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Tribunal Constitucional Acórdãos 85.º volume 2012

TC Acordaos Vol85

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  • ATribunalConstitucionalAcrdos85. volume2012

  • TribunalConstitucionalAcrdos 85. Volume2012 (setembro a dezembro)

  • Ficha Tcnica:

    Paginao e edio digitalAtelier Grficos lApA

    maro 2013

  • 3Tribunal Constitucional Acrdos 85. Volume \ 2012 (setembro a dezembro)

  • FISCALIZAO PREVENTIVADA CONSTITUCIONALIDADENDICE GERAL

  • 6TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    Pginas

    I Acrdos do Tribunal Constitucional

    1 Fiscalizao abstrata da constitucionalidade e da legalidade 13

    Acrdo n. 404/12, de 18 de setembro de 2012 No declara a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, e do artigo 2., n. 1, da Lei n. 19/95, de 13 de julho, no segmento em que impem a prvia exaus-to das vias hierrquicas previstas na lei para a apresentao de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares ou agentes militarizados; declara a inconstitucionalidade, com fora obrigatria geral, da norma constante do artigo 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, na parte em que limita a possibilidade de apresentao de queixas ao Provedor de Justia por motivo de aes ou omisses das Foras Armadas aos casos em que ocorra violao dos direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos. 15

    Acrdo n. 412/12, de 25 de setembro de 2012 No conhece das questes da ilegalidade do artigo 2., n. 4, da Lei n. 49/2011, de 7 de setembro, e dos artigos 141.-A e 185.-A, aditados Lei do Oramento do Estado para 2011, pelo artigo 4. da Lei n. 60-A/2011, de 30 de dezembro, com fundamento em violao de disposies da Lei de Finanas das Regies Autnomas; no conhece da questo da inconstitucionalidade do artigo 141.-A, alnea b), aditado Lei do Oramento do Estado para 2011, pelo artigo 4. da Lei n. 60-A/2011, de 30 de dezembro; no conhece da questo da ilegalidade do artigo 2., n. 4, da Lei n. 49/2011, de 7 de setembro, com fundamento em violao do artigo 19., n. 1, do Estatuto Poltico--Administrativo da Regio Autnoma dos Aores e do artigo 107., n. 3, do Estatuto Pol-tico-Administrativo da Regio Autnoma da Madeira, bem como da questo da ilegalidade dos artigos 141.-A e 185.-A, aditados Lei do Oramento do Estado para 2011 pelo artigo 4. da Lei n. 60-A/2011, de 30 de dezembro, com fundamento em violao do artigo 107., n. 3, do Estatuto Poltico-Administrativo da Regio Autnoma da Madeira; no conhece da questo da inconstitucionalidade da interpretao do artigo 88. da Lei n. 91/2001, de 20 de agosto, na redao dada pela Lei n. 22/2011, de 20 de maio, de acordo com a qual um imposto extraordinrio liquidado como imposto adicional uma receita do Estado, mesmo que o imposto principal seja receita duma Regio Autnoma; no declara, com fora obriga-tria geral, a inconstitucionalidade do artigo 2., n. 4, da Lei n. 49/2011, de 7 de setembro, e dos artigos 141.-A, alnea a), e 185.-A, aditados Lei do Oramento do Estado para 2011 pelo artigo 4. da Lei n. 60-A/2011, de 30 de dezembro; no declara, com fora obrigatria geral, a ilegalidade, do artigo 2., n. 4, da Lei n. 49/2011, de 7 de setembro. 35

    Acrdo n. 568/12, de 27 de novembro de 2012 No declara a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 212. da Lei n. 64-B/2011, de 30 de dezembro (oramento do Estado para 2012). 65

  • 7ndiCe GerAl

    2 Fiscalizao concreta da constitucionalidade e da legalidade 75

    Acrdo n. 437/12, de 26 de setembro de 2012 Julga inconstitucional a norma conti-da no artigo 814. do Cdigo de Processo Civil (na redao introduzida pelo Decreto-Lei n. 226/2008, de 20 de novembro), quando interpretada no sentido de limitar a oposio execuo fundada em injuno qual foi aposta frmula executria. 77

    Acrdo n. 439/12, de 26 de setembro de 2012 Julga inconstitucional a interpretao normativa extrada do artigo 70., n. 1, alnea a), do Cdigo do Procedimento Adminis-trativo, no sentido de que, existindo distribuio domiciliria na localidade de residncia do notificado, suficiente o envio de carta, por via postal simples, para notificao da deciso de cancelamento do apoio judicirio, proferida com fundamento no disposto no artigo 10. da Lei n. 34/2004, de 29 de julho. 87

    Acrdo n. 441/12, de 26 de setembro de 2012 No julga inconstitucional a norma constan-te do n. 1 do artigo 49. da Lei Geral Tributria, na redao anterior da Lei n. 53-A/2006, de 29 de dezembro, quando interpretado no sentido de que a apresentao de impugnao judi-cial, para alm de interromper o decurso do prazo de prescrio, suspende ou protela o incio desse mesmo prazo para o momento em que transitar em julgado a respetiva deciso. 99

    Acrdo n. 442/12, de 26 de setembro de 2012 No julga inconstitucional a interpretao normativa extrada da conjugao entre o artigo 400., n. 3, do Cdigo de Processo Penal, e o artigo 721., n. 3, do Cdigo de Processo Civil. 113

    Acrdo n. 444/12, de 26 de setembro de 2012 No julga inconstitucionais as normas dos artigos 40., 43., n. 2, e 398., todos do Cdigo de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que o juiz que concordou com a sano proposta pelo Ministrio Pblico em processo sumarssimo, a qual no foi aceite pelo arguido, no est impedido de intervir no julgamento subsequente desse mesmo arguido. 121

    Acrdo n. 445/12, de 26 de setembro de 2012 No julga inconstitucional a norma dos artigos 120., n. 1, alnea b), e 121., n. 1, alnea b), ambos do Cdigo Penal, na interpretao segundo a qual a prescrio do procedimento criminal no se suspende, nem interrompe com a notificao da acusao particular, se esta no for acompanhada pelo Ministrio Pblico. 135

    Acrdo n. 465/12, de 1 de outubro de 2012 No julga inconstitucional a norma decor-rente dos artigos 342., 343. e 344. do Cdigo Civil, bem como do artigo 516. do Cdigo de Processo Civil, na interpretao segundo a qual o regime do nus da prova se aplica em direito processual laboral, fazendo impender sobre o trabalhador, nomeadamente, o encargo de provar a violao do seu direito ocupao efetiva. 147

  • 8TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    Acrdo n. 466/12, de 1 de outubro de 2012 No julga inconstitucional a norma do arti-go 4., n. 1, da Lei da Concorrncia (Lei n. 18/2003, de 11 de junho). 155

    Acrdo n. 474/12, de 23 de outubro de 2012 No julga inconstitucional a norma do n. 2 do artigo 194. do Cdigo de Processo Penal, na redao resultante da Lei n. 48/2007, de 29 de agosto. 165

    Acrdo n. 528/12, de 7 de novembro de 2012 No julga inconstitucionais as normas dos artigos 72., n. 1, e 76., n. 2, ambos do Estatuto dos Magistrados Judiciais, conjugados com o artigo 77. do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 1984, e o artigo 57. do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 2002, na interpretao segundo a qual a jurisdio administrativa e fiscal e a jurisdio comum so jurisdies absolutamente distin-tas e autnomas para efeitos de contagem da antiguidade na categoria de um juiz de direito que transita, por concurso, de uma para a outra. 181

    Acrdo n. 529/12, de 7 de novembro de 2012 Julga inconstitucional a norma contida no n. 2 do artigo 814. do Cdigo do Processo Civil, na redao do Decreto-Lei n. 226/2008, de 20 de novembro. 199

    Acrdo n. 530/12, de 7 de novembro de 2012 No julga inconstitucional a norma, extrada da alnea c) do n. 2 do artigo 189. do Cdigo da Insolvncia e da Recuperao de Empresas (CIRE), no concreto segmento que impe que o juiz, na sentena que qualifique a insolvncia como culposa, decrete a inibio para o exerccio do comrcio durante um perodo de 2 a 10 anos, bem como para a ocupao de qualquer cargo de titular de rgo de sociedade comercial ou civil, associao ou fundao privada de atividade econmica, empre-sa pblica ou cooperativa, do administrador da sociedade comercial declarada insolvente, que tenha sido declarado afetado pela aludida qualificao. 207

    Acrdo n. 540/12, de 15 de novembro de 2012 Julga inconstitucional a norma dos arti-gos 399. e 400. do Cdigo de Processo Penal, na verso dada pela Lei n. 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual admissvel o recurso para o Supremo Tribunal de Justia, interposto pelo assistente, do acrdo do Tribunal da Relao, proferido em recurso, que absolva o argui-do por determinado crime e que, assim, revogue a condenao do mesmo na 1. instncia numa pena no privativa da liberdade. 215

    Acrdo n. 560/12, de 21 de novembro de 2012 No julga inconstitucional a norma constante do artigo 506. do Cdigo de Processo Civil, interpretada no sentido segundo o qual, uma vez verificados os demais pressupostos a fixados, nada obsta deduo de articula-do superveniente, integrando matria constitutiva de nova causa de pedir. 225

  • 9Acrdo n. 581/12, de 5 de dezembro de 2012 No julga inconstitucional, quando aplic-vel a postos de abastecimento de combustveis lquidos inteiramente localizados em proprie-dade privada, o artigo 70., n. 1, 1.1, da Tabela de Taxas e Outras Receitas do Municpio de Sintra para 2008, na verso publicada pelo Aviso n. 26235/2008 no Dirio da Repblica, II Srie, de 31 de outubro de 2008, e mantido em vigor, sem qualquer atualizao, no ano de 2009, por deliberao da Assembleia Municipal de Sintra, de 27 de fevereiro de 2009, confor-me o n. 1 do Aviso n. 5156/2009, publicado no Dirio da Repblica, II Srie, de 9 de maro de 2009. 235

    Acrdo n. 590/12, de 5 de dezembro de 2012 Julga inconstitucional o artigo 400., n. 1, alnea f ), do Cdigo de Processo Penal, na redao da Lei n. 48/2007, de 29 de agosto, na interpretao de que havendo uma pena nica superior a 8 anos, no pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justia a matria decisria referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de priso. 265

    Acrdo n. 591/12, de 5 de dezembro de 2012 Julga inconstitucional a interpretao nor-mativa resultante da conjugao das normas da alnea c) do n. 1 do artigo 432. e alnea e) do n. 1 do artigo 400. do Cdigo de Processo Penal, segundo a qual irrecorrvel o acrdo proferido pelas Relaes, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instncia tenha aplicado pena no privativa da liberdade. 277

    Acrdo n. 592/12, de 5 de dezembro de 2012 No conhece parcialmente o objeto do recurso, ou seja, quanto s questes de inconstitucionalidade material do artigo 5., n. 1, do diploma preambular da Lei Geral Tributria (LGT), conjugado com o disposto no artigo 297. do Cdigo Civil e inconstitucionalidade orgnica do artigo 5. do diploma preambular da LGT; no julga inconstitucional os artigos 12. e 49., n. 3, da Lei Geral Tributria, na sua verso originria, interpretados no sentido de que as causas de interrupo da prescrio previstas ex novo so aplicveis aos prazos de prescrio que se iniciaram antes da entrada em vigor da LGT. 293

    Acrdo n. 594/12, de 6 de dezembro de 2012 Julga inconstitucional a norma constante da alnea b) do artigo 10. do Decreto-Lei n. 393-A/99, de 2 de outubro, quando interpre-tada no sentido de excluir, do mbito de aplicao deste regime especial de acesso ao ensino superior, os candidatos que pretendam dele beneficiar no ano letivo imediatamente posterior quele em que concluram o curso de ensino secundrio num pas estrangeiro, e relativamente aos quais se verifique a cessao da misso oficial, ou da residncia nesse pas, entre a data da concluso do curso de ensino secundrio e a apresentao do requerimento de inscrio e matrcula. 305

    ndiCe GerAl

  • 10

    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    Acrdo n. 595/12, de 6 de dezembro de 2012 No julga inconstitucional a norma que resulta da interpretao do n. 1 do artigo 14. do Decreto-Lei n. 282/2003, de 8 de novem-bro, em conjugao com a alnea n) do n. 3 do artigo 27. dos Estatutos da Santa Casa de Misericrdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei n. 235/2008, de 3 de dezembro, no sentido de que compete ao Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericrdia de Lisboa instruir os processos por contraordenaes previstas naquele primeiro diploma legal e Dire-o desse Departamento a aplicao das correspondentes sanes. 317

    Acrdo n. 614/12, de 19 de dezembro de 2012 No julga inconstitucional o n. 6 do artigo 107. do Cdigo de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que o arguido preso preventivamente em processo declarado de excecional complexidade, nos termos dos n.os 3 e 4 do artigo 215. do mesmo Cdigo dever, querendo, requerer a prorrogao do prazo de recurso previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 411., igualmente do Cdigo de Processo Penal. 327

    Acrdo n. 617/12, de 19 de dezembro de 2012 Julga inconstitucional a norma do artigo 5., n. 1, da Lei n. 64/2008, de 5 de dezembro, na parte em que faz retroagir a 1 de janeiro de 2008 a alterao do artigo 81., n. 3, alnea a), do Cdigo do Imposto sobre o Rendimen-to das Pessoas Coletivas, consagrada no artigo 1.-A do aludido diploma legal. 341

    3 Reclamaes 353

    Acrdo n. 504/12, de 24 de outubro de 2012 Indefere reclamao contra deciso de no admisso de recurso, quer por a deciso recorrida no ter aplicado parte das normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada, quer por, quanto a outra norma, a questo de inconstitu-cionalide no ter sido suscitada de forma processualmente adequada. 355

    4 Outros processos 363

    Acrdo n. 400/12, de 4 de setembro de 2012 Pronuncia-se pela ilegalidade do referendo local que, na sua reunio extraordinria de 17 de agosto de 2012, a Assembleia de Freguesia de Meia Via deliberou realizar. 365

    Acrdo n. 402/12, de 18 de setembro de 2012 Pronuncia-se pela ilegalidade da delibera-o da realizao de referendo local tomada pela Assembleia de Freguesia de Melres em 30 de agosto de 2012. 375

    Acrdo n. 547/12, de 20 de novembro de 2012 Julga improcedentes os pedidos de decla-rao de nulidade de deliberaes de rgos do Partido Socialista (novos Estatutos do Partido Socialista). 379

  • 11

    Acrdo n. 616/12, de 19 de dezembro de 2012 Decide que, por ter exercido o cargo de vereador de Cmara Municipal no perodo compreendido entre 30 de junho de 2009 e 21 de outubro de 2009, o requerente se encontra abrangido pela previso da alnea n) do n. 1 do artigo 4. da Lei n. 4/83, de 2 de abril, com as alteraes introduzidas pela Lei n. 25/95, de 18 de agosto, e, consequentemente, sujeito ao dever de apresentao das declaraes de patrimnio, rendimentos e cargos sociais previstas nos artigos 1. e 2. do referido diploma legal. 411

    Acrdo n. 618/12, de 19 de dezembro de 2012 Nega provimento ao recurso interposto para o Plenrio do Acrdo n. 547/12 (que julgou improcedentes pedidos de declarao de nulidade de certas deliberaes de rgos do Partido Socialista). 417

    II Acrdos assinados entre setembro e dezembro de 2012 no publicados no presente volume. 433

    III ndice de preceitos normativos 451

    1. Constituio da Repblica 4532. Lei n. 28/82, de 15 de novembro (Organizao, funcionamento e processo do Tribunal

    Constitucional) 4553. Diplomas relativos a partidos polticos e controle pblico da riqueza, incompatibilidades e

    impedimentos de titulares de cargos polticos 4564. Diplomas relativos a referendo local 4575. Diplomas e preceitos legais e regulamentares submetidos a juzo de constitucionalidade 458

    IV ndice ideogrfico 463

    Texto escrito conforme o Acordo Ortogrfico convertido pelo Lince.

    ndiCe GerAl

  • FISCALIZAO ABSTRATA DA CONSTITUCIONALIDADE E DA LEGALIDADE

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    ACrdo n. 404/12

    ACRDO N. 404/12De 18 de setembro de 2012

    SUMRIO:

    I A soluo legal sob apreciao no comporta qualquer amputao de uma dimenso do contedo do direito de queixa, de natureza essencial ou no, pois os militares no se viram privados do direito de queixa ao Provedor de Justia, o qual se mantm inclume e exercitvel, com o contedo que cons-titucional e legalmente lhe cabe, apesar da imposta exausto prvia das vias hierrquicas de recurso; contudo, esta imposio legal representa uma interferncia desvantajosa num direito que, prima facie, admitiria qualquer forma de exerccio e uma disponibilidade incondicionada, o que obriga a equacio-nar a legitimidade desta eficcia indiscutivelmente limitadora, ainda que somente no plano do tempo e do modo de exerccio.

    II A soluo respeita todos os parmetros em que se desdobra o princpio da proporcionalidade: sendo idnea preservao da hierarquia de comando e de disciplina das Foras Armadas, uma vez que garante a sua atuao, ela revela-se igualmente necessria consecuo daquele objetivo; por outro lado, a exigncia de prvio esgotamento das vias hierrquicas de recurso no afeta o direito de queixa para alm da justa medida, tendo em conta o elevado valor constitucional do bem protegido e, sobre-tudo, os muito diminutos grau e intensidade do sacrifcio causado ao direito de queixa; a soluo leva equilibradamente em conta a natureza prpria da instituio militar e as suas exigncias funcionais, bem como o estatuto especfico que rege aqueles que nela prestam servio, mas sem sacrifcio desme-surado do direito de queixa, como direito fundamental de cidadania.

    No declara a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, e do artigo 2., n. 1, da Lei n. 19/95, de 13 de julho, no segmento em que impem a prvia exausto das vias hierrquicas previstas na lei para a apresentao de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares ou agentes militarizados; declara a inconstitucionalidade, com fora obrigatria geral, da norma constante do artigo 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, na parte em que limita a possibilidade de apresentao de queixas ao Provedor de Justia por motivo de aes ou omisses das Foras Armadas aos casos em que ocorra violao dos direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos.

    Processo: n. 773/11.Requerente: Provedor de Justia.Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro.

  • 16

    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    III A norma do artigo 34., n. 1, da Lei de Defesa Nacional, no segmento que restringe o direito de queixa dos militares ao Provedor de Justia s aes ou omisses dos poderes pblicos responsveis pelas Foras Armadas de que resulte violao dos seus direitos, liberdades e garantias, tem uma efi-ccia excludente de contedos do direito de queixa ao Provedor de Justia que contraria, sem funda-mento razovel, o desenho constitucional desta instituio de controlo dos poderes pblicos, pois, de fora ficam a violao de direitos fundamentais do queixoso que no revistam a natureza de direitos, liberdades ou garantias, a violao de direitos, do mesmo titular, que no sejam direitos fundamentais, de quaisquer direitos de terceiros e a leso de interesses, do queixoso ou de terceiros, no tutelados por direitos.

    IV Por outro lado, se a conformao legal retira do direito de queixa dos militares a afetao de posies subjetivas que dele devem ser objeto, por imperativo constitucional, ignora completamente, a mais disso, a dimenso objetiva da atividade do Provedor de Justia, a quem tambm compete emitir reco-mendaes, ou desenvolver outras aes, at por iniciativa prpria, que obstem ou ponham termo a aes ou omisses dos poderes pblicos que ofendam objetivamente a ordem constitucional e a legalidade democrtica, pelo que representa uma restrio inconstitucional do direito de queixa con-sagrado no artigo 23. da Constituio da Repblica.

    Acordam, em Plenrio, no Tribunal Constitucional:

    I Relatrio

    1. Requerente e pedido

    O Provedor de Justia veio requerer, ao abrigo do disposto na alnea d) do n. 2 do artigo 281. da Constituio da Repblica Portuguesa (CRP) e no n. 1 do artigo 51. da Lei n. 28/82, de 15 de novembro, a declarao de inconstitucionalidade, com fora obrigatria geral, das normas constantes do artigo 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, que aprova a Lei de Defesa Nacional, e dos artigos 1., 2., n.os 1, 2 e 3, 4., n.os 1 e 2, e 5., n.os 1, 2 e 3, da Lei n. 19/95, de 13 de julho, diploma que estabelece o regime de queixa ao Provedor de Justia em matria de defesa nacional e Foras Armadas.

    A norma do artigo 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho (retificada e aprovada em anexo Declarao de Retificao n. 52/2009, de 20 de julho), que aprova a Lei de Defesa Nacional, tem a seguinte redao:

    Artigo 34.

    Provedor de Justia

    1 Os militares na efetividade de servio podem, depois de esgotados os recursos administrativos legalmente previstos, apresentar queixas ao Provedor de Justia por aes ou omisses dos poderes pblicos responsveis pelas

    Foras Armadas de que resulte violao dos seus direitos, liberdades e garantias, exceto em matria operacional ou

    classificada.

    2 ()

    O teor dos artigos 1., 2., n.os 1, 2 e 3, 4., n.os 1 e 2, e 5., n.os 1, 2 e 3, da Lei n. 19/95, de 13 de julho, diploma que

    estabelece o regime de queixa ao Provedor de Justia em matria de defesa nacional e Foras Armadas, o seguinte:

  • 17

    ACrdo n. 404/12

    Artigo 1.

    Queixa ao Provedor de Justia

    Todos os cidados, nos termos da Constituio e da lei, podem apresentar queixa ao Provedor de Justia por

    aes ou omisses dos poderes pblicos responsveis pelas Foras Armadas de que tenha resultado, nomeadamente,

    violao dos seus direitos, liberdades e garantias ou prejuzo que os afete.

    Artigo 2.

    Queixa por parte de militares ou de agentes militarizados das Foras Armadas

    1 Sendo queixosos os militares ou os agentes militarizados das Foras Armadas, a queixa referida no artigo anterior s pode ser apresentada ao Provedor de Justia uma vez esgotadas as vias hierrquicas estabelecidas na lei.

    2 O recurso interposto nos termos do nmero anterior considera-se indeferido decorridos que sejam 15 dias teis sem que seja decidido.

    3 Quando no haja lugar ao recurso hierrquico ou estiver esgotado o prazo para interpor recurso hierrquico da ao ou omisso, nos termos do n. 1, a queixa levada ao conhecimento do Chefe do Estado-Maior-General

    das Foras Armadas ou do chefe de estado-maior do respetivo ramo, conforme os casos, que dispe de 10 dias teis

    para se pronunciar, findos os quais, sem que a pretenso individual tenha sido satisfeita, pode a mesma ser dirigida

    diretamente ao Provedor de Justia.

    4 ()

    Artigo 4.

    Processo

    1 A queixa deve conter o nome completo do queixoso e a indicao da sua residncia, a sua identificao militar completa, a referncia fora, unidade, estabelecimento ou rgo em que desempenha funes, bem como

    a meno de que foram esgotadas as vias hierrquicas ou de que dela foi previamente dado conhecimento ao Chefe

    do Estado-Maior-General das Foras Armadas ou ao Chefe de Estado-Maior respetivo, tendo decorrido, sem satis-

    fao do pedido, o prazo referido no n. 3 do artigo 2.

    2 A queixa apresentada por escrito ou oralmente, devendo neste caso ser reduzida a auto.

    Artigo 5.

    mbito pessoal de aplicao

    1 O disposto nos artigos 2., 3. e 4. aplica-se:a) Aos militares dos quadros permanentes das Foras Armadas na situao de ativo ou que, encontrando-

    -se na situao de reserva, estejam em servio efetivo;

    b) Aos militares das Foras Armadas que cumpram o servio efetivo normal ou que prestem servio efetivo

    em regime de voluntariado ou em regime de contrato;

    c) Aos militares das Foras Armadas que cumpram servio efetivo decorrente de convocao ou de mobi-

    lizao, nos termos da legislao respetiva.

    2 O disposto no artigo 3. aplica-se ainda aos militares que se encontrem na situao de reserva fora do ser-vio efetivo ou na situao de reforma.

    3 O disposto nos artigos 2. e 4 . no se aplica aos agentes militarizados das Foras Armadas que estejam na situao de reforma, aplicando-se-lhes, contudo, o disposto no artigo 3.

  • 18

    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    2. Fundamentos do pedido

    Entende o Provedor de Justia que tais normas, nos segmentos em que, por um lado, fazem depender a apresentao de queixa ao Provedor de Justia da exausto dos recursos administrativos previstos na lei e, por outro, circunscrevem a possibilidade de apresentao de queixa ao Provedor de Justia s situaes que envolvam a violao de direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos ou prejuzo para estes, violam as normas contidas nos artigos 23., n.os 1 e 2, e 18., n.os 2 e 3, da Constituio da Repblica Portuguesa (CRP).

    Quanto questo da alegada inconstitucionalidade da soluo legal que impe a prvia exausto das vias hierrquicas previstas na lei para a apresentao de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares ou agentes militarizados das Foras Armadas, os fundamentos do pedido so, em sntese, os seguintes:

    No obstante o Tribunal Constitucional ter apreciado questo jurdico-constitucional idntica no Acrdo n. 103/87, e ter decidido, com vrios votos de vencido, pela sua no inconstitucionali-dade, entende o requerente, Provedor de Justia, colocar de novo a questo, por no concordar com os fundamentos da tese que fez vencimento no citado Acrdo.

    O direito de queixa ao Provedor de Justia (artigo 23. da Constituio) um direito fundamental que beneficia do regime constitucional prprio dos direitos, liberdades e garantias, vertido nos artigos 17. e 18. do texto constitucional.

    Fazer depender a possibilidade de apresentao de queixa ao Provedor de Justia do esgotamento prvio dos meios de impugnao hierrquicos dentro da estrutura militar no constitui uma mera regulamentao do direito em causa, como se defendeu no Acrdo n. 103/87, mas antes uma verdadeira restrio ao exerccio, neste caso por parte dos militares, daquele direito fundamental.

    Resulta inequivocamente do n. 2 do artigo 23. da Constituio que o legislador constituinte conformou o direito fundamental de queixa ao Provedor de Justia como independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituio e nas leis, pelo que qualquer concretizao do direito que faa depender o seu exerccio da utilizao obrigatria, prvia ou pstuma, de meios de reclamao graciosos ou contenciosos previstos na lei, no est apenas a proceder sua regu-lamentao, antes limita-o num dos seus elementos estruturantes a que, de resto, o legislador constitucional deu expresso direta no n. 2 do artigo 23. da Lei Fundamental impondo-lhe uma verdadeira restrio.

    No pode aceitar-se, como se pretende no citado Acrdo n. 103/87, que a obrigatoriedade de exausto de recursos administrativos por parte dos militares queixosos constitua um limite ima-nente da garantia constitucional associada ao direito fundamental de queixa ao Provedor de Justia. Sendo certo que a atividade poltica dos rgos de soberania ou a atividade judicial constituiro limites imanentes atividade do Provedor de Justia (e ao correspondente direito fundamental de queixa de todos os cidados, como se reconhece no artigo 22. do Estatuto do Provedor de Justia), o mesmo no poder dizer-se de limites associados ao estatuto constitucional especfico de certos cidados pelo facto de estarem inseridos numa determinada instituio, neste caso caracterizada por uma estrutura de hierarquia, de comando e de disciplina, como a das Foras Armadas.

    Se h que admitir que os valores de hierarquia, de comando e de disciplina constituiro limites ao exerccio de determinados direitos por parte dos referidos cidados desde logo os elencados no artigo 270. da Constituio , tambm verdade que a Constituio clara ao afirmar que a defi-nio legal de eventuais restries concretas ao exerccio de direitos por parte dos militares tem de ser feita na estrita medida das exigncias prprias das respetivas funes. No manifestamente o caso do direito individual e privado de queixa ao Provedor de Justia de que beneficiam todos os cidados.

    Estando em causa uma restrio ao direito de queixa ao Provedor de Justia, torna-se imprescind-vel verificar se a restrio em anlise passa o teste do artigo 18., n.os 2 e 3, da CRP.

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    Antes de tudo, ela no encontra arrimo no artigo 270. da Constituio, que consagra um elenco taxativo de direitos cujo exerccio por parte designadamente dos militares suscetvel de ser objeto de eventuais restries, a regular por lei, e que no abarca o direito de queixa ao Provedor de Jus-tia. Pelo que a restrio decorrente da imposio do esgotamento dos recursos hierrquicos para a apresentao de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares no expressamente auto-rizada pela Lei Fundamental. Deste modo, a anlise da sua eventual admissibilidade passar pela verificao da necessidade de conjugao do direito fundamental de queixa ao Provedor de Justia com eventuais princpios, objetivos ou valores constitucionais que com aquele possam contender, com vista sua harmonizao.

    Partindo do pressuposto de que a restrio em causa foi estabelecida pelo legislador ordinrio para permitir a compatibilizao de diferentes bens com relevncia constitucional por um lado, o direito fundamental de queixa ao Provedor de Justia, por outro o princpio constitucional rela-cionado com o especial estatuto dos militares, inseridos que esto no mbito de uma instituio marcada por uma estrutura hierarquizada de comando, direo e disciplina (princpio que justifi-car igualmente o tipo de restries a que alude o artigo 270. da Constituio), ainda assim, no passar tal restrio o crivo dos critrios constitucionais para a sua legtima admisso impostos pelo artigo 18. da Lei Fundamental.

    Desde logo no se revelar tal restrio necessria a garantir o referido desiderato. Por imperativo legal, o Provedor de Justia ouve sempre as entidades visadas no caso, as entidades responsveis pelas Foras Armadas , antes de tomar qualquer iniciativa por motivo de ao ou omisso pratica-das pelos referidos poderes pblicos, ou por quaisquer outros. Assim sendo, a legtima preocupao de que qualquer assunto que esteja a ser apreciado, discutido ou tratado referente instituio Foras Armadas seja do conhecimento desta, alcana-se com esta simples regra geral de atuao do Provedor de Justia.

    To pouco a medida legal contestada no presente requerimento passa o teste da proporcionalidade. Para se alcanarem os objetivos implcitos na legislao aqui contestada bastaria, to s, por exem-plo, que ao militar queixoso fosse imputado o nus de dar conhecimento da queixa apresentada ao Provedor de Justia e do respetivo teor simultaneamente aos rgos competentes das Foras Armadas. Uma soluo do tipo da enunciada ajudada, para retomar uma ideia anterior, pela imposio de um limite de no divulgao pblica do contedo da queixa e do prprio ato de apre-sentao de queixa seria igualmente eficaz na concretizao do objetivo da preservao da hierar-quia de comando e disciplina das Foras Armadas, ao mesmo tempo tendo a virtude de no limitar o exerccio do direito de queixa ao Provedor de Justia verificao de uma condio diretamente relacionada com a necessidade de utilizao prvia de meios de impugnao, neste caso graciosos, que precisamente o que a Constituio pretende evitar com o teor da norma do seu artigo 23., n. 2.

    Finalmente, a referida legislao no adequada a garantir o fim pela mesma visado, por dois motivos: porque o Provedor de Justia pode utilizar a prerrogativa da iniciativa prpria para o tra-tamento de situaes decorrentes de atuaes dos poderes pblicos (nos quais se incluem natural-mente os poderes pblicos responsveis pelas Foras Armadas); e porque o Provedor de Justia pode e f-lo na prtica tratar situaes que caem no mbito de aplicao da Lei n. 19/95, motivadas por queixas subscritas por familiares ou amigos do militar que pretende queixar-se, mas que, por motivo da legislao em vigor, no assume ele prprio a autoria da queixa, antes representado para esse efeito por cidados civis.

    Ainda que se entendesse que os pressupostos materiais de legitimidade das leis restritivas se encon-trariam cumpridos, nunca se daria como assente o ltimo destes pressupostos, que impe que as restries no possam diminuir a extenso e o alcance do contedo essencial dos preceitos consti-tucionais que os estabelecem.

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    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    A mencionada utilidade do direito de queixa ao Provedor de Justia, enquanto garantia alternativa aos meios de impugnao, graciosa ou contenciosa, , no caso dos militares que pretendam apresen-tar reclamaes relativamente a aes ou omisses dos poderes pblicos responsveis pelas Foras Armadas, praticamente aniquilada com a previso da questionada restrio.

    O contedo do direito de queixa ao Provedor de Justia, na parte em que posto em causa pelas normas objeto desta iniciativa de fiscalizao da constitucionalidade, no sequer deixado para delimitao pela lei ordinria, resultando direta e inequivocamente da norma consignada no n. 2 do artigo 23. da Constituio, sem margem para conformao legislativa em sentido no coin-cidente. Nesta perspetiva, a restrio em causa violadora no s da garantia associada ao direito fundamental de queixa ao Provedor de Justia, como da garantia que se traduz na atividade insti-tucional do Provedor de Justia, tal como configurada desde logo pela Constituio (artigo 23., n. 2).

    Admitindo que os militares no deixam de poder queixar-se ao Provedor de Justia, a verdade que a restrio a que esto sujeitos quanto ao exerccio desse direito retira, na prtica, a verdadeira mais-valia que representa, na arquitetura global da Constituio da Repblica Portuguesa, segundo a qual a atividade do Provedor de Justia independente dos meios de impugnao administrativos e judiciais e, nessa medida, caracterizada pela informalidade e celeridade.

    Conclui-se que as questionadas normas da Lei de Defesa Nacional e da Lei n. 19/95, que estabe-lecem a obrigatoriedade da prvia exausto das vias hierrquicas previstas na lei para a apresentao de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares, violam o artigo 23., n.os 1 e 2, da Cons-tituio, referente ao rgo Provedor de Justia e o artigo 18., n.os 2 e 3, da Lei Fundamental, que estabelece o regime substantivo das restries aos direitos, liberdades e garantias.

    Quanto questo da alegada inconstitucionalidade da soluo legal que limita a possibilidade de apre-sentao de queixas ao Provedor de Justia por motivo de aes ou omisses das Foras Armadas de que resulte violao dos direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos ou prejuzos para estes, os fundamentos do pedido so, em suma, os seguintes:

    As normas em causa parecem exigir que o militar que apresenta a queixa tenha um interesse pessoal e direto na resoluo da questo que a motiva. Questo idntica foi igualmente tratada no Acrdo n. 103/87, no qual se decidiu no ser constitucionalmente admissvel a excluso da possibilidade de apresentao, no caso pelo pessoal da PSP, de queixas ao Provedor de Justia por aes ou omis-ses dos poderes pblicos (responsveis pela PSP) violadoras de direitos de terceiros ou causadoras de prejuzos a estes, bem como ofensivas, em termos objetivos, da ordem constitucional e da lega-lidade democrtica.

    Mais se afirmou neste Acrdo que a garantia de queixa ao Provedor de Justia assume j, ao nvel constitucional, um alcance, no apenas subjetivo, mas tambm justamente objetivo, que no se compagina com a sua limitao nica finalidade da defesa dos direitos ou da reparao de preju-zos do queixoso.

    O direito de queixa em apreo mais no do que uma manifestao qualificada do direito de peti-o, o qual a Constituio genericamente reconhece (artigo 52., n. 1) como direito de os cida-dos apresentarem, aos rgos de soberania ou quaisquer autoridades, peties, representaes, reclamaes ou queixas, no s para defesa dos seus direitos, mas igualmente da Constituio, das leis ou do interesse geral.

    Ligando as duas questes envolvidas no pedido de fiscalizao, sublinha-se que precisamente uma das dimenses do princpio constitucional da independncia da atividade do Provedor de Justia dos meios de recurso administrativos e contenciosos previstos na Constituio e nas leis, tal como resulta do artigo 23., n. 2, do texto constitucional, a independncia da existncia de um inte-resse direto, pessoal e legtimo da parte de quem apresenta a queixa. Na verdade, exigir ao queixoso

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    a existncia de um interesse direto, pessoal e legtimo na resoluo da questo objeto de queixa ao Provedor de Justia (como efetivamente parece decorrer do regime legal de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares), nos mesmos termos em que tal interesse exigido para efeitos de apresentao dos recursos administrativos e contenciosos previstos na lei, constitui um desvirtua-mento grosseiro do referido comando constitucional, que em circunstncia alguma se pode ter por admissvel.

    A imposio ao particular (pessoa singular ou pessoa coletiva), que apresenta queixa ao Provedor de Justia, de critrios de legitimidade para a apresentao dessa queixa conduz descaracterizao do direito fundamental de queixa ao Provedor de Justia.

    O requerente conclui pedindo a inconstitucionalidade das normas referidas, nos segmentos em que, por um lado, fazem depender a apresentao de queixa ao Provedor de Justia da exausto dos recursos adminis-trativos previstos na lei e, por outro, circunscrevem a possibilidade de apresentao de queixa ao Provedor de Justia s situaes que envolvam a violao de direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos ou prejuzo para estes, por violao dos artigos 23., n.os 1 e 2, e 18., n.os 2 e 3, da Constituio.

    3. Resposta do rgo autor da norma

    Notificada para se pronunciar sobre o pedido, a Presidente da Assembleia da Repblica veio oferecer o merecimento dos autos.

    4. Memorando

    Discutido em Plenrio o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63., n. 1, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), e fixada a orientao do Tribunal, cumpre agora decidir em harmonia com o que ento se estabeleceu.

    II Fundamentao

    5. Delimitao do objeto do pedido

    O pedido questiona, do ponto de vista da sua constitucionalidade, duas solues legais que, por um lado, estabelecem a obrigatoriedade da prvia exausto das vias hierrquicas previstas na lei para a apresenta-o de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares; e, por outro, limitam a possibilidade de apresen-tao de queixas ao Provedor de Justia verificao de aes ou omisses das Foras Armadas de que resulte violao dos direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos ou prejuzos para estes. Para o efeito, o requerente indicou um conjunto de normas das quais extrai as solues questionadas.

    Acontece que nem todas as normas identificadas como objeto do pedido contm previses respeitantes s solues que o requerente pretende questionar.

    o que ocorre com a norma do artigo 1. da Lei n. 19/95, segundo o qual [T]odos os cidados, nos termos da Constituio e da lei, podem apresentar queixa ao Provedor de Justia por aes ou omisses dos poderes pblicos responsveis pelas Foras Armadas de que tenha resultado, nomeadamente, violao dos seus direitos, liberdades e garantias ou prejuzo que os afete. verdade que o segmento final da norma aparenta restringir o direito de queixa ao Provedor de Justia por parte dos cidados em geral em matria de defesa nacional e Foras Armadas aos casos em que ocorra violao dos seus direitos, liberdades e garantias [dos cidados] ou prejuzo que os afete [queles cidados]. Simplesmente esta dimenso normativa, no universo subjetivo a que, no quadro desta norma, aplicvel, no foi objeto do presente pedido de fiscalizao abstrata

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    da constitucionalidade. Embora no artigo 61. do pedido se aluda ao particular (pessoa singular ou pessoa coletiva), a verdade que a fundamentao desenvolvida e o prprio pedido, formulado a final, respeitam apenas soluo legal de circunscrever a apresentao de queixa ao Provedor de Justia s situaes que envolvam a violao de direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos ou prejuzo para estes.

    Ora, por razes melhor explicitadas infra, no ponto 7.1, o disposto no artigo 1. da Lei n. 19/95 no se aplica aos militares, dado que o objeto admissvel do direito de queixa ao dispor destes sujeitos est confor-mado (em termos, alis, mais restritivos) pelo artigo 34., n. 1, da Lei de Defesa Nacional.

    No pode, assim, considerar-se que o artigo 1. da Lei n. 19/95 esteja includo no objeto do presente pedido de fiscalizao abstrata sucessiva da constitucionalidade.

    Da mesma forma, mas por razes diversas, tambm no integram o pedido as normas dos artigos 5., n.os 2 e 3, da Lei n. 19/95.

    A primeira destas duas normas precisa o mbito pessoal de aplicao da norma do artigo 3. da mesma lei, norma que, como o requerente expressamente reconhece (artigo 4. do pedido) no se inclui no objeto do pedido, nada dispondo sobre as duas solues legais cuja constitucionalidade vem questionada. certo que, sem impugnar a soluo constante do artigo 3., o requerente poderia ter questionado a sua aplicao aos militares que se encontrem em situao de reserva fora do servio efetivo ou na situao de reforma, o que corresponde ao contedo precetivo do n. 2 do artigo 5. Mas no o fez, constatando-se que as questes de constitucionalidade suscitadas se situam inteiramente margem do regime constante do n. 2 do artigo 5.

    Quanto ao n. 3 do artigo 5., contm dois segmentos distintos. O segundo estabelece a aplicabilidade do artigo 3. aos agentes militarizados das Foras Armadas que estejam na situao de reforma, pelo que valem, em relao a este segmento, as mesmas razes de excluso do objeto do pedido atrs enunciadas, em relao ao disposto no n. 2 do artigo 5. A primeira parte do preceito, por sua vez, ao estabelecer a no aplicao a esses agentes das normas de dois artigos que so objeto do pedido (os artigos 2. e 4.), do mesmo passo elimina, no seu mbito, as questes de constitucionalidade que neste se suscitam.

    Pelo exposto, o pedido deve considerar-se circunscrito apreciao da constitucionalidade das normas dos artigos 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, e dos artigos 2., n.os 1, 2 e 3, 4., n.os 1 e 2, e 5., n. 1, da Lei n. 19/95, de 13 de julho, na medida em que delas resulta, por um lado a imposio da prvia exausto das vias hierrquicas previstas na lei para a apresentao de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares ou agentes militarizados e, por outro, a limitao da possibilidade de apresentao de queixas ao Provedor de Justia por motivo de aes ou omisses das Foras Armadas aos casos em que ocorra violao dos direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos ou prejuzo para estes.

    6. A inconstitucionalidade da soluo legal que exige o prvio esgotamento das vias hierrquicas previs-tas na lei para a apresentao de queixa ao Provedor de Justia

    6.1. Com a instituio do Provedor de Justia, como rgo a que os cidados podem apresentar queixas por aes ou omisses dos poderes pblicos a Constituio criou, no artigo 23., uma garantia suplementar de tutela dos direitos e interesses dos particulares.

    A amplitude do mbito possvel das queixas torna patente que a funo do Provedor mais vasta do que a defesa da legalidade da administrao: trata-se de prevenir e reparar injustias (n. 1, in fine) prati-cadas, quer por ilegalidade quer por violao dos princpios constitucionais que vinculam a atividade discri-cionria da Administrao, () (devendo notar-se que a justia um dos princpios gerais vinculativos de toda a atividade administrativa, incluindo portanto a atividade discricionria, nos termos do artigo 266.-2 da CRP) Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, I, 4. edio, Coimbra, pp. 442-443. Ainda que instrumento privilegiado de defesa dos direitos fundamentais (todos eles), o Provedor de Justia , mais amplamente, um rgo de garantia da Constituio, independentemente da defesa de direitos fundamentais, como reconhecem os mencionados Autores (ob. cit., pp. 440-441).

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    Sendo o objeto de proteo da norma do artigo 23. da CRP um produto da ordem jurdica, sem qualquer prefigurao na realidade social, a conformao institucional do rgo e o regime do direito de apresentar queixas a ele dirigidas s ganham traos mais precisos a nvel da legislao ordinria que regula o estatuto e a atividade do Provedor de Justia. Mas essa legislao tem que respeitar, como bvio, as indica-es normativas extraveis do desenho constitucional da figura.

    Entre essas indicaes consta a regra de que a atividade do Provedor de Justia independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituio e nas leis (artigo 23., n. 2). Estando em apre-ciao uma norma que determina o esgotamento prvio dos recursos administrativos previstos na lei, como condio de exerccio do direito de queixa ao Provedor de Justia, cumpre, antes de mais, ajuizar da compa-tibilidade deste regime com aquela regra constitucional.

    A questo j foi analisada e decidida no Acrdo n. 103/87. A se escreveu, no que a este ponto se refere:

    certo que no n. 2 do artigo 23. da Constituio se qualifica a atividade do Provedor de Justia como

    independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituio e nas leis. Mas, em boa verdade, ao

    dizer isso o preceito ora citado apenas estabelece o princpio da autonomia desse direito de queixa relativamente

    a outros direitos de reclamao e recurso, com a consequente possibilidade do seu uso cumulativo princpio e

    consequncia que no so afetados quando se condiciona o exerccio daquele primeiro direito ao prvio esgota-

    mento da via hierrquica. Esta exigncia, no fundo, apenas significa que a queixa ao Provedor h de ser dirigida da

    ao ou omisso da entidade que fecha a hierarquia administrativa em causa, e cuja deciso , assim, a nica com

    valor definitivo.

    O conceito de independncia presta-se, neste contexto, a interpretaes no coincidentes, com graus variveis de imposio da separao das duas formas de interveno. Mas o Tribunal entende que a apre-ciao feita no Acrdo n. 103/87 de manter, no obstante a norma ter sido objeto, na doutrina, de interpretaes mais rigoristas (cfr. ob. cit., pp. 441 e 442; Andr Salgado de Matos, O Provedor de Justia e os meios administrativos e jurisdicionais de controlo da atividade administrativa, in O Provedor de Justia. Novos Estudos, Lisboa, 2008, pp. 157 segs., pp. 172 e 176-177).

    Note-se que, nos termos do artigo 23., n. 2, a independncia reportada atividade do Provedor de Justia. E essa norma encontra concretizao imediata na possibilidade de o Provedor de Justia atuar por iniciativa prpria (artigos 4. e 24., n. 1, do respetivo Estatuto).

    Reportada, especificamente, ao direito de queixa, a independncia da atividade do Provedor de Justia em relao aos meios graciosos e contenciosos significa apenas, a bem dizer, que estamos perante instrumen-tos cumulativos de tutela, pois obedecem a pressupostos e perseguem objetivos distintos, no implicando o recurso queles meios o decaimento da possibilidade de exerccio do direito de queixa. Aquela via no substitui esta, nem o resultado da sua ativao se projeta, por qualquer forma, na tramitao e na sorte des-ta. A obrigatoriedade, para o militar queixoso, de exaurir os recursos hierrquicos previstos no lhe retira a disponibilidade do direito de queixa, no sendo o respetivo procedimento, quando desencadeado, mini-mamente influenciado pela forma como foi instrudo e decidido o recurso hierrquico prvio. Em suma, o direito de queixa assume autonomia em relao queles outros meios porque a existncia destes no condio nem preclude o seu exerccio, nem o resultado da sua utilizao pode interferir com a atividade do Provedor de Justia e com a sua liberdade de apreciao.

    Fica sempre salvaguardada, deste ponto de vista, a garantia que a instituio constitucional do Provedor de Justia consagra, como rgo que atua fora do sistema (a expresso de Maria Eduarda Ferraz, O Pro-vedor de Justia na defesa da Constituio, Provedoria de Justia, 2008, p. 31), sem qualquer dependncia dos pressupostos de atuao, dos modos de funcionamento e dos critrios de deciso deste.

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    6.2. No se opondo a regra do artigo 23., n. 2, da CRP conformidade constitucional do regime em apreo, h que passar a apreci-la luz dos princpios constitucionais pertinentes.

    Uma primeira questo que, neste quadro, se pode suscitar a da qualificao precisa da soluo legal do prvio esgotamento das vias hierrquicas em confronto com o direito de queixa ao Provedor de Justia constitucionalmente reconhecido.

    No Acrdo n. 103/87 acima citado, o Tribunal propendeu para a tese de que no havia verdadeira-mente uma restrio a este direito, mas to-s uma regulamentao do seu exerccio. Em justificao desse entendimento, discorreu o Tribunal do seguinte modo:

    Com efeito, a faculdade de os membros da PSP se queixarem ao Provedor de Justia de aes ou omisses dos

    poderes pblico responsveis por essa Polcia no afetada no seu contedo substantivo, no reduzida ou ampu-

    tada de qualquer das suas dimenses; por outro lado, to-pouco posta em causa a faculdade de, em resultado da

    apreciao das queixas que lhe vierem a ser apresentadas, o Provedor de Justia dirigir aos rgos competentes

    as recomendaes necessrias para prevenir e reparar injustias (cfr. o artigo 23., n. 1, da CRP). O que se faz

    simplesmente condicionar o exerccio do direito de queixa a um determinado pressuposto com a consequncia de

    que as eventuais recomendaes do Provedor de Justia s podero ser dirigidas entidade que se situa no vrtice

    da hierarquia da Polcia, e nunca a quaisquer escales intermdios da mesma hierarquia.

    E, na verdade, no h dvida de que a exigncia de esgotamento prvio das vias hierrquicas legalmen-te previstas uma interveno legislativa que no provoca qualquer efeito ablativo do contedo de tutela constante no mbito normativo do artigo 23. da CRP, nem qualquer efeito obstativo do acesso individual ao bem por ele protegido. Compreender-se-, nessa medida, que o conceito de condicionamento pudesse ter sido visto como o mais adequado a traduzir o alcance da soluo e a sua projeo sobre o exerccio do direito de queixa ao Provedor de Justia.

    Mas no menos verdade que estamos perante uma regulao do direito de queixa ao Provedor de Justi-a a qual, em tutela de um interesse alheio ao dos titulares desse direito, prescreve vinculativamente um modo de exerccio de que resulta, para uma certa categoria de cidados, uma dificultao ou, pelo menos, uma certa postergao temporal, do acesso ao bem protegido. Impondo o recurso prioritrio s vias hierrquicas legal-mente previstas, o legislador veda uma opo livre do interessado quanto iniciativa a tomar ou a utilizao daquele instrumento de tutela simultaneamente com o exerccio do direito de queixa. Nessa medida, no custa admitir que essa regulao, no comprimindo o contedo de tal direito, afeta, todavia, desvantajosa-mente, por razes que nada tm a ver com imperativos de conformao organizativa ou de exequibilidade prtica, a ativao, por parte dos militares ou agentes militarizados, da posio jusfundamental que, prima facie, lhes advm do artigo 23. da CRP.

    quanto basta para que no se dispense aqui a aplicabilidade dos parmetros prprios do Estado de direi to, com as ponderaes valorativas a que ela d lugar, em particular no quadro do princpio da propor-cionalidade. Admitindo as categorias de condicionamento e restrio, em si mesmas de contornos flui-dos, mltiplas configuraes intermdias e gradaes tipologicamente aproximativas, de mais ou de menos, uma qualificao conceptual, para alm de se prestar sempre a controvrsia, no pode resolver concludente-mente questes de regime de uma interveno normativa deste tipo.

    6.3. Seguindo essa metdica de fundamentao, pode, desde j, ser liminarmente rejeitada uma argui-o do requerente, luz do que ficou dito, sem necessidade de mais consideraes.

    Referimo-nos ao invocado desrespeito pelo ncleo ou contedo essencial do direito de queixa ao Prove-dor de Justia, argumentando-se que a utilidade desse direito resulta praticamente aniquilada.

    Como vimos, a soluo legal no comporta qualquer amputao de uma dimenso do contedo do direito de queixa, de natureza essencial ou no. Como reconhece o requerente [No caso de que nos ocupamos, se certo que os militares no deixam de poder queixar-se ao Provedor de Justia ()], os militares no se viram

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    privados do direito de queixa ao Provedor de Justia, o qual se mantm inclume e exercitvel, com o contedo que constitucional e legalmente lhe cabe, apesar da imposta exausto prvia das vias hierrquicas de recurso.

    6.4. Dando por assente esta concluso, no pode, todavia, esquecer-se que esta imposio legal repre-senta uma interferncia desvantajosa num direito que, prima facie, admitiria qualquer forma de exerccio e uma disponibilidade incondicionada. Na verdade frisa-se, de novo com a soluo de prvio esgotamento das vias de recurso, a regulao em apreo conduz a que o titular do direito de queixa perca possibilidades de ao que de outro modo teria, dentro do mbito de proteo do artigo 23. (o exerccio imediato, em exclusivo ou em simultneo com o recurso hierrquico, das faculdades contidas nesse direito). Consequncia que obriga a equacionar a legitimidade desta eficcia indiscutivelmente limitadora, ainda que somente no plano do tempo e do modo de exerccio.

    H que deixar em claro, antes de mais, que a falta de previso expressa, no programa normativo do artigo 23., de autorizao para uma interveno restritiva do legislador no obsta, s por si, conformida-de constitucional da soluo, mesmo que se lhe atribua uma tal designao. Como acentua Reis Novais, a consagrao constitucional de um direito fundamental sem a simultnea previso da possibilidade da sua res-trio no constitui qualquer indicao definitiva sobre a sua limitabilidade As restries aos direitos funda-mentais no expressamente autorizadas pela Constituio, Coimbra, 2003, p. 569. De facto, em superao do teor literal do requisito fixado na 1. parte do n. 2 do artigo 18., para as restries aos direitos, liberdades e garantias, a doutrina e a jurisprudncia vm admitindo, ainda que atravs de construes dogmticas no coincidentes, restries no expressamente autorizadas pela Constituio. Independentemente da termino-logia (varivel) utilizada, trata-se de limites no escritos, como limites a posteriori, tornados necessrios pela exigncia de salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente garantidos (cfr. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituio, 7. edio, Coimbra, 2003, p. 1277). H, mesmo, quem apon-te uma reserva geral imanente de ponderao (Reis Novais, ob. cit., pp. 569 e segs.), como fundamentao e via de acesso a limites no expressamente autorizados.

    deste ponto de vista, o da necessidade de harmonizao e compatibilizao dos direitos fundamentais, no s entre si (coliso de direitos), como com a tutela de outros bens jurdicos a que o Estado est tambm constitucionalmente vinculado, que pode ser obtida uma resposta definitiva quanto admissibilidade de limites no expressos, quer a questo se coloque, em concreto, ao nvel da soluo judicial de colises ou conflitos, quer se coloque ao nvel das intervenes legislativas que, em abstrato, procuram realizar a men-cionada harmonizao.

    Na formulao desse juzo, h que apreciar se a medida com alcance, de algum modo, restritivo tem por fundamento a tutela de um bem jurdico constitucionalmente credenciado e, em caso afirmativo, se a inter-veno que persegue esse fim se contm ou no dentro de limites que assegurem a sua proporcionalidade.

    6.5. Quanto ao primeiro pressuposto, no difcil identificar o bem jurdico-constitucional onde mer-gulham razes as valoraes justificativas do regime em apreo. Trata-se da defesa nacional, que obrigao do Estado assegurar (artigo 273. da CRP), o que faz atravs das Foras Armadas (artigo 275.). Estando em causa a segurana existencial do Estado, ningum contestar que esta , em princpio, um bem legitimador de importantes restries aos direitos fundamentais (cfr. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 1272).

    Para cumprimento cabal da sua tarefa de defesa nacional, a instituio militar tem uma estrutura organi-zativa que obedece a caractersticas muito prprias, salientadas no referido Acrdo n. 103/87, nestes termos:

    Ora, como notas caractersticas da instituio militar avultam, decerto, as seguintes: o estrito enquadra-

    mento hierrquico dos seus membros, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos; correspondentemente, a

    subordinao da atividade da instituio (e, portanto, da atuao individualizada de cada um dos seus membros),

    no ao princpio geral de direo e chefia comum generalidade dos servios pblicos, mas a um peculiar princpio

    de comando em cadeia, implicando em especial dever de obedincia, ().

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    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    E so mltiplas as decises em que o Tribunal Constitucional relevou as exigncias prprias da institui-o militar, como causa legtima de restries aos direitos fundamentais.

    Assim, por exemplo, no recente Acrdo n. 229/12, sobre o Regulamento de Disciplina Militar, foi destacado que necessrio ponderar o equilbrio entre o superior interesse da disciplina e da hierarquia militar e os direitos dos militares individualmente considerados, acentuando-se que a instituio militar uma instituio onde a hierarquia e a disciplina assumem, em nome do superior interesse da eficcia e da eficincia da defesa nacional e das Foras Armadas, uma importncia sem paralelo na generalidade dos do-mnios da Administrao Pblica.

    J anteriormente, o Acrdo n. 662/99, no contestando que os funcionrios pblicos militares integram o conceito mais amplo de funcionrios pblicos, reconheceu que h uma diversidade de regimes da administrao pblica civil e da administrao pblica militar, com as inerentes diversidades estatutrias (ainda que estas diversidades tenham sido consideradas, no caso, insuficientes para fundamentar um trata-mento no igualitrio).

    Essa singularidade no deixou, alis, de ser reconhecida pelo requerente, ao caracterizar as Foras Arma-das como uma instituio marcada por uma estrutura hierarquizada de comando, direo e disciplina (prin-cpio que justificar igualmente o tipo de restries a que alude o artigo 270. da Constituio ().

    certo que se pode distinguir o campo da hierarquia estritamente militar de postos e funes de comando e direo do da hierarquia funcional-administrativa (assim, Jorge Miranda, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituio Portuguesa Anotada, I, 2. edio, Coimbra, 2010, p. 493). Sem dvida alguma que so diferentes as exigncias de restrio aos direitos fundamentais que decorrem de cada um desses pla-nos. E de tal modo o so que, no que concerne o direito de queixa, no contestada a proibio, constante do artigo 3., n. 1, da Lei n. 19/95, de 13 de julho, de ela versar sobre matria operacional ou classificada.

    Simplesmente, o menor grau de atendimento a um princpio hierrquico de comando, na esfera pro-priamente administrativa, no vai ao ponto de justificar, nesse mbito, o tratamento absolutamente igua-litrio do militar e de qualquer outro funcionrio. Sendo necessariamente unas a estrutura organizativa e a cadeia de comando, e uno o estatuto militar, as esferas de atuao operacional e administrativa no so inteiramente autonomizveis entre si, de modo a que se pudesse sustentar a indiferena de cada uma s vicis-situdes que a outra sofre. H interferncias recprocas evidentes, pelo que a eficcia de comando operacional sofreria afetaes desvantajosas se, na esfera administrativa, o militar gozasse, sem restries, de prerrogativas idnticas ao de qualquer trabalhador pblico.

    6.6. Mas no basta apurar que exigncias prprias da instituio militar justificam que os que nela esto integrados se rejam por um estatuto especfico, com deveres de comportamento e limitaes de direitos a que no est sujeita a generalidade dos cidados. Cumpre, mais concretamente, apreciar se a condio militar fornece ou no uma razo suficiente para o particular regime de exerccio do direito de queixa ao Provedor de Justia, constante das normas cuja constitucionalidade vem impugnada.

    Neste quadrante valorativo, assume realce, como elemento de ponderao, a ideia de que uma estrutura, como a das Foras Armadas, que tem no princpio de comando, segundo regras estritas de disciplina e de sujeio a ordens, segundo uma rgida escala hierrquica, a essncia do seu modo organizativo e de funcio-namento, particularmente refratria a intromisses externas que se possam sobrepor, sem mais, e ainda que a ttulo de recomendaes, ao exerccio dos poderes de conduo da vida institucional que internamente competem cadeia hierrquica. Contrariamente ao que se pode ler no pedido, no um objetivo de or-dem prtica o que est subjacente regulamentao em apreo. antes a inteno de preservar, dentro do admissvel (isto , sem leso excessiva dos interesses dos cidados em funes militares) a administrao autnoma da instituio Foras Armadas, segundo o princpio de comando que lhe prprio.

    Deste ponto de vista, constitucionalmente credenciado, justifica-se que, quando um militar ponha em causa uma deciso que o afete, no se conformando com ela, sejam chamados a pronunciar-se, em primeira linha, os detentores do poder de reapreciao e eventual reviso dessa deciso, dentro da cadeia hierrquica

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    ACrdo n. 404/12

    de comando que estrutura a instituio militar. A possibilidade de o queixoso apelar, de imediato, para uma instncia externa de controlo, desprezando as vias em aberto de soluo dentro e pela prpria instituio, representaria um desnecessrio apoucamento e desconsiderao do papel da hierarquia por algum que a ela est sujeito, contrrios a um princpio organizacional funcionalmente imprescindvel.

    Para salvaguarda desse princpio, s deve comprometer as Foras Armadas, perante o rgo constitucio-nal de controlo que o Provedor de Justia, uma deciso que tenha sido abonada ou ratificada pelas chefias, em termos de ser considerada definitiva. Por outras palavras, quem est em posio de comando, dentro das Foras Armadas, s deve ser interpelado a alterar, por recomendao do Provedor de Justia, uma deciso tomada na instituio que dirige, se previamente tiver tido oportunidade de exercitar essa posio. Dada a reforada e muito peculiar posio de autoridade que detm o titular de comando na instituio militar, faz sentido e razovel que ele no possa estar sujeito a receber, de fora da instituio, recomendaes de alterao de uma deciso (o objeto de queixa) tomada por um subalterno e que tenha ficado subtrada, por iniciativa do militar queixoso, sua esfera de controlo. Nessa linha se compreende o disposto no n. 3 do artigo 2. da Lei n. 19/95, para a hiptese de inexistncia de recurso hierrquico ou de esgotamento do prazo para a sua interposio.

    6.7. E a soluo respeita todos os parmetros em que se desdobra o princpio da proporcionalidade.Sendo idnea preservao da hierarquia de comando e de disciplina das Foras Armadas, uma vez que

    garante a sua atuao, ela revela-se igualmente necessria consecuo daquele objetivo.O requerente contesta esta avaliao, com base em que, por imperativo legal, o Provedor de Justia ouve

    sempre as entidades visadas no caso as entidades responsveis pelas Foras Armadas , antes de tomar qual-quer iniciativa por motivo de ao ou omisso praticadas pelos referidos poderes pblicos ou por quaisquer outros. Este dever de audio prvia, constante do Estatuto do Provedor de Justia (artigo 34. da Lei n. 9/91, de 9 de abril), seria o bastante para satisfazer a legtima preocupao de que qualquer assunto que esteja a ser apreciado, discutido ou tratado referente instituio Foras Armadas seja do conhecimento desta ().

    Simplesmente, uma tal viso desfoca o objetivo a atingir, que no consiste na garantia de conhecimento do assunto objeto de queixa, mas o de obstar a que o exerccio deste direito se sobreponha ao funcionamento das vias internas de impugnao de uma deciso.

    Nem, contrariamente ao defendido, seria igualmente eficaz na concretizao do objetivo real da solu-o questionada o da preservao da hierarquia de comando das Foras Armadas a soluo alvitrada, no pedido, como alternativa, de imputao ao militar queixoso do nus de dar conhecimento da queixa apre-sentada ao Provedor de Justia e do respetivo teor simultaneamente aos rgos competentes das Foras Armadas, acompanhada do dever de no divulgao pblica do contedo da queixa e do prprio ato de apresentao da queixa.

    Ainda que menos distante do exigvel, por vincular o prprio militar queixoso a uma iniciativa que tem em conta a hierarquia, esta soluo no assegura verdadeiramente o respeito pelos valores da disciplina militar. Do ponto de vista valorativamente relevante, uma coisa os rgos competentes das Foras Armadas serem confrontados com uma impugnao a uma deciso, em resultado do funcionamento dos mecanismos internos de recurso que interpelam diretamente (e responsabilizam) os escales mais elevados da hierarquia, outra, bem diferente, terem conhecimento de uma queixa, num momento posterior sua apresentao a uma entidade exterior instituio. No primeiro caso, as regras funcionais do sistema de comando so postas a atuar, em plena normalidade institucional; no segundo, elas so colocadas de lado.

    Por ltimo, de entender que a exigncia de prvio esgotamento das vias hierrquicas de recurso no afeta o direito de queixa para alm da justa medida. Tendo em conta o elevado valor constitucional do bem protegido e, sobretudo, os muito diminutos grau e intensidade do sacrifcio causado ao direito de queixa um direito, partida, juridicamente determinado e, por isso, mais acessvel a conformaes limitativas do que os direitos de liberdade mais ou menos materialmente determinados (cfr. Reis Novais, ob. cit., pp. 163 e segs.) , pode bem sustentar-se que o custo a suportar, no mbito normativo deste direito, est em relao

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    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    materialmente proporcionada com o benefcio alcanado, tendo por referncia a ordem constitucional, no seu conjunto. Atente-se em que aquela medida apenas torna imperativo um modo de articulao entre duas vias de contestao de uma deciso do foro militar, impondo o exerccio prioritrio (mas no exclusivo) da via de recurso hierrquico. Privilegia-se, desse modo, o autocontrolo, mas sem eliminar a possibilidade de o interessado acionar o heterocontrolo que o exerccio do direito de queixa representa. A soluo leva equili-bradamente em conta a natureza prpria da instituio militar e as suas exigncias funcionais, bem como o estatuto especfico que rege aqueles que nela prestam servio, mas sem sacrifcio desmesurado do direito de queixa, como direito fundamental de cidadania.

    6.8. Uma ltima objeo pode ser levantada admissibilidade constitucional do regime em apreo. Prende-se ela com o disposto no artigo 270. da CRP, norma que prev restries ao exerccio de direi-

    tos dos militares, dos agentes militarizados e dos servios e foras de segurana. No estando a referido o direito de queixa, a atribuio de carter taxativo ao elenco de direitos suscetveis de restrio (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., II, p. 845) levantaria um obstculo aparentemente insupervel conformi-dade constitucional da soluo.

    Simplesmente, pode entender-se que, para este efeito, uma vinculao que tem o alcance jurdico de um simples nus no deve ser tida como uma restrio exatamente com natureza e alcance restritivos equivalen-tes aos das expressamente nomeadas no artigo 270. e que, tal como estas, necessitaria de expressa e especfica autorizao constitucional, para se admitir a sua viabilidade operativa.

    Ademais, as restries consagradas nesta norma visam fundamentalmente impedir atuaes coletivas dos militares, em forma concertada, a que os direitos a restringidos so especialmente propcios, ou, no caso da capacidade eleitoral passiva, obstar a que seja posta em causa a iseno poltico-partidria das Foras Armadas. O direito individual de queixa, aqui em apreo, situa-se, partida, margem destas preocupaes do legislador constituinte.

    De resto, h boas razes para sustentar que os direitos dos militares suscetveis de afetao desvantajosa no so apenas os elencados no artigo 270. (neste sentido, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., p. 628).

    Sem se pr em causa a necessidade de uma especfica fundamentao, no estrito plano jurdico-consti-tucional, de qualquer regime legal, sempre excecional, com alcance, de algum modo, restritivo dos direitos fundamentais dos militares, ao literalmente disposto no artigo 270. no pode ser atribudo carter exaurien-te de todas as medidas que podem afetar posies subjetivas dos militares, atendendo ao seu estatuto prprio.

    A essa especfica fundamentao, decorrente da interpretao da Constituio, no seu todo, foram de-dicados os pontos anteriores.

    6.9. Deste modo, pode concluir-se que a soluo legal analisada contida no n. 1 do artigo 34. da Lei de Defesa Nacional e no n. 1 do artigo 2. da Lei n. 19/95 , no obstante consubstanciar uma limitao liberdade de exerccio do direito de queixa ao Provedor de Justia, no pode ser considerada uma restrio inconstitucional ao dito direito, contrariamente ao pretendido pelo requerente.

    Em virtude do sentido desta deciso, fica de p a soluo do esgotamento prvio das vias hierrquicas de recurso. Mas o regime, em concreto, do respetivo procedimento e sua articulao com o direito de queixa, regulamentados no artigo 2., n. os 2 e 3, 4., n.os 1 e 2, e 5., n.o 1, da Lei n. 19/95, exigiria uma apreciao autnoma, que, no entanto, est fora do objeto do presente pedido de fiscalizao.

    7. A soluo legal que limita a possibilidade de apresentao de queixas ao Provedor de Justia por motivo de aes ou omisses das Foras Armadas de que resulte violao dos direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos ou prejuzo para estes.

    7.1. Muito embora o requerente impute esta soluo legal, algo indiferenciadamente, ao contedo das normas acima identificadas da Lei de Defesa Nacional e da Lei n. 19/95 (cfr. o artigo 53. do pedido), ou

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    seja, a todas as normas identificadas como objeto do pedido, a verdade que as normas dos artigos 2., n.os 2 e 3, 4., n.os 1 e 2, e 5., n. 1, referveis ao regime da exausto prvia das vias hierrquicas de recurso, nada tm a ver com esta segunda questo de constitucionalidade.

    E das duas nicas normas que contm segmentos atinentes questo em apreciao as enunciadas nos artigos 34., n. 1, da Lei de Defesa Nacional, e 1. da Lei n. 19/95, de 13 de julho s a primeira, de acordo com a delimitao logo de incio por ns efetuada, pode ser tida em considerao.

    Relembre-se que o pedido se restringe apreciao de dois pontos do regime de queixa dos militares. Ora, a Lei n. 19/95 tem um mbito aplicativo no restrito aos militares, uma vez que esse mbito se define pelo objeto: o regime de queixa ao provedor de Justia em matria de defesa nacional e Foras Armadas, de acordo com a epgrafe do diploma. Compreende-se, assim, que o artigo 1. indique como titulares do direito de queixa, nesta matria, todos os cidados.

    Mas a norma, quanto definio da situao sobre que pode versar a queixa, no se aplica aos militares, uma vez que, quanto a estes, prevalece o disposto no artigo 34., n. 1, da Lei de Defesa Nacional. nesta sede uma lei orgnica, alis que foi fixado o mbito do direito de queixa dos militares. A remisso do n. 2 do mencionado preceito para outra lei (a Lei n. 19/95, que j se encontrava, e continuou, em vigor) tem em vista o direito tal como configurado no n. 1, sem abrir a possibilidade de ele ser moldado de outro modo por essa lei, reguladora unicamente do exerccio.

    Esta preciso delimitativa reveste suma importncia, pois o artigo 1. da Lei n. 19/95 define um mbito do direito de queixa dos cidados, em geral, mais alargado do que cabe aos militares, pois, alm do mais, no o fecha a qualquer situao que no seja a violao dos direitos, liberdades ou garantias ou prejuzo que afete o prprio queixoso, na medida em que faz anteceder o segmento que refere esses elementos do advrbio nomeadamente. Deste termo se infere que o direito de queixa a referido tem como objeto primrio, mas no exclusivo, as situaes apontadas na norma.

    Mas, mesmo quando reportado apenas ao artigo 34., n. 1, da Lei de Defesa Nacional, como seu suporte normativo, pode constatar-se que a formulao que o requerente deu ao objeto do pedido, nesta dimenso, no coincide com os termos daquela disposio legal. Ao incluir, no direito de queixa, a causao de um prejuzo que afete os militares, aquela formulao reproduz, ipsis verbis, na parte relevante, o teor do n. 2 do artigo 33. da Lei n. 29/82, a anterior Lei de Defesa Nacional, em vigor data da emisso do Acrdo n. 103/87. Mas o artigo 34., n. 1, omitiu essa referncia, traando o mbito do direito de queixa ao Provedor de Justia, por parte de militares, em moldes mais restritivos do que a Lei n. 29/82, pois, f--lo incidir sobre aes ou omisses dos poderes pblicos responsveis pelas Foras Armadas de que resulte violao dos seus direitos, liberdades e garantias, sem mais.

    A questo de constitucionalidade a apreciar dever, pois, ajustar-se ao que esta norma dispe, tendo por objeto a restrio do direito de queixa dos militares ao Provedor de Justia s aes ou omisses dos poderes pblicos responsveis pelas Foras Armadas de que resulte violao dos seus direitos, liberdades e garantias.

    7.2. A questo j foi tambm apreciada no Acrdo n. 103/87. A se pode ler, na parte que agora releva:

    Acresce que, estabelecendo esse preceito, por fora da dita remisso, o direito de os elementos da PSP apre-

    sentarem queixas ao Provedor de Justia contra os poderes pblicos responsveis pela prpria Polcia, todavia f-lo

    apenas com referncia a aes ou omisses de que resulte violao dos seus direitos, liberdades e garantias ou

    prejuzo que os afete. Afigura-se assim que o mesmo preceito exclui afinal o direito de os membros da PSP apre-

    sentarem queixa ao Provedor por aes ou omisses dos referidos poderes pblicos que violem direitos ou causem

    prejuzos a terceiros ou ofendam objetivamente a ordem constitucional e a legalidade democrtica. Ora, ser esta

    excluso constitucionalmente admissvel?

    Entende o Tribunal que no. E entende que no, por considerar que a garantia de queixa ao Provedor de Justia

    assume j, ao nvel constitucional, um alcance, no apenas subjetivo, mas tambm justamente objetivo, que se no

    compagina com a sua limitao nica finalidade da defesa dos direitos ou da reparao de prejuzos do queixoso.

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    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    De facto, o artigo 23., n. 1, da Constituio reporta-se genericamente, por um lado, a queixas por aes ou

    omisses dos poderes pblicos, sem mais, e, por outro lado, s recomendaes do Provedor necessrias para pre-

    venir e reparar injustias, tambm sem mais. Mas a isso acresce que o direito de queixa em apreo mais no do

    que uma manifestao qualificada do direito de petio, o qual a Constituio genericamente reconhece no seu

    artigo 52., n. 1 como o direito de os cidados apresentarem, aos rgos de soberania ou quaisquer autorida-

    des, peties, representaes, reclamaes ou queixas, no s para defesa dos seus direitos, mas igualmente da

    Constituio, das leis ou do interesse geral.

    De resto, um tal entendimento da garantia de queixa ao Provedor de Justia o que est na linha da conceo

    logo de incio reconhecida entre ns Provedoria (antes mesmo da Constituio, e no Decreto-Lei n. 212/75, de

    21 de abril, que a criou), e depois confirmada pela Lei n. 81/77, de 22 de novembro, que o seu atual estatuto

    (cfr., em particular, artigo 22., n.os 1 e 2). legtimo, pois, pensar que neste ltimo diploma o legislador se limitou

    a explicitar o sentido constitucional da instituio.

    Conforme se pode constatar da leitura destes excertos, o objeto de controlo no foi propriamente a norma que estabelecia a exigncia de que o direito de queixa ao Provedor de Justia se limitasse s aes ou omisses das Foras Armadas de que resultasse a violao dos direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos ou prejuzos para estes, mas uma norma, atinente ao regime aplicvel aos elementos da PSP (o artigo 69., n. 2, da Lei de Defesa Nacional e das Foras Armadas, ento em vigor), que remetia para esse preceito.

    No obstante, no pode deixar de se reconhecer que, efetivamente, foi emitido por este Tribunal um juzo em relao a essa exigncia, constante, na altura, do artigo 33., n. 2, da Lei de Defesa Nacional e das Foras Armadas (Lei n. 29/82), norma com um contedo prescritivo bastante similar ao do artigo 34., n. 2, da atual Lei de Defesa Nacional.

    Esclarecido isto, cumpre averiguar se o entendimento ento preconizado pelo Tribunal Constitucional deve ser mantido.

    7.3. Pode, desde j, dizer-se que inteiramente de renovar, por maioria de razo, o juzo emitido no Acrdo n. 103/87.

    Na verdade, a norma do mencionado artigo 34., n. 1, no segmento questionado, tem uma eficcia exclu dente de contedos do direito de queixa ao Provedor de Justia que contraria, sem fundamento razo-vel, o desenho constitucional desta instituio de controlo dos poderes pblicos. De fora ficam a violao de direitos fundamentais do queixoso que no revistam a natureza de direitos, liberdades ou garantias, a violao de direitos, do mesmo titular, que no sejam direitos fundamentais, de quaisquer direitos de terceiros e a leso de interesses, do queixoso ou de terceiros, no tutelados por direitos. Esta compresso do contedo do direito de queixa no se compagina com as indicaes normativas fornecidas pelo artigo 23., n. 1, da CRP, que se reporta genericamente a aes ou omisses dos poderes pblicos, sem qualquer restrio, caracteri-zando ainda funcionalmente o direito de queixa como destinado a prevenir ou remediar injustias.

    Se a conformao legal retira do direito de queixa dos militares a afetao de posies subjetivas que dele devem ser objeto, por imperativo constitucional, ignora completamente, a mais disso, a dimenso objetiva da atividade do Provedor de Justia, a quem tambm compete emitir recomendaes, ou desenvolver outras aes, at por iniciativa prpria, que obstem ou ponham termos a aes ou omisses dos poderes pblicos que ofendam objetivamente a ordem constitucional e a legalidade democrtica, como se pode ler no Acr-do n. 103/87. Cabe-lhe genericamente assegurar, por meios informais, a justia e a legalidade do exerc-cio dos poderes pblicos como, em concretizao dos termos da Constituio, refere o artigo 1. da Lei n. 9/91, de 9 de abril (Estatuto do Provedor de Justia). E para isso, tanto pode tomar iniciativas prprias (artigos 4. e 24., n. 1, do mesmo diploma) como desenvolver aes em seguimento de queixas apresen-tadas pelos cidados (artigo 24., n. 1). Nesta perspetiva institucional, nada justifica que estas se cinjam a matrias de interesse pessoal e direto do prprio queixoso. Deste ponto de vista, o regime do artigo 24.,

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    ACrdo n. 404/12

    n. 2, do Estatuto do Provedor de Justia no representa uma livre criao legislativa, mas uma vinculada concretizao de parmetros constitucionais.

    Nem se diga, em contrrio, que, desta forma, o direito de queixa pode servir para o exerccio sub-rep-tcio daqueles outros direitos que o artigo 270. da CRP admite especificamente poderem ser restringidos aos militares e, com isto, esvaziar de sentido o preceituado neste artigo, comprometendo os objetivos que o legislador constituinte a pretendeu prosseguir (genericamente, como se disse, impedir aes de organizao ou exerccio coletivos e assegurar a iseno poltica dos militares, ideia inspiradora do Estado de direito democrtico cfr. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituio Portuguesa Anotada, ob. cit., p. 627).

    No pelas hipteses anmalas de exerccio abusivo ou de desvirtuamento funcional que se deve medir a justeza ou a conformidade constitucional de uma garantia. Compete antes ao Provedor de Justia, utilizan-do os seus poderes de apreciao preliminar das queixas (artigo 27. do respetivo Estatuto), no admitir as que possam canalizar protestos ou contestaes coletivas.

    Em face do exposto, de concluir que a norma do artigo 34., n. 1, da Lei de Defesa Nacional, na parte em que prescreve que as queixas dos militares ao Provedor de Justia tm por objeto aes ou omisses dos poderes pblicos responsveis pelas Foras Armadas de que resulte violao dos seus direitos, liberdades e garantias, representa uma restrio inconstitucional do direito de queixa consagrado no artigo 23. da Constituio da Repblica.

    III Deciso

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:a) No declarar a inconstitucionalidade, com fora obrigatria geral, das normas constantes dos artigos

    34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, e do artigo 2., n. 1, da Lei n. 19/95, de 13 de julho, no segmento em que impem a prvia exausto das vias hierrquicas previstas na lei para a apresentao de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares ou agentes militarizados.

    b) Declarar a inconstitucionalidade, com fora obrigatria geral, por violao do artigo 23. da Cons-tituio, da norma constante do artigo 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, na parte em que limita a possibilidade de apresentao de queixas ao Provedor de Justia por motivo de aes ou omisses das Foras Armadas aos casos em que ocorra violao dos direitos, liberdades e garantias dos prprios militares queixosos.

    Lisboa, 18 de setembro de 2012. Joaquim de Sousa Ribeiro Vtor Gomes Maria Lcia Amaral Jos da Cunha Barbosa Maria Joo Antunes Joo Cura Mariano Ana Guerra Martins Catarina Sarmento e Castro [vencida, quanto alnea a), nos termos e pelas razes expostas na declarao de voto junta] Carlos Fernandes Cadilha (vencido nos termos da declarao em anexo) Rui Manuel Moura Ramos.

    DECLARAO DE VOTO

    Divergi da maioria relativamente deciso da alnea a), na medida em que no se declarou a inconstitu-cionalidade das normas constantes do artigo 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, e do artigo 2., n. 1, da Lei n. 19/95, de 13 de julho, no segmento em que impem a prvia exausto das vias hierrquicas previstas na lei para a apresentao de queixa ao Provedor de Justia por parte dos militares ou agentes militarizados.

    Fao-o pela seguinte ordem de razes:A primeira respeita ao entendimento do disposto no artigo 23. da Constituio, quando atribui aos

    cidados em geral o direito fundamental de apresentao de queixa ao Provedor de Justia, e estabelece, no

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    TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    n. 2, que a atividade do Provedor de Justia independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituio e nas leis. No creio que a independncia afirmada no texto constitucional traduza fun-damentalmente a ideia de que uma deciso proferida na sequncia do acionamento daqueles mecanismos de defesa no deve condicionar a recomendao que o Provedor entenda emitir. Em meu entender, sendo a inde pendncia caracterstica constitucional atribuda atividade do Provedor de Justia em si mesma (v. g., no que respeita aos seus prprios critrios de apreciao e de deciso), dela resultar, ainda, que o esgota-mento prvio da via hierrquica no pode ser legalmente configurado enquanto condio (prvia) de que necessariamente dependa o exerccio do direito de queixa.

    A apresentao de queixa ao Provedor de Justia um outro meio mais, uma via suplementar que se abre para defesa dos direitos, que, pelo seu carter, deve poder ser utilizada de modo cumulativo, mas tambm alternativo, relativamente aos demais meios graciosos e contenciosos.

    Embora se concorde que a obrigatoriedade da prvia exausto dos recursos hierrquicos no retira a disponibilidade do direito de queixa podendo, utilizao da via hierrquica seguir-se, depois, cumulativa-mente, a apresentao de queixa na verdade, tal obrigatoriedade, como est consagrada, significa que, sem que se percorra a via hierrquica, no se pode aceder ao Provedor de Justia. Ou seja, a queixa ao Provedor de Justia depende, nas normas em apreciao, do prvio acionamento de tais mecanismos.

    Como escrevem, na doutrina, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituio da Repblica Portugue-sa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, p. 442) A funo do Provedor de Justia fundamentalmente carac terizada pela sua natureza informal e no jurisdicional, e pela sua independncia em relao aos meios graciosos e contenciosos de defesa dos administrados (n. 2) (). O Provedor pode intervir, quer quando o cidado tenha sua disposio um meio gracioso e contencioso (recorrendo, ou no, simultaneamente a ele), quer quando o no tenha, por terem passado os prazos de reclamao ou de recurso ().

    Ora, prever a necessria exausto das vias hierrquicas como condio de acionamento de um meca-nismo de garantia que poder ser o nico (ou o ltimo) meio para prevenir e reparar injustias, traduz-se na imposio de um sacrifcio que, a meu ver, no se cinge a condicionar o tempo e o modo de exerccio do direito de queixa. A obrigatoriedade de exaurir previamente os mecanismos de impugnao administrativa limita, gravemente, o modo de exerccio do direito de apresentao de queixa ao Provedor de Justia (afas-tando o acesso imediato e direto, prejudicando a informalidade), estende excessivamente o tempo necessrio obteno da tutela que se pretende obter (causando excessiva demora, prejudicando a celeridade que deve caracterizar o recurso a este mecanismo), dificultando de modo intenso ou, em muitos casos, obstaculizando, qualquer efeito til da apresentao da queixa. No pode, consequentemente, deixar de se considerar que tal imposio, capaz, at, de conduzir irreversvel consolidao do prejuzo a que com a queixa se procuraria obstar, comprime em forte grau e intensidade o direito de queixa ao Provedor de Justia, no sendo um mero nus ao seu exerccio, antes afetando esse direito de forma intolervel. Nalgumas circunstncias em que a celeridade, desde logo, se justificaria argumentar que o direito de queixa sempre se manteria exercitvel no basta, desde logo quando, apesar de ser ainda possvel o seu exerccio, este possa j no ter utilidade.

    Note-se, ainda, que do artigo 23. da Constituio no resulta uma autorizao expressa de restrio do direito de queixa ao Provedor de Justia.

    No se esquece que esta limitao , no caso das normas em apreciao, imposta a militares e agentes militarizados, cujos direitos fundamentais podem ser sujeitos a restries acrescidas, em virtude do seu espe-cial estatuto. Acontece, todavia, que a previso em apreciao tambm no encontra respaldo na autorizao constitucional expressa no artigo 270. da Constituio.

    Tal, por si s, poderia no obstar a que se estabelecesse a soluo legal impugnada. Mas, ainda que assim no fosse, sempre se diria que no se tem por demonstrado que a necessidade de salvaguardar o superior interesse da eficcia e da eficincia da defesa nacional e das Foras Armadas, enquanto bem jurdico-consti-tucional, para cuja garantia concorrem a hierarquia de comando, a coeso e a disciplina militares, imponha que apenas a ltima deciso do rgo mximo da hierarquia militar possa ser contestada junto do Provedor de Justia.

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    ACrdo n. 404/12

    Tal como sempre nos afastaramos da linha do acrdo quando este considera que o prvio esgotamento das vias hierrquicas de recurso no afeta o direito de queixa para alm da justa medida, como j resulta do que atrs se sustentou.

    Por tudo isto, no pude deixar de considerar que as normas constantes do artigo 34., n. 1, da Lei Orgnica n. 1-B/2009, de 7 de julho, e do artigo 2., n. 1, da Lei n. 19/95, de 13 de julho, no segmento em que impem a prvia exausto das vias hierrquicas previstas na lei para a apresentao de queixa ao Pro-vedor de Justia por parte dos militares ou agentes militarizados, violam os artigos 23., n. 2, e 18., n. 2, da Constituio. Catarina Sarmento e Castro

    DECLARAO DE VOTO

    Votei vencido com base nas seguintes consideraes.

    I Contrariamente ao que se afirma no Acrdo, a independncia da atividade do Provedor de Justia em relao aos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituio e nas leis, tal como previsto no n. 2 do artigo 23. da Lei Fundamental, no pretende apenas garantir a possibilidade de cumulao da queixa ao Provedor de Justia com outros meios de impugnao das decises administrativas caso em que a norma ficaria desprovida de qualquer efeito til , mas significa antes que o acesso ao Provedor de Justia, enquanto rgo de garantia dos direitos fundamentais perante os poderes pblicos, no pode ficar depen-dente de condies especiais ou restries particulares, o que implica a no dependncia de prazos ou nem de outros condicionamentos (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, I vol., 4. edio, p. 441; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituio Portuguesa Anotada, 2. edio, Tomo I, p. 494).

    No seu contedo dispositivo essencial, a norma pressupe que o cidado, na defesa dos seus direitos, possa optar livremente por solicitar a interveno do Provedor de Justia, independentemente do recurso a qualquer f