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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Costa, Araya, Fonseca. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt17):1-15 Uma reflexão sobre a produção de conhecimento a partir da escola em comunidades pesqueiras e quilombolas GT 17 – Periferalidade e subalternidade na produção do conhecimento Rute Ramos da Silva Costa Juan Francisco Bacigalupo Araya Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Costa, Araya, Fonseca. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt17):1-15

Uma reflexão sobre a produção de conhecimentoa partir da escola em comunidades pesqueiras equilombolas

GT 17 – Periferalidade e subalternidade na produção do conhecimento

Rute Ramos da Silva CostaJuan Francisco Bacigalupo Araya

Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca

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INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea tenta reconhecer uma forma homogênea de valores e culturas, não deixando

espaço para as singularidades de povos que têm sabenças e vivências diferenciadas do modo de vida padrão,

construídas e preservadas por trajetórias históricas próprias (SOUZA SANTOS, 2002). O Estado capitalista

busca manter a ordem existente através do uso do poder simbólico, o exercício da dominação das classes

subalternas, subjugando-as por uma hegemonia cultural. O “pensamento moderno e científico” é um dos

instrumentos utilizados para legitimar o modelo capitalista como hegemônico, ainda que não seja onipotente

(MALLON, 1995).

Diante deste ardiloso cenário, o projeto de sociedade encontra-se em disputa, seja para a manutenção do

estado hegemônico ou na defesa da transformação da realidade em curso. “Quanto mais acirrado o sistema

de exclusão social, mais urge encontrar outros caminhos para a organização da vida e da produção, os quais

garantam o bem viver de todos e de cada um” (OLIVEIRA, 2006, p.15). É preciso identificar linhas de fuga,

que potencializem a criação de outros regimes semióticos, como o são os sistemas das classes subalternas,

cujas características são a inclusão, a cooperação e o dinamismo (Ibidem, 2006a).

Um dos mecanismos, que historicamente tem servido para sedimentar as tramas ideológicas de opressão da

classe dominante é a escola, uma das instituições de reprodução social que perpetuou o jogo da dominação

ideológica. O conjunto de práticas e saberes hegemônicos de seu currículo naturalizam as desigualdades e

sustentam a dimensão ideológica da educação única, autoritária e eurocêntrica, compreendendo os elementos

de outras culturas como algo exótico e folclórico. Reforçando esta reflexão, evocamos Giroux (1983, p. 107),

que esclarece que as escolas, nos modelos tradicionais, são parte de um “aparato ideológico do Estado” de

manutenção, reprodução e aprofundamento das relações capitalistas, são “áreas de treinamento para

diferentes setores da força de trabalho; provedoras dos conhecimentos e das habilidades ocupacionais

necessárias à expansão da produção interna e do investimento externo”.

Autores como Bourdieu (1999) e Freire (2015) concordam que escola pode provocar transformações sociais,

mas não é capaz de protagonizar a liberdade plena; pois sua função pilar está comprometida com o

apontamento dos papéis sociais dos indivíduos ou grupos populacionais, tendendo a determinar um projeto

de sociedade que dê sustentação ao poder da elite.

A respeito disso, Larchert (2014, p.23) afirma que a escola silencia as diferenças que lhes são constitutivas,

porque o modelo instituído não considera as singularidades e o dinamismo expressos na cultura em que está

inserida. Nesse sentido, Freire (1981), em seu livro Ação Cultural para a liberdade, pronuncia que o processo

de libertação será pleno por intermédio de uma ação cultural revolúcionária, onde os oprimidos aniquilarão o

silêncio, expulsando as sombras míticas dos opressores introjetadas em si mesmos pela cultura dominante.

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Assim, neste trabalho procuramos discutir os resultados de duas pesquisas etnográficas que

investigaram expressões culturais e conhecimentos produzidos nas comunidades tradicionais

pesqueira, em Quintero, Chile; e remanescente de quilombo, em Quissamã, Rio de Janeiro. Neste

trabalho buscamos superar a visão das escolas apenas como locais de ensino, compreendendo-as como

locais culturais e políticos, que representam espaços de contestação e luta entre grupos

diferencialmente dotados de poder cultural e econômico.

A escola é um espaço em constante disputa, onde as comunidades subordinadas/oprimidas devem

reclamar transformações que combatam as desigualdades de classe, reorientando os pilares da

educação para modelos que dialoguem com as tradições culturais que operam em suas comunidades.

Para isso, torna-se necessário a tomada de consciência crítica de si mesmos; e a valorização da sua

própria cultura.

Nessa linha, os aspectos sociais e culturais que operam a partir interação entre o humano e a natureza

influenciam o cotidiano das formas de vida e caracterizam as especificidades dos povos. Ao longo do

tempo vão se acumulando e modificando, formando as facetas da cultura de uma população. Por

exemplo, os povos do mar, aqueles que moram perto do mar são chamados de pescadores e se lançam

todos os dias para pescar. “Ao explorarem o mar e os recursos deste, os homens elaboram diversos

modos de apropriação social, econômica e cultural ligados ao ambiente marinho” (SILVA, 2010).

Assim, as comunidades pesqueiras possuem características culturais próprias produto da sua forma de

vida e relação com o mar.

Por outro lado, as comunidades remanescentes de quilombo (CRQ), são grupos étnico-raciais com

trajetória histórica e ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão sofrida na

escravidão, e que mantêm performances culturais próprios. A memória coletiva é um dos pilares das

CRQ, que por meio da oralidade transmitem as histórias e lendas, os relatos mitológicos, e “o

conhecimento total” sobre religião, ciência natural, artes, a recreação; pois na palavra está a “escola da

vida” (BÂ, 1982, p.169). Nessas comunidades encontramos além das línguas reminiscentes; uma

diversidade de tecnologias e formas de produção do trabalho; uma série de festejos, usos, tradições e

elementos que conformam um patrimônio cultural singular. Destacamos a relação com a terra, que

extrapola o valor capital e funda um laço de pertencimento, de sobrevivência, um verdadeiro elo

ancestral (BRASIL, 2012).

Nas próximas paginas serão apresentadas características gerais das culturas estudadas, focando nos

processos de educação que são realizados na comunidade Quilombola (modo de existir e resistir) e da

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implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ);

assim como também nos elementos estruturantes da festa de São Pedro, espaço de resistência cultural

dos pescadores de Quintero.

METODOLOGIA

Defronte a um perfil distintivo e plural, a escolha por um caminho metodológico constitui-se um

desafio, principalmente diante da complexidade da sociolingüística, história, saberes, relações

humanas e de poder que operam em uma Comunidade Remanescente de Quilombo (CRQ) e em uma

Comunidade Pesqueira. A constante observação e interação em uma localidade, seu registro e análise,

somados ao diálogo com atores que operam nas convergências de práticas educativas escolarizadas e

populares, projetaram uma via apropriada para a construção e análise do nosso objeto de estudo.

Optou-se pela metodologia de análise qualitativa, que segundo Minayo (2008) “aprofunda o universo

de significados, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde ao espaço mais íntimo das

ações e relações humanas”. Corresponde também ao princípio de que o pensamento de uma

coletividade é o conjunto de representações geradas na prática discursiva, presentes em uma dada

formação social e em um dado momento histórico (LEFÉVRE et al, 2000).

Sendo assim encontramos na abordagem etnográfica uma perspectiva que acolheu a diversidade e

valorizou as intersubjetividades e significados atribuídos pelos sujeitos às suas próprias experiências

vividas (MINAYO, 2008). Spradley (1979) acrescenta o fato de que o objetivo do investigador

etnográfico deve ser compreender a maneira de viver do ponto de vista dos seus “naturais”, permite

aprender com as pessoas, mais do que estudar essas pessoas. Segundo Velasco e Diaz da Rada (1997):

A observação participante entende-se como forma condensada, capaz de conseguir a objetividade mediante umaobservação próxima e sensível, e de captar ao mesmo tempo os significados que dão os sujeitos do estudo a seu

comportamento.

Etnografia significa descrever um povo ou estudar pessoas em grupos organizados, comunidades,

sociedades, pois compreende a investigação da dimensão coletiva, isto é, os modos de vida peculiares,

comportamentos, crenças, costumes e valores aprendidos e compartilhados em grupo, a cultura.

Assim, antropólogos, em fins do século XIX passaram a utilizar o método etnográfico para pesquisas

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com grupos humanos, por entenderem que a vivência em campo seria indispensável para retratar a

dinâmica da experiência humana vivida (ANGROSINO, 2008).

Neste sentido, a proposta metodológica possibilitou uma aproximação multireferenciada necessária ao

cenário complexo do pensar e do agir em uma Comunidade Remanescente de Quilombo e na

Comunidade Pesqueira. Nesta metodologia, o processo de modelagem da pesquisa e de sua teoria foi a

característica principal e o papel de tecelões intelectuais foi assumido pelos pesquisadores.

Estabeleceu-se alguns teóricos como referências para a criação do método, dentre os quais podemos

citar Geertz (2003). No entanto, por se tratar de pesquisas que se realizaram em comunidades

tradicionais cujas expressões culturais estão pautadas na oralidade, tornou-se necessário compreender

tanto a cosmovisão africana das tradições orais, como as relações entre o homem e o mar.

Assim, iremos apresentar os resultados obtidos mediante o método etnográfico e a observação

participante, procurando ir além da criação de categorias e delimitação de estruturas, pois um modelo

não pode dar conta da complexidade infinita do real, do cotidiano. Procura-se então pensar o social

como um espaço dinâmico em que o objetivo e subjetivo estão em constante modificação e que dessa

interação nascem formas de pensar, de fazer e de ser, das quais pode chegar a se reflexionar,

compreender.

RESULTADOS

Sobre cultura pesqueira na cidade de Quintero no Chile

Desde um olhar geográfico, Chile é um país marítimo que se projeta para o Oceano Pacífico e está

situado na margem sudoeste da América do Sul. É um país unitário1 e possui uma divisão política de

15 regiões divididas de norte-sul. Tem 4.200 km de litoral, possui uma área marítima de 3,15 milhões

de km2 em sua zona econômica exclusiva de 200 milhas náuticas. Ao largo da sua costa encontram-se

ecossistemas altamente produtivos, que lhe outorgam vantagens como produtor de recursos marinhos e

de aquicultura, altamente demandados nos mercados mundiais.

1O poder central é exercido sobre todo o territóriosem as limitações impostas por outrafonte do poder, aorganização política é única porque consiste apenas de um aparato governamental que executa todas asfunções do Estado.

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O Chile tem uma costa com predominância de costas rochosas e alcantiladas; a partir da ilha de Chiloé

a costa é desmembrada em fiordes, canais e ilhas, o que permite a existência da indústria de

salmonicultura que a nível mundial se posiciona no segundo lugar depois da Noruega. Segundo dados

da FAO (2016), o peixe é um dos produtos alimentares mais comercializados no mundo. O comércio

de peixe aumentou consideravelmente nas últimas décadas, fruto de um ambiente cada vez mais

globalizado. A forma como os produtos marinhos são preparados, comercializados e distribuídos aos

consumidores mudou consideravelmente e muitos deles atravessam fronteiras nacionais várias vezes

antes de chegar ao consumidor final.

Especificamente a região de Valparaíso, denominada comumente como “V Região” e onde fica a

cidade de Quintero, foco de uma das nossas pesquisas, é a terceira em população depois da Região

Metropolitana de Santiago e a do Bio-Bio, Concepción. Segundo dados do Instituto Nacional de

Estadisticas (CHILE, 2006) possui uma população (censo 20022) de 1,6 milhões. Destes, a força de

trabalho corresponde a cerca de 500 mil pessoas, sendo que trabalham na agricultura, caça ou pesca

10% delas.

Assim, a escolha da região de Valparaíso foi feita pela sua relevância e pela existência de pelo menos

quatro comunidades de pescadores artesanais na cidade de Quintero: caleta3embarcadero,

caletaelmanzano, caletapapagallo y caletaloncura. A cidade tem uma população estimada para 2016 de

28.124 hab. (QUINTERO, 2016). Hoje o setor terciário e secundário são as principais fontes de

trabalho em áreas como construção, turismo, administração publica, comercio e indústria. Assim,

segundo informações da associação “No + Carbón” (2013), destaca-se também o trabalho portuário e

consequentemente, industrias altamente contaminantes. No entanto, segundo dados da Subsecretaria

de Pesca y Aquicultura de Chile (CHILE, 2016), 478 pessoas trabalham na pesca na cidade.

Sobre a cultura pesqueira, podemos mencionar que assim como na maioria de vilas de pescadores e

portos marinhos de Chile São Pedro tem sido adoptado como padroeiro e protetor dos pescadores e

suas famílias na cidade de Quintero. Na zona central do país esta expressão de fé alcança sua maior

força graças à tradição e história do antigo rito das “Festas de chinos” de origem pré-hispânico.

Segundo o padre Alonso de Ovalle, um dos primeiros em relatar a festa:

«...Acuden a las procesiones los indios de la comarca que están em las chacras que son como aldeas, a una y dos leguas de la ciudad. Es tan grande el número de esta gente y tal el ruido que hacen con sus flautas y com la vocería de su canto, que es menester echarlos todos por delante, para que se pueda lograr la música de los eclesiásticos y cantores, y podernos entender para el gobierno de la procesión...»

2Estou usando dados do Censo de 2002 devido a que o último censo de 2012 teveseus dados questionados.3Emportuguês a traduçãomais acertada para a expressão Caleta, seria “vila de pescadores”.

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(Alonso de Ovalle, 1641).

A origem da festa de São Pedro se remonta aos bailes chinos, bailes que possuem uma tradição indígena, como pode ser apreciado na fala do Padre Alonso de Ovalle, que em 1641 já descrevia a organização dos indígenas (os chinos) e o seu enfrentamento com a festa da igreja católica. A palavra chino é de origem quechua-aymara, significando originalmente mulher, mas durante a época colonial aclasse dominante utilizou o termo para os serventes indígenas, sendo assim que o termo é empregado pelas agrupações de dança: os servos de São Pedro (PEREZ DE ARCE, 2017).

Segundo a encarregada da patrimônio e turismo do município de Quintero, a festa de São Pedro é:

“La fiestamás tradicional de todas es lafiesta de Loncura, de San Pedro, fiesta de San Pedro de Loncura, que esteaño cumple 145 años. incluso, es más antigua que eso, pero hace 145 años atrás, Benjamín vicuña Mackenna cuando vino a Quintero, relató cómo era la fiesta de San Pedro en esos años, entonces a partir de 1872 cuando Benjamín Vicuña Mackenna escribe se empieza a contar la historia desde hacia delante. Y es una de las razones por que están catalogados como los tesoros humanos vivos, porque todas las familias, o la mayoría de los que componen actualmente el baile chino de Loncura sus parientes han sido chinos de generación en generación, de hecho el cantante, el cantautor del canto a lo divino, Bruno Perez es la quinta generación de chino de la familia” (Encarregada de patrimonio)

Assim, a festa de São Pedro possui um componente sócio-histórico importante e um componente artístico característico (dança, musica, canções e roupas), em que:

Dança: Os pescadores vão pulando enquanto vão tocando suas flautas.

Musica: Flauta de origem indígena, emiti não só uma nota, mas um acorde dissonante a cada soprado.

Canções: O representante dos pescadores, o chamado Alferéz, é o encarregado de cantar décimas em honor a São Pedro.

Roupas: Os pescadores se disfarçam de marinheiros, produto de uma tradição que começou graças às mulheres dos marinheiros, que procuraram vestir aos dançarinos.

É importante destacar o fato de que a musica dos bailes chinos é completamente original, manifestaçãoque tem origem nas populações indígenas que habitavam a zona central de Chile antes da chegada dos espanhóis. No entanto, vemos que a escola não é um espaço de valorização da cultura local, segundo a nossa informante:

“Muchos profesores que son quinteranos, profesores de historia sobre todo, claro que saben de historia, saben la historia nacional, digamos los combates, etc, etc… pero no saben historia local po. Si ese es el tema también” (Encarregada de patrimonio)

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Assim, a questão da valorização cultural fica em mãos de professores que são vitimas do modelo educativo chileno e que não podem (ou não querem?) abordar o tema cultural local com os seus estudantes.

Sobre a Comunidade Remanescente de Quilombo Machadinha e o processo deimplementação das Diretrizes Curriculares da Educação Quilombola

Identificamos na Comunidade Remanescente de Quilombo, localizada na zona rural de Quissamã, município do interior do estado do Rio de Janeiro, um perfil apropriado ao desenvolvimento deste estudo. A peculiaridade no modo de formação da comunidade, pela permanência dos moradores nas senzalas da Fazenda; a presença de escola quilombola; as práticas educativas quilombolas que ocorrem por meio de educadores populares e nas ações cotidianas e as tramas políticas que incidem sobre as atividades culturais são características que instigaram a investigação.

A Comunidade é constituída por 300 famílias e um total de 983 habitantes que descendem de negros escravizados da antiga Fazenda Machadinha. A ocupação atual é sustentada pela organização social estabelecida no passado e por alianças matrimoniais forjadas ao longo do tempo (MACHADO, 2006). Estas pessoas residem nos cinco núcleos territoriais que compõe a CRQ: Fazenda Machadinha (núcleocentral), o Sítio Santa Luzia, Mutum, Boa Vista e Bacurau.

Machadinha, titulada como CRQ pela Fundação Palmares em 2006, ainda não possui a posse da terra. O processo de titulação do território compreende duas vias. A primeira trata-se da passagem do título da Fazenda Machadinha pela prefeitura, que adquiriu o território do Engenho Central, nos anos 2000. Os demais territórios carecem do encaminhamento do processo junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que consiste na construção de um Relatório de Identificação e Delimitação da Terra (RITD), seguido de análises, consultas, recursos, os quais podem ser acompanhadas por representantes da comunidade (BRASIL, 2003).

Os títulos e certificações são fundamentais aos quilombolas para a posse aos direitos sociais básicos dos cidadãos brasileiros. No entanto, a influência das elites econômicas, contrárias a certificação das terras, sobre os governos locais, cerceia o acesso a direitos ou mesmo do princípio de equidade na concessão dos serviços públicos, já que as características singulares, os pilares sociais e os históricos da CRQ devem ser considerados (SILVA, 2009).

O prédio da escola quilombola estudada, a Escola Municipal Felizarda Maria Conceição de Azevedo, ocupa o território do núcleo central de Machadinha, mas encontra-se à beira da estrada, próximo à entrada da fazenda. A atual construção reproduz as sedes dos engenhos particulares da dinastia dos Araruama, com suas construções carregadas de romantismo, típico do final do século XIX. Planta compátio central e cercado por um jardim bem cuidado, que remete aos tempos áureos do Engenho, mostrando imponência e despertando admiração. Quatro edificações ligadas entre si formam um quadrado com um pátio central e um anexo, aos fundos.

Em 2015 a unidade escolar atendia a 116 estudantes, tanto aos moradores da CRQ Machadinha, quanto a moradores dos bairros Beira de Lagoa, Santa Catarina e alguns do centro de Quissamã.

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Os primeiros contatos com a escola causaram-nos estranhezas e aproximações, talvez nesse início, prevaleça mais uma que a outra. O que mais chamou a atenção foi o quanto a escola está distante da comunidade. Distância esta que, quiçá não seja significativa do ponto de vista métrico, mas que refletea posição que ocupava: a margem. O afastamento que se nota desde a estrutura arquitetônica do prédio, imagem de uma casa de senhorial de engenho, até no diálogo desgastado com os pais de alunos, na imposição de regras institucionais alheias aos hábitos próprios da comunidade, marcadamente um mecanismo de doutrinamento ou catequização.

Alienado também está o projeto político pedagógico e o plano anual, a formação e a educação continuada dos docentes e gestores. Distância se observa nos livros e escritos disponíveis na sala de leitura que parece destinada a outro público. Enfim, em uma série de elementos que retratam esse afastamento. Por outro lado, nota-se aproximação e compromisso de muitos da equipe, especialmente daqueles que são moradores locais ou que se têm interesses individuais sobre os temas da cultura e história afro-brasileira.

O “Programa Mais Educação4” é o ponto de encontro entre a escola e as práticas culturais da comunidade. Professores da comunidade, contratados para ministrar oficinas, oferecem aulas de brincadeiras tradicionais (ex.: boi malhadinho), contação de histórias, entre outros. No entanto, o professor de música, efetivo ao quadro docente busca um diálogo mais próximo com a cultura de matriz africana, promovendo até mesmo apresentações na comunidade.

A Associação de Remanescentes de Quilombo de Machadinha (Arquima) vem se fortalecendo politicamente quilombo e protagonizando uma série de posicionamentos frente à prefeitura municipal. Neste contexto surge a demanda, na/e da comunidade, em participar das decisões referentes à educação na Escola Municipal Felizarda Maria Conceição de Azevedo, uma vez que se sentiam distantes da escola situada dentro do seu próprio território. Inicialmente esta demanda aparece com a preocupação em relação à evasão escolar de crianças quilombolas, ao fim do período integral, ao pouco interesse das mães da comunidade em colocarem seus filhos na escola matriculando-os em escolas distantes e, a pouca ou nenhuma inserção da comunidade nas decisões da e sobre a escola.

A partir destas demandas, no âmbito do Projeto Territórios Criativos, implementado em Machadinha entre 2015 e 2016, foi realizada uma primeira reunião para discutir Educação Quilombola. A reunião, que aconteceu na Escola Felizarda Maria, em outubro de 2015, contou com a participação de integrantes da CRQ Machadinha, professores e técnicos do NEABI (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas) do IFF/Quissamã, pesquisadores e bolsistas da UENF, representantes da Secretaria de Educação de Quissamã, professores e Diretora da Escola Municipal e a equipe do ProjetoTerritórios Criativos da UFF.

4 O Programa Mais Educação, criado pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado pelo Decreto 7.083/10,constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para indução da construção da agenda de educação integral nasredes estaduais e municipais de ensino que amplia a jornada escolar nas escolas públicas, para no mínimo 7 horas diárias,por meio de atividades optativas nos macrocampos: acompanhamento pedagógico; educação ambiental; esporte e lazer;direitos humanos em educação; cultura e artes; cultura digital; promoção da saúde; comunicação e uso de mídias;investigação no campo das ciências da natureza e educação econômica. Fonte: http://portal.mec.gov.br/programa-mais-educacao/apresentacao?id=16689

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Esta reunião foi um importante passo inicial, além de apresentar as DCNEEQ foi possível conhecer o funcionamento da Escola, que na ocasião contava apenas com projetos do programa “Mais Educação” para discutir a cultura afro-brasileira, através de oficinas5 de dança e capoeira. Neste sentido, foi apresentada e discutida a proposta de implementação da educação quilombola na escola municipal Felizarda Maria e os seus pontos centrais: a construção de um projeto político pedagógico, a formação inicial e continuada dos professores com base na realidade da comunidade e do panorama nacional, e uma gestão escolar democrática e autônoma. Destacamos em diversas falas o papel estratégico que a escola possui em resgatar e continuar os saberes e a tradição quilombola, assim como, a necessidade de se escutar a comunidade a todo instante (na implementação, elaboração e execução da proposta), pois são estes os detentores dos saberes tradicionais.

Foi pontuado ainda a extrema necessidade de inserir essa política nas escolas que se encontram fora daComunidade, que atendem as turmas do 6º ano ao ensino médio, nas quais os alunos quilombolas estão presentes. Outro elemento destacado por professores do IFF é de que os temas sobre a cultura e identidade quilombola devem ser tratados de forma transversal à todas as disciplinas, o que exige necessariamente a qualificação (inicial e continuada) de todos os professores e de forma geral uma inserção de todo o corpo técnico da escola no debate sobre a educação quilombola.

Em um segundo momento houve a realização da primeira formação junto aos professores da escola pelo NEABI/ IFF de Quissamã, com algumas dificuldades em efetivar esta ação6. A proposta era ouvir os professores e estudantes e a partir dos relatos trazer elementos para se pensar a Educação Quilombola no cotidiano escolar. Neste sentido, diante da resistência observada pela direção da escola e pouco envolvimento dos professores nas ações anteriores7, optou-se por outra dinâmica: “ocupar” a escola, através de ações diversas que discutam a cultura afro-brasileira, as tradições da comunidade, osfazeres e saberes e que possibilitem aos alunos aprenderem com a comunidade. A comunidade deveria ir para dentro da escola, realizar atividades e, a partir desta ocupação criativa reivindicar e construir coletivamente a educação quilombola. Realizar encontros periódicos (quinzenais ou semanais) com estudantes (e professores/as) da escola, levando pessoas da comunidade para falar da vivência e tradições quilombola.

Desta reunião saíram inúmeras propostas, todas com a perspectiva de envolver os professores e a comunidade diretamente na sua execução, além do compromisso dos professores presentes em

5 Importante destacar que a Escola já havia contado com a participação da Moradora Dalma dos Santos, PesquisadoraQuilombola e atualmente diretora do Memorial de Machadinha, como integrante de uma proposta de oficina de Jongo paraas crianças.6 Apesar de articulação anterior para esta formação, não houve por parte da Direção da Escola um movimento de mobilizaros professores, havendo ao contrário uma postura de dificultar o processo.7 “Em relação às atividades realizadas com os professores a proposta é que se utilize dos encontros de planejamento que jáocorrem na escola. Estes encontros e oficinas com os professores são essenciais para que haja uma sensibilização dosmesmos com as demandas da comunidade e a cultura quilombola. Foi destacado na reunião que em visita derepresentantes do NEABI às escolas de Quissamã, observou-se que a maioria dos docentes residia fora da cidade. Outraproposta apresentada foi a de levar alunos e professores da escola do quilombo a realizarem e participarem de atividadesfora da escola, atividades na comunidade e que envolvam seus moradores (como as oficinas oferecidas pela Dalma dosSantos no Memorial, uma visita guiada aos espaços culturais e históricos da comunidade, etc). Além desta proposta,destacou-se a importância de articular novamente as atividades realizadas por Dalma dos Santos (oficinas de Jongo, Fuxicoe contação de histórias) com a escola.”

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contribuir com as ações. Entretanto, apesar dos importantes encaminhamentos, a implementação da Educação Quilombola não teve prosseguimento naquele momento, em especial devido à resistência daescola, através de sua direção e do pouco envolvimento da secretaria de educação e da gestão municipal como um todo, e só vem a ser retomada em 2017, conforme explicitaremos melhor posteriormente.

Estes elementos são importantes para evidenciar os entraves que podem ser decisivos na implementação da Educação Quilombola e, talvez nos levar a inferir porque tão poucos quilombos têmas Diretrizes implementadas. Por outro lado, nos aponta para a necessária articulação entre gestão municipal, comunidade e escola na implementação destas Diretrizes.

O cenário no município de Quissamã e em Machadinha mudou bastante de 2015 para hoje, tanto no interior da escola e na gestão municipal quanto na dinâmica política e organizativa da comunidade. Apesar do cenário nacional apontar para retrocessos na conquista de direitos dos povos tradicionais, consideramos ser o momento propício para a retomada desta proposta de forma organizada e articulada.

A implementação das DCNEEQ tem papel fundamental no processo de fortalecimento político da comunidade, de fortalecimento do protagonismo quilombola e, sobretudo, na garantia de que futuras gerações quilombolas sejam parte essencial das conquistas políticas e culturais da comunidade.

Na CRQ Machadinha há, atualmente, as ações coordenadas por Dalma dos Santos8 e Leandro Nunes9 que tem como objetivo resgatar o jongo, o fado e as histórias locais para crianças quilombolas. Este projeto, intitulado Flores da Senzala tem uma proposta intergeracional e tem tido um impacto positivo na afirmação e divulgação de práticas culturais essenciais no acionamento da identidade quilombola. O Memorial Machadinha é um espaço que tem sido ressignificado por uma moradora Dalma para um espaço destinado à educação com base nos elementos comunitários.

A escola local, que por reivindicação da Associação de Remanescentes de Quilombo de Machadinha, desde abril de 2017 encontra-se em processo de reorientação do modelo de educação escolar e implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Para isso, deverá se fundamentar, se informar e se alimentar dos elementos que permeiam o ensino das práticas culturais quilombolas (BRASIL, 2012). O processo educativo do jongo será um dos elementos culturais a ser investigado e incorporado na estrutura pedagógica e curricular, relevantes à escola.

O jongo conhecido como “Tambores de Machadinha”, comumente dançado-cantado-tocado no terreiro, em frente à ala “A” das antigas senzalas da Fazenda, moradia dos negros desde os tempos da escravidão. É praticado em datas festivas da comunidade, como as festas de Santo Antônio e de Nossa Senhora do Patrocínio, nas feijoadas da liberdade em maio, e na que rende homenagens à dona Chêro e seu Cici, no mês de celebração da consciência negra.

8 Dalma dos Santos, diretora atual do Memorial de Machadinha, publicou o Livro Flores da Senzala em 2016, no âmbito doProjeto Territórios Criativos. O livro é uma coletânea de contos de domínio popular de Machadinha que tratam, sobretudo, dehistórias dos antepassados da comunidade.9 Mestre do Jongo Tambores de Machadinha.

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Os Tambores de Machadinha são a expressão viva de um povo que resiste historicamente aos opressores e preserva os signos e valores deixados por seus antepassados, com destaque ao trabalho com as crianças quilombolas, realizado pelo Mestre Leandro Nunes e Dalma Santos. A oralidade é um mecanismo ampliado da linguagem didática utilizada no processo educativo do jongo, que apresentaremos aqui.

Anteriormente eram realizadas oficinas de jongo, por Dalma, na escola local, porém desde 2016 ocorrem todos os sábados, das 10h às 11h30 da manhã, no terreiro e delas participam cerca de quinze crianças, com idades que variam de 2 a 13 anos. O Mestre Leandro coordena o trabalho com o apoio do projeto Flores da Senzala, através do qual são oferecidas oficinas de jongo, de fado, de artesanato e contação de histórias.

A tradição oral é a grande escola da vida e não se limita a histórias e lendas, isto é, a partir da palavra ocorrem os processos educativos, organizam-se as estruturas sociais, os modos de comunicação, as estruturas religiosas e mágicas, a iniciação à arte, à história, aos conhecimentos etc (BÂ, 1982). Essa estreita relação da narrativa oral com os processos educativos quilombolas possui sua gênesis nas constitutivas das práticas sociais de matriz cultural africana. BÂ (1982) situa a oralidade na cultura africana, afirmando categoricamente a indivisibilidade com a tradição oral.

A amplitude da linguagem é compreendida, na cosmovisão africana, pela possibilidade de manifestação para além da expressão verbal, ou seja, pela fala é possível “ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a própria fala” (BÂ, 1982, p.170). Nesse sentido, a linguagem oral é percebida como recurso pedagógico no processo educativo do jongo em Machadinha, através de distintas expressões: a dança como ferramenta de comunicação a partir da construção de imagens; a entoação dos pontos e o aprendizado da história e da identidade quilombola por meio dos ensinamentos orais, pelos Mestres jongueiros.

O Mestre, por seu compromisso na manutenção e preservação do jongo, realiza, ao final de cada encontro, um momento de recordação de algumas histórias dos tempos passados. Dalma, com certa frequência, convida os mais antigos da CRQ para compartilharem de suas memórias. Os(as) senhores(as) sentam-se e os pequeninos se espalham pelo chão. De ouvidos atentos e olhos fixos, observam atentamente cada palavra e expressão. Essa prática, segundo Bâ (1982), que se realiza pelo compartilhar, pacientemente, conhecimentos de toda espécie, por meio de lições de vida, histórias, fábulas, lendas, máximas, adágios e pelo empirismo, é o mecanismo que preserva a memória ancestral e reforça a noção de identidade e pertencimento.

Os processos educativos de sociedades de tradição oral africana se fundam na experiência enquanto elemento essencial para a construção de um sujeito em sua totalidade (BÂ, 1982, p.169). Sua alma é esculpida de um modo particular por intermédio da experiência, através da qual se aprendem os conhecimentos relativos à vida. A experiência se faz necessária, pois existem saberes a respeito dos quais não “se explicam”, mas que se experimentam e se vivem, por exemplo, não se apreendem as lições religiosas a não ser que o sujeito seja iniciado e vivencie todos os rituais correspondentes às regras cerimoniais (Ibidem, p. 182).

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O processo educativo do jongo de Machadinha aponta para a preservação de uma tradição cultural queafirma, constrói e significa uma identidade negra positiva, consciente e crítica. A atividade com as crianças e jovens parece promissora, pela habilidade musical e corporal jongueiros e a liberdade de criação de perspectivas de se dançar/pensar essa prática cultural.

O ensino popular observado integra ações que se utilizam principalmente da oralidade e da experiênciapara apresentar aos educandos um sistema de representação que aponta para a relação da cultura quilombola e os significados dos ritos do jongo. Elementos do legado africanos foram identificados na prática educativa do jongo de Machadinha: a cerimonialização, a relação de senhoridade, o aspecto de sacralidade, a linguagem oral e a experiência, são alguns deles.

Os processos educativos utilizados pelos quilombolas a respeito de suas expressões culturais de Machadinha devem ser inspiração para a implementação das DCNEEQ, a reestruturação do Projeto Político Pedagógico da escola municipal local, além do currículo escolar. "Saravá jongueiro velho queveio pra ensinar. Que Deus dê a proteção pro jongueiro novo, pro jongo não se acabar. Pro jongo não se acabar, pro jongo não se acabar. Que Deus dê a proteção pra jongueiro novo, pro jongo não se acabar".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mignolo (1995) aponta que devemos reivindicar as particularidades latino-americanas reconhecendo a

importância da criatividade, do pensamento situado e contextualizado sócio histórica e

geograficamente; potenciando um projeto cultural e político que permita romper com séculos de

colonialidade e eurocentrismo. Segundo Bravo (2008), a didática da pedagogia critica promove o

dialogo estudante-saber-professor-sociedade, numa perspectiva de encontro entre a academia e o

social, manifestando-se assim uma resistência ao modelo educativo imperante. Nessa visão, o

professor crítico deixa de lado o tecnicismo e a falta de esperança no modelo, pensando no seu

trabalho como uma forma de resistência.

Assim, as experiências mencionadas neste trabalho nos fazem concluir que a possibilidade de

emancipação dos grupos subordinados poderá ter maiores possibilidades quando o sistema

escolar considerar os saberes próprios das comunidades tradicionais, seus processos de aprendizagem,

de formação e organização social; e fomentar a consciência política, como condição para sua

reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica.

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