20
VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-20 Tecnologia, independência nacional e relações internacionais GT19 – Ciência, tecnologia e sociedade e relações internacionais: um diálogo possível? Demétrio Gaspari Cirne de Toledo Maria Caramez Carlotto Resumo: As relações entre tecnologia, independência nacional e relações internacionais, outrora elementos centrais das análises de escolas como o estruturalismo cepalino e as teorias da dependência, em tempos recentes têm recebido pouca atenção de pesquisadores dos campos de estudo da ciência e tecnologia e relações internacionais. As transformações da tecnologia e do sistema internacional nas últimas décadas explicam em parte esse desinteresse passado, e mais ainda seu renovado interesse atual. O dilema tecnológico clássico entre make or buy pareceu a alguns, no auge da euforia da globalização neoliberal e na sequência da derrocada das tentativas de desenvolvimento autônomo nacional nas décadas de 1980 e 1990, haver encontrado resolução definitiva no polo do segundo termo, buy, tornando dispensáveis os esforços nacionais pela autonomia tecnológica como forma de reduzir a dependência dos países periféricos em relação ao monopólio tecnológico dos países centrais. A história das últimas quatro décadas, no entanto, não só não assistiu à ampliação do acesso às tecnologias proprietárias dos países centrais por meio de transações de mercado – buy –, como viu o aprofundamento do monopólio tecnológico daqueles países, recolocando a necessidade de desenvolvimento tecnológico autônomo – make – para os países periféricos, tarefa tão ou mais urgente agora quanto antes. Com vistas a retomar o diálogo entre estudos da ciência, tecnologia e sociedade e RI, não apenas possível, mas necessário e urgente, este artigo mobiliza formulações clássicas sobre desenvolvimento e dependência e estabelece um quadro conceitual para analisar as relações entre tecnologia, independência nacional e relações internacionais. Em seguida, apresenta uma breve análise das tentativas brasileiras de desenvolvimento tecnológico autônomo nos governos de Costa e Silva (1967-1969), Médici (1969-1974) e Geisel 1974-1979), investigando as relações entre política tecnológica e política externa. Por fim, elencamos problemas de pesquisa relativos às relações entre tecnologia, independência nacional e relações internacionais que combina as análises da família das teorias da dependência e do desenvolvimento tardio ao ferramental da sociologia e da economia da tecnologia e à história da política externa brasileira, temática com potencial de abrir nova fronteira de pesquisa sobre as conexões entre CTI e RI.

Tecnologia, independência nacional e relações internacionaisesocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/19/esocite2017... · renovado interesse atual. O dilema tecnológico

Embed Size (px)

Citation preview

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-20

Tecnologia, independência nacional e relaçõesinternacionais

GT19 – Ciência, tecnologia e sociedade e relações internacionais: umdiálogo possível?

Demétrio Gaspari Cirne de ToledoMaria Caramez Carlotto

Resumo: As relações entre tecnologia, independência nacional e relações internacionais, outroraelementos centrais das análises de escolas como o estruturalismo cepalino e as teorias dadependência, em tempos recentes têm recebido pouca atenção de pesquisadores dos campos deestudo da ciência e tecnologia e relações internacionais. As transformações da tecnologia e do sistemainternacional nas últimas décadas explicam em parte esse desinteresse passado, e mais ainda seurenovado interesse atual. O dilema tecnológico clássico entre make or buy pareceu a alguns, no augeda euforia da globalização neoliberal e na sequência da derrocada das tentativas de desenvolvimentoautônomo nacional nas décadas de 1980 e 1990, haver encontrado resolução definitiva no polo dosegundo termo, buy, tornando dispensáveis os esforços nacionais pela autonomia tecnológica comoforma de reduzir a dependência dos países periféricos em relação ao monopólio tecnológico dospaíses centrais. A história das últimas quatro décadas, no entanto, não só não assistiu à ampliação doacesso às tecnologias proprietárias dos países centrais por meio de transações de mercado – buy –,como viu o aprofundamento do monopólio tecnológico daqueles países, recolocando a necessidade dedesenvolvimento tecnológico autônomo – make – para os países periféricos, tarefa tão ou mais urgenteagora quanto antes. Com vistas a retomar o diálogo entre estudos da ciência, tecnologia e sociedade eRI, não apenas possível, mas necessário e urgente, este artigo mobiliza formulações clássicas sobredesenvolvimento e dependência e estabelece um quadro conceitual para analisar as relações entretecnologia, independência nacional e relações internacionais. Em seguida, apresenta uma breve análisedas tentativas brasileiras de desenvolvimento tecnológico autônomo nos governos de Costa e Silva(1967-1969), Médici (1969-1974) e Geisel 1974-1979), investigando as relações entre política tecnológicae política externa. Por fim, elencamos problemas de pesquisa relativos às relações entre tecnologia,independência nacional e relações internacionais que combina as análises da família das teorias dadependência e do desenvolvimento tardio ao ferramental da sociologia e da economia da tecnologia eà história da política externa brasileira, temática com potencial de abrir nova fronteira de pesquisasobre as conexões entre CTI e RI.

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

1. Independência e tecnologia nacional

A construção da independência política e econômica nacional passa

necessariamente pela afirmação da independência tecnológica nacional. Sem

independência tecnológica, todo ensaio de independência é forçosamente parcial e

efêmero, resultando, ao fim, na recolocação do país em sua condição de

dependência, não raro em posição quase idêntica à que se encontrava no começo

da tentativa de se tornar independente tecnologicamente. Não há independência

política e econômica sem independência tecnológica, e vice-versa.

Quando falamos em tecnologia, não nos referimos a qualquer forma de

conhecimento, tampouco a qualquer forma de tecnologia, mas ao conhecimento e à

tecnologia na forma que assumiram no capitalismo mundial, a partir da virada do

século XVIII para o século XIX, época da grande divergência que colocou primeiro

algumas partes da Europa ocidental e depois os EUA, na posição de nações

hegemônicas do capitalismo histórico. Em seu sentido antropológico, o

conhecimento é incomensurável entre culturas, sociedades e civilizações. Não se

trata, portanto, de estabelecer hierarquias, transformando diferenças – ou seja,

diferentes formas de conhecimento – em desigualdades – isto é, conhecimentos

superiores e inferiores. Estamos interessados nas formas historicamente definidas

que o conhecimento assumiu no capitalismo, e sobretudo a partir da primeira

revolução industrial e em seus desdobramentos nas sucessivas ondas de progresso

técnico, e no papel absolutamente central na transformação das diferenças gerais

entre culturas, sociedades e civilizações em desigualdades específicas no sistema

capitalista mundial desempenhada por uma forma particular de conhecimento: o

conhecimento produtivamente aplicável. Nesse sentido, a noção de conhecimento

produtivamente aplicável especifica o sentido em que empregamos o termo

tecnologia – como dimensão central dos processos de produção e reprodução do

capital – e o contexto – o capitalismo histórico como estrutura mundial de

diferenciação entre centro e periferia.

2

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

A definição de conhecimento produtivamente aplicável pressupõe sua aplicabilidade

nos processos de produção e reprodução ampliada do capital e sua inserção em

mercados crescentemente globais, logo, uma concorrência cujo espaço é o

capitalismo mundial. Não basta que o conhecimento seja útil e confiável (useful and

reliable), é preciso que ele seja capaz de participar com proveito dos processos de

acumulação capitalista. Logo, nem todo conhecimento útil e confiável é

produtivamente aplicável no sentido que aqui utilizamos essa noção. A aplicabilidade

do conhecimento aos processos de produção, portanto, demanda uma especificação

adicional de nossa definição: é preciso que o conhecimento esteja próximo à

fronteira tecnológica em dado momento da história dos processos de produção

capitalista. Conhecimentos obsoletos, ainda que úteis e confiáveis, não se prestam a

romper com o monopólio e a dependência tecnológica da periferia em relação ao

centro do capitalismo, antes reforçam esses traços, por exemplo, no modo como

empresas multinacionais transferem integralmente, por meio de transações

intrafirma, parques produtivos obsoletos do centro para a periferia, estendendo,

assim, o ciclo de vida daquelas formas de conhecimento produtivamente aplicável e

sua capacidade de gerar lucros, tudo isso sem jamais ameaçar seu monopólio do

conhecimento produtivamente aplicável.

A estrutura centro-periferia do capitalismo mundial é consequência direta da

desigualdade de acesso ao conhecimento produtivamente aplicável: a posição e o

papel de uma nação na divisão internacional do trabalho estão diretamente

relacionadas às distâncias relativas de cada país em relação à fronteira tecnológica

de determinado período. Um dos aspectos fundamentais da divisão internacional do

trabalho em sua dimensão tecnológica, que definirá todas as outras dimensões, é

que o avanço de uma nação em direção à fronteira tecnológica não se dá de modo

linear e contínuo, mas de modo descontínuo: os subparadigmas tecnoeconômicos

(Perez 2009) estão separados um dos outros por descontinuidades não-triviais. Não

é possível transitar do domínio de um subparadigma tecnoeconômico para outro de

modo incremental e cumulativo. Além disso, a descontinuidade entre subparadigmas

tecnoeconômicos cresce em direção à fronteira tecnológica: quanto mais próximo da

3

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

fronteira tecnológica estiver um subparadigma, maior a descontinuidade em relação

aos demais. Essas descontinuidades não são intrínsecas ao conhecimento; elas são

politicamente construídas.

A dependência tecnológica é politicamente construída a partir de fora e a partir de

dentro do país. De fora, pelas nações mais poderosas e tecnologicamente

avançadas do capitalismo histórico por meio de suas instituições de poder e

acumulação de capital (empresas multinacionais, setor financeiro, instituições de

ciência e tecnologia, acordos internacionais de regulação da propriedade

intelectual). As nações centrais do capitalismo detêm o monopólio do conhecimento

produtivamente aplicável; é por meio da produção e reprodução no tempo e no

espaço desse monopólio que as nações centrais consolidam suas posições na

divisão internacional do trabalho no capitalismo mundial. De dentro, pela submissão

dos interesses mais amplos do povo brasileiro aos interesses particulares de uma

classe dominante (que também é uma raça dominante) material e ideologicamente

vinculada ao capital estrangeiro cujo traço fundamental é o recurso à

superexploração do trabalho. Também no âmbito interno, a dominação de classe e

de raça envolve o monopólio do conhecimento de modo geral e do conhecimento

produtivamente aplicável especificamente; é pela exclusão de uma classe/raça do

acesso ao conhecimento, que a divisão nacional do trabalho se produz e reproduz

ao longo do tempo.

Encontramos os fundamentos da superexploração do trabalho no país na estrutura

de longa duração que é a forma de inserção do Brasil no capitalismo mundial a partir

do século XVI: vasta natureza a ser conquistada e explorada por meio do trabalho

de seres humanos escravizados. Desde então, e ainda hoje, a superexploração do

trabalho no Brasil é de base racial e racista, uma vez que classe e raça no Brasil,

andam de mãos dadas.

O papel desempenhado pelas colônias americanas no processo de acumulação de

capital em escala mundial a partir do século XVI tornou não apenas desnecessário o

emprego intensivo de tecnologia na transformação da natureza pelo ser humano,

4

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

mas também, e sobretudo, perigoso aos interesses da classe/raça dominante, cujo

poder político e material se baseava integralmente na exploração de mão de obra

escravizada e no comércio escravagista.

A escravidão como forma de superexploração do trabalho prolonga seus efeitos no

Brasil por meio do racismo estrutural, que coloca à disposição de uma classe, que

também é raça, os corpos de outra classe, que também é raça, para serem

superexplorados. Nesse contexto de superexploração do trabalho de uma

classe/raça por outra classe/raça, a dependência tecnológica representa a

convergência dos interesses internos – a superexploração de uma classe/raça por

outra – com os interesses externos – a perpetuação do papel periférico do Brasil no

sistema capitalista mundial – não muito mais do que um arrabalde de onde se pode

extrair recursos naturais e despejar produtos próximos da obsolescência, mas que

ainda podem gerar lucros em terras que nada produzem de sequer parecido.

A centralidade da raça nas relações de classe no Brasil, cujas formas gerais de

relacionamento se constituíram pela escravidão, colocaram o país em uma trajetória

de desenvolvimento baseado no uso intensivo da mão de obra. Isso não faz da

experiência brasileira um caso excepcional, pelo contrário: as nações da América

Latina e Caribe, África e Ásia compartilham o mesmo traço, comum a toda a periferia

do capitalismo. A persistência dessa trajetória ao longo de dois séculos por toda a

periferia do capitalismo foi, é e será viabilizada pela dependência tecnológica desta

em relação aos países do capitalismo central tecnologicamente dependentes.

Escapar a essa situação – feito raro, mas já empreendido com sucesso por algumas

poucas nações, entre elas Japão e União Soviética – passa necessariamente pela

busca da independência tecnológica

A independência tecnológica traz, em si, o potencial de reduzir a dependência

externa e abalar fortemente a estrutura de dominação classe-racial que vigora no

Brasil caso sua trajetória de desenvolvimento estiver voltada a solucionar os

problemas de superexploração do trabalho no país. Essa é uma façanha que não se

logra por acidente ou de modo não intencional; ela só se realiza por meio da decisão

5

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

consciente de buscar a independência tecnológica com esse sentido social

específico.

A reversão de dependência tecnológica, portanto, é uma etapa central e inescapável

do processo maior de independência política e econômica, e de afirmação do país,

de fato, como uma “nação”. Independência tecnológica não significa desconexão

dos sistemas globais de tecnologia, mas não-subordinação aos países que detêm o

monopólio do conhecimento produtivamente aplicável no sistema capitalista mundial.

2. Tentativas (breves e incompletas, mas não vãs) de independência

tecnológica no Brasil

Em seus breves e incompletos ensaios de independência tecnológica (portanto, de

independência política e econômica), o Brasil se defrontou com a tecnologia

enquanto fator de poder e riqueza - de um país sobre outro, de uma classe/raça

sobre outra. Os momentos em que o país buscou colocar em prática uma política

tecnológica soberana (PTS) quase sempre foram momentos em que se procurou

formular e executar uma política externa soberana (PES). Não se trata de

coincidência: independência tecnológica nacional e independência política e

econômica nacional são faces da mesma moeda. Vou mais longe: sem política

externa independente, não há política tecnológica independente e vice-versa.

Identificar, sem mais, as tentativas de independência tecnológica à história da

construção das instituições e políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação nos

levaria a falsas conclusões, ou seja, a atribuição de intenções independentistas onde

só há reforço da dependência e a indistinção dos impulsos fundamentais que

orientaram umas e outras iniciativas. De fato, uma dimensão central da nossa

análise consiste em reconhecer que nem toda iniciativa de desenvolvimento

tecnológico e científico equivale a uma tentativa de independência tecnológica, o

que implica diferenciar as hoje chamadas Políticas de Ciência, Tecnologia e

Inovação da Política Tecnológica Soberana.

6

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

O país tem oscilado entre dois vetores cujos efeitos um sobre o outro têm variado

imensamente ao longo do tempo. Esses vetores são o desenvolvimento tecnológico

com vistas a reforçar o status quo e, portanto, a inserção dependente do Brasil

enquanto nação periférica no sistema capitalista mundial. Incluem-se entre estas as

instituições e políticas públicas de tecnologia e ciência voltadas a aprofundar a

extroversão da produção agrária e de recursos minerais do país: a modernização

(conservadora) da produção agrária e da extração mineral que reproduz, em escala

industrial e segundo as técnicas mais modernas do capitalismo, a inserção

dependente do Brasil.

A avaliação dessas iniciativas está longe de ser fácil: o desenvolvimento tecnológico

e científico, ainda quando resultem em um primeiro momento no reforço da inserção

subordinada da nação na economia capitalista mundial, nem por isso deixam de

incorporar um potencial de desdobramentos futuros que podem contribuir

efetivamente para a independência tecnológica: consequência imprevista, mas em

algum grau desejável. Tudo dependerá do modo como a nação irá mobilizar os

elementos gerados por essa modernização conservadora, se de modo a

potencializar seus vetores que nos levam em direção à independência tecnológica

ou a reforçar o estado das coisas.

2.1. A Política Externa Independente de Jânio/Jango (1961-1964)

O problema do desenvolvimento tecnológico começa a se fazer presente na

dimensão discursiva da Política Externa Brasileira (PEB) durante a chamada Política

Externa Independente (PEI), de Jânio/Jango, mas não chega a alçar voos mais

ambiciosos como os que se veriam nos anos 1970 e na primeira década dos anos

2000. A preocupação com a tecnologia aparece na PEI como fator subordinado ao

tema mais geral do desenvolvimento econômico, em que as questões comerciais, o

papel das multinacionais nas economias internas dos países subdesenvolvidos e os

entraves colocados ao desenvolvimento pelos países ricos tinham maior

proeminência. No tocante às relações entre política externa e desenvolvimento

econômico e tecnológico, também se aplica a avaliação de Vizentini sobre a PEI:

7

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

“seu fracasso deve ser relativizado (...) [a PEI] revelou-se muito mais precoce do que

equivocada, pois muitos de seus postulados foram retomados pela própria

diplomacia dos militares ao final da primeira metade dos anos 1970 com o chamado

‘pragmatismo responsável’” (Vizentini, 2008: 31).

Os anos de 1961-1964, portanto, são, pelo menos no que diz respeito à política

externa e à política de desenvolvimento econômico e tecnológico, um período de

maturação dos esforços por autonomia que vinham sendo desenvolvidos desde o

princípio da década de 1950 no segundo governo Vargas, esforços aos quais o

governo Kubitschek viria a dar impulso adicional. As continuidades e traços em

comum da PEB ao longo do período, conforme apontou Vizentini (2008: 14), e como

se pode depreender do processo de construção institucional e das políticas públicas

de desenvolvimento tecnológico apresentados acima, preponderaram. O projeto de

soberania na política externa e na política tecnológica foi colocado em compasso de

espera entre 1964, mas seria retomado com força pelos governos militares a partir

de 1967.

2.2. A Diplomacia da Prosperidade de Costa e Silva (1967-1969)

A diplomacia da prosperidade (1967-1969), portanto, no governo Costa e Silva,

representou, segundo Vizentini, “uma ruptura profunda com o governo anterior (...)

como política externa voltada para a autonomia e o desenvolvimento, assemelhava-

se muito à PEI” (2008: 45). A importância atribuída ao desenvolvimento tecnológico

na dimensão discursiva foi acompanhada por um importante conjunto de ações

diplomáticas voltadas a dar materialidade à política externa autonomista. A

diplomacia da prosperidade configurou o que seria o projeto de desenvolvimento

tecnológico mais ambicioso e sensível nos governos seguintes: o avanço do

programa nuclear brasileiro e sua dualização para a energia nuclear de uso civil,

sempre sob a liderança da Marinha do Brasil. Foram celebrados cinco acordos de

cooperação na área nuclear, com Israel e Argentina em 1967, com Espanha e Índia

em 1969 e o mais relevante de todos, a assinatura com a República Federal da

Alemanha do Acordo de Cooperação em ciência e tecnologia em 1969, que abriria

8

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

caminho para a cooperação na área nuclear. Ainda no campo da diplomacia nuclear,

a recusa do Brasil em assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear em 1968 – por

“injusto e discriminatório” - dá a exata medida das pretensões de autonomia e da

ambição de autonomia tecnológica que começavam a se desenhar naqueles anos e

que seria aprofundado na década seguinte pelos governos Médici e Geisel – note-se

que, um ano antes, o Brasil foi signatário do Tratado de Tlatelolco para a Proscrição

de Armas Nucleares na América Latina e Caribe.

No plano doméstico, a política tecnológica é igualmente ambiciosa e efetiva. Quinze

dias antes de Costa e Silva assumir o poder, foi aprovado o decreto-lei de criação da

Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA). Nesse ano o CNPq

elaboraria o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e

daria início ao Plano Quinquenal 1968-1972. O Plano Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico havia sido proposto no Plano Estratégico de

Desenvolvimento 1968-1970 e representou a primeira política sistemática para a

área de CTI no Brasil. O Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico tinha como prioridades a formação de recursos humanos em nível de

graduação e pós-graduação e a ampliação da infraestrutura de pesquisa do país.

Além disso, elegeu as áreas prioritárias para investimentos em CTI no Brasil:

“agricultura, astronomia, biologia, ciências sociais, física, geologia, matemática,

química e tecnologia, além de um item específico para o estudo da região

amazônica” (Centro de Memória CNPq). O ano de 1967 viu ainda a criação da

Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), a aprovação das Diretrizes da Política

Nacional de Energia Nuclear, o contrato inicial estabelecido pela Comissão Nacional

de Energia Nuclear (CNEN) para a construção de uma usina nuclear em Angra dos

Reis e iniciativas na área aeroespacial com o desenvolvimento e prototipagem do

foguete Sonda II (Centro de Memória CNPq).

Em 1968, o governo, por meio do CNPq, colocaria em prática uma política de

retenção de pesquisadores no país para tentar reverter a fuga de cérebros em razão

do fechamento político crescente promovido pela ditadura. Também foram criadas

9

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

três universidades federais: do Piauí (UFP), de São Carlos (UFSCAR) e de Sergipe

(UFS), estado em que, neste mesmo ano, teve início a produção pioneira de

petróleo marítimo no Brasil. Na área aeroespacial, tiveram início projetos de

desenvolvimento de propelentes sólidos para foguetes, satélites e realizou-se o

primeiro voo oficial do Bandeirante, primeiro avião comercial da Embraer, que seria

fundada no ano seguinte (Centro de Memória CNPq).

Entre as principais iniciativas do ano de 1969, seguramente a mais importante,

ambiciosa e plena de consequências, inclusive porque ainda hoje um grande

sucesso, foi a criação da Embraer. Outra iniciativa importante e ainda hoje existente

foi a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(FNDCT) “com a finalidade de dar apoio financeiro aos programas e projetos

prioritários de desenvolvimento científico e tecnológico, notadamente para

implantação do Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico! (Decreto-

lei 719, 31 de julho de 1969). Além disso, deve-se chamar a atenção para a grande

quantidade de universidades estaduais e federais criadas no período e que se

prolongariam nos anos do governo Médici.

A licitação internacional para construção de usinas nucleares no ano de 1971 seria

vencida pela empresa estadunidense Westinghouse, indicando a possibilidade muito

concreta de aprofundamento da cooperação nuclear do Brasil com os EUA e a

marginalização e mesmo exclusão dos demais países em busca de cooperação na

área nuclear com o Brasil. As dificuldades referentes à transferência de tecnologia

nuclear para o Brasil nos acordos com os EUA, bem como nova estratégia

internacional do Brasil, calcada em uma política externa cujo objetivo declarado era

diversificar o espectro de relações internacionais do Brasil em um contexto de crise

energética e econômica global, manteve a Alemanha no jogo. Em 1975, Brasil e RFA

assinariam o Acordo de Cooperação Nuclear Brasil-Alemanha, que seria seguido em

1976 pelo Acordo Comercial Brasil-Alemanha para a realização de empréstimos e

contratos para a construção das usinas de Angra I e Angra II, significando a

anulação da licitação que havia sido ganha pela Westinghouse em 1972. As

10

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

pressões estadunidenses, muito naturalmente, foram enormes no sentido de

inviabilizar o acordo nuclear Brasil-Alemanha, com investidas contra Brasil e

Alemanha. Aparentemente, a transferência da tecnologia crítica de enriquecimento

de urânio da Alemanha para o Brasil teria sido impedida pelos EUA, obrigando o

Brasil a acelerar seus vários projetos de desenvolvimento de desenvolvimento de

tecnologias de enriquecimento de urânio (no começo da década de 1980 o projeto

da Marinha do Brasil se consolidaria como trajetória tecnológica mais promissora,

levando finalmente ao domínio da tecnologia em meados da década de 1980).

Durante o governo de Costa e Silva, a distância entre intenção – conforme se

vislumbra na diplomacia da prosperidade, marcada por um projeto de autonomia e

desenvolvimento nacional – e gesto – as ações de política externa e doméstica

voltadas para a consecução dos objetivos de desenvolvimento nacional com forte

ênfase na dimensão tecnológica – foi sensivelmente reduzida em comparação com o

período da PEI. No que diz respeito às conexões entre política externa e política

tecnológica, viu-se no governo Costa e Silva uma grande convergência entre uma e

outra, bem como entre a dimensão discursiva e a ação concreta. O período também

foi rico em iniciativas que, a rigor, ficam a meio caminho do discurso e da ação, mas

nem por isso foram menos importantes, como o estabelecimento das bases legais e

orçamentárias que sustentariam as iniciativas dos governos Médici e Geisel na

década seguinte, tanto em relação à política externa como em relação à política

tecnológica.

2.3. A Diplomacia do Interesse Nacional de Emílio G. Médici (1969-1974)

Após o recuo do projeto de desenvolvimento e autonomia tecnológica nacional

representado pela política externa de Castelo Branco, as políticas externas e

tecnológicas dos governos Costa e Silva, Médici e Geisel retomaram o projeto que

se manifesta na PEI e passaram efetivamente do discurso à ação. De fato, no que

diz respeito às conexões entre política tecnológica e política externa, no interior de

um projeto mais geral de desenvolvimento e autonomia tecnológica nacional, os

governos Costa e Silva, Médici e Geisel representaram o ponto culminante na

11

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

história brasileira, com a criação de instituições e iniciativas em funcionamento até

os dias de hoje. Algumas dessas iniciativas, depois de sua interrupção no final da

década de 1980 e interdição nas duas décadas seguintes, foram retomadas nos

governos Lula e Dilma, em especial o programa nuclear brasileiro, mas sofreram

outra descontinuidade com o golpe de 2016.

Não se deve pensar que a diplomacia da prosperidade de Costa e Silva (1967-

1969), a diplomacia do interesse nacional de Emílio G. Médici (1969-1974) e o

pragmatismo responsável e ecumênico de Ernesto Geisel (1974-1979) foram

rigorosamente iguais no alcance de suas ações pela busca pela autonomia

tecnológica no marco de um projeto de desenvolvimento nacional. As três políticas

complementarem-se sequencialmente, com a primeira lançando as bases - em

especial no que diz respeito ao estabelecimento de acordos bilaterais para

transferência e desenvolvimento tecnológico - do que viria a ser efetivamente

implementado pela segunda e pela terceira. Com efeito, o problema da dependência

tecnológica assumiria importância crescente, e mesmo centralidade, ao longo do

período que vai de 1967 a 1979, culminando no governo de Geisel (1974-1979) e

sofrendo significativa reversão nos anos 1980 e 1990. O alinhamento e

convergência entre os dois campos de políticas só seria retomado novamente nos

governos Lula um quarto de século depois.

Em sua diplomacia do interesse nacional, o governo Médici aprofundaria os traços

desenvolvimentistas e autonomistas presentes na diplomacia da prosperidade de

Costa e Silva, ainda que abandonando os elementos terceiro-mundistas presentes

na PEB anterior (Vizentini, 2008: 47). As continuidades, contudo, prevaleceram

sobre as mudanças, e a diplomacia do interesse nacional, de par com um

alinhamento formal aos EUA, deu seguimento a uma série de aspectos altamente

autonomistas e desenvolvimentistas que vinham se configurando desde o governo

de Costa e Silva. Vizentini chama a atenção, entre outros aspectos, para a

manutenção da recusa a assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear posição que

começava a se tornar um dos pontos doutrinários da política externa brasileira, só

12

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

sendo revertido na década de 1990. O autor também destaca a grande ênfase no

desenvolvimento tecnológico, que passava pela atração de investimentos e

tecnologias externas e construção de uma indústria armamentista no país (Vizentini,

2008: 47-48). Para tanto, a diplomacia do interesse nacional lançaria mão de

estratégias de barganha pragmática ao se aproximar de potências capitalistas

médias (em especial as duas grandes derrotadas na II Guerra Mundial, a Alemanha

Ocidental e o Japão), além da distensão com a América Latina e a aproximação com

países árabes no contexto do primeiro choque do petróleo em 1973, bem como a

retomada das relações com países do campo socialista (Vizentini, 2008: 48-49).

Entre as mais importantes iniciativas da política externa do governo Médici

relacionadas à autonomia e ao desenvolvimento tecnológico estão aquelas voltadas

à questão energética: o estabelecimento de acordo de cooperação técnica e

científica com o Japão, inclusive na área nuclear (Vizentini, 2008: 57), e a criação da

Braspetro (Petrobrás Internacional S. A.), braço internacional da Petrobrás voltado à

exploração de petróleo e gás no exterior.

Durante esse período, o Brasil assinaria, ainda, o acordo com os Estados Unidos

para construção de uma usina nuclear em Angra dos Reis pela empresa

estadunidense Westinghouse. Assinado em 1972, o acordo seria rompido e

substituído em 1975, no governo de Geisel, pelo Acordo de Cooperação Nuclear

Brasil-Alemanha para a construção de duas usinas nucleares em Angra. O

rompimento do acordo com os EUA em prol do acordo com a RFA iria gerar

crescentes fricções entre Brasil e EUA na segunda metade da década de 1970, que

viriam a pressionar o Brasil para romper o acordo com a Alemanha (Vizentini, 2008:

59).

No que se refere à política de desenvolvimento tecnológico e científico no âmbito

doméstico, entre as principais iniciativas do governo Médici estão a criação do

Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) em 1970 e, no ano seguinte, a

criação Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Igualmente importante

seria a aprovação pelo Congresso da Lei 5.470 que autoriza a Comissão Nacional

13

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

de Energia Nuclear a criar a Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear (CBTN),

responsável pela construção e operação das usinas nucleares brasileiras.

O ano de 1972 seria marcado pelo lançamento do I Plano Nacional de

Desenvolvimento, que daria grande ênfase à implantação de infraestrutura e

investimentos em desenvolvimento tecnológico, industrial e científico para sustentar

o crescimento da economia brasileira nos anos seguintes. O ano de 1972 viu

também a criação do chamado Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia e a

assinatura de um acordo para troca de urânio in natura do Brasil por urânio

enriquecido pelos EUA, sem previsão de qualquer espécie de transferência de

tecnologia.

Em 1973, seria lançado o I Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico e teria início o desenvolvimento de álcool combustível na UNICAMP,

bem como o prosseguimento de pesquisas para o desenvolvimento de tecnologia de

enriquecimento de urânio. Mas, provavelmente, o evento mais importante naquele

ano de 1973,no que diz respeito ao desenvolvimento tecnológico e econômico

nacional, bem como ao padrão de inserção da economia brasileira na economia

mundial pelas próximas décadas, tenha sido a criação da Embrapa, instituição

central do agronegócio brasileiro dado seu papel no desenvolvimento e transferência

de tecnologia para o setor – caso que também se enquadra naquela categoria de

iniciativas de desenvolvimento tecnológico que reforçam o padrão histórico de

inserção subordinada do Brasil na economia global.

2.4. Pragmatismo Responsável e Ecumênico (1974-1979)

O governo de Ernesto Geisel (1974-1979) é o ponto máximo das tentativas de

desenvolvimento econômico e tecnológico autônomos, ao qual se segue abrupta

interrupção e declínio acelerado. No plano doméstico, o milagre econômico

começava a perder força e, no plano internacional, a crise do petróleo de 1973

mergulhava a economia global em uma crise da qual os países centrais só

começariam a sair nos primeiros anos da década seguinte, às custas de uma piora

14

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

da crise nos países periféricos e ao encerramento definitivo do ciclo

desenvolvimentista (Tavares, 1985). Segundo Vizentini, apesar da situação nacional

e do contexto internacional, o governo Geisel, “longe de adotar uma estratégia

defensiva, preparou um aprofundamento do processo de industrialização por

substituição de importações, com vistas a tornar o país autossuficiente em insumos

básicos e, se possível, em energia” (Vizentini, 2008: 50).

O II PND, lançado em 1974, daria corpo a essa estratégia. A busca pela autonomia

econômica e tecnológica ganharia intenso impulso em uma série de iniciativas, como

a construção de hidrelétricas, o desenvolvimento de novos polos petroquímicos, o

Proálcool e o início da construção de usinas nucleares (além de dobrar as apostas

no desenvolvimento de tecnologias de enriquecimento de urânio, naquele momento

ainda não dominadas pelo Brasil).

A política externa do pragmatismo responsável e ecumênico do governo Geisel daria

prosseguimento à estratégia de redução da dependência tecnológica do país em

relação aos EUA ao aproximar-se de outras potências capitalistas, além do diálogo

diplomático com países do campo socialista, com destaque para a China, e com

países árabes produtores de petróleo. Além disso, o governo retomou certas

inclinações terceiro mundistas, patentes nas novas relações diplomáticas com

nações africanas recém-independentes e na distensão com países da América

Latina.

No que concerne às relações entre política externa e política tecnológica do período

militar, o aspecto mais importante foi o já mencionado afastamento do Brasil dos

EUA na área nuclear e sua aproximação com a Alemanha. O movimento duplo de

afastamento em relação aos EUA e aproximação da Alemanha vinha sendo

executado desde o governo Costa e Silva e seria aprofundado nos governos Médici

e Geisel.

O exame das políticas externas dos governos militares e sua relação com o

desenvolvimento tecnológico apresenta grande continuidade ao longo dos governos

15

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

Costa e Silva, Médici e Geisel. Em relação à PEI, que incorporou fortemente a

preocupação com o desenvolvimento econômico e tecnológico nacional em sua

dimensão discursiva, mas que não teve capacidade de implementar políticas

externas com ações efetivas voltadas para o desenvolvimento tecnológico – situação

agravada pela pouca atenção que, no plano interno, a política tecnológica e

científica receberia naquele período – as políticas externas e domésticas voltadas ao

desenvolvimento tecnológico dos governos Costa e Silva, Médici e Geisel

transformaram mais claramente o discurso em ações. Se, por um lado, é evidente

que entre a PEI e as políticas externas dos governos militares, no que diz respeito à

sua preocupação com o papel da tecnologia na soberania nacional, a passagem do

discurso à ação representa diferença qualitativa importante, contudo, não se pode

deixar de apontar alguma continuidade, ainda que tênue, com respeito ao

amadurecimento da reflexão sobre a autonomia tecnológica entre os dois conjuntos

de políticas externas.

No plano da política de desenvolvimento tecnológico, as principais iniciativas do

governo Geisel serão, além do II PND, a consolidação do Sistema Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico no ano de 1974; o II Plano Básico de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico, a criação do Programa Nacional do Álcool

(PROALCOOL), a transformação da Empresa Digital Brasileira (DIGIBRÁS) na

Cobra S.A., em 1974; o ano de 1975 veria a assinatura do já citado Acordo de

Cooperação no Campo dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear entre Brasil e

Alemanha e do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que especifica as áreas e

tecnologias que seriam objeto de cooperação e transferência, que envolveriam a

mineração e beneficiamento de urânio, produção de reatores nucleares,

enriquecimento de urânio e sua transformação em combustível nuclear (como todo

processo de transferência tecnológica, este também ficaria muito aquém das

promessas tratadas nos acordos); em 1976, foi instituído o PRONUCLEAR, política

de formação de recursos humanos na área nuclear.

3. Conclusão: independência tecnológica e nação

16

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

A independência tecnológica é uma das etapas fundamentais da independência

política e econômica de uma nação. Não há que ignorar esse aspecto da construção

da soberania nacional sob o risco de mistificar os meios de transformar e emancipar

o povo brasileiro na atual quadra do capitalismo histórico. O romantismo

conservador de propostas de desconexão do país do sistema capitalismo mundial

deve ser prontamente denunciado, por apontar como saída a invenção no futuro de

um passado que nunca existiu, o que serve apenas aos interesses de manutenção

da posição de subordinação da nação aos países do capitalismo central e da

dominação de uma classe/raça sobre outra. A conexão não-subordinada, por sua

vez, pode, quando muito, atualizar as ilusões de inserção mundial da nação em um

sistema internacional não-competitivo e convergente para o bem comum – coisa que

não existe, nunca existiu e é pouco provável que venha algum dia a existir. Devemos

também excluir a possibilidade teórica de uma conexão subordinante do Brasil como

potência hegemônica a ditar os destinos do sistema internacional e do capitalismo

mundial por pelo menos dois motivos: sua baixíssima probabilidade de ocorrência e

sua não-desejabilidade ético-histórica, pois isso nos colocaria na lamentável

condição de exploradores de outros povos e nações, posição que corrompe

irreversivelmente o espírito de uma nação do mesmo modo que a barbárie da

escravidão corrompeu e corrompe até hoje as sociedades que se fundaram sobre

ela.

As três possibilidades acima: desconexão, conexão subordinada e conexão

subordinante – atribuem importância muito diversa ao papel da dependência

tecnológica na produção e reprodução da dependência política e econômica da

nação. No caso da desconexão, a “independência” passaria por ignorar ou mesmo

reverter o protagonismo da dimensão tecnológica e científica na melhoria do bem-

estar das pessoas e nações ao longo de toda a história humana. Quanto à conexão

subordinada, trata-se não de uma possibilidade ou elucubração a respeito de um

futuro incerto, mas da realidade histórica mesma de nossa inserção no sistema

capitalista mundial nos últimos séculos. Já discuti a centralidade da dependência

tecnológica na manutenção desse estado de coisas e os meios pelos quais os

17

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

países do capitalismo central criam monopólios do conhecimento produtivamente

aplicável como forma de perenizar a divisão internacional do trabalho que diferencia,

de um lado, produtores e beneficiários e, de outro, consumidores e explorados por

aquele monopólio.

A tarefa histórica de construção da independência tecnológica como caminho para a

independência política e econômica passa, portanto, pela quebra do monopólio do

conhecimento produtivamente aplicável detido pelos países do capitalismo central.

Essa quebra, no entanto, não será aceita passivamente pelos detentores do

monopólio; na verdade, jamais foi aceita pelos detentores do monopólio: destruir a

Petrobrás, interromper o programa nuclear brasileiro e o arranjo industrial que lhe dá

sustentação, explodir foguete em sua plataforma de lançamento e promover golpes

de Estado é o caminho mais fácil de atingir o objetivo central de manter o monopólio

em sua atual estrutura societária fundada na divisão internacional do trabalho. O

Brasil deverá, portanto, redobrar seus esforços de desenvolvimento tecnológico

independente e preparar-se para se defender das agressões neocolonialistas; o

desenvolvimento de capacidades de defesa de agressões externas é em si um dos

eixos que deverá guiar o desenvolvimento tecnológico em direção à independência

do país.

Não bastará, no entanto, forçarmos nossa participação na estrutura monopolista que

detém o controle do conhecimento produtivamente aplicável por meio da conexão

subordinante - conexão na forma de sócio minoritário da estrutura monopolista

dominada pelos países do capitalismo central que subordina a periferia. Não

queremos a duvidosa honraria de ganhar um título familiar do clube das neo-

europas, mas sim contribuir para criar as condições de desestruturação geral do

sistema capitalista mundial e sua substituição por um sistema livre dos monopólios –

não apenas o monopólio do conhecimento produtivamente aplicável e da guerra,

mas também dos monopólios à vida decente e digna e ao bem-estar. Trata-se da

inserção soberana não-subordinante.

18

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

A inserção soberana não-subordinada precisa ela também ser construída

politicamente. Ela nascerá da decisão coletiva consciente por parte do povo da

nação de reverter a dependência e a subordinação que são o traço fundamental de

toda a nossa história nacional e pré-nacional. Formar o consenso que nos levará à

inserção não subordinada não será tarefa fácil, uma vez que não podemos contar

com as elites econômicas nacionais, cuja posição depende de modo inescapável da

subordinação da nação aos interesses das nações do capitalismo central.

Do ponto de vista das relações externas da nação, a história do século XX já

mostrou que não se pode construir a independência nacional isoladamente, muito

menos com base na imposição da dependência a outras nações. Construir a aliança

do sul global em torno do objetivo comum de reverter a dependência dessas nações

em relação ao norte global será fundamental se não quisermos reeditar os

momentos históricos em que os projetos de independência dos povos reverteram em

nacionalismo chauvinistas e reafirmação da situação de dependência e

subordinação da periferia ao capitalismo central. A luta anticolonialista, as

conferências de Bandung e a Tricontinental, o pan-africanismo, o terceiro mundismo

e o movimento dos não alinhados, bem como o ensaio incompleto e precocemente

interrompido da revolução latino-americana dos últimos quinze anos, fornecem, a

partir de uma perspectiva antihegemônica, valiosas lições sobre o caminho a seguir

– e, por que não, os caminhos a serem evitados.

Já é tempo de completarmos nossa independência. Dois séculos de ensaio são mais

do que suficientes.

Referências

CRUZ, E. L. V. “Antecedentes do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha”: in: Revista

UNILUS Ensino e Pesquisa, v. 12, n. 27, 2015.

GARCIA, E. V. Cronologia das relações internacionais do Brasil. Contraponto

Editora, Rio de Janeiro, 2005.

MDIC Cronologia do desenvolvimento científico, tecnológico e industrial brasileiro,

1938-2003. Brasília, MDIC, 2003.

19

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-∕ 20

PEREZ, C. “Technological revolutions and techno-economic paradigms”, in: Working

Papers in Technology Governance and Economic Dynamics no. 20, 2009.

PINHEIRO, L. Política externa brasileira. Zahar, Rio de Janeiro, 2004

VIZENTINI, P. F. Relações internacionais do Brasil: de Vargas a Lula. Editora

Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2008.

HARVEY, D. “The 'New' Imperialism: Accumulation by Dispossession”, Socialist

Register, vol. 40, 2009.

TAVARES, Maria da Conceição. A retomada da hegemonia norte-americana. Revista

de Economia Política. V.5, n.2, 1985.

20