamentos em bloco (...).

Tavares, Juarez, Princípio da Responsabilidade (pág. 2)

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  • ANO 19 - N 229 - DEZEMBRO/2011 - ISSN 1676-3661

    EDITORIAL JULGAMENTOS VIRTUAIS NO TJSP:

    UM DESAFIO NO S PARA OS ADVOGADOS ..............................................................1

    O PRINCPIO DA RESPONSABILIDADE Juarez Tavares .............................................................2

    AUSNCIA DO MINISTRIO PBLICO NA AUDINCIA DE INSTRUO E A POSTURA DO JUIZ LUZ DO ART. 212 DO CPP

    Aury Lopes Jr. ...............................................................3

    O RECONHECIMENTO DE PESSOAS E COISAS COMO UM MEIO DE PROVA IRREPETVEL E URGENTE. NECESSIDADE DE REALIZAO ANTECIPADA

    Maringela Tom Lopes .......................................6

    DOLO E GESTO TEMERRIA (ART. 4, PARGRAFO NICO, LEI 7.492/86)

    Lus Greco ......................................................................7

    O STF E O HOMICDIO CULPOSO NO TRNSITO: O DIREITO PENAL AINDA A INSUPERVEL BARREIRA DA POLTICA CRIMINAL!

    Gisele Mendes de Carvalho ...............................9

    LEI MARIA DA PENHA EM FAVOR DO HOMEM

    Iara Boldrini Sandes .............................................10

    LOMBROSO ENTRE NS: A PERSISTNCIA DA PERSONALIDADE COMO CRITRIO DE AUMENTO DE PENA NO DIREITO BRASILEIRO

    Marcel Soares de Souza ....................................12

    PODE O MINISTRIO PBLICO MANIFESTAR-SE SOBRE A RESPOSTA ACUSAO ANTES DE O JUIZ A APRECIAR?

    Luiz Guilherme Rorato Decaro ......................13

    A PRISO PREVENTIVA PARA A GARANTIA DA ORDEM PBLICA NA LEI 12.403/11

    Gabriel Bertin de Almeida ................................14

    RELEITURA DO CRIME PREVISTO NO ART. 89 DA LEI DE LICITAES

    Rodrigo Gomes Monteiro .................................16

    COM A PALAVRA, O ESTUDANTE EXPANSO DO DIREITO PENAL COMO

    RESPOSTA AO QUESTIONAMENTO DO PRETENSO OBJETIVO PUNITIVO: O DESVELAMENTO DO LIMITADO PODER DO CONTROLE PENAL

    Vinicius Gomes de Vasconcellos .................18

    DESCASOS OS TRS PS E MAIS ALGUNS Alexandra Lebelson Szafir ...............................19

    CADERNO DE JURISPRUDNCIA

    O DIREITO POR QUEM O FAZ .................1513 JURISPRUDNCIA ANOTADA

    Supremo Tribunal Federal .......................1516 Superior Tribunal de Justia...................1517 Tribunal Regional Federal .......................1518 Tribunal de Justia ........................................1519

    EDITORIALJULGAMENTOS VIRTUAIS NO TJSP: UM DESAFIO NO S PARA OS ADVOGADOS

    Como uma bomba que cai do cu. Foi deste modo que muitos receberam a Resoluo 548/11 do Tribunal de Justia de So Paulo, a qual instituiu os denominados julgamentos virtuais. A critrio da turma julgadora, agravos internos ou regimentais e embargos de declarao podero ser julgados virtualmente. Caber ao relator determinar a prvia cincia das partes pela imprensa oficial para o fim de preparo de memoriais ou eventual oposio em cinco dias, forma de julgamento, bastando a de qualquer delas, sem necessidade de motivao, para impedi-la.

    A Resoluo, porm, foi mais longe: admite a possibilidade de apelaes, mandados de segurana e habeas corpus tambm serem julgados de maneira virtual, desde que, para eventual oposio ou sustentao oral, seja concedido o prazo de dez dias s partes.

    H ao menos duas questes que merecem ser destacadas. A primeira diz respeito cautela com que se procura introduzir a inovao. Qualquer veto das partes ___ sim, disso que se trata, porque oposio sem fundamentao veto ___ impede o julgamento virtual. Isso j revela que se trata de um experimento. Portanto, parte-se do princpio que a aceitao dos envolvidos domina a aplicao da virtualidade, o que revela o carter democrtico da proposta.

    A segunda questo atina com a validade da reali-zao dos julgamentos virtuais. Em recente discusso que a Folha de S. Paulo propiciou, na prestigiada seo Tendncias e Debates, de 22.10.2011, o Presidente do Conselho Federal da OAB, Ophir Cavalcanti, manifestou-se contrariamente proposta, afirmando que o problema estrutural e no virtual. Partindo da premissa de que a Resoluo em questo escamoteia as deficincias estruturais e crnicas do Judicirio, passou a criticar abstratamente seus hbitos e sua estrutura. Por outro lado, o Desembargador Renato Nalini, do TJSP, defendendo o novo mtodo de realizar julgamentos, comeou com um desafio: s pode ser contra a Resoluo quem no conhece ___ ou no interessa conhecer ___ como so decididas as causas (deixem a justia evoluir).

    Os atores da cena forense parecem no se ouvir. Sim, a Justia tem problemas estruturais, mas a inovadora proposta no os escamoteia e, tampouco, os perpetua. Joga a favor da celeridade e, por pa-

    radoxal que seja, favorece tambm a qualidade das discusses pblicas nos casos em que os profissionais atuantes (advogados, membros do Ministrio Pblico e desembargadores) assim o exigirem. De fato, com

    o desafogo da pauta de julgamentos, ser possvel discutir, com mais tempo e mais aprofundadamente, as questes de maior relevo e nas quais h dissen-so. O que no se pode admitir que o tempo da sesso pblica seja tomado por julgamentos que, na verdade, s na aparncia so colegiados. Hoje, os julgamentos de agravos processam-se mecanicamente e podem funcionar muito bem no ambiente virtual. No incomum, nas justias estadual e federal, presenciarmos julgamentos em bloco, por exemplo: do nmero 7 ao 32 da pauta, estou negando provimento, diz o relator; ao que o presidente responde: o resultado que se proclama. No para isso que os juzes se devem reunir em sesses pblicas. Estas devem ser reservadas para os casos que reclamem discusses

    e nas quais as partes queiram intervir com suas susten-taes orais e eventuais questes de ordem, alis, to importantes para evitarem-se erros judiciais.

    preciso ter claro que a inovadora proposta do TJSP pode, sim, representar um avano, porque, no caso, salvo o desinteresse da parte, no atinge com-pulsoriamente os processos nos quais caiba a defesa oral. Assim, sem prejuzo para a defesa dos litigantes, a Justia por prova um mtodo que representa a consagrao de algo que j ocorre na prtica com a prvia troca de votos. Se funcionar bem, a experincia poder ser ampliada, sempre respeitando o sagrado direito constitucional ampla defesa.

    Por fim, uma palavra sobre a publicidade dos julga-mentos. Decises monocrticas ganham vida quando publicadas. Hoje, quando, no Tribunal, um punhado de casos decidido em bloco, s se ter efetivo conhe-cimento do contedo das decises com a publicao. No julgamento virtual, valer a mesma coisa. Dessa forma, se, amanh ou depois, aes penais originrias tambm forem julgadas no ambiente virtual, ter que mudar o entendimento de que o marco interruptivo da prescrio o do dia em que se finalizou o prprio julgamento e no o da publicao do acrdo, pois, na-quela data, a deciso tornou-se pblica (RTJ, 87/828; RSTJ 30/104). No julgamento virtual, a publicidade dar-se- com a publicao no Dirio Oficial.

    O que no se pode admitir que o

    tempo da sesso pblica seja tomadopor julgamentos que,

    na verdade, sna aparncia so

    colegiados. (...)No incomum, nas justias estadual e

    federal, presenciarmos julgamentosem bloco (...).

  • BOLETIM IBCCRIM - ANO 19 - N 229 - DEZEMBRO - 20112

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    O PRINCPIO DA RESPONSABILIDADEJuarez Tavares

    (...) o conceitode responsabilidade aflora quando so

    postas em questionamento as

    vinculaes normativasdo comportamento,

    quando no bastam asconstataes causais, mas sim aquilo que

    est invisvel: os interesses que animam a produo legislativa.

    Quando falamos de reprovao no m-bito do Direito e, especificamente, do Direito Penal, a questo que se coloca diz respeito possibilidade ou no de se estabelecer uma base slida para se imputar a algum determinado fato e se, ainda, isso suficiente para legitimar todo o aparato punitivo do Estado. Tendo em vista as controvrsias que se vo criando em torno da relao entre Estado Democrtico de Direito e poder punitivo, a doutrina tem caminhado entre duas perspectivas: elaborar um modo de justificar, a todo custo, um sistema de punio existente, apenas sob argumentos morais ou extrajurdicos, ou buscar os funda-mentos cientficos ou racionais de imposio de responsabilidade. A primeira perspectiva corresponde aos juristas de planto, dos quais se vale o Estado para expressar o aspecto manifesto e ocultar o sentido latente de suas disposies punitivas. Quando se faz uma opo pela segunda perspectiva, que parece fugir da justificao argumentativa de sentido moral, poder-se-ia pensar, primeira vista, que uma assertiva dessa ordem seria mais uma repetio incessante de um inconformismo diante do poder ou at mesmo a consequncia de um sentimento de angstia pessoal. A busca de uma racionalizao objetiva da responsabilidade prpria, porm, da argumentao jurdica, que quer dar ao Estado o fundamento cientfico para sua imposio. Com outras palavras, sob esse argumento desenvolve-se a necessidade de promover-se uma anlise neutra e cientfica de todo arcabouo da estrutura da culpabilidade, como elemento indeclinvel do fato punvel. Apesar de haver uma desproporo entre o sentimento moral e a argumentao racional, devemos observar que a invocao da cincia ou da razo, como fundamento de qualquer formulao jurdica, no deve ser sentida como isenta de defeitos. Na verdade, a questo cient-fica no uma questo definitiva. Analisando, por exemplo, os problemas inerentes ao mtodo cientfico, o filsofo Paul Feyerabend, um dos mais conceituados intelectuais do sculo XX, ressalta o seguinte: A cincia no sacrossanta. O mero fato de que existe, admirada e tem resultados no suficiente para fazer dela uma medida de excelncia.(1) Justamente em face des-sa observao e das indagaes que se seguem, que pem em dvida a excelncia do mtodo manejado pelas cincias em geral, inclusive, pela cincia jurdica, que se deve tambm verificar se todos esses argumentos em torno do processo de represso e da determinao de responsabilidade no devam passar pelo crivo de uma anlise crtica, que ponha mostra seu lado oculto, dissimulado pelo uso de hermenutica e tcnicas de persuaso comunicativa. Quando, por exemplo, verificamos o teor das campa-nhas contra a degradao ambiental e o surto

    dos polticos em torno do combate s drogas, podemos recordar que a grande degradao foi produzida pelo processo de industrializao e continua a s-lo, nas cidades e no campo, e que a esquizofrenia das drogas no passa mesmo de um modelo re-pressivo da chamada civilizao crist ocidental, sedimentado em interesses maiores do que um simples enunciado mo-ral. O prprio Levy-Strauss lembra-nos como a civilizao provoca a degradao das reas desrticas, anteriormente ha-bitadas por povos autctones, que chamamos de selvagens, e Sebastian Scheerer mostra-nos como se manifestam os interes-ses industriais da Conveno de Haia de 1912, que disciplina a proibio do pio e da cocana, e como isso se transforma em problema tico.(2) Ao analisar a instituio da represso e de seus fundamentos no Direito, ser relevante partir de uma observao de Wolfgang Kers-ting de que a responsabilidade moderna, pela excluso de sua base causal, agora (...) produto de uma construo.(3) Em face disso, o que se observa que o conceito de responsabilidade aflora quando so postas em questionamento as vinculaes normativas do comportamento, quando no bastam as constataes causais, mas sim aquilo que est invisvel: os interesses que animam a produo legislativa. Portanto, o princpio da responsabilidade no simples-mente uma expresso de regras morais ou jur-dicas, claras e determinadas, nem um indcio de correo ou confiabilidade, seno um sintoma da desordem normativa que se instala na so-ciedade contempornea. Mas, como predica Heidbrink, a desordem precisa tambm ser legitimada.(4) O princpio da responsabilidade , assim, uma reao legitimadora do poder e no a consequncia da produo de efeitos indesejveis de comportamento do sujeito. Se passarmos os olhos pela evoluo do conceito de responsabilidade, podemos sentir como se processa essa reao legitimadora. No Direito romano, a responsabilidade decorre de um processo de explicao. O autor do fato no era responsvel porque o havia praticado, mas porque deveria justific-lo diante do pretor. Mesmo no empirismo, h uma dicotomia entre o fato e a responsabilidade. Hume sempre dis-tinguiu entre a causalidade e a responsabilidade pelo cometimento do fato.(5) Kant igualmente procedeu distino entre a responsabilidade como atribuio causal e a responsabilidade como juzo de atribuio jurdica.(6) Hegel, por seu turno, partiu de uma responsabilidade

    pela manifestao da vontade: responsvel apenas quem atua com conscincia e vontade de produzir o resultado.(7) J Habermas pretende regular a responsabilidade em funo de seu

    momento comunicativo e perlocutrio: ser respons-vel aquele que se desvia do processo de comunicao racional e vem a frustrar os compromissos assumidos na elaborao da norma em face da atividade dos demais.(8) No fundo, a res-ponsabilidade no fruto de uma atribuio moral, de qualificao do indesejvel, mas a consequncia da pr-pria assuno pelo sujeito dos limites impostos em torno de sua atividade, da no haver responsabilidade quando a pessoa imputada no tenha podido partici-par consensualmente do

    processo de sua gerao por meio da norma. Poderamos concluir dizendo que a atribuio de responsabilidade no pode se esgotar em ato puramente argumentativo do julgador nem se fundar exclusivamente na capacidade pessoal do sujeito de atuar de outro modo, mas sim, principalmente, na avaliao do contexto em que ele se encontra, de seus compromissos diante da leso ou do perigo ao bem jurdico, sob o ngulo de um Estado que lhe assegure um mnimo de subsistncia e que o acolha dentro de um processo de comunicao, de modo a permitir-lhe participar tambm, em igualdade de condies, da elaborao das normas que imponham os limites a sua prpria conduta. Se isso parece uma utopia, porque, na verdade, o poder exercido sem o consenso real dos de-mais, tem razo Fabricius: em qualquer caso, entre culpabilidade e pena subsiste sempre uma absoluta antinomia.(9)

    NOTAS(1) Contra o mtodo, So Paulo, 2003, p. 289.(2) Die Ohhmacht der Rechtsgutidee und die Dominanz

    der Problemdefinition. In: Aufgeklrte Kriminalpolitik. Frankfurt am Main, 1998. t. I, p. 179.

    (3) Veranwortliche Verantwortung. In: HEIDBRINK, L. Kritik der Verantwortung, 2003, p. 11.

    (4) Kritik der Verantwortung, 2003, p. 19.(5) A Treatise of Human Nature, p. 508.(6) Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, p. 18.(7) Grunlinien der Philosophie des Rechts, p. 138.(8) Philosophische Texte, v. 1, p. 209.(9) Culpabilidade e seus fundamentos empricos, 2006,

    p. 39.

    Juarez TavaresProfessor Titular da Universidade do Estado do

    Rio de Janeiro. Subprocurador-geral da Repblica.

  • BOLETIM IBCCRIM - ANO 19 - N 229 - DEZEMBRO - 2011 33

    (FUNDADO EM 14.10.92)DIRETORIA DA GESTO 2011/2012

    DIRETORIA EXECUTIVAPRESIDENTE: Marta Saad1 VICE-PRESIDENTE: Carlos Vico Maas2 VICE-PRESIDENTE: Ivan Martins Motta1 SECRETRIA: Maringela Gama de Magalhes Gomes2 SECRETRIA: Helena Regina Lobo da Costa1 TESOUREIRO: Cristiano Avila Maronna2 TESOUREIRO: Paulo Srgio de OliveiraASSESSORES DA PRESIDNCIA: Adriano GalvoRafael Lira

    CONSELHO CONSULTIVOAlberto Silva FrancoMarco Antonio Rodrigues NahumMaria Thereza Rocha de Assis MouraSrgio Mazina MartinsSrgio Salomo Shecaira

    COORDENADORES-CHEFES DOS DEPARTAMENTOS: BIBLIOTECA: Ivan Lus Marques da SilvaBOLETIM: Fernanda Regina VilaresCOORDENADORIAS REGIONAIS E ESTADUAIS: Adriano GalvoCURSOS: Fbio Tofic SimantobESTUDOS E PROJETOS LEGISLATIVOS: Gustavo Octaviano Diniz JunqueiraINICIAO CIENTFICA: Fernanda Carolina de ArajoINTERNET: Joo Paulo MartinelliMESAS DE ESTUDOS E DEBATES: Eleonora NacifMONOGRAFIAS: Ana Elisa Liberatore S. BecharaNCLEO DE JURISPRUDNCIA: Guilherme Madeira DezemNCLEO DE PESQUISAS: Fernanda Emy MatsudaPS-GRADUAO: Davi de Paiva Costa TangerinoRELAES INTERNACIONAIS: Marina Pinho Coelho ArajoREPRESENTANTE DO IBCCRIM JUNTO AO OLAPOC: Renata Flores TibyriREVISTA BRASILEIRA DE CINCIAS CRIMINAIS: Helena Regina Lobo da Costa

    PRESIDENTES DAS COMISSES ESPECIAIS:AMICUS CURIAE: Heloisa EstellitaCDIGO PENAL: Renato de Mello Jorge Silveira CORRETORA DOS TRABALHADOS DE CONCLUSO DO VI CURSO DE DIREITO PENAL ECONMICO E EUROPEU: Heloisa EstellitaDEFESA DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS: Ana Lcia Menezes VieiraDIREITO PENAL ECONMICO: Heloisa EstellitaDOUTRINA GERAL DA INFRAO CRIMINAL: Carlos Vico MaasHISTRIA: Rafael Mafei Rabello QueirozINFNCIA E JUVENTUDE: Luis Fernando C. de Barros VidalJUSTIA E SEGURANA: Renato Campos Pinto de VittoNOVO CDIGO DE PROCESSO PENAL: Maurcio Zanoide de MoraesPOLTICA NACIONAL DE DROGAS: Maurides de Melo RibeiroSISTEMA PRISIONAL: Alessandra Teixeira15 CONCURSO IBCCRIM DE MONOGRAFIAS DE CINCIAS CRIMINAIS: Diogo Rudge Malan17 SEMINRIO INTERNACIONAL: Carlos Alberto Pires Mendes

    I. O papel do juiz na audincia de instruo aps a reforma de 2008

    Com a Reforma Processual de 2008, o art. 212 foi substancialmente alterado, no sendo mais atribudo ao juiz o papel de (inquisitorial) protagonismo na coleta da prova produzida em audincia. A mudana foi muito importante e adequada para conformar o Cdigo de Processo Penal estrutura acusatria desenhada na Cons-tituio. Ao demarcar a separao das funes de acusar e julgar e, principalmente, atribuir a gesto da prova s partes, o modelo acusatrio redesenha o papel do juiz no Processo Penal, no mais como juiz-ator (sistema inquisitrio), mas sim de juiz-espectador. Trata-se de atribuir a res-ponsabilidade pela produo da prova s partes, como efetivamente deve ser num Processo Penal acusatrio e democrtico.

    Neste novo modelo, o juiz abre a audincia, compromissando (ou no, conforme o caso) a tes-temunha, oportuniza-lhe expor espontaneamente o que sabe do caso penal, e passa a palavra para a parte que a arrolou (Ministrio Pblico ou defe-sa), cabendo a ela efetivamente produzir a prova, sendo o juiz neste momento o fiscalizador do ato, filtrando as perguntas ofensivas, sem relao com o caso penal, indutivas ou que j tenham sido respondidas pela testemunha. Aps, caber a outra parte fazer suas perguntas. O juiz, como regra, questionar ao final, perguntando apenas sobre os pontos relevantes no esclarecidos. , claramente, uma funo completiva e no mais de protagonismo.

    Sem embargo, tal cenrio est muito longe de colocar o juiz como uma samambaia na sala de audincia, como chegaram a afirmar maldosa-mente alguns, no ps-reforma, demonstrando a virulncia tpica dos adeptos da cultura inquisi-tria e resistentes mudana alinhada ao sistema constitucional acusatrio. Nada disso.

    O juiz preside o ato, controlando a atuao das partes para que a prova seja produzida nos limites legais e do caso penal. Ademais, poder fazer perguntas para complementar os pontos no esclarecidos. Jamais se disse que o juiz no poderia perguntar para as testemunhas na audincia. O ponto nevrlgico : poder o juiz fazer perguntas para a testemunha, mas no como protagonista da inquir(s)io.

    Muito j se tem discutido na jurisprudncia sobre as consequncias do descumprimento des-ta regra, cabendo sublinhar a deciso proferida pelo STJ, 6 Turma, no Recurso Ordinrio em Habeas Corpus 27.555/PR, da relatoria do Min. Og Fernandes, julgado em 11.05.2010. Neste caso, afirmou a deciso que o Cdigo de Proces-so Penal adotara aps a reforma de 2008 o sistema de cross examination, com a assuno do

    AUSNCIA DO MINISTRIO PBLICO NA AUDINCIA DE INSTRUO E A POSTURA DO JUIZ LUZ DO ART. 212 DO CPPAury Lopes Jr.

    papel de protagonismo das partes e subsidirio do juiz, inclusive para garantia da imparcialidade do julgador (e, recordemos, a ntima relao entre sistema acusatrio e imparcialidade, pois somente este modelo processual cria condies de eficcia da garantia da imparcialidade). Noutra dimen-so, entendeu o STJ neste julgamento que a inverso da ordem de formulao das perguntas geraria uma nulidade relativa. Mas, em momento algum, autorizou-se o juiz a ter protagonismo na inquirio como no modelo anterior.

    Na mesma linha de interpretao do art. 212, mas reputando como absoluta a nulidade pela inverso da ordem de inquirio, a deciso profe-rida pela 5 Turma do STJ, relatoria do Ministro Felix Fischer, no HC 153.140/MG, julgado em 12.08.2010. Entendeu o STJ que, se o Tribunal admite que houve a inverso no mencionado ato, consignando que o Juzo Singular incorreu em error in procedendo, caracteriza constrangimento, por ofensa ao devido processo legal, sanvel pela via do habeas corpus, o no acolhimento de reclama-o referente apontada nulidade. A ordem foi concedida para anular a audincia de instruo e julgamento realizada em desconformidade com a previso contida no art. 212 do Cdigo de Processo Penal, bem como os atos subsequentes, determinando que outra seja realizada, consoante as disposies do referido dispositivo.

    Neste caso, alm de reafirmar o papel subsidi-rio, completivo, da inquirio do juiz, considerou o STJ como absoluta a nulidade pela inverso da ordem de formulao de perguntas. Sabe-se que, no Processo Penal, forma garantia, sendo a categoria nulidade relativa, estruturada sobre a teoria do prejuzo, uma fraude a servio do punitivismo.(1)

    II. E quando a testemunha foi arrolada pelo Ministrio Pblico e ele est ausente? O que deve fazer o juiz?

    Essa foi a questo discutida pela 5 Turma do Superior Tribunal de Justia no REsp 1.259.482, relator Ministro Marco Aurlio Bellizze, no qual foi anulada, desde a audincia de instruo, o processo contra um acusado de trfico de drogas no qual o Ministrio Pblico estava ausente na audincia e o juiz o substituiu, formulando desde o incio as perguntas.

    Mais do que protagonista, o juiz assumiu uma postura substitutiva do acusador, em flagrante incompatibilidade com o sistema acusatrio, a imparcialidade e a prpria igualdade de armas.

    O processo j tinha sido anulado pelo TJRS por violao do art. 212 e houve recurso do Ministrio Pblico, alegando que a nulidade seria relativa e no teria ocorrido demonstrao do prejuzo. O Ministro Bellizze entendeu que a nulidade A

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  • BOLETIM IBCCRIM - ANO 19 - N 229 - DEZEMBRO - 20114

    relativa, mas neste caso a inquirio pelo juiz no se deu em carter complementar, mas sim principal. O descumprimento da ordem de inquirio do juiz no levou nulidade, mas sim violao de seu carter complementar, diante da ausncia do Promotor. A sentena, ainda, condenou o ru com base nestas teste-munhas arroladas pelo Ministrio Pblico e para as quais o juiz formulou todas as pergun-tas. Diante disso, afirmou o Ministro que con-figura indisfarvel afronta ao sistema acusatrio e evidencia o prejuzo efetivo. O Ministro disse, ainda, que a anulao do processo no seria necessria caso a sentena condenatria tivesse se baseado em outros elementos de prova.(2)

    A deciso do STJ melhor compreendida quando lida luz do acrdo originrio, proferido pela 3 Cmara Criminal do TJRS, na Apelao Criminal 70038050605, j. 28.10.2010, cujo revisor e redator do acrdo foi o Desembargador Nereu Giacomolli. Eis a ementa:

    Apelao. Trfico de drogas. Prelimi-nar. Nulidade. Artigo 212 do Cdigo de Processo Penal.

    1. A nova sistemtica adotada inquiri-o das testemunhas pela legislao processual brasileira, atravs da Lei 11.690, de 09 de junho de 2008 alterou, substancialmente, a metodologia da colheita da prova teste-munhal. Alm da ordem da inquirio das testemunhas (primeiro as arroladas pela acusao e aps as arroladas pela defesa), houve importante modificao no que tange ordem de formulao do questionamento. A literalidade legal clara, encontrando suporte e aderncia constitucional.

    2. Segundo essa nova sistemtica, as par-tes formulam as perguntas antes do magistra-do, diretamente pessoa que estiver prestando o seu depoimento, pois a parte que arrolou o depoente, atravs da iniciativa das perguntas, demonstrar o que pretende provar. Aps, a parte adversa exercitar o contraditrio na metodologia da inquirio, formulando as perguntas de seu interesse. Porm, antes das perguntas das partes, a vtima ou a testemunha poder narrar livremente o que sabe acerca dos fatos. Com isso se garantem o equilbrio e o contraditrio na formao da prova, atravs de uma previso clara e objetiva, nos moldes do adversary system, com regramento acerca das funes entre os sujeitos processuais.

    3. Primeiramente a parte demonstra o que pretende provar com a inquirio de determinado sujeito; em seguida, garante-se o contraditrio e, por ltimo, o magistrado, realiza a complementao, na esteira da si-tuao processual formada com as perguntas, com o objetivo de esclarecer situaes que, a seu juzo, no restaram claras. Caminha-se na esteira de um sistema democrtico, tico e limpo de processo penal (fair play). Evitam-se os intentos inquisitoriais, o assumir o lugar da

    parte, a parcializao do sujeito encarregado do julgamento.

    4. A nova sistemtica exige a presena do acusador e do defensor na audincia e, deste, efetividade, sob pena de ofensa s garantias cons-titucionais. No se retira o comando da audincia e a valorao da prova ao ma-gistrado, na medida em que este continua controlando as perguntas, pois a prova se destina a seu convenci-mento, podendo formular questes suplementares, ao final. Essa a nova meto-dologia legal, inserida no devido processo constitucio-nal, em seu aspecto formal e substancial, a ser observado.

    5. Caso no seja decla-rada a nulidade neste grau de jurisdio, correremos o risco de anular o processo, a sentena e este acrdo, num grau de 50%, no futuro, diante da divergncia no STJ. muito cmodo sobre-carregar o juiz e atribuir--lhe a morosidade do processo, exigir-lhe que inicie a perguntar, tome as iniciativas no processo, mesmo na inrcia das partes, faa as perguntas, todas, inclusive as que as partes fariam, desonerando os demais sujei-tos do dever de comparecer nas audincias e de preparar o processo antes dos atos judi-ciais. Do juiz sim, exigir tudo e das partes nada, nem sequer que se interessem pela inquirio das testemunhas. Preliminar acolhida. Mrito prejudicado.

    O voto do relator, Desembargador Newton Brasil Leo, rejeitava a preliminar de violao do art. 212 sob o argumento de que inexiste norma expressa que proba seja o incio da inqui-rio das testemunhas procedido pelo Magistrado. Alm disso, porque na busca da verdade real, cabe ao Julgador formular os questionamentos que entender cabveis elucidao do fato, visando, assim, formar sua convico. Por fim, porque se permitida a inquirio pelo Magistrado ao final, o resultado ser absolutamente o mesmo, inexistindo, portanto, prejuzo em funo da ordem de formulao das perguntas.

    Esse argumento, que bem se perfila na linha do senso comum terico, ainda adepto da mitolgica verdade real, foi rebatido e acabou vencido.

    O voto divergente, condutor da deciso por maioria, foi da lavra do Desembargador Nereu Giacomolli e partiu da assuno do modelo acusatrio nos termos anteriormente expostos, sustentando que o juiz deveria qua-lificar a testemunha (tomando compromisso conforme o caso), deixando, a seguir, que ela

    narrasse livremente o que sabia sobre o fato. Como se pode ler no corpo do voto, antes das perguntas das partes, a vtima ou a testemunha poder narrar livremente o que sabe acerca dos

    fatos. Com isso se garantem o equilbrio e o contraditrio na formao da prova, atravs de uma previso clara e objetiva, nos moldes do adversary sys-tem, com regramento acerca das funes entre os sujeitos processuais. Primeiramente a parte demonstra o que pretende provar com a inquirio de de-terminado sujeito; em seguida, garante-se o contraditrio e, por ltimo, o magistrado, realiza a complementao, na esteira da situao processual formada com as perguntas, com o objetivo de esclarecer situaes que, a seu juzo, no restaram claras. Caminha-se na esteira de um sistema democrtico, tico e limpo de processo penal (fair play). Evitam-se os intentos in-quisitoriais, o assumir o lugar da parte, a parcializao do sujeito encarregado do julgamento. A

    nova sistemtica exige a presena do acusador e do defensor na audincia e, deste, efetividade, sob pena de ofensa s garantias constitucionais.

    Portanto, como explica Giacomolli, ne-nhum vcio ocorrer quando o magistrado, aps qualificar a testemunha ou a vtima e dar-lhes conhecimento da situao processual, inst-los a narrar, livremente, o que sabem sobre os fatos, sem formular perguntas (grifamos).

    Aps essa exposio breve e totalmente espontnea feita pela testemunha sem a interveno do juiz, que apenas d o starter deve ser consignada a ausncia do Ministrio Pblico e passada a palavra para defesa. E se o defensor nada perguntar? Deve o juiz dar por encerrado o ato. Simples assim.

    Mas no pode o juiz substituir a figura do promotor e formular perguntas? Elementar que no. E perguntas para esclarecer os pontos relevantes, sobre os quais no se est suficien-temente esclarecido? Tambm no, pois o juiz pode pedir esclarecimentos a partir do que foi produzido pelas partes e, neste caso, nada foi produzido. Portanto, no h o que ser esclarecido.

    Do contrrio, ele estaria produzindo de ofcio a prova, imiscuindo-se na arena das partes, desequilibrando o contraditrio e ferindo de morte a estrutura acusatria (e, portanto, fulminando o princpio supremo do processo: a imparcialidade). H que se compreender que atividade probatria, seja pela iniciativa ou gesto, das partes e no do juiz. O ativismo judicial nesta seara (juiz--ator) rano do passado. Como tambm (ou deveria ser) o juiz que condena diante

    H que se compreender que

    atividade probatria, seja pela iniciativa ou gesto, das

    partes e no do juiz. O ativismo judicial

    nesta seara (juiz-ator) rano do passado.

    Como tambm (ou deveria ser) o juiz que condena diante do pedido de absolvio do

    Ministrio Pblico, aplicando o art. 385.

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    COORDENADORIAS REGIONAIS1 REGIO (AC, AM E RR)Luis Carlos Valois2 REGIO (MA E PI) Roberto Carvalho Veloso3 REGIO (RN E PB) Oswaldo Trigueiro Filho4 REGIO (AL E SE) Daniela Carvalho Almeida da Costa5 REGIO (ES E RJ)Mrcio Barandier6 REGIO (DF, GO E TO) Pierpaolo Bottini7 REGIO (MT E RO) Francisco Afonso Jawsnicker8 REGIO (RS E SC)Rafael Braude Canterji

    COORDENADORIAS ESTADUAIS1 ESTADUAL (CE) Patrcia de S Leito e Leo2 ESTADUAL (PE)Andr Carneiro Leo3 ESTADUAL (BA)Wellington Csar Lima e Silva4 ESTADUAL (MG)Felipe Martins Pinto5 ESTADUAL (MS)Marco Aurlio Borges de Paula6 ESTADUAL (SP)Joo Daniel Rassi7 ESTADUAL (PR)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho8 ESTADUAL (AP)Joo Guilherme Lages Mendes9 ESTADUAL (PA)Marcus Alan de Melo Gomes

    BOLETIM IBCCRIM- ISSN 1676-3661 -

    COORDENADORA-CHEFE:Fernanda Regina VilaresCOORDENADORES ADJUNTOS:Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola VieiraCOLABORADORES DE PESQUISA DE JURISPRUDNCIA DO IBCCRIMAllan Aparecido Gonalves Pereira, Alberto Alonso Muoz, Andr Adriano Nascimento Silva, Andrea DAngelo, Camila Austregesilo Vargas do Amaral, Cssia Fernanda Pereira, Cssio Rebouas de Moraes, Cecilia Tripodi, Daniel Del Cid, Dbora Thas de Melo, Diogo H. Duarte de Parra, Eduardo Samoel Fonseca, Eduardo Velloso Roos, Edmundo Bustani, Fernanda Carolina de Araujo, Giancarlo Silkunas Vay, Gustavo Teixeira, Indai Lima Mota, Isabella Leal Pardini, Jacqueline do Prado Valles, Joo Henrique Imperia, Jos Carlos Abissamra Filho, Leandro Csar dos Santos, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Marcela Venturini Diorio, Marcos Murrdock, Mnica Tavares, Nathlia Oliveira, Nathlia Rocha de Lima, Nades Eunice da Silva, Natasha Tamara Praude Dias, Orlando Corra da Paixo, Paulo Godinho, Paulo Victor Freire Ribeiro, Priscila Pamela dos Santos, Renan Macedo Villares Guimares, Renato Watanabe de Morais, Ricardo Stuchi Marcos, Roberta Werlang Coelho, Thasa Bernhardt RibeiroPRODUO GRFICA:PMark Design - Tel.: (11) 2215-3596E-mail: [email protected]: Ativaonline - Tel.: (11) 3340-3344O Boletim do IBCCRIM circula exclusivamente entre os associados e membros de entidades conveniadas.As opinies expressas nos artigos publicados res -ponsabilizam apenas seus autores e no representam, necessariamente, a opinio deste Instituto.TIRAGEM: 11.000 exemplaresCORRESPONDNCIA IBCCRIMRua Onze de Agosto, 52 - 2 andarCEP 01018-010 - S. Paulo - SPTel.: (11) 3105-4607 (tronco-chave)

    MESA DE ESTUDOS E DEBATESLavagem de dinheiro: a responsabilidade penal do advogado pelos honorrios recebidos.

    Data: 14/12/2011 (quarta-feira)Horrio: 9h30 s 12h30 Local: Auditrio do IBCCRIM - Rua Onze de Agosto, 52, 2 andar - Centro - So Paulo SP Inscries: gratuitas no Portal IBCCRIM (www.ibccrim.org.br) Informaes: [email protected] ou (11) 3111-1040, ramais 156 e 178Participe distncia: Para assistir ao evento, ao vivo e on-line, acesse em 14/12/2011 itv.netpoint.com.br/ibccrim

    Expositores:Helena Regina Lobo da CostaProfessora de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo;Professora de Ps Graduao na Fundao Getlio Vargas GVLaw;Advogada criminalista.

    Rodrigo De Grandis Procurador da Repblica em So Paulo;Professor de Direito Penal da Escola Superior do Ministrio Pblico/SP, do Curso de Especializao em Direito Penal Econmico GVLaw e do Curso de Capacitao e Treinamento para o Combate Lavagem de Dinheiro PNLD, do Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Internacional do Ministrio da Justia.

    Presidenta de Mesa: Claudia Barrilari

    A Mesa de Estudos e Debates sobre o tema Lavagem de dinheiro: a responsabilidade penal do advogado pelos honorrios recebidos tem por objetivo destacar qual a garantia que o sistema confere relao estabelecida entre o advogado criminal e o ru por ele representado. Por um lado, ao advogado a Constituio da Repblica atribui o importante papel de indispensvel administrao da Justia, conferindo para tanto prerrogativas indissociveis ao exerccio da profisso. De outro lado, cada vez mais se discute se o advogado deve certificar-se da procedncia lcita dos honorrios profissionais, sob pena de passar de defensor a acusado.O tema est na ordem do dia, tanto que o PL 3.443/2008, que promove profundas alteraes na Lei 9.613/1998, Lei da Lavagem de Capitais, foi recentemente aprovado em votao simblica na Cmara dos Deputados e enviado ao Senado Federal.

    do pedido de absolvio do Ministrio Pblico, aplicando o art. 385. Mais do que insustentvel luz do modelo acusatrio (at porque ignora o alcance do ne procedat iudex ex offcio), flagran-temente incompatvel com o objeto do Processo Penal (pretenso acusatria, pouco estudada e, menos ainda, compreendida)(3) e com o prprio princpio da correlao.

    Concluiu o re lator, Desembargador Giacomolli, que no caso em apreo, o magis-trado a quo iniciou os questionamentos acerca das testemunhas (fls. 162 a 174), passando, depois de satisfeito, a palavra s partes, e o fez nitidamente em substituio atuao do Ministrio Pblico, que estava ausente do ato processual. A audincia de instruo ocorreu em 09.02.2010, quando a Lei 11.690/08 j estava em vigor (desde 09.08.2008). Assim, impe-se o reconhecimento da invalidade da prova e, via de consequncia, a anulao da sentena para que outra seja proferida sem a sua utilizao, determinando-se, outrossim, a renovao do ato processual, agora sob a gide do artigo 212 do CPP.

    Dessarte, ambas as decises demarcam a postura constitucional-acusatria que o juiz deve assumir, ainda que, por evidente, isso possa causar algum

    mal-estar entre aqueles ainda adeptos do modelo (inquisitrio) anterior. No fundo, o grande proble-ma cultural, mudar cabeas. J dizia Einstein, que poca triste essa nossa, em que mais fcil quebrar um tomo do que um preconceito. H um preconceito imenso em relao ao novo e, princi-palmente, quando o novo significa ao menos em parte um certo esvaziamento de poder, de prota-gonismo, principalmente para aqueles que creem dever corresponder expectativa de defesa social.

    NOTAS

    (1) Sobre o tema, vide nossa obra Direito processual penal e sua conformidade constitucional, Lumen Juris, v. 2.

    (2) Fonte: Assessoria de Imprensa do STJ, em 18.10.2011.(3) Sobre o objeto do Processo Penal e porque o juiz

    no pode condenar quando o MP pedir a absolvio, consulte-se o volume 1 de nossa obra Direito processual penal e sua conformidade constitucional, publicado pela Editora Lumen Juris.

    Aury Lopes Jr.Doutor em Direito Processual Penal.

    Professor do mestrado e do doutorado em Cincias Criminais da PUC/RS.

    Advogado.

  • BOLETIM IBCCRIM - ANO 19 - N 229 - DEZEMBRO - 20116

    Um dos meios de prova previstos expressa-mente no Cdigo de Processo Penal brasileiro o reconhecimento de pessoas e coisas. O reconhecimento meio de prova utilizado com a finalidade de obter a identificao de pessoa ou coisa por meio de um processo psicolgico de comparao com elementos do passado. O reconhecimento tem a natureza jurdica de meio de prova. Realizado na presena do juiz e com a participao das partes, formar elemento de prova e poder ser levado em considerao pelo julgador na sentena.

    Trata-se de um meio bastante polmico, tendo em vista diversos aspectos que podem influenciar no seu resultado. , talvez, o meio de prova que resulte no maior nmero de erros.(1) Conforme ensina Gustavo Badar, o reconhecimento pessoal j foi apontado como a mais falha e precria das provas. A principal causa de erro no reconhecimento a semelhana entre as pessoas.(2)

    Para se ter uma idia da grande possibili-dade de erros ou falhas no reconhecimento, foi criada, em 1992, nos Estados Unidos da Amrica, a The Inocence Project. Trata-se de uma ONG especializada em pedir indeni-zao ao Estado americano por condenaes de pessoas inocentes. Esta ONG fez uma pesquisa e constatou que 75% das condena-es de inocentes se devem a erros cometidos pelas vtimas e testemunhas ao identificar os suspeitos no ato do reconhecimento.(3)

    Tambm Anna Maria Capitta ressalta que o reconhecimento possui quase sempre um alto grau de falibilidade e, portanto, um valor proba-trio de escassa consistncia (traduo livre).(4)

    Bernasconi resume que a confiabilidade de um reconhecimento deve ser mnima, visto que a moderna psicologia confirma portanto os resultados das pesquisas: os percentuais de reconhecimentos corretos continuam a se revelar extremamente baixos (traduo livre).(5)

    No entanto, ainda assim, por estar o reconhecimento dotado de fora impressio-nstica, o seu resultado positivo influencia profundamente a deciso do juiz.(6) Observa Alessandro Bernasconi que, mesmo estando comprovadas as falhas desse meio de prova, os juzes continuam a ser inconscientemente in-fluenciados pela identificao positiva computa-da pela testemunha (traduo livre)(7) e, ainda, que os resultados positivos do reconhecimento quase equivalem a uma pacfica indicao de culpa (traduo livre).(8)

    Para evitar-se a ocorrncia dos erros, e considerando-se tratar de um meio de prova irrepetvel e urgente, conforme a seguir timi-damente desenvolvido, deve sempre ser pro-duzido com a participao das partes e do juiz, O R

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    O RECONHECIMENTO DE PESSOAS E COISAS COMO UM MEIO DE PROVA IRREPETVEL E URGENTE. NECESSIDADE DE REALIZAO ANTECIPADAMaringela Tom Lopes

    como um dos primeiros atos de investigao, observando rigorosamente o rito existente na lei para a sua realizao, como uma produo antecipada de prova.

    Este meio de prova, em razo da especial natureza que o reveste, um ato definitivo e irreprodutvel, pois no pode ser repetido em condio idn-tica, constituindo-se, portanto, em meio de prova irrepetvel. Esta irrepetibilidade est de-rivada do fator psicolgico pre-ponderante na pessoa chamada a reconhecer(traduo livre).(9)

    Gustavo A. Arocena,(10) ao referir-se doutrina jurdica argentina, afirma ser unnime naquele pas o entendimento de que o reconhecimento pessoal prova irreprodutvel, porque no se pode repeti-lo em idnticas condies. Para Eduardo M. Jauchen,(11) o fato de o reconhecedor ex-pressar um juzo de identida-de quando lhe so exibidas pessoas ou coisas, configura experincia que, uma vez efetuada, e obtido um resultado, positivo ou negativo, tornar ineficaz uma nova realizao, pois a imagem incorporada nesse ato interferir na cadeia de memria da pessoa. Assim, perderia toda a eficcia probatria eventual realizao de um segundo reconhecimento.

    Assim, o reconhecimento irreprodutvel, pois no pode ser renovado nas mesmas con-dies. Qualquer novo reconhecimento estar viciado, pois influenciado pelo primeiro.(12)

    A partir do momento que o reconhecedor teve contato com a pessoa a ser reconhecida, a imagem guardada na memria influir no segundo reconhecimento. Assim, estar o ato viciado. , portanto, meio irrepetvel de prova.

    Assim, deve sempre ser produzido com todas as cautelas e observando o procedimento existente em lei para sua realizao (arts. 226 e ss. do Cdigo de Processo Penal). Em resumo, por somente ser produzido uma nica vez, para que forme elementos de prova, deve ser realizado de forma perfeita, respeitando rigo-rosamente o procedimento legal e sempre na presena das partes e do juiz, em respeito ao princpio do contraditrio.

    tambm um meio de prova urgente e, por isso, deve ser realizado antecipadamente. Levando em conta a influncia que a memria produz no reconhecimento, deve-se refletir o

    carter de urgncia existente na sua produo. O reconhecimento deve ser um dos primei-

    ros atos de investigao de um fato criminoso, pois, para a sua adequada realizao, exige-se

    que o sujeito ativo recorde muito bem a imagem da pessoa ou da coisa envolvida.

    Tendo em vista a grande in-fluncia do tempo na memria do ser humano, para que esta prova tenha maior efetividade, h necessidade de ser realizada o mais rpido possvel. A me-mria sofre alteraes depen-dendo de dois aspectos: 1) o estado psicolgico que a pessoa se encontrava no momento dos fatos; 2) o passar do tempo capaz de apagar informaes importantes ou de criar falsas memrias.

    Assim, tendo em vista o fato de o tempo afetar diretamente a capacidade de armazena-mento de informaes, deve o reconhecimento ser realizado como um dos primeiros atos

    de investigao, antecipando-se a realizao do meio de prova.

    Em resumo, tendo em vista que o reco-nhecimento se trata de um meio de prova irrepetvel, pois somente pode ser produzido uma vez, deve sempre ser realizado de acordo com o procedimento previsto em lei e com a participao das partes e do juiz, em respeito ao princpio constitucional do contraditrio. Por ser meio de prova urgente, tendo em vista a influncia negativa que o tempo acar-reta na memria, deve ser realizado o mais rpido possvel, preferencialmente na fase de investigao, antecipando-se a sua produo, com respeito ao rito e com a participao das partes e do juiz.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    AROCENA, Gustavo A. El reconocimiento por fotografa, las atribuciones de la Polica Judicial y los actos definitivos e irreproductibles. In: Temas de derecho procesal penal (contemporneos). Crdoba: Editorial Mediterrnea, 2004.

    BADAR, Gustavo Henrique Ivahy Badar. Direito Pro-cessual Penal. Rio de Janeiro/So Paulo: Elsevier/Campus, Jurdico, 2008. t. I.

    BERNASCONI, Alessandro. La ricognizione di personenel processo penale. Strutura e procedimento probato-rio. Turim. G. Giappichelli Editore, 2003.

    BERNASCONI, Alessandro. La ricognizione di personenel processo penale. Strutura e procedimento probato-rio. Turim. G. Giappichelli Editore, 2003.

    CAFERRATA NORES, Jos I. Reconocimiento de personas (rueda de presos). Crdoba: Marcos Lerner Edito-

    Em resumo, por somente ser

    produzido uma nica vez, para que

    forme elementos de prova, deve ser realizado de forma

    perfeita, respeitando rigorosamente o procedimento

    legal e sempre na presena das partes e do juiz, em respeito

    ao princpio do contraditrio.

  • BOLETIM IBCCRIM - ANO 19 - N 229 - DEZEMBRO - 2011 7

    ra, 1980, p. 66; TSJ Cba, Sala Penal, Ocampo, 19/3/71, Sent. 254; Camara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correcional, Sala VI, 6/3/93.

    CAPITTA, Ana Maria. Ricognizioni e individuazioni di persone nel diritto delle prove penali. Universit degli studi di Milano, Milo: Editora Guffr, 2001.

    JAUCHEN, Eduardo M. Tratado de la prueba en materia pe-nal. 2. ed. Santa F: Rubinzal Culzoni Editores, 2009.

    NUEZ, Ricardo C. Cdigo Procesal Penal Anotado. Crdoba: Marcos Lerner Editora, 1986, p. 187, nota 6 al art. 208.

    TRIGGIANI, Nicola. Ricognizione mezzo di prova nel nuovo processo penale. Milo: Editora Giuffr, 1998.

    www.innocenceproject.org/.../What_is_the_Innocen-ce_Project_How_did_it_get_started.php - Acessado em 30 de dezembro de 2010.

    NOTAS(1) TRIGGIANI, Nicola. Ricognizione mezzo di prova nel

    nuovo processo penale. Milo: Editora Giuffr, 1998, p. 263. Segundo Triggiani, levando-se em conta a experincia judiciria e os efeitos da memria, o reconhecimento pessoal o meio de prova que pode apresentar o maior nmero de erros (TRIGGIANI,

    Nicola. Ricognizione...cit., p. 263).(2) BADAR, Gustavo Henrique Ivahy Badar. Direito

    Processual Penal. Rio de Janeiro/So Paulo: Elsevier/Campus, Jurdico, 2008, t. I, p. 259.

    (3) www.innocenceproject.org/.../What_is_the_Innocen-ce_Project_How_did_it_get_started.php - Acessado em 30 de dezembro de 2010.

    (4) CAPITTA, Ana Maria. Ricognizioni e individuazioni di persone nel diritto delle prove penali. Universit degli studi di Milano. Milo: Editora Guffr, 2001, p. 108.

    (5) BERNASCONI, Alessandro. La ricognizione di per-sonenel processo penale. Strutura e procedimento probatorio. Turim. G. Giappichelli Editore, 2003, p. 21.

    (6) TRIGGIANI, Nicola. Ricognizione...cit., p. 263.(7) BERNASCONI, Alessandro. La ricognizione...cit., p.

    14.(8) BERNASCONI, Alessandro. La ricognizione...cit., p.

    14.(9) JAUCHEN, Eduardo M. Tratado de la prueba en

    materia penal. 2. ed. Santa F: Rubinzal Culzoni Editores, 2009, p. 463.

    (10) El reconocimiento por fotografa, las atribuciones de la Polica Judicial y los actos definitivos e irre-

    productibles. In: Temas de derecho procesal penal (contemporneos). Crdoba: Editorial Mediterrnea, 2004, p. 97.

    (11) Tratado...cit., p. 463.(12) Nesse sentido: NUEZ, Ricardo C. Cdigo Procesal

    Penal Anotado. Crdoba: Marcos Lerner Editora, 1986, p. 187, nota 6 al art. 208; CAFERRATA NORES, Jos I. Reconocimiento de personas (rueda de presos). Crdoba: Marcos Lerner Editora, 1980, p. 66; TSJ Cba, Sala Penal, Ocampo, 19/3/71, Sent. 254; Cmara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correcional, Sala VI, 6/3/93; Albarracn; Tribunal Oral en lo Crimi-nal 1, 30/12/92, P.G.E. (citado por AMADEO, Sergio L.; PALAZZI, Pablo Andrs. Cdigo Procesal Penal de la Nacin. Anotado com jurisprudncia. Buenos Aires: Depalma, 1999, p. 344).

    Maringela Tom LopesMestre e Doutora em Direito Processual

    Penal pela Universidade de So Paulo.Professora de Direito Penal e Processual Penal.

    Advogada.Membro do Instituto ASF de Estudos

    Avanados de Processo Penal.

    (...) a elementar temerariamente

    no mero elemento normativo

    em sentido tradicional, e sim

    um elemento valorativo global

    do fato. Afinal, no possvel qualificar

    uma gesto de temerria sem,

    simultaneamente, declar-la antijurdico.

    O H a b e a s C o r p u s 1 2 5 . 8 5 3 / S P (2009/0004088-6), cujo objeto era um processo por fatos de gesto temerria (art. 4, pargrafo nico, da Lei 7.492/86), foi deferido pelo STJ em acrdo relatado pelo Min. Napoleo Nunes Maia Filho. Uma das principais razes do deferimento foi a ausncia do elemento subjetivo exigido pelo tipo em questo. Esse julgado serve de boa oportunidade para refletir a respeito do con-tedo do dolo no delito de gesto temerria.

    O acrdo afirma: Para que se verifique o elemento volitivo do tipo o dolo eventual prprio da gesto temerria necessria a demonstrao de que os acusados anteviram e aceitaram o risco lesivo (ementa, item 02). No voto, diz-se que o elemento volitivo apto a embasar a imputao pelo crime de gesto temerria o dolo indireto na modalidade eventual (voto, item 15).(1) A denncia, aps descrever condutas de agentes que conscientemente teriam deixado de obser-var procedimentos bsicos de sua profisso, referira-se a esses agentes como no mni-mo, desidiosos, irresponsveis, impetuosos e inbeis (voto, item 18), com o que lhes estaria imputando mera culpa, deixando de indicar de que maneira os acusados, embora no desejando necessariamente o resultado lesivo, anteviram-no e aceitaram-no (voto, item 19).

    As presentes reflexes deixaro de lado as diversas questes de fato e de direito relativas ao tipo objetivo da gesto temerria para concentrar-se no problema do contedo do tipo subjetivo. O acrdo afirma que a gesto temerria exige um suposto dolo indireto,

    DOLO E GESTO TEMERRIA (ART. 4, PARGRAFO NICO, LEI 7.492/86)Lus Greco

    cujo contedo seria previso e aceitao do re-sultado. J aqui surgem as primeiras dvidas.

    De incio, pergunta-se a que resultado se refere o acrdo. Afinal, a gesto fraudulenta/temerria, cujos tipos obje-tivos so descritos de modo lacnico e um tanto impreciso como gerir fraudulentamente/temerariamente instituio financeira (art. 4, caput e pargrafo nico, da Lei 7.492), no so delitos que descrevem um resultado, no sentido de uma alterao no mundo ex-terior espao-temporalmente diversa da conduta do agente. O tipo objetivo realiza-se com a prtica da conduta de gesto, de maneira que se trata de um delito de mera conduta e no de um delito de resultado.

    de antever-se a rplica de que resultado, segundo o acrdo, seria o resultado jurdico, a leso ao bem jur-dico, enquanto o resultado de que acima falei seria meramente o chamado resultado naturalstico. Essa distino, no entanto, confusa e de duvidosa utilidade. Alm disso, o que aqui interessa que o art. 4 tampouco exige a ocorrncia desse cha-mado resultado jurdico. O tipo objetivo realiza-se independentemente da leso ao bem jurdico protegido, seja ele o funciona-mento do sistema financeiro nacional, seja ele o patrimnio da instituio financeira te-merariamente gerida. Tem-se, aqui, um delito

    de perigo abstrato e no um delito de leso. Com o que se observa o quo pouco tcni-

    ca foi a argumentao do acrdo. Porque o objeto do dolo no , a rigor, o resultado e sim o

    tipo objetivo.(2) Ainda que o art. 18, I, do CP defina o crime doloso como aquele em que o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo, o termo resultado, aqui, deri-va da compreenso causalista subjacente ao Cdigo Penal de 1940, que continha idn-tico dispositivo (art. 15, I), por entender que os tipos da Parte Especial nada mais seriam do que descries de causaes de resultados. Com razo, entende a doutrina mais moderna, portanto, que o objeto do dolo o tipo ob-jetivo como um todo, o que pode ser mais, mas tambm menos, do que o resultado no sentido naturalstico ou

    jurdico. Noutras palavras, resultado, na linguagem do art. 18 do CP, significa tipo objetivo.

    O acrdo, ao referir o dolo ao resultado jurdico, isto , leso ao bem jurdico, transformou a gesto temerria em um tipo incongruente, ou seja, em um tipo em que aspecto subjetivo e objetivo no tm o mesmo alcance. A rigor, o entendimento do acrdo o de que, alm do dolo, que, como dito, compreende os elementos do tipo objetivo, necessrio um elemento subjetivo especial, o D

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  • BOLETIM IBCCRIM - ANO 19 - N 229 - DEZEMBRO - 20118

    antigo dolo especfico, que vai alm do tipo objetivo, e se dirige leso ao bem jurdico (como o caso na extorso - Art. 158, caput: ...intuito de obter para si ou para outrem in-devida vantagem econmica...). Ocorre que a postulao de um tal elemento subjetivo especial exigiria uma fundamentao prpria. Essa fundamentao no oferecida em lugar algum, nem pela deciso ora comentada, nem pelas decises a que ela se reporta. compreensvel que, diante de um dispositivo penal que descreve o ilcito punvel apenas por meio de um elemento valorativo, abundem os esforos no sentido de antepor a esse disposi-tivo todas as barreiras imaginveis. A consti-tucionalidade do tipo em questo permanece duvidosa e vem sido incansavelmente posta em cheque pela doutrina mais autorizada. Ainda assim, a motivao louvvel no dispensa da obrigao de formular argumentos consisten-tes e fundados.

    possvel, assim, formular uma primeira concluso intermediria: o dolo no delito de gesto temerria no tem de se referir a qualquer resultado exterior ao tipo objetivo, mas apenas e unicamente ao comportamento de gesto temerria.

    Coloca-se, agora, um segundo problema, a saber, precisar o contedo do dolo diante da elementar temerariamente. Tem o agente de saber que seu ato de gesto temerrio? Ser necessrio que o prprio agente valore o fato como temerrio?

    A doutrina nacional dominante parece conhecer, fundamentalmente, duas categorias de elementos do tipo objetivo: os descritivos e os normativos.(3) Quanto aos primeiros, exige ela para o dolo que o autor apreenda, por meio de seus sentidos, a existncia do elemento: por exemplo, que o autor veja estar diante de um ser humano vivo (algum, art. 121, caput, CP). Quanto aos segundos, seria ne-cessrio que o autor agisse de posse de um conhecimento leigo do contedo do ele-mento normativo: por exemplo, o autor sabe que o quadro subtrado alheio, quando sabe que ele pertence a outra pessoa, ainda que desconhea as regras de aquisio e trans-misso da propriedade contidas no Cdigo Civil. Desde a tese de doutorado de Roxin, no final da dcada de 1950, sabe-se, contudo, da existncia de pelo menos mais uma categoria de elementos do tipo, os chamados elementos valorativos globais do fato.(4) Estes elementos so diversos dos tradicionais elementos normativos, porque eles so elementos cuja admisso necessariamente antecipa o juzo de antijuridicidade. No possvel afirmar a realizao de uma tal elementar e, em

    momento posterior, considerar justificado o fato. Qualquer justificao significaria, j de antemo, a negao da prpria existncia da elementar de valorao global. Um exem-plo claro no direito positivo brasileiro a elementar indevidamente, constante no crime de violao de correspondncia (Art. 151, caput, CP: Devassar indevidamente o contedo de correspondncia fechada, dirigida a outrem). Se o agente atua, por exemplo, em estado de necessidade (justificante), no age indevidamente. E se ele age inde-vidamente, no h espao lgico-conceitual para afirmar um estado de necessidade (justificante).

    A importncia dessa distino revela-se no momento de fixar o contedo do dolo referido a tais elementos. O dolo referido a elementares de valorao global do fato no pode conter uma valorao leiga da existncia dessa elementar, como no caso das tradicio-nais elementares normativas. Afinal, como a elementar de valorao global j encerra o juzo de antijuridicidade, exigir que o agente a conhea, ainda que de forma leiga, trans-formar o dolo em dolus malus, exigir para o dolo o conhecimento da antijuridicidade. Por isso que, na esteira do proposto por Roxin, distinguem-se os pressupostos fticos da valorao em si mesma. O dolo refere-se apenas a esses pressupostos fticos e no prpria valorao.(5)

    Retornando a nosso tipo em questo: a elementar temerariamente no mero elemento normativo em sentido tradicional, e sim um elemento valorativo global do fato. Afinal, no possvel qualificar uma gesto de temerria sem, simultaneamente, declar-la antijurdico. O carter temerrio da gesto adianta o juzo de antijuridicidade. Com isso, fica claro qual o contedo do dolo em relao a este elemento: o agente tem de conhecer os atos que est praticando, bem como todas as circunstncias que fundamentaro o carter temerrio de seu agir. Por exemplo, ele tem de saber que est concedendo emprstimos sem as garantias necessrias, que est ignorando dados relevantes, tem de conhecer a dimen-so do risco a que est expondo a instituio etc. irrelevante para o dolo, contudo, que o agente considere ainda assim defensvel, no temerrio, o seu agir aqui haveria no mximo um erro de proibio (art. 21, CP). A valorao do ato de gesto como temerrio de competncia exclusiva da ordem jurdica e no do agente.

    Em sntese: 1) no tipo de gesto temerria, o dolo no tem de se dirigir a um resultado qualquer, porque o tipo no prev resultado

    algum, e o objeto do dolo a realizao do tipo objetivo; 2) o agente tampouco tem de valorar a sua conduta como temerria, bastando que ele conhea as circunstncias com base nas quais a ordem jurdica realizar essa valorao.

    Se isso significa que a concesso do habeas corpus foi, ao fim, incorreta, depende em par-te de valorao da matria de fato, tarefa que no compete ao doutrinador. Ainda assim, quem deixa de observar procedimentos bsicos de sua profisso, se o faz com conscincia e vontade, apresenta j, eo ipso, o elemento sub-jetivo exigido pelo tipo penal em questo.(6)

    NOTAS(1) So citados como precedentes os acrdos RESp

    706.005/RS, rel. Min. Gilson Dipp, DJU 23.05.2005, e RHC 6.368/SP, rel. Min. Vicente Cernicchiaro, DJU 22.09.1997 (voto, item 15).

    (2) Cf. SANTOS, Cirino dos. Direito Penal, Parte Geral. Curitiba: ICPC; Lumen Iuris, 2006, p. 132; DIAS, Figueiredo. Direito Penal, Parte Geral. 2. ed. portu-guesa/1. ed. brasileira. Coimbra/So Paulo: Coimbra Editora/RT, 2007, t. I, p. 349 (13 cap., 4).

    (3) Por todos SANTOS, Cirino dos. Direito Penal...cit., p. 134.

    (4) No original: gesamttatbewer tende Umstnde. ROXIN. Offene Tatbestnde und Rechtspflichtsmerk-male. Berlin: DeGruyter, 1. ed., 1959; 2. ed., 1970, p. 76 e ss. (h traduo para o espanhol: Teora del tipo penal. Tipos abiertos y elementos del deber jurdico. Trad. Bacigalupo. Buenos Aires, 1979). A respeito dessas ideias, cf. GRECO/LEITE. Claus Roxin, 80 anos. In: Revista Liberdades 7 (2011), p. 97 e ss. (99 e s.).

    (5) ROXIN. Offene Tatbestnde...cit., p. 135. (6) Isso no porque, como por vezes se escuta, o tipo

    seja, em verdade, culposo, e sim porque, como o dolo se refere aos elementos do tipo objetivo, todo comportamento violador de dever objetivo de cuidado, isto , materialmente culposo, se tipificado autonomamente, configurar em princpio (por fora do art. 18, pargrafo nico, CP, segundo o qual os tipos descrevem, salvo disposio em contrrio, fatos dolosos) um tipo doloso. Se tivssemos um tipo: ultrapassar sinal vermelho, o dolo de realizar esse tipo exigiria apenas conhecimento e vontade de ultrapassar sinal vermelho. Essa considerao desconhecida pelo acrdo em questo (e tambm, por exemplo, pelos votos vencedores do precedente RHC 7.982 / RJ, Min. Gilson Dipp; correto os votos vencidos do rel. Min. Flix Fischer e do Min. J. Arnaldo da Fonseca).

    Mais uma observao: falo, aqui, em conhecimento e vontade por no ser este o lugar adequado para defender um conceito meramente cognitivo de dolo (uma tal defesa em GRECO. Dolo sem vontade. In: SILVA DIAS e outros [coords.]. Liber Amicorum de Jos de Sousa e Brito. Coimbra: Almedina, 2009, p. 885 e ss.)

    Lus GrecoDoutor e LL.M. em Direito pela

    Universidade Ludwig Maximilian (Munique). Assistente cientfico junto ctedra do

    Professor Doutor H. C. Mult. Bernd Schnemann.

    O IBCCRIM disponibiliza espao para os interessados manifestarem suas opinies, crticas ou sugestes sob o ponto de vista exposto no Boletim. Participe: envie-nos sua contribuio em 6.700 toques.

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    por todos conhecido o fato de que Franz Von Liszt, fundador da moderna Poltica Cri-minal, nascida graas aos seus estudos no final do sculo XIX, deu cincia do Direito Penal uma nova e mais complexa estrutura, ao procurar fazer dela uma disciplina completa, resultante da fuso de outras cincias heterogneas, como a Dogmtica Penal, a Criminologia e a Poltica Criminal: a gesamte Strafrechtswissenchaft (cincia total do Direito Penal).(1) Contudo, ao instituir a novel disciplina, Von Liszt tambm tratou de deixar claro o papel a ser desempenhado por cada uma dessas cincias, estabelecendo as diferenas entre Direito Penal e Poltica Criminal, mediante afirmaes clssicas como o Cdigo Penal a Magna Carta do delinquente e o Direito Penal a insupervel barreira da Poltica Criminal.(2)

    Pois bem, no ltimo dia 06 de setembro, a 1 Turma do STF concedeu Habeas Cor-pus (107.801-SP) a um motorista que, ao dirigir em estado de embriaguez, teria provocado a mor-te de vtima em acidente de trnsito. A deciso da turma desclassificou a conduta imputada ao acusado de homicdio doloso para homicdio culposo na direo de veculo, obrigando a reconduo do crime do art. 121 do Cdigo Penal para o art. 302 da Lei 9.503/97 (Cdigo de Trnsito Brasileiro), com a consequente de-clarao da incompetncia do Tribunal do Juri para seu julgamento. Ao expor seu voto-vista, o Ministro Luiz Fux afirmou que o homicdio na forma culposa na direo de veculo automotor prevalece se a capitulao atribuda ao fato como homicdio doloso decorre de mera presuno perante a embriaguez alcolica eventual. Conforme o entendimento do Ministro, a embriaguez que conduz responsabilizao a ttulo doloso aquela em que o sujeito tem como objetivo se encorajar para praticar o ilcito (embriaguez pre-ordenada, que permite a aplicao da chamada teoria da actio libera in causa, agravando a pena nos termos do art. 61, II, l, CP) ou aquela em que o agente assume claramente o risco de produzir o resultado ( dizer, quando o autor atua com dolo eventual, tal como o conceitua o art. 18, I, CP).

    Por trs dessa desclassificao, que gerou intensa polmica jurdica e social, existem pelo menos duas importantes questes a serem levan-tadas e debatidas. A primeira delas diz respeito ao prprio conceito de dolo eventual adotado pelo Cdigo Penal, que, como j se sabe, se refere exclusivamente ao fato de o agente assumir o risco de produzir o resultado lesivo. A esse respeito, tem-se que a lei penal brasileira ado-tou a teoria do consentimento, da assuno ou da aprovao, segundo a qual o dolo eventual exige que o autor tenha efetivamente consentido em causar o resultado, alm de consider-lo como possvel. Essa teoria, porm, alvo de severas crticas por parte dos estudiosos do tema, pois uma coisa assumir apenas o risco de se causar o resultado, e outra bem diferente assumir O

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    O STF E O HOMICDIO CULPOSO NO TRNSITO: O DIREITO PENAL AINDA A INSUPERVEL BARREIRA DA POLTICA CRIMINAL!Gisele Mendes de Carvalho

    o prprio resultado em si mesmo.(3) Dito de outro modo, quem com dolo eventual assume a probabilidade de o resultado ocorrer, em um primeiro momento, assume o risco de o mesmo se verificar ou no, e somente num segundo mo-mento, diante de tal dilema, prefere continuar a agir a se abster de realizar o comportamento perigoso, aceitando assim a prpria ocorrncia do resultado. O primeiro momento deste ra-ciocnio, portanto, idntico ao raciocnio que antecede a verificao da culpa consciente, pois tambm nela o autor assume a existncia do mero risco, mas calcula de forma imprudente que o mesmo no se verificar no resultado, ou seja, o risco no se transformar em uma leso. Destarte, s naquele segundo momento, em que o autor assume o prprio resultado, que ele age com dolo eventual, ignorando a necessidade de interromper o curso causal que o provocar, e decide continuar a agir. Assumir o risco do resultado e assumir que o mesmo ocorra como consequncia direta de um comportamento so, portanto, coisas distintas. Se o autor no con-sidera como certa, mas apenas como provvel, a ocorrncia do resultado lesivo, no possvel afirmar que atuou necessariamente com dolo eventual. Nesse ltimo caso, tem-se apenas culpa consciente, pois o agente representa a probabilidade do resultado (elemento cognitivo do dolo), mas no o aceita como consequncia de sua ao ou omisso (elemento volitivo). Sem o elemento volitivo, verdadeira ratio da incriminao dos comportamentos dolosos,(4) o dolo eventual transforma-se em mera culpa consciente, devendo ser reputada injusta qual-quer condenao a ttulo doloso.

    Nessa linha, entende-se que deve ser afastado o conceito de dolo eventual constante do art. 18, I, do CP, pois ele d margem a interpretaes desastrosas que motivam a condenao por dolo eventual quando o que se tem, na verdade, imprudncia consciente (seja por excesso de velocidade, embriaguez eventual ou outra forma de atuao com falta do cuidado objetivamente devido). Contudo, o esclarecimento de uma se-gunda questo pe em evidncia a razo pela qual essas interpretaes tm prevalecido em nossos tribunais. Trata-se de um produto da inadvertida confuso entre as funes do Direito Penal e da Poltica Criminal, provocando uma autntica invaso da Dogmtica Penal pelos objetivos de combate ao crime, com grave risco para os direitos e garantias fundamentais do ru. Como sabido, a Poltica Criminal, desde sua criao por Von Liszt, tem por finalidade a elaborao de estratgias de preveno e combate ao crime, a partir dos estudos cientficos elaborados pelos cri-minlogos, com base em critrios axiolgicos de convenincia e oportunidade (ou seja, dependen-do das necessidades do momento histrico em que a poltica se converte em lei). Ao transformar a culpa consciente em dolo eventual com o obje-

    tivo de punir de forma mais severa os autores de crimes imprudentes no trnsito, reduzindo assim sua incidncia, o aplicador da lei penal confunde as funes das cincias que compunham a gesamte Strafrechtswissenchaft de Von Liszt, permitindo que as necessidades da Poltica Criminal (isto , a preveno e o combate da imprudncia no trn-sito) se imiscuam na determinao de conceitos basilares da Dogmtica Penal, verdadeiros balu-artes da responsabilidade penal subjetiva, como so os conceitos de dolo e culpa, colocando em grave risco os direitos e garantias constitucionais do acusado (entre eles, o princpio in dubio pro reo, que impe a condenao por culpa quando o dolo no reste inexoravelmente comprovado). Trata-se de mais uma manifestao funcionalista do Direito Penal, que se olvida da importncia de que conceitos ontolgicos como dolo eventual e culpa consciente nunca se confundam, sob pena de retorno aos tempos da responsabilidade penal objetiva que a Parte Geral do Cdigo Penal bra-sileiro de 1984 tratou de condenar a um salutar esquecimento. Sob o pretexto de ser cada vez mais funcional, o Direito Penal torna-se aos poucos um instrumento da poltica e de sua volatilidade, buscando a todo preo a garantia da eficcia do sistema, como se o homem devesse converter-se em espcie de guardio da ordem jurdica, e no a ordem jurdica a guardi dos direitos do homem.(5)

    Como bem salienta Gracia Martn, toda pretenso de solucionar problemas axiolgicos com instrumentos ontolgicos s pode levar a um agravamento do problema axiolgico.(6) o que se v acontecer. Salve a deciso do STF no HC 107.801-SP, que (ainda) situa o Direito Penal como insupervel barreira da Poltica Criminal!

    NOTAS(1) Vide, a respeito, PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito

    Penal brasileiro, Parte Geral. 10. ed. So Paulo: RT, 2010, p. 93.

    (2) VON LISZT, Franz. La teoria dello scopo nel Diritto Penale. Milano: Giuffr, 1962, p. XXI.

    (3) Vide, nessa linha, CEREZO MIR, Jos. Curso de Derecho Penal espaol, Parte General. 6. ed. Madri: Tecnos, 2000, t. II, p. 148.

    (4) Vide DAZ PITA, Mara del Mar. El dolo eventual. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p. 300-301.

    (5) Nas palavras de Claus Roxin, no Direito Penal orientado axiologicamente, as finalidades reitoras que consti-tuem o sistema jurdico-penal s podem ser do tipo poltico-criminal, j que naturalmente os pressupostos da punibilidade devem ser orientados aos fins do Direito Penal (Derecho Penal. Parte General. Madrid: Civitas, t. I, 1997, p. 217). A citao demonstra gra-ficamente a confuso entre os fins do Direito Penal e da Poltica Criminal.

    (6) GRACIA MARTN, Luis. Fundamentos de Dogmtica Penal. Barcelona: Atelier, 2006, p. 139-140.

    Gisele Mendes de CarvalhoDoutora e Ps-doutora em Direito Penal pela

    Universidade de Zaragoza, Espanha.Professora adjunta de Direito Penal na

    Universidade Estadual de Maring (UEM-PR).

  • BOLETIM IBCCRIM - ANO 19 - N 229 - DEZEMBRO - 201110

    A Lei Maria da Penha buscou tutelar de forma especfica a mulher, vtima de violn-cia domstica, familiar e de relacionamento ntimo, instituindo tratamento jurdico diverso daquele contido no Cdigo Penal, porque delimita, quanto sua aplicao, o sujeito passivo das modalidades de agresso, que s pode ser a mulher.

    No se pode deduzir, porm, que a mu-lher seja a nica e exclusiva vtima potencial ou real de violncia domstica, familiar ou de relacionamento ntimo. Tambm o homem pode s-lo, tanto emprica quanto norma-tivamente, conforme, alis, se depreende da redao do 9 do art. 129 do Cdigo Penal, que no faz restrio a respeito das qualidades de gnero do sujeito passivo, o qual pode abranger ambos os sexos.(1) O que a lei delimita so as medidas de assistncia e proteo, as quais, em princpio, so aplic-veis somente vtima mulher.

    Souza traduz, em sua obra, o conceito de sujeito passivo e sujeito ativo, assinalando para este ltimo duas correntes. A lei, em vrias partes de seus dispositivos e, espe-cialmente, em seu prembulo, deixa claro que o sujeito passivo reconhecido por ela apenas a mulher. Tanto a mulher que j no mais conviva com a pessoa responsvel pela agresso quanto aquela que nunca tenha convivido, mas que tenha mantido ou man-tenha uma relao ntima com o agressor ou agressora, podem figurar no polo passivo, no importando que ocorra somente no mbito domstico, mas fora dele. Quanto ao sujeito ativo, h divergncias. Uma pri-meira corrente defende que, por tratar-se de crime de gnero cujos fins principais esto voltados para a proteo da mulher vtima de violncia, no polo ativo pode figurar apenas o homem e, quando muito, a mulher que, na forma do pargrafo nico do art. 5 da Lei, mantenha uma relao homoafetiva com a vtima.(2) J a segunda corrente, que a defendida por Souza, juntamente com Gomes e Bianchini,(3) entende que ser mais coerente incluir-se como sujeito ativo tanto o homem quanto a mulher. Com isso se dar menos ensejo a possveis arguies de inconstitucionalidade, pois passa a tratar igualmente homens e mulheres, quando vis-tos sob a tica do polo ativo, resguardando a primazia mulher apenas enquanto vtima. Essa corrente defende que a nfase princi-pal da lei no est na questo do gnero do agressor, que tanto pode ser homem como mulher.

    Aqui, defende-se uma terceira corrente. A Lei deve ser tratada como uma lei de gnero,

    que se destina a proteger a mulher, em face de sua fragilidade dentro de um contexto histrico, social e cultural. Mas admite-se estender suas medidas protetivas, tambm, em favor de qualquer pessoa (sujeito passivo), desde que a violncia tenha ocorrn-cia dentro de um contexto domstico, familiar ou de relacionamento ntimo. Nesse caso, a pessoa a ser protegida pode ser tanto o homem quanto a mulher.

    Dias prev a possibilidade de o sujeito passivo no ser necessariamente a mulher, quando a lei institui mais uma majorante ao crime de leso corporal em sede de violn-cia domstica, se o crime for cometido contra pessoa por-tadora de deficincia. Justifica que, em se tratando de deficiente fsico, como sujeito passivo de uma leso corporal, a pena ser aumentada de um tero, seja aquele homem ou mulher.(4)

    A finalidade da posio aqui adotada considerar como sujeito passivo tanto ho-mem quanto a mulher, independentemente de tratar-se de pessoa portadora de deficin-cia. Para dar efetividade lei, no sentido de conferir mais garantias aos sujeitos passivos, a doutrina, a jurisprudncia e as autoridades competentes atuam de forma positiva dian-te das novas necessidades que surgem. A Lei foi criada nos termos do art. 226, 8, da CF/88, que inseriu em seu texto a proteo famlia, na pessoa de cada um dos que a integram, quanto criao de mecanismos para coibir a violncia no mbito de suas relaes. No a entidade familiar, em si, a que o Estado prestar assistncia, mas ao marido, mulher, aos filhos, segundo as necessidades de cada um, at mesmo em contraposio aos outros membros familiares.(5) A sociedade deve cobrar do Estado atuao efetiva na implementao de medidas que promovam a extino da violncia. Em alguns Estados, Varas Espe-cializadas de Violncia Contra a Mulher j se encontram em funcionamento para dar efetividade proteo constitucional, conferindo ao Legislativo a possibilidade de criao de norma especfica, capaz de garantir as condies para chancelar de-terminadas situaes cautelares a serem providas pelo Judicirio. O Estado passa a atuar no combate violncia contra a mulher, propondo alternativas para essas

    demandas; alternativas estas, no s para as mulheres vtimas de violncia e que precisam de proteo, mas tambm para todos os mem-bros que integram a famlia, sob o respeito

    do Princpio da Dignidade da Pessoa Humana.

    imperioso que se esten-dam os benefcios da Lei aos discriminados que solicita-rem proteo ao Judicirio, caso a caso, pois h interesse de agir, e o Judicirio no pode negar a prestao juris-dicional. Ademais, ser que existe a possibilidade de apli-cao analgica das medidas protetivas da Lei em favor do homem? Ou ser caso de uma interpretao extensiva? A analogia no Direito Penal proibida quando for utili-zada de modo a prejudicar o

    agente, seja ampliando o contedo dos tipos penais incriminadores, a fim de abranger hipteses no previstas expressamente pelo legislador, uma vez que um fato no definido em lei como crime estaria sendo considerado como tal, seja estendendo seus elementos para alm de sua prpria natureza. Ainda que o fato possa ser moralmente reprovvel, ou que os enunciados normativos sejam d-bios ou insuficientes em face dos objetivos sociais ou morais, o direito no pode servir de instrumento da poltica, da ideologia ou mesmo dos sentimentos; s pode atuar de conformidade com os estritos limites da legalidade e conforme a natureza das coisas. Atendendo a uma forma precisa de interpretao, nada impede que as medidas protetivas da lei sejam aplicadas. Isto porque se as medidas de proteo de natureza no penal devem englobar a pessoa, como tal, ser possvel estender seus benefcios igual-mente a todos os que se situem no mesmo contexto de proteo.

    Tais medidas no tm um carter efetiva-mente penal, mas sim civil, com abrangncia no direito de famlia e no direito administra-tivo, setores esses que admitem uma interpre-tao extensiva ou at mesmo uma criao analgica com mais facilidade do que no Direito Penal. No h impedimento que faa com que o Judicirio no atenda a quem est sendo ameaado ou lesado de seus direitos. A primeira sentena proferida nesse sentido foi em Cuiab, Mato Grosso, e, em decorrncia dela, no mesmo Estado, surgiu posiciona-mento jurisprudencial que caminhou de forma inovadora, quando confirma e justifica

    LEI MARIA DA PENHA EM FAVOR DO HOMEMIara Boldrini Sandes

    O sentido conferido pela CF/88 proteo dos

    membros familiares conduziria

    extenso da norma em favor do homem como consequncia

    de um processo comparativo

    interpretativo, ainda que analgico.

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    at uma proteo futura para as partes, ao coibir, desde logo, com as medidas protetivas da Lei, possveis violncias e ameaas que possam surgir. H, tambm, deciso em Mi-nas Gerais, pronunciamento do Ministrio Pblico de Santa Catarina, deciso do Juiz da mesma localidade, no Esprito Santo e no Rio Grande do Sul. Hoje, a extenso de aplicao da Lei bem significativa. No Rio Grande do Sul, foi aplicada a Lei em favor de dois homens que mantinham uma unio homoafetiva. As medidas foram deferidas a um dos homens, porque sofria ameaas de seu companheiro. Na deciso do Esprito Santo, a juza argumentou que a sua deci-so fora tomada com base no poder geral de cautela do juiz. Se ao juiz coubesse uma aplicao fria da lei, sem uma anlise do caso concreto, bastaria ele lanar o problema para um computador resolv-lo matematicamente, justificou a magistrada.(6) O poder geral de cautela tem como finalidade afastar situaes periclitantes e perigosas que poderiam pr em risco o desenvolvimento ou o resultado finalstico do processo no qual se busca a satisfao material do direito pleiteado, sempre que presentes o fumus boni iuris e o periculum damnum irreparabile, a deter-minado caso ftico, cuja previso especfica escapou ao legislador.(7)

    Na Espanha, a lei sobre violncia fami-liar tem gerado muita discusso e polmica quanto sua constitucionalidade, tal como a Lei Maria da Penha. A lei espanhola pre-v penas mais rigorosas para homens que agridem mulheres. Mas, ao contrrio, para as mulheres que agridem homens prev tambm punio, s que menos rigorosa. L, diferentemente do Brasil, h legislao aplicvel aos casos de violncia contra o homem. Na ausncia de lei aplicvel, por que no se valer, aqui, de uma interpreta-o extensiva ou mesmo de uma analogia para a proteo civil dos necessitados? primeira vista, poder-se-ia tratar de criao analgica, porque a lei no prev expressa-mente que o homem seja beneficirio de tais medidas. Nesse caso, tomando-se em conta a semelhana de situaes, criar-se-ia uma norma capaz de abarc-las quando se tratasse de uma violncia praticada contra o homem. Mas ser que se trata mesmo da criao de uma norma? Na criao analgica, a norma no existe; s existe a situao de fato no regulada normativa-mente. Ento, o julgador cria a norma, em face da semelhana de situaes e a aplica ao caso concreto. No mbito do contex-to situado pela Lei, h referncia a uma situao de fato semelhante: o ambiente familiar, domstico ou de relacionamento ntimo, no qual se desenvolve a violncia. Por outro lado, a norma do art. 226, 8,

    da CF/88 confere proteo no apenas mulher, como tambm a todos os mem-bros de uma famlia. V-se, assim, que as medidas de proteo institudas pela Lei so consequncia de uma regulamentao constitucional. A Lei nada mais faz do que tornar eficaz o enunciado constitucional, conferindo-lhe aplicabilidade. Com isso, a norma constitucional deixa de ser de efi-ccia contida e passa a tornar-se de eficcia plena com relao mulher.

    Normalmente, diz-se que, na analogia, o elemento novo (no caso, o homem) no est compreendido como elemento positivo da norma (no caso, a mulher), mas sim como seu elemento negativo, enquanto que, na interpretao extensiva, seria meramente um elemento neutro. Hassemer afirma categoricamente que aplicar o direito sempre um processo analgico. Uma norma jurdica no pode se estender sem recorrer a seu sentido, ao tertium comparationis, que serve de unio dos diversos casos e possibili-ta sua comparao como casos da norma.(8)

    Na viso tradicional, afirma-se que a proi-bio da analogia visa a comparar o fato com a descrio literal da lei, vedando que essa descrio literal seja ampliada. Mas, como leciona Hassemer, a descrio literal no pode ser apreendida sem que esteja associada ao sentido da norma. Diz ele que, uma vez que qualquer aplicao do direito analogia e uma vez que no possvel entender a norma, salvo que se trate de uma questo trivial, se se renuncia ao tertium comparationis, no h possibili-dade de assinalar limites claros entre inter-pretao permitida e analogia proibida.(9)

    Tavares assinala que no fundo, todo pro-cesso de interpretao um procedimento analgico. Negar esse fato no ajuda em nada para limitar o poder estatal. Pelo contrrio, se se deixa a proteo vinculada unicamente ao plano conceitual abstrato, converte-se em letra morta o princpio da legalidade.(10) Atendendo a isso, prope Hassemer que a chamada proibio de analogia deve ser reservada queles casos em que se afetem direitos do acusado, em seu mbito de liberdade, pois, ento, estaria, nesse caso, tambm vedada uma interpretao exten-siva. Uma vez que no se trate de restringir direitos subjetivos de liberdade do ru, mas conferir proteo ao homem, vtima de violncia, tanto a analogia quanto a interpretao extensiva estariam permiti-das. Haver analogia se se entender que a Lei deva ser interpretada em seus estritos limites literais, que inclui apenas a mulher como sua beneficiria; nesse caso, a incluso do homem, como elemento positivo da norma implica um ntido procedimento analgico. Haver, porm, interpretao

    extensiva, se entender que a Lei deva ser interpretada de acordo com seu sentido constitucional, estendendo sua proteo tambm ao homem. O sentido conferido pela CF/88 proteo dos membros fami-liares conduziria extenso da norma em favor do homem como consequncia de um processo comparativo interpretativo, ainda que analgico. Mas como as medidas so de carter civil e no penal, no esto vedadas ao serem estendidas ao homem. garantir segurana a esses indivduos, cessando fu-turas ameaas, leses e at a morte. O que se busca que, por meio do deferimento, a vtima se resguarde do bem maior que ela tem que a vida.

    Dessa forma, pode-se deduzir que a apli-cao das medidas protetivas cautelares em favor do homem no implica inseri-las no procedimento especfico criminal, pois, en-to, estar-se-ia diante de uma interpretao criadora, o que conduziria a uma analogia in malam partem. Se, no curso de um julga-mento de um processo principal, aplicar-se, por exemplo, a Lei em favor do homem e em desfavor da mulher em todos seus efeitos, mais especificamente, retirando-lhe a possibilidade de composio civil dos da-nos, a transao penal com a possibilidade de cumprimento de penas no privativas de liberdade e a suspenso condicional do processo, estar-se-o restringindo direitos relativos aos autores de crimes de menor potencial ofensivo, o que deve ser vedado, porque a insero de um no legitimado de tal tutela no pode eliminar as garantias e prerrogativas conferidas pela Lei 9.099/95. Somente no caso da violncia domstica tratada no art. 129, 9, do Cdigo Pe-nal, que no limita os sujeitos passivos, que se pode admitir uma exceo regra da proibio da analogia ou da chamada interpretao extensiva.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BITENCOURT, Cezar Roberto. Abrangncia da definio de violncia domstica. Boletim IBCCRIM, ano XVII, n. 198, Maio/2009.

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    PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 9. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 2.

    SILVA, Jos Afonso da. Comentrio Contextual Cons-tituio. 4. ed. So Paulo: Malheiros Editores, 2007.

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    Eternizado como precursor da Crimino-logia, o mdico italiano Cesare Lombroso, ao lado de Raffaele Garofalo e de Enrico Ferri, inaugurou a chamada Escola Positiva, movimento intelectual caracterizado pela tentativa de elaborao de uma etiologia do crime.

    Os representantes de tal Escola, ao inti-tul-la positiva, buscavam afirmar-se em contraposio hegemonia que se dava at ento no campo penal, no qual predominava um estudo formalista e abstrato do crime, preocupado em assentar os fundamentos filosficos de um sistema lgico baseado no livre arbtrio, em que o crime figurava como ente jurdico.

    Lombroso, entretanto, afirmava o carter natural e ontolgico do crime, buscando identificar os sinais fsicos e antropolgicos de um indivduo delinquente, caracterizado por um processo de regresso atvica, da qual resultariam a rudeza dos traos, despropor-es e deformidades fsicas, propenses ao uso de tatuagens, agressividade e uma certa distoro na personalidade. Tornaram-se cones, nesse contexto, os instrumentos de medio de crnio expostos hoje ao redor do mundo em museus dedicados a Lombroso e histria do que ficou conhecido como antropologia criminal.

    Em que pesem as diferentes orientaes da Escola Positiva nfase na determinao social (Ferri) ou psicolgica (Garofalo) Lombroso a grande matriz metodolgica de tais abordagens, caracterizadas pelo de-terminismo, pela crena na existncia de leis naturais e imutveis a governar os fenmenos e pela induo das concluses a respeito das causas do crime.

    No Brasil, o pensamento lombrosiano fez-se chegar por Joo Vieira de Arajo, que, do Recife, se encarregou de divulgar as ideias do mdico italiano pelo Brasil (nota-damente em So Paulo), e, posteriormente, por Nina Rodrigues, em seus estudos sobre as raas humanas.

    LOMBROSO ENTRE NS: A PERSISTNCIA DA PERSONALIDADE COMO CRITRIO DE AUMENTO DE PENA NO DIREITO BRASILEIROMarcel Soares de Souza

    As crticas a Lombroso so de todo co-nhecidas, e, de suas ideias, pode-se afirmar, at certo ponto, estarem superadas.

    Lombroso compartilhou de uma orien-tao positivista e evolucio-nista que justificou a tomada violenta da frica no sculo XIX, com base na inferiori-dade das raas que habitavam as colnias. O argumento era preciso: os negros, atvi-cos e involudos, dotados de crebros menores, s teriam por destino lgico o subjugo ao homem branco, europeu, normal. Seus mtodos de pes-quisa e observao partiam do estudo de presos j seleciona-dos pelo sistema penal, o que lhe dava um ponto de partida limitado ao ignorar a seleti-vidade prvia dos processos criminais, em uma confuso entre causas de criminalidade e condies de criminalizao, como astutamente percebeu Zaffaroni. Ademais, uma questo epistemolgica gra-ve: como extrair da ordem do natural, do fisiolgico, do psquico, os fundamentos e o conceito do crime, sendo este pertencente a uma ordem humana e preso a um dever-ser?

    Em grande medida superado nos meios acadmicos, Lombroso ainda se faz sentir quando, por exemplo, percebemos a persistn-cia da personalidade no art. 59 do Cdigo Pe-nal (bem como em demais diplomas vigentes, como o caso da Lei 11.343/06) e a insistncia dos tribunais em seguir lhe dando ouvidos.

    verdade que a Smula 444/STJ vem sendo apropriadamente usada para impedir que inquritos e processos inconclusos sejam usados para fins de aferio da personalidade, na primeira etapa do sistema trifsico de do-simetria penal. O problema, entretanto, no reside exatamente em como se determinar a

    personalidade legalmente prevista, mas na questo da personalidade em si.

    Nesse sentido, questes de trs ordens deveriam recomendar o imediato afastamento

    do conceito de nosso corpo legislativo penal.

    A primeira intrassist-mica e diz respeito a certa incoerncia. Em rpida an-lise, temos, no Brasil, um sistema legal penal baseado na dicotomia pena-medida de segurana, esta associada a uma noo de recuperao/tratamento de patologias que, revelia da vontade pura de um agente, determinariam uma prtica criminosa, e aquela derivada da respon-sabilidade (imputabilidade) do sujeito. A seguirmos tal distino, se uma conduta determinada por uma perso-nalidade desajustada, de-formada, ou mesmo voltada prtica criminosa como constantemente se l em decises qual a pertinncia

    da categoria personalidade dentro de um sistema de penas fundamentado na imputa-bilidade? Faz sentido que algum ten