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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 d’Almeida. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 3(gt17):1-15
“Baleia à vista!”: reflexões sobre o papel dos“vigias” da baleação, e nas práticas científicas eturísticas nos Açores.
GT 17 – Periferalidade e subalternidade na produção do conhecimento
Carolina Alves d’Almeida
VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 d’Almeida. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 3(gt17):1-15
O presente trabalho é parte da minha tese de doutorado, desenvolvida no Programa de Pós-
Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) da UFRJ, acerca dos
diálogos e atravessamentos de fronteiras entre conhecimentos locais e científicos no
desenvolvimento multidimensional da etologia. Antes da sua consolidação como disciplina
científica no século XX, a etologia1 foi definida e redefinida através de diferentes perspectivas,
constituindo uma trajetória peculiar como ciência interdisciplinar e multidimensional. O
conhecimento sobre o comportamento dos mamíferos marinhos, por exemplo, desenvolveu-se a
partir de redes de conexões entre diferentes tipos de informação e atores (pescadores, homens do
mar, marinheiros, exploradores, baleeiros, naturalistas, cientistas, os animais marinhos e o Mar
como agente), em diferentes contextos e épocas, que só estão vindo à tona recentemente, com a
construção de novas e e múltiplas narrativas históricas acerca da relação entre animais e humanos, e
entre natureza e sociedade, a partir de diferentes pontos de vista. No presente trabalho, tentaremos
enfatizar o papel e importância dos atores-locais nessas práticas científicas, partindo
especificamente do caso peculiar dos “vigias” de baleia no estudo do comportamento dos
mamíferos marinhos.
Com base nos estudos de ciência, tecnologia e sociedade (CTS) e nos estudos sociais e culturais
das ciências, que abrangem paradigmas emergentes e epistemologias pós-coloniais, pretendo
explicitar as controvérsias e particularidades históricas, ontológicas e epistemológicas no
desenvolvimento dos estudos do comportamento de mamíferos marinhos, uma vez que eles se
desenvolveram a partir de diálogos e dissoluções de fronteiras entre conhecimento local e
conhecimento científico. Além disso, as relações intersubjetivas entre marinheiros, pescadores,
naturalistas e biólogos atuais com animais marinhos desempenharam um papel importante na
reconfiguração de suas perspectivas e práticas sobre o universo marinho.
Os estudos sociais e culturais das ciências abriram novos espaços ontológicos e epistemológicos
que questionam a universalidade da epistemologia moderna, com base na ideia de que todo o
conhecimento é situado. Novas narrativas históricas científicas tem revelado as redes sociotécnicas
de produção de conhecimento obscurecidas pela modernidade e pelas grandes narrativas da História
monumental das ciências. Pretendemos discutir os atravessamentos de fronteiras epistemológicas e
1 Trata-se da ciência do comportamento animal que ocorre em contextos ecológicos realistas (Lorenz, [1981]1993). Para EugeneOdum (1988:397), “a Etologia, tornou-se uma ciência interdisciplinar importante que procura mais ou menos interligar aFisiologia, Ecologia e a Psicologia”. Konrad Lorenz e Nikolaas Tinbergen, influenciados por Oskar Heinroth, consideravam aEtologia clássica evolucionista como o estudo comparado do comportamento animal (Saraiva, 2003). A partir dessas ideias, aEtologia evolucionista foi constituída como disciplina científica, ramo da Biologia que reúne um conjunto de metodologiascientíficas para o estudo do comportamento animal comparado. Para Dominique Lestel (2001), a Etologia pode ser repensadacomo ciência social, visto que envolve, além do estudo da dimensão natural, o estudo das dimensões sociais, éticas, culturais,subjetivas e históricas do comportamento animal.
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institucionais na produção de conhecimento sobre a biodiversidade marinha nos Açores,
especialmente na Ilha de Faial e do Pico, onde existe uma ligação significativa entre a
tradição baleeira e as "novas indústrias da baleação": o (eco)turismo do Whale Watching, a
ciência e a cultura.
Como já dito, a etologia, em termos gerais, é o estudo biológico do comportamento animal
e, portanto, o estudo do animal vivo, das suas percepções e interações com o meio ambiente.
Por se tratar do estudo do comportamento, a etologia necessita de observações e descrições
das diferentes percepções e ações, pontos de vista e formas de vida dos animais, envolvendo
além da dimensão biológico-evolutiva, as dimensões ecológicas, subjetivas, sociais e culturais
dos mundos animais. Assim, para estudar o comportamento das espécies marinhas, é
necessário conhecimento específico sobre o ambiente marinho. Para os estudos anatômicos e
fisiológicos, o conhecimento profundo sobre o mar e as relações que constituem a paisagem e
o ecossistema marítimos, não é tão necessário quanto para os estudos etológicos, já que é
suficiente estudar os animais marinhos mortos e em terra. No caso das baleias e os outras
espécies de grandes mamíferos marinhos, é muito difícil observar seu comportamento, sua
localização geográfica e seguir suas rotas migratórias, sem um profundo conhecimento do
ambiente marinho, exigindo diálogo e colaboração com as populações locais que são
ontologicamente e culturalmente conectadas ao mar, ou a utilização de tecnologias
sofisticadas de monitoramento subaquático - actantes importantes nesta rede sociotécnica de
produção de conhecimento sobre animais marinhos. Atualmente, as práticas científicas de
etologia dos mamíferos marinhos constituem redes sociotécnicas complexas com a
participação de uma multiplicidade de atores e actantes. Os actantes e atores locais viabilizam
tais práticas, de modo que, sem eles fica muito difícil para o cientista ocidental acessar a
imensidão do ambiente marinho e se aproximar dos ‘radicalmente outros’ animais marinhos
que habitam esses diferentes e ainda desconhecidos mundos, até hoje tão distantes e insólitos.
Nas primeiras viagens de observação (naturalística) e estudo do comportamento dos
animais marinhos, era necessário que os naturalistas estivessem dispostos a adentrar em um
mundo desconhecido, nas "aventuras" marítimas, bem como que conhecessem sobre as
navegações. Segundo Odile Gannier (2009), antes do final do século XVIII, não havia
naturalistas, nem cientistas a bordo dos navios, havia apenas o que era necessário para a
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exploração. Alguns naturalistas viajavam, mas recebiam outras funções e cargos, além da
observação da fauna marinha. Naturalistas tinham que trabalhar junto com os homens do mar,
marujos, marinheiros e pescadores. Assim, o primeiro conhecimento naturalístico sobre
animais marinhos, tão difíceis de observar e acessar, surgiu através do diálogo e da
cooperação entre esses diferentes atores-tripulantes dos navios, e por conseguinte, entre seus
diferentes pontos-de-vista sobre o mar: exploradores comerciais, viajantes, marinheiros,
caçadores, capitães, naturalistas e, acima de tudo, marinhos animais. Neste trabalho, pretendo
destacar o papel dessas redes sociotécnicas na produção de conhecimento etológico sobre
mamíferos marinhos, ou melhor, a produção de ontoetologias2 sobre a multiplicidade de
atores não-humanos que habitam o universo marinho.
Alguns pesquisadores, como a bióloga e historiadora ambiental portuguesa Cristina Brito3
e sua equipe, tem investigado sobre a longa história de interações ecológicas e culturais entre
humanos e mamíferos marinhos, desde os tempos em que eram considerados monstros
híbridos ou seres fantásticos, até a lenta e controversa transição quando começaram a ser
considerados apenas espécies biológicas. Brito assinala as conexões históricas entre relatos
(anedóticos) de viajantes e exploradores desde a época das grandes navegações e descobertas
portuguesas – nas quais o principal objetivo era descoberta de novas rotas comerciais
marítimas, novas terras, matérias-primas, metais preciosos e produtos não encontrados na
Europa, e a exploração comercial da fauna marinha, especificamente a caça para a extração de
óleo entre outros recursos - com os primeiros conhecimentos naturalistas e científicos sobre a
fisiologia e o comportamento das espécies marinhas.
De acordo com Brito, alguns desses relatos, como os do naturalista italiano Aldrovandi
(1522-1605), no início da era moderna (c.1500 a c.1800), misturam informações sobre
espécies reais e biológicas com espécies fabulosas e monstruosas do imaginário marítimo: "as
espécies biológicas e as espécies fabulosas ou monstruosas (reais ou não) são consideradas
como possuindo uma existência real na natureza" (Brito, 2016: 29). Tais relatos foram escritos
2 Buchanan (2008) usa o termo ontoetologia para se referir ao novo tipo de pensamento etológico introduzidopor Jacob Von Uexkull, que reconhece os animais como sujeitos de seus “mundos-próprios” (Umwelt) dotadosde significados, enfatizando suas experiências subjetivas. Buchanan vê essa perspectiva como uma nova maneirade pensar a realidade.3 A Prof. Cristina Brito foi minha orientadora externa, durante minha pesquisa de Doutorado Sanduíche (PDSE),pela CAPES, no Centro de História d’Aquém e d’Além Mar, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanidadesda Universidade Nova de Lisboa, sobre a história da etologia dos mamíferos marinhos.
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num contexto pré-moderno de transição e "situação confusa" – que precederam o
mecanicismo e os cortes constitucionais da modernidade – no qual mito e a realidade, os
seres humanos e a natureza, bem como a ciência e o conhecimento local ainda estavam
conectados e misturados. Muitos relatos de viagem e diários de bordo de navegadores do
século XV ao século XIX apresentam descrições anedóticas interessantes sobre o
comportamento dos animais marinhos. No entanto, essas primeiras descrições ainda não
possuíam uma tendência naturalista ou científica, embora constituíssem uma linha histórica e
epistemológica tênue até os primeiros estudos científicos e naturalistas de animais marinhos.
Os baleeiros eram profundos conhecedores do comportamento, da localização e das vias
migratórias dos mamíferos marinhos. Antes das primeiras viagens naturalistas, marinheiros e
caçadores, incluindo pescadores artesanais e comunidades pesqueiras tradicionais, eram
detentores de conhecimentos sobre vida marinha. De acordo com Gannier (2009), esses
marinheiros eram um "terceiro tipo de pessoa", ao lado dos vivos e dos mortos, porque eram
os únicos naquele tempo a conhecer os "monstros do mar".
E ao lidar com a etologia dos mamíferos marinhos, podemos fazer reflexões sobre o status
particular dos “homens-do-mar” e sua importância para o desenvolvimento do conhecimento
sobre essas espécies tão difíceis de acessar. Como o conhecimento anedótido, tanto real como
imaginário, contribuiu para a constituição do conhecimento científico de mamíferos
marinhos? As relações de colaboração entre caçadores, naturalistas e cientistas, ainda
ocorrem? Como o etólogo atual, bem como os protetores da biodiversidade marinha, se
relacionam com as comunidades marítimas locais que acumulam conhecimento marítimo ao
longo de gerações? Qual é a percepção dos biólogos atuais sobre as conexões entre esses tipos
de conhecimento? Como essas conexões são expressas em suas práticas científicas atuais?
Desta forma, pretendo enfatizar a importância desses diálogos entre esses diferentes atores
(homens do mar, baleeiros, naturalistas, protetores e etólogos).
Quando e como os interesses comerciais e os pontos de vista mudaram para interesses
naturalistas e científicos em relação aos animais marinhos?
As primeiras descrições de comportamento e anatomia de seres marinhos por navegadores
portugueses foram estimuladas pela exploração de recursos naturais e novas rotas marítimas e
comerciais. Particularmente no final do século XVII, surgem os primeiros naturalistas
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modernos em busca de uma ciência empírica e classificatória influenciada pela Razão e pelas
ideias iluministas. Assim, outras perspectivas e pontos de vista emergiram a fim de descobrir
novos mundos naturais, observando a natureza marinha, mas ainda incorporando as tradições
do passado, os mitos e o imaginário marítimo pré-modernos. Embora o naturalismo tenha se
consolidado apenas no século XVIII como uma disciplina própria para o estudo do mundo
natural, descrições e observações do comportamento dos mamíferos marinhos já se
destacavam no curso das descobertas e grandes navegações.
É importante enfatizar que algumas "linhas de fuga" descontroem essa linha tênue do
conhecimento dos animais marinhos, uma vez que, entre os relatos de exploradores e
caçadores comerciais, havia descrições quase naturalísticas e românticas de comportamento,
ou mesmo entre as anotações naturalísticas, havia descrições que revelavam uma profunda
preocupação ecológica com o uso incorreto e destrutivo da natureza, o esgotamento dos
recursos naturais, o futuro das próximas gerações e a necessidade de uma economia da
natureza, como nos relatos de José Bonifácio de Andrada e Silva, no século XVIII. Essas
preocupações só se tornaram relevantes a partir do século XIX.
Através das novas perspectivas relacionais e não antropocêntricas, podemos desconstruir a
ideia do "Imenso Vazio" atribuída à imensidade dos oceanos, e repensar os mares como elos,
fronteiras, paisagens liminares que cruzam, traduzem e dissolvem limites físicos e
ontológicos, compartilhados por uma multiplicidade de sujeitos ou atores, humanos e não
humanos, em relações simétricas e afetos. A história e a paisagem marítima foram construídas
através de uma rede de conexões entre uma multiplicidade de agentes e pontos de vista
(pescadores, baleeiros, comunidades tradicionais, marinheiros, peixes, mamíferos marinhos,
monstros fantásticos, híbridos, naturalistas, cientistas, etólogos, entre outros). Os animais
humanos e não humanos, inclusive, têm um peso equivalente na construção e criação da
história (ou narrativa) oceânica.
Finalmente, pretendemos suscitar reflexões sobre a importância das trocas e
atravessamentos de fronteiras físicas, epistemológicas e ontológicas, entre marinheiros,
cientistas e animais marinhos, na produção do conhecimento científico, bem como na
construção de histórias ou narrativas não-antropocêntricas e não-eurocêntricas sobre os
oceanos, considerando os pontos de vista desses diferentes atores.
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Com base na ideia de que todo conhecimento é situado, seja científico ou localizado, e que
a ciência é também um sistema de conhecimento local, mesmo "universal" e "racional", é
importante ressaltar o papel importante dos pontos de vista e do conhecimento local dos
atores-do-mar, na produção de um conhecimento científico multimetodológico, polirracional e
ontoetológico sobre os mamíferos marinhos.
...
Mesmo consideradas objetivas, racionais, lógicas e universais, as ciências também são
localmente construídas e socialmente estabelecidas, isto é, constituídas por suas práticas e
culturas. Desta forma, o conhecimento tradicional, derivado de experiências, trocas e muitas
gerações de conhecimento acumulado sobre a natureza, são incorporados como
etnoconhecimentos produzidos por diferentes atores que integram redes sociotécnicas
construídas pela ciência. De acordo com esta perspectiva, os sistemas de conhecimentos
científicos locais podem dialogar com outros sistemas de conhecimento local, desmantelando
a oposição epistemológica entre "conhecimento real, objetivo, verdadeiro, racional e
universal" e "mera crença local", conhecimento tradicional ou local, para-científico narrativas,
perspectivas subjetivas ou anedotas sobre a natureza.
A objetividade científica, nesse sentido, pode ser repensada como conhecimento localizado
ou como racionalidade situada. Nesse sentido, a ciência envolve "conhecimento parcial,
localizável e crítico, apoiado pela possibilidade de redes de conexão" (Haraway, 1995: 23), no
qual a visão "imaginária e racional - visionária e objetiva - circulam bem juntas".
Cada sistema de conhecimento local - tradicional ou científico - pode ser equiparado
horizontalmente em importância, como visões parciais relacionadas e conectadas em rede
para a produção de conhecimento científico múltiplo e multidimensional, incorporando
múltiplas racionalidades e múltiplos métodos.
O conhecimento das populações tradicionais, dos povos indígenas e das comunidades
locais colabora com conhecimento científico em diferentes áreas das ciências, fornecendo
novos pontos de vista bioculturais, bem como novas alternativas ecológicas e políticas e
soluções sustentáveis. Para a etologia, os saberes locais dos atores-tradicionais desempenham
papel significativo no desenvolvimento e viabilidade das suas práticas científicas. Um
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exemplo é o conhecimento etnozoológico de agricultores, tratadores, guardas-florestais que
vivem com espécies estudadas e, em vista dessa relação íntima de convivência, têm um vasto
conhecimento sobre seus comportamentos. O conhecimento e a informação teórico-prática
das comunidades locais de pescadores artesanais sobre o comportamento dos peixes, hábitos
alimentares, reprodução e ecologia são uma rica fonte de informação sobre gestão,
conservação e uso sustentável dos recursos naturais.
No estudo do comportamento de diversos animais, a contribuição dos atores locais é
indispensável. Ajudantes mateiros, com seus ricos conhecimentos tradicionais e folclóricos,
adquiridos pelas vivências, experiências intersubjetivas e tradições orais, sobre localização,
comportamento, bioacústica e comunicação de diversas espécies de animais selvagens,
viabilizam pesquisas com espécies de lugares de difícil acesso ou espécies ameaçadas de
extinção, difíceis de encontrar, tornando-se peças-chave nessa rede heterogênea de produção
de conhecimento. Um exemplo, que será desenvolvido nos próximos parágrafos, é o papel
crucial dos baleeiros para o desenvolvimento dos estudos científicos sobre comportamento de
mamíferos marinhos, pois forneceram informações sobre o comportamento das baleias,
localização e rotas de migração, que eram muito difíceis de observar e monitorar sem o uso de
tecnologias avançadas. O diálogo entre esses atores: homens-do-mar, baleeiros, etólogos e
protetores, permitiu que alguns caçadores abandonassem a caça e se tornassem ajudantes,
técnicos, pesquisadores e protetores de baleias e também outras espécies. (Infelizmente) as
atividades predatórias e cruéis de caça contribuíram para informações importantes sobre o
comportamento e localização dos cetáceos, mas, por outro lado, cientistas conservacionistas
contribuíram para a sensibilização e o despertar ético da consciência animal e ecológica
nesses caçadores. Os vigias da tradição baleeira constituem um exemplo desse tipo de
conexão, mas de uma forma mais peculiar, tendo em vista que seus saberes que antes eram
utilizados para a caça, atualmente, através do diálogo com cientistas e empresários, são
utilizado para fins ecológicos.
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Durante a minha estadia em Portugal, viajei para a Ilha de Faial, no Arquipélago dos
Açores, para obter informações sobre a relação entre a cultura baleeira e as "novas indústrias
baleeiras", a saber: o (eco)turismo de observação de baleias (Whale Watching), a ciência e a
cultura (tradição baleeira), para tornar explícitos os cruzamentos de fronteiras epistemológicas
e institucionais na produção de conhecimento sobre a biodiversidade marinha. Essas novas
indústrias baleeiras recriaram e reinventaram as relações intersubjetivas com cetáceos.
A cultura açoriana é muito ligada ao mar, e como grande parte das culturas insulares,
embora os povos sejam ontologicamente conectados ao mar, a principal atividade era
contraditoriamente sempre a agricultura. A caça às baleias (ou baleação) nos Açores existe
desde o século XIX, mas foi regulamentada apenas no início do século XX, com a publicação
do primeiro decreto que regula a caça à baleia. A caça foi finalmente banida em 1984, quando
já não era uma atividade rentável, deixando muitos baleeiros sem emprego e atividade. A caça
só terminou de fato em 1987, quando houve uma reivindicação da população açoriana contra
a proibição, que resultou na caça e abate de mais 3 baleias cachalotes. Nos anos seguintes, as
novas indústrias baleeiras começaram a emergir, explorando o sentimento de preservação da
tradição pela população e o conciliando com as novas necessidades econômicas, ecológicas e
éticas. Dentro dessas indústrias, destaca-se o turismo de observação de baleias (Whale
Watching), que resgataram o conhecimento e as práticas dos antigos vigias, a partir de novas
perspectivas e relações com o mar e os mamíferos marinhos. Aos poucos o Whale Watching,
através do diálogo com cientistas preservacionistas, com educadores ambientais, com o
governo açoriano e com a população local, assumiu um caráter ecoturístico, com fins
ecológicos, além de comerciais.
A resistência e a perseverança da população açoriana na preservação e manutenção da
cultura baleeira resultaram na preservação e recuperação de edifícios, bens materiais e
diversas coleções documentais nos Açores. A maioria das fábricas de processamento de
cetáceos, por exemplo, foram convertidas em museus (como a conhecida Fábrica de Baleias
em Porto Pim em Horta, Faial). Em Lages do Pico, Ilha do Pico, existe um museu dedicado
exclusivamente à temática da caça às baleias, o "Museu dos Baleeiros". Um dos grandes
exemplos de reconversão da herança cultural nos Açores é a "reconstrução" dos botes
baleeiros açorianos, ou melhor, a construção de réplicas dos botes antigos para serem
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(re)funcionalizadas e (re)utilizadas como regatas e remos. Esses botes artesanais são um dos
maiores símbolos da cultura açoriana e uma forma de conciliar a tradição baleeira, com a
preservação da biodiversidade marinha e o respeito à comunidade ecológica.
Em 1989, após a proibição da caça à baleia, o navegador francês Serge Viallelle e sua
parceira Alexandra Teles construíram a companhia Espaço Talassa, que inicialmente alugava
seu iate para viagens pelas ilhas do arquipélago. Através do diálogo com o velho baleeiro
John Vigia, Viallelle decidiu observar os cachalotes no seu habitat natural. Assim, em 1991, o
Espaço de Talassa tornou-se pioneiro na observação de cetáceos em Lages do Pico, iniciando
assim o turismo de observação de baleias (Whale Watching). Posteriormente, surgiram mais
empresas de Whale Watching, primeiro na ilha de Faial e depois nas outras ilhas do
arquipélago. Existe uma dissolução de fronteiras com o diálogo e troca de conhecimento entre
o observador e o empreendedor da observação de baleias.
Muitas das empresas de observação de baleias, como a Talassa, tentam estabelecer
conexões entre o ecoturismo, a pesquisa científica e a tradição baleeira. Neste contexto, é
possível visualizar redes de conexões entre o conhecimento situado de pesquisadores,
empresários e “vigias” (membros da população açoriana). A tradição da caça à baleia, neste
sentido, torna-se uma fonte de etno-conhecimento (conhecimento situado) sobre
comportamento, localização e vias migratórias de cetáceos. Os vigias foram (e ainda são)
excelentes observadores, pois passam a maior parte do tempo sentados observando os
cetáceos, e desempenham um papel muito importante como elos da cultura baleeira com as
outras culturas.
Conversei com alguns membros dessas novas indústrias baleeiras dos Açores e obtive
informações interessantes sobre as conexões, acordos e colaborações estabelecidos entre eles.
No presente trabalho, quero enfatizar apenas o papel único do conhecimento local dos
"vigias" na viabilização do ecoturismo e das práticas científicas marinhas nos Açores. O papel
do vigia ainda existe e foi recuperado nessas diferentes novas indústrias baleeiras, agora com
um caráter múltiplo, no sentido de seus conhecimentos (que antes eram utilizados para caçar
baleias), assumirem novos sentidos e direções.
Desde o início da indústria baleeira regional nos Açores, “as vigias” (postos ou construções
onde trabalhavam os vigias) foram instaladas em lugares estratégicos altos, para a detecção de
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cetáceos no mar e nas localidades costeiras, com fácil acesso ao mar (onde os botes baleeiros
e suas palamentas ficavam para a extração do óleo de cachalote). Os vigias que possibilitavam
e viabilizavam a atividade da caça às baleias, de modo que sem eles não era possível localizar
os cachalotes para caça e extração de óleo.
Os vigias indicavam precisamente para os baleeiros, do ponto de vista da terra, a rota que
eles deveriam seguir para encontrar os cetáceos. Os sinais eram realizados com lençóis,
bandeiras ou fogueiras (Cymbron & Dutra, 2017).
Depois de mandar arriar, o vigia pendurava os lençóis nas rochas. Quando as lanchasrebocavam os botes baleeiros, paravam em frente à vigia, rodando então aembarcação, lentamente, para colocarem a proa na direção certa, de acordo com asindicações precisas do vigia. Quando acertavam na direção, o vigia recolhiaimediatamente o lençol. Outras vezes, eram usados dois lençóis, de forma a dar aindicação do azimute, cujo alinhamento as lanchas deviam então manter, de formaatingirem a proximidade dos cetáceos. Ao atingirem a proximidade ideal, o vigiaretirava imediatamente os lençóis e as lanchas largavam o reboque dos botesbaleeiros, que logo indicavam a caça. (Cymbron & Dutra, 2017:65)
Os vigias também davam as indicações através de bandeiras para os baleeiros, sobre o que
estava acontecendo no mar. A bandeira era hasteada indicando que havia "baleia à vista", e
quando o primeiro cachalote era abatido, a bandeira era colocada a meia haste, anunciando
que era necessário iniciar a preparação das caldeiras para extração de óleo (Cymbron & Dutra,
2017).
Outro sinal que era usado para alertar sobre as baleias que se aproximavam era o estouro
de um foguete com um explosivo forte, para ser ouvido por toda a tripulação, que estava
dispersa pela freguesia, realizando várias tarefas, como a agricultura. Quando escutavam o
foguete, os baleeiros corriam para o porto para participar da caçada. As bandeiras e os
foguetes foram utilizados durante o século XX até o final da baleação. Com a instalação de
radiotelefones, em 1947, os outros sinais foram abandonados (Cymbron & Dutra, 2017).
Atualmente existem projetos de recuperação das velhas vigias utilizadas no auge da caça
açoriana, e atualmente são utilizadas pelo turismo de observação de cetáceos e, em alguns
casos, em práticas científicas. Um empresário de observação de baleias muito conhecido em
Faial, Norberto, construiu uma nova vigia baseada nas velhas vigias da época da caça à baleia,
para utilização pelo Whale Watching.
No contexto da "nova baleação", alguns vigias continuaram com suas atividades, porém,
agora para fins turísticos ou científicos. Além disso, as velhas vigias ainda são utilizadas
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como pontos estratégicos e eficazes para a observação de baleias nos Açores, tendo em vista
que estão mais próximas da costa. Esta questão é interessante porque a maioria das pesquisas
atuais com animais marinhos utilizam recursos e tecnologias sofisticados e caros de
monitoramento subaquático para localizar os mamíferos marinhos. Nos Açores ainda é
possível realizar esta pesquisa com a colaboração dos vigias, nas vigias, considerando ainda
suas contribuições culturais.
Após a proibição da caça às baleias, os baleeiros, seus filhos e parentes foram contratados
pelas empresas de Whale Watching para trabalhar como vigias, bem como foram procurados
por pesquisadores acadêmicos para fornecer informações sobre o comportamento e a
localização dos cetáceos, já que eram excelentes observadores e conhecedores da vida desses
animais.
É importante ressaltar que tais redes de conexão entre o conhecimento local e científico já
aconteciam, como já dito, desde os primeiros naturalistas, que, em vista do difícil acesso e
operabilidade dos grandes animais marinhos, tiveram que participar de campanhas de caça à
baleia para estudar estes animais. Assim, tais conexões que parecem impossíveis e
controversas, tendo em vista os diferentes pontos de vista, percepções, culturas, lugares e
interesses dos diferentes atores envolvidos, sempre existiram na produção de conhecimento
sobre mamíferos marinhos.
Como os mateiros que levam o cientista até as onças ou outros animais selvagens, os vigias
levam os cientistas até os mamíferos marinhos, veiculando e viabilizando a pesquisa. Eles são
como intermediários, especialistas profundos no ambiente marinho e tradutores
indispensáveis dos mundos dos animais marinhos para os mundos humanos, por sua
aproximação com ambos os mundos. Através do papel dos vigias nas atividades científicas e
turísticas, podemos entender a dissolução das fronteiras epistemológicas e institucionais entre
o conhecimento local e científico sobre a vida marinha. Com este exemplo, podemos
compreender as contribuições para as práticas científicas do conhecimento tradicional dos
vigias sobre comportamentos, localização e rotas migratórias de mamíferos marinhos,
adquiridos por gerações de saberes acumulados através da convivência e proximidade com
esses animais.
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Os cientistas açorianos, por sua vez, mantêm excelentes relações com o turismo de
observação de baleias e com os vigias da comunidade açoriana. Nota-se uma relação de troca
com essas atividades. O Whale Watching traduz o conhecimento científico produzido pelos
biólogos marinhos e sua importância para a preservação da biodiversidade marinha, para seus
clientes leigos e muitos deles membros da população açoriana. Segundo os cientistas, o
turismo de observação de cetáceos desempenha um papel importante na educação ambiental,
bem como na divulgação científica. Existe um significativo diálogo entre os empresários e os
cientistas no tocante a atividades de educação ambiental marinha. Algumas empresas até
produzem folhetos sobre rotas migratórias, localização e comportamento das baleias, visando
informar a população açoriana, ainda fortemente conectada com a tradição baleeira, sobre a
importância da proteção e preservação da biodiversidade marinha dos Açores. Em troca da
educação ambiental e divulgação científica promovida pelas empresas de Whale Watching, os
cientistas ajudam e contribuem com elas fornecendo informações científicas sobre ecologia,
biologia e etologia dessas espécies: como proceder na observação de baleias sem perturbar a
biodiversidade marinha? como respeitar os espaços e tempos desses animais? o que fazer e o
que não fazer para adentrar nesses mundos diferentes?
Os cientistas também são mediados pela Administração Pública e pelo Governo Federal.
Eles enviam informações ecológicas e biológicas para técnicos, políticos e agentes de
conservação da natureza, que, então, legislarão no controle do Whale Watching, a fim de
reduzir o impacto das atividades de turismo na biodiversidade marinha.
Para os cientistas, o Whale Watching deve ser repensado como ecoturismo, com o
importante papel de informar a sociedade sobre a biologia e o comportamento dos mamíferos
marinhos, além de trabalhar na educação e na consciência ética ambiental da sociedade.
Os empresários de Whale Wathcing, por contratarem membros da população local, como
os vigias, estão mais próximos da comunidade açoriana do que os cientistas, o que permite
maior facilidade na comunicação. Nesse sentido, para os biólogos marinhos dos Açores, o
turismo de observação de baleias, quando bem controlado, pode preencher a lacuna da
escassez de projetos de educação ambiental marinha no arquipélago, trabalhando em redes
com pesquisadores e a comunidade local. Eles desempenham o papel de tradutores da
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linguagem científica em linguagem local ou coloquial, estabelecendo conexões entre ciência e
sociedade.
Assim, podemos notar os diferentes tipos de conhecimento envolvidos nesta complexa rede
sociotécnica. Conhecimento sobre os mamíferos marinhos do ponto de vista científico, da
perspectiva de marketing do turismo de observação de baleias e da perspectiva cultural de
vigias e membros da população local conectados à tradição baleeira. Todos os atores desta
rede têm um rico conhecimento do mar, de diferentes perspectivas, lugares e pontos de vista, e
suas práticas são constituídas pela convergência, mistura e dissolução entre eles. Essa
conexão pode re-aproximar, a partir de novos pontos de vista a comunidade açoriana do mar.
Atualmente, a tradição da caça à baleia nos Açores, com a nova indústria da baleação, pode
ser ressignificada no sentido de captar e apreender as diferentes alteridades desses animais,
tão radicalmente outros.
Tais práticas encontram a etologia com relação à observação dos animais vivos. Tendo em
vista, que os conhecimentos dos vigias sobre os mamíferos marinhos dizem respeito aos seus
comportamentos, localizações, sociabilidade, vias migratórias e modos de vida, constituindo-
se como conhecimentos etnoetológicos. A particularidade dos cientistas dos Açores é valorizar
e reconhecer a tradição baleeira e os vigias como fontes de conhecimentos etnoetológicos
sobre mamíferos marinhos, incorporando-os em suas práticas científicas.
Através deste trabalho, espero ter suscitado reflexões sobre as múltiplas dimensões da
produção de conhecimento sobre mamíferos marinhos e as possibilidades reais de
atravessamentos de fronteiras epistemológicas, dissolvendo os limites entre o dentro e o fora
na produção de conhecimento. A história da etologia pode ser narrada partindo da relação
entre os pontos de vista dos atores-locais, dos mateiros, dos vigias, que exercem papéis
fundamentais na viabilização das práticas científicas, e os cientistas. Não podemos esquecer
que um importante precursor da etologia na França, no século XVIII, considerado, por alguns
historiadores, como o primeiro etólogo, Charles Georges Leroy foi um guarda-parques e não
um naturalista ou cientista.
Referências bibliográficas
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