Tecnicas de construção de cenarios regionais e globais

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ISSN 1415-4765

TEXTO PARA DISCUSSO No 939

METODOLOGIA E TCNICAS DE CONSTRUO DE CENRIOS GLOBAIS E REGIONAISSrgio C. BuarqueBraslia, fevereiro de 2003

ISSN 1415-4765

TEXTO PARA DISCUSSO No 939

METODOLOGIA E TCNICAS DE CONSTRUO DE CENRIOS GLOBAIS E REGIONAIS*Srgio C. Buarque**Braslia, fevereiro de 2003

* Este trabalho produto da Pesquisa Cenrios para o Planejamento Econmico e Social, financiada com recursos do Programa Rede-Ipea. Agradeo ao Ipea e ao seu Programa Rede de Pesquisa e Desenvolvimento de Polticas Pblicas, particularmente a Ricardo Lima, coordenador da Diretoria de Poltica Regional e Urbana, que financiou o trabalho e sem o qual no teria sido possvel o esforo tcnico de interpretao da literatura e de sistematizao das experincias de construo de cenrios, base para a produo deste documento. Por outro lado, agradeo aos colegas que trabalham com metodologia e tcnicas de cenrios no Brasil, alguns deles, meus parceiros em diferentes empreendimentos como consultor; os quais participaram do encontro organizado pelo Ipea para discutir a primeira verso do trabalho (entre os presentes destacam-se Amaury de Souza, Cludio Porto, Eduardo Marques, Fausto Matto Grosso e Leonardo Guimares, alm do prprio Ricardo Lima e de tcnicos do Ipea). Agradecimento muito especial a Cludio Amrico Porto e a Enas Aguiar, com quem tenho compartilhado, nos ltimos anos, vrias experincias de construo de cenrios globais, setoriais e regionais, e a Eduardo Marques, que leu atenta e criticamente a verso preliminar, apresentando vrias e valiosas recomendaes para aprimoramento do trabalho. ** Economista e mestre em sociologia; professor da Faculdade de Cincias da Administrao de Pernambuco (FCAP) da Universidade de Pernambuco (UPE); presidente da Locus-Planejamento e Desenvolvimento Local e consultor em planejamento estratgico e em estudos prospectivos ([email protected]).

Governo Federal Ministrio do Planejamento, Oramento e GestoMinistro Guido Mantega Secretrio-Executivo Nelson Machado

TEXTO PARA DISCUSSOPublicao cujo objetivo divulgar resultados de estudos direta ou indiretamente desenvolvidos pelo Ipea, os quais, por sua relevncia, levam informaes para profissionais especializados e estabelecem um espao para sugestes.

As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e de inteira responsabilidade do autor, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou o do Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto.

Fundao pblica vinculada ao Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasileiro e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

Esta publicao contou com o apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento BID, via Programa Rede de Pesquisa e Desenvolvimento de Polticas Pblicas Rede-Ipea, o qual operacionalizado pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento Pnud, por meio do

Presidente Lus Fernando Tironi (interino) Chefe de Gabinete Luis Fernando de Lara Resende Diretor de Estudos Macroeconmicos Eustquio Jos Reis Diretor de Estudos Regionais e Urbanos Gustavo Maia Gomes Diretor de Administrao e Finanas Hubimaier Canturia Santiago Diretor de Estudos Setoriais Lus Fernando Tironi Diretor de Cooperao e Desenvolvimento Murilo Lbo Diretor de Estudos Sociais (vago)

Projeto BRA/97/013.

SUMRIO

SINOPSE ABSTRACT 1 INTRODUO 7 8 13 20 28 43

2 FUTURO E CENRIOS

3 PROSPECTIVA E INCERTEZA 4 PLANEJAMENTO E CENRIOS

5 METODOLOGIA GERAL DE CONSTRUO DE CENRIOS

6 METODOLOGIA DE CONSTRUO DE CENRIOS REGIONAIS 7 TCNICAS DE CONSTRUO DE CENRIOS REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 68 50

SINOPSEOs estudos de cenrios tm sido crescentemente utilizados na rea de planejamento estratgico, tanto de grandes empresas quanto de governos, por oferecer um referencial de futuros alternativos em face dos quais decises sero tomadas. medida que aumentam as incertezas em quase todas as reas de conhecimento, cresce tambm a necessidade de anlise e reflexo sobre as perspectivas futuras da realidade em que se vive e diante da qual se planeja. As tcnicas de cenrios vm conquistando rapidamente o cotidiano dos planejadores e dos decisores do mundo contemporneo, apesar da percepo de que o futuro algo incerto e indeterminado. Embora no possam eliminar incertezas nem definir categoricamente a trajetria futura da realidade estudada, as metodologias de construo de cenrios contribuem para delimitar os espaos possveis de evoluo da realidade. Este trabalho procura apresentar uma proposta de metodologia para a construo de cenrios, recuperando com isso a literatura contempornea sobre o assunto e, ao mesmo tempo, sistematizando a experincia do autor em vrios trabalhos tcnicos de antecipao do futuro. Assim, tenta-se combinar uma reflexo conceitual sobre a incerteza e o planejamento com a demonstrao de tcnicas auxiliares na organizao e na sistematizao das informaes. Embora, em princpio, a metodologia aqui apresentada possa ser utilizada para o estudo de diferentes objetos e cortes analticos, a proposta volta-se mais diretamente para o planejamento regional, no qual foram feitas experincias bastante ricas no Brasil. Dessa forma, o presente estudo tenta sistematizar os mtodos e as tcnicas utilizados no planejamento governamental para qualquer instncia ou corte territorial , mas destaca a aplicao deles para cenrios regionais e microrregies.

ABSTRACTScenarios studies have been increasely used as important tools for strategic planning, both by private firms and government, in an effort to envisage future alternatives which will be useful in the decision making process. Uncertainty, a normal feature of the contemporaneous world, demands research and analyses so that one can foresee future perspectives rooted on the reality in which one lives and plans. Scenarios methodologies are rapidly going to be part of decision makers' routine. Even if the future is uncertain and undetermined, strategic planning should anticipate alternatives, in order to delimit and manage opportunities and threats. Scenarios methodologies cannot eliminate or reduce uncertainty, or define categorically the future, but it surely can delimit alternatives and possibilities for change, providing a framework for choices. This paper tries to present a scenarios methodology, reviewing the contemporaneous literature on the subject and, at same time, organizing and reflecting on the authors experience derived from a series of different technical planning works. It begins with a conceptual revision on uncertainty and planning, and concludes with the presentation of different tools and techniques, which help designing the future

alternatives. Although the methodology presented in the paper could be used for different objects and realities, it is focused directly on regional planning, reflecting the rich Brazilian experience in this area. Likewise, this paper tries to systematize methods and techniques used in governmental planning for different territories, but giving special attention to its application on regional and sub regional scenarios.

A idia revolucionria que define a fronteira entre os tempos modernos e o passado o domnio do risco: a noo de que o futuro mais do que um capricho dos deuses e de que homens e mulheres no so passivos ante a natureza. (Peter L. Bernstein)

1 INTRODUOEste texto apresenta o trabalho final de um conjunto de papers sobre cenrios produzido para o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea), abordando, para tanto, aspectos conceituais e metodolgicos e procurando aplicar a metodologia na elaborao de cenrios mundiais, nacionais e regionais. Esses trabalhos, que permitiram a redao final do documento, foram financiados pelo Programa Rede de Pesquisa e Desenvolvimento de Polticas Pblicas (Rede-Ipea) e inserem-se no projeto Cenrios para o Planejamento Microrregional (Ipea/Pnud Projeto BRA 97/013). Tinha como objetivo preliminar a sistematizao das metodologias de construo de cenrios e a aplicao delas para regies e microrregies, com isso recuperando a literatura bsica e organizando os resultados de experincias, incluindo-se a o trabalho realizado no planejamento de regies no Paran,1 que contou com o apoio do Ipea. Por outro lado, o Ipea solicitou que o produto do trabalho constitusse uma espcie de manual tcnico da prtica de construo de cenrios regionais para facilitar a difuso da metodologia entre os tcnicos que trabalham no planejamento regional e no microrregional. Como manual, o documento procura apresentar metodologias e tcnicas de forma simplificada para orientar o trabalho dos planejadores e para ser utilizado nas capacitaes, sendo ainda complementado por uma coleo de slides que pode servir de apoio didtico. Embora a tcnica de cenrios seja, no Brasil, uma ferramenta ainda pouco utilizada no planejamento, especialmente no regional e no microrregional, o documento procura recuperar e sistematizar algumas experincias de elaborao de cenrios, nas quais foram sendo definidas estratgias metodolgicas e refinadas algumas tcnicas,2 adaptando-as s condies regionais. Desse modo, no se trata apenas de uma formulao terica, construda com base na literatura especializada; ao contrrio, recorre aos conceitos e s orientaes metodolgicas gerais como forma de interpretao e organizao de diferentes experincias prticas de elaborao de cenrios. O texto est dividido em sete grandes sees. Aps esta introduo, a segunda seo, intitulada Futuro e cenrios, apresenta uma breve histria dos estudos prospectivos no mundo e no Brasil, sem nenhuma pretenso de ser exaustiva, com o objetivo de mostrar os principais avanos na concepo e na prtica dos cenrios e do planejamento estratgico. Na terceira seo, feita uma reflexo estritamente terica sobre a incerteza e a previsibilidade do futuro, na qual se busca discutir a pertinncia1. Elaborao de planos de desenvolvimento das regies da Associao de Municpios do Setentrio Paranaense (Amusep) e da Associao de Municpios do Oeste Paranaense (Amop), promovidos pelo Paranacidade com o apoio do Ipea. 2. Tive o privilgio de participar de algumas das experincias de construo de cenrios realizadas no Brasil, particularmente daquelas que tiveram um enfoque regional e microrregional, como o Projeto ridas para o Nordeste, os cenrios da Amaznia elaborados para a Eletronorte e para a Sudam, e os cenrios das regies da Amusep e da Amop no Paran.

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e a validade da anlise prospectiva. A quarta, ainda com certo tratamento terico, procura analisar a contribuio dos cenrios para o planejamento estratgico e a forma como est sendo vista, atualmente, essa relao, ressaltando o papel da construo de cenrios na aprendizagem empresarial e na social. Na quinta seo, procura-se apresentar a metodologia geral de construo de cenrios, em princpio aplicvel a qualquer objeto, diferenciando os mtodos para diferentes tipos de cenrios e realidades. A aplicao da metodologia para cenrios regionais e microrregionais apresentada na seo seis, em que so expostas diferentes alternativas de organizao das informaes espaciais. Finalmente, a stima seo dedicada apresentao de diversas tcnicas utilizadas na construo de cenrios uma espcie de cardpio de ferramentas para cada um dos principais estgios do processo de trabalho.

2 FUTURO E CENRIOSO futuro tem sido, ao longo dos tempos, uma preocupao permanente dos seres humanos inquietos e curiosos com o seu destino , mesmo quando predominava a convico de que o porvir era um capricho dos deuses ou da natureza, ou ainda quando o ciclo da vida parecia apresentar uma grande regularidade. Para Bernstein (1997, p.1), at os seres humanos descobrirem o risco ... o futuro era um espelho do passado ou o domnio obscuro de orculos e adivinhos que detinham o monoplio sobre o conhecimento dos eventos previstos. Segundo esse autor, at o Renascimento, o futuro estava associado sorte e ao destino independia at mesmo das orientaes religiosas , sobre os quais a humanidade tinha pouco ou nenhum controle. Nessas condies, as escolhas pessoais eram dominadas pela passividade ou orientavam-se pelo instinto (Idem, ibidem, p.18); mesmo assim os homens buscavam sempre interpretar e interrogar o futuro, recorrendo, para tanto, a diferentes meios mgicos msticos. Nos tempos modernos, com a descoberta do risco e com a menor sujeio da humanidade aos caprichos da natureza, a expectativa em relao ao futuro assume um papel importante como referncia para as decises e escolhas, tanto as individuais quanto as coletivas (famlias, empresas ou naes). Como afirma Agnes Heller (1989), toda ao dirigida para um objetivo, que consiste naquilo ainda no alcanado; trata-se do futuro, sem o qual no h presente. Por conta disso, era inevitvel que o futuro se constitusse na prpria essncia do planejamento e das escolhas coletivas da sociedade ou das organizaes, perscrutando as alternativas para definir e calibrar suas aes, introduzindo um componente de racionalidade e anlise tcnica para tratar a incerteza. Enquanto as transformaes na realidade se davam de forma mais lenta e relativamente previsvel e, principalmente, quando se tratava de formulaes de curto e de mdio prazos, o planejamento podia contentar-se com simples definies gerais, intuitivas e voluntaristas do futuro. medida que a realidade se complica, que as mudanas se aceleram e as incertezas em relao ao futuro aumentam, cresce a necessidade de um maior rigor e de sistematizao na antecipao de futuro, o que leva ao desenvolvimento de metodologias e de tcnicas, bem como a uma ampliao do uso do recurso de construo de cenrios.

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Entretanto, embora se propague o uso dos estudos prospectivos e das tcnicas mais ou menos sofisticadas de antecipao do futuro no planejamento, persiste paralelamente a antiga e incmoda pergunta sobre a possibilidade de antecipao de eventos futuros. Com todas as dvidas que ainda possam pairar sobre a atividade prospectiva, a difuso dos estudos de cenrios parece indicar que, embora no seja possvel predizer o futuro, vlido e, paradoxalmente, necessrio analisar as possibilidades do porvir, principalmente com o crescimento acelerado das incertezas e das mudanas de paradigmas que caracterizam a entrada no sculo XXI. 2.1 ORIGEM E EVOLUO DOS ESTUDOS DE CENRIOS Mesmo que a observao do futuro seja uma necessidade e um procedimento inevitvel de toda atividade de planejamento, tanto empresarial quanto governamental, por muito tempo as decises foram tomadas com base apenas na intuio dos decisores e, mais recentemente, na projeo de tendncias que ajudavam a definir os objetivos e as metas e a precisar as aes. As tcnicas prospectivas entre elas, os cenrios comearam a ser utilizadas de forma sistemtica entre os militares durante a Segunda Guerra Mundial, principalmente nos Estados Unidos, como um mecanismo de apoio formulao de estratgias blicas. Aparentemente, os primeiros trabalhos prospectivos no ambiente civil foram produzidos pela Corporao Rand, depois da Segunda Guerra Mundial, em macroestudos, o que deu incio ao desenvolvimento de uma metodologia de cenrios. O clssico The Year 2000, de Hermann Kahn e de A. Wiener (1967), a primeira referncia importante dos estudos de cenrios, inicialmente na Rand e posteriomente no Instituto Hudson, que Kahn comandou at a sua morte. Tambm quase da mesma poca o estudo prospectivo global realizado pelo Clube de Roma, o polmico e sofisticado Limites do crescimento, o qual procura prospectar as futuras alternativas econmicas, sociais e ecolgicas do planeta, considerando as grandes tendncias da populao, da economia e da tecnologia (Meadows, 1981). A partir da dcada de 1960, principalmente nos anos 1970, a tcnica de cenrios comea a ser utilizada e desenvolvida no mundo empresarial, experimentada pelas multinacionais nas suas estratgias corporativas mundiais. Inicialmente de forma rudimentar e com processos tradicionais de projeo de tendncias e de clculo de probabilidades, os cenrios foram ganhando espao experimental ao mesmo tempo em que adquiriam novas concepes e recursos tcnicos mais amplos e rigorosos. Nas ltimas dcadas, multiplicaram-se os estudos e difundiu-se o uso das tcnicas de cenrios nas empresas e nas naes, surgindo, com isso, na Europa, no Japo, na frica do Sul e mesmo na Amrica Latina, importantes experincias globais e setoriais. Vrios cenrios mundiais vm sendo realizados por diferentes autores e grupos profissionais, tais como o recente trabalho da Global Business Network (GBN), que forma quatro cenrios decorrentes da combinao das alternativas integrao/fragmentao e globalizao/regionalizao (GBN,1995); o estudo de David Skidmore, que apresenta cenrios semelhantes ao combinar integrao/fragmentao com hegemonia multipolar/unipolar (Skidmore, apud Sardenberg, 1996); e os cenrios globais elaborados por Peter Schwartz e Leyden (1997) The Long Boom , que, por sua vez, traam futuros

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alternativos da combinao de duas megatendncias, a saber, mudana tecnolgica e abertura econmica, antecipando a formao de uma civilizao global em meio a um longo ciclo de crescimento econmico sustentvel. Na Europa, nos ltimos vinte anos, a Organizao para a Cooperao e o Desenvolvimento (OCDE) vem realizando sistematicamente estudos de cenrios, em grande parte com enfoque setorial. Entre os de mbito nacional, algumas inovaes foram introduzidas nos cenrios da frica do Sul realizados em 1991 com o apoio da Anglo American Mining Corporation (Clem Sunter) e de consultores (Adam Kahane) com larga experincia na Shell (Pierre Wack), lder na construo de cenrios empresariais. A grande novidade desses cenrios, conhecidos como Mont Fleur, reside na articulao de diversos atores sociais, o que leva construo de um referencial coletivo para o desenvolvimento nacional. Com orientao metodolgica semelhante e o apoio da GBN e de Adam Kahane, que liderou a experincia sul-africana, foram realizados, entre 1998-1999, cenrios alternativos da Colmbia, publicados com o ttulo Destino Colmbia: resultado de uma mobilizao de diferentes personalidades, lideranas polticas e tcnicas colombianas (GBN, s.d.). A era da incerteza, que parece dominar toda a dcada de 1990, gerou uma grande massa de profissionais e de consultores com atividade permanente na construo de cenrios, incluindo-se a empresas especializadas, das quais a mais importante parece ser a GBN, fundada em 1988 por experientes profissionais (alguns deles egressos da Shell). A GBN realiza estudos sistemticos e atualizados de cenrios como ferramenta para orientar empresas em seminrios de planejamento estratgico (GBN, 1991, 1993, 1995), alm de dar apoio tcnico a atividades prospectivas em diferentes partes do planeta. As condies de incerteza e de mudanas do fim do sculo XX criaram, por outro lado, um campo frtil tambm para muitos ensaios, individuais ou coletivos, de prospeco e de especulao do futuro, os quais surtiram diversos impactos no mundo acadmico e poltico. Um trabalho recente que influenciou bastante a discusso sobre o futuro foi o livro de Lester Thurow, O futuro do capitalismo (1997),3 que busca identificar as cinco foras que moldaro o futuro: o fim do comunismo; as indstrias de poder cerebral feito pelos homens; o envelhecimento da populao; a globalizao; e a multipolaridade da hegemonia mundial. O ano 2000 ano de referncia para os primeiros exerccios de futurologia da fico cientfica e tambm das experincias srias de estudos prospectivos chegou sem grandes surpresas, mas com a consagrao das tcnicas de cenrios como importante ferramenta de planejamento. H, em todo o mundo, dezenas de centros de estudos e de pensamentos prospectivos, e multiplicam-se as tentativas de construo de cenrios4 globais, setoriais e temticos para orientar o processo decisrio em empresas e em naes.

3. Embora sem o mesmo impacto intelectual, interessante registrar tambm o livro de Hasmish McRae ,O mundo em 2020 poder, cultura e prosperidade: uma viso do futuro, 1998. 4. Para mais detalhes, ver o Mapa de los centros de prospectiva en el mundo na entrevista a Hughes de Jouvenel, intitulada A cada uno su orculo, Edgard Ortegon e Javier E. Medina Vasquez, Ilpes/Univesidad del Valle, Santiago de Cali (Colombia), 1997.

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2.2 CONSTRUO DE CENRIOS NO BRASIL A elaborao de cenrios uma atividade relativamente recente no Brasil. exceo de algumas referncias isoladas e acadmicas, a tcnica de cenrios comea a ser efetivamente utilizada no Brasil na segunda metade da dcada de 1980 pelas empresas estatais que operam em segmentos de longo prazo de maturao, e, portanto, precisam tomar decises de longo prazo. A Petrobras e a Eletrobrs5 so duas empresas que lideram as iniciativas de elaborao de cenrios e antecipao de futuro sobre o comportamento de mercado e a demanda de energia e de combustveis. Os estudos de cenrios para projeo de demanda de energia eltrica so aprofundados e ampliados pela Eletronorte, que d incio focalizao regional no Brasil. A Eletrobrs realiza, ainda hoje, estudos de mercados futuros com cenrios, e a Petrobras, alm de ter feito um grande esforo tcnico de construo de cenrios, mantm um departamento ativo de monitoramento, o qual gera insumos permanentes para o planejamento estratgico da empresa. No terreno estritamente acadmico, o Brasil apresenta as primeiras referncias s tcnicas de antecipao de futuro na dcada de 1970 e realiza, na segunda metade da dcada de 1980, alguma investida na produo de cenrios futuros, entre os quais o trabalho de Hlio Jaguaribe (1989), intitulado Brasil 2000, que procura desenhar um cenrio desejado para o Brasil com base em alguns parmetros gerais de desenvolvimento. Trabalhos com contedo terico e metodolgico sobre a prospeco de futuros surgem j no fim da dcada de 1970, embora tenham sido muito pouco utilizados, na medida em que no existia, no mundo empresarial e governamental, uma percepo da importncia da ferramenta. Alguns trabalhos de contedo metodolgico surgem antes, como o estudo realizado em 1997 pelo Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), que permitiu a produo de um relatrio final sob a forma de manual intitulado explicitamente de Manual de tcnicas de previso (Gomes de Souza, Gomes de Souza, e Abreu Silva, 1976). Esse trabalho faz uma reflexo terica e conceitual sobre a antecipao de futuro e apresenta uma proposta metodolgica e tcnica para a construo de cenrios. Quase na mesma poca, em 1979, publicado o livro de Henrique Rattner, Estudos do futuro introduo antecipao tecnolgica e social, que constitui efetivamente um referencial metodolgico para a prtica de elaborao de cenrios. Na dcada de 1980, o trabalho de contedo diretamente econmico elaborado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES)6 teve um impacto importante e iniciou uma grande discusso poltica sobre os cenrios do Brasil. No incio da redemocratizao brasileira e no meio de uma incerteza em relao s alternativas de desenvolvimento futuro do pas, encerrado o ciclo de crescimento e de modernizao, o estudo do BNDES introduziu as alternativas de desenvolvimento brasileiro e de insero na economia internacional. Os cenrios do BNDES contribu-

5. Ver, a respeito, Eletrobrs, Plano 2010 Relatrio Geral, Rio de Janeiro, 1987 (mimeo), e Petrobras, Macrocenrios mundiais e nacionais e impactos sobre a Petrobras (oportunidades e ameaas), Rio de Janeiro, 1989 (mimeo). 6. Ver a respeito Lucas, Luiz Paulo Veloso,Cinco anos de cenrios no BNDES, In: Jacques Marcovitch e Eduardo Marques (coords.), Anais do Encontro Internacional sobre Prospectiva e Estratgia, So Paulo: BNDES, 1989.

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ram para o planejamento estratgico do banco e levaram introduo do cenrio de integrao competitiva nas formulaes estratgicas do Brasil. Quase no mesmo perodo (1988), a Eletronorte realizou o que parece ter sido o primeiro grande empreendimento de construo de cenrios para uma macrorregio, com um aprofundamento analtico e com a utilizao de tcnicas avanadas e contemporneas de organizao e sistematizao de hipteses (Eletronorte/PPM Cludio Porto e Consultores Associados, jun. 1988). Esse trabalho teve o mrito de orientar, efetivamente, a empresa no seu planejamento estratgico e no seu plano de expanso, embora no tenha tido continuidade no monitoramento e no acompanhamento da realidade. No ano seguinte (1989), a Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia (Sudam) aprofundou e ampliou o estudo dos cenrios da Amaznia, atualizandoo com novos e importantes eventos que dominaram as cenas internacional e nacional, particularmente a forte emergncia da questo ambiental e a presso para preservao das florestas tropicais. Alm disso, os Macrocenrios da Amaznia introduziram uma importante novidade com a formulao do cenrio desejado, elaborado com base em um grande esforo de consulta sociedade organizada da regio (Sudam, 1990). Durante as dcadas de 1980 e 1990, houve vrias tentativas, mais ou menos ambiciosas, de estudos prospectivos no Brasil com diferentes enfoques e cortes setoriais, temticos ou espaciais. Entre esses estudos, podem ser lembrados os cenrios tecnolgicos realizados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) com um enfoque temtico (CNPq, 1989) e com o objetivo de apoiar a definio de prioridades de C&T do Brasil, assim como o trabalho da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) de cenrios do contexto socioeconmico, como instrumentos para o planejamento estratgico da empresa (Finep, 1992). Na segunda metade da dcada de 1990, realizaram-se tambm os cenrios do ambiente de negcios das pequenas e das microempresas, realizados pelo Servio de Apoio s Micro e Pequenas Empresas (SebraePE), em 1996, procurando definir os elementos para a priorizao das aes da instituio (Sebrae, 1996), e os diversos cenrios elaborados pelo Servio Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) com focalizaes regionais e anlise do impacto sobre o sistema de ensino superior e sobre a instituio (Senai, 1997). Com uma abordagem macrorregional, o Nordeste tambm contou com a produo de um estudo rpido de cenrios para a definio das prioridades estratgicas de desenvolvimento regional no mbito do Projeto ridas (Seplan/PR, 1994). Tal projeto trabalhou com cenrio desejado e utilizou, para tanto, um processo inovador de consulta aos atores sociais regionais, que combinou oficinas com consulta estrutural (tcnica Delfos analisada na ltima seo). Pouco mais tarde, no estado do Paran foram realizados, com o patrocnio do Paranacidade e o apoio do Ipea/Pnud, estudos de cenrios com foco microrregional com o objetivo de orientar o planejamento das regies da Associao Municipal do Oeste Paranaense (Amop) e da Associao Municipal do Setentrio Paranaense (Amusep), procurando adaptar as metodologias sub-regio de planejamento. Os cenrios microrregionais do Paran tambm recorreram a consultas sociedade por meio da utilizao de tcnica semelhante explorada pelo Projeto ridas, combinando workshops com o Delfos Poltico (Paranacidade, 1999). Nos ltimos anos da dcada de 1990, dez anos depois do primeiro exerccio de cenrios regionais e de demanda de energia eltrica, a Eletronorte realizou um empreendimento

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voltado para a atualizao dos cenrios socioeconmicos e energticos da Amaznia; produziu novos cenrios mundiais, nacionais e regionais e utilizou suas concluses para o planejamento estratgico empresarial. Na mesma poca, o governo federal realizou um dos mais ambiciosos empreendimentos de construo de macrocenrios no Brasil, o Projeto Brasil 2020, implementado pela Secretaria de Assuntos Estratgicos (SAE) da Presidncia da Repblica em 1998. A SAE tambm combinou um conjunto de cenrios alternativos com um cenrio normativo (ou desejado), para o qual utilizou uma consulta aos atores sociais e s lideranas polticas nacionais (SAE, 1998). Tambm nesse perodo, o Ipea publicou um trabalho intitulado O Brasil na virada do milnio, que, embora no tenha utilizado metodologia e tcnica sistemtica de cenrios, apresentou vrios ensaios de anlise das perspectivas futuras globais e, setoriais do Brasil (Ipea, 1997). Contudo, a utilidade desses diversos estudos para o planejamento e a efetiva tomada de decises tem sido limitada, por um lado, em razo das descontinuidades de orientao das instituies patrocinadoras dos trabalhos e, por outro, em virtude da excessiva instabilidade poltico-institucional do Brasil. No geral, os estudos de cenrios tm sido interrompidos, o que acaba por no permitir a formao de uma mentalidade prospectiva no planejamento. De qualquer forma, houve uma grande difuso da metodologia de construo de cenrios, algumas instituies acadmicas consolidaram-se como espaos de reflexo sobre o futuro, tais como o Centro de Estudos Avanados da Universidade de So Paulo (USP); algumas empresas de servios, especialmente bancos, esto publicando, periodicamente, cenrios de curto prazo para os seus clientes; e tem-se formado uma competncia tcnica entre os consultores brasileiros sobre metodologia de antecipao de futuros.7 A intensificao dos estudos de cenrios na segunda metade da dcada de 1990 parece refletir a mudana das condies polticas e econmicas do Brasil. Com efeito, a estabilizao da economia, a partir do Plano Real, diminuiu o imediatismo das vises e das prticas dos atores sociais e dos agentes pblicos e restaurou a preocupao com o planejamento de mdio e de longo prazos, estimulando, portanto, a busca de antecipao de futuros. Por outro lado, como a profundidade das transformaes no contexto mundial desperta uma grande insegurana nos agentes econmicos, os estudos prospectivos voltam a ganhar espao e relevncia no planejamento no Brasil. Nesse meio tempo, houve em todo o mundo grandes avanos na elaborao e nas tcnicas de cenrios para o planejamento estratgico; e, no Brasil, a antecipao de futuros passou a entrar no vocabulrio corrente dos tcnicos e dos planejadores, embora estes nem sempre falem a mesma linguagem ou utilizem o arsenal de ferramentas de trabalho disponvel.

3 PROSPECTIVA E INCERTEZAParte significativa das atividades humanas est fortemente voltada para a definio do futuro, atividades estas que procuram no s antever os eventos e a realidade que nos7. Entre as empresas de consultoria que utilizam, com regularidade, a construo de cenrios para o planejamento estratgico, pode-se nomear a Macroplan-Planejamento, Prospectiva e Pesquisa, com um slido curriculum de estudos de cenrios realizados para diferentes empresas e instituies brasileiras, algumas das quais foram citadas anteriormente.

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espera, como tambm tentam influenciar na definio do porvir. Citando John McHale, Masini (1997, p. 15-16) diz a respeito que... el futuro es un smbolo importante por el cual los seres humanos pueden hacer soportable el presente y dar un significado al pasado. Lo que quiere decir, en relacin con el presente, es que al tomar decisiones y escoger nuestra posicin en el presente, hacemos posible la vida en el presente y damos una ordem en relacin con lo que queremos en el futuro.

Em grande medida, o presente apenas um tnue momento entre o passado e o futuro, passado este que o condiciona e o determina. J o futuro o momento para o qual esto voltados nossos olhares, nossas inquietaes e nossas aes. Todas nuestras vidas, todas nuestras actividades, estn dedicadas a intentar afectar el futuro (Popper, 1984, p. 79), por isso, o futuro condiciona o presente tanto quanto o passado pela forte influncia que exerce nas atitudes e nas iniciativas das pessoas, dos atores sociais e, portanto, dos governos. Entretanto, mesmo se considerando que ... la reflexin acerca del futuro siempre h estado en la mente humana (Masini, 1997, p. 15), persiste a antiga questo filosfica sobre a previsibilidade do futuro e a nossa capacidade de predizer acontecimentos do futuro. O futuro est predeterminado ou, ao contrrio como dizia Guerreiro Ramos (1983) , est completamente aberto a mltiplas alternativas? At que ponto podemos antever e predizer o futuro, determinado ou no? 3.1 DETERMINISMO E INCERTEZA A controvrsia em torno do determinismo e do indeterminismo da histria tem uma conotao religiosa, particularmente nas religies crists ocidentais, mas tem tambm uma verso cientfica. No meio religioso, a questo manifesta-se na interpretao da presena do Deus onipotente na definio do destino dos homens, delimitando os espaos para o livre-arbtrio e para as escolhas pessoais. Tanto para os deterministas quanto para os indeterministas, os humanos no tm qualquer capacidade de escolher e de construir o seu futuro (ou parte dele). As duas correntes apresentam situaes similares quanto aos humanos perante o futuro, mas interpretam de forma diferente a onipotncia divina na definio do porvir: a) determinismo o futuro j est prefixado por Deus, que, por sua vez, onipotente e, evidentemente, o conhece por antecipao, de modo que nem a prpria vontade divina poderia alterar a histria de acordo com seu livre-arbtrio. Essa viso tenderia, por ltimo, a reduzir a prpria onipotncia dos deuses e, portanto, a sua capacidade de intervir nos destinos dos homens, traduzindo a idia de destino como a de um futuro predefinido. b) indeterminismo o futuro ainda est indefinido porque cabe a Deus, o todo poderoso, determinar o porvir segundo sua vontade absoluta, o que o tornacapaz, portanto, de mudar sua prpria escolha. Dessa forma, a fora divina pode alterar nosso destino e definir nosso futuro independentemente de condies prvias e at mesmo do passado. Se para a viso indeterminista no existe nenhuma possibilidade de os homens anteciparem o futuro ou seja, estes estos limitados a pedir e a esperar as decises divinas , para os deterministas, a revelao da vontade dos deuses permitiria apenas

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prever e predizer o porvir, quando e a quem a divindade permitisse essa graa. Dessa diferena emerge uma segunda questo de ordem religiosa sobre o futuro: quando trata das atitudes e das escolhas dos homens, Deus determina, de acordo com sua vontade, sobre todas as coisas, os destinos e mesmo as decises humanas, eliminando o livre-arbtrio e, portanto, a culpa pelos descaminhos e desatinos humanos. Essas alternativas filosficas traduzem-se tambm no mundo cientfico. A idia fundamental do determinismo cientfico baseada, como define Popper (1984, p. 30), no pressuposto de que ... la estructura del mundo es tal que todo suceso futuro puede, en princpio, ser calculado racionalmente de antemano slo con que conozcamos las leyes de la naturaleza y el estado presente o pasado del mundo. Segundo esse autor, o determinismo cientfico substitui a idia de Deus pela idia de natureza e a idia de lei divina pela idia de leis da natureza, as quais tambm so onipotentes e oniscientes e definem o futuro de antemo. O futuro estaria predefinido e determinado por leis gerais, e o conhecimento cientfico poderia prever todos os acontecimentos futuros desde que tivesse a teoria certa e conhecesse os eventos iniciais, visto que, ... em um mundo de causas e efeitos, se conhecermos as causas poderemos prever os efeitos. 8 Dessa forma, segundo a viso determinista da cincia, o acaso apenas a medida de nossa ignorncia (Bernstein, 1997, p. 200, citando Poincar), e este acaso reduz-se medida que a cincia avana e domina mais informao e mais capacidade de anlise. Assim, o futuro seria absolutamente predizvel e nossas surpresas diante do porvir decorreriam apenas da nossa incapacidade de apreender os comportamentos e as relaes causais e da insuficiente informao e conhecimento sobre os eventos de partida, ou seja, sobre as causas que determinariam a realidade futura. Na crtica ao determinismo, Popper (1984) procura demonstrar, em primeiro lugar, que o problema reside precisamente na impossibilidade de se contar com uma teoria capaz de apreender e organizar todas as variveis e a complexidade das relaes de causa e efeito que se estabelecem entre elas e tambm dominar todos os eventos iniciais. De modo geral, Popper considera que os fenmenos da natureza (e da sociedade) podem ser divididos em eventos predizveis (predictibles), tais como as mudanas das estaes, os movimentos dirios do sol, a passagem de um cometa ou o funcionamento do relgio, e eventos imprevisveis (impredictibles), como, por exemplo, os caprichos do tempo e o movimento das nuvens. No entanto, cabe sempre a pergunta formulada pelo prprio Popper (op. cit., p. 30): esses fenmenos so realmente diferentes em termos de previsibilidade ou ... slo el insatisfactorio estado de nuestros conocimientos los hace aparecer como diferentes; si no seria el comportamiento de las nubes tan predictible como el de los relojes, si supiramos tanto sobre nubes como sabemos sobre relojes. Levando tal proposio ao extremo, as prprias decises e as vontades humanas poderiam ser previsveis, na medida em que a aparente escolha voluntria tem tambm uma causa que, uma vez conhecida antes, poderia predizer os efeitos. Popper (ibidem, p. 44) diz que Hobbes e Kant teriam chegado concluso de que uma informao psicolgica completa nos permitiria calcular de antemo com certeza, da mesma forma que o fazemos com os eclipses solares, a conduta futura de qualquer pessoa, o que representa, da mesma forma que no determinismo religioso, a eliminao do livre-arbtrio. Dessa forma,8.. Este seria, de forma simplificada, o pensamento em que se manifesta a confiana de Jules-Henri Poincar e de Camille Flammarion no determinismo cientfico.

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a capacidade de a sociedade definir o seu futuro e fazer o seu destino estaria reduzida pela fora dos determinantes histricos e das circunstncias. Evidentemente, as decises humanas (e o livre-arbtrio) no esto desvinculadas e isoladas das causas e das condies concretas das pessoas, cada uma delas condicionada pela sua histria, pela sua personalidade, pela sua estrutura psicolgica e pelos momentos e circunstncias da sua escolha. O homem e suas circunstncias, de Ortega e Gasset, traduz claramente essa relao entre o determinismo psicolgico previsvel e a imprevisibilidade das escolhas humanas nos espaos de liberdade. Por outro lado, como afirma Popper (1984), a existncia de condies e causas que condicionam o futuro no pode levar ao determinismo; mais do que a existncia de causas, o que inerente cincia, o determinismo teria de contemplar a previso de sucessos futuros com um grau desejvel de preciso. Ao contrrio da viso determinista, o planejamento e a concepo de cenrios partem do postulado segundo o qual ... o futuro no est todavia completamente fijado; ao contrrio que el pasado, que est cerrado, por decirlo as, el futuro est todavia abierto a influencias; todavia no est completamente determinado (Popper, 1984, p. 79-80). O questionamento do determinismo e a proposta de um futuro imprevisvel e no determinista se baseiam em trs grandes argumentos: a) impreciso e incapacidade de apreender e dominar todos os eventos iniciais relevantes para antecipar o futuro da realidade estudada, o que reduz, portanto, a capacidade de lidar com as causas. As causas iniciais que determinam o futuro nunca apresentam uma preciso absoluta, o que leva a que se trabalhe com condies de partida, at certo ponto, imprecisas. Como afirma Bernstein (1997, p. 202),podemos reunir grandes e pequenas pores de informaes, mas nunca conseguimos juntar todas as peas. Nunca conhecemos ao certo a qualidade de nossa amostra. Essa incerteza o que torna to difcil chegar a julgamentos e to arriscado agir baseado neles. No podemos sequer ter 100% de certeza de que o Sol nascer amanh de manh: os antigos que previram esse evento trabalharam com uma amostra limitada da histria do universo.

b) insuficiente base terica para dominar todas as variveis e as relaes complexas de interao entre elas de modo que sejam simulados e reproduzidos os eventos futuros a comear pelos elementos de partida tambm imprecisos. As teorias so sempre uma representao simplificada do mundo real e constituem, portanto, um referencial limitado para a reproduo das relaes e do movimento efetivo dos eventos. Como lembra Popper (1984, p. 65), as teorias so... redes racionales hechas por nosotros mismos, y no deben confundirse com una representacin completa del mundo real en todos sus aspectos, ni siqueira aunque tengan un gran xito; ni siquiera aunque parezcan producir excelentes aproximaciones a la realidad.

Todo conhecimento cientfico possui um carter de aproximao dos elementos da realidade e de explicao dos fenmenos e da causalidade destes. Por ltimo, representa a tentativa de descrever o mundo com base em teorias universais como uma forma de racionalizar o nico e o irracional por meio de leis universais formuladas pelos homens (Popper, 1984). As teorias no conseguem apreender e processar a complexidade da realidade estudada e, com isso, reduzem sua capacidade de antecipao do futuro.

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c) imprevisibilidade dos movimentos da realidade e dos comportamentos humanos singulares mesmo dentro do jogo de causalidade organizado pelos sistemas tericos. De acordo com as modernas concepes epistemolgicas, especialmente a chamada teoria do caos, tambm nas cincias exatas, vrios fenmenos da natureza so imprevisveis no apenas por insuficincia de informao e de capacidade de conhecimento analtico, mas tambm pelo fato de constiturem sistemas complexos e nolineares, com mutaes ocasionais (Van Der Heijden, 1996). Os sistemas complexos e no-lineares, como o movimento das nuvens referido antes, caracterizam-se por uma grande sensibilidade s condies iniciais, de modo que pequenas mudanas podem gerar efeitos finais dramticos se amplificadas por um processo de retroalimentao e de grande instabilidade. Como mostra Capra (1996, p. 116), esses sistemas no-lineares so estruturalmente instveis, e os pontos crticos de instabilidade so denominados pontos de bifurcao, pois so pontos na evoluo do sistema nos quais aparece subitamente um forqueamento, e o sistema se ramifica em uma nova direo. 3.2 INCERTEZA E PADRO DE ORGANIZAO O questionamento do determinismo no pode significar a concluso da impossibilidade e, menos ainda, da impertinncia dos estudos de futuro e da tentativa de interpretao das possibilidades do porvir. No fim das contas, o desempenho futuro da natureza ou da histria no um fenmeno aleatrio e arbitrrio, tampouco uma trajetria definida por antecipao, da mesma forma que os homens no so totalmente livres nem totalmente predeterminados (Jouvenel, 1997). A liberdade processa-se e manifesta-se nas circunstncias que limitam os espaos de possibilidades mesmo para sistemas complexos e no-lineares. Os sistemas no-lineares (caticos) no so completamente aleatrios, uma vez que tendem tambm a apresentar determinados padres. Entretanto, medida que os movimentos do sistema se ampliam, este pode chegar a determinadas condies nas quais a evoluo futura pode tomar vrios caminhos diferentes dentro do seu padro de organizao. Qual caminho ele tomar (nesse ponto de bifurcao) algo que depende da histria do sistema e de vrias condies externas, e nunca pode ser previsto. H um elemento aleatrio irredutvel em cada ponto de bifurcao (Capra, 1996, p. 151). Dessa forma, mesmo em sistemas complexos e caticos, a antecipao de futuros possvel dentro dos espaos de imponderabilidade, pelo menos no que diz respeito s caractersticas qualitativas gerais do comportamento do sistema (exceto os valores precisos e suas variveis num determinado instante) (Capra, 1996). Por ltimo, o padro de organizao dos sistemas que define os espaos de comportamentos aleatrios ao condicionar o curso das interaes e, por assim dizer, ao delimitar as imponderabilidades futuras. Desse ponto de vista, para os estudos de cenrios necessrio considerar a inevitabilidade de lidar e de aceitar a incerteza, tentando, portanto, apenas limitar seus espaos de possibilidades. A incerteza constitui uma caracterstica do mundo real, principalmente nos sistemas complexos, e no um ... desvio ocasional e temporrio de algo razoavelmente previsvel (Wack, 1998, p. 363). Apesar de carregado de incerte-

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zas, o comportamento de qualquer objeto tende a expressar determinados padres logicamente interpretados e analisados, que decorrem das circunstncias histricas e da lgica de funcionamento e interao. De toda a anlise anterior resulta a concluso central dos estudos de cenrios: o futuro incerto e indeterminado e constitui um horizonte aberto de mltiplas possibilidades, como dizia Guerreiro Ramos (1983), para o bem e para o mal, com seus riscos e suas chances que estimulam a ao humana e a organizao da sociedade. O que se traduz na interpretao de Jouvenel (1997), para quem o futuro , ao mesmo tempo, o domnio da liberdade (no predizvel e no est dado ou predeterminado), o domnio do poder (espaos e possibilidades de construo que enfrentam o imprio da necessidade), e o imprio da vontade (expresso de uma inteno e de um sistema de idias e valores que definem o futuro). 3.3 CENRIOS E SISTEMAS COMPLEXOS A construo de cenrios lida, normalmente, com sistemas altamente complexos sistemas no-lineares e dinmicos, que convivem com contnuas mudanas estruturais e com elevado grau de incerteza sobre os caminhos dessas mudanas. Normalmente esses cenrios devem lidar com realidades nas quais os resultados de uma mudana original no so proporcionais s causas, tambm mltiplas e diversificadas. Os sistemas complexos caracterizam-se por processos de retroalimentao que estabelecem condies de auto-organizao e de mudana. Como indica Capra (1996, p. 107), os ...processos de retroalimentao no-linerares constituem a base das instabilidades e da sbita emergncia de novas formas de ordem, to tpicas da autoorganizao. Em qualquer sistema complexo e no-linear existiriam dois mecanismos de regulao diferenciados: a retroalimentao positiva, a qual cria uma dinmica de auto-reforo dos processos de desorganizao provocando reao em cadeia; e a retroalimentao negativa, que, por sua vez, se compe de mecanismos de autoregulao, os quais se contrapem ao processo de desorganizao e reequilibram o sistema. Como referido, as mudanas dos sistemas tendem a apresentar determinados padres que decorrem do sistema de auto-organizao e de auto-regulao. Assim, tal sistema combina o padro forma, ordem, qualidade e a estrutura substncia, matria, quantidade condicionando mudana e regularidade (Capra, 1996), de modo que pode passar por contnuas alteraes estruturais enquanto preserva o padro de organizao, precisamente aquele que define a orientao e os ritmos da evoluo no tempo. Essa formulao geral dos sistemas auto-organizadores tem uma correspondncia com a abordagem da dinmica e da mudana econmica e social da teoria da regulao desenvolvida pelos franceses da chamada Escola da Regulao. De acordo com essa proposio analtica, existe um conjunto de mecanismos sobretudo institucionais e funcionais que organiza a mudana e a dinmica da economia, permitindo, assim, a estabilidade dela. Mesmo no meio das crises, existiria um padro de organizao definido pelo sistema de regulao que administraria e regularia o processo de reestruturao e de retomada da dinmica econmica.

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Lipietz (1984) comenta que as crises seriam organizadas pelo sistema de regulao que facilitaria a reorganizao do processo econmico, permitindo que o sistema econmico convivesse com as instabilidades e se recuperasse delas, num processo de retroalimentao negativa. Tal sistema funciona, dessa forma, como uma crise regulada. Entretanto, a teoria da regulao considera que, em alguns momentos de maior instabilidade, pode e costuma ocorrer a chamada crise da regulao, quando as mudanas so de tal envergadura que tornam obsoletos e ineficazes os mecanismos do sistema de regulao dominante, o que demanda novo padro de organizao. Nesse caso, os sistemas econmico e poltico internacionais podem sofrer alteraes to intensas e profundas que o modo de regulao no consegue mais dar conta das mudanas, pedindo novos mecanismos e novas regras de organizao. A complexidade (no-linearidade) dos sistemas depende do objeto que se pretende descrever no futuro. O ambiente de negcios de uma empresa pode ser relativamente menos complexo se estiver focalizado em um determinado setor ou ramo produtivo da economia. Mesmo quando se trata de cenrios estritamente econmicos de um pas ou de uma regio, a complexidade limita-se a uma dimenso (a econmica) mais ou menos condicionada por fatores polticos e sociais. No entanto, quando se busca elaborar cenrios regionais abrangentes, os quais tratem de diversas dimenses determinantes do seu desempenho futuro, passa-se a analisar uma realidade com elevado nvel de complexidade. O resultado costuma ser maior dinamismo, tendncia mudana e elevadas instabilidade e incerteza, o que amplia as dificuldades tericas e tcnicas de anlise e de prospeco do futuro. A convivncia da mudana com a continuidade (conservao) uma constante nos sistemas complexos, processo regulado por determinados padres que definem as condies efetivas do movimento futuro da realidade. Como dito anteriormente, mesmo o mais instvel dos sistemas apresenta padres de comportamento e relativa estabilidade na mudana, que, por sua vez, condicionada por fatores estruturais que definem as circunstncias do desempenho futuro. Por isso, no se deve subestimar as foras de inrcia (Godet, 1997), que delimitam os espaos e as possibilidades de transformao, alongando as efetivas alteraes da realidade, nem se pode subestimar as tendncias de transformao. Torna-se, portanto, necessrio compreender tal estabilidade na mudana e as inrcias estruturais dos sistemas para evitar duas armadilhas da antecipao de futuros: a projeo de tendncias do passado, como se a estabilidade fosse permanente; a reproduo das instabilidades conjunturais como uma tendncia de longo prazo, reduzindo a importncia da estrutura e dos fatores de continuidade. A mudana e a incerteza so a regra, e tudo indica que o futuro no ser uma continuidade do passado e do presente. Contudo, as transformaes da realidade seguem determinados padres e circunstncias ao conservarem componentes relevantes da realidade atual e ao alongarem as mudanas no tempo, de modo que os cenrios no se podem deixar dominar pelo presente nem se influenciar pelas dinmicas e tendncias de curto prazo. Como diz Jouvenel (1997, p. 100), ... slo el anlisis sobre largos perodos permite eliminar los efectos de ciclo y aprehender la dinmica profunda de los sistemas a analizar, al abrigo de la tempestad, las fuerzas profundas de la evolucin. Esses talvez sejam os maiores desafios da construo de cenrios, bem como os de todas as tentativas de antecipao de futuro.

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Por outro lado, como todo processo de conhecimento, a anlise de sistemas complexos deve combinar o conhecimento dominante e as teorias e os pensamentos consolidados nos meios tcnicos e cientficos com novos paradigmas e vertentes tericas que tentam inovar e responder s realidades emergentes. Como diz Godet (1997, p. 47), a luz cria a sombra e confunde os espritos e a capacidade de anlise e de interpretao da realidade e, principalmente, as prospeces do futuro.Si los proyectores de la actualidad estn tan bien dirigidos sobre ciertos problemas es para esconder mejor otros que no se quieren ver. Las ideas recibidas y la moda que dominan la actualidad, deben ser vistas com desconfianza porque ellas son generalmente fuentes de errores de anlisis y de previsin.

Pensar o futuro de realidades to instveis e dinmicas pressupe uma conciliao entre conhecimento cientfico estabelecido e percepes de especialistas conhecedores da realidade, de modo que seja possvel captar as incertezas e os sinais empricos de mudana.

4 PLANEJAMENTO E CENRIOSOs estudos prospectivos constituem parte importante do processo de planejamento, na medida em que oferecem uma orientao para as tomadas de decises sobre iniciativas e aes para a construo do futuro almejado pela sociedade e pelas empresas. A prpria atividade planejadora tem como pressuposto central o fato de o futuro no estar predeterminado e ser uma construo social, resultante, portanto, das aes e das decises da sociedade. O processo de planejamento no teria nenhum sentido se a natureza e a sociedade tivessem histrias futuras predefinidas, retirando qualquer espao de liberdade para definir o prprio futuro (Godet, 1997). Como as decises e as escolhas do processo de planejamento lidam sempre com futuros, a construo de cenrios representa uma ferramenta importante, particularmente medida que aumentam as incertezas. A ... prospectiva es una reflexin para aclarar la accin presente a la luz de futuros posibles, que aumenta sua importncia na sociedade contempornea em razo da acelerao das mudanas tecnolgicas, econmicas e sociais, e dos fatores de inrcia ligados s estruturas e aos comportamentos que mandam sembrar hoy da para recoger maana (Godet, 1997, p. 44). Como foi definido antes, o futuro indeterminado e impossvel de ser previsto, embora seja necessrio e possvel delimitar as incertezas a um conjunto reduzido de probabilidades. Desse ponto de vista, os cenrios constituem, no fim das contas, apenas um approach geral orientado para a gesto de risco (Van Der Heijden, 1996) e para as escolhas que decorrem das interpretaes sobre o futuro. 4.1 PROSPECTIVA E CENRIOS Entre os estudos prospectivos, a tcnica de cenrios tem se consolidado como o principal recurso metodolgico, tendo sido incorporada aos processos de planejamento estratgico tanto empresarial quanto scio-governamental. Como todo estudo prospectivo, os cenrios procuram descrever futuros alternativos lidando

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com eventos e processos incertos para apoiar a deciso e a escolha de alternativas e destacam-se, portanto, como ferramentas de planejamento numa realidade carregada de riscos, surpresas e imprevisibilidades. Os cenrios, por serem baseados na tese do indeterminismo, no podem e nem pretendem eliminar a incerteza, predizer o que vai acontecer e oferecer segurana e tranqilidade aos agentes econmicos. Entretanto, se trabalham e convivem com a incerteza, os cenrios procuram analisar e sistematizar as diversas probabilidades dos eventos e dos processos por meio da explorao dos pontos de mudana e das grandes tendncias, de modo que as alternativas mais provveis sejam antecipadas. Ao anteciparem as condies futuras no contexto externo das regies ou no ambiente de negcios das empresas, os cenrios permitem que as aes sejam organizadas e os investimentos sejam orientados na perspectiva de otimizar os resultados e favorecer a construo do futuro desejado. Contudo, para apresentar descries pertinentes e plausveis de alternativas futuras, os estudos de cenrios tm de analisar todos os elementos e eventos que levam a esse acontecimento futuro e as implicaes dele sobre o conjunto das variveis centrais que determinam a realidade. Para tanto, esses estudos devem contar com um referencial terico de interpretao variveis centrais e relao de causa e efeito , com uma base de informaes slidas e atualizadas e, finalmente, com instrumentos tcnicos para organizar e tratar a multiplicidade de informaes. Na medida em que deve tratar de sistemas complexos e no-lineares e contemplar a incerteza dos eventos futuros, a construo de cenrios deve lidar com um razovel grau de imponderabilidade. Desse ponto de vista, no constitui uma atividade cientfica adequada e apta para explicar o passado, mas limita-se antecipao de futuros. Entretanto, deve se basear e recorrer, necessariamente, ao conhecimento cientfico para estruturar as informaes e compreender a lgica e a dinmica da realidade, contando com um referencial analtico ou modelo de interpretao terica do objeto ou do sistema. Qual a lgica interna do funcionamento e da dinmica do objeto que permite antecipar a sua evoluo futura? Que movimentos e quais transformaes no conjunto do sistema devem provocar as hipteses de comportamento de algumas variveis? O modelo terico a base para essa anlise e essa formulao consistente do movimento futuro, interpretando as relaes de causas e efeitos de mltiplas variveis e de comportamentos imponderveis. Apesar das limitaes da teoria para a interpretao dos movimentos futuros alternativos dos sistemas complexos imponderabilidade de comportamento das variveis , no possvel construir cenrios sem o apoio de um modelo terico. O prprio Popper (1975), crtico do determinismo cientfico, defende que se a cincia capaz de explicar ocorrncias passadas, deve ser capaz, tambm, de antecipar processos em condies similares, constituindo uma aplicao de leis gerais da cincia s especificidades histricas do objeto de anlise. Nessas condies, ... sempre que se dispuser de uma explicao para determinado evento, se dispe tambm de uma previso, posto que se tem um modelo das condies em que o evento dever ocorrer (Gomez de Souza, Gomez de Souza e Abreu Silva, 1976). A construo de cenrios no uma atividade cientfica. Entretanto, sua aplicao para a interpretao dos movimentos do presente e do desempenho futuro permi-

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te, assim como a cincia, uma explicao do passado. Na verdade, o mtodo de cenrios uma tecnologia com vrios instrumentos e vrias tcnicas de organizao e sistematizao que se utiliza do conhecimento cientfico para lidar com eventos e processos e para construir tendncias lgicas e consistentes. No entanto, como se trata de imagens sobre futuros, deve trabalhar com eventos imponderveis e utilizar hipteses sobre comportamentos futuros, o que demanda percepo e sensibilidade para identificar sinais e tendncias no visveis ou claras. Por conta disso, a elaborao de cenrios , antes de tudo, uma arte como lembra Peter Schwartz que demanda criatividade e abertura intelectual e explora percepes e sensibilidades dos tcnicos e dos especialistas. No obstante, como no se pode limitar os estudos de futuro ao sentimento das pessoas, uma arte que requer um grande esforo tcnico para organizar as percepes, analisar e avaliar a plausibilidade dos eventos e das alternativas e testar, racional e logicamente, a consistncia das hipteses e das percepes de sinais do futuro. Para organizar essa arte da previso, tm sido desenvolvidos, nas ltimas dcadas, vrios recursos analticos que auxiliam no processo de elaborao de cenrios, pois promovem e estimulam a criatividade e, ao mesmo tempo, estruturam a reflexo e a anlise. No entanto, como se trata de uma criao (inveno), a elaborao de cenrios no pode ficar presa a um rigoroso roteiro de trabalho e tcnicas, embora tenha de se basear numa estrutura lgica convincente e aceita pelo paradigma dominante. De modo geral, com algumas nuanas e diferenas de interpretao, existe um grande consenso em torno dos conceitos e das metodologias para a elaborao de cenrios, para os quais contriburam os autores que constituem hoje referncia bibliogrfica obrigatria, entre eles, Michel Godet, Peter Schwartz, Kees Van Der Heijden e Michael Porter. Segundo Godet (1985), cenrios so configuraes de imagens de futuro condicionadas e fundamentadas em jogos coerentes de hipteses sobre os provveis comportamentos das variveis determinantes do objeto de planejamento. Michael Porter (1989) define cenrios de forma similar, ou seja, como uma viso internamente consistente da realidade futura, baseada em um conjunto de suposies plausveis sobre as incertezas importantes que podem influenciar o objeto. Semelhante o entendimento de Van Der Heijden (1996), para quem cenrios constituem um conjunto de futuros razoavelmente plausveis, mas estruturalmente diferentes, concebidos por meio de um processo de reflexo mais causal que probabilstico, usado como meio para a reflexo e a formulao de estratgias para atuar nos modelos de futuros. Os cenrios tratam, portanto, da descrio de um futuro possvel, imaginvel ou desejvel para um sistema e seu contexto, bem como do caminho ou da trajetria que o conecta com a situao inicial do objeto de estudo, como histrias sobre a maneira como o mundo (ou uma parte dele) poder se mover e se comportar no futuro. Na caracterizao dos cenrios, possvel distinguir dois grandes conjuntos diferenciados segundo sua qualidade, particularmente quanto a iseno ou presena do desejo dos formuladores do futuro: cenrios exploratrios e cenrio desejado ou normativo. Os cenrios exploratrios tm um contedo essencialmente tcnico, decorrem de um tratamento racional das probabilidades e procuram intencionalmente excluir as vontades e os desejos dos formuladores no desenho e na descrio dos futuros. At mesmo quando pro-

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cura analisar a postura e a estratgia dos atores sociais (com seus desejos), o trabalho tem uma conotao tcnica de interpretao do processo poltico. Trata-se de apreender para onde, provavelmente, estar evoluindo a realidade estudada, para que os decisores possam escolher o que fazer e possam se posicionar positivamente naquela situao. O cenrio desejado, por seu turno, deve aproximar-se das aspiraes do decisor em relao ao futuro, refletindo a melhor previso possvel. Embora se trate de ajustar o futuro aos desejos, para ser um cenrio, a descrio deve ser plausvel e vivel e no apenas a representao de uma vontade ou de uma esperana. Desse ponto de vista, pode-se dizer que o cenrio normativo ou desejado uma utopia plausvel, capaz de ser efetivamente construda e, portanto, demonstrada tcnica e logicamente como vivel. Normalmente utilizado para o planejamento governamental, o cenrio normativo (desejado) tem uma conotao poltica e deve ser, ao mesmo tempo, tecnicamente plausvel e politicamente sustentvel. Tal cenrio procura administrar o destino com base no desejo, ajustando-o s probabilidades e s circunstncias. Dessa forma, pode exercer um papel importante na orientao da ao dos atores para intervir e transformar o futuro provvel no desejado, expressando o espao da construo da liberdade dentro das circunstncias. Como mostra o grfico 1, o cenrio desejado a sntese do contraponto entre o presente (anttese) e as idias e as utopias de uma sociedade em relao ao seu futuro, o que resulta num futuro to prximo das aspiraes quanto possvel nas circunstncias histricas determinadas. Desse modo, consiste num tratamento tcnico e racional dos desejos, o qual recusa a simples probabilidade dos eventos futuros, mas tambm evita o voluntarismo descolado do mundo real.GRFICO 1

Cenrio normativo (desejado)

Fonte: Macroplan, 1996.

Os cenrios exploratrios podem ter vrias formas de acordo com o grau de importncia que for conferido s latncias e aos fatores de mudana que amadurecem na realidade, indicando maior ou menor abertura para as inflexes e descontinuidades futuras. Assim, podem ser diferenciados dois grandes tipos diferentes de cenrios exploratrios: i) extrapolativos, os quais reproduzem no futuro os comportamentos

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dominantes no passado; ii) alternativos, os quais exploram os fatores de mudana que podem levar a realidades completamente diferentes das do passado e do presente. O primeiro tipo ainda pode ser diferenciado em futuro livre de surpresas (ver grfico 2), definido como um nico futuro decorrente da projeo direta do passado, e em cenrios com variaes cannicas (ver grfico 3), que introduzem pequenas mudanas paramtricas (quantitativas) em torno do futuro livre de surpresas, como uma espcie de teste de sensibilidade na direo geral. Rigorosamente, os modelos extrapolativos no deveriam ser considerados cenrios, na medida em que trabalham com uma nica hiptese de comportamento futuro dos condicionantes; entende-se, assim, que o futuro reproduz no futuro, aproximadamente, o movimento do passado recente.GRFICO 2

Extrapolativo livre de restries

Fonte: Macroplan, 1996.

Os cenrios exploratrios alternativos, ao contrrio, ampliam as possibilidades de futuro e as incertezas das hipteses e correspondem velocidade e profundidade das mudanas contemporneas. Os cenrios alternativos (no extrapolativos), ao considerarem descontinuades e inflexes de tendncias, contemplam a possibilidade e a probabilidade de o futuro ser completamente diferente do passado recente. Embora tais cenrios tenham o passado como uma referncia, a base deles reside nos processos em maturao e nas perspectivas efetivas de descontinuidades no desenho do futuro: o que est amadurecendo na realidade atual que pode definir alternativas e desdobramentos futuros?GRFICO 3

Extrapolativo com variaes cannicas

Fonte: Macroplan, 1996.

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O grfico 4 mostra, de forma simblica, a diferena entre os cenrios alternativos e os extrapolativos, ressaltando a mudana de qualidade pela disperso do futuro ao longo do tempo a partir da situao atual. Partindo do princpio segundo o qual, normalmente, o padro de comportamento do passado no se mantm no futuro, principalmente em momentos de grandes instabilidades, os cenrios alternativos procuram investigar os grmens de mudana que esto sendo sinalizados no presente como indicao de futuro. Com base nessa observao, so definidas as hipteses de evoluo futura diferenciada dos diversos eventos para a construo de mltiplos cenrios.GRFICO 4

Cenrios alternativos

Fonte: Macroplan, 1996.

4.2 PLANEJAMENTO, CENRIOS E APRENDIZAGEM O planejamento um processo de definio de aes e iniciativas capazes de influenciar os resultados futuros do objeto planejado e contribui para a construo de uma realidade desejada. Desse ponto de vista, representa uma forma de a sociedade exercer o poder sobre o seu futuro (Ingeltam, 1987), rejeitando a resignao e partindo para iniciativas que definam o seu destino (Buarque, 1999). Constitui uma aposta no futuro, como diz Carlos Matus, partindo do princpio segundo o qual o futuro pode ser construdo pela sociedade portanto no est predeterminado , mas compreendendo os limites e as possibilidades decorrentes do passado e do presente. Com diz Van Der Heijden (1996), se o futuro j est definido, no h o que fazer para alcanar nossos desejos; e, se o futuro 100% incerto, planejamento obviamente uma perda de tempo. Entendido como um processo voltado para a construo do futuro esta entendida como sua principal matria-prima, que orienta e molda a vontade dos atores e as decises coletivas , o planejamento parte do princpio de que o futuro pode ser construdo pela sociedade. Como um instrumento para fazer o seu destino, o planejamento o espao de construo da liberdade da sociedade dentro das circunstncias, pois delimita o terreno do possvel para implementar as mudanas capazes de moldar a realidade futura (Buarque, 1999). O planejamento governamental (que inclui, portanto, o planejamento microrregional) o processo de construo de um projeto coletivo capaz de implementar as

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transformaes que levem ao futuro desejado, como uma proposta convergente dos atores e agentes que organizam as aes na perspectiva do desenvolvimento sustentvel.9 Como, por outro lado, envolve decises e escolhas de alternativas em torno de objetivos coletivos, o planejamento tem uma conotao poltica que passa necessariamente pela negociao, a disputa de interesses dos atores e a formulao poltica. Toda escolha coletiva envolve interesses e percepes, especialmente sobre o que se pretende alcanar no futuro, que so diferenciados em qualquer grupo social, particularmente em sociedades complexas e de grande dimenso. Por isso, o planejamento sempre um processo poltico. No entanto, ele tambm um processo ordenado e sistemtico de deciso, o que lhe confere uma conotao tcnica e racional de formulao e suporte para as escolhas da sociedade. Dessa forma, o planejamento incorpora e combina uma dimenso poltica e uma dimenso tcnica, constituindo, portanto, uma sntese tcnico-poltica. Tcnico, por ser ordenado e sistemtico, por utilizar instrumentos de organizao, sistematizao e hierarquizao da realidade e das variveis do processo e por constituir um esforo de produo e de organizao de informaes sobre o objeto e os instrumentos de interveno. Poltica, porque a deciso e a definio de objetivos passam por interesses e negociaes entre atores sociais. Tal concepo do planejamento como tcnico e poltico demanda a utilizao de metodologias de participao e de mobilizao da sociedade na tomada das decises, embora sempre orientadas pela reflexo tcnica. Dessa maneira, o processo de planejamento e a definio de futuros alternativos e desejados contribuem para a construo de um projeto coletivo reconhecido pela sociedade, em torno do qual os atores sociais e os agentes pblicos estejam efetivamente comprometidos. Assim, tanto o planejamento quanto a elaborao de cenrios implementam um processo estratgico de reflexo na sociedade a partir do qual o projeto de futuro estruturado. Entretanto, a utilizao dos cenrios como referencial para a deciso depende da confiana que os decisores tenham na plausibilidade e na consistncia dos futuros construdos (alternativos ou desejados). Portanto, os documentos tcnicos que apresentam alternativas de futuro devem refletir e expressar os modelos mentais e as vises de mundo dominantes nas organizaes e nas sociedades que planejam. Em outras palavras, os cenrios (assim como as estratgias) s sero eficazes se os decisores adotarem e concordarem com os postulados e os resultados deles; do contrrio, tendem a se transformar em um exerccio acadmico sem valor prtico. A experincia mostra, segundo Van Der Heijden (1996), que a falta de uma ligao dos cenrios com preocupaes e ansiedades correntes e dominantes no pensamento dos decisores os deixa sem efetividade; por isso, a construo de cenrios tem de ser feita com a sociedade e com as organizaes e no para elas, o que torna a ferramenta uma pea customizada, vale dizer, adaptada s condies e s percepes da sociedade (organizao). Isso expressa o que Capra (1996, p. 36) chama de paradigma social: ... constelao de concepes, de valores, de percepes e de prtica compartilhados por uma comunidade que d forma a uma viso particular da realidade, a qual constitui a base de como a comunidade se organiza. evidente que isso9. Para mais detalhes sobre a concepo de planejamento, ver Buarque, 2000.

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no impede que tcnicos possam fazer cenrios bastante consistentes e competentes, mesmo que recorram a paradigmas emergentes e diferenciados do pensamento dominante; todavia, por melhor que seja o trabalho construdo pelos tcnicos, sua capacidade de influenciar as decises ser limitada. Por outro lado, como o futuro incerto e as decises orientadas pelos cenrios tendem a ser ultrapassadas pelos fatos, mais importante que deter bons cenrios a capacitao da sociedade ou da organizao para controlar e acompanhar as incertezas e as tendncias. Assim, o principal objetivo dos cenrios no prever os futuros e sim aumentar a capacidade da organizao na observao do ambiente por meio do desenvolvimento de uma postura estratgica e antecipatria no apenas episodicamente durante o estudo de cenrios, mas durante todo o planejamento (Van Der Heijden, 1996). Os cenrios funcionam, portanto, como um estmulo para que a sociedade (organizao) reflita sobre a realidade e suas possibilidades, de modo que a contribuio central deles reside na preparao do esprito das equipes que participam da reflexo (Godet, 1997). Dessa forma, no prprio planejamento, o processo de construo de cenrios mais importante que o produto (a descrio literria dos futuros alternativos), pois contribui decisivamente para a aprendizagem social e organizacional, cria organizaes e sociedades mais adaptativas, ou seja, que reconhecem as mudanas e as incertezas,10 que lem e interpretam sinais e identificam padres, alm de permitir a compreenso das foras que podem decidir sobre o futuro, como grandes balizamentos para a ao (Wack, 1998). A reflexo para a formulao dos cenrios (e da estratgia) promove a aprendizagem e a construo de uma viso e de um projeto coletivo da sociedade. Como apresentado em vrias experincias sejam ressaltados aqui os trabalhos pioneiros da Shell (empresarial) e da frica do Sul (cenrios nacionais) , trata-se, portanto, de habilitar os decisores para a construo de modelos mentais para a anlise de tendncias e de comportamentos que possam definir o futuro (Van Der Heijden, 1996). A confirmao das previses enunciadas pelos cenrios no constitui, portanto, uma preocupao central dos estudos prospectivos. Da mesma forma, no parece um exerccio relevante identificar a posteriori acertos ou erros da previso. Importa, contudo, acompanhar e monitorar o movimento da realidade antecipado pelos cenrios para ajustar e calibrar as antecipaes de futuro, introduzindo os novos elementos que amadurecem com o tempo. Embora as decises se orientem para os futuros desenhados pelos cenrios, a sociedade ou a organizao podem no estar preparadas para as incertezas e para as surpresas futuras se no concentrarem o esforo de reflexo estruturada para formular cenrios que visem a capacitar e a formar uma postura de antecipao e interpretao das tendncias e dos sinais que parecem mostrar possibilidades futuras. Se alcanar esse objetivo, mesmo que se evidenciem desvios das previses dos cenrios, a organizao ter condies de responder rpida e eficientemente s surpresas. A organizao estar preparada para conviver com as incertezas e com as intensas transformaes do mundo contemporneo, fortalecendo sua capacidade de respostas s condies emergentes e s surpresas.10. We will base this discussion on the premise that the ultimate purpose of the scenario planner is to create a more adaptative organization which recognises change and uncertainty and uses it to advantage (Van Der Heijden, 1996).

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5 METODOLOGIA GERAL DE CONSTRUO DE CENRIOSComo os cenrios so descries do futuro com base em jogos coerentes de hipteses sobre comportamentos plausveis e provveis das incertezas, a essncia da metodologia reside na delimitao e no tratamento dos processos e dos eventos incertos. Desse modo, simplificando o processo, pode-se dizer que o grande segredo da metodologia de cenrios reside no reconhecimento e na classificao dos eventos em graus diferentes de incerteza (Van Der Heijden, 1996). Seja qual for a abordagem ou o caminho escolhido para a elaborao de cenrios, organizao e tratamento das incertezas so pontos centrais de todas as metodologias. Por outro lado, o poder da metodologia de cenrios decorre da habilidade e da capacidade para a organizao lgica (causal) de um grande volume de informaes e de dados relevantes e diferenciados (Van Der Heijden, 1996). Isso s possvel se os tcnicos responsveis pelo exerccio de construo do futuro contarem com uma base conceitual e analtica capaz de identificar incertezas, classificar os eventos, analisar as relaes causais e lgicas da grande massa de informaes e processos. Com efeito, a metodologia de cenrios precisa de um modelo terico para assegurar a plausibilidade das hipteses e analisar a consistncia das combinaes delas, de modo que a descrio da realidade futura seja fundamentada. Embora, como foi ressaltado, a antecipao de futuros seja, antes de tudo, uma arte que incorpora as percepes e as sensibilidades dos especialistas e dos polticos (ou dos homens de negcio, quando se trata de cenrios empresariais), a anlise e o tratamento tcnico dessa sensibilidade requerem um sistema de interpretao terica do objeto de estudo que se pretende descrever no futuro. Para delimitar o objeto, compreender a sua forma de funcionamento e as leis gerais de seu comportamento e definir as variveis relevantes e o jogo de causa e efeito entre elas responsvel pelo seu movimento e pelo seu padro de mudana , necessrio contar com um modelo mental de interpretao. Essa compreenso do objeto permite ainda analisar a pertinncia e a consistncia das hipteses e os seus desdobramentos nas variveis que determinam o seu desempenho futuro. Assim, para a construo dos cenrios, parte-se de um modelo mental (teoria) que interpreta as variveis centrais e as interaes entre elas como uma reduo da complexidade da realidade, como um certo entendimento do sistema-objeto de anlise e projeo futura. Comea-se, portanto, com a formulao explcita dos princpios tericos de interpretao do objeto, o que no significa, evidentemente, um esforo terico e cientfico de parte dos tcnicos e dos profissionais envolvidos no trabalho. Essa definio do marco terico demanda uma interao entre as vises de mundo e os modelos mentais dos tcnicos envolvidos no trabalho, articulando diferentes disciplinas de conhecimento especialmente das cincias humanas , algumas das quais ainda convivem com a disputa de paradigmas cientficos, o que dificulta a formulao do marco terico de estudo. parte as dificuldades decorrentes da concorrncia de paradigmas tericos, nos estudos multidisciplinares, o problema torna-se mais complexo na medida em que se deve interpretar o movimento

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e a interdependncia de diversas dimenses com as distintas lgicas e dinmicas internas, cada uma correspondendo a uma disciplina cientfica. 11 Como forma de contornar a complexidade de interpretao da realidade e evitar um grande esforo terico, utiliza-se uma abordagem sistmica, em que se representa a totalidade complexa por um conjunto de variveis centrais e se procura compreender a lgica da interao entre elas e a lgica de determinao do sistema. Segundo a teoria de sistemas, cada objeto de anlise constitui ... um todo integrado cujas propriedades essenciais surgem das relaes entre suas partes (Capra, 1996, p. 39). Assim, as caractersticas desse objeto s podem ser entendidas pela organizao do todo, da mesma forma que o conjunto ser apreendido apenas como resultado das mltiplas e complexas interaes das suas partes. Como indica Capra (1996, p. 40-41), nenhuma parte de um sistema (subsistema) possui as propriedades do todo, o que decorre precisamente dos controles mtuos que cada uma delas exerce sobre as outras para gerar a sntese integradora da totalidade. Na abordagem sistmica, as propriedades de um organismo .... so destrudas quando o sistema dissecado, fsica ou teoricamente, em elementos isolados. Embora possamos discernir partes individuais em qualquer sistema, essas partes no so isoladas, e a natureza do todo sempre diferente da mera soma das suas partes. Os macrossistemas podem, por outro lado, ser agrupados em grandes dimenses (ou subsistemas) com um corte aproximado de disciplinas de conhecimento, tais como as dimenses econmica, sociocultural, ambiental, tecnolgica, poltico-institucional, etc., para que se compreenda o sistema-objeto e o contexto dele. Embora a construo de cenrios no possa nem deva se perder num embate acadmico e cientfico, e apesar das dificuldades de abordagem de sistemas complexos e multidisciplinares, no h como escapar do recurso, implcito ou explcito, de um referencial terico. 5.1 DIRETRIZES METODOLGICAS Para lidar com a complexidade e a incerteza e para incorporar a sensibilidade e a percepo ao processo de construo de cenrios, necessrio considerar alguns princpios e recomendaes bsicas na metodologia. De forma muito esquemtica, podem ser ressaltados os seguintes princpios e diretrizes de orientao da metodologia e da prtica de construo de cenrios:12 a) evitar o impressionismo e o imediatismo no se deixar dominar e impressionar pelos problemas do cotidiano e pelas questes emergenciais que tendem a dramatizar a anlise da realidade, questes estas que no constituem orientaes para o futuro de realidades marcadas por grandes mudanas. Assim, necessrio no se deixar levar pela instabilidade nem pelas inrcias estruturais de curto prazo, que costumam esmagar o pensamento livre acerca das perspectivas de mdio e longos prazos que encerram mudanas intensas na natureza mesma da realidade.11. No fim das contas, a qualidade e a riqueza do processo de construo de cenrios, bem como a aprendizagem e a capacidade de percepo dos mltiplos determinantes do futuro, dependem do grupo responsvel pela reflexo e de sua base de informao, sua capacidade de anlise e, principalmente, sua multidisciplinaridade. 12. Essas orientaes incorporam vrias idias de Michel Godet, Peter Schwartz, Kees Van Der Heijden, entre outros, alm da prpria experincia do autor na elaborao de cenrios.

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b) recusar consensos duvidar e desconfiar do senso comum e das idias dominantes, sob a forte luz dos refletores, tentando pensar diferentemente das vises consensuais e, aparentemente, indiscutveis. A moda e as verdades consolidadas so os piores adversrios de um bom trabalho de construo de cenrios porque reduzem a capacidade de percepo dos fatores de mudana e das alternativas diferentes no futuro. c) ampliar e confrontar as informaes no se deixar levar e influenciar pelas informaes e afirmaes da imprensa, as quais so quase sempre dominadas pelos fatores de curto prazo, dramatizando e superdimensionando os problemas e os fatores inerciais. Por isso, necessrio ampliar as fontes de informao e conhecimento, ou seja, deve-se recorrer a produo cientfica, a dados e a informaes estruturais. d) explorar a intuio procurar dar espaos para que a intuio e a sensibilidade das equipes possam fluir livremente na busca da identificao das tendncias e da definio das hipteses de comportamento futuro. Como pensar o futuro no um exerccio estritamente tcnico (mais uma arte que uma cincia), necessrio estimular a manifestao dos sentimentos e das percepes, passando depois pelo tratamento tcnico e pela anlise de plausibilidade. e) aceitar o impensvel recusar as posturas e atitudes inibidoras da criatividade e do pensamento no convencional, isto , aquelas que descartam a priori hipteses inovadoras; deve-se evitar sempre a refutao de idias inusitadas recorrendo s velhas frases Isto impossvel e impensvel, Esta uma estria estpida, Esta idia no tem o menor sentido, Voc no pode estar dizendo isto , como prope Van Der Heijden. De acordo com esse autor, em vez dessas frases inibidoras e conservadoras, importante interrogar e questionar, com abertura intelectual, sobre a lgica, as causas provveis dos eventos e a plausibilidade das afirmaes. f) reforar a diversidade de vises evitar grupos de trabalho (e atores sociais, quando se tratar dos cenrios governamentais) com grande uniformidade de viso de mundo e com tendncia convergncia ou ao consenso fcil em relao realidade e s hipteses sobre o futuro e procurar ento criar um ambiente de criatividade e de confronto de percepes. Embora no possa haver um antagonismo to grande de vises de mundo que impea um trabalho em equipe, os grupos devem apresentar, intencionalmente, um leque razovel de diversidade e de capacidades tcnicas e intelectuais. g) ressaltar a anlise qualitativa antes de qualquer quantificao na descrio do futuro, necessria a compreenso da natureza e da qualidade dessa realidade futura, baseada em um processo lgico e tecnicamente fundamentado no comportamento das variveis e das incertezas. As quantificaes com os modelos matemticos possveis e disponveis servem apenas para dar a ordem de grandeza das trajetrias gerais e para a realizao de teste de consistncia. 5.2 MTODO INDUTIVO E DEDUTIVO Embora sigam sequncia lgica muito semelhante, as metodologias de construo de cenrios podem ser diferenciadas em dois grandes conjuntos distintos segundo o tratamento analtico: processo indutivo e processo dedutivo.

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No mtodo indutivo, os cenrios so formados a partir da aglomerao e da combinao de hipteses sobre o comportamento dos principais eventos e constituem um jogo coerente de acontecimentos singulares. Dessa forma, os cenrios emergem do particular (partes) para o geral e se estruturam pelo agrupamento das hipteses, formando blocos consistentes que expressam determinados futuros diferenciados do objeto; vo, por assim dizer, surgindo por si mesmos (by itself ) como resultado da organizao dos eventos, sem uma definio apriorstica do desenho do futuro (Van Der Heijden, 1996). O mtodo dedutivo, pelo contrrio, consiste em descobrir estruturas de futuro a partir dos dados e das informaes apresentados pelos eventos e constitui um marco geral (framework) a partir do qual so formulados os cenrios. Dessa maneira, tenta-se inferir o quadro de referncia do conjunto dos eventos saindo do geral e indo para o particular por meio de uma descrio do estado futuro que traduza a natureza bsica da realidade. Em seguida, procura-se distribuir os eventos de forma consistente com a descrio geral (marco geral de referncia), com a organizao dos processos como eventos singulares (Van Der Heijden, 1996). Essa classificao dos mtodos indutivo ou dedutivo manifesta-se tambm no tratamento sistmico do objeto, distinguindo o processo que constri o todo como sntese da interao das suas partes (indutivo) daquele que explicita as partes como deduo da totalidade. Na construo de cenrios regionais e setoriais, o mtodo indutivo consiste em olhar para o contexto do qual o objeto um subsistema a partir de uma anlise das suas caractersticas internas de dentro para fora , buscando identificar os elementos exgenos que podem influenciar os processos e os eventos endgenos (regio e seu contexto). O processo dedutivo, ao contrrio, consiste em iniciar o processo pela elaborao dos cenrios do contexto ou do ambiente de negcios, e com base neles so identificados os condicionantes exgenos e seus impactos sobre o objeto. Depois de definidos os futuros alternativos do contexto do geral para o particular , procura-se confront-los com os condicionantes endgenos para definir os cenrios alternativos (as alternativas do mtodo regional esto sistematizadas na seo 6). 5.3 PROCESSO GERAL DE TRABALHO Embora existam diversas metodologias e orientaes tcnicas para a construo de cenrios, de modo geral, todos os caminhos seguem uma seqncia lgica (tanto para o mtodo indutivo quanto para o dedutivo) de passos metodolgicos semelhantes, que vai da identificao das latncias (eventos e processos emergentes) at a definio e a combinao de hipteses plausveis sobre o futuro das incertezas. O processo de trabalho dessas metodologias procura, normalmente, responder a um conjunto de cinco perguntas fundamentais: 1. Que fatores (condicionantes) esto amadurecendo na realidade atual que indicam uma tendncia de futuro? 2. Quais so os condicionantes mais relevantes e os de desempenho futuro mais incerto (principais incertezas)?

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3. Que hipteses parecem plausveis para a definio de eventuais e provveis comportamentos futuros dessas incertezas centrais? 4. Como podem ser combinadas as diferentes hipteses para as diversas incertezas consideradas relevantes? 5. Que combinaes de hipteses das incertezas podem ser consideradas consistentes para a formao de um jogo coerente de hipteses? A anlise e o tratamento de relevncia das incertezas, plausibilidade de hipteses e consistncia de combinaes pressupem um conhecimento cientfico e um modelo terico de interpretao da realidade para dar solidez e sustentao ao refinamento da arte e da sensibilidade. Assim, como referido antes, para responder a essas perguntas, necessrio utilizar um marco terico de interpretao da realidade at mesmo para poder compreender quais so os fatores da realidade atual que tenderiam a definir o futuro, principalmente para se chegar definio das principais incertezas. Como mostra de forma esquemtica o grfico 5, o processo inicia-se com uma anlise de carter terico, em que se procura compreender o funcionamento sistmico do objeto de anlise que se pretende desenhar no futuro, identificando as variveis determinantes que definem o seu comportamento a partir de um tratamento das relaes estruturais de causa e de efeito. Em seguida e com a utilizao de um enfoque terico, procura-se estudar o movimento da realidade atual de modo que sejam percebidos os processos que condicionam o futuro, vale dizer, definir os condicionantes do futuro como latncias e processos que amadurecem na realidade. Dessa forma, para responder primeira questo a qual se refere aos condicionantes do futuro , deve-se realizar um estudo aprofundado da realidade buscando identificar as tendncias visveis e relevantes de cujo desempenho dependem as alternativas futuras. Trata-se de apreender os processos que esto amadurecendo para descobrir tendncias e fatores que antecipam o futuro. Em seguida, como resposta segunda pergunta, deve ser feita uma seleo dos condicionantes para que sejam identificados os de maior relevncia e os de maior incerteza. A relevncia pode ser analisada a partir do tratamento terico que identificou as variveis determinantes; os condicionantes que, de fato, influenciam fortemente o futuro so precisamente aquel