517
  TEMÁRIO E BIBLIOGRAFIA - PROFESSOR DE EDUCAÇÃO BÁSICA I   30hs (PEB I) e PROFESSOR DE EDUCAÇÃO BÁSICA II   30hs (PEB II) NAS ÁREAS DE ARTES, CIÊNCIAS, GEOGRAFIA, LÍNGUA PORTUGUESA, MATEMÁTICA , LÍNGUA INGLÊSA, HISTÓRIA E MÚSICA. TEMÁRIO 1. Relação entre educação, escola e sociedade - Concepções de Educação. 2. Escola e desenvolvimento local - Educação, Trabalho e Economia Solidária. 3. Ética, Formação Política e Docência. 4. Gestão democrática e Participação da comunidade. 5. Projeto Politico Pedagógico, Planejamento e Avaliação Negociada. 6. Educação inclusiva. 7. Educação Étnico-racial e as questões de gênero. 8. Educação de Jovens e Adultos. 9. Conceitos, Concepção e Fundamentos técnico pedagógicos das áreas do conhecimento. 10. Articulação de Currículo e Metodologias - seleção e organização dos conteúdos nos níveis e modalidades de ensino da Educação Básica. BIBLIOGRAFIA GERAL 1. LIVROS E ARTIGOS  AZANHA, José Mário Pires. Proposta pedagógica e autonomia da escola. In: __________.  A formação do  professor e outros escritos. São Paulo: Senac, 2006. p. 87-104. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. O que é disciplina escolar? In: __________ . Ensino de história - fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 35-55. CAMARGO, Rubens Barbosa de; ADRIÃO, Theresa Maria de Freitas. Princípios e processos da gestão democrática do ensino: implicações para os conselhos escolares . Disponível em: <www.upcme.org.br/site/docs/Rubens%20Carlos.pdf> CARVALHO, Marília Pinto de. O fracasso escolar de meninos e meninas: articulações entre gênero e cor/ raça. In: PISCITELLI, Adriana et al (Org.). Olhares feministas. BRASIL. Ministério da Educação. UNESCO, 2009. CASTRO, Jane Margareth; REGATTIERI, Marilza. Relações contemporâneas escola-família. In: __________. Interação escola-família: subsídios para práticas escolares . BRASIL. Ministério da Educação. UNESCO, 2009. p. 28-32. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001877/187729por.pdf CHAUI, Marilena de Souza. Considerações sobre a democracia e os obstáculos à sua concretização. Pólis Publicações (Instituto Polis), v. 47, 2005. p. 23-30. Disponível em: Página 29 http://www.visionvox.com.br/biblioteca/i/Instituto-Polis-sentidos-da-democracia-e-daparticipa% C3%A7%C3%A3o.txt Os Sentidos da Democracia e da Participação Esta publicação é fruto do Seminário "Os Sentidos da Democracia e da Participação" que ocorreu no Instituto Pólis, em São Paulo / SP, durante os dias 1 a 3 de julho de 2004. O Instituto Pólis conta com o apoio solidário de: Action Aid CCFD EED FPH Frères des Hommes Fundação Ford Fundação Friedrich Ebert ILDES IDRC NOVIB

TEMÁRIO E BIBLIOGRAFIA

  • Upload
    neiazul

  • View
    425

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

TEMRIO E BIBLIOGRAFIA - PROFESSOR DE EDUCAO BSICA I 30hs (PEB I) e PROFESSOR DE EDUCAO BSICA II 30hs (PEB II) NAS REAS DE ARTES, CINCIAS, GEOGRAFIA, LNGUA PORTUGUESA, MATEMTICA, LNGUA INGLSA, HISTRIA E MSICA. TEMRIO 1. Relao entre educao, escola e sociedade - Concepes de Educao. 2. Escola e desenvolvimento local - Educao, Trabalho e Economia Solidria. 3. tica, Formao Poltica e Docncia. 4. Gesto democrtica e Participao da comunidade. 5. Projeto Politico Pedaggico, Planejamento e Avaliao Negociada. 6. Educao inclusiva. 7. Educao tnico-racial e as questes de gnero. 8. Educao de Jovens e Adultos. 9. Conceitos, Concepo e Fundamentos tcnico pedaggicos das reas do conhecimento. 10. Articulao de Currculo e Metodologias - seleo e organizao dos contedos nos nveis e modalidades de ensino da Educao Bsica. BIBLIOGRAFIA GERAL 1. LIVROS E ARTIGOS AZANHA, Jos Mrio Pires. Proposta pedaggica e autonomia da escola. In: __________. A formao do professor e outros escritos. So Paulo: Senac, 2006. p. 87-104. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. O que disciplina escolar? In: __________ . Ensino de histria fundamentos e mtodos. So Paulo: Cortez, 2004. p. 35-55. CAMARGO, Rubens Barbosa de; ADRIO, Theresa Maria de Freitas. Princpios e processos da gesto democrtica do ensino: implicaes para os conselhos escolares . Disponvel em: CARVALHO, Marlia Pinto de. O fracasso escolar de meninos e meninas: articulaes entre gnero e cor/ raa. In: PISCITELLI, Adriana et al (Org.). Olhares feministas. BRASIL. Ministrio da Educao. UNESCO, 2009. CASTRO, Jane Margareth; REGATTIERI, Marilza. Relaes contemporneas escola-famlia. In: __________. Interao escola-famlia: subsdios para prticas escolares. BRASIL. Ministrio da Educao. UNESCO, 2009. p. 28-32. Disponvel em: http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001877/187729por.pdf CHAUI, Marilena de Souza. Consideraes sobre a democracia e os obstculos sua concretizao. Plis Publicaes (Instituto Polis), v. 47, 2005. p. 23-30. Disponvel em:

Pgina 29http://www.visionvox.com.br/biblioteca/i/Instituto-Polis-sentidos-da-democracia-e-daparticipa% C3%A7%C3%A3o.txt Os Sentidos da Democracia e da Participao Esta publicao fruto do Seminrio "Os Sentidos da Democracia e da Participao" que ocorreu no Instituto Plis, em So Paulo / SP, durante os dias 1 a 3 de julho de 2004. O Instituto Plis conta com o apoio solidrio de: Action Aid CCFD EED FPH Frres des Hommes Fundao Ford Fundao Friedrich Ebert ILDES IDRC NOVIB

OXFAM

Publicaes Plis ISSN - 0104-2335 CENTRO DE DOCUMENTAO E INFORMAO DO INSTITUTO PLIS TEIXEIRA, Ana Claudia Chaves, (Org.) Os sentidos da democracia e da participao. So Paulo: Instituto, Plis, 2005.128 pp.(Publicaes Plis, 47) Anais do Seminrio "Os Sentidos da Democracia e da Participao"; So Paulo, Julho de 2004 1. Democracia. 2. Participao Cidad. 3. Gesto Participativa. 4. Polticas Sociais. 4. Avaliao de Gesto. 5. Gesto Lula. 6. Conselhos Gestores de Polticas Pblicas. I. Ttulo. II. Srie. Fonte: Vocabulrio Instituto Plis/CDI

Plis 47 Coordenao: Ana Claudia Chaves Teixeira Assistente de Coordenao: Tatiana de Amorim Maranho Coodernao Editorial: Iara Rolnik e Paula Santoro Edio e reviso de textos: Jos Sacchett Capa: Silvia Amstalden Franco Ilustraes e Editorao: Silvia Amstalden Franco Tambm colaboraram para a edio dessa revista: Daniel Renaud Ho, Nilde Balco, Pedro Pontual e Jos Csar Magalhes Jr. Frum Nacional de Participao Popular Sumrio

Apresentao Os sentidos da democracia e da participao Francisco de Oliveira Marilena Chau

07 11 13 23

Democracia e participao: atores, prticas e discursos Silvio Caccia Bava Orlando Alves dos Santos Jr. Plnio de Arruda Sampaio Llian Celiberti

31 33 41 47 51

Debate I: A participao no governo lula Moderador: Mrio Srgio Cortella Cndido Grybowski Antnia de Pdua Chico Menezes Maria Elizabeth Barros Diniz Jos Antnio Moroni Jos Arnaldo de Oliveira Debate II: Dilogo e controvrsia entre governo e sociedade civil Moderadora: Moema Miranda Srgio Haddad Beto Cury Josefa de Lima Jorge Viana Agenda de questes Apresentao

59

91

119

Nos dias de hoje, os termos "participao" e "democracia" tm sido amplamente utilizados pelos mais variados setores sociais. possvel encontrar a defesa desses conceitos nos programas de governo de praticamente todos os partidos polticos. Se podemos considerar esse fato um avano, dada a tradio autoritria presente na histria brasileira, por outro lado, ao avaliarmos os discursos e as prticas efetivas, podemos perceber que, apesar da apropriao dos termos, os significados e suas implicaes polticas e culturais esto amplamente emdisputa. Por isso, cada vez mais, faz-se necessrio debater e explicitar melhoro sentido que atribumos quelas palavras. A difuso dos termos "participao" e "democracia" pode ser consideradauma vitria de um setor da sociedade civil brasileira, que lutou para que houvesse a incluso de segmentos sociais tradicionalmente marginalizados das decises sociais e polticas. Como resultado de todo esse processo, o direito participao foi elevado a princpio constitucional em 1988. Inmeras experincias participativas foram realizadas em gestes governamentais, no apenas aquelas determinadas pela Constituio Federal e por outras leis de mbito da Unio, como tambm as realizadas de forma criativa, por meio de iniciativas de governos e/ou da sociedade civil local, consolidando o que ficaria conhecido como "democracia participativa". Passados mais de 15 anos da promulgao da Constituio Federal de 1988, a vivncia de vrias experincias participativas muitas vezes realizadas de forma desarticulada e pouco cumulativa nos conduziu ao desafio de aprofundar a reflexo sobre o que conquistamos at agora com a participao, sobre a "arquitetura" da participao no Brasil hoje e os desafios para os prximos anos, visando aprofundar a experincia democrtica brasileira. Durante o ano de 2003, algumas iniciativas de redes e ONGs foram se consolidando, todas elas apontando a necessidade de um debate aprofundado e qualificado sobre quais os sentidos da participao e da democracia que buscamos construir e consolidar na atualidade. Uma das principais motivaespara este debate estava relacionada ao incio do governo Lula e abertura de novos canais de participao, como as consultas sociedade civil nos Estados

sobre o Plano Plurianual Federal (PPA), a recriao do Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional ou as Conferncias das Cidades nos planos municipal, estadual e nacional. O desafio compreender e saber dialogar com o modo de fazer poltica do governo federal. Sabemos que este modo de agir no unvoco e que, certamente, teve impacto sobre os movimentos e organizaes da sociedade civil, bem como sobre as experincias governamentais municipais e estaduais. O Frum Nacional de Participao Popular, articulao de organizaes existente desde 1990, ao realizar seu planejamento em novembro de 2003 e avaliar a conjuntura nacional e dos municpios, apontou como uma de suas metas a realizao de um Seminrio, em 2004, para aprofundar quais os sentidos da participao. O Projeto de Monitoramento Ativo da Participao da Sociedade (MAPAS), coordenado pelo IBASE, com o apoio da Fundao Ford e da Action Aid, e cujo objetivo monitorar a participao ativa da sociedade no governo Lula, programou a realizao de um Seminrio de lanamento pblico dos primeirosdados de pesquisa, para o final do primeiro semestre de 2004. A Inter-Redes, articulao de redes e fruns brasileiros, em seu planejamento de setembro de 2003, criou vrios Grupos de Trabalho. Um deles foi o GT de Participao, que apontou a necessidade de avaliar as polticas participativas do governo Lula, consolidando este processo com um Seminrio especfico sobre o tema. A ABONG realizaria em perodo prximo ao do Seminrio uma avaliao da sua insero como associao nos vrios espaos institucionais, como os conselhos de polticas pblicas. Os debates mais amplos sobre a participao e a democracia poderiam ser uma das bases para esta discusso estratgica da associao. Por fim, o ano de 2004 seria um ano de eleies municipais. Reconhecendo a pertinncia do momento, o Frum Paulista de Participao Popular, articulao de movimentos, parlamentares, equipes de participao de prefeituras e ONGs,existente desde 1999, decidiu redigir e divulgar uma carta aos candidatos ao Executivo e ao Legislativo dos municpios, sobre a necessidade de estabelecer compromisso efetivo com a participao cidad. Essas foram algumas das iniciativas que apontavam para a necessidade de aprofundar e avaliar criticamente as prticas participativas presentes no cenrio brasileiro. O Instituto Plis, como parte destas mltiplas articulaes procurando o dilogo entre elas, tomou a iniciativa de propor a realizao do Seminrio denominado "Os Sentidos da Democracia e da Participao ". O evento aconteceu na cidade de So Paulo, entre os dias 1 e 3 de julho de 2004. Esta publicao fruto dos debates e reflexes ocorridos durante o Seminrio. Durante a preparao para o evento, foram feitas reunies e consultas permanentes, por telefone ou via eletrnica, a todos os organizadores envolvidos. Vrias pessoas e instituies contriburam significativamente com seu tempo entrando em contato com palestrantes, mobilizando participantes, preparandooficinas, etc. e recursos financeiros. Alguns apoiadores foram essenciais para realizao do Seminrio: a CESE, a Intermn-OXFAM e a OXFAM. O Seminrio "Os Sentidos da Democracia e da Participao" foi organizado em seis momentos. A conferncia de abertura contou com a presena dos professores Francisco de Oliveira e Marilena Chau, e a coordenao de Guacira Oliveira, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), da Articulao de Mulheres Brasileiras e da Inter-Redes.

A segunda mesa, denominada "Democracia e Participao: atores, prticas e discursos", foi formada por Silvio Caccia Bava, do Instituto Plis e do Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional; Orlando Alves dos Santos Jnior, da FASE, do Frum Nacional de Reforma Urbana e do Conselho Nacional de Cidades; Plnio de Arruda Sampaio, da Associao Brasileira de Reforma Agrria (ABRA) e ex-deputado constituinte; e Lilian Celiberti, do Cotidiano Mujer (Uruguai) e do Comit Internacional do Frum Social Mundial. Essa mesa foi coordenada por Taciana Gouveia, da SOS Corpo e da ABONG. No terceiro momento do encontro foram realizadas oficinas simultneas em torno do eixo temtico "Balano crtico da participao: o que as experincias participativas do Brasil nos ensinam". Os temas das oficinas foram governabilidade e participao, representao e representatividade nos espaos participativos, gesto e participao comunitria, cooptao versus autonomia: fortalecimento da sociedade civil e a constituio de sujeitos coletivos, novas dinmicas e novas formas de fazer poltica, e os impactos dan participao na redistribuio da riqueza. O quarto momento do Seminrio foi marcado pelo debate sobre a participao no governo Lula. No se realizou uma mesa tradicional, mas sim um debate moderado por Mrio Srgio Cortella, da PUC-SP. Deste debate participaram Antnia de Pdua, do Movimento de Moradia de Belo Horizonte / MG; Francisco Menezes, do Conselho Nacional de Segurana Alimentar; Maria Elizabeth Barros Dinis, consultora em polticas de sade; Jos Antonio Moroni, do INESC, da ABONG e do Conselho de Desenvolvimento Econmico e Social; e Jos Arnaldo de Oliveira, do Grupo de Trabalho Amaznico. Ao incio deste debate, Cndido Grzybowski, do IBASE e coordenador do projeto MAPAS, apresentou algumas questes sobre o tema. O quinto momento do Seminrio seguiu a mesma dinmica de debate, com a moderao de Moema Miranda, do IBASE. Participaram Beto Cury, sub-secretrio de Articulao Social, da Secretaria Geral da Presidncia; Srgio Haddad, da Ao Educativa e da ABONG; Jorge Viana, governador do Estado do Acre; e Josefa de Lima, da Federao de Associaes de Moradores do Piau. No sexto e ltimo momento, foram apresentadas as snteses das oficinas, coordenadas por Evanildo Barbosa da Silva (FASE) e Tatiana Maranho (Plis), e uma agenda da participao para os prximos anos, que foi elaborada duranteo Seminrio por Pedro Pontual (Plis) e Laudicia Arajo (CENTRAC). 9 Esta publicao recupera cinco desses momentos. Os participantes das conferncias e das mesas elaboraram seus textos para esta publicao. Em alguns casos, transcrevemos as falas e depois as transformamos em textos. Optamos por transcrever e editar a discusso dos dois debates com moderao para que o leitor no perdesse a riqueza dos dilogos e das controvrsias. Por motivo de espao, no publicamos os relatrios das oficinas, que se encontram na ntegra no stio www.polis.org.br/seminario. O envolvimento do conjunto de atores que prepararam este evento fez com que o Seminrio no fosse o comeo nem o final de um processo, mas sim a oportunidade de encontro de vrios processos que tm ocorrido em pontos diferentes do Brasil, de forma simultnea. Esperamos que esta publicao seja mais do que o registro do Seminrio, e que contribua para o debate sobre o sentido que queremos dar para a democracia e a participao em nosso pas.

10 Os Sentidos da Democracia e da Participao O capital contra a democracia Francisco de Oliveira Professor titular (aposentado) do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP e coordenador-executivo do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC) da USP.

Do liberalismo social-democracia: a desprivatizao da democracia Qualquer que tenha sido a transmisso da idia de democracia dos gregos para o Ocidente que se tornava capitalista e o colonialismo tornou-o um sistema mundial a democracia moderna desde logo j no correspondia exatamente ao governo de todos. O carter intrinsecamente concentrador do novo sistema prope imediatamente uma assimetria de poder entre os cidados que dificilmente traduz um governo de todos. E a separao que o liberalismo operou entre o poder poltico e o poder econmico, revolucionria para um mundo sado do feudalismo, cria um poder privado, o econmico, cuja gesto retirada do cidado comum. verdade que ainda se pode encontrar reverbera- es da concepo democrtica da igualdade nos fundamentos do liberalismo econmico: por exemplo, a concorrncia perfeita, o modelo mais resistente na histria da teoria econmica dissemos "modelo" construiu-se sob o princpio de que nenhum dos atores teria influncia sobre os preos a ponto de ter poder de mercado suficiente para afastar os demais competidores. Mas a compra e uso da fora-de-trabalho ao bel prazer do comprador o uso de seu valor-de-uso - constituiu-se, desde logo, numa transgresso da regra democrtica da liberdade dos cidados, a no ser que uma delirante concepo veja exerccio da liberdade nas longas e extenuantes jornadas da Inglaterra descritas por Dickens e Engels. Assinale-se, tambm e preventivamente, que a convivncia da democracia com o capitalismo tem sido gravemente conflituosa. Tirando o caso ingls, em que no se nota um conflito de gravidade mesmo na II Guerra Mundial, com Londres sob bombardeio, o regime democrtico logrou resistir aos no poucos apelos autoritrios, diz-se inclusive com a adeso do ento Prncipe de Gales, que teria sido o rei no fosse seu casamento com a divorciada Wally Simpson.

Todas as demais tombaram alguma vez sob a presso dos interesses econmicos engolfados em estratgias imperialistas. Mesmo os EUA passaram pela terrvel Guerra de Secesso, depois da qual a democracia norte-americana manteve-se no sem graves problemas de baixa adeso popular. H muitos "Tiros em Columbine" que revelam a gravidade desses conflitos. A histria europia, com a solene e j mencionada excluso da Inglaterra, mostrou a incapacidade do sistema democrtico fazer frente s conjunturas excepcionalmente tensas. A democracia o sistema de governo da maioria, em que so assegurados os direitos da minoria, mesmo porque na Grcia de Pricles essas posies podiam mudar, dependendo do assunto tratado, e no convinha ofender os direitos dos cidados das minorias, porque isto representaria uma desqualificao para participarem do governo da cidadania. O sistema foi concebido exatamente na perspectiva de mudanas de posies, sem o que no faria o menor sentido: congeladas, fixas e imutveis maioria e minorias, dificilmente se poderia falar em democracia. A democracia moderna colocou no lugar dessas mudanas a rotatividade dos mandatos para criar a possibilidade de novas maiorias e minorias, e a alternncia no poder. A nova estruturao da sociedade em classes virtualmente impede as mudanas de lugares entre maiorias e minorias, porque cria lugares fixos na estrutura social cujos interesses dificilmente podem formatar-se em consensos habermasianos, isto , na pressuposio da boa inteno e do terreno comum que cria a possibilidade da comunicao. A inveno democrtica da tradio ocidental criou mecanismos que procuraram escapar a essas restries/transgresses: a representao como substituto da democracia direta, os partidos polticos como aglutinao de vontades e veiculao de interesses, em suma, a poltica como possibilidade de correo das assimetrias de poder criadas pelo modo capitalista de produo. Pelas mos de Gramsci, j adiantado o sculo XX, formulaes originrias de Maquiavel indicaram a formao de consensos fundamentados no dissenso: a hegemonia essa figura contraditria da dominao que torna os interesses de algumas classes o terreno sobre o qual se produz o consentimento. Inspirado na obra "A Ideologia Alem", a correo operada pelo "pequeno grande sardo" tem a originalidade de abrir para as contra-hegemonias, no decretando a imutabilidade da ordem constituda,exatamente atravs de suas contradies. Como j se assinalou, o liberalismo separou as instncias do poder econmico e do poder poltico numa operao de alta sofisticao, pela qual se evitava justamente a concentrao de poderes caracterstica do feudalismo. Um enorme avano revolucionrio. Mas ao mesmo tempo et pour cause retirou da arena pblica os negcios privados: a teorizao econmica pelas mos de Smith, Ricardo, Mill, Bentham e todos seus sucessores, Weber mui posteriormente no terreno da sociologia, criou esferas autnomas de interesses, que se regularam a partir de seus prprios pressupostos. A ciso das cincias morais, das quais 14nasceu a economia poltica, apartou, desde o inicio, os procedimentos privados como pertencendo esfera exclusiva dos prprios interessados, separando-os dos assuntos pblicos. Uma contradio em termos, posto que o emprego damo-de-obra publiciza imediatamente, pois que tem a ver com a liberdade do outro. Mas a cincia econmica assptica proclamou a imunidade dos negcios privados ao olhar pblico e a impunidade das transgresses. A construo das organizaes dos trabalhadores, seus sindicatos e seus partidos polticos, ops-se ditadura da empresa e no publicizao do conflito de interesses entre o capital e os trabalhadores, reinventando a democracia. No toa, os partidos nascidos da classe trabalhadora denominaram-se, desde o princpio, social-democratas, e somente depois da obra de

auto-construodos prprios trabalhadores o making do ttulo da obra clssica de Thompsonestes se propuseram seus prprios objetivos, o socialismo e o comunismo. Apenas com a criao dos partidos da classe trabalhadora o princpio da alternncia no poder, o equivalente da formao ad hoc das maiorias e minorias da gora grega, chegou a ser real na poltica do Ocidente capitalista. Pode-se dizer sem nenhum sectarismo, que a democracia, tal como a conhecemos, foi praticamente reinventada pela luta de classes em sua forma poltica. Mas foi preciso a maior crise da histria do capitalismo, a Grande Depresso da dcada de 1930, para que a publicizao dos conflitos, at ento assunto privado na relao capital-trabalho inclusive na acepo de Marx, pois os trabalhadores so donos de sua fora-de-trabalho formasse uma nova arena pblica de conflitos e transitasse para as instituies democrticas do Estado contemporneo. O canal exclusivo do privado tornou-se insuficiente para processar a enorme contradio da formidvel destruio de capital, e a publicizao tornou-se estrutural sua produo e reproduo. A regulao dos salrios deixou de ser um atributo do mercado, mesmo que nele estivessem includos os sindicatos de trabalhadores, para constituir-se no principal objetivo das polticas econmicas do Estado moderno, e num trnsito ainda mais radical, elemento dessa regulao, as carncias transformaram-se em direitos (Franois Ewald), desmercantilizando parcialmente o estatuto real da fora-de-trabalho. Foi o ponto mais avanado da democratizao alcanado nas sociedades capitalistas, tanto as do ncleo central quanto das periferias, estas ainda guardando marcas muito fortes de uma ainda no total mercantilizao da fora-detrabalho, o que restringia a cidadania. A centralidade do trabalho nestas sociedades alargou o mbito dessa democratizao, ampliando o leque dos direitos. Ento, as polticas ligadas ao trabalho universalizaram-se e projetaram-se para o conjunto das populaes.

15 Da social-democracia ao neoliberalismo: a reprivatizao da democracia O movimento dialtico que fundou o anti-valor como negao da mercadoria ampliou a fora da organizao dos trabalhadores at o ponto de disputar a destinao do excedente no capitalismo, medido pelos coeficientes da despesa social pblica sobre o Produto Interno Bruto (PIB). Hayek j havia antevisto esse momento em suas peroraes de Mont Plrin e no seu "O Caminho da Servido". Este foi o ponto de inflexo do conflito que, talvez por ironia da histria, tenha comeado tambm na Inglaterra. Mas como Marx havia dito bDe Te Fabula Narratur, a reverso espraiou-se por todo o sistema capitalista. Entrava em ao um movimento de re-privatizao da democracia. Mrs. Tatcher guarda para si o duvidoso galardo de ter inaugurado esse perodo. Qual dinmica desse movimento, de onde ele extrai sua fora? Certamente ela no se deve ao estilo bolo-de-noiva dos trajes e penteados da Dama de Ferro, clone alis, de Sua Majestade. Mas a formao do fundo pblico liberou o capital dos constrangimentos que lhe impunha a fora-de-trabalho como mercadoria, e soltou as foras da Caixa de Pandora da nova potncia de acumulao. Pela negatividade, caa por terra definitivamente a teoria ricardiana do valor-trabalho, em que este comparece

como um custo de capital. Uma acumulao de capital poderosa entrou em ao, a partir da combinao "virtuosa" das polticas anti-valor com a riqueza pblica transformada em pressuposto da produo de valor. Os "Trinta Anos Gloriosos" foram a onda mais larga de expanso do capital, se quisermos usar por analogia os termos de Kondratiev. As formas tcnicas da acumulao de capital ultrapassaram a materialidade das coisas para transformarem-se numa coisificao virtual, cujo poder de plasmar a vida humana ultrapassa todos os limites. , ao mesmo tempo, um limite nunca antes alcanado do fetiche da mercadoria e da possibilidade de sua anulao. Trata-se de um conflito de classes de dimenses planetrias. Sua primeira expresso de intensa regressividade e sua segunda dimenso depende inteiramente da capacidade que as classes sociais revelarem de apropriarem-se de sua potncia, qual novo Prometeu. A regressividade aparece radicalmente na dissoluo da dimenso do tempo e leva de cambulhada o contrato mercantil como temporalidade, uma das bases para o estabelecimento do estatuto da mercadoria; para Marx, o valor em primeiro lugar a quantidade de tempo de uso da mercadoria fora-de-trabalho. A temporalidade substituda por uma estrutura atomstica do trabalho: trabalho em redes, trabalho em clulas, trabalho abstrato virtual levando ao paroxismo a intercambialidade entre os mnadas que carregam sua forade trabalho. Um poderoso aumento da produtividade do trabalho, multiplicado pelas novas formas tcnicas da acumulao de capital, no centro, no tanto suprime o emprego assalariado estes so ainda a maioria mas modifica-lhes 16 o processo de trabalho. O outro lado dessa medalha a dissoluo de todas as identidades formadoras das classes, realizando o programa de Mrs. Tatcher: noh sociedade, somente indivduos. Ultrapassando a Dama de Ferro: tampouc h indivduos, apenas clulas simples, tomos de valor que, como no modelo atomstico, so recombinveis. Deve ser dito, no apenas de passagem, mas como elemento coetneo e constitutivo dessa transformao, que a assimetria de poderes na democracia contempornea exponenciou-se por uma potncia "n2". Em primeiro lugar,enquanto para os trabalhadores a estruturao atomstica lhes diminui, anula e mesmo elimina suas organizaes que um dia puderam contra-arrestar a assimetria originria, para o capital as empresas agigantaram-se e operam tambm em redes, mundializaram-se. Os processos de concentrao do capital esto no centro dessa tendncia, enquanto a centralizao opera a globalizao. A relao de foras entre uma empresa como a Microsoft e seus trabalhadores no cabe em nenhum paralelograma; mesmo em relao aos Estados Nacionais a assimetria tornou-se quase irreparvel. Neste momento, a Microsoft desenvolve uma luta contra governos de Estados Nacionais que ousaram utilizar sistemas livres de software, como o Linux, e at o Estado norte-americano enfrenta dificuldades para enquadr-la nos termos das leis de proteo concorrncia. O poder de classe das empresas aumentou, de novo obrigatrio repetir, de forma exponencial: elas controlam milhares de trabalhadores em todo o globo e, medido pelo critrio da distribuio funcional da renda, entre 60 a 70% do PIB renda do capital (lucros + juros), enquanto a era de ouro do welfare a havia reduzido a menos de 50% fazendo a renda do trabalho alcanar mesmo 70% do PIB, nos poucos casos dos pases nrdicos. Ento a assimetria das relaes entre o poder econmico e o poder poltico ampliou-se extraordinariamente, tornando quase caduca a separao das esferas. Com algum exagero, e esta a forma de dizer-se o que a cincia ainda no sabe medir, provavelmente estamos de volta concentrao de poderes feudais: o econmico, o militar, o poltico, o

social. Mais: as empresas so, agora, o poder poltico e, na clssica diviso de poderes entre o Executivo, o Legislativo e o Judicirio, assaltam e preenchem todos os lugares. Dois processos em curso, a desterritorializao da poltica e a juridificao da mercadoria, transformam as empresas nesse novo Senhor Feudal. Transcendem as fronteiras nacionais e mais: colocam-se no lugar dos poderes nacionais. Fundo Monetrio Internacional (FMI) e Organizao Mundial do Comrcio (OMC) so os smbolos dessa desterritorializao. A empresa Monsanto e sua posse das sementes transgnicas o emblema da mercadoria que carrega consigo sua prpria lei. Transformam-se em operadores do social: aviso s ONGs que promovem este evento. No por trs, mas vista de todos, imprime-se aos programas e polticas sociais a marca do mercado. As ONGs que surgiram para vocalizar conflitos que um sistema petrificado no tinha como enunci-los, so clonadas em organizaes empresariais cujo objetivo reducionista. Mesmo o mais bem 17 intencionado programa tem como divisa o mercado: o pai que no mandar o filho escola, tendo recebido uma bolsa-escola, perder a bolsa. Ou a vida? Um juiz em So Paulo, nos dias que correm, ordenou ao Unibanco que arme sua prpria milcia para cuidar das terras que so ocupadas pelo Movimento dos Sem-Terra (MST), e justificou que o Estado no tem recursos para tanto. No terreno da cultura, ento, quase covardia falar. No h praticamente nenhuma atividade cultural que no seja patrocinada, e o patrocnio transforma-se em marca. O McDonald's, como sempre, est frente: seu mais recente bordo publicitrio "Amo muito tudo isso", mas no a comida o objeto do amor, que franceses, italianos, brasileiros, no somente entenderiam, como concordariam: a marca esse no-obscuro objeto do desejo, na interpretao de Buuel-Isleide Fontenelle. Sem nenhum reproche: onde no h Banco do Brasil e Petrobrs, no h cultura. A hegemonia, processo pelo qual o dissenso era um elemento insubstituvel da estrutura do consenso, tornou-se transparente: a empresa assumiu esse lugar, tornou-se hegeliana. Ela "" a sociedade civil. A empresa faz poltica e a grande empresa " a poltica". Que o digam todos os financiamentos de campanhas polticas e de polticos. Que o digam todos os conselhos onde s se assentam"representantes" das classes "produtoras". No Comit de Poltica Monetria do Banco Central (COPOM) esto banqueiros, e sequer um simulacro de "representao" de trabalhadores. Como diz Paulo Arantes, j no h nem ideologia:o vcio j no necessita render homenagens virtude. As consequncias para a democracia so devastadoras. Se na tradio do Ocidente capitalista esta padeceu, desde seus primrdios, da contradio entre a maioria da plis e a minoria do poder econmico, este subtrado s decises da maioria e rigorosamente privatizado, esta contradio agigantou-se de modo a sufocar a democracia e quase anular a poltica. Aqui no se trata apenas da dimenso quantitativa dessa assimetria, em si importante. Mas da nova qualidade dos processos da acumulao de capital. Esta suprime o outro do capital, o trabalho. Como mercadoria dimensionvel, uma no-forma, apenas uma virtualidade. As "afinidades eletivas" do trabalho so eliminadas e em seu lugar restam apenas as propriedades dos elementos atomsticos, recombinveis. A democracia, por certo modernamente ancorada na materialidade da diviso social do trabalho e na sua centralidade,

uma escolha tica. Por extenso, a sociedade desapareceria nesse andamento, mas h mais: o capital, na forma da empresa, ocupa todos os lugares sociais, e ento chega-se ao paradoxo da "sociedade annima". No h mais sociedade, s h mercado. Este a poltica e esta o mercado. A plis supe uma forma, e o mercado a no-forma. Ele , por definio, a descartabilidade em ato, e antagnico, por isso, institucionalizao das formas. Sem o que no h poltica. E sem esta no h democracia. do fundo do seu processo que o capital se coloca contra a democracia. Todo esse processo gera o oposto do desencantamento do mundo la Weber. As relaes entre as classes parecem desaparecer, sublinhado, tornando impos18 svel, na pista do mestre de Weimar, a ao racional com sentido. As relaes tornam-se opacas, intransparentes. O fetiche alcana sua mxima expresso: um mundo que opera com signos, sem contacto com o real. A poltica, neste caso, torna-se, necessariamente, um espetculo, e deixa de ser operada pelos cidados. No de individualismo que se trata, mas da atomizao. As classes sociais desfazem-se na bruma espssa das recombinaes que parecem aleatrias, mas so, na verdade, dirigidas pelo "piloto automtico" do capital. O outro do falso: a democracia no Brasil Todas as poderosas tendncias interpretadas abatem-se com fria nas periferias capitalistas, e o Brasil est profundamente imerso nelas. Tendo como lastro de sua atualizao uma herana pesadamente anti-democrtica, a sociedade brasileira jogada no novo turbilho por uma acelerao sem precedentes da acumulao de capital escala mundial. Mundializando-se agora para tentar crescer economicamente, inviabiliza-se como nao, como economia e como sociedade. O tempo prestisimo do capitalismo mundial j havia obrigado a uma compactao formidvel de tempos, desde os anos 30. Em 50 anos de industrializao, 35 anos de regimes despticos em que a correlao entre mundializao e regimes de exceo no necessita ser exagerada: taxas de crescimento de 8% ao ano. A dvida externa a prova que no falta: a de que, nesta acelerao, a capacidade interna de acumulao ser sempre insuficiente. O suplcio de Ssifo permanente, j que partimos da democracia grega: quanto

mais tentarmos crescer, tanto mais deveremos. Nestas condies, a soberania trocada, atualizando-se a histria de Esa, por um prato de celulares: 9% do PIB como pagamento de juros da dvida externa. A combinao do aumento da produtividade do trabalho e a financeirizao, expressa pelas altas porcentagens das dvidas externa e interna sobre as despesas estatais e o PIB, mostram que em se fazendo um enorme esforo para seu pagamento, no aumentam nem o investimento nem o emprego. Ento, a desterritorializao da poltica afirma-se taxativa e implacavelmente: as polticas so impostas pelas entidades supranacionais, e retiradas do mbito da cidadania; 145 bilhes de reais para pagamento dos juros da dvida interna, isto , cerca de 10% do PIB para um coeficiente de investimento que no chega a 20%; este servio da dvida corresponde a uns 30% das despesas oramentrias e igual soma de todos os gastos com polticas sociais! Da plataforma da desigualdade histrica, anti-republicana e antidemocrtica, uma nova e intransponvel desigualdade se "alevanta" (desculpe Cames, por utilizar seu belo e arcaico verbo): 60% da populao economicamente ativa (PEA) se ocupa de tarefas "informais" agora o substantivo no engana: destitudo de formalidade, pelo bom Aurlio, sem-forma onde sequer o contrato mercantil existe. No juridificvel, enquanto no ano de 2003 cresceu em 5% o nmero de novos milionrios, sobre uma taxa de crescimento global da economia 19 brasileira de -0,2. Reclame para o bispo, dizia-se na sociedade colonial. E agora? Uma mercadoria no-juridificvel: o que ? O narcotrfico. Como se cobra uma dvida injuridificvel? Pela violncia fsica, Rocinha e Casa de Custdia. A mundializao passou como um trator pelas relaes penosamente construdas. Categorias inteiras sumiram e outras foram reduzidas impotncia, pela combinao da mundializao e da reestruturao produtiva. Os novos processos de trabalho, redes e clulas, des-socializaram as categorias reformatadas, para as quais o sindicato como organismo de classe simplesmente no existe. Cerca de 20% de desempregados na maior cidade se desalentam na longa espera. Que classe social pode resistir essa devastao? A poltica se desfez como relao entre classes, antes que como institucionalidade: esta vai bem, dizem os otimistas, pois a ditadura saiu de cena h exatos

20 anos e, desde ento, quatro eleies diretas para a Presidncia da Repblica se sucederam, sem tropeos nem espasmos. Mas que resta da poltica como "reivindicao da parte dos que no tm parte", como ensinou Rancire? Um Estado de Exceo. Todas as polticas do Estado so de exceo: Bolsa-Famlia, por reconhecer que o salrio insuficiente, mas no pode ser aumentado; Vale-Gs, por reconhecer que o gs de cozinha insubstituvel, mas no se tem dinheiro para compr-lo; Bolsa-Escola, para melhorar o salrio insuficiente e lograr evitar a evaso escolar, que ao mesmo tempo pode punir o pai que no manda o filho escola; Fome-Zero, por reconhecer que no se pode zerar a fome. Vale-Transporte j vem de longe. E o salrio-mnimo no pode aumentar porque arromba as contas da Previdncia. As relaes entre as classes se esbatem contra o muro da enorme desigualdade. Nestes dias, a "Folha de So Paulo" noticiou algo sobre a casa de conhecido banqueiro, no Morumbi, cuja obra est sendo embargada pela Justia, por demanda de um vizinho. Metragem da obra sob embargo: 7.500 m2, equivalente a 200 casas/apartamentos populares de 37,5 m2. No muito longe dali, outro poderoso Midas tem casa com teatro/cinema para 100 convidados. O que h de comum entre esses cidados, que pode faz-los habitantes da mesma plis? Nada, Pricles. A ameaa democracia no Brasil no vem da falta de institucionalizao, da permanente tutela das Foras Armadas que foi um longo pesadelo talvez afastado para sempre, de insurreies e rebelies, de partidos e formaes polticas autoritrias, esquerda como direita neste caso sempre foi a direita vivandeira de quartis, frente a triste UDN. Agora ela provm do ncleo mais duro do capitalismo globalizado com sua incoercvel tendncia a avassalar o Estado, a dilapidar as relaes entre as classes, a tornar intransponvel a desigualdade, retirando o terreno comum de interesses e aspiraes capaz de construir a comunicao e o consenso pelo dissenso; no passado, muitas das crises e das impossibilidades da democracia no Brasil deveu-se disputa de sentido e da hegemonia sobre o projeto nacional. Agora, as burguesias abandonaram a utopia de uma nao e, portanto, j no disputam nada com as 20

classes dominadas: apenas deixam incapacidade do Estado exercer o ltimo de seus atributos, o poder de polcia, mesmo este fortemente abalado pela crise financeira do Estado, entre Rocinhas e Casas de Custdia. Parte importante das classes dominadas, sobretudo o operariado assalariado, devastado pelo desemprego e pela reestruturao produtiva, deixou apagar-se o fogo que roubou nas dcadas da ditadura: agora contenta-se com diretorias de estatais e de fundos de penso; o imenso exrcito "informal" no contesta as classes dominantes: trabalha na aparncia de que seus adversrios so os consumidores. Com o abandono da poltica pelas classes dominantes, os dominados so, paradoxalmente, enclausurados no mbito da poltica institucional, dos partidos, e aprendem os malabarismos recorrentes da dominao. Mas a poltica "policial", no dizer de Rancire, irrelevante. A poltica rola sem atritos, numa funda indeterminao de classes dado o terremoto do perodo neoliberal. Desta vez, tem-se tudo para falar-se propriamente de populismo, no como uma autoritria incluso da classe operria na poltica, mas como sua excluso. As lideranas populares mais eminentes vem-se obrigadas a saltar os muros das organizaes partidrias, que j no representam nada, e falar diretamente ao povo: este tipicamente o caso da Venezuela, mas as experincias brasileira e argentina no esto muito longe disso: as polticas estatais de exceo so a impotncia da poltica e a concretude do populismo como forma na ausncia de formas. Um exerccio do poder que no afeta em nada os interesses dominantes: brincam de poltica, ou de "fazer casinhas" na expresso de Vera da Silva Telles. Esta fala talvez contenha muito pesssimismo e argumentao economicista. Mas a poltica e a democracia no so a negao do domnio do econmico, no se constituram assim na histria do ltimo sculo? Perdo: aqui do que se trata que a dinmica do capitalismo globalizado anulou a autonomia das esferas. Alm disso, na minha tradio terica, a economia poltica a anatomia da sociedade. Se quisermos fazer uma cincia social la americana, sem determinaes recprocas entre as diversas esferas, poderemos at ver virtude numa "sociedade civil" que institui "segurana" nos morros do Rio e nas imensas

Helipolis veja-se o sarcasmo da denominao grega de So Paulo. No o meu caso; chamem Duda Mendona. A obrigao da cincia social perscrutar, com a pacincia e a indignao de Sherlock Holmes a quem interessa essa desolao. Esse Pedro Pramo da democracia. Obrigado, Rulfo.

21 Consideraes sobre a democracia e os obstculos sua concretizao Marilena Chau Professora do Departamento de Filosofia da USP. conselheira do Conselho Nacional de Educao (CNE), na Cmara de Educao Superior.

Estamos acostumados a aceitar a definio liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prtica liberais identificam liberdade e competio, essa definio da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade tende a reduzir-se, de um lado, ao chamado direito de ir e vir e, de outro, competio econmica da chamada livre iniciativa e competio poltica entre partidos que disputam eleies; em segundo, que h uma reduo da lei potncia judiciria para limitar o poder poltico, defendendo a sociedade contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria; em terceiro, que h uma identificao entre a ordem e a potncia dos poderes Executivo e Judicirio para conter os conflitos sociais, estabelecendo limites (tanto jurdicos como policiais e repressivos) para impedir sua explicitao e desenvolvimento completos; em quarto lugar, que, embora a democracia aparea justificada como valor ou como bem, encarada, de fato, pelo critrio da

eficcia, medida, no plano legislativo, pela ao dos representantes, entendidos como polticos profissionais, e, no plano do Executivo, pela atividade de uma elite de tcnicos competentes aos quais cabe a direo do Estado. A cidadania definida pelos direitos civis e a democracia se reduz a um regime poltico eficaz, baseado na idia da cidadania organizada em partidos polticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas solues tcnicas para os problemas econmicos e sociais. Essa concepo da democracia enfatiza a idia de representao, ora entendida como delegao de poderes, ora como "governo de poucos sobre muitos", no dizer de Stuart Mill. O pensamento de esquerda, no entanto, justamente porque fundado na compreenso do social como diviso interna das classes a partir da explorao econmica e, portanto, como luta de classes, redefiniu a democracia recusando consider-la apenas um regime poltico, afirmando, ento, a idia de sociedade democrtica. Em outras palavras, as lutas dos trabalhadores no correr dos sculos 23 XIX e XX ampliaram a concepo dos direitos que o liberalismo definia como civis ou polticos, introduzindo a idia de direitos econmicos e sociais. Na concepo de esquerda, a nfase recai sobre a idia e a prtica da participao, ora entendida como interveno direta nas aes polticas, ora como interlocuo social que determina, orienta e controla a ao dos representantes. Na concepo liberal, a figura principal a do indivduo como portador da cidadania civil ou poltica, vivendo na sociedade civil, determinada pelas relaes de mercado; na concepo de esquerda, a figura principal a das formas de organizao associativa das classes e grupos sociais (sindicatos, movimentos sociais e populares). Tomando a perspectiva de esquerda, podemos, em traos breves e gerais, caracterizar a democracia ultrapassando a idia de um regime poltico identificado forma do governo, tomando-a como forma geral de uma sociedade e, assim, consider-la como: 1. Forma geral da existncia social em que uma sociedade, dividida internamente em classes, estabelece as relaes sociais, os valores, os smbolos e o poder poltico a partir da determinao do justo e do injusto, do legal e do

ilegal, do legtimo e do ilegtimo, do verdadeiro e do falso, do bom e do mau, do possvel e do necessrio, da liberdade e da coero; 2. Forma sociopoltica definida pelo princpio da isonomia (igualdade dos cidados perante a lei) e da isegoria (direito de expor em pblico suas opinies, v-las discutidas, aceitas ou recusadas), tendo como base a afirmao de que todos so iguais porque livres, isto , ningum est sob o poder de um outro porque todos obedecem s mesmas leis das quais todos so autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manuteno de seus princpios - igualdade e liberdade - sob os efeitos da desigualdade real; 3. Forma poltica na qual, ao contrrio de todas as outras, o conflito considerado legtimo e necessrio, buscando mediaes institucionais para que possa exprimir-se. A democracia no o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrtica nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradio e no a da mera oposio? Ou seja, a oposio significa que o conflito se resolve sem modificao da estrutura da sociedade, mas uma contradio s se resolve com a mudana estrutural da sociedade; 4. Forma sociopoltica que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princpio da igualdade e da liberdade e a existncia real das desigualdades, bem como o princpio da legitimidade do conflito e a existncia de contradies materiais fazendo com que os direitos civis sejam sobredeterminados por direitos econmicos e sociais. Isso significa que a democracia no se limita a garantir direitos, mas tem como caracterstica principal a criao de direitos novos, postos pelas condies histricas e pelas lutas sociopolticas. Por 24 esse motivo, a democracia o nico regime poltico realmente aberto s mudanas temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existncia e, consequentemente, a temporalidade constitutiva de seu modo de ser; 5. nica forma sociopoltica na qual o carter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos s

ampliam seu alcance ou s surgem como novos pela ao das classes populares contra a cristalizao jurdico-poltica, que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal a democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os excludos concebem a exigncia de reivindicar direitos e criar novos direitos. Isso significa, portanto, que a cidadania se constitui pela e na criao de espaos sociais de lutas (os movimento sociais, os movimentos populares, os movimentos sindicais) e pela instituio de formas polticas de expresso permanente (partidos polticos, Estado de direito, polticas econmicas e sociais) que criem, reconheam e garantam direitos. 6. Forma poltica na qual a distino entre o poder e o governante garantida no s pela presena de leis e pela diviso de vrias esferas de autoridade, mas tambm pela existncia das eleies, pois estas no significam mera alternncia no poder, mas assinalam que o poder est sempre vazio, que seu detentor a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporrio para isso. Em outras palavras, os sujeitos polticos no so simples votantes, mas eleitores. Eleger, como j dizia a poltica romana, significa exercer o poder de "dar aquilo que se possui, porque ningum pode dar o que no tem", isto , eleger afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporrios do governo. Dizemos, ento, que uma sociedade democrtica quando institui algo mais profundo, que condio do prprio regime poltico, ou seja, quando institui direitos e que essa instituio uma criao social, de tal maneira que a atividade democrtica social realiza-se como luta social e, politicamente, como um contra-poder social que determina, dirige, controla, limita e modifica a ao estatal e o poder dos governantes. Fundada na noo de direitos, a democracia est apta a diferenci-los de privilgios e carncias. Um privilgio , por definio, algo particular que no pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilgio. Uma carncia uma falta tambm particular ou especfica que desemboca numa demanda tambm particular ou especfica, no conseguindo generalizarse nem universalizar-se. Um direito, ao contrrio de carncias e privilgios, no

particular e especfico, mas geral e universal seja porque o mesmo e vlido para todos os indivduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado reconhecido por todos (como caso dos chamados direitos das minorias). Uma das prticas mais importantes da poltica democrtica consiste justamente em propiciar aes capazes de unificar a disperso e a particularidade das carncias em interesses comuns e, graas a essa generalidade, faz-las alcanar 25 a esfera universal dos direitos. Em outras palavras, privilgios e carncias determinam a desigualdade econmica, social e poltica, contrariando o princpio democrtico da igualdade, de sorte que a passagem das carncias dispersas em interesse comuns e destes aos direitos a luta pela igualdade. Avaliamos o alcance da cidadania popular quando tem fora para desfazer privilgios, seja porque os faz passar a interesses comuns, seja porque os faz perder a legitimidade diante dos direitos e tambm quando tem fora para fazer carncias passarem condio de interesses comuns e, destes, a direitos universais. Diante dessas consideraes, podemos assinalar alguns obstculos para a cidadania e a democracia no Brasil. De fato, consideremos os traos principais da sociedade brasileira: Estruturada segundo o modelo do ncleo familiar, nela se impe a recusa tcita, e s vezes explcita, para fazer operar o mero princpio liberal da igualdade formal e a dificuldade para lutar pelo princpio socialista da igualdade real. As desigualdades so afirmadas como tais e as diferenas so vistas como desigualdades e, estas so consideradas inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, dos negros, ndios, migrantes, idosos) ou como monstruosidade (no caso dos homossexuais). As relaes sociais so hierrquicas ou verticais, norteadas pelas idias de mando e obedincia (as relaes sociais so sempre praticadas como subordinao de um inferior a um superior) e sustentadas pelas instituies sociais (famlia, escola, religio, trabalho), que alimentam, reforam e reproduzem nas classes populares o sentimento de serem subalternas. Disso resulta a naturalizao das desigualdades econmicas e sociais, do mesmo modo que h naturalizao das diferenas tnicas, postas como de-

sigualdades raciais entre superiores e inferiores, das diferenas religiosas e de gnero, bem como naturalizao de todas formas visveis e invisveis de violncia. Essas condies sociais determinam relaes polticas tambm hierrquicas ou verticais, que se realizam sob a forma do favor, da clientela ou da tutela, bloqueando tanto a prtica da representao como a da participao. Estruturada a partir das relaes familiares de mando e obedincia, nela se impe a recusa tcita, e s vezes explcita, de operar com o mero princpio liberal da igualdade jurdica e a dificuldade para lutar contra formas de opresso social e econmica. Para os grandes, a lei privilgio; para as camadas populares, represso. A lei no deve figurar e no figura o plo pblico do poder e da regulao dos conflitos, nunca definindo direitos e deveres dos cidados porque a tarefa da lei a conservao de privilgios e o exerccio da represso. Por esse motivo, as leis aparecem como incuas, inteis ou incompreensveis, feitas para serem transgredidas e no para serem transformadas. O poder Judicirio claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilgios das oligarquias e no dos direitos da generalidade social. Tem na indistino entre o pblico e o privado a forma de realizao da vida social e da poltica: no h percepo dos fundos pblicos como bem comum e porque a poltica oligrquica, a corrupo praticada pelos governantes e par26 lamentares considerada natural (ainda que eticamente seja tida como imoral, embora nunca seja percebida como anti-republicana e anti-democrtica, isto , nunca percebida politicamente). Tambm no h percepo social de uma esfera pblica das opinies, da sociabilidade coletiva, da rua como espao comum, assim como no h a percepo dos direitos privacidade e intimidade. Essa indistino reforada pela indstria poltica, com o emprego dos procedimentos da sociedade de consumo e de espetculo e que, para vender a imagem do poltico e reduzir o cidado figura privada do consumidor, produz a imagem do poltico enquanto pessoa privada, apresentando suas caractersticas corporais, preferncias sexuais, culinrias, literrias, esportivas, hbitos cotidianos, vida em famlia, bichos de estimao. Dispe de formas para impedir o trabalho dos conflitos e contradies sociais,

econmicas e polticas enquanto tais: a naturalizao das desigualdades e da violncia permite, de um lado, a afirmao de sua imagem como boa sociedade indivisa, pacfica, generosa e ordeira, e, de outro, considerar perigosas e violentas as prticas dos grupos, dos movimentos sociais e populares e das classes sociais, ou seja, as aes da sociedade auto-organizada e mobilizada por direitos. Por esse motivo, conflitos, contradies e lutas so caracterizados como crise e esta entendida como perigo e desordem. Dispe de meios para bloquear a esfera pblica da opinio como expresso dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagnicos. Esse bloqueio no um vazio ou uma ausncia, mas um conjunto de aes determinadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opinio para impedir a emergncia de um espao aberto de produo e circulao da informao. Essas aes fazem prevalecer a informao de mo-nica, veiculada pelos meios de comunicao de massa, que universalizam para todas as classes sociais os interesses e privilgios da classe dominante, operando como contra-informao, alimentando e reforando o processo de alienao social e poltica das demais classes sociais, identificadas com valores, idias, comportamentos e interesses dos dominantes. Esses obstculos cidadania e democracia fincam suas razes nas condies materiais de existncia e, portanto, naquilo que a marca da sociedade brasileira: a desigualdade econmica e social, a excluso poltica e cultural e a violncia como forma natural das relaes econmicas e sociais. Essa desigualdade se exprime na polarizao da sociedade entre o privilgio e a carncia, polarizao que tende a transformar-se em abismo sob os efeitos da economia e da poltica neoliberais, bloqueando a passagem esfera universal dos direitos pela mediao da generalidade dos interesses. A esses obstculos locais cabe acrescentar a presena de um fenmeno de escala mundial, qual seja, a despolitizao causada pelo neoliberalismo e que vem se legitimar em trs verses da ideologia contempornea: a ideologia da competncia, a ideologia da sociedade do conhecimento e a ideologia ps-moderna. 27 Ideologia da competncia. No capitalismo da segunda metade do sculo XX, a organizao industrial do trabalho, sob o comando da chamada gern-

cia cientfica, foi feita a partir de uma diviso social nova: a separao entre dirigentes e executantes. Os primeiros, que recebem educao cientfica e tecnolgica, so considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes so aqueles que no possuem conhecimentos tecnolgicos e cientficos, mas apenas sabem executar tarefas, sem conhecer as razes e as finalidades de sua ao. So por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer. Essa diviso se espalha por todas as instituies sociais sob a forma de uma ideologia, a ideologia da competncia, segundo a qual, os que possuem determinados conhecimentos tm o direito natural de mandar e comandar os demais em todas as esferas da existncia, de sorte que a diviso social das classes aparece sobredeterminada pela diviso entre os especialistas competentes, que mandam, e os demais, incompetentes, que executam ordens ou aceitam os efeitos das aes dos especialistas. Isso significa que a poltica considerada assunto de especialistas e que as decises so de natureza tcnica, via de regra secretas ou, quando publicadas, o so em linguagem perfeitamente incompreensvel para a maioria da sociedade. Dessa maneira, as decises escapam inteiramente dos cidados, consolidando o fenmeno da despolitizao da sociedade. Sociedade do conhecimento. Essa expresso pretende explicitar a constatao de que a sociedade contempornea no se funda mais sobre o trabalho produtivo e sim sobre o trabalho intelectual, ou seja, sobre a cincia e a informao. Sendo a informao um direito democrtico fundamental, essa ideologia afirma que a sociedade do conhecimento propcia sociedade democrtica e, dessa maneira, oculta o essencial, isto , que o conhecimento e a informao ou seja, a cincia e a tecnologia tornaram-se foras produtivas, passando a integrar o prprio capital, o qual passa a depender deles. Visto que o poder econmico se baseia na posse e na propriedade privada dos conhecimentos e das informaes, estes se tornaram secretos e constituem um campo de competio econmica e militar sem precedentes e, conseqentemente, bloqueiam aes e poderes democrticos, fundados na exigncia da publicidade da informao. Em outras palavras, a nova ideologia oculta que a sociedade do conhecimento aumenta a excluso social, poltica e cultural, im-

pede o conhecimento e a informao e, portanto, no propcia nem favorvel sociedade democrtica. Ideologia ps-moderna. Na fase industrial, o capital induzira o aparecimento das grandes fbricas, nas quais se tornavam visveis as divises sociais, a organizao das classes e a luta de classes, e ancorara-se na prtica de controle de todas as etapas da produo, da extrao da matria prima distribuio do produto no mercado de consumo, bem como nas idias de qualidade e durabilidade dos produtos do trabalho, levando, por exemplo, formao de grandes estoques para a travessia dos anos. 28 Em contrapartida, na fase dita ps-industrial ou da acumulao flexvel do capital, imperam a fragmentao e disperso da produo econmica (incidindo diretamente sobre a classe trabalhadora, que perde seus referenciais de identidade, de organizao e de luta), a hegemonia do capital financeiro, a rotatividade extrema da mo-de-obra, os produtos descartveis (com o fim das idias de durabilidade, qualidade e estocagem), a obsolescncia vertiginosa das qualificaes para o trabalho em decorrncia do surgimento incessante de novas tecnologias. Os aspectos econmicos e sociais da nova forma do capital so inseparveis de uma transformao sem precedentes na experincia do espao e do tempo ou a compresso espao-temporal1, isto , o fato de que 1 David Harvey. A condio a fragmentao e a globalizao da produo econmica engendram dois ps-moderna. So Paulo: Loyola, 1992. fenmenos contrrios e simultneos. De um lado, a fragmentao e disperso espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias eletrnicas e de informao, a compresso do espao tudo se passa aqui, sem distncias, diferenas nem fronteiras e a compresso do tempo tudo se passa agora, sem passado e sem futuro. Por outro lado, a fragmentao e a disperso do espao e do tempo condicionam sua reunificao sob um espao indiferenciado e um tempo efmero, ou sob um espao que se reduz a uma superfcie plana de imagens e sob um tempo que perdeu a profundidade e se reduz ao movimento de imagens velozes e fugazes. Pode-se falar em

acronia e atopia2, ou na desapario das unidades sensveis do tempo e do espao 2 Paul Virillo. O espao crtopolgico da percepo sob os efeitos da revoluo eletrnica e informtica. tico. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. A profundidade do tempo e seu poder diferenciador desaparecem sob o poder do instantneo. Por seu turno, a profundidade de campo, que define o espao topolgico, desaparece sob o poder de uma localidade sem lugar e das tecnologias de sobrevo. Vivemos sob o signo da telepresena e da teleobservao3, que impossibilitam diferenciar entre a aparncia e o sentido, o virtual e o real, 3 Idem. pois tudo nos imediatamente dado sob a forma da transparncia temporal e espacial das aparncias, apresentadas como evidncias. Ora a ideologia ps-moderna a comemorao entusiasmada dessa disperso e fragmentao do espao e do tempo, dessa impossibilidade de distinguir entre aparncia e sentido, imagem e realidade, do carter efmero e voltil de nossas experincias. Ela comemora o que designa de "fim da narrativa", ou seja, dos fundamentos do conhecimento moderno ou a afirmao moderna de idias como as de racionalidade, identidade, causalidade, finalidade, necessidade, totalidade e verdade, e afirma ser um mito a idia da histria como movimento de contradies e de mediaes em direo emancipao. Em outras palavras, toma a fragmentao econmica e social como um dado positivo e ltimo; toma a ausncia de sentido temporal como elogio da contingncia e do acaso; transforma a privatizao da existncia em elogio da intimidade e do desejo e refora a despolitizao da sociedade. Estamos, portanto, diante de duas sries de obstculos democracia social no Brasil: aquela decorrente da estrutura autoritria da sociedade brasileira, 29 que bloqueia a participao e a criao de direitos, e aquela decorrente das novas ideologias que reforam a despolitizao provocada, de um lado, pela fragmentao e disperso das classes populares (sob os efeitos da economia neoliberal sobre a diviso e organizao sociais do trabalho) e, de outro, pelo encolhimento do espao pblico e alargamento do espao privado pela ao

das trs ideologias contemporneas, que reforma a ao privatizadora do Estado neoliberal. A prtica democrtica participativa , portanto, um desafio e uma conquista. o tlos de um processo e no o seu ponto de partida, ainda que possamos mencionar inmeros exemplos de experincias participativas, sobretudo no plano do poder municipal. Queremos, porm, deixar aqui uma pergunta para reflexo: os anos 19701980, no Brasil, viram o surgimento de um sujeito poltico novo, o sujeito coletivo dos movimentos sociais e populares; os anos 1990, com a implantao do modelo neoliberal, retirou todos os suportes dos movimentos (desde a identidade, definida pela economia, at a ao, definida pelos direitos) e, em seu lugar, temos visto o surgimento das ONGs. Sabemos que duas dificuldades palmilharam o caminho dos movimentos sociais: de um lado, a prioridade das carncias sobre os direitos, isto , do particular e especfico sobre o universal; de outro, a durao efmera, um movimento cessando de existir depois de solucionada a carncia. Entretanto, essas dificuldades tendiam a ser suplantadas por duas vias principais: a primeira era dada pelo fato de que, embora dispersos, os movimentos sociais em seu conjunto ofereciam a figura de um sujeito poltico coletivo; a segunda, pelo fato de que a permanncia de um movimento social articulava-se sua insero num partido poltico, desde que este desse prioridade prtica da participao. A pergunta que deixamos aqui : as ONGs so a retomada dos movimentos sociais em novos termos, em consonncia com as novas condies histricas, ou so a substituio dos movimentos e, tornando-se interlocutoras exclusivas do poder pblico e canalizadoras exclusivas dos fundos pblicos, esto comprometidas com a despolitizao contempornea? So um obstculo real participao e democracia?

30 Democracia e participao: atores, prticas e discursos

31 Democracia e participao Silvio Caccia Bava Socilogo, diretor do Instituto Polis e membro do Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (CONSEA).

A grande riqueza deste encontro a capacidade de elaborao coletiva que temos. O prprio desenho do Seminrio deposita grande expectativa nas oficinas que vm depois. Ento, me disponho a problematizar algumas coisas, quem sabe complicar um pouco mais, e a pontuar algumas questes. A base para que se comece a fazer o raciocnio um diagnstico que est sendo desenhado a mltiplas vozes sobre o momento que estamos vivendo no Brasil, e de que governo esse que temos em nvel federal. Alguns pontos comeam a se tornar consenso em nosso campo. Penso que deles que deveremos partir para discutir as possibilidades, as prticas e a repercusso dos movimentos nessa conjuntura. A primeira questo que, independente de toda a trajetria de lutas sociais, organizao sindical, organizao dos movimentos sociais, de toda experincia de combate dos 30 anos da histria mais recente do pas, contraditoriamente, este governo est capturado pela lgica do pensamento nico. Por que digo isso? Porque a poltica praticada por esse governo, no sentido de "P" maisculo, quer dizer, olhando para a macroeconomia, para as estratgias, uma poltica de aprofundamento da estratgia anterior neoliberal, com todas as repercusses que conhecemos. Isso define um cenrio. O ciclo de financeirizao dessa poltica, o compromisso de pagamento do servio da dvida, o compromisso com a rentabilidade do setor financeiro, esto sendo as ncoras de organizao das polticas federais, e elas geram conseqncias. E estamos tratando s das conseqncias. No estamos tratando de considerar, analisar, aprofundar a nossa reflexo sobre o ncleo duro dessa poltica.

Essa poltica neoliberal, praticada desde o incio dos anos 1990, fragilizou a capacidade de interveno do Estado pela via das privatizaes, das terceirizaes. E eu no diria que isto se deu s em nvel federal. Ocorreu tambm em nveis estadual e municipal. Hoje em dia uma srie de polticas de servios que antes eram exercidas diretamente pelos governos municipais, pelos governos estaduais, foram terceirizadas, foram valorizadas como mercadoria e desvalorizadas como bens e servios de interesse comum. Essas mudanas ocorreram tambm pela reduzida capacidade de controle do Estado sobre as empresas contratadas e pela falta de compromisso com a qualidade dessas polticas. 33 Neste diagnstico tambm preciso considerar um processo que foi importante no princpio da dcada de 1990, de descentralizao da gesto das polticas sociais para os Estados e municpios, mas que foi interrompido em 1994. A partir de ento, o que se v a reconcentrao da receita pblica, em esfera federal. uma reconcentrao de poderes. Uma trajetria anterior de mobilizao social, impulsionada pela elaborao da atual Constituio Federal e que se expressa em vrios momentos como fora da sociedade civil organizada, do campo poltico democrtico e popular, criando novas institucionalidades esse movimento arrestado a partir de meados dos anos 1990 por uma poltica que vai na contramo da construo dos direitos, na contramo de um processo de redistribuio de riqueza, e que restringe os espaos de participao. Se este cenrio um ponto do qual podemos partir como referncia, existem algumas questes que so diretamente referidas aos setores organizados da sociedade civil, ou seja, diretamente referidas a ns. Como operamos neste cenrio e que conseqncias trouxe este novo governo, em que muitos dos que l esto estiveram conosco em mobilizaes sociais, lado a lado, como companheiros? O atual governo tem uma presena forte de representao sindical nos Ministrios, tem uma presena forte de lideranas populares, tem uma presena marcante de dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT), tem todo um conjunto de identidades que esto sendo desafiadas, na sua compreenso,

pela continuidade das polticas a que me referi. Um dos temas que entendo ser da maior importncia o da autonomia e dependncia dessas entidades, dessas representaes, desses movimentos, frente ao governo. Na questo da autonomia e da dependncia, a nova conjuntura tem duas novidades, que so elementos de problematizao da nossa situao e dos desafios que ela nos coloca. A primeira delas que durante o processo de redemocratizao do pas, o Partido dos Trabalhadores foi uma espcie de vocalizao poltica das demandas dos movimentos sociais, uma espcie de intrprete na esfera da poltica nas Cmaras Municipais, nas Assemblias Legislativas, no Congresso Nacional do que so as demandas, as posies, as proposies dos movimentos e deste campo poltico popular e democrtico. E hoje estamos assistindo a uma adeso, uma colagem do partido ao governo, no sentido de que ele no defende e no expressa uma poltica diferenciada daquela praticada pelo governo. Isso um problema, porque uma das mediaes importantes para transformar as questes sociais em proposies no campo das polticas pblicas, para democratizar a gesto, desapareceu. O problema traz tambm uma discusso mais ampla, questiona as formas de representao democrtica do nosso regime poltico, a sua prpria legitimidade. Nele os partidos tm papel importante e, nesse caso, nesse momento, estamos assistindo a um processo no qual essa vocalizao das demandas sociais desde 34 o tema do salrio mnimo at muitos outros est sendo bloqueada por um alinhamento do PT e seus aliados com o governo. A segunda questo o questionamento do papel que hoje desempenham as centrais sindicais, especialmente a Central nica dos Trabalhadores (CUT). H que se reconhecer uma relao estreita entre dirigentes sindicais e quadros de primeiro escalo do governo. No estaro essas centrais capturadas pela lgica de apoio ao governo? No estaremos assistindo a uma perda da sua independncia, da sua autonomia, frente ao governo? Num cenrio como este, a vocalizao das demandas sociais, das perspectivas de mudana social, dos posicionamentos a que estou chamando de campo poltico democrtico e popular, sero feitas por quem? Me parece que elas se

transferem para um conjunto de organizaes mais difusas. Penso que vamos assistir uma valorizao crescente do papel das redes e dos fruns que se organizam em defesa da cidadania, na perspectiva da politizao do social e da socializao da poltica. Redes e fruns que so um fenmeno recente e se mostraram espaos importantes que congregam o diverso, o plural, o diferenciado, mas que se organizam em torno de plataformas sociopolticas. Vejam, por exemplo, o Frum Nacional da Reforma Urbana. Ele rene movimentos, federaes de associaes comunitrias, associaes profissionais, sindicatos, ONGs. Em vrios momentos, o FNRU teve uma expresso muito importante na cena poltica. Tomando como referncia os ltimos acontecimentos, teve papel destacado na aprovao do Estatuto da Cidade, na criao do Ministrio das Cidades, nas conferncias municipais, estaduais e nacional das cidades, na formao do Conselho Nacional das Cidades, na aprovao pelo Congresso do Fundo Nacional de Moradia Popular. Outros fruns e redes tiveram igualmente papel central nos ltimos acontecimentos. O Frum Brasileiro de Segurana Alimentar e Nutricional participou da formulao do Programa Fome Zero, da 2 Conferncia de Segurana Alimentar e Nutricional e da composio do atual Conselho Nacional de Segurana Alimentar (CONSEA). Uma das primeiras vezes em que fui impactado pelo significado dessas redes e fruns foi durante a Rio-92, quando a sociedade civil foi capaz de apresentar um diagnstico das condies ambientais do Brasil melhor do que o do governo, mais tcnico, mais competente, e com um direcionamento poltico mais identificado com as aspiraes democrticas. Isso foi uma demonstrao de que, apesar de toda a fragilidade, esse campo de articulao em redes permite um processo de elaborao social, um conjunto de formulaes que permitam a construo no de uma identidade no sentido de que todos sejam iguais, mas de plataformas de ao comum num mundo que muito diverso, se reconhece como diverso e se valoriza como diverso. Nesse novo cenrio, fico pensando em todo o esforo, do qual participamos, de criao de novas esferas pblicas orientadas para intervir nas polticas e na gesto pblica. Refiro-me aos Conselhos de Gesto de Polticas Pblicas, ao Oramento Participativo. Eu penso que o fato de existirem hoje cerca de 27 mil

35 conselhos de gesto paritrios e deliberativos, principalmente em nvel municipal, uma construo democrtica, sem dvida uma conquista da sociedade civil. Precisamos valorizar esses espaos enquanto resultado de lutas e conquistas, espaos construdos para a participao da cidadania. Eles surgiram porque o sistema poltico no foi capaz de absorver os novos atores coletivos da sociedade civil que demandavam sua entrada na cena pblica com mais fora. Mas cometemos um erro de interpretao, se podemos chamar assim. Ignoramos que esses espaos tm uma dimenso de disputa. Acreditamos que fortalecendo esses espaos de participao, esses novos espaos pblicos, j estaramos contribuindo para a democratizao das polticas e universalizao dos direitos. Digo que cometemos um erro porque, sendo espao de disputa, preciso ter cacife para entrar no jogo e fazer a disputa. Deixamos para segundo plano o fortalecimento das entidades, dos movimentos, das formas de representao junto aos bairros, s comunidades, para que aquele conselheiro l presente tivesse capacidade de mobilizao que o "empoderasse" naquele espao de disputa. Tenho a impresso de que uma avaliao como esta traz implicaes, no de uma volta s bases como regresso, volta ao passado, mas como aprendizado que estamos vivendo com esse novo governo, de que a mudana no vem s pelo voto, a mudana no vem s pela afirmao dos novos espaos pblicos de disputa, ou pela presena no Parlamento. A mudana vem desde que a sociedade seja capaz de se mobilizar e garantir que nesses espaos passem as decises sobre as polticas pblicas, passem as decises sobre os recursos pblicos, sobre as estratgias que vo orientar a ao do Estado. Esta postura questiona um Estado que ns no queremos mais mnimo para tratar das questes sociais. Queremos um Estado forte, regulador e democrtico, muito diferente do atual, que trata as demandas sociais de uma perspectiva assistencialista e transfere para a lgica do mercado, para as empresas, e para um, assim chamado, terceiro setor, o enfrentamento das questes sociais. Nossa viso de valorizao do Estado como regulador, como interveniente direto nas polticas pblicas, como instrumento de redistribuio da riqueza e conteno

da voracidade do capital. No podemos dissociar a questo da participao cidad das instituies democrticas que nosso sistema possui. to importante agir no Parlamento e lanar mo dos instrumentos jurdicos nossa disposio quanto ocupar os espaos dos conselhos de gesto. Poucas vezes lanamos mo de uma ao civil pblica para questionar uma poltica, uma alocao de recursos. H instrumentos nossa disposio que ns no usamos. Se essa omisso expressa o entendimento de que recusamos a disputa democrtica no plano do Judicirio, eu diria que isso um erro. Se isso expressa, ainda, inexperincia em exercer cidadania nesse espao, ento temos que nos capacitar para isso. Da mesma forma, me surpreendeu, por exemplo, a rapidez com que a Associao Nacional de Transportes Pblicos conseguiu constituir uma bancada 36 parlamentar multipartidria em defesa do transporte pblico, assim como existe uma bancada em defesa dos direitos da criana e do adolescente e de vrios outros temas que se colocam no Congresso Nacional, e que so vocalizados por parlamentares que, procurados por representaes da sociedade civil, se identificam com aquela causa e se dispem a fazer a defesa dos projetos de lei, das alocaes de recursos durante a definio do oramento. H a uma sinalizao de que a participao no pode estar contida, restrita, limitada, s novas esferas pblicas. Um outro desafio a fragmentao provocada pela multiplicidade dos espaos de participao. A arquitetura atual destas novas institucionalidades criadas para a participao fragmenta nossa viso do conjunto e nossa possibilidade de interveno coletiva. Se no me engano, a Associao Brasileira de Organizaes No-Governamentais (ABONG) foi convidada para estar em 17 Conselhos Nacionais, at da rea de turismo. Como que vamos nos articular frente a essa fragmentao? Existem municpios que tm 34 conselhos de gesto, alguns deles criados por fora de leis federais, outros criados pela lei orgnica municipal. Est na moda criar conselhos. Eles do a imagem democrtica ao governo, mas no limitam sua capacidade de deciso. Porque nesses conselhos no esto passando as decises, no est passando o oramento. Ento, de novo, quero declarar que considero a criao dos conselhos uma conquista, mas eles

precisam ser transformados no lugar da disputa, e no conheo governo que abra mo do seu poder sem ser interpelado pela sociedade civil. No podemos atribuir aos governantes uma tarefa que da sociedade civil. Quero ainda, nesse ponto, fazer um comentrio. a segunda vez, aqui em So Paulo, que ocorre uma situao como essa. Lembro quando a Luiza Erundina ganhou as eleies para a prefeitura municipal. Os movimentos populares, as ONGs, todo um conjunto de foras que era a base de sustentao da sua candidatura e eleio parou para ver o governo fazer. "Agora ns j estamos l", diziam. "Agora eles que faam, agora ns vamos nos beneficiar disso". De alguma maneira, isso ocorre hoje outra vez, na relao com o governo federal. E justamente o que no deveramos fazer. Porque a definio das linhas de ao do governo a resultante de um conjunto de disputas. Se este um jogo de foras, no momento em que o campo poltico popular e democrtico paralisa, o espao para influenciar no desenho das polticas ocupado pelos setores conservadores. Essa omisso refora as polticas que identificamos como polticas de excluso social, de aumento da desigualdade. O raciocnio do qual precisamos lanar mo talvez seja o contrrio: para garantir que este governo seja coerente com a sua plataforma eleitoral e possa operar as mudanas e as rupturas necessrias para que haja uma democratizao da democracia e uma redistribuio da riqueza, no podemos deix-lo s. preciso ter presena firme, contnua, das representaes coletivas que defendem essas mudanas sociais na nossa sociedade, nas disputas pela orientao estratgica das aes de governo. No se trata de uma discusso de cooptao 37 ou de oposio, mas sim de reconhecer que nesse campo de disputas, em que se medem foras, o acmulo depende da capacidade do campo poltico democrtico e popular defender mudanas e ser capaz de se mobilizar para isso. Quero ainda mencionar dois pontos. Nos parece cada vez mais fundamental tratar o ncleo duro das polticas do governo, as questes econmicas. Se no modelo neoliberal existe dissociao entre a economia e o social, entre a poltica e a economia, exercer a crtica sobre esse modelo significa tambm questionar o inquestionvel.

Vocs leram o jornal ontem e hoje e est sinalizado um aumento nas tarifas dos telefones que da ordem de 16%. Se observarmos a curva de elevao dos preos da energia eltrica, do gs de cozinha, do telefone, enfim, de coisas que so essenciais no mundo urbano, vamos verificar que essa curva muito superior elevao da inflao. Isso ocorre porque essas empresas privatizadas fizeram contratos no momento da privatizao que lhes asseguram rentabilidade, em dlar, dos seus investimentos. Essas empresas no correm risco algum em seus investimentos aqui no Brasil. Elas esto avalizadas pelo governo e autorizadas a aprofundar a desigualdade social praticando preos que a grande maioria, nesse momento de desemprego e recesso, no tem como responder. quando o cidado mais precisa das polticas pblicas. Isso precisa ser questionado. Tocar o ncleo duro da economia significa, por exemplo, entrar na discusso da dvida externa, que considero uma questo essencial. Temos alguns exemplos no mundo, ndia, China, agora a Argentina, que no se submeteram s imposies do Fundo Monetrio Internacional (FMI). Recusaram que esta fosse a nica alternativa. Acredito que tenhamos pela frente um cenrio que, cada vez mais, sinalize para esse movimento de questionar o que estou chamando de inquestionvel. Como que se comps essa dvida externa? Por que esse montante de pagamento do seu servio? Se no estancarmos a evaso desses recursos para fora do pas, no h alternativa de desenvolvimento. No toa que esse governo ainda no apresentou um projeto de desenvolvimento. No h recurso para isso nesse modelo. O que estou querendo sinalizar que, ao tocar na questo do ncleo duro, surgem campanhas que me parecem importantes. Por exemplo, a questo da auditoria da dvida externa. preciso tornar pblicas as posturas crticas a esse governo e apresentar alternativas. Como o prprio Chico de Oliveira enuncia em carta aberta ao Presidente da Repblica divulgada nos jornais h pouco tempo, em que ele diz: "Senhor Presidente, reduza o supervit primrio a 2% do PIB e, com o excedente porque o supervit primrio hoje j passa dos 5% , invista no social, invista no desenvolvimento, invista na criao de um mercado interno, invista, enfim, no brasileiro". Essas so questes que ns tambm no

nos acostumamos a questionar. Devemos comear a discutir o papel das agncias reguladoras de servios pblicos, porque elas, de alguma maneira, esto capturadas pelos interesses das grandes corporaes que compraram as empresas pblicas. E, de novo, eu acho 38 que precisamos olhar em volta. H mais de dez anos, o Uruguai organizou um plebiscito que deveria decidir se as empresar pblicas uruguaias deveriam ser privatizadas ou no. Nesse plebiscito a populao do Uruguai disse "no, ns no vamos privatizar as empresas que nos garantem os servios essenciais". E, naquela poca, o Uruguai no privatizou. O que demonstrou a possibilidade de se tomar uma deciso dessa ordem. Ficaremos passivos frente ao aumento exorbitante das tarifas dos servios pblicos, muito superiores inflao, ou nos mobilizaremos, por exemplo, para indexar estes aumentos ao aumento do salrio mnimo? H questes tambm que dizem respeito ao cumprimento das nossas regras democrticas. Digo isso em referncia execuo oramentria da Unio. No Congresso Nacional, o Oramento Geral da Unio (OGU) debatido durante meses. A se estabelecem as presses, os jogos de interesse, a defesa das verbas para as polticas pblicas. E depois de muito debate, muitos acordos, finalmente aprovado o OGU do ano seguinte. Depois assistimos, escandalizados muitas vezes, que as verbas asseguradas para polticas pblicas essenciais no foram liberadas pelo governo. O que significa ter se empenhado tanto no desenho desse oramento? Novamente, surge o questionamento do inquestionvel. O oramento tem que ser mandatrio, ele no pode ser apenas indicativo. Um oramento mandatrio quer dizer que uma vez definidos os montantes para cada poltica, ele deve ser executado naquele valor, o que transforma a discusso do oramento numa discusso de disputa democrtica de recursos, que hoje no ocorre por causa dessa grande liberdade que o Banco Central tem, que o Ministrio da Fazenda tem, de contingenciar as verbas das polticas. Para finalizar, quero entrar no tema da educao para a cidadania. Mais uma vez o Chico de Oliveira nos ensina o caminho quando diz: "precisamos nos multiplicar enquanto atores que defendem esse campo poltico popular

e democrtico; se no nos multiplicarmos, no teremos peso para influir nas mudanas que preciso acontecer". Essa multiplicao passa por esforos que vo desde introduzir na educao primria matrias em torno do significado da cidadania e dos direitos que ns no temos, at desenvolver atividades de formao com a juventude, com as entidades, associaes, com os atores coletivos, com os conselheiros, com os movimentos, que permitam ir desconstruindo essas verdades intocveis s quais eu me referi, e permitam abrir um debate pblico sobre quais alternativas so as melhores para que o governo consiga redistribuir a riqueza e universalizar direitos. No sei se todos tm isso presente, mas as nossas bandeiras, por exemplo, de universalizar uma poltica de sade de qualidade, ou de garantir educao de qualidade para todos, ou de erradicar a fome em nosso pas, essas bandeiras so impossveis de serem alcanadas neste atual modelo de desenvolvimento. So bandeiras que normalmente usamos, mas preciso que tenhamos a cincia de que numa poltica para poucos, num oramento orientado para atender, 39 principalmente, o que o Helio Gaspari chama "andar de cima", essas polticas no se universalizam. Ento, ter cincia de que essas polticas no se universalizam neste modelo atual significa que, ao demandarmos esses direitos, demandamos mudana do modelo, demandamos a criao de um novo projeto de desenvolvimento para garantir essa possibilidade da universalizao. Finalmente, queria dizer o seguinte: tenho sensao de que depois de um ano e meio de governo, ou pouco mais, muitos atores da sociedade civil esto se perguntando "e agora, o que faremos? como enfrentamos essa nova situao?" De alguma maneira, comeamos a perceber algumas sinalizaes de que essa paralisia vai sumindo. Comeam a ocorrer manifestaes no campo do funcionalismo pblico, ocupaes rurais e urbanas, greves nas universidades. Estamos comeando a ter manifestaes de vrias ordens, que dizem da possibilidade de uma retomada das mobilizaes. Penso, inclusive, que existe todo um esforo, uma produo intelectual, de anlises, por parte dos setores conservadores, que buscam desqualificar as capacidades do campo poltico popular e democrtico atuar na conjuntura. Em

seus argumentos, esses pensadores destacam a fragmentao dos movimentos, sua dificuldade em se articular, se expressar politicamente. Seus comentrios demandam dos movimentos sociais uma unicidade e uma capacidade de mobilizao que nunca existiu. Uma leitura atenta de vrios momentos da histria universal e brasileira registra que h momentos em que certa demanda, certa campanha, certo tipo de enfrentamento, de conflito, um momento eleitoral, capaz de galvanizar, aglutinar, somar o que diferente. O prprio momento das ltimas eleies presidenciais no Brasil foi expresso de fora da cidadania. Outro momento recente foi o das greves do incio dos anos 1980, que mudaram o cenrio poltico brasileiro. Se observarmos os pases nossa volta, Argentina, Bolvia, Peru, Venezuela, veremos a fora da cidadania modificando o cenrio poltico e abrindo novas perspectivas, muitas delas frustradas depois. Acredito que estejamos superando o imobilismo e abrindo caminho para novas mobilizaes. Mas elas correm o risco de serem apenas grandes tremores, se no tivermos claro quais so os objetivos, os pontos programticos, o que precisamos conquistar nesse processo. Falo da importncia de produzir uma anlise crtica de nossa realidade, gerar propostas de novas polticas e interpretar corretamente os sinais de insatisfao e de mobilizao.

40 Dilemas e desafios da governana democrtica Orlando Alves dos Santos Jr. Socilogo, doutor em Planejamento Urbano, diretor da Ong FASE-Solidariedade e Educao, integrante da coordenao do programa Observatrio das Metrpoles

- FASE/IPPUR/UFRJ.

No que se refere democracia e participao, preciso reconhecer novas e velhas prticas. primeira vista, parece possvel afirmar que se desenvolve no Brasil uma nova cultura, vinculada tanto dimenso dos direitos sociais inscritos na Constituio Federal de 1988, como participao de uma pluralidade de atores sociais com presena na cena pblica. Desde a dcada de 1990, o papel exercido pelo poder pblico e a atuao dos novos atores sociais vm reconfigurando os mecanismos e os processos de tomada de decises. Isso faz emergir um novo regime de ao pblica, descentralizado, no qual so criadas novas formas de interao entre o poder pblico e a sociedade, atravs de canais e mecanismos de participao social, principalmente em torno dos conselhos de gesto. Constata-se a emergncia, sobretudo no plano local, de novas formas de interao entre governo e sociedade, o que permite identificar nos municpios brasileiros a adoo de padres de governo, pelo menos do ponto de vista formal e institucional, baseados na governana democrtica. Mas, de fato, assistimos em todos os nveis de governo a abertura de canais que ampliam a participao cvica da sociedade. Assim, queremos nesse artigo discutir algumas idias sobre a democracia e a participao na perspectiva da emergncia desse novo padro de governo, denominado aqui de governana democrtica. importante comear definindo o que entendemos por democracia. Partimos da concepo na qual um regime democrtico tem duas dimenses fundamentais1. Primeiro, um regime representativo de governo em que o nico 1 Nossa definio est baprocedimento de acesso s principais posies de governo ocorre por meio de seada em O'DONNELL, Guillermo. "Teoria Democrtica eleies competitivas, o que implica nos direitos de votar e ser votado garantidos e Poltica Comparada". In: Dados - Revista de Cincias a todos os indivduos. Segundo, um regime em que o sistema legal garante Sociais. Rio de Janeiro, v. 42, n. 4, p. 577654, 1999.

algumas liberdades e direitos fundamentais que definem a cidadania poltica com base na constituio de agentes , que tambm parte constitutiva da cidadania civil e social atribuda pelo mesmo sistema legal. A prpria atribuio 41 dessas liberdades e a definio da cidadania poltica geram esferas pblicas cujas bases so as associaes e organizaes da sociedade civil que, na interao com o poder constitudo, produzem a legitimidade para o exerccio do poder. Nossa concepo de democracia permite afirmar que a efetividade da dinmica democrtica na forma da competio institucionalizada pelo poder (eleies para ocupao dos cargos de governo) e da garantia dos direitos de cidadania poltica (liberdades associadas) depende de pelo menos dois aspectos: condies de exerccio efetivo dos direitos de cidadania (grau de incluso social e existncia de cultura cvica) e conformao de esferas pblicas de interao entre governo e sociedade (grau de participao cvica). A ampla incluso e a alta participao so processos que dizem respeito s condies de funcionamento ou seja, a efetividade da dinmica democrtica e envolvem uma grande subjetividade na sua definio porque esto ligados viso substantiva da democracia. Alis, essa indeterminao e a disputa simblica em torno dessa definio fazem parte da prpria dinmica democrtica. Se podemos constatar, sob o ponto de vista institucional, a existncia de um novo modelo da governana, podemos afirmar que o grau de desigualdades sociais que marca a sociedade brasileira gerador de situaes que bloqueiam ou dificultam as possibilidades de ampla habilitao/incluso social requeridas para a instituio de governos baseados nesse modelo de governana. Assim, entendemos que o enfrentamento das desigualdades sociais condio fundamental para a participao e para a efetividade da democracia no Brasil. Alm disso, como j dissemos, a concepo de democracia qual nos referimos requer um contexto social de esferas pblicas mobilizadas, expresso em uma sociedade civil autnoma e na participao cvica interagindo com as instituies de governo. Desta forma, gostaramos de levantar algumas consideraes em

relao s prticas governamentais e dinmica associativa brasileira. Em relao s instituies governamentais, percebemos que apesar de todos os avanos a cultura que predomina no Poder Executivo e no Poder Legislativo ainda constitui enorme obstculo democratizao da gesto pblica. Nesse plano, parece possvel afirmar que os maiores avanos esto concentrados nos governos municipais, onde identificamos o surgimento de inmeras experincias de participao, em que se destacam os conselhos municipais, as experincias de oramento participativo e os congressos das cidades. Em relao ao governo federal, a questo parece mais complexa. O governo Lula, tal qual o governo Fernando Henrique Cardoso, adota no seu discurso e na sua ao a perversa diviso entre a esfera econmica e a esfera social. Nas reas relacionadas poltica econmica, observam-se a inexistncia de canais de participao da sociedade e a resistncia em discutir outras diretrizes que alterem o atual modelo, de clara inspirao neoliberal. O nico canal de dilogo com a sociedade em torno da poltica econmica o Conselho de Desenvolvimento Econmico e Social (CDES), de carter consultivo, no qual esto presentes os 42 atores empresariais, sobre-representados, e os atores sindicais, sem incorporar na sua composio representante do movimento popular. O mais grave que a poltica econmica considerada o centro de todas as aes do governo, detendo a ltima pa