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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Souza, Meyer. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017;1(gt3):1-12 O PROCESSO DE DESIGN E AS RELAÇÕES COM STS: UMA REVISÃO SISTEMÁTICA DE LITERATURA GT3 – Produção De Conhecimentos E Artefatos – Experiências Interdisciplinares Em Design Débora de Oliveira Lemos Rocha de Souza Guilherme Corrêa Meyer Resumo: O processo de design, historicamente, tem sido percebido na perspectiva dos problemas de design, mas essa não é a única forma de perceber o processo de design. Os conceitos da Science and Technology Studies (STS) parecem ajudar a alcançar outra compreensão sobre como diversos atores influenciam tal processo. Apesar dessas aparentes pertinências, não há muita clareza sobre como as pontes entre os campos vêm sendo realizadas. Esta pesquisa caracteriza-se por uma revisão sistemática de literatura com o objetivo de examinar as relações entre os conceitos abordados sobre STS e o processo de design (design process). Na perspectiva da STS, o problema não é visto de forma isolada, mas sim como algo que se relaciona com toda a rede (de atores humanos e não-humanos) que se cria em torno do projeto. Isso ajuda a tirar o foco do problema de design e a dar voz a esses atores. Para realizar este estudo realizou-se uma revisão sistemática de literatura. Para isso, consultou-se a base de dados EBSCOhost que possibilita o acesso a resumos e textos completos. Utilizou-se o modo de pesquisa avançada com as seguintes palavras-chave: “design process” e “Science and Technology Studies”. Restringiu-se a primeira expressão (design process) ao resumo para qualificar o resultado encontrado. A segunda expressão poderia constar em qualquer parte do texto completo. Além disso, os artigos deveriam fazer parte de revistas acadêmicas analisadas por especialistas. Aplicamos Análise de contéudo para identificar conceitos e formar categorias gerais. O estudo traz contribuições tanto para a área do Design como para a literatura da STS porque examina as aproximações realizadas entre ambas as áreas. Palavras-chave: Science and Technology Studies (STS); Design; design process; processo de design; revisão sistemática de literatura.

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O PROCESSO DE DESIGN E AS RELAÇÕES COM STS:

UMA REVISÃO SISTEMÁTICA DE LITERATURA

GT3 – Produção De Conhecimentos E Artefatos – ExperiênciasInterdisciplinares Em Design

Débora de Oliveira Lemos Rocha de SouzaGuilherme Corrêa Meyer

Resumo: O processo de design, historicamente, tem sido percebido na perspectivados problemas de design, mas essa não é a única forma de perceber o processo dedesign. Os conceitos da Science and Technology Studies (STS) parecem ajudar aalcançar outra compreensão sobre como diversos atores influenciam tal processo.Apesar dessas aparentes pertinências, não há muita clareza sobre como as pontesentre os campos vêm sendo realizadas. Esta pesquisa caracteriza-se por umarevisão sistemática de literatura com o objetivo de examinar as relações entre osconceitos abordados sobre STS e o processo de design (design process). Naperspectiva da STS, o problema não é visto de forma isolada, mas sim como algoque se relaciona com toda a rede (de atores humanos e não-humanos) que se criaem torno do projeto. Isso ajuda a tirar o foco do problema de design e a dar voz aesses atores. Para realizar este estudo realizou-se uma revisão sistemática deliteratura. Para isso, consultou-se a base de dados EBSCOhost que possibilita oacesso a resumos e textos completos. Utilizou-se o modo de pesquisa avançadacom as seguintes palavras-chave: “design process” e “Science and TechnologyStudies”. Restringiu-se a primeira expressão (design process) ao resumo paraqualificar o resultado encontrado. A segunda expressão poderia constar em qualquerparte do texto completo. Além disso, os artigos deveriam fazer parte de revistasacadêmicas analisadas por especialistas. Aplicamos Análise de contéudo paraidentificar conceitos e formar categorias gerais. O estudo traz contribuições tantopara a área do Design como para a literatura da STS porque examina asaproximações realizadas entre ambas as áreas.

Palavras-chave: Science and Technology Studies (STS); Design; design process;processo de design; revisão sistemática de literatura.

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1. Introdução

Diversos autores já compreenderam o processo de design pela ótica dos problemas de design. Esses problemas ao serem caracterizados como bem definidos, compreendem um processo com etapas mais claras. Ao ser compreendido pelo viés dos wicked problems, percebe-se um processo mais dinâmico em virtude das características desses problemas. Quer dizer, tais problemas como que adicionam uma camada social ao problema, o que modifica completamente sua concepção. Tal leitura aponta para um quadro em que a formulação do problema e da solução ocorrem de forma gradativa no decorrer do processo de design. Será que compreender o processo de design por essa ótica, influencia de alguma maneira a prática? Essa abordagem caracteriza a primeira parte do artigo.

Após, apresenta-se uma revisão de literatura sistemática em que se buscam indícios de como o processo de design pode ser compreendido por outra ótica. A ideia seria escapar da posição convencional do problema de design junto ao processo. Nesse caso, a atuação do design deixa de existir? Para isso, busca-se examinar a relação entre os conceitos abordados em pesquisa sobre STS e processo de design, para depois apresentar uma discussão sobre o tema.

2. Processo de design na ótica dos problemas de design

Processo de design desintegrado

Pode ser difícil imaginar o processo de design em etapas separadas porque as diversas ações, em regra,são bem articuladas entre si. No entanto,

uma das formas de compreendê-lo é desintegrando em três etapas: análise, síntese e avaliação. Essas fases podem ser descritas como “quebrar o problema em pedaços, juntar as peças de uma nova maneira, e testar para descobrir as consequências de colocar o novo arranjo em prática” (JONES, 1992, p 63). Jones preferiu chamar essas três etapas de divergência, transformação e convergência.

Na etapa divergente busca-se ampliar o foco para encontrar um terreno suficientemente fértil, coletando tudo o que parece contribuir para a solução do problema. A compreensão do brief é ampliada ou até reformulada; o objetivo é aumentar o nível de informações e incertezas para fugir de soluções preconcebidas.

Se na fase da divergência o objetivo é coletar tudo que possa ser útil, na fase da transformação o foco é trazer ordem, padrão, para tudo o que foi coletado, identificando sub-problemas e descartando tudo que parece irrelevante. Além disso, “As transformações rivais não devem ser misturadas. Geralmente, haverá várias transformações, cada uma capaz de alcançar um resultado aceitável“ (JONES, 1992, p 67).

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Na fase convergente, o objetivo é chegar a uma única opção. Para isso, é desejável reduzir as incertezas (o que para Callon, Lascoumes e Barthe (2009) deveria ser substituído por riscos), identificar sub-problemas que invalidam algumas alternativas e evidenciar as alternativas que restarampara eleger uma delas.

Muitos modelos que tentaram representar o processo de design assemelham-se a essas etapas descritas acima. Por exemplo, Dijon De Moraes define o processo de design como "problem finding (definindo o problema), passando a seguir ao oportuno problem setting (conhecendo o problema), antes de chegarao problem solving (resolvendo o problema)" (DE MORAES, 2010, p. 18). O autor reconhece que o processo não é linear: "cada fase vem definida antes do início da sucessiva, mas como uma constante intervenção de feed back em que, constantemente, se retorna à fase anterior" (DE MORAES, 2010, p. 20), mas mesmo assim, busca-se eliminar todo o tipo de incerteza, chegando a uma única solução estável.

De acordo com Buchanam (1992), o modelo linear do pensamento de projeto está vinculado a uma percepção de problemas bem definidos. No entanto, os problemas de design parecem ter as características de “wicked problem”.

Processo de design e “wicked problem”

Rittel e Webber (1973) mostraram que alguns problemas possuem propriedades distintas dos problemas bem definidos. Eles denominaram esses problemas de "perversos (wicked)", não no sentidode eticamente deploráveis, mas sim como algo “complicado”. Por esse motivo, a abordagem dos wicked problems precisa ocorrer de forma diferente da realizada para solucionar os problemas bem definidos.

Dessa forma, compreender os problemas mal-estruturados contribui para entender sua complexidade e a forma como se articulam nas diferentes esferas. Rittel e Webber (1973) definem dez características dos problemas mal-estruturados, a seguir descritas:

1. Não existe uma formulação definitiva de um problema perverso.

2. Problemas perversos não têm regra de parada (ou seja, não têm solução definitiva).

3. Os problemas perversos não têm solução verdadeira ou falsa, mas "melhor ou pior" ou "satisfatória"ou " boa o suficiente".

4. Não há uma solução que ponha fim ao problema perverso.

5. A implementação de uma solução ao problema perverso resulta em consequências, sem oportunidade de aprender por tentativa e erro (cada tentativa conta significativamente).

6. Não há critérios que permitam provar que todas as soluções para um problema perverso foram identificadas e consideradas.

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7. Todo problema perverso é essencialmente único, ou seja, não há problema perverso idêntico a outro,e, portanto, a solução para um problema não serve para outros.

8. Cada problema perverso pode ser considerado um sintoma de outro problema.

9. A forma como o problema é compreendido afeta o modo como ele é resolvido.

10. Não há como dizer que o solucionador do problema está errado. O que pode ocorrer é que suas hipóteses podem ser contestadas.

Essas dez características dos wicked problems demonstram as incertezas presentes nos problemas de design, por isso, o processo de design tende a ser dinâmico. Reconhecer tal situação entre problema e incerteza é importante pois estabelece outra relação entre designer e problema. Nessa outra relação, o designer não procuraria eliminar as incertezas (pois são essencialmente dinâmicas), mas aprender a lidar com elas.

Apesar dessa perspectiva reconhecer que os métodos clássicos de solucionar problemas bem definidos,com passos pré-estabelecidos, tornam-se inadequados para solucionar os problemas perversos, ainda assim, percebe-se o processo pela ótica dos problemas de design. Ou seja, parte-se do pressuposto de que os problemas sejam difíceis de domar, mas ainda assim toda certificação de projeto é algo que ocorre em relação à ideia de problema alcançada.

Modelos descritivos ou prescritivos

De acordo com Cross (2008) o processo de design já foi representado por diversos modelos que podem ser classificados como descritivos ou prescritivos.

Os modelos descritivos descrevem como acontece a sequência de atividades. Nesse viés, geralmente, busca-se encontrar um conceito de solução no início do processo para submetê-lo a análise, avaliação, refinamento e desenvolvimento. O conceito de solução mostra-se pertinente ao conseguir passar por todas essas etapas, caso contrário, busca-se uma nova solução.

Os modelos prescritivos, geralmente, estimulam os designers a adotarem melhores formas de trabalho.Nessa abordagem, estimula-se um trabalho mais analítico para compreender melhor o problema antes da geração de conceitos de solução, apresentando uma estrutura básica para o processo de projeto de análise-síntese-avaliação.

De forma ampla, parece que ambas leituras tratam problema e solução da mesma forma. Enquanto uma delas antecipa (prescreve) como deve ser o processo para descobrir o problema/solução, a outra relata (descreve) como o problema/solução manifestou-se no processo. Cross (2008) apresenta um modelo intregado, em que o problema e a solução se desenvolvem em conjunto, o que modifica um pouco essa estrutura geral anterior. Em outros textos, Dorst e Cross (2001) abordam mais essa temática no conceito de coevolução.

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As três abordagens apresentadas (processo de design desintegrado, processo de design e “wicked problem”, modelos descritivos ou prescritivos) apresentam o processo de design com enfoque no problema de design.

No próximo tópico, apresenta-se como se procedeu para realizar a revisão de literatura sistemática quebusca compreender as relações entre conceitos da STS e o processo de design.

3. Metodologia

Para realizar este estudo realizou-se uma revisão sistemática de literatura. Para isso, consultou-se a base de dados EBSCOhost que possibilita o acesso a resumos e textos completos. Utilizou-se o modo de pesquisa avançada com as seguintes palavras-chaves: “design process” e “Science and Technology Studies”. Restringiu-se a primeira expressão (design process) ao resumo para qualificar o resultado encontrado. A segunda expressão poderia constar em qualquer parte do texto completo. Além disso, os artigos deveriam fazer parte de revistas acadêmicas avaliadas por especialistas.

Inicialmente encontraram-se 47 resultados. Quando o sistema excluiu os itens duplicados, a lista apresentou 16 resultados divulgados entre 2003 e 2016. Um dos textos foi excluído da lista porque nãoera artigo acadêmico, mas o “Index” de uma publicação.

Ao começar a leitura dos artigos, observou-se que alguns textos não abordavam diretamente os conceitos do STS, isto é, os conceitos não se pronunciavam explicitamente em qualquer seção do artigo. Por isso, utilizou-se o seguinte procedimento para analisar os artigos de forma abrangente:

1) Localizou-se no texto onde aparecia o termo “Science and Technology Studies”;

2) Avaliou-se também quais as referências utilizadas pelo autor;

3) Buscou-se identificar nos títulos, subtítulos e resumos conceitos conhecidos do STS.

O artigo era desconsiderado quando o termo “Science and Technology Studies” aparecia em uma partedo texto não expressiva, como nas notas de rodapé do artigo ou nas referências bibliográficas. Para confirmar a exclusão, se verificava a inexistência de termos ou atores conhecidos do STS. Nessa etapa foram desconsiderados 6 artigos em que o termo “Science and Technology Studies” não era abordado diretamente. Além disso, excluiu-se da lista mais um artigo que estava em alemão.

No próximo tópico, apresentam-se oito artigos agrupados em três conceitos centrais identificados. Os conceitos foram identificados a partir de Análise de Conteúdo, em que se procurou encontrar por indução as unidades (representadas nos conceitos) e os agrupamentos que formavam (na categorização). Assim, chegou-se a 3 grandes categorias: 1) Natureza dos Atores; 2) Boundary Objects; 3) Design Participativo.

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4. Resultados

Natureza dos Atores

O texto de Petersen e Riisberg (2016), apresenta o processo de criação de um novo uniforme, mostrando como atores humanos e não-humanos contribuíram para o design final. O desafio do projeto era criar uma vestimenta que representasse a identidade dos profissionais, apoiasse as práticas de trabalho e diminuísse o custo com a lavagem. Uma coleção com 18 modelos (8 peças para mulheres, 5 para homens e 5 unisex) foram testadas. Os ajustes mais radicais ocorreram para atender os requisitos na logística de lavagem, tais como: mudança de zíperes para botões, troca de posição e formato dos bolsos.

Segundo os autores, esse tipo de design é formado por uma série de atores heterogêneos que precisavam lidar com demandas conflitantes. Para Petersen e Riisberg (2016, p. 62) “Os atores envolvidos no processo de design podem ser vistos como uma ‘rede de trabalho’ e o produto final como uma tentativa de criar uma configuração estável, que pode (ou não) (...) ser ‘blackboxed’.”

Nesse caso, percebe-se que o uniforme ganhava uma configuração mais estável à medida que conseguia atender aos requisitos (ou demandas) que surgiam no decorrer do projeto, podendo o produto final caracterizar-se por uma caixa preta. As peças propostas apresentavam inovações interessantes, mas não atendiam o requisito de diminuir o custo com a lavagem, por isso, os gestores não o aprovaram. Nesse sentido, o antigo uniforme mostrou-se como uma caixa preta mais estável.

No outro artigo analisado, os autores Sack et al. (2006) utilizam os conceitos da ANT para mapear a rede que se estabelece na criação de software de código aberto (OSS). Para isso, escolheram analizar alinguagem de programação chamada Python. Nessa linguagem, os diversos atores se comunicam por PEPs (Python Enhancement Proposals).

Nesses registros (PEPs) era possível detectar os rastros deixados pelos diversos atores envolvidos no processo. Isso possibilitou “observar diretamente a tecelagem híbrida realizada pelos atores envolvidosna negociação, elaboração e implementação das características técnicas da Python” (Sack et al., 2006, p. 232). Foi criado um software para vislumbrar a comunicação que se estabelecia entre os diversos atores. Alguns deles começavam como novatos e à medida que evoluíam suas participações passavam a desempenhar papeis mais importantes. Esse espaço de comunicação, constituído principalmente por esses registros (PEPs), são caracterizados como fóruns híbridos, espaços para discussão de questões técnicas.

Wan et al. (2016) utilizam a tecnologia de rastreamento para criar um sistema de monitoramento (GPS) que auxilia a localização de pessoas com demência. Esse artigo não utiliza diretamente os conceitos da STS, mas percebe-se como o desenvolvimento do artefato perpassa pela rede de diversos atores, neste caso, pesquisadores, familiares, pacientes e cuidadores.

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Os fragmentos destacados aqui sugerem o tipo de compreensão utilizada pelos autores para falar da natureza dos atores. Os atores, aqui, são humanos e não-humanos, portanto compõem um quadro heterogêneo (PETERSEN; RIISBERG, 2016). A articulação que estabelecem procura encontrar uma espécie de estabilidade, a que Petersen e Riisberg chamam de configuração estável, masque Law (1992) denomina Pontualização. O conceito de caixa preta também é mencionado pelos autores, mas sem que se faça uma correspondência com o conceito de atores explorado. No outro artigo analisado (SACK et al., 2006), os atores são entendidos enquanto agentes que deixam rastros, o que possibilita a visualização das negociações que estabelecem entre si. Os autores também destacam o aspecto de tradução desses atores, pois entendem que eles modificavam seus papéis no curso da participação.

Boundary Objects

Traska (2007) descreve o projeto de renovação do prédio de uma antiga universidade do século XVII. Para isso, realizaram um concurso em que 10 arquitetos foram convidados a participar. O material disponibilizado aos participantes com as informações do prédio é caracterizado como planos de pesquisa. De acordo com o autor, esses planos de pesquisa têm o potencial de funcionarem como boundary objects, facilitando a compreensão mútua entre os diversos profissionais envolvidos no projeto. No entanto, no caso apresentado o material foi insuficiente porque pouco explorava as características, a história e as diversas intervenções do prédio, não se caracterizando assim como um boundary object.

Juhl e Lindegaard (2013) mostram como as representações visuais desenvolvidas por alunos de projetode engenharia podem funcionar como boundary objects. Essas representações tornam-se uma plataforma para os profissionais registrarem e compartilharem diferentes tipos de conhecimentos, facilitando o avanço e o processo de negociação entre eles. Um autor muito citado no artigo, quando abordam o conceito, é Carlile (2002) que apresenta aspectos interessantes sobre os boundary objects: (1) tornam-se uma linguagem comum para apresentação de conhecimento; (2) facilitam a transformação do conhecimento em conjunto; (3) fornecem um meio concreto para as pessoas apresentarem e aprenderem sobre suas diferenças e dependências.

Boundary objects são objetos flexíveis que se adaptam a diferentes situações, mas mesmo assim, conseguem manter a identidade nesses espaços, trazem contribuições no âmbito coletivo e individual, podem ser abstratos ou concretos (STAR; GRIESEMER, 1989). A partir desse conceito, percebe-se, nos textos analisados, que diferentes artefatos podem funcionar como boundary objects. No texto de Traska (2007), os planos de pesquisa de renovação do prédio têm esse potencial e no texto de Juhl e Lindegaard (2013), as representações visuais são caracterizadas como boundary objects.

Design Participativo

DiSalvo (2009) resgata a obra “O público e seus problemas” de John Dewey para fazer uma discussão sobre como o design pode contribuir para a construção de públicos. Nesse viés, o design, ao construir artefatos que evidenciam as diferentes faces de um problema, contribui para a construção de diferentes

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públicos. Por exemplo, uma “mesa robô” que utiliza matéria animal (ratos) como fonte de energia, levanta o questionamento sobre a legitimidade e as consequências disso. O artefato, nesse caso a mesa,serve para promover o debate, não visa dar a solução para um problema, mas levantar subsídios para a questão ser conhecida e problematizada.

De acordo com DiSalvo (2009), as táticas de “projeção” e “rastreamento” ajudam a evidenciar as possíveis consequências de um problema. A tática de projeção começa no presente e vislumbra o futuro, criando suposições sobre o que pode ocorrer e quais os efeitos de um problema. Além disso, a tática de projeção baseia-se na construção de cenários que ilustram essas possíveis consequências. A tática de rastreamento é constituída pelo conhecimento do passado que é trazido para o presente em busca de expor as origens de um problema e a sua progressão ao longo do tempo.

Storni (2015) sugere repensar as práticas de design colaborativo e participativo através de três abordagens: 1) ontológica; 2) metodológica; 3) epistemológica. Na abordagem ontológica ele propõe formas de tornar as redes de atores visíveis, viabilizando um espaço para os atores apresentarem e debaterem as controvérsias ao longo do processo. No viés metodológico sugere a criação de mapas abertos “em construção” que podem ser acessados e modificados por diversos atores. Essa multiplicidade de mapas dá voz ao coletivo, permitindo o debate e a identificação de controvérsias. Naabordagem epistemológica propõe que os próprios atores melhorem o estado das coisas. O autor apresenta o caso de uma plataforma criada para pacientes com diabete tipo 1 que os possibilita relatarem os diversos sintomas da doença. Nesse exemplo, o conhecimento é formado não exclusivamente por médicos, mas também por portadores da doença que lidam diariamente com a questão.

Laurent (2011) apresenta três situações ocorridas na França (uma conferência de cidadãos, uma série de reuniões públicas e um processo de design industrial) que tentaram engajar a participação de atores híbridos na discussão de nanotecnologia. Esse texto constata que a STS fornece ferramentas e métodospara a análise de tecnologias da democracia.

De acordo com Venturini (2010, p. 260), as controvérsias "são os fenômenos mais complexos a serem observados na vida coletiva", e caracterizam-se por uma incerteza compartilhada, uma questão que não está estabilizada. As controvérsias são situações em que não há dúvida de que os atores discordam (VENTURINI, 2010). Para Callon, Lascoumes e Barthe (2009, p 18) “as controvérsias ocorrem em espaços públicos, fóruns híbridos, que são espaços abertos onde grupos podem se unir para discutir opções técnicas envolvendo o coletivo”. Nos três textos analisados, observa-se uma aproximação com os conceitos de controvérsia e fóruns híbridos. Por exemplo, DiSalvo (2009) fala sobre artefatos que evidenciam diferentes aspectos de um problema para promover o debate de forma a mobilizar a construção de públicos. Storni (2015) e Laurent (2011) apresentam formas de engajar diversos atores na discussão.

5. Discussão dos Resultados

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No início do artigo, mostra-se que o processo de design, geralmente, é visto na ótica dos problemas de design. Nessa perspectiva, o processo de design parece evoluir em virtude do problema. Além disso, busca-se criar um artefato que estabilize os conflitos presentes no processo de design. O resultado do processo de design parece ser uma caixa preta, estável, que não promove o debate. Ao caracterizar o problema de design como “wicked problem”, reconhece-se a complexidade dos problemas, mas, mesmo assim, opera-se entre os consensos em busca de uma melhor solução.

No entanto, na ótica dos textos analisados, principalmente de design participativo, o objetivo é ajudar os diversos atores envolvidos no processo a mapearem as controvérsias presentes para debaterem sobre elas. Nessa abordagem, os objetos apresentam, em sua essência, controvérsias que chamam a atenção para questionar hábitos e sua posição na sociedade (KOSKINEM, 2016, p. 19).

Dunne e Raby (2013) sugerem o design especulativo, o que aponta para um processo guiado pela questão de “como as coisas deveriam ser?”. O design, geralmente, opera na ótica de cenários prováveis e preferíveis. No entanto, pouco se explora o cenário possível. Nessa perspectiva, o design contribui para abrir e discutir todas as possibilidades possíveis, inclusive, os cenários que englobam diversas incertezas. Nesse caso, os diversos profissionais trabalham para encontrar diferentes futuros possíveis. Ao invés de ser conduzido por um problema, o design especulativo é guiado por cenários futuros.

De acordo com Di Salvo (2009), existem os cenários preditivos e os prescritivos. Os cenários preditivos assemelham-se ao que Dunne e Raby (2013) denominaram como cenários plausíveis, são alternativas futuras do que pode acontecer. Já os cenários prescritivos são formulados com visões sobre o que deveria acontecer, é o que Dunne e Raby definiram como cenários possíveis.

O papel do designer passa a ser semelhante ao de um cartógrafo que utiliza suas habilidades para ajudar os diferentes atores envolvidos no processo a identificar esses cenários possíveis. Nesse caso, ascontrovérsias ficam em evidência, pois ajudam a mapear diferentes cenários. Um único mapa nem sempre será suficiente para mapear a complexidade presente nesses futuros possíveis, mas uma coleção de mapas pode tornar isso viável (VENTURINI, 2015).

Para isso, é necessário modificar a forma como se percebe o processo de design. Será necessário questionar-se o que é importante entregar. Um produto bem acabado? Um produto que estimule o debate? Ou será ainda o próprio processo de design? É preciso, então, pensar o processo de design de forma ampla, muito além da produção de artefatos, pensar em todo esse mundo artificial que se cria e gera formas de se relacionar, formas de pensar, formas de agir no mundo.

O conceito de atores humanos e não-humanos ajudou a perceber o quanto diversos atores podem influenciar no processo de design. Além disso, a articulação que se estabelece entre esses atores visa encontrar uma espécie de estabilidade, como foi visto no exemplo dos uniformes. No entanto, os artefatos (resultado de um projeto) podem também ir em direção a provocar uma instabilidade, como no caso do design participativo, em que alguns artefatos tinham como finalidade apresentar diferentes faces de um problema para promover o debate. Alguns objetos ainda (por exemplo as representações

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visuais) podem funcionar como boundary objects de modo a facilitar a construção conjunta de conhecimento e o processo de negociação entre os atores envolvidos.

6. Considerações Finais

Na primeira parte do artigo mostrou-se que o processo de design, geralmente é visto pela ótica dos problemas de design. Após, procurou-se perceber o processo sob outra perspectiva. Para isso, realizou-se uma revisão sistemática de literatura para identificar as pontes estabelecidas entre o processo de design e os conceitos da STS.

Nos artigos analisados, os conceitos da STS são utilizados para as seguintes finalidades: 1) identificar a influência de atores humanos e não-humanos no design final de uniformes; 2) mapear a rede de atores que se formam na criação de software de código aberto; 3) sugerir a utilização da tecnologia para auxiliar a localização de pessoas com demência; 4) propor que um plano de pesquisa de um projeto de renovação de um prédio antigo tem o pontencial de ser um boundary object; 5) indicar que representações visuais de estudantes podem funcionar como boundary objects; 6) demonstrar que artefatos podem contribuir na construção de públicos; 7) propor que conceitos da ANT podem ser utilizados para repensar as práticas do design participativo e colaborativo; 8) identificar o engajamentode públicos na discussão de nanotecnologia.

Agrupou-se esses artigos em três conceitos: 1) Natureza dos Atores; 2) Boundary Objects; 3) Design Participativo. Esses textos nos ajudaram a compreender que os atores humanos e não-humanos deixamrastros e podem gerar demandas conflitantes. Geralmente, no processo de design busca-se a elaboração de artefatos que tentam encontrar uma espécie de estabilidade entre esses conflitos. Ainda mais, quando o processo é guiado pela perspectiva dos problemas de design. No Design Participativo percebe-se que essa estabilidade não é desejada, pois o objetivo dos artefatos é evidenciar as controvérsias, gerando debates (fóruns híbridos) que mobilizam os diversos atores envolvidos na questão, contribuindo na formação dos públicos. Além disso, alguns objetos no processo de design podem funcionar como boundary objects, facilitando a construção conjunta de conhecimento e o processo de negociação entre os atores envolvidos.

Uma das limitações desta pesquisa foi tratar de diversos conceitos, por isso, em pesquisas futuras pode-se escolher apenas um para tratá-los de forma mais aprofundada. Em textos futuros, pretende-se abordar como a perspectiva das controvérsias permite avançar na compreensão do processo de design.

7. Referências

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