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Programa de Pós Graduação em Psicologia. Curso de Mestrado em Psicologia. Universidade São Marcos.
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AMILTON CARLOS CAMARGO
TEMPO DE FALAR E TEMPO DE ESCUTAR: A PRODUÇÃO DE SENTIDO EM UM GRUPO
TERAPÊUTICO
UNIVERSIDADE SÃO MARCOS
2005
2
AMILTON CARLOS CAMARGO
TEMPO DE FALAR E TEMPO DE ESCUTAR: A
PRODUÇÃO DE SENTIDO EM UM GRUPO TERAPÊUTICO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós -Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Fundamentos Psicossociais do Desenvolvimento Humano. Linha de Pesquisa: Identidade – Formação e Transformação. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Franklin Ferreira.
UNIVERSIDADE SÃO MARCOS
2005
3
TEMPO DE FALAR E TEMPO DE ESCUTAR: A PRODUÇÃO DE
SENTIDO EM UM GRUPO TERAPÊUTICO
AMILTON CARLOS CAMARGO
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________________
PROFª DRª MARILENE APARECIDA GRANDESSO
_________________________________________________________________________ PROF. DR. ANTONIO DA COSTA CIAMPA
__________________________________________________________________
PROF. DR. RICARDO FRANKLIN FERREIRA (Orientador)
Dissertação defendida e aprovada em _______/______/______
4
Às mulheres participantes desse trabalho que foram tão generosas e prontamente compartilharam comigo dos seus sentimentos e sentidos gerados em suas experiências cotidianas e de outros tantos produzidos na nossa interação, a partir da qual pude sentir a força e a vontade de „dar certo‟ que elas carregam em si.
5
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Ricardo Franklin Ferreira, pela sábia interlocução e, principalmente, pela
paciência, compreensão e incentivo com que soube conduzir esse processo, muitas vezes
angustiante, me fazendo prosseguir.
À minha mentora e tutora, Prof. Dra. Lígia Caran Costa Corrêa, com a qual dei os primeiros passos no
exercício da docência e que se transformou numa grande amiga, mesmo quando estamos fisicamente
distantes.
À minha mãe, Conceição, ao meu pai, Ailton, e aos meus irmãos, Regina, Rogélia, Ailton, Roberto e
Ricardo pelo amor, incentivo e valorização pessoal que sempre recebi.
Ao Pepe e, principalmente, ao Pipoca pela companhia fiel que não me deixou só nas madrugadas.
Ao Prof. Dr. Pedrinho Guareschi pelas contribuições realizadas na banca de qualificação.
À Profa. Dra. Marilene Grandesso que conheço há tão pouco tempo, mas com quem muito já aprendi
e tenho a aprender.
Ao Prof. Dr. Antônio da Costa Ciampa pelas criativas contribuições ao longo da pesquisa e pela
participação na banca examinadora.
À Profa. Dra. Marisa Todescan Baptista, Coordenadora do Núcleo de Identidade, pela postura sempre
comprometida e dedicada.
Ao Prof. Dr. José Roberto Heloani pelas conversas e sugestões inteligentes, aliadas a sua
disponibilidade de sempre.
A todos os professores do programa de pós -graduação em psicologia da Universidade São Marcos.
À Luciane Miranda de Paula, Vice-reitora Acadêmica e de Relações Internacionais na Universidade
São Marcos, pelo apoio, incentivo e confiança depositados em mim, sem a qual provavelmente este
trabalho não teria sido realizado.
Aos colegas do Programa de Pós-graduação em Psicologia pela companhia nessa trajetória,
deferência especial à Carmem, à Lucimara e à Thais, companheiras no compartilhar das angústias e
na retomada do caminho.
À Tati e ao Rodrigo, amigos queridos, pela leitura generosa do trabalho, pelas dicas e pelas
interlocuções apaixonadas.
Aos amigos Cris e Gildo, Lilian e Fábio pelas idéias compartilhadas e pelos momentos de
descontração e „recarga de bateria‟ em que me receberam no seu „Oásis Embu-aba‟ apartado da
costumeira agitação paulistana.
Às amigas Joice, Priscila, Simone e Rita que estão sempre presentes na minha vida e muito me fazem
bem.
À Ivone, nova parceira intelectual, que esbanja generosidade aos quatro cantos, com quem tanto
tenho aprendido em tão pouco tempo.
À Miriam Rivalta Barreto pela prontidão e carinho no intercâmbio do conhecimento por ela construído.
Aos meus alunos que sempre me despertam para o novo, a partir das mais comuns ou inusitadas
„provocações‟.
E finalmente, a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, estiveram comigo na construção deste
caminho e que não estão aqui nominalmente mencionadas.
6
SUMÁRIO
RESUMO .......................................................................................................................... 7 ABSTRACT ....................................................................................................................... 8 1. APRESENTAÇÃO ......................................................................................................... 9
2. INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 18 2.1. Aproximações com a Realidade Social Brasileira ........................................ 18 2.2. O Psicólogo Brasileiro e sua Atuação Profissional nas Comunidades ......... 22
2.3. Terapia Comunitária ...................................................................................... 27 2.3.1 Objetivos e Procedimentos da Terapia Comunitária ...................... 35
2.3.1.1.Objetivos da TC .............................................................. 35
2.3.1.2. Procedimentos da TC ................................................... 36 1
a fase – O Acolhimento ................................................. 37
2a fase – Escolha do Tema ............................................ 38
3a fase – Contextualização ............................................ 39 4a fase – Problematização.............................................. 40 5a fase – Rituais de Agregação
e Conotação Positiva .........................................
41 6a fase – Avaliação ........................................................ 42
2.4. Comunidade .................................................................................................. 43
2.5. Identidade .................................................................................................. 59
2.6. O Conceito de Relação ................................................................................. 61 2.7. Síntese das Discussões Realizadas ............................................................. 64
3. JUSTIFICATIVA ............................................................................................................ 69 4. OBJETIVOS DA PESQUISA ........................................................................................ 71 5. PROBLEMA DA PESQUISA E QUESTÕES NORTEADORAS .................................... 71
6. MÉTODO ...................................................................................................................... 73 6.1. Participantes .................................................................................................. 76 6.2. Instrumentos e Procedimentos ...................................................................... 77
6.2.1. Entrevistas ..................................................................................... 78 6.2.2. Transcrição das Entrevistas .......................................................... 80 6.2.3. Levantamento de Categorias, a partir dos
Discursos das Próprias Participantes .........................................
80 6.2.4. Articulação das Categorias com as Referências
Teóricas Discutidas na Introdução ............................................. 81
7. PROPOSTA DE ANÁLISE DOS RESULTADOS .......................................................... 81 8. COMPREENSÕES DOS DISCURSOS ........................................................................ 83
8.1. Síntese da Compreensão da Fala de Ana .................................................... 83
8.2. Síntese da Compreensão da Fala de Joana ................................................. 84 8.3. Síntese da Compreensão da Fala de Ivone .................................................. 85 8.4. Síntese da Compreensão da Fala de Lídia ................................................... 89
8.5. Síntese Geral das Falas das Participantes ................................................... 91 9. RESULTADOS .............................................................................................................. 93
9.1. Relações .................................................................................................. ...... 97
9.2. Autonomia Pessoal e Sentido de Autoria ...................................................... 104 9.3. Rede Social de Solidariedade ....................................................................... 109 9.4. A Fala e a Escuta .......................................................................................... 113
9.5. Considerações sobre a Prática ..................................................................... 121 10. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................ ........................................................ 127 11. ANEXOS .................................................................................................................. ... 129
Anexo 1 - Questionário ......................................................................................... 129 Anexo 2 - Entrevista ............................................................................................. 130 Anexo 3 - Recorte de Procedimento para Análise dos Dados . ............................ 166
12. REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 178
7
RESUMO
CAMARGO, Amilton Carlos. Tempo de Falar e Tempo de Escutar: a Produção de Sentido em um Grupo Terapêutico. São Paulo, 2005. 159 p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade São Marcos.
O objetivo deste estudo foi compreender a produção de sentido em um grupo terapêutico a partir das experiências de seus participantes. Para tal utilizou-se do depoimento de algumas participantes de uma prática denominada terapia comunitária que se propõe ao atendimento de populações de baixa renda, voltado ao cuidado e à atenção primária à saúde. Participaram do estudo quatro mulheres que cederam uma entrevista em grupo, relatando as suas experiências cotidianas e as formas de enfrentamento das mesmas a partir de seus ingressos nos grupos de terapia. A análise qualitativa dos depoimentos, sob enfoque fenomenológico, seguiu algumas das referências propostas por Mary Jane Spink no seu método de análise da produção de sentido a partir de práticas discursivas. Após a análise dos resultados, verificou-se que o Grupo de Terapia possibilita mudanças significativas para as participantes. A interpretação dos elementos do vivido sugere a ampliação da percepção das participantes. Percebeu-se a manifestação de atitudes que sugerem a aceitação dos próprios sofrimentos por parte das participantes, a partir da possibilidade de comparação dos sofrimentos destas com aqueles narrados no grupo pelas demais participantes. Foi também possível concluir que, através da identificação entre os membros do grupo, as participantes desenvolvem sentimentos de empowerment (‘empoderamento’). Além disso, os resultados sugerem que a passagem pelo grupo promove um redimensionamento nas possibilidades do exercício de fala e de escuta das participantes e apontam para a necessidade de problematização futura com referência a criação de um espaço a partir do qual estas participantes pudessem aprofundar suas narrativas cotidianas.
Palavras-chave: Terapia Comunitária, produção de sentido, relações interpessoais, dialogia, identidade
8
ABSTRACT
CAMARGO, Amilton Carlos. Time to speak and time to listen: the sense production in a therapeutical group. São Paulo, 2005. 159 p. Master‟s Degree Thesis. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade São Marcos. The objective of this study was to comprehend the sense production in a therapeutical group from the experiences of its participants. For such it was used the deposition of some participants of a practical called communitarian therapy that proposes the attendance of populations of low income, directed to the care and the primary attention to the health. Four women participated in the study who had yielded an interview in group, telling their daily experiences and the forms of confrontation of the same ones from their ingressions in the groups of therapy. The qualitative analysis of the depositions, under phenomenological focus, followed some of the reference proposals by Mary Jane Spink in her analysis method of the sense production from the given discourse practices. After the analysis of the results, it was verified that the Group of Therapy makes possible significant changes to the participants. The interpretation of the lived elements suggests the amplification of the participants´ perception. However, the manifestation of attitudes that suggests the acceptance of their own sufferings was noticed, from the comparisons of their sufferings to the other participants´sufferings. It was also possible to conclude that, through the identification among the members of the group, the participants develop feelings of empowerment ('empoderamento'). Moreover, the results suggest that the passage through the group promotes the remeasurement in the possibilities of the speaking and listening exercises of the participants and they point to the need of future question with reference to the creation of a space from which these participants could deepen their daily narratives. Keywords: Communitarian Therapy, sense production, interpersonal relations, dialogy, identity
9
TEMPO DE FALAR E TEMPO DE ESCUTAR: A PRODUÇÃO DE
SENTIDO EM UM GRUPO TERAPÊUTICO
A auto-suficiência é incompatível com o
diálogo. Os homens que não têm humildade, ou a perdem, não podem se aproximar do povo. Não podem ser seus
companheiros de pronúncia do mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto aos outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar
ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que em
comunhão buscam saber mais.
Paulo Freire
1. APRESENTAÇÃO
“Bater as mãos, bater os pés para entrar na casa do Zé. Bater as
mãos, bater os pés para entrar na comunidade”. Assim começam muitas
vezes as sessões de terapia comunitária através da música e assim eu
começo a abordar a temática das atribuições de sentido à terapia
10
comunitária por alguns de seus participantes, desenvolvida num contexto de
comunidades.
Minha experiência e interesse com relação ao trabalho realizado junto
às comunidades começaram no penúltimo e último ano do curso de
formação em psicologia na Universidade São Marcos, no ano de 2002.
Nesse período, fiz uma intervenção com algumas crianças da comunidade
São José, através de um estágio realizado na disciplina de Aconselhamento
Psicológico junto a uma creche do bairro. Esse trabalho me possibilitou
entrar em contato com a realidade social cotidiana das periferias da cidade
de São Paulo. Assim, pude perceber as inúmeras carências, bem como os
potenciais que constituem o dia-a-dia dos sujeitos que habitam as
comunidades periféricas dos grandes centros urbanos.
Essa foi uma experiência de enriquecimento pessoal, tanto para mim
quanto para os participantes das atividades que propunha. Eram,
comumente, dinâmicas e oficinas grupais realizadas junto àquelas crianças,
a partir das quais estabelecíamos relações de trocas de saberes. Nesse
contexto, emergiam inúmeros conteúdos que se referiam à banalização da
violência (agravada em muitas situações pelo uso de drogas ilícitas), da vida
e dos direitos humanos, permeados pelo medo, pela dor e pelo sentimento
de impotência frente a tal realidade. Assim, fomos nos descobrindo na
relação através de desenhos, pinturas, música e diálogo franco.
Após seis meses de encontros e trocas de experiências, encerramos
nossas atividades com muito desejo de continuidade do trabalho de ambas
as partes, o que não foi possível naquele momento.
11
Um ano depois, retornei àquela comunidade. Dessa vez, pretendia
trabalhar com os pais das crianças para discutir no grupo temas que fossem
sugeridos a partir do interesse dos próprios moradores participantes.
Utilizamos, então, a montagem de cartazes, desenhos, confecção de textos
e debates para realizarmos, juntos, uma reflexão acerca da realidade local,
identificando aspectos favoráveis, bem como as possibilidades de
enfrentamento das condições que nos pareciam desfavoráveis naquela
situação. Novamente, apareceram nos discursos situações de impotência
frente à violência que vitimiza essas famílias no dia-a-dia. Aliado a isso
restava ainda uma esperança de que um dia as coisas poderiam vir a ser
melhores. Nessa experiência, senti-me muitas vezes despreparado e
incapaz de organizar o grupo frente a tanta demanda que ali se manifestava.
Terminado o trabalho, ao final de seis meses, pude ouvir o relato das
mães num encontro final. Entre agradecimentos e palavras de muito carinho,
fiquei extremamente incomodado e envergonhado quando uma das mães
que estava no grupo relatou que elas já estavam acostumadas àquela
situação de desfecho. Argumentou que vez por outra eram assediadas por
alunos universitários que estavam em formação (necessitando realizar
estágios) e que, depois de formados, já não retornavam mais àquela
comunidade, pois já não tinham essa „obrigação‟. Tive que assentir ao
argumento e informá-la de que tentaria conversar com a responsável na
universidade pela área de estágio comunitário para que um outro grupo de
alunos continuasse o atendimento ali, o que acabou ocorrendo no semestre
seguinte.
12
Nesse momento, pude perceber que (a despeito do discurso
socialmente veiculado pelas classes sociais dominantes acerca das
populações desfavorecidas economicamente, que apregoa serem tais
populações incapazes de produzirem soluções para suas contradições) tanto
as participantes do grupo quanto seus filhos, quando so licitados à reflexão
de seu cotidiano, conseguiam identificar suas carências, mas também, e
sobretudo, eram capazes de formular alternativas para lidar com a realidade
excludente à qual muitas vezes estavam submetidos.
A partir dessas experiências, meu interesse por trabalhos realizados
com grupos comunitários acentuou-se e, devido a esse fato, tornou-se
crescente minha preocupação e busca por instrumentos que facilitassem
minha ação nesses contextos.
No final desse mesmo ano (2003), entrei em contato com a terapia
comunitária através da participação em um workshop realizado num hotel
fazenda em Itapecerica da Serra, em São Paulo.
Nesse workshop, pude conhecer um pouco da teoria e da prática
proposta pela terapia comunitária, assistindo a uma explanação teórica e
vivenciando a aplicação prática da terapia comunitária que foi conduzida
pelo seu idealizador, Adalberto Barreto. Assim, pude perceber que aquele
procedimento técnico poderia ser utilizado como instrumento no trabalho de
grupo junto às comunidades, pois a técnica ali demonstrada ajudava a
organizar e a conduzir grupos, mesmo com grande número de participantes,
como o que ali se apresentava, com cerca de 90 pessoas.
13
Após participar de algumas sessões de terapia comunitária,
interessei-me pelo tema e comecei a desenvolver minha dissertação de
mestrado.
Em princípio, comecei a realizar um levantamento a respeito do que é
a terapia comunitária, acerca de seus pressupostos, objetivos e alcances, o
que se mostrou inviável, dada a precária fundamentação epistemológica e
metodológica que, nessa época, ainda sustentava e buscava sistematizar
essa prática.
Assim, voltei-me para as manifestações do fenômeno empírico
vivenciado pelos participantes durante as sessões de terapia comunitária,
pondo em segundo plano os pressupostos filosóficos e teóricos que
sustentam sua aplicação, sem com isso abrir mão da práxis daí decorrente.
No ano de 2004, passei a freqüentar o curso de formação em terapia
comunitária promovido pela PUC-SP, bem como participei do II Congresso
de Terapia Comunitária, realizado em Brasília / DF.
Em função do curso de formação como terapeuta comunitário, passei
a realizar, juntamente com o meu orientador da dissertação, sessões de
terapia comunitária na Universidade São Marcos, junto à fila de espera da
clínica de psicologia.
Nas sessões de terapia comunitária que apliquei, pude perceber que,
aparentemente, há uma grande mobilização emocional dos participantes,
seguida muitas vezes de relatos apaixonados e calorosos com relação às
transformações que as pessoas percebem em si mesmas após sua
passagem pelo grupo.
14
Assim, a partir de tais experiências, nesta pesquisa, pretendi
compreender a atribuição de sentido à terapia comunitária por alguns de
seus participantes, sem perder de vista que vivemos em um país de
acentuada desigualdade social, no qual a atenção à saúde é privilégio de
poucos e a „psicoterapia‟ comumente é „produto‟ de compra reservado às
elites.
Para isso, o presente trabalho foi construído em capítulos, cuja
seqüência descrevo abaixo.
O Capítulo 2, Introdução, subdividido em sete subcapítulos, faz
referência a alguns aspectos atuais da realidade brasileira, que demonstra
uma absurda concentração de riquezas por parte de uma minoria. São
ressaltados problemas referentes ao acesso à moradia, à educação, à
saúde, à cultura e aos bens de consumo. Esta parte destaca o contexto
social para o qual todo trabalho se volta.
É discutida a atuação do psicólogo nessa mesma realidade,
evidenciando o quanto a psicologia que se tem praticado ainda é um
exercício de pouca representatividade e atuação junto às comunidades de
baixa renda.
A partir dessas referências é que a Terapia Comunitária (TC) é
contextualizada, como um espaço de fala do sofrimento e possibilidade de
prevenção dos efeitos das dificuldades cotidianas das pessoas de baixa
renda, visando garantir a essas populações o resgate da auto-estima,
favorecendo mudanças em suas vidas. Além do histórico da TC, são
ressaltados os quatro pilares conceituais sobre os quais o modelo foi
15
desenvolvido, seus objetivos, os procedimentos fundamentais de uma
sessão de TC, com ênfase no papel do terapeuta comunitário.
Na seqüência, são discutidas algumas categorias fundamentais para
a compreensão do problema de pesquisa: o conceito de „comunidade‟,
categoria de difícil definição, pois comporta inúmeros significados, que
variam de acordo com o contexto no qual o conceito é empregado; a
categoria „identidade‟, construída no contexto do discurso e na relação com
o outro (alteridade); o conceito de „relação‟, aqui visto como uma das
categorias centrais da Psicologia Social, e que guarda estreita referência
com o conceito de alteridade, implicando numa disposição do sujeito em
abrir mão de sua posição para compreender a posição do outro.
E concluindo o capítulo, fiz uma síntese dos aspectos ressaltados
anteriormente. Além disso, aponto, neste subcapítulo, algumas semelhanças
entre o modelo da Terapia Comunitária com as práticas comunitárias
realizadas pelo Movimento Eclesial de Base, nas décadas de 60 e 70; com
as propostas de „ação-reflexão‟ sugeridas pelo ilustre pensador Paulo Freire,
junto às populações desfavorecidas economicamente; e o „modelo
colaborativo‟ implantado em Curitiba, em 1999, cuja metodologia de trabalho
comunitário visa o desenvolvimento de comunidades a partir de experiências
e aprendizados compartilhados.
No Capítulo 3, Justificativa, aponto a relevância deste estudo, pois
aborda aspectos socioeconômicos e culturais referentes a um expressivo
contingente populacional, permitindo que as questões relacionadas à
exclusão social, a situação de pobreza e risco frente à violência social,
16
sejam discutidas, de modo a se buscar novas possibilidades de
enfrentamento de tais situações.
Os objetivos do trabalho, foram ressaltados no Capítulo 4: o de
compreender o papel da Terapia Comunitária na vida de algumas pessoas;
conhecer a atribuição de sentido que elas dão à Terapia; identificar as
mudanças que a Terapia Comunitária favoreceu em suas vidas, a partir da
experiência vivida nas sessões.
O Capítulo 5 destaca o problema da pesquisa: identificar e
compreender atribuições de sentido à Terapia Comunitária feitas por
algumas participantes das sessões, além de algumas questões norteadores
para o Método.
O Método é descrito no Capítulo 6. São discutidos alguns
pressupostos metodológicos e epistemológicos que serviram de terreno para
a pesquisa e determinaram as decisões tomadas acerca dos procedimentos
assumidos. Na seqüência são apontados alguns dados sobre os
participantes da pesquisa, os instrumentos e os procedimentos utilizados.
O Capítulo 7, Proposta de Análise de Resultados, nos dá a direção
tomada por mim na análise e discussão dos resultados, para facilitar a
compreensão do leitor da parte mais árida da pesquisa.
No Capítulo 8 dá-se a compreensão dos discursos, através das falas
das quatro participantes, incluindo também um tópico que faz uma síntese
geral das falas das participantes.
O Capítulo 9, Resultados, articula os resultados com os aspectos
teóricos abordados na Introdução, organizados em torno de objetivos tidos
como principais na terapia comunitária: a valorização das famílias e das
17
redes de relações que estas estabelecem com o seu meio; o favorecimento
da autonomia pessoal; o fortalecimento de vínculos nas comunidades,
através da formação de uma rede social de solidariedade e de participação
entre os sujeitos; a legitimação do sujeito enquanto agente ativo de sua
história de vida.
No Capítulo 10, faço minhas considerações finais acerca do trabalho.
O Capítulo 11 aponta: no Anexo 1, o questionário que utilizei como
roteiro para a entrevista com as participantes; no Anexo 2, a transcrição da
entrevista, na íntegra; e no Anexo 3, um recorte do procedimento que utilizei
para a análise dos dados.
E, finalmente, as Referências encontram-se no Capítulo 12.
18
2. INTRODUÇÃO
2.1. Aproximações com a Realidade Social Brasileira
Opulência e miséria, mansões e favelas situadas lado a lado na
realidade cotidiana brasileira. O Brasil é um dos países do mundo em que há
uma notória e acentuada distribuição desigual de rendas. Ou ainda, sendo
menos elegante, país no qual há uma concentração absurda de riquezas nas
mãos de uma pequena parcela da população.
A esse respeito, o Índice de Desenvolvimento Nacional Brasil (IDNA
Brasil), novo índice criado por pesquisadores da Unicamp para avaliar a
evolução socioeconômica brasileira, aponta que “no quesito desigualdade de
renda, o Brasil hoje só perde para Costa do Marfim e Suazilândia” (O DNA
do Brasil, 2004, p. 29)1. O coordenador do Núcleo de Estudos e Políticas
Públicas da Universidade Estadual de Campinas (NEPP), Pedro Luiz Barros
Silva, prossegue explicando que o IDNA Brasil amplia o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) criado pelo Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), incorporando dimensões da vida
econômica, cultural e da sociabilidade brasileira.
No primeiro exercício de aplicação desse índice, ocorrido na cidade
de Campos do Jordão/SP, ao se comparar a projeção futura com as metas
fixadas por um conjunto de indicadores, obteve-se um resultado de 46,8%, o
1 Revista Pesquisa - Fapesp, Outubro 2004, no. 104
19
que significa que o país está 53,2% distante das metas estabelecidas frente
o perfil atual da realidade brasileira.
Participaram desse trabalho 35 especialistas de diferentes áreas do
conhecimento, empresários, religiosos e ativistas de movimentos sociais,
como João Pedro Stedile (Líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra - MST), Carlos Vogt (presidente da Fapesp), Mayana Zatz
(Geneticista), Horácio Lafer Piva (Empresário), Marina Silva (Ministra do
Meio Ambiente), Jório Dauster (Embaixador) e a monja budista Coen Sensei,
além de outros.
Ao final da aplicação do índice, os participantes compreeendem que:
Assim, cotejando realidade e desejo realista, constatou-se,
por exemplo, que no próximo quarto de século o Brasil terá que reduzir à metade os níveis de desigualdade entre
pobres e ricos, triplicar a renda per capita e ampliar a taxa de escolarização do ensino médio dos atuais 33,3% para 84% para atingir patamares desejáveis de bem-estar
econômico e educação propostos pelos participantes do encontro em Campos do Jordão (p. 29).
Ainda segundo Barros Silva, Coordenador do Nepp, “É clara a
percepção de que é preciso distribuir renda para crescer”.
Naturalmente, essas condições estruturais brasileiras geram ganhos
ou perdas sócio-econômico-culturais proporcionais ao tamanho da „fatia do
bolo‟ que se dispõe aos sujeitos, desde a sua socialização primária.
As possibilidades/impossibilidades de acesso à moradia, à educação,
à saúde, à cultura e aos bens de consumo, já estão desde sempre
apontadas pelo meio social do qual o sujeito emerge, mesmo a despeito da
ideologia democrática disseminada em nossos discursos e práticas sociais
20
diárias e, em grande medida, compartilhada por alguns organismos
acadêmicos.
A esse ponto talvez valha ressaltar a postura epistemológica aqui
defendida junto à teoria crítica que se propõe a interpretar a realidade na
intenção de transformá-la, mesmo a despeito de quaisquer arroubos
adornianos que de si nos pareçam tomar.
Freire (1998) afirma que a educação é ideológica, mas dialogante e
atentiva, para que se possa estabelecer a autêntica comunicação de
aprendizagem entre gente com alma, sentimentos e emoções, desejos e
sonhos.
Vale também lembrar que a família e a escola, comumente, são
agentes sociais muito mais voltados à reprodução da sociedade que se nos
apresenta e, portanto, são dotados de pouca função transformadora da
realidade social. Assim, estes agentes reproduzem em larga medida
discursos e práticas, muitas vezes destituídos de intencionalidade, que
tacitamente tendem a garantir que tudo vá continuar no seu devido lugar na
estruturação da sociedade, através das relações ideológicas de poder
estabelecidas.
Na escola, desde a educação fundamental até o ensino superior, o
que largamente se apresenta são discursos construídos por uma classe
dominante e que, certamente, irão garantir maior privilégio aos indivíduos
originados nessa classe social.
Na família, através da socialização diária são veiculados valores,
crenças e estereótipos que garantem privi légios para o grupo dominante
sobre o grupo dominado, sustentados pela ideologia compartilhada
21
socialmente de que todos têm os mesmos direitos e possibilidades de
acesso social, dependendo unicamente de esforços próprios e pessoais.
Desse modo, num processo dialético, os micro-espaços (família e
escola) reproduzem o macro-espaço (sociedade) e são, ao mesmo tempo,
por estes reproduzidos. Tem-se assim o „fermento‟ que garante às massas a
retroalimentação de mecanismos compartilhados por todos
(dominados/dominantes), que justificam prerrogativas em favor de um grupo
social (dominante), à custa da inclusão perversa2 do outro grupo (dominado).
Naturalmente participam deste contexto social e dos desdobramentos
do mesmo os diversos campos do saber, seja interpretando e transformando
a realidade apresentada, seja „alimentando-a‟. Se assim concebermos, cabe
interrogar. Qual é o papel desempenhado pelo psicólogo brasileiro junto às
comunidades?
2 Ao longo deste trabalho, quando me referir ao processo de exclusão estarei alinhado a argumentação de Sawaia (1999) que afirma sempre haver uma inclusão num processo dialético de inclusão/exclusão, mesmo que haja uma inclusão perversa. Se em alguns momentos mantenho simplesmente a definição de „exclusão‟ e seus derivados, deve-se apenas ao fato dessa estar ampla e socialmente difundida
22
2.2. O Psicólogo Brasileiro e sua Atuação Profissional nas Comunidades
À primeira vista, nos parece que a participação política da psicologia,
através de seu representante, o psicólogo, é bastante „tímida‟ e „acanhada‟.
A psicologia que se tem praticado nacionalmente ainda é um exercício
de pouca representação e atuação junto às comunidades de baixa renda,
pois, dentre outras argumentações possíveis, o pagamento dos honorários
deste profissional é uma impossibilidade aos orçamentos financeiros das
populações de baixa renda. Um dos órgãos que regulam o exercício da
categoria, conselho regional de psicologia, propõe aos profissionais que
cobrem suas consultas utilizando-se dos valores mínimo de R$ 56,24 e
máximo R$ 96,42, como referência3 nacional de honorários dos psicólogos.
Naturalmente que em se tratando de uma cidade como São Paulo, por
exemplo, estes valores não refletem a realidade praticada na cobrança dos
honorários psicológicos, seja como valor mínimo ou máximo.
Assim, o que se percebe normalmente é uma prática psicológica
elitizada, voltada às populações que tem um maior poder de aquisição de
bens de consumo e de serviços. Se considerarmos que uma dimensão,
dentre tantas dimensões da atuação profissional do psicólogo, é a de
cientista político social, poderemos colocar em questão sua atual
participação junto aos trabalhos desenvolvidos nas comunidades.
3 Atualizados pelo INPC (1,1026) de Novembro / 01 a Outubro / 02. Para acesso a tabela completa de
honorários o endereço eletrônico do conselho regional de psicologia de São Paulo: http://www.pol.org.br/servicos/serv_honorarios.cfm
23
A esse respeito, Spink (2003) relata que os estudos de estruturação
do campo da psicologia como profissão, em âmbito regional e nacional,
revelam a predominância da clínica como área de atuação e o consultório
como local privilegiado para o exercício deste profissional.
A autora aponta que o „binômio clínica/consultório‟ enquanto modelo
hegemônico de atuação do psicólogo tem sido objeto de crítica e reflexão do
profissional. Por um lado, essa reflexão volta-se para a psicologia enquanto
campo do saber, que tem no homem seu objeto de estudo, tangenciando
com outros campos de saberes a partir da transdisciplinaridade e, na
contraposição, enquanto reserva do mercado de trabalho de uma categoria
através do corporativismo. Por outro lado, a reflexão crítica da psicologia
enquanto prática abre discussão para essa posição assumida frente à
realidade brasileira. E assim a crítica se dá em relação à “falta de
comprometimento” da psicologia com a problemática da classe trabalhadora
e a sua tendência elitista (p. 122).
Ainda segundo Spink (2003), os dados disponíveis pelo Conselho
Federal de Psicologia indicam que apenas 26% dos psicólogos empregados
trabalham em instituições públicas, e somente 10% destes trabalham em
postos de saúde e ambulatórios.
Apenas 5% destes profissionais têm como objeto específico de sua
prática profissional a comunidade. Considerando esse número enquanto
emprego principal, ele decresce para 3%. Dentre esses profissionais que
iniciam seu trabalho nas comunidades, 53% abandonam essa atividade em
função da busca de emprego com melhor remuneração ou devido às
condições precárias de trabalho. Os profissionais que permanecem
24
realizando o trabalho comunitário, 38%, acabam se associando a outras
atividades, principalmente a clínica, conferindo um caráter de atividade
complementar a esse segmento.
A autora discute, ainda, a formação acadêmica do psicólogo que está
mais voltada para o modelo clínico, enquanto hegemônico, resultando em
dificuldades na atuação do profissional junto às instituições públicas ou
comunidades. Aponta que, além das dificuldades externas relativas a falta
de recursos, há também ausência de modelos de atuação profissional, seja
nas instituições ou nas comunidades, resquícios da formação acadêmica.
Spink (2003), cita uma pesquisa em representação social, realizada
na Itália, a respeito da estruturação do campo profissional da psicologia
(PALMONARI & ZANI, 1989). Este trabalho descreve quatro grupos distintos
de psicólogos quanto às suas identidades socioprofissionais auto-atribuídas
na Itália. Num dos grupos, o psicólogo define-se fundamentalmente como
ativista político a serviço da população. Noutro grupo, a psicologia é tida
como uma ciência social, numa perspectiva interdisciplinar, cujo propósito é
intervir na realidade social a partir do referencial teórico da ciência. No
terceiro grupo, o psicólogo identifica-se como profissional clínico que tem
suas atividades e competências técnicas voltadas aos processos intra-
individuais. No quarto grupo, o psicólogo percebe-se como profissional
liberal que vê a sua ciência voltada para o caso individual e adota a
psicanálise como única perspectiva teórica.
Comparando a pesquisa citada com uma pesquisa feita em São Paulo
por Freitas (1986), somente com psicólogos que trabalhavam na
comunidade, Spink (2003) relata as semelhanças encontradas apontando
25
para um grupo de orientação social, como o ativista político de Palmonari,
que se propõe a organização, mobilização e apoio das reivindicações das
populações através da atuação direta. Há um outro grupo de orientação
psicossocial, que mesmo atuando no nível intra-individual, contempla a
problemática socioeconômica da população e se aproxima do segundo
grupo de Palmonari. O outro grupo é de orientação psicológica, centra-se no
atendimento individual e, portanto, se uti liza do modelo clínico no
atendimento às populações de baixa renda. Esse grupo compreende assim
os outros dois grupos levantados por Palmonari, ou seja: o clínico e o clínico
de orientação exclusivamente psicanalítica.
Ao descrever o processo de ancoragem destas representações
sociais da atuação profissional psicológica, Spink (2003), citando Palmonari
e Zani (1989), relata que o primeiro grupo ativista político está ancorado num
protótipo a partir do qual a ciência é vista como ideologia e assim a
„psicologia-ciência‟ tem sempre um significado político. Assim, visando à
mudança social o profissional deve ter como atividade prioritária o
engajamento na luta social.
No segundo grupo de Palmonari e Zani, o protótipo é do „expert
interdisciplinar‟ e a psicologia é vista enquanto uma ciência social
interdisciplinar. O conhecimento técnico é que permite a análise e
intervenção da realidade dada. Busca-se a compreensão e a definição de
soluções, técnicas/políticas, para as problemáticas sociais.
No terceiro grupo o psicólogo clínico ou psicoterapeuta é visto
enquanto sendo o protótipo de representação e a psicologia é por essência
26
clínica e individual. Utiliza-se de técnicas psicológicas específicas,
psicodiagnóstico e psicoterapia, ocupando-se de questões individuais.
No quarto grupo, o psicanalista é a representação prototípica. Este
grupo reconhece-se que somente a psicanálise tem uma técnica terapêutica
eficaz para conhecer e intervir no sofrimento do paciente.
Por fim, Spink relaciona cada grupo a um eventual local apropriado
para o desenvolvimento de suas atividades, não houvessem restrições
práticas no que tange ao mercado de trabalho. O ativista político estaria na
comunidade; o psicossocial, expert interdisciplinar, estaria desenvolvendo
pesquisas sociais e, portanto, estaria nas instituições de pesquisa e
universidades; o clínico estaria em consultórios e instituições de saúde
mental; enquanto que o grupo psicanalista estaria em consultórios
particulares.
A autora alerta para o fato de que os quatro modelos de profissionais
podem atuar inseridos na comunidade ou em instituições públicas e a
predisposição para buscar novas formas de atuação, quando necessário, é
que definirá as conseqüências na identidade profissional destes psicólogos.
Assim, percebe-se que este é um território que inclui diversas e
complexas variáveis, passando inclusive pela trajetória acadêmica do
profissional em formação que demanda modelos de atuação nas instituições
e comunidades. Além disso, há de se considerar as implicações externas e a
escassez de recursos no trabalho junto às comunidades, bem como a
sujeição do profissional a situações de risco, muitas vezes.
É nessa realidade que surgem algumas práticas voltadas para a
reflexão e transformação da realidade social, práticas estas criadas e
27
mantidas, muitas vezes, por movimentos sociais, como ONG´s
(Organizações não governamentais) e grupos sociais organizados. Dentre
estas práticas, está a terapia comunitária.
2.3. Terapia Comunitária
A Terapia Comunitária (TC) surgiu como espaço de fala do
sofrimento e possibilidade de prevenção dos efeitos do estresse cotidiano
das pessoas de baixa renda, visando garantir a essas populações o resgate
da auto-estima necessária para implementação de mudanças em suas vidas
(CAMAROTTI et al, 2003, p.56).
Esse modelo de terapia foi desenvolvido a partir de 1987 pelo Prof.
Dr. Adalberto Barreto, docente de Medicina Social da Universidade Federal
do Ceará, psiquiatra, teólogo e antropólogo (CAMAROTTI et al, 2003, p.55-
56).
É um procedimento técnico para o trabalho terapêutico em grupo que
visa a promoção da saúde e atenção primária em saúde mental, “funciona
como fomentadora de cidadania, de redes sociais solidárias e da identidade
cultural das comunidades carentes, através de equipes institucionais
públicas, privadas ou voluntárias” (CAMAROTTI et al, 2003, p. 54). Surgiu a
partir da necessidade de indivíduos com sofrimento psíquico que buscavam
amparo jurídico junto ao Projeto de Apoio aos Direitos Humanos da favela de
Pirambu, uma das maiores favelas de Fortaleza/CE com 280.000 habitantes.
O advogado coordenador desse projeto, Aírton Barreto (irmão de Adalberto
28
Barreto), percebeu que a maior parte das queixas da população residia nas
questões sociais, nos problemas psicológicos e relacionamentos familiares
que traziam sofrimentos psíquicos. Assim, Aírton convidou Adalberto Barreto
para prestar atendimento a essa população.
Inicialmente os atendimentos eram individuais e realizados no
Hospital Universitário da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do
Ceará. Com o passar do tempo e conseqüente aumento na demanda dos
atendimentos, o psiquiatra e seus alunos na disciplina de Medicina Social
começaram a atender essa população no próprio local onde residiam, na
favela de Pirambu. Barreto percebeu, então, que não poderia oferecer o
mesmo tipo de atendimento àquela população que aquele prestado no
hospital e consultório.
Partindo dessa realidade, ocorreu-lhe então a necessidade de
fortalecer a rede social naquele grupo, composto, em sua maioria, por
migrantes do interior do país que ali estavam desordenadamente agregados
na periferia de uma grande cidade, desassistidos pelo Estado e em
condições de miséria.
Assim, Barreto começou a esboçar um método próprio para seus
atendimentos junto a essa população. Esse trabalho buscava a participação
e contribuição de todos os atores sociais (moradores da comunidade,
estudantes e profissionais) envolvidos no grupo e suas sugestões
emergiram.
Para tal, criou-se o Projeto 4 Varas com sede na favela de Pirambu
(Fortaleza/CE). Esse espaço físico conta com várias edificações, nas quais
são realizados encontros semanais de Terapia Comunitária e oficinas
29
especializadas nos “problemas do corpo e da alma”, como denomina o
idealizador da Terapia Comunitária.
Estas atividades são abertas à participação da população local e a
demais interessados, não sendo incomum a participação de pessoas de
outros estados e, inclusive, de outros países.
Tais ações em Pirambu reuniram as lideranças comunitárias e
pessoas interessadas em serem multiplicadoras, tornando-se um modelo de
atenção primária em saúde mental naquela cidade.
A Terapia Comunitária, na visão de Adalberto Barreto, está ancorada
teoricamente em quatro pilares conceituais: a teoria sistêmica, a teoria da
comunicação, a antropologia cultural e a noção de resiliência.
O biólogo Ludwing Von Bertalanfy, na década de 20 do século
passado, propôs-se a entender como as partes e o todo se
interrelacionavam, independente das disciplinas nas quais eram observados,
criando a Teoria Geral dos Sistemas.
Abordar, ver, situar e pensar um problema em relação ao seu
contexto é uma premissa da abordagem sistêmica. Nessa abordagem, o
sujeito é percebido em relação às suas interações familiais, sociais, e
também em relação aos seus valores e crenças, possibilitando uma
compreensão maior acerca do mesmo, visando sua transformação
(CAMAROTTI et al, 2003).
Assim, essa compreensão do „todo comunitário‟ não se reduz à mera
soma das partes e propõe que o sujeito seja percebido a partir de seu
contexto, sem „descolá-lo‟ do mesmo, como parte indissociável de uma rede
de relações.
30
A partir desse pressuposto, o que se busca atingir na terapia
comunitária é a noção de que “a consciência da globalidade, sem perder de
vista as várias partes do conjunto a qual pertence, permite compreender os
mecanismos de auto-regulação, proteção e crescimento dos sistemas
sociais e vivenciar a noção de co-responsabilidade” (CAMAROTTI et al,
2003, p. 57).
De acordo com a fala de Marilene Grandesso, Terapeuta Familiar e
de Casal, durante o II Congresso Brasileiro de Terapia Comunitária em
Brasília/DF (2004), a Terapia Comunitária favorece uma organização
sistêmica em redes solidárias, a partir de um sistema complexo e
autopoiético.
Segundo Maturana & Varela (1995), nos sistemas autopoiéticos as
relações produzidas pelos seus componentes, através de interações,
garantem seu equilíbrio sem desintegrar-se. Assim, compreender as
sessões de terapia comunitária como sistemas vivos autopoiéticos significa
vê-las e percebê-las como unidades autônomas, com caráter unitário e
mantendo-se em contínua dinâmica de trocas.
Quanto à Teoria da Comunicação, Gregory Bateson, antropólogo, foi
quem fundamentou o conceito de informação para as práticas relacionais e
circulares e a teoria da comunicação humana de Watzlawick et al (1967),
autor da proposta dos axiomas da comunicação: “todo comportamento é
comunicação, toda comunicação tem dois lados: o conteúdo e a relação,
toda comunicação depende da pontuação, toda comunicação tem dois
aspectos: a comunicação verbal e a não verbal, toda comunicação entre
31
pessoas é feita de forma simétrica ou complementar” (CAMAROTTI et al,
2003, p. 58).
Grandesso (2000) discute o mundo da experiência enquanto um
mundo significativo, a partir do qual o ser humano está imerso numa teia de
significados construídos por si próprio no intercâmbio com o social. Durante
o II Congresso de Terapia Comunitária, realizado em Brasília em 2004,
Grandesso lembrou que os sistemas amplos, a partir dos quais a Terapia
Comunitária é realizada, podem ser compreendidos como organizações
complexas que geram linguagem e significados, a partir de múltiplas redes.
Enfatizou, ainda, que os fundamentos e práticas derivadas do enfoque
narrativo podem beneficiar a Terapia Comunitária.
A autora lembrou que os sistemas humanos, enquanto sistemas de
linguagem, estruturam formas de pensar e agir, organizando vínculos e
práticas, através de trocas intersubjetivas, mediadas pela linguagem. Ela
enfatizou a importância na escuta das palavras e dos significados, como
favorecedora do interjogo entre os significados. Afirmou que a direção a ser
seguida deve privilegiar a substituição do círculo vicioso da exclusão pelo
círculo virtuoso da inclusão.
Nas sessões de TC, costuma-se dizer para as pessoas presentes, no
início, que: “Quando a boca cala, os órgãos falam. E quando a boca fala, os
órgãos saram”. Essa é uma forma de valorização da comunicação no grupo
associada à cura, com o propósito de estimular as pessoas participantes a
falarem de seus problemas, conflitos, sofrimentos psíquicos, angústias,
medos e temores.
32
Outros referenciais importantes para a Terapia Comunitária são os
valores culturais e as crenças, reconhecidos pela antropologia cultural como
fatores importantes na formação da identidade do indivíduo e do grupo.
A TC reconhece e valoriza os conhecimentos, as crenças e as
manifestações populares como genuínos e imprescindíveis para a
transformação do indivíduo em sujeito agente de sua própria história,
enquanto co-responsável ativo.
Desse modo, enfatiza que o sujeito tem o problema, mas que também
tem a solução para o problema. A partir desse princípio, a Terapia
Comunitária é um procedimento que se propõe a operar através de relações
sistêmicas horizontais, eliminando a figura do especialista em sua aplicação
prática, como ocorre nas psicoterapias.
Na prática, o que se percebe é que a Terapia Comunitária também
tem seus pressupostos e regras que organizam o trabalho no grupo. Durante
as sessões, há as figuras do terapeuta comunitário e do co-terapeuta
comunitário que, apesar da busca insistente de relações horizontais, não
deixam de ser „especialistas‟ na condução do grupo e até mesmo na
condição de sujeitos que ocupam no grupo a posição simbólica de quem têm
um saber específico, um saber que o restante do grupo não possui.
Um outro conceito que fundamenta a Terapia Comunitária é a noção
de resiliência. É um conceito pouco discutido e aprofundado, mas
constantemente uti lizado em diversos contextos discursivos, nem sempre
com a mesma conotação.
Conforme o prefácio do seu livro terapia comunitária passo a passo,
Adalberto Barreto tem utilizado o termo resiliência como sendo a capacidade
33
dos indivíduos, famílias e comunidades em superar as dificuldades
contextuais sociais.
Particularmente, temo que esta referência possa estar
esquematicamente recortada em relação a um único contexto estratificado
socialmente, implicando, por vezes, num gesto de reducionismo conceitual
e, por outras vezes (num outro extremo), numa ampliação desmedida com
relação às atribuições que tal conceito comportaria.
Conforme Yunes e Szymanski (2001), a noção de resiliência de um
material tem sido uti lizada há tempos pela Física e Engenharia, e refere-se à
capacidade de um material absorver energia sem sofrer deformação plástica
permanente.
Segundo Souza (2002, p. 5), o termo resiliência,
trazido para o campo das ciências da saúde foi inicialmente utilizado para significar capacidade de regeneração,
adaptação e flexibilidade atribuídos às pessoas que conseguiam recuperar-se de doenças, catástrofes, guerras,
e outras situações traumáticas abruptas ou duradouras. A partir das observações de exceções à regra, em relação às
adversidades sofridas por pessoas que passaram por traumas na infância ou
na vida adulta e que conseguiram “uma adaptação satisfatória na vida
afetiva, social e no trabalho (p. 5)”, iniciaram-se as pesquisas sobre
resiliência nos últimos 30 anos, enfocando a resiliência na criança, no
adolescente e no adulto em diversas situações (SOUZA, 2002).
Resiliência tem sido conceituada como manifestação de competência
frente a um “contexto de desafios significantes para a adaptação ou
desenvolvimento” (MASTEN e COATSWORTH, 1998 apud SOUSA, 2002, p.
10). Ainda segundo Souza (2002), resiliência
34
é identificada no indivíduo que tenha vivido num contexto de alto risco ou tenha sido exposto a traumas severos, e,
apesar disto sua adaptação atual seja considerada boa. O contexto de alto risco é entendido como a existência de
eventos mais duradouros tais como a separação de pais, pobreza ou falta de instrução, enquanto que os traumas severos referem-se às situações abruptas de violência,
guerra ou perda de parentes (p. 10-11).
O uso do conceito de resiliência, segundo esse pensamento, na TC
pode se dar tanto em relação à vivência num contexto de alto risco, quanto
em relação à exposição a traumas severos, pois o ambiente em que
comumente se desenvolve a sessão de TC é aquele constituído por pessoas
de baixa renda. Além disso, é um ambiente que reflete as situações de
exclusão decorrentes da reprodução social, enquanto mecanismo, em
função da pobreza e falta de instrução, como já foi discutido no início desse
texto.
Cabe agora discutir algumas questões referentes ao levantamento
bibliográfico realizado. A partir da pesquisa feita percebe-se que há pouca
literatura publicada acerca da terapia comunitária. Dentre esta, destacam-se
os Anais do I Congresso Brasileiro de Terapia Comunitária (2003) realizado
em Morro Branco/CE que conta com 23 trabalhos apresentados, o Manual
do Terapeuta Comunitário e o livro Terapia Comunitária passo a passo
(2005), a partir dos quais se desenvolveu este capítulo. Além destes há uma
dissertação de mestrado, Barreto (2001), na qual a autora tem por objetivo
conhecer a trajetória vocacional do terapeuta comunitário. Para tal, ela
entrevistou 4 terapeutas comunitários, sendo 2 do sexo feminino e 2 do sexo
masculino. Considerou como critério que todos possuíssem o certi ficado de
35
Formação em Terapia Comunitária, concedido pela Universidade Federal do
Ceará (UFC), além do fato de atuarem em diferentes comunidades da
grande Fortaleza.
A análise realizada na pesquisa apontou para fatores importantes da
trajetória vocacional dos terapeutas, como a identificação do „fazer‟ com „o
ser‟ do terapeuta; O autoconhecimento a partir do „quem sou eu‟,
interpretado como „do que sou capaz‟. A pesquisa também revelou a
importância do saber acadêmico aliado ao saber popular na trajetória
vocacional dos terapeutas, ressaltando a co-responsabilidade como fator de
importância na prática destes profissionais.
Para colaborar com uma melhor compreensão da Terapia
Comunitária enquanto teoria e prática, passo a descrever os objetivos
almejados e procedimentos realizados durante uma sessão, segundo o
manual do terapeuta comunitário, produzido por Adalberto Barreto (2004).
2.3.1 Objetivos e Procedimentos da Terapia Comunitária
2.3.1.1.Objetivos da TC
De acordo com Barreto (2005), a Terapia Comunitária tem como
objetivos principais:
1- Reforçar a dinâmica interna de cada indivíduo, para que este possa
descobrir seus valores, suas potencialidades e tornar-se mais autônomo e
menos dependente;
2- Reforçar a auto-estima individual e coletiva;
36
3- Redescobrir e reforçar a confiança em cada indivíduo, diante de
sua capacidade de evoluir e de se desenvolver como pessoa;
4- Valorizar o papel da família e da rede de relações que ela
estabelece com o seu meio;
5- Suscitar, em cada pessoa, família e grupo social, seu sentimento
de união e identificação com seus valores culturais;
6- Favorecer o desenvolvimento comunitário, prevenindo e
combatendo as situações de desintegração dos indivíduos e das famílias,
através da restauração e fortalecimento de laços sociais;
7- Promover e valorizar as instituições e práticas culturais tradicionais
que são detentoras do “saber fazer” e guardiãs da identidade cultural;
8- Tornar possível a comunicação entre as diferentes formas do
“saber popular” e “saber científico”;
9- Estimular a participação como requisito fundamental para dinamizar
as relações sociais, promovendo a conscientização e estimulando o grupo,
através do diálogo e da reflexão, a tomar iniciativas e ser agente de sua
própria transformação (p. 37).
Assim, através do compartilhar de experiências comuns entre os
sujeitos (durante as sessões de TC e após as mesmas) visa à legitimação
do sujeito enquanto agente ativo de sua história de vida a partir de sua
narrativa pessoal.
2.3.1.2. Procedimentos da TC
A terapia comunitária desenvolve-se em 6 etapas:
1a. – Acolhimento;
37
2a. – Escolha do tema;
3a. – Contextualização;
4a. – Problematização;
5a. – Rituais de agregação e conotação positiva;
6a. – Avaliação.
1a fase – O Acolhimento
No primeiro momento deve-se ambientar o grupo, deixando os
participantes à vontade e contribuindo para que os mesmos sintam-se
acomodados de maneira confortável. Preferencialmente todos devem estar
em um grande círculo para que possam olhar para a pessoa que está
falando. É aconselhável que a sessão seja conduzida por um terapeuta e um
co-terapeuta. Aquele que fizer o acolhimento inicial (co-terapeuta) deve
passar a palavra ao terapeuta que irá dirigir o grupo, sendo que o co-
terapeuta irá auxiliar o terapeuta ao longo da sessão. As pessoas podem
participar a qualquer momento em que uma sessão estiver sendo realizada,
não é necessário lista de freqüência e nem exigência de assiduidade.
Entende-se ser este um espaço fundamentalmente democrático e aberto.
O terapeuta deve iniciar a sessão dando as boas-vindas ao grupo e
celebrando os aniversariantes daquele mês. Com isso, valorizam-se as
pessoas e suas histórias de vida, no rito, através da celebração de seu
nascimento. É comum nas comunidades encontrarmos pessoas que nunca
38
tiveram uma comemoração de aniversário. Esta é uma etapa importante,
pois favorece o aquecimento do grupo, predispondo-o à participação.
Em seguida, o co-terapeuta comunitário apresenta uma síntese do
que é a Terapia Comunitária e discorre sobre as regras ou condições para o
funcionamento do grupo:
1 – A regra principal é o silêncio enquanto alguém estiver falando,
evitando assim intimidar o sujeito que está se expondo;
2 – Deve falar sempre da própria experiência, usando sempre a 1a.
pessoa do singular no momento em que se fala;
3 – Não se pode dar conselhos, fazer discursos ou sermões e,
tampouco, julgar;
4 – Entre uma fala e outra, qualquer participante do grupo pode
interromper a reunião para sugerir uma música, um provérbio, um poema ou
uma frase que ilustre a situação que está sendo narrada;
5 – Deve-se respeitar a história de cada pessoa
Os grupos são semanais ou de acordo com uma periodicidade pré-
estabelecida, com duração da sessão em torno de duas horas.
2a fase - Escolha do Tema
Em seguida, o terapeuta pergunta ao grupo se alguém gostaria de
começar a falar daquilo que o está fazendo sofrer. O terapeuta pode utilizar-
se de um ditado para estimular a fala no grupo, como: “Quando a boca cala,
os órgãos falam. Quando a boca fala, os órgãos saram”. Ou ainda de uma
39
fala de acolhimento que explicite para as pessoas a importância do
compartilhar de suas experiências no grupo, algo como: “Muitas vezes,
precisamos desabafar, dividir uma preocupação e terminamos por escolher a
pessoa errada, na hora errada, e aquele desabafo vira fofoca, e ficamos
ainda mais sofridos e bloqueados. Portanto, se alguém quiser falar de algo
que o atormenta, que tira seu sono. Você pode confiar nesta comunidade
que, aqui, você não será julgado, e tenha certeza que irá receber ajuda e
apoio de todos”.
Quando as pessoas começam a falar de seus problemas, o terapeuta
deve anotar o nome das mesmas e fazer uma síntese do que foi dito,
sugerindo que sejam breves nesse primeiro momento. Ao final destas falas,
o terapeuta deve relembrar o grupo dos problemas apresentados e pedir
para que o grupo escolha um daqueles, justificando sua escolha, para ser
aprofundado. Feita a escolha do único tema que será abordado naquela
sessão, o terapeuta pergunta para as demais pessoas que expuseram suas
questões, se está tudo bem para as mesmas não terem sido escolhidas.
Caso alguém demonstre insatisfação, o terapeuta propõe-se a falar com a
pessoa ao final da sessão. Parte-se então para a fase de contextualização.
3a fase – Contextualização
Durante a contextualização, pede-se a pessoa escolhida pelo grupo
que explique um pouco melhor o seu problema (algo em torno de 15
minutos). A partir daí, o grupo só poderá fazer perguntas para a pessoa
40
escolhida, norteado sempre pela idéia de que o objetivo não é investigar o
problema alheio e sim compreendê-lo melhor. Não se pode julgar, fazer
perguntas indutivas e nem dar conselhos. O objetivo dessa fase é conduzir a
pessoa escolhida ao desencadeamento da reflexão sobre sua própria vida,
enquanto a mesma tenta responder as questões levantadas pelo grupo,
valorizando o potencial que a mesma tem para resolver suas questões. A
próxima etapa é de problematização.
4a fase - Problematização
Nesta etapa, a pessoa que expôs o seu problema fica em silêncio. O
terapeuta deixa de lado a sua história, não faz perguntas à mesma e
apresenta, então, um mote que vai permitir a reflexão do grupo.
O mote é uma pergunta-chave, durante a terapia. O terapeuta
comunitário, ao identificar e definir a situação-problema, cria um ou mais
motes para promover a reflexão coletiva sobre o tema apresentado. O mote
pode ser do tipo coringa ou simbólico.
O mote coringa consiste em lançar um questionamento que possibilite
a identificação dos participantes com o problema apresentado, como: “Quem
já viveu uma situação parecida e o que fez para superá-la?”.
Quanto ao mote simbólico, ele pode ser definido através de uma
metáfora, de um sentimento ou de palavras-chave que tenham surgido
durante a contextualização. Nesse momento há um compartilhar de
41
experiências dolorosas vividas e formas que as pessoas utilizaram-se para
superar tais dificuldades.
Nesta etapa, os participantes passam a falar de si mesmos e de suas
experiências relacionadas ao mote, como uma retribuição da experiência
ouvida por eles.
5a fase – Rituais de Agregação e Conotação Positiva
O término da sessão caracteriza-se pela conotação positiva que o
terapeuta comunitário deve dar ao fato que foi trabalhado naquele dia. Trata-
se de valorizar, agradecer o esforço, a coragem, a determinação e a
sensibilidade de cada um que, em muitas outras circunstâncias, tenta
ofuscar a dor e o sofrimento. Não se trata de valorizar o sofrimento em si, e,
sim, de reconhecer o esforço e a vontade de superar as dificuldades.
Nesta fase, o terapeuta sugere que o grupo forme dois círculos
concêntricos, sendo que as pessoas que expuseram-se ficam no círculo
nuclear. Então, enquanto o grupo abraçado realiza movimentos pendulares
com o corpo, o terapeuta pergunta: “O que aprendi hoje nesta terapia? O
que estou levando de aprendizagem?” Assim, mobiliza o grupo a falar da
experiência, retribuindo e valorizando as vivências apresentadas.
O encerramento é sempre um momento muito especial, um momento
de celebração em que as pessoas se irmanam. Elas sugerem músicas,
recitam poesias, falam do que aprenderam. É, comumente, um momento de
muita emoção, quando as pessoas referem-se aos seus valores, às suas
42
crenças, às suas vivências no grupo. É um momento de reflexão acerca do
vivido.
6a fase – Avaliação
Esta etapa é reservada à equipe que conduziu a terapia e ocorre a
partir de momentos avaliativos:
1 – Preenchimento da ficha de controle: nesta ficha registram-se os
nomes do terapeuta e co-terapeuta, a data e lugar de ocorrência da sessão,
o número de pessoas presentes na sessão, os temas levantados e o
escolhido, o mote construído e a realização da sessão como um todo.
2 – Avaliação do impacto da Terapia Comunitária: o terapeuta pode
igualmente fazer uma avaliação criteriosa sobre o impacto da Terapia
Comunitária nas pessoas. Nesse caso sugere-se a aplicação de um
questionário específico. Ao término da sessão, o terapeuta faz uma
entrevista, seguindo o questionário daquela pessoa cujo tema foi escolhido.
Passados trinta dias, o terapeuta aplica o mesmo questionário com as
pessoas que apresentaram problemas, e verifica se elas apresentaram uma
melhora. O questionário avalia três indicadores de saúde mental
comunitária:
a) O número de vínculos que as pessoas tinham no dia da
crise e os que têm depois de passados os trinta dias;
b) O nível da auto-estima;
43
c) A referência (para saber se a pessoa que foi encaminhada
para algum serviço foi, de fato, atendida).
3 – Avaliação da condução da Terapia: é o momento em que se
procura avaliar a condução da terapia e o impacto da sessão sobre cada um
dos terapeutas, a fim de se verificar o processo de formação do terapeuta e
o reconhecimento do grupo como fonte de conhecimentos. Para tal, há
supervisores habilitados que conduzem esse processo. Pode ser conduzido
através de perguntas, tais como:
a) Como foi conduzida a Terapia?
b) Quais as dificuldades que cada um sentiu?
c) O mote escolhido foi bom ou haveria outros melhores?
d) Como foram recebidas as músicas?
Aproveito para fazer menção a um outro conceito muito comentado e
pouco sistematizado pela ciência: comunidade. Considerando que essa
pesquisa está sendo realizada nesse referido contexto, discutirei aqui
algumas noções de comunidade, enfatizando não haver consenso quanto à
sua definição.
2.4. Comunidade
Comunidade! Essa é uma daquelas palavras que assumem diversos
significados e sentidos nos mais diversos contextos. Há usos, desusos e até
44
maus usos quando se trata de empregar a palavra comunidade. Na
atualidade, esta tem sido uma das palavras prediletas a freqüentar o
discurso social. Muitas vezes, a presença assegurada dessa palavra na
prática discursiva é de qualidade retórica e serve apenas para sugerir, ao
imaginário coletivo, algo que se presta a trazer benefícios a um grupo de
pessoas, seja qual for este grupo. Porém, o emprego dessa palavra, muitas
vezes, pode estar carregado de intenções demagógicas.
No dicionário Aurélio a palavra „comunidade‟ apresenta 12
significados diferentes, entre os quais: “1. Qualidade ou estado do que é
comum; comunhão: Há entre eles comunidade de interesses. 2.
Concordância, conformidade, identidade: comunidade de sentimentos. 3.
Posse, obrigação ou direito em comum” (p. 444). É uma palavra de origem
latina, comunitate.
Torna-se relevante ressaltar que o conceito de comunidade desdobra-
se em múltiplos sentidos, atravessando diferentes áreas do conhecimento,
com relevância notória junto à sociologia. Naturalmente, diante de tal
contexto, existem diversas críticas quanto ao uso do conceito de
comunidade em pesquisas.
Por tratar-se de ampla e complexa discussão, o tema aqui situado
será tratado a partir de tópicos essenciais, como o contraponto entre
comunidade e sociedade, correlacionados respectivamente ao campo e a
cidade, principalmente, a partir dos referenciais propostos por Florestan
Fernandes (1972) na coletânea sobre comunidade e sociedade no Brasil.
Considerando, ainda, que essa distinção tem origem no debate realizado
45
pela sociologia alemã de Ferdinand Tonnies (1944, apud FERNANDES,
1972), a partir do qual surgiram os termos Gemeinschaft (comunidade) e
Gesellschaft (sociedade), representando uma arquitetura tipológica que tem
como critério a oposição entre modernização e tradição.
É fato que, dada a natureza desse trabalho, não se há de furtar a
presença de elementos resultantes da confluência entre a psicologia, a
sociologia e a antropologia que constituem o campo híbrido, marginal e
necessariamente interdisciplinar denominado psicologia social, como
Fernandes (1972) já nos apontou no passado.
Torna-se importante destacar a escassez de referências
bibliográficas atualizadas, sendo que dentre as poucas referências atuais
existentes é comum localizar-se informações baseadas principalmente na
sociologia, através de autores como Tonnies (1944, apud FERNANDES,
1972), na sua obra clássica Comunidade e Sociedade ou McIver (1944,
apud FERNANDES, 1972) em Comunidade.
A bibliografia brasileira distingue duas vertentes: uma em que a
comunidade é entendida com base na prática política – desenvolvimento de
comunidade, comunidades eclesiais de base, comunidade solidária – e outra
que entende comunidade como base de produção do conhecimento – a
visão crítica e construtiva da prática.
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), o verbete
comunidade tem 15 significados diferentes. Logo, na linguagem empregada
pelo senso comum o termo é vago, impreciso e abarca um grande número
de significados.
46
Sawaia (1996) considera que o conceito comunidade está ausente na
história das idéias psicológicas, tendo surgido como referencial analítico
apenas a partir da década de 70, através de um segmento da psicologia
social que autoqualificou-se comunitária. Aponta ainda para o fato de que
discutir a comunidade não foi uma exclusividade da psicologia social, pois
fazia parte de um amplo movimento de avaliação crítica do papel das
ciências sociais, iniciado nos anos 60 e que teve seu auge nas décadas de
70 e 80. A partir de então, o conceito de comunidade incorporou-se
fortemente ao discurso das ciências humanas e sociais, com distinção nas
práticas da saúde mental.
Sawaia (1996), citando Heller (1984), refere-se à comunidade:
Não há dúvidas de que a introdução deste conceito no corpo
teórico da psicologia social constituiu um aspecto epistemológico importante, na medida que representou a opção por uma teoria crítica que interpreta o mundo com a
intenção de transformá-lo (p. 35).
A autora adverte, porém, que, a partir de então, esse conceito passou
a designar qualquer prática profissional, desde que essa seja realizada fora
de consultórios ou instituições, resultando, muitas vezes, num falso
compromisso com o „povo‟ ou em favor da união do „povo‟. A este respeito,
cita uma entrevista com um chefe do narcotráfico do Rio de Janeiro, na qual
o mesmo refere-se aos moradores de uma favela como “a minha
comunidade”. Prossegue seu raciocínio apontando para a necessidade de
reflexão acerca do conceito de comunidade, visto que atualmente a maioria
dos profissionais da saúde e das ciências humanas tendem a alegar estarem
trabalhando nas e com as comunidades.
47
De acordo com Frúgoli Jr. (2003):
Desde ao menos os meados do século X IX, época da emergência da sociedade moderna, urbana e industrial, o tema comunidade constitui uma espécie de contraponto
societário à modernização. Já na reflexão sociológica dessa fase, vários autores analisavam a comunidade sob uma
tipologia social marcada em geral por grupos de pequena escala, que estabeleceriam relações solidárias, coesas, pessoais, espontâneas, cotidianas e permanentes, em que
configurariam certas identidades comuns – com a consciência ou sentimento de “nós”, em oposição aos
“outros” – propícias da “vida em comum” e do associativismo (p. 108).
Comentando Fernandes (1973), Frúgoli Jr. pondera que esse
panorama histórico-social está baseado numa “narrativa de perda” por parte
do sujeito, a partir da qual a noção de comunidade apresenta-se impregnada
por aspectos idealizados referenciados em um passado, de certa forma,
inexistente, em oposição às estruturas constitutivas do mundo moderno que
apresentavam novas formas de organização social, nas quais
predominavam “as relações formais e de interesse, os acordos contratuais, a
lógica do mercado, a competição individual e as multidões urbanas e
anômicas” (FRÚGOLI JR., 2003, p. 108).
Assim, Frúgoli Jr (2000) parece apontar para uma desarticulação do
sujeito que parte de um referencial idealizado que, conforme Sawaia (1996),
baseia-se na „comunalização‟, através do sentimento subjetivo de
pertencimento, e caminha em direção a „sociação‟, relação fundada sobre
um compromisso muito mais racionalmente motivado pelo interesse do que
pela identificação afetiva.
48
Segundo Bauman (2003), comunidade é dessas palavras que, além
de um significado, guarda também sensações que sugerem uma coisa boa:
“o que quer que „comunidade‟ signifique, é bom „ter uma comunidade,‟ „estar
numa comunidade‟” (p. 7). Assim, quando queremos justificar uma conduta
inadequada ou uma condição de miserabilidade pessoal, poupamos a
comunidade e atribuímos tal responsabilidade à sociedade por seus modos
de organização e funcionamento. Temos uma crença de que a sociedade
pode ser má, porém a comunidade sempre será sentida como uma coisa
boa.
Naturalmente a palavra comunidade carrega significados que
produzem suas boas sensações, todos remetendo ao prazer e, na maioria
das vezes, referenciando prazeres que nos são inalcançáveis, mas que
gostaríamos de experimentar.
Comunidade é uma referência de lugar “confortável” e
“aconchegante”, no qual podemos relaxar e nos sentir seguros, sabendo que
nenhum perigo nos espreita às escuras. Na comunidade, por estarmos
seguros a maior parte do tempo, não somos surpreendidos e, assim, nunca
nos sentimos estranhos entre nós. Naturalmente, desejamos estar em tal
lugar, no qual as pessoas se compreendem e se aceitam como são,
perdoam-se suas falhas e apóiam-se umas às outras.
Se considerarmos nossa sociedade atual, baseada na competição,
desrespeito aos mais fracos e valorização ao individualismo absoluto,
poderemos constatar que a palavra comunidade evoca sentimentos que
dizem respeito às nossas faltas e aos nossos desejos de confiança e
49
proteção. Ou seja, comunidade é uma espécie de mundo que não está posto
para nós concretamente, mas no qual gostaríamos de viver e ao qual
desejamos possuir.
Para Bauman (2003), comunidade é “paraíso perdido ou paraíso
ainda esperado; de uma maneira ou de outra, não se trata de um paraíso
que habitemos e nem de um paraíso que conheçamos a partir de nossa
própria experiência” (p. 9). Assim, alçada à categoria de realidade
idealizada, a comunidade comporta variáveis imaginárias que a tornam mais
atraente tanto quanto mais hostil se apresenta à realidade vivida.
Contudo, há um preço a ser pago na busca pela segurança que a
comunidade poderia oferecer e este preço traduz-se sob a forma de
liberdade. Esta é representada pela perda da “autonomia”, do “direito à auto-
afirmação” e “à identidade”.
Em contraposição a essa realidade, segundo Bauman (2003), há os
cosmopolitas, seres que se consideram extraterritoriais por viverem e
trabalharem num mundo feito de constantes viagens entre os principais
centros metropolitanos globais, como Tóquio, Nova York, Londres e Los
Angeles. Estes tendem a vestir-se de maneira sóbria, comumente usam
ternos Armani de cores escuras, os mesmos acessórios, como laptops,
palmtops, notebooks, celulares, hospedam-se nos mesmos hotéis,
freqüentam os mesmos restaurantes, academias de ginástica e escritórios,
constituindo-se „virtualmente idênticos‟. Para estes, forma -se uma „zona livre
de comunidade‟, através da criação de uma „bolha‟ na qual
50
a elite cosmopolita global dos negócios e da indústria
cultural passa a maior parte de sua vida... É um lugar onde uma reunião, entendida como mesmice (ou mais
precisamente, uma insignificância de idiossincrasias) de indivíduos encontrados por acaso e „ necessariamente irrelevantes‟, e uma individualidade, entendida como a
facilidade não-problemática com que as parcerias são celebradas e abandonadas, são exercidas dia a dia em lugar
de todas as outras práticas socialmente compartilhadas (p. 55).
Assim, para Baumam (2003), ”A „secessão dos bem-sucedidos‟ é,
antes e acima de tudo, uma fuga da comunidade” (p. 55).
A esse respeito, cabe citar o filme Matrix, no qual é feita uma crítica
ao mundo globalizado, utilizando-se o elemento tecnológico do mundo
moderno, a Internet, através da mistificação. Neste filme percebe-se uma
comunidade de soldados matrix, seres com aparência humana, apesar de
„robotizados‟ pelo processo de massificação, virtualmente idênticos, usando
os mesmos ternos, sapatos e óculos de sol. A missão desses seres
invencíveis é exterminar os humanos sobreviventes à Matrix (uma cidade
criada pela ilusão), refugiados na última cidade humana, chamada Sião,
onde todos se relacionam a partir do princípio de fraternidade e igualdade.
De acordo com um dos personagens do fi lme, Tank, Sião localiza-se nas
entranhas da Terra, próxima ao núcleo incandescente do planeta, o Sol.
Desse modo, Sião parece representar a noção de comunidade, um lugar
nuclear onde finalmente todos podem sentir-se seguros, pertencentes a um
grupo de iguais e salvos das ilusões da Matrix. Enquanto que o significado
de Matrix, explicado por um dos personagens chamado Morfeu, equivale a
Ma = Maya, ilusão em sânscrito e Trix = Tri ou Três. Assim, Matrix tem o
51
mesmo significado das tradicionais Três Mayas, Três Véus, ou Três ilusões:
a ilusão física, a ilusão psíquica e a ilusão espiritual, que segundo o
hinduismo ocultam a realidade. No contexto que até agora foi apresentado,
parece ter equivalência com a porção sociedade da aludida dicotomia:
comunidade/sociedade. Ou seja, como apontado por Tonnies (1944, apud
FERNANDES, 1972), a comunidade caracteriza-se por sua vida real e
orgânica, lembrando a cidade de Sião, enquanto que a sociedade estrutura-
se a partir do seu caráter mecânico, que no filme Matrix é representado pelo
avanço tecnológico que gera a realidade virtual.
Assim, como já foi dito, existe uma variedade de definições para
comunidade, dependendo do ponto de vista que os autores assumem.
Muitas dessas definições estão subordinadas a uma limitação geográfica.
Assim, pessoas que vivem numa determinada área constituiriam uma
comunidade (Ferreira, 1968).
Um conjunto de pessoas ligadas por algum objetivo comum relevante
também representam um outro critério de interesses vitais dominantes,
definindo-se como uma comunidade. Podem ainda ser representada por
pessoas que não vivem próximas umas às outras, no mesmo território, como
ocorre com os membros de uma organização religiosa, um sindicato, etc.
A esse respeito, Newstetter (1941), citado por Ferreira (1968), dispõe:
Definirei comunidade como dois ou mais grupos numa
relação de interação psíquica, cujas relações com um outro podem ser abstraídas e distinguidas de suas relações com
todos os outros (grupos) de sorte que possam ser tidos como uma entidade (p. 2).
52
Hillman apud Ferreira (1968) relata que os contornos físicos são os
elementos mais evidentes para se definir uma comunidade, mas não são os
únicos. Argumenta vir dessa constatação a necessidade de definições bem
amplas, a fim de abrangerem as variedades de formas tanto físicas como
sociais de que a comunidade poderia se revestir.
Uma comunidade, segundo Tonnies, citado por Buber (1996), é um
conjunto social orgânico e originário, opondo-se à sociedade, em função de
que, nesse tipo de associação, predomina a vontade natural. Enquanto que
sociedade é um tipo de comunidade constituída e condicionada pela vontade
racional. O autor aponta não se tratar de realidades, porém de ideais. Afinal,
todo agrupamento humano implica nas características mencionadas, em
diferentes proporções e sujeitas a transformações. Desse modo, enquanto
que a comunidade caracteriza-se por sua vida real e orgânica, a sociedade
estrutura-se em função do seu caráter mecânico.
De acordo com Sawaia (1996), no início do século XX ocorreu na
sociologia uma grande quantidade de estudos sobre comunidades,
configurando este território como espaço empírico de pesquisa em
contraposição aos experimentos laboratoriais, bem como os estudos
microssociais em contraponto às análises estruturais. Assim, comunidade
passou a ser um referencial de análise que possibilitava compreender a
sociedade a partir do vivido, evitando-se o reducionismo psicológico, através
de procedimentos antes próprios da antropologia nos estudos sobre
“comunidades indígenas”.
53
Elias e Scotson (2000 [1965]), na obra Os estabelecidos e os
outsiders, realizaram uma pesquisa de campo de aproximadamente três
anos em Winston Parva, nome fictício para uma cidade do interior da
Inglaterra. Nessa cidade, objeto do estudo, os autores constataram que
havia uma comunidade relativamente homogênea, segundo indicadores
sociológicos de renda, educação, tipo de ocupação. Mesmo assim, o
povoado estava claramente dividido entre um grupo que se percebia e que
era reconhecido como establishment local e um outro grupo enquanto
outsiders. O grupo do establishment local diferenciava-se pela tradição,
autoridade e influência, garantidos por um princípio de antiguidade, pois
moravam na cidade há mais tempo. O outro grupo, outsiders, era
estigmatizado e associado a atributos como anomia, delinqüência, violência
e desintegração.
Assim, a partir de relações de poder, “as categorias estabelecidos e
outsiders se definem na relação que as nega e que as constitui como
identidades sociais” (ELIAS e SCOTSON, 2000 [1965], p. 8).
Os autores analisam, num dos capítulos, as fofocas feitas pelos
estabelecidos a respeito dos recém-chegados, considerando-as como
instrumento para monopolizar as oportunidades de poder, marginalizando,
através de estereótipos, os membros do outro grupo, os outsiders. Discutem,
ainda, como essas experiências são vivenciadas nas auto-imagens
individuais e dos grupos.
A experiência relatada nesta pesquisa revela diversos tipos de
integração comunitária, perpassada por relações de poder e estigmatização
54
do grupo de “menores possibilidades” de autoridade e tradição. Há uma
configuração explícita de poder através de estratégias de dominação de um
grupo sobre o outro, estabelecendo recursos simbólicos numa relação
dominante/dominado, que estabelece a formação da comunidade e os
sentimentos de pertencimento dos grupos.
Quanto ao momento na história da teoria social do período posterior à
Segunda Guerra Mundial, “No quadro da divisão do trabalho sociológico, o
livro podia ser identificado com os „estudos de comunidade‟, um gênero, que,
apesar de estar em franca expansão na época, ocupava um lugar
claramente subordinado e sobre o qual pesava um estigma equivalente ao
atribuído aos subúrbios operários que eram o seu principal referencial
empírico” (p. 8).
Kant dá o nome de "comunidade de ação recíproca" a uma das
categorias da relação. O filósofo considera que comunidade é uma
"reciprocidade de ação entre o agente e o paciente, correspondendo ao juízo
disjuntivo do tipo ”algo é ou não é". Segundo ele na comunidade a relação
se refere à função secundária da cópula, ou seja, à função de enunciação.
De forma análoga à experiência, a comunidade se expressa no seguinte
princípio: "todas as substâncias, quando podem ser percebidas como
simultâneas no espaço, estão em uma ação recíproca geral". Kant emprega
este termo no sentido de "uma comunidade dinâmica sem a qual a própria
comunidade local não poderia ser reconhecida empiricamente" e, portanto,
no sentido de um commer-cium por meio do qual se concebem três relações
55
dinâmicas originais, denominadas: "influência", "conseqüência" e
"composição geral".
O que Kant pretende com esta formulação do imperativo categórico, é
apresentar uma idéia daquilo que poderia ser obtido pela lei moral,
nomeadamente uma comunidade ideal na qual todos fazem e obedecem à
mesma lei, na qual todos os fins estão em harmonia uns com os outros. Num
reino dos fins, os fins privados de cada indivíduo são apenas supostos
dentro dos limites impostos pela condição de que todos os seres são
tratados como fins em si mesmos.
Assim, para Baumam (2003), na comunidade da Crítica do juízo: a
comunidade estética de Kant:
A identidade parece partilhar seu status existencial com a
beleza: como a beleza, não tem outro fundamento que não o acordo amplamente compartilhado, explícito ou tácito, expresso numa aprovação consensual do juízo ou em
conduta uniforme. Assim como a beleza se resume à experiência artística, a comunidade em questão se
apresenta e é consumida no „círculo aconchegante‟ da experiência. Sua „objetividade‟ é tecida com os transitórios fios dos juízos subjetivos, embora o fato de que eles sejam
tecidos juntos empreste a esses juízos um toque de objetividade (p. 62).
Desse modo, a vida da „comunidade de juízo‟ tende a ser curta, dado
que serve a „construção/destruição‟ da identidade, prestando-se tanto à
„autoperpetuação‟ quanto à „autodestruição‟. Tal necessidade nunca estará
satisfeita e nem deixará de estimular uma busca por satisfação. A indústria
de entretenimento serve-se primordialmente dessa necessidade da
comunidade estética, gerada pela ocupação com a identidade. Devido ao
avanço da tecnologia eletrônica, atinge-se uma multidão de telespectadores
56
fisicamente remotos em torno de uma massiva audiência, a partir da qual o
indivíduo sente-se “na presença de uma força que é superior a ele e diante
da qual ele se curva”, criando-se as “celebridades à vista” (BAUMAN, 2003,
p. 63). A importância da „celebridade‟ aumenta ou diminui de acordo com a
quantidade de “espectadores, ouvintes, compradores de livros e discos” que
essa consegue mobilizar. Assim, a indústria do entretenimento, como objeto
de experiência estética, atua através da sedução. A punição para àqueles
que não se engajarem a essa comunidade estética será a sujeição à perda
de uma experiência que tantos outros poderão usufruir.
Como dito anteriormente, não há referências explícitas sobre
comunidade na psicologia social até os anos 70, quando esta surge na
psicologia social comunitária (Sawaia, 1996). Comunidade aparece,
raramente, referindo-se “às instâncias intermediárias entre o homem e a
sociedade ou como sinônimo de sociedade, e com diferentes conotações
valorativas” (p. 43). Nos estudos sobre psicologia dos povos realizados por
Wundt em 1904 (apud SAWAIA, 1996), comunidade tem o significado de
„interação coletiva‟.
Na mesma coletânea, Campos (1996), citando a pesquisa de Freitas
(1994), nos aponta para uma condição divergente daquela enunciada por
Sawaia (1996), alegando que a utilização de teorias e métodos da psicologia
em comunidades de baixa renda iniciou-se em meados da década de 60,
objetivando deselitizar a profissão e trazer melhorias às condições de vida
das classes trabalhadoras, constituindo assim o espaço a que se denominou
“psicologia comunitária” ou “psicologia na comunidade”. Declara que os
57
lugares onde se iniciaram tais experiências de psicologia comunitária foram
“bairros populares, favelas, associações de bairro, comunidades eclesiais de
base, movimentos populares em geral” (p. 9).
Para Freud (1976), citado por Sawaia (1996), a comunidade tem um
caráter „homogeneizador‟ dirigido a uma “dimensão negativa e injusta que
considera todos os homens iguais em desejos e necessidades”. O autor
considera ainda que é difícil à natureza humana render-se a qualquer
„comunidade social‟ e que, portanto, a vida em comunidade representa
“trocar uma parte de felicidade pessoal por uma parte de segurança, através
de mecanismos que facilitam essa má troca” (p. 43).
Na psicologia social, segmento criado no início do século XX, com o
propósito de análise da relação homem/sociedade, o conceito de
comunidade não ocupa posição central. Este lugar está reservado para
„grupo‟ e „interação social‟, presentes nos estudos sobre „fenômenos
coletivos‟.
Segundo Adorno e Horkheimer (1973), apud Sawaia (1996):
A palavra grupo é uma expressão ocasional, um lugar vazio
que, segundo o contexto de cada ocasião, se enche de diferentes significados (...). Serve para definir qualquer tipo de relação recíproca entre multiplicidade de indivíduos,
qualquer vínculo entre seres humanos (p. 43).
Guareschi (1996), valendo-se de uma definição atribuída a Marx,
afirma que comunidade é:
Um tipo de vida em sociedade „onde todos são chamados
pelo nome‟. Esse „ser chamado pelo nome‟ significa uma vivência em sociedade onde a pessoa, além de possuir um nome próprio, isto é, além de manter sua identidade e
singularidade, tem possibilidade de participar, de dizer sua
58
opinião, de manifestar seu pensamento, de ser alguém
(p.95).
Assim, grupo e comunidade para esse autor não são coisas distintas,
visto que (como se verá no item reservado ao conceito de relação) se
definem a partir das relações específicas ali existentes.
Percebe-se árdua a tarefa de acompanhar e compreender os diversos
empregos do conceito comunidade. Visto que esse conceito comporta
inúmeros significados e até sensações. Fica claro que a variação de
sentidos, assumida de acordo com o contexto no qual o conceito é
empregado, justifica grande parte da complexidade na abordagem de
comunidade.
Parece, de certa forma, consensual entre os diversos autores de
diversas áreas do conhecimento optarem pela dicotomia entre Comunidade
e Sociedade, articulando seus correlatos: tradição x modernidade, orgânico
x mecânico, segurança x insegurança, coletividade x individualidade, etc.
Nesse trabalho, a posição tomada frente à idéia de comunidade será
aquela que remete ao sentimento de pertença, ao lugar de reconhecimento
do sujeito através de seu nome, partindo de suas singularidades e
perpassando os elementos comuns que identificam os sujeitos no coletivo.
Assim, esse referencial é aquele que mais se aproxima do pensamento
defendido por Guareschi (1996), a partir da possibilidade do sujeito afirmar-
se positivamente perante um dado grupo, reconhecendo e sendo
reconhecido por este, emitindo as suas opiniões e manifestando os seus
59
pensamentos, existindo como sujeito crítico com direito à sua palavra e a
afirmação de sua identidade pessoal.
Considerando o recorte analítico a que se presta esta pesquisa, cabe
ressaltar sucintamente o conceito de identidade.
2.5. Identidade
O homem em sua trajetória existencial busca instalar-se no mundo de
maneira segura. Assim, procura ordenar suas experiências de vida de forma
significativa através da construção de um mundo simbólico que lhe permita
organizar suas vivências voltadas para representações acerca do real. Tais
referências de mundo e de si mesmo dizem respeito a suas crenças,
conceitos, atribuições, valores morais, pessoais, etc. Desse modo, o
indivíduo percebe-se capaz de identificar os objetos em suas
especificidades, construindo recursos de atuação no mundo através da
organização de seu contexto de vida (BERGER & LUCKMANN, 1999).
“As concepções de realidade, construídas nas relações interpessoais,
são mediadas pelas crenças, padrões, práticas e normas veiculadas pela
sociedade” (FERREIRA & CAMARGO, 2001, p. 83).
As concepções de realidade que constituem o mundo simbólico
pessoal são desenvolvidas através de um processo dialético em que o
indivíduo figura, enquanto co-produtor da sociedade e de si próprio. A
natureza social do discurso implica numa visão do discurso como forma de
co-participação social. A construção do significado do discurso se dá a partir
60
do envolver e deixar envolver-se dos participantes em circunstâncias
culturais, históricas e institucionais (CIAMPA, 1987).
Segundo Ciampa (1987), o indivíduo encarna suas relações sociais,
construindo a partir destas relações a sua identidade pessoal. Assim, tais
identidades pessoais constituem a sociedade, constituindo-se a si próprias
num processo dialético, através de um movimento de metamorfose que visa
a emancipação.
Pelo uso da linguagem as pessoas tornam-se conscientes de quem
são, agindo no mundo através do processo de construção de significados,
construindo suas identidades sociais (MOITA-LOPES, 2002).
As identidades sociais, construídas no discurso, estão submetidas a
duas categorias necessárias para a compreensão do significado discursivo,
elaborado socialmente, que são alteridade e contexto.
A idéia de alteridade implica, necessariamente, na presença de um
outro que contém concepções particulares de homem, de mundo e de si
mesmo. Assim, o sujeito percebe que há um outro constituído de maneira
singular e relacionar-se com este outro significa sair de uma posição, de um
lugar central, com todas as peculiaridades deste, para „ ingressar‟ no
universo deste outro. Nesse sentido, a aceitação da alteridade é o
reconhecimento deste outro, é o experienciar um lugar desconhecido
representado pelo outro.
Desta forma, a identidade é construída no contexto do discurso e na
relação com o outro (alteridade). O discurso proferido num determinado
contexto contém especificidades que fazem o indivíduo ser aceito ou negado
pelo grupo. É através da linguagem que as concepções de homem e de
61
mundo são instauradas num contexto e passam a ter determinado valor. Por
exemplo, num ambiente de militância parece haver um „contrato‟,
representado por meio de códigos específicos, em que o discurso do sujeito
atinge o outro. Este se identifica e identifica o outro como „semelhante‟,
legitimando-o pela palavra.
Para Ciampa (2002), os contextos grupais de produção de sentido
contribuem para a criação de focos de resistência numa complexa rede de
intersubjetividades, podendo criar novos significados para as ideologias
compartilhadas socialmente.
2.6. O Conceito de Relação
Guareschi (2004b) compreende o conceito de relação como sendo
dos mais fecundos e caros à psicologia social. Sintetiza seu pensamento
dizendo que: “no meu entender, se não for a relação o conceito central da
Psicologia Social, é, certamente, um dos mais importantes” (p. 60).
Ele aponta que relação sugere comumente às pessoas a idéia de
troca, comunicação e necessidade de haver pelo menos duas pessoas para
que haja relação, alertando que estes são exemplos de relação, mas que o
conceito de relação não para por ai, podendo inclusive referir-se a algo
singular.
Lembra que na fi losofia a definição para relação é “ordo ad aliquid”,
ou seja “... poderíamos traduzir assim: relação é o ordenamento, o
62
direcionamento intrínseco, isto é, do próprio ser, em direção a outro ser” (p.
61). Prossegue enfatizando:
Mas esse ser, essa realidade, continua „uma‟, com a diferença que há nela algo que, necessariamente, isto é, na
sua própria definição, o obriga a se ligar a outro, a incluir em si um outro, ou outros. ...Conclui-se daqui,
conseqüentemente, que para haver „relação‟ não é necessário que haja duas coisas: basta apenas uma que contenha em si, em sua definição, a necessidade, a
orientação intrínseca em direção a outro(s) (p. 61).
Percebe-se que esse conceito (relação) guarda estreita referência
com o conceito de alteridade, implicando numa disposição do sujeito em
abrir mão de sua posição para compreender a posição do outro. Para situar-
se a partir das crenças e valores do outro na compreensão do mundo
observado por este, necessariamente o sujeito tem que estar numa relação
legitima com o outro.
Guareschi (1996) alerta que muitas vezes pensamos relação como
algo que “une” ou “liga” duas coisas. Porém, o conflito, a rejeição e a
exclusão também são exemplos de relação. E assim relação diz respeito a
uma coisa que por si só não pode existir, dependendo de outra. “... A
percepção da relação é, pois, uma percepção dialética, percepção de que
algumas coisas „necessitam‟ de outras para serem elas mesmas” (p. 83).
Guareschi (2004) faz uma clara distinção entre os significados dos
termos indivíduo e pessoa. Esclarecendo que indivíduo pode significar várias
coisas. Distingue duas dimensões para o conceito, na primeira o ser
humano, entendido como indivíduo, é „um‟, „único‟, „singular‟. Para a filosofia
„indivisum in se‟, ou seja aquele que é indivisível em si mesmo. Na outra
dimensão, o ser humano concebido como indivíduo continua sendo „um‟,
63
“mas é também „separado de tudo‟, isto é, não tem nada a ver com nada e
com ninguém; é o „divisum a quolibet alio‟, isto é, separado de tudo o mais
(p.35). Aponta que essa é a concepção de ser humano assumida pela
filosofia liberal. Assim, o indivíduo é visto enquanto suficiente em si mesmo,
não tendo nada a ver com os outros e não necessitando de outros para sua
„definição‟ e „compreensão‟. O indivíduo nessa concepção é o centro, está
no centro e tudo converge para o mesmo.
Num outro extremo, dentro de uma visão de „comunitarismo Solidário‟,
como denominado pelo autor, existem aqueles sujeitos que se consideram a
si próprios como pessoas em relação, ou seja, “pessoas = relação”. Na
definição destes seres já estão incluídas necessariamente outras pessoas.
São seres „únicos‟ e „singulares‟, enquanto pais, irmãos (sujeitos de
responsabilidade), “mas não se „explicam‟, nem se definem, apenas a partir
deles e „neles‟ próprios. Sua subjetividade é um ancoradouro de milhões de
„outros‟, de relações” (GUARESCHI, 1996, p. 84).
Guareschi (1996) aponta que para se saber qual o tipo de grupo está
em questão deve-se voltar ao tipo de relações estabelecidas neste grupo. O
autor avalia que viver em comunidade possibilita as pessoas estabelecerem
relações sociais, mantendo o que lhe é de singular, mas dependendo dos
outros para sentir-se com plenas possibilidades de realização.
Na comunidade o sujeito teria possibilidades de desenvolver suas
potencialidades, através da iniciativa criadora. As relações comunitárias
verdadeiras, portanto, seriam aquelas que possibilitem aos sujeitos usufruir
das dimensões do espaço solidário e participativo que ainda existe nas
64
comunidades. Tais relações também implicam numa dimensão afetiva a
partir da qual os sujeitos possam se sentir acolhidos, amados e valorizados.
Creio que nesse momento valha uma articulação dos tópicos
abordados.
2.7. Síntese das Discussões Realizadas
A partir da breve visão panorâmica até aqui apresentada, cabe fazer
algumas articulações para que o percurso da pesquisa vá adquirindo um
sentido próprio. Como discutido inicialmente, a realidade social brasileira
apresenta inúmeras situações de adversidades complementares aos sujeitos
e famílias de baixo poder aquisitivo, frente às questões referentes à
alimentação, à habitação, à educação, à cultura, à violência, etc, se
comparados a outros sujeitos e famílias que têm seus poderes sociais,
econômicos e financeiros garantidos.
Para lidar no cotidiano com tal contradição, as sociedades criam
mecanismos que legitimam e justificam as distribuições desiguais de renda e
suas conseqüentes condições geradoras de acessibilidade ou de exclusão
em relação aos meios de habitação, educação, cultura, lazer, consumo e
etc..
Neste mesmo contexto brasileiro retratado pela riqueza excessiva de
alguns pequenos grupos sociais, encontra-se uma parcela majoritária da
sociedade que vive em situação de miséria absoluta, fome e desamparo.
Como nos aponta Santos (2000):
65
...só a área de produção de soja no Brasil daria para alimentar 40 milhões de pessoas se nela fossem cultivados
milho e feijão. Mais pessoas morreram de fome no nosso século que em qualquer dos séculos precedentes. A distância entre países ricos e países pobres e entre ricos e
pobres no mesmo país não tem cessado de aumentar (p. 24).
Aproveito para lembrar a fala de Pedrinho Guareschi (2004a), durante
o II Congresso de Terapia Comunitária, que propõe que a resolução dos
problemas surgidos no contexto de comunidade deve ser realizada neste
mesmo campo, permitindo aos sujeitos se apropriarem da autoria de suas
histórias, tornando-se cidadãos ativos. Ele afirma que somente na
impossibilidade de solução dos problemas de forma interna à comunidade é
que devem ser acionadas as esferas públicas, como o município, o estado e
a união.
Frente a essa realidade, surgem algumas práticas interventivas
comunitárias, como a Terapia Comunitária, que se propõem ao
enfrentamento e reversão dessa situação de inclusão perversa a que os
sujeitos economicamente desfavorecidos estão submetidos. Essa prática
(TC) tem sido desenvolvida e aplicada nas comunidades, e às vezes em
outros tipos de grupos, há 17 anos.
A Terapia Comunitária parece guardar em si muitos aspectos comuns
às práticas comunitárias realizadas pelo Movimento Eclesial de Base nas
décadas de 60 e 70. Seja em relação ao contexto em que ambas as práticas
se desenvolveram, seja pelos referenciais pretendidos de resgate da ação
cidadã (implicitamente colocado a partir dos objetivos da TC), através da
66
„ação-reflexão‟ proposta pelo ilustre pensador Paulo Freire, junto às
populações desfavorecidas economicamente (FREIRE, 1987).
A Terapia comunitária também parece guardar estreitas relações do
seu modelo co-participativo com o chamado modelo colaborativo implantado
na regional Cajuru, em Curitiba, 1999. O modelo colaborativo é uma
metodologia de trabalho comunitário que visa o desenvolvimento de
comunidades a partir de experiências e aprendizados compartilhados,
envolvendo a comunidade local, a Prefeitura Municipal de Curitiba, O GETS
(Grupo de Estudos do Terceiro Setor) e a UWC-CC (United Way of Canadá -
Centraide Canadá), com apoio da CIDA (Agência Canadense para o
Desenvolvimento Internacional). Seguem abaixo as duas tabelas propostas
pelos dois modelos com as suas respectivas nomenclaturas, Prefeitura
Municipal de Curitiba (2002, p. 21) e Barreto (2005):
67
Mudando o olhar - Modelo Colaborativo
Mudança de Paradigma
Mudando o olhar - Modelo Co-participativo
DE → PARA DE → PARA
Deficiências
Foco sobre problemas e dif iculdades
Capacidades
Foco sobre as habilidades
e potencialidades
Salvador da Pátria
Soluções Participativas
Peritos
Prevalece a opinião
técnica
Comunidade
Prevalece o saber da
comunidade
Carências / Deficiências
Competências / Potenciais
Poder Sobre
A comunidade
Poder Compartilhado
Com a comunidade
Unitário (Técnico)
Comunitário
Processo Decisório
Centralizado
Processo Decisório
Compartilhado
Concentração na informação
Circulação da informação
Recursos Ofertados
Vêm de fora
Recursos
Estão na comunidade
O outro é um objeto passivo
O outro é um parceiro ativo
Dependência
e Clientelismo
Corresponsabilidade
E Cidadania
A solução vem de fora
As soluções vêm das
famílias
Gera dependência
Suscita co-responsabilidade
Descrença no outro Crença na capacidade do outro
Clientelismo Cidadania
Modelo Colaborativo
Fonte: Prefeitura Municipal de Curitiba; GETS -
Grupo de Estudos do Terceiro Setor; United Way of Canadá - Centraide Canadá (2002, p. 21)
Modelo Co-participativo da Terapia Comunitária
Fonte: Barreto (2005, P. 58)
Além disso, a seqüência de procedimentos propostos para a
realização de uma sessão de terapia comunitária parece ter certa
proximidade com a proposta do método de Paulo Freire, que propõe como
procedimentos: investigação temática, tematização, problematização, leitura
do mundo, comparti lhando o mundo lido, reconstrução do mundo lido.
Enquanto que a terapia comunitária propõe: acolhimento, escolha do tema,
68
contextualização, problematização, rituais de agregação e conotação
positiva, avaliação.
A referência feita a Paulo Freire na terapia comunitária, como um dos
eixos fundantes que alicerçam a proposta, não tem um aprofundamento
necessário. Diz respeito apenas ao binômio ação-reflexão criado pelo
educador e a associação entre a teoria e a realidade, como forma de
expressão dos problemas vivenciados pelos sujeitos nos diferentes
contextos (BARRETO, 2005, p. XXIV).
Freire (1998) propõe que somente a partir do exercício do diálogo e
da ação-reflexão-ação, o indivíduo pode ser capaz de fazer uma leitura
crítica do mundo, constituindo-se enquanto sujeito consciente com
possibilidades de transformação de sua própria história.
Considerando que essa pesquisa está sendo realizada no campo da
psicologia, cabe aqui relembrar (como discutido no item identidade) a crença
do autor de que a realidade é construída e compartilhada socialmente, num
processo dialético no qual o sujeito é produto e produtor da sociedade,
simultaneamente (BERGER & LUCKMANN, 1999). Assim, ao que parece
de acordo com os objetivos da TC, a legitimação do sujeito a partir de sua
narrativa de vida no grupo, tende a fortalecer, através da reflexão, uma
constituição identitária afirmativa, na qual o mesmo poderia tornar-se mais
ativo com relação à criação de sentidos para suas experiências diárias.
Nessas condições pode-se entender a terapia enquanto espaço para
a construção de novos significados que, organizados em narrativa a partir
das relações intersubjetivas, poderão conferir sentido à experiência.
69
A partir destes pressupostos, pretendi realizar um levantamento das
atribuições de sentido à terapia comunitária por alguns de seus
participantes. Assim, estou elegendo uma comunidade na zona sul da
cidade de São Paulo, na qual a Terapia Comunitária está sendo aplicada há
um ano.
As sessões de Terapia Comunitária têm ocorrido nessa comunidade
quinzenalmente, conduzidas por uma psicoterapeuta, que desempenha a
função de terapeuta comunitária.
3. JUSTIFICATIVA
A relevância do tema apresenta-se por abordar aspectos
socioeconômicos e culturais referentes a um expressivo contingente
populacional, permitindo que as questões relacionadas à exclusão social, ou
como aponta Sawaia (2001), à inclusão perversa, situação de pobreza e
risco frente à violência social, sejam discutidas e pensadas, de modo a se
buscar novas possibilidades de enfrentamento de tais situações.
A comunidade em questão, da Saúde, abriga um contingente
expressivo de pessoas incluídas socialmente de maneira perversa, estando
privadas de muitos equipamentos e serviços governamentais e lançadas a
uma situação de carência de recursos financeiros e humanos, realidade
comum em diversos bairros espalhados pelas grandes cidades. Assim, a
aplicação de uma prática interventiva nesse contexto mostra-se como uma
possibilidade de enfrentamento de tais situações adversas.
70
Além disso, apóia-se na crença de que a ação social voltada para a
atenção primária em saúde pode servir como instrumento que promova a
construção de um sentido de autoria, permitindo ao sujeito uma postura
socialmente ativa e transformadora da realidade à qual encontra-se
submetido.
Para Lane (1984):
A consciência da reprodução ideológica inerente aos papéis
socialmente definidos permite aos indivíduos no grupo superarem suas individualidades e se conscientizarem das condições históricas comuns aos membros, levando-os a um
processo de identificação e de atividades conjuntas que caracterizam o grupo como unidade. (p. 17).
Desse modo, as intervenções praticadas em contextos comunitários
possibilitam um efetivo reconhecimento de si próprio e do outro, por parte
dos sujeitos, através do compartilhar das experiências individuais pela
narrativa.
As famílias de baixa renda têm, principalmente nos movimentos
sociais, uma possibilidade de criar novas condições de atuação que
permitam uma transformação da realidade social de exclusão e
marginalidade à qual estão submetidas. Normalmente desprovidas de
recursos para atuar nessa transformação de suas realidades sociais, estas
famílias de baixa renda encontram pouca ou, às vezes, nenhuma alternativa
para lidar com a realidade de exclusão social que historicamente se lhes
apresenta. Por isso, formas de intervenção nestes contextos devem ser
propostas e avaliadas, como a Terapia Comunitária, para que possa criar e
implementar novas políticas de enfrentamento social das adversidades
geradas principalmente pela distribuição surreal de rendas no Brasil.
71
4. OBJETIVOS DA PESQUISA
Partindo destas constatações, este trabalho pretendeu realizar um
levantamento das atribuições de sentido à terapia comunitária por algumas
participantes.
Assim, pretendeu-se:
conhecer e compreender qual o papel da terapia comunitária
na vida destes sujeitos;
conhecer e analisar o processo de atribuição de sentido por
parte de algumas das participantes da terapia comunitária com
relação as suas vinculações no grupo;
conhecer e compreender a importância pessoal atribuída por
algumas das participantes à TC, a partir de sua experiência
vivida, nas sessões;
compreender o papel da TC no cotidiano dos sujeitos
participantes.
5. PROBLEMA DA PESQUISA E QUESTÕES NORTEADORAS
É questão fundamentalmente determinante do processo de
constituição da pesquisa que se tenha clareza com relação ao problema a
ser pesquisado (LUNA, 1996).
72
O problema de pesquisa consistiu em identificar e compreender
atribuições de sentido à Terapia Comunitária feitas por algumas
participantes das sessões.
Em linhas mais amplas, pode-se dizer que as questões que nortearam
esta pesquisa estavam voltadas para compreensão de:
Qual o significado e sentidos atribuídos à terapia
comunitária por algumas de suas participantes?;
Em que medida a participação nas sessões de terapia
comunitária pode transformar os sujeitos participantes?;
Como os sujeitos participantes compreendem esse espaço
de fala e de escuta em seu cotidiano?;
Quais as possibilidades de novos sentidos existenciais a
terapia comunitária pode promover aos sujeitos
participantes?
Realizando tais procedimentos, o problema de pesquisa tornou-se
antes um ponto de partida do que de chegada, possibilitando a sua
reformulação a cada nível de análise, determinada pelo confronto das
condições de produção do discurso e da ação dos sujeitos.
73
6. MÉTODO
Por tratar-se de uma pesquisa que fez o levantamento das atribuições
de sentido a uma prática realizada no contexto comunitário, Terapia
Comunitária, e que é constituída por um método e uma aplicação, convém
aqui discutir alguns princípios da metodologia do trabalho comunitário.
Assim, segundo Pereira (2001):
Existe uma diferença entre Ciência e Sabedoria. Diferença
não é sinônimo de antagonismo. A Ciência, em muitos momentos, esvaziou a criatividade pelo excesso de racionalidade instrumental, enquanto a Sabedoria ficou ao
lado do saber-sabor (prazer). Quando ocorre esse desequilíbrio a metodologia do trabalho comunitário e social
opta muito mais pela Sabedoria que pela Ciência, pois ela é preferencialmente inclinada para a comunidade, a arte, o estético, o sagrado e o bom-senso. (p. 141).
Ressalva seja feita à metodologia do trabalho comunitário e social
como um dispositivo alternativo voltado para a produção de conhecimentos e
a formação de “intelectuais organicamente comprometidos com os
interesses da classe dominada” (PEREIRA, 2001, p. 141).
Desse modo, a produção de conhecimentos deve ser compreendida
como instrumento de luta, conscientização, socialização e construção dos
sujeitos e da sociedade. “Tal produção de conhecimento (contra-ideologia) e
formação de líderes (intelectuais orgânicos) pressupõe a troca de saberes e
experiências, o compromisso, a ação comum e a relação dialética entre
agentes externos e população” (PEREIRA, 2001, p. 142).
74
Além disso, parto aqui da crença epistemológica de que o produto
alcançado no desenvolvimento de uma pesquisa refere-se sempre a uma
aproximação da realidade e nunca ao alcance de verdades absolutas.
Assim, vou me valer da origem da palavra método, do grego, meta e
odos. Ou seja, meta significa para, referindo-se a preposição que dá a idéia
de movimento e odos significa caminho. Portanto, método representa o
caminho para se chegar a algo, a partir de uma série de operações, táticas e
estratégias elaboradas para que se possa alcançar uma finalidade ou
objetivo.
Naturalmente, não se pode furtar da consideração de que “todo
método está apoiado em pressupostos teóricos de alguma ciência, regido
por alguma crença ideológica e destinado a produzir alguma prática. Daí,
nenhuma metodologia pode ser vista como neutra, pura ou inocente”
(PEREIRA, 2001, p.140).
Ao apontar para a importância crucial acerca do estudo dos métodos
e suas inter-relações, metodologia, além das múltiplas polêmicas na
utilização dos métodos nas pesquisas, Pereira (2001) adverte: “Por isso, não
podemos conceber metodologias, métodos e técnicas divorciadas das
questões ideológicas, da produção do saber e dos aspectos políticos que
atravessam a prática” (p. 140).
Tendo em vista tais condições que perpassam a realização de uma
pesquisa, o referencial teórico para articulação da pesquisa será buscado
junto às produções da psicologia social (particularmente a psicologia social
crítica), e sociologia (p. ex., CIAMPA, 1987; BERGER & LUCKMANN, 1999;
75
SPINK, 1999, SANTOS, 2000, GUARESCHI, 2004b), enfatizando -se os
processos dialógicos construídos nas relações.
A abordagem qualitativa de pesquisa será aqui adotada para análise
dos dados. Por não partilhar de crenças científicas racionalistas que
objetivam alcançar verdades, nesta pesquisa irei posicionar-me junto ao
princípio de que “o que sabemos refere-se em geral aos resultados de nossa
indagação da realidade. O senso comum supõe que essa realidade possa
ser encontrada”4 (p. 17).
Para Gil (1999) há uma relação dinâmica entre a realidade e o sujeito,
de tal modo que não há como dissociar o mundo objetivo e a subjetividade
do sujeito, traduzindo-os em números. Assim, a interpretação dos
fenômenos e a atribuição de significados são elementos básicos no
processo de pesquisa qualitativa. O processo e seus significados são os
focos principais nesta abordagem de pesquisa.
Alinhado com Santos (2000), partilho de sua tese de que, a partir da
noção de comunidade, se possa resgatar a “racionalidade estético-
expressiva”, não instrumental, rompendo com a cisão determinada pelo
projeto da ciência moderna. Passa-se, assim, a valorizar o conhecimento do
senso comum e as manifestações populares, para que se possa construir
um “conhecimento-emancipatório”. Este não se baseia na oposição “ciência-
experiência”, mas sim na possibilidade de continuidade das experiências
emancipatórias nos diversas dimensões político-sociais. Tais idéias
compõem o chamado pensamento utópico que propõe o surgimento de uma
ciência emergente, dotada de uma epistemologia emergente que represente
4 Para maior aprofundamento ler A realidade inventada, Paul Watzlaw ick (Org), Campinas: Editorial Psy II, 1994.
76
a ruptura com a ruptura epistemológica. Ou seja, um rompimento com a
separação da ciência e do senso comum, efetuado no advento da ciência
moderna, possibilitando um compromisso da ciência em tornar seu
conhecimento apropriável ao senso comum. Não a partir de seu rigor e
método, mas sob a forma de um conhecimento prático. Nas palavras de
Santos, “conhecimento prudente para uma vida decente”.
Assim, nesta pesquisa, o contexto da comunidade será valorizado
enquanto lugar de manifestações legítimas que devem ser reconhecidas
enquanto “conhecimento popular (o comunitário, o estético, o sagrado, o de
bom-senso, a desrazão e a arte)” (PEREIRA, 2001, p. 145).
O tipo de pesquisa aqui desenvolvido foi a pesquisa exploratória.
Segundo Gil (1999) as pesquisas exploratórias são realizadas em função de
“proporcionar uma visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado
fato” (p. 43). É o tipo de pesquisa especialmente voltada para temas pouco
explorados, sobre os quais percebe-se uma certa complexidade ao formular
hipóteses que possam mostrar-se „precisas‟ e „operacionalizáveis‟. Dentre os
tipos de pesquisa existentes, a exploratória é a que apresenta menor rigidez
quanto ao seu planejamento.
6.1. Participantes
As participantes da pesquisa foram quatro freqüentadoras das
sessões de Terapia Comunitária na cidade de São Paulo (uma comunidade da
zona sul) independente da idade que tinham e com freqüência constante nas
77
sessões, a partir das narrativas buscou-se compreender a atribuição de
sentido que as mesmos conferem à TC. Foi considerado critério o fato das
participantes morarem na mesma comunidade, permitindo assim uma
referência de inserção de classe comum às participantes.
As participantes foram escolhidas a partir de indicação feita pela
terapeuta comunitária que conduz o referido grupo, considerando-se a
adequada capacidade de articulação de idéias por parte das mesmas.
6.2. Instrumentos e Procedimentos
Entendendo aqui a problematização proposta de compreensão do
sentido atribuído à terapia comunitária pelos sujeitos participantes, cabe
ressaltar que esse sentido é construído a partir das relações no grupo e,
portanto, está impregnado pelas relações intersubjetivas que ali se dão.
Assim, como pontua Guareschi (1996):
Usam-se, para a tarefa de se detectar as relações, todos os instrumentos de pesquisa que forem necessários:
observação, entrevistas, pesquisa participante, questionários, enfim, todo tipo de teste que possa revelar a „vida social‟, esta vida que constrói nas e pelas relações: e
se é „vida‟, é sempre dinâmica, sempre em transformação (p. 89).
Em função da experiência do pesquisador em terapia comunitária
(seja enquanto participante de sessões, seja enquanto terapeuta e co-
terapeuta que conduz tais sessões), a observação simples realizada ao
longo de um ano e nove meses de contato com a teoria e a prática da TC.
fornece subsídios para que se possa estabelecer a utili zação de conceitos a
78
priori para articulação teórica do sentido atribuído pelos participantes.
Conceitos da psicologia, particularmente social, como identidade, relação,
alteridade e subjetividade estão desde já incluídos como categorias para
articulação e análise deste trabalho.
O delineamento de pesquisa aqui utilizado para estabelecer um
sistema conceitual que irá confrontar a visão teórica do problema com os
dados da realidade será o estudo de campo. Os estudos de campo estão
muito mais voltados para um maior “aprofundamento das questões
propostas do que a distribuição das características da população segundo
determinadas variáveis” (GIL, 1999, p. 72).
Assim, percebe-se maior flexibilidade no planejamento do estudo de
campo, possibilitando uma reformulação dos objetivos ao longo da pesquisa.
As participantes da pesquisa foram abordadas e apresentadas ao
pesquisador ao final de uma sessão de terapia comunitária. Foram
esclarecidos os objetivos da pesquisa, as questões referentes ao anonimato
da identidade das mesmas, do termo de compromisso, a possibilidade de
gravação das entrevistas, bem como explicação da posterior transcrição e
análise dos dados.
6.2.1. Entrevistas
A entrevista é das técnicas de coleta mais utilizadas em pesquisas na
área de ciências sociais (GIL, 1999).
Gil (1999), referindo-se a Selltiz et al, afirma que:
79
Enquanto técnica de coleta de dados, a entrevista é bastante
adequada para a obtenção de informações acerca do que as pessoas sabem, crêem, esperam, sentem ou desejam,
pretendem fazer, fazem ou fizeram, bem como acerca das suas explicações ou razões a respeito das coisas precedentes (p. 117).
Foi realizada uma entrevista em grupo com as participantes, a partir
de contato telefônico, e uti lizou-se um roteiro prévio (focalizado), com tópicos
a serem abordados durante a entrevista (conforme Anexo 1). Assim, foi
possível ampliar e correlacionar a compreensão dos sentidos atribuídos à
participação nas sessões de Terapia Comunitária por parte de cada uma das
entrevistadas.
A entrevista focalizada busca enfocar um tema bastante específico
durante a prática. Cabe ao entrevistador possibilitar que o entrevistado fale
livremente sobre o assunto, porém quando este se desvia do tema delineado
deve haver um empenho do entrevistador para que tal tema seja retomado
(GIL, 1999).
Dessa forma, pretendi, enquanto pesquisador, ter a menor
interferência possível sobre as narrativas das participantes, no momento das
respostas, possibilitando, às mesmas, maior liberdade para expressarem
suas percepções, representações e sentimentos frente às questões
disparadoras do problema de pesquisa. A entrevista foi gravada,
encontrando-se no Anexo 2.
80
6.2.2. Transcrição das Entrevistas
A posterior transcrição da entrevista gravada foi feita pelo próprio
pesquisador, como forma de possibilitar uma maior apropriação dos
conteúdos narrados pelos participantes.
6.2.3. Levantamento de Categorias, a partir dos Discursos das
Próprias Participantes
Para efeito de análise posterior, foi feito o levantamento de algumas
categorias, partindo da fala das participantes. Assim, o que se fez na
seqüência foi a montagem de uma tabela com unidades de significação e
compreensão das falas das participantes, elencando as categorias surgidas,
para a realização de uma análise interpretativa. O Anexo 3 apresenta um
recorte deste trabalho de análise de dados. Após a montagem desta tabela,
a minha compreensão das falas das participantes foi apresentada no
Capítulo 8.
81
6.2.4. Articulação das Categorias com as Referências Teóricas
Discutidas na Introdução
Houve uma articulação das categorias, levantadas a partir das
narrativas das participantes, com referenciais teóricos discutidos, a priori, na
introdução do trabalho que, por vezes, foram ampliados.
A proposta de SPINK (1999) foi utilizada nessa pesquisa como
subsídio teórico e metodológico para a compreensão da produção de sentido
no cotidiano através das práticas discursivas das participantes da pesquisa,
considerando os seus engajamentos num grupo de terapia comunitária.
Porém, essa proposta não será utilizada como método de interpretação na
pesquisa, optando-se pelo método fenomenológico na pesquisa empírica.
7. PROPOSTA DE ANÁLISE DOS RESULTADOS
Os dados encontrados foram articulados em torno de conceitos da
psicologia social comunitária, da sociologia, da antropologia e áreas
correlatas, a partir das análises das entrevistas e de experiências vividas no
desenrolar da pesquisa.
A análise do instrumento aplicado foi tratada sob a forma de capítulos,
dentro dos quais foram criadas categorias que permitiram a construção de
unidades de significação, conferindo sentido à experiência vivida entre o
pesquisador e as participantes, sustentados pelo aporte referencial teórico.
82
Ao final, pretendeu-se identificar e compreender as atribuições de
sentido à terapia comunitária feitas pelas participantes da pesquisa,
realizando uma análise do lugar ocupado por essa prática no cotidiano
desses sujeitos.
83
8. COMPREENSÕES DOS DISCURSOS
8.1. Síntese da Compreensão da Fala de Ana
Ana revelou ter chegado ao grupo a partir do convite de Paula,
psicóloga e terapeuta comunitária, profissional que conduz as sessões de
terapia comunitária que, neste grupo, era denominada de terapia da auto-
estima. Relatou que estava vivendo um momento difícil de sua vida e que o
seu ingresso no grupo a ajudou na superação de seus problemas.
Quando questionada acerca de um eventual sentimento de
conformismo com relação às suas experiências pessoais frente aos
problemas alheios, que muitas vezes podem parecer ser muito mais
complexos, ela refutou tal condição e disse não se conformar com os seus
problemas pessoais e que está sempre lutando para „endireitar‟ aquilo que
não está dando certo, para transformar a sua condição de vida. Em outro
momento, ela disse que ouvindo os problemas das outras pessoas era
possível perceber o quanto era feliz. Esta situação parece sugerir uma
aceitação de sua experiência, através da possibilidade de
redimensionamento do vivido.
Enfatizou o seu sentimento de fortalecimento pessoal após as
sessões de terapia, dizendo sentir-se „poderosa‟ e capaz de resolver todos
os problemas das pessoas com as quais convive, no momento em que
retorna à sua casa quando terminada a sessão. Disse que com o passar da
84
semana vai „enfraquecendo‟, mas que naquele momento ela sente que
poderia resolver qualquer questão.
8.2. Síntese da Compreensão da Fala de Joana
Joana disse que o espaço criado pela terapia comunitária na sua vida
lhe é muito importante. Afirmou adquirir força naquele espaço, a partir do
compartilhar com as demais pessoas, para resolver as suas questões
pessoais cotidianas.
Ela também afirmou que conseguiu aprender a ser mais ponderada a
partir de sua participação nas sessões, pois antes costumava dizer às
pessoas as idéias que lhe ocorriam acerca das mesmas. Joana disse que
atualmente tem sido mais cuidadosa ao dizer algo a uma pessoa, pois,
segundo ela, dependendo da forma como falamos aquilo que pensamos aos
outros, poderemos ou não magoar aquele que nos ouve. Disse ainda que se
sente muito feliz pelas oportunidades que tem de aprender algo novo, pois
ela está com 78 anos e tem percebido que se pode aprender sempre.
Além disso, ela considera que tem resistido ao seu modo de ser
falante e tem ouvido mais as pessoas. Disse não ser da „época do diálogo‟,
pois teve uma criação muito rígida em que não havia diálogo e os pais eram
sempre as pessoas que tudo sabiam, não permitindo aos filhos ter uma
opinião a respeito do que quer que seja.
Joana disse que desde sua participação na terapia tem procurado ser
mais paciente e tentado agir com a filha de maneira diferente daquela que
85
seus pais a tratavam. Assim, em alguns momentos, costuma chamar a filha
para que possam conversar sobre ocorrências cotidianas.
Disse ainda que também se percebe mais paciente com seu marido,
portador da doença de Alzheimer, pois já não se sente irritada com suas
confusões mentais em decorrência da doença.
8.3. Síntese da Compreensão da Fala de Ivone
Ivone disse sentir-se diferente depois da terapia, pois está mais
interessada nos assuntos que as outras pessoas lhe vêm compartilhar.
Disse que tem conseguido levar para as suas relações, inclusive com os
seus familiares, os aprendizados promovidos pelas sessões de terapia.
Afirmou ter feito psicoterapia individual durante algum tempo.
Comparando as sessões de psicoterapia individual que vivenciou com as
sessões de terapia comunitária, ao se referir a um episódio específico em
que a mesma foi escolhida pelo grupo para narrar a sua situação de
sofrimento, Ivone declarou que se naquele mesmo dia em que compartilhou
a sua experiência de vida com os participantes da sessão ela tivesse ido a
psicoterapia individual, tem a percepção de que teria voltado para casa com
„a sua culpa‟. Disse que naquele episódio o que a fez livrar -se da culpa que
estava carregando, em função da internação do sogro numa residência para
idosos, foi o depoimento dos outros participantes. Para ela, na situação de
psicoterapia individual, você fala sozinho e não pode usufruir as histórias de
86
vidas semelhantes compartilhadas pelos outros participantes, como nas
sessões de terapia comunitária.
Desse modo, afirmou que a terapia comunitária a „completa mais‟,
pois permite que se possa ouvir o problema do outro, possibilitando que se
tenha mais consciência do fato de que „todo mundo‟ tem problemas.
Esse relato sugere uma ampliação de consciência, a partir da qual o
sujeito pode redimensionar o seu problema vivido, ampliando seu campo de
atuação sobre o mundo em função da „desfamiliarização‟ de antigas crenças
limitantes. Pode-se inferir que a partir da constatação de que outras pessoas
têm conflitos e questões pessoais para resolver e podem falar a esse
respeito, o sujeito sente-se „autorizado‟ e legitimado para expor no grupo
suas próprias questões pessoais que lhe infligem sofrimento.
A esse respeito, Spink (1999) sugere que o trabalho de reflexão
necessário para „desfamiliarização‟ com construções conceituais que se
transformaram em crenças faz-se necessário para a criação de espaços
para novas construções. A autora enfatiza optar pelo termo
„desfamiliarização‟ em detrimento a „desconstrução‟, por acreditar que
dificilmente „des-construímos‟ o que foi construído, mas, ao invés disso,
criamos espaço para novas construções, visto que “as anteriores ficam
impregnadas nos artefatos da cultura, constituindo o acervo de repertórios
interpretativos disponíveis para dar sentido ao mundo” (p. 27).
Ivone disse que tem percebido mudanças no seu modo de se
relacionar com o marido e as filhas. Disse que, comumente, quando o
marido lhe pedia para resolver alguma situação que cabia ao mesmo decidir,
ela prontamente assumia o controle da situação. Relatou que atualmente
87
tem reagido às solicitações do marido, quando este a procura para que
solucione suas questões pessoais e profissionais, sugerindo que o mesmo
resolva por si só seus problemas.
No trato com suas filhas não era diferente, Ivone afirmou que elas
sempre a procuravam pedindo conselhos e perguntando o que deveriam
fazer para solucionar seus problemas pessoais e ela acabava intercedendo
e decidindo pelas filhas. Comentou estar mais atenta quanto à ocorrência
dessas situações, pois quando o marido lhe solicita que diga algo a algum
cliente, ela tem se negado a fazê-lo, informando ao mesmo que aquela é
uma responsabilidade dele e que, portanto, cabe a ele resolvê-la.
Na relação com suas filhas, Ivone também afirmou que tem „feito
perguntas‟ às mesmas quando estas querem dela uma resposta pronta para
alguma situação específica. Desse modo, considera estar permitindo que as
filhas sejam mais autônomas com relação às suas próprias vidas.
Disse que atualmente costuma questioná-las, quando as mesmas
vêm lhe pedir conselhos para resolver algum impasse pessoal, com relação
à forma como elas acham melhor proceder naquela situação específica, o
que elas mais gostariam de fazer naquele dado momento, o que as fariam
mais felizes, etc..
Assim, Ivone disse crer que dá oportunidade de amadurecimento
pessoal para as filhas e para o seu marido, pois tem evitado decidir
situações que envolvem os mesmos e que, portanto, cabe aos mesmos
decidir. Lembrou que no passado costumava resolver as coisas por si
própria quando solicitada a isso e que, por isso, acabava não dando a
oportunidade ao marido e as filhas de se responsabilizarem por suas
88
próprias questões, além de sentir-se sobrecarregada por ter que tomar as
decisões da família.
Percebe-se assim que Ivone está atribuindo novos sentidos às suas
experiências diárias, a partir de um processo de construção de significados.
Tem se posicionado de forma distinta a que costumava tomar nas relações
com seus familiares, e isto faz com que os mesmos também tenham que se
reposicionar na trama existencial diária que vão tecendo.
A reflexão crítica a que Ivone tem-se imposto frente às relações que
estabelece tem feito com que a mesma seja mais autora de sua própria
história e também permita que o seu marido e filhas possam ser mais
autônomos em suas tomadas de decisões.
Outro aspecto importante nas relações de Ivone diz respeito a sua
relação com a mãe. Afirmou que sua mãe está acometida por uma doença
senil e tem tido prejuízos de memória, confusões mentais, repetindo-se com
freqüência quando vai relatar algum fato. Disse que há algum tempo atrás
ela não tinha muita paciência com a mãe e quando a mesma vinha lhe falar
algo repetidas vezes, ela não prestava atenção. Disse que, depois de sua
participação no grupo terapêutico, passou a ter mais paciência para ouvir os
relatos da mãe e interagir com ela, e tem percebido que essa atenção a tem
feito „melhorar‟. Relatou que atualmente quando a mãe lhe vem repetir uma
informação, a própria senhora se dá conta disso, e afirma que aquele
assunto já foi dito e reconhece que a filha já tinha lhe respondido.
Disse ainda que com as suas filhas não era diferente . Muitas vezes,
as meninas vinham lhe relatar algum assunto que não era de seu interesse e
ela não prestava atenção, respondendo sempre com „sim‟ ou „não‟ e,
89
algumas vezes, as filhas a alertavam para o fato de que ela não estava
prestando atenção no que estava sendo dito. Ivone disse que tem tentado se
interessar pelos assuntos de suas filhas, como os namoros que vão surgindo
ou discussões com as amigas de escola, pois antes ela ouvia o relato das
filhas, mas não prestava atenção naquilo que estava sendo dito. Afirmou que
atualmente tem tentado colocar-se no lugar das meninas, quando estas lhe
vêm relatar algo, para sentir como elas estão sentindo e poder ajudá-las.
Disse que antes ela simplesmente escolhia desde as roupas até os
namorados para as filhas, e que, hoje, quando as filhas vêm buscar alguma
resposta concreta em relação a alguma situação vivida, procura questioná-
las para que descubram quais caminhos as fará mais felizes. Desse modo,
Ivone afirmou que tem se relacionado melhor com as pessoas com as quais
convive, principalmente com as suas fi lhas.
Esses episódios apontam para uma maior consciência da existência
do outro, de suas necessidades e desejos singulares, diferentes daqueles
que Ivone tem. Ela parece estar realizando com maior ênfase o exerc ício de
alteridade nas suas relações cotidianas.
8.4. Síntese da Compreensão da Fala de Lídia
Lídia afirmou ter chegado às sessões de terapia comunitária de forma
indireta, pois acreditava que não tinha nenhum problema a ser questionado
em sua vida. Disse que devido ao fato de realizar um trabalho para a
pastoral da igreja, considerando serem as sessões de terapia um projeto
realizado pela igreja, e acreditar que não haveria adesão por parte da
90
comunidade, decidiu participar para incentivar o grupo que, previra, seria
reduzido.
Afirmou que, a partir das sessões, foi gradualmente mudando seu
ponto de vista quanto às suas questões pessoais. Disse que no início ela
somente ouvia os depoimentos das outras pessoas participantes do grupo e
que, comumente, identificava-se com o conteúdo narrado e o associava a
alguma vivência específica que havia ocorrido em sua vida.
A partir de então, Lídia pode compreender como um problema a
situação de alcoolismo de seu pai, vivenciada durante a sua trajetória
existencial familiar, até a morte do mesmo. Ela disse que ouvindo o relato de
outras pessoas que passavam por situações comuns àquelas que havia
vivido, envolvendo hábitos de uso excessivo de bebidas, por exemplo, pode
perceber como um problema familiar, as ocorrências passadas em suas
relações familiares.
Como as demais participantes, Lídia também enfatizou que sua
participação nas sessões de terapia tem lhe permitido estar mais ponderada
em relações aos eventos cotidianos com os quais se envolve. Também disse
perceber a importância do „ouvir‟ mais ao invés de falar em demasia, como
antes o fazia.
Disse que, em algumas ocasiões, sente-se compelida, após as
sessões de terapia, a procurar as pessoas que expuseram seu sofrimento
para lhes dar conselhos. Porém, disse estar percebendo que somente
aquele sujeito que vive determinada situação de sofrimento pode
dimensionar os alcances e limites de sua atuação frente ao problema. A
esse respeito, comentou de uma sessão de terapia na qual ela foi a
91
escolhida para compartilhar com o grupo as dificuldades que vivia naquele
momento. E, a partir das experiências compartilhadas no grupo (além de
conselhos) decidiu revelar para sua avó que o filho da mesma, seu tio, havia
falecido. Esse episódio teve desdobramentos desagradáveis e conflituosos
(sua avó já não queria mais se alimentar e chorava constantemente) e a
mesma teve que voltar atrás, desmentindo a afirmação feita a avó e dizendo
que seu filho estava no hospital, porém estava vivo.
Lídia lembrou ainda a importância da fé religiosa na existência
humana para que o sujeito possa resolver suas situações de impasses e
dificuldades surgidas no cotidiano.
8.5. Síntese Geral das Falas das Participantes
Duas das entrevistadas declararam que o grupo de terapia
comunitária foi montado porque elas o solicitaram. Elas trabalhavam na
pastoral da igreja atendendo as crianças de um colégio e os pais das
mesmas, e sentiram a necessidade de serem ouvidas num dado momento.
Uma das entrevistadas disse que naquele momento acreditava não ter
problemas e que acabou participando do grupo por receio de que a procura
pelo grupo fosse pequena, o que inviabilizaria o grupo, pois ela acreditava
particularmente não ter problemas existenciais pessoais.
As outras duas entrevistadas relataram que foram participar do grupo
através de um convite feito pela terapeuta comunitária que conduzia o grupo
e que também fazia aulas de hidroginástica com as mesmas.
92
As participantes da pesquisa enfatizam a importância da escuta
enquanto forma de melhorar a qualidade das relações cotidianas.
Consideram que, ao ser „ouvido‟, o sujeito passa a sentir-se respeitado e
valorizado.
93
9. RESULTADOS
Para realizar a discussão da análise da entrevista foram utilizados,
enquanto parâmetros ou categorias de análise, os objetivos tidos como
principais na terapia comunitária, que são: (1) a valorização das relações
desenvolvidas pelos participantes, das famílias e das redes de relações que
estes estabelecem com o seu meio; (2) o fortalecimento da dinâmica interna
de cada sujeito e possibilitando que este possa tornar-se mais autônomo e
desenvolva um sentido de autoria de sua própria vida; (3) o fortalecimento
de vínculos nas comunidades, através da formação de uma rede social de
solidariedade e de participação entre os sujeitos; (4) a produção de sentido a
partir das práticas discursivas realizadas no grupo, com ênfase no falar e no
escutar; e (5) quanto às percepções das participantes em relação às
características da Terapia Comunitária: as várias fases da aplicação e
quanto ao papel do terapeuta.
Ao iniciar essa discussão dos resultados da pesquisa quero deixar
explícito que tentei realizar um exercício cuidadoso no que se refere ao rigor
da interpretação aqui realizada. Meu esforço foi no sentido de evitar
respostas concludentes que „fechem‟ o sistema, impedindo novas
comunicações. Em concordância com a proposta filosófica da terapia
comunitária, busquei proceder de forma muito mais voltada à
problematização e ampliação futura do campo de pesquisa do que
propriamente a interpretação que encerra em si „verdades científicas‟,
principalmente no que se refere à aplicação prática da terapia comunitária e
ao seu alcance junto às pessoas participantes das sessões.
94
Como discutido anteriormente, a realidade sócio-econômica-cultural
brasileira apresenta alguns dados alarmantes quanto à sua constituição
estrutural, como o fato de só ficar para trás de dois países africanos, Costa
do Marfim e Suazilândia, no quesito desigualdade de renda, ou seja, há uma
assustadora concentração de rendas por parte de uma minoria da
população, conforme o Índice de Desenvolvimento Nacional Brasil (O DNA
do Brasil, 2004). Creio que esta ênfase seja pertinente para que não se
perca de vista o contexto social a partir do qual a presente análise foi
realizada. Caso contrário, incorre-se no risco de se subestimar esse dado de
realidade concreta e passa-se a crer que todos (população brasileira) têm as
mesmas oportunidades e possibilidades estruturais, socioeconômicas e
culturais, bastando buscar o seu alcance. Crença essa ideológica que,
evidentemente, tem por finalidade primeira justificar os antagonismos sociais
e promover o conformismo, junto a uma larga parcela da população
brasileira que se encontra submetida ao jugo dos mecanismos sociais de
exclusão. Em larga medida, percebe-se que essa crença é inspirada e
apropriada no discurso cotidiano, a partir de modelos econômicos e
realidades sociais distintas da brasileira, como o já tão discutido, e difundido,
American Dream, Sonho Americano, que propõe, resumidamente, que todos
têm as mesmas possibilidades de ascensão social. Basta objetivá-la e, como
conseqüência, alcançá-la.
Desse modo, se tal situação descrita faz algum sentido, como se pode
compreender as possibilidades de assistência à saúde, particularmente à
saúde mental, para uma população que busca, comumente, no dia a dia tão
somente „sobreviver do jeito que dá‟, estando muitas vezes desassistida
95
quanto à moradia, à alimentação e à educação, necessidades básicas a todo
e qualquer sujeito?
A esse ponto, chega-se finalmente às práticas sociais realizadas em
comunidades, como formas de compreensão, intervenção e transformação
de realidades muitas vezes adversas, ou, em outras vezes, tão somente
como novas formas de „colonização‟ dos espaços públicos que ainda
mantém as dimensões de participação e solidariedade, e que,
particularmente por isso, são tão visados por muitos grupos auto-intitulados
„solidários‟, „voluntários‟. A esse respeito, o momento histórico-cultural
brasileiro que se apresenta não poderia ser mais propício a tais „iniciativas‟
que se vestem com os trajes de „transformadores da realidade brasileira‟, a
exemplo de algumas ONG‟s e OSIP‟s instaladas no país nos últimos tempos,
muitas vezes estratégias tipicamente desenvolvidas nas sociedades
contemporâneas pós-modernas que servem para „alimentar‟ a „indústria da
miséria‟. Haja vista o crescente número de investimentos feitos pelo capital
estrangeiro dos países do primeiro mundo em favor das chamadas
organizações do terceiro setor.
Frente a tal situação, qual tem sido o lugar ocupado pelo psicólogo
brasileiro nas suas práticas junto às comunidades? Spink (2003), como já
discutido anteriormente, faz uma avaliação a esse respeito e constata que a
formação acadêmica do psicólogo ainda está muito mais voltada ao modelo
representado pelo binômio consultório/clínica, enquanto hegemônico, e esse
fato traduz-se em dificuldades na atuação desse profissional junto às
instituições e comunidades. Ressalta ainda a ausência de modelos de
atuação profissionais voltados para as instituições públicas ou comunidades,
96
como uma carência do profissional em função dos resquícios de sua
formação acadêmica.
Percebe-se, assim, que a atual prática psicológica no país ainda é
extremamente elitista, permitindo apenas o acesso de uma parcela reduzida
da população nacional. Some-se a esse fato a questão de que uma das
dimensões possíveis de atuação do profissional psicólogo é a de cientista
político social e que, portanto, esta representação social do mesmo pode
estar sofrendo prejuízos na consolidação sociocultural e política da
sociedade brasileira enquanto um sistema macroestrutural.
Contudo, cabe abordar a chamada Terapia Comunitária como uma
das práticas que tem sido realizada principalmente junto às comunidades
com carências de recursos financeiros, dentre outros. A população
segmentada por esta pesquisa para fins de estudo tem freqüentado as
sessões de Terapia da Comunitária nas instalações físicas de uma igreja, a
partir da iniciativa de duas das participantes do grupo de terapia que também
são membros da pastoral da referida igreja. Nesse local, a denominada
terapia comunitária foi renomeada como terapia da auto-estima pelo padre
da igreja, José, em função do mesmo considerar que o novo nome da
prática teria mais apelo, e conseqüente adesão, junto à comunidade local. A
análise que se segue diz respeito às relações construídas na comunidade a
partir da prática da terapia comunitária, que, neste grupo era chamada de
terapia da auto-estima.
97
9.1. RELAÇÕES
De acordo com Guareschi (2004b), o conceito de relação é um dos
mais fecundos e caros à psicologia social, se não for o conceito central. O
autor aponta para o fato de que comumente relação remete à idéia de troca,
comunicação e necessidade de haver pelo menos duas pessoas para que
haja relação. Alerta que o conceito de relação não pára por aí e pode,
inclusive, referir-se a algo singular. Traduz relação como sendo o
ordenamento, o direcionamento intrínseco, do próprio ser em direção a outro
ser.
Guareschi (1996) enfatiza que o conflito, a rejeição e a exclusão
também são exemplos de relação e que, portanto, é equivocado pensar
relação como aquilo que une ou que liga duas coisas. Por outro lado, relação
diz respeito a uma coisa que por si só não pode existir, dependendo de outra
para tal.
Pode-se verificar que as relações entre as participantes são um dado
muito relevante para a compreensão da produção de sentido no grupo, a
partir desta prática. As participantes da pesquisa revelam que as suas
vivências relacionais no grupo são muito importantes, pois se sentem
fortalecidas, na reciprocidade de afetos que circulam pelo grupo, para que
possam buscar soluções para as suas questões existenciais.
Uma das participantes, Lídia, afirmou que já não se sente sozinha
estando no grupo, pois percebe que ali existem outras pessoas e que estas
98
pessoas também têm os seus problemas e também estão em busca de
soluções para os mesmos. E prossegue dizendo “ tem uma visão que amplia
de um mundo, de convivência, de relacionamento”.
Este relato da participante sugere uma ampliação de consciência a
partir do exercício dialógico promovido no grupo, no qual a mesma enfatiza a
importância do outro na relação (convivência), validando as trocas
intersubjetivas que ali se desenvolvem, como forma de sentir-se legitimada
em suas questões pessoais mobilizadas pelo „ouvir‟, que as experiências
compartilhadas pelo outro lhe suscitam.
Assim, tem-se estabelecida uma relação dialógica e dialética, a partir
da qual a escuta disponibiliza, e „autoriza‟, a fala e vice-versa, constituindo
um processo „educacional‟, no qual aquele que „ensina‟ também „aprende‟,
remetendo assim à epistemologia proposta pelo educador Paulo Freire
(1987 [1970]), na sua Pedagogia do Oprimido.
A consciência emerge do mundo vivido, objetiva-o, problematiza-o, compreende-o como projeto humano. Em diálogo circular, intersubjetivando-se mais e mais, vai
assumindo, criticamente, o dinamismo de sua subjetividade criadora. Todos juntos, em círculo, e em colaboração, re-
elaboram o mundo e, ao reconstruí-lo, apercebem-se de que, embora construído também por eles, esse mundo não é verdadeiramente para eles (FREIRE, 1987, p. 17).
Vale relembrar que a prática da terapia comunitária dá-se em
disposição física das cadeiras ocupadas pelos participantes na forma
circular, a partir da qual o grupo pode observar-se enquanto as narrativas se
desenvolvem. Ou ainda, a partir de círculos concêntricos quando se tem um
grupo muito grande.
99
Esse paralelo proposto com o trabalho de Paulo Freire deve-se ao
fato dessa prática, TC, comumente ser desenvolvida em comunidades nas
quais as pessoas não estão acostumadas a ter direito à sua „palavra‟, ao seu
„discurso‟, ou ao que seja a expressão de suas idéias, pensamentos,
conflitos, sofrimentos, necessidades e desejos. Assim, parece-me que acima
de tudo as participantes têm aprendido que podem sentir -se tristes, felizes,
aflitas, solitárias e podem falar desses sentimentos, pois têm um „ lugar‟ no
qual serão ouvidas. As relações que vão se desenvolvendo no grupo
parecem possibilitar a ampliação dos „repertórios interpretativos‟ das
participantes, permitindo que se posicionem de forma diferente daquelas a
que foram se habituando nas interações cotidianas.
Pontuo aqui que Lídia no contato telefônico comigo alertou-me para o
fato de que achava que não tinha „problemas‟ e que psicólogos são para
pessoas que tem „neuroses‟, „manias‟ ou „põem um negócio na cabeça‟,
„pessoas problemáticas‟. Ela afirmou que seu ingresso no grupo deu-se em
função de solidariedade para com a terapeuta que conduz o grupo, Paula, e
a sua amiga da pastoral, Ivone, pois Lídia acreditava que não iriam aparecer
participantes para o grupo e as duas amigas ficariam „sozinhas’.
Grandesso (2000) comenta o mundo da experiência enquanto um
mundo significativo, a partir do qual o ser humano está imerso numa teia de
significados construídos por si próprio no intercâmbio com o social, como já
discutido. A autora enfatiza a estruturação das formas de pensar e agir na
organização de vínculos e práticas, através de trocas intersubjetivas
mediadas pela linguagem. Ressalta ainda a escuta das palavras e dos
significados, como forma de favorecimento do interjogo entre os significados.
100
Para Ciampa (2002), a partir dos contextos grupais de produção de
sentido pode-se criar novos significados para as ideologias compartilhadas
socialmente, que serviram como focos de resistência numa complexa rede
de intersubjetividades.
Uma outra participante do grupo sugeriu que o seu engajamento no
grupo lhe permitiu compreender situações que antes não lhe era possível.
Ao relatar sua opinião contrária à internação do sogro e posterior mudança
de opinião a favor da internação do mesmo, ela sugere um
redimensionamento da situação vista como um problema, a partir de uma
ressignificação e atribuição de um novo sentido àquela situação vivida. “Meu
sogro já tinha tentado se matar e uma hora ele iria conseguir. Então tudo
aquilo que eu não estava conseguindo entender sozinha... pronto eu sai
daqui outra”.
A esse ponto, talvez seja interessante relembrar Spink (1999) quando
a autora propõe que para que seja possível a transformação de crenças
pessoais „estagnadas‟ nos sujeitos, necessariamente deverá haver uma
reflexão que permita a „desfamiliarização‟ de tais construções pessoais para
que se possa criar espaços para novas construções referenciais. Assim, a
participação no grupo parece ter promovido, em alguma medida,
compreensões e apropriações a partir da fala do „outro‟, permitindo que a
participante produzisse um novo sentido para uma experiência vivida.
Novamente percebe-se um diálogo que remete a idéia de
pertencimento ao grupo, de filiação que promove compreensão e apoio,
sentimento suportivo que possibilita superar impasses surgidos nas
situações vividas diariamente.
101
Spink (1999), utilizando-se da filosofia teológica tomasiana, coloca a
definição de pessoa como relação social. Aponta que o uso do conceito
indivíduo remete a dicotomias como „indivíduo-sociedade‟, „sujeito-objeto‟,
„público-privado‟, a partir da pressuposição de ‟cisões claras e absolutas‟.
Para a autora o conceito de sujeito pode levar a dois caminhos „distintos‟ e
„problemáticos‟, “um que conduz a uma distinção essencial entre sujeito e
objeto ou outro que, ainda mais complexo e perigoso, aproxima-nos da
postura de sujeitável, tornar-se sujeito a.” (p. 54).
Por outro lado, segundo a autora, o conceito de pessoa enfatiza o
„foco sobre a dialogia‟ ao invés de „privilegiar a individualidade ou a condição
de sujeito‟.
Diversos pensadores voltaram-se para a questão da pessoa, através
da proposição de diversas definições com diferentes referenciais teológicos
e epistemológicos, porém “o caráter relacional está na base da maioria
destas definições” (p. 55).
Cuggenberger (1987) apud Spink (1999) afirma que só se pode
pensar em pessoas, a partir da noção de relação, porque a pessoa está no
mundo e não tão somente num ambiente, como os animais. Assim,
Cuggenberger (1987, p. 244, 229) apud Spink (1999, p.55), conclui que
Daqui provém o eu no seu caráter fundamental de pessoa, a relacionalidade com o universo (capacidade de comunicar-se), a sua limitação e o seu caráter de não ser um objeto (...)
A relação humana apresenta uma amostra do caráter misterioso da pessoa, visto que esta não pode ser
apreendida por meio de noções objetivas e objetiváveis. Semelhantemente, a „intersubjetividade‟ para a qual se costuma apelar como o dado mais originário sobre o qual se
deveria fundar a pessoa não oferece uma solução melhor do problema (...) É verdade que a pessoa, quando quer fazer-se
conhecer, deve voltar-se ao outro (grifos do autor).
102
Desse modo, para Spink (1999):
Essa definição nos remete, assim, ao próprio processo de produção de sentidos nas práticas discursivas do cotidiano. A pessoa, no jogo das relações sociais, está inserida num
constante processo de negociação, desenvolvendo trocas simbólicas, num espaço de intersubjetividade ou, mais
precisamente, de interpessoalidade (p. 55).
Spink (1999) afirma que “a produção de sentido não é uma atividade
cognitiva intra-individual, nem pura e simples reprodução de modelos
predeterminados”, mas sim “uma prática social, dialógica, que implica a
linguagem em uso” (p. 42).
Segundo a autora, práticas discursivas podem ser definidas como
linguagem em ação, ou ainda, como a maneira através da qual as pessoas
produzem sentidos e se posicionam nas relações sociais cotidianas.
Portanto, práticas discursivas dizem respeito aos „momentos de
ressignificações‟, de „rupturas‟, de „produção de sentido‟, “ou seja,
corresponde aos momentos ativos do uso da linguagem, nos quais convivem
tanto a ordem como a diversidade” (p. 45).
Assim, as participantes parecem estar exercitando as suas
possibilidades de „pessoa‟ através das relações dialógicas que estabelecem
no grupo, percebendo-se ancoradas pela força que o grupo lhes proporciona
através do sentimento de pertença. Elas sugerem ter novas possibilidades
de exploração e manipulação junto às situações vividas diariamente,
sofrendo transformações nas suas identidades pessoais a partir de
ressignificações possibilitadas pelas práticas discursivas veiculadas no
grupo.
103
Em relação aos vínculos familiares, percebe-se que as entrevistadas
estão muito mais críticas e reflexivas a partir de suas participações no grupo
de terapia.
Uma das participantes, Ivone, relatou perceber mudanças em suas
relações com o marido e as filhas. Disse que, antes de sua participação no
grupo, ela tendia a responsabilizar-se pelo desfecho das situações diárias
que envolviam as filhas e o marido, inclusive no ambiente de trabalho, pois
ela e o marido possuem uma micro-empresa. Informou que tanto o seu
marido quanto suas filhas sempre lhe traziam „problemas‟ para que ela lhes
desse as „soluções‟. Assim, disse que se sentia sobrecarregada, com
excesso de responsabilidades, pois era ela quem comumente tinha que
decidir as situações surgidas no ambiente familiar e de trabalho. Disse que
se sentia como quem tem um „elefante sobre as costas‟, pois não conseguia
descansar nunca. Desde a hora em que acordava até a hora em que ia
dormir, sentia-se responsável por dar conta de soluções para os episódios
que envolviam a família, sendo que muitas vezes lhe ocorriam situações de
insônia frente aos problemas surgidos.
Ivone disse que atualmente tem tentado „colocar-se no lugar do outro‟
e procura „sentir o que o outro está sentindo‟. Essa fala remete ao conceito
de empatia sugerido pela psicologia humanista rogeriana.
Talvez essa apropriação do conceito deva-se ao fato de Ivone já ter
realizado psicoterapia individual no passado ou, ainda, se dê devido ao fato
da terapeuta comunitária que conduz o grupo de terapia, do qual a mesma
participa, ser uma psicoterapeuta e, provavelmente, utilizar-se de
expressões psicológicas nas suas interações com o grupo.
104
Conforme já apontado, na abordagem sistêmica o sujeito é percebido
em relação às suas interações familiais, sociais e também em relação aos
seus valores e crenças, possibilitando uma compreensão maior acerca do
mesmo, visando a sua transformação (CAMAROTTI et al, 2003).
Cabe discutir uma outra categoria proposta como objetivo a ser
alcançado na prática da terapia comunitária, que é autonomia pessoal.
9.2. AUTONOMIA PESSOAL E SENTIDO DE AUTORIA
Esta categoria diz respeito às possibilidades da pessoa de ser mais
autora de sua própria história de vida, de ser mais ativa na condução das
relações que tece no seu cotidiano.
A esse respeito, pode-se constatar que algumas das participantes da
pesquisa fazem referência a uma condição pessoal mais ativa nas relações
diárias que desenvolvem, sugerindo alguma possibilidade de autonomia
pessoal. A possibilidade de reflexão e a posterior crítica em relação às
experiências cotidianas, narradas pelas participantes, sugerem que suas
possibilidades de atuação no mundo foram ampliadas, de alguma forma, nas
relações interpessoais que estabelecem a partir da terapia comunitária.
Porém, compreende-se em contrapartida que a figura da terapeuta
comunitária registra uma presença constante na narrativa das mesmas. As
participantes fazem diversas referências à pessoa da terapeuta que conduz
as sessões, como sendo alguém que conduz o grupo de maneira muito
inteligente, que é „danada‟ e que „puxa‟ o grupo quando algum participante
105
está sugerindo alguma direção a ser tomada pelo outro na solução de seus
problemas sob a forma de conselho.
Além disso, em alguns momentos a fala das participantes revela que,
a partir de conselhos dados pela terapeuta, mudaram um dado
comportamento que mantinham em suas vidas. Há um relato de uma
sugestão que a terapeuta comunitária teria dado a uma participante recém
chegada ao grupo e que tem sido aplicado por uma das entrevistadas em
sua própria vida. A participante relatou que, como a recém chegada ao
grupo, ela também trabalha no mesmo ambiente que o marido e tem os
mesmos problemas que a moça, pois os maridos das mesmas não
conseguem decidir as situações de trabalho por si mesmos e solicitam às
esposas que o façam, de tal forma que elas muitas vezes, quando evocadas
pelo maridos, acabam conversando com os clientes para solucionar algum
impasse. Nesse sentido, a participante do grupo relatou que a terapeuta
comunitária aconselhou a recém chegada no grupo que, quando seu marido
viesse lhe solicitar uma intervenção junto aos clientes, ela deveria dizer ao
marido que ele deveria resolver aquela situação conversando com o cliente
e, logo após, ela deveria „virar as costas‟ ao marido, saindo da cena. A
participante da pesquisa disse que tem se utilizado desta estratégia em sua
relação pessoal com o marido e que tem surtido resultado, pois o marido vai
conversar com o cliente em questão, mesmo questionando tal situação. Ela
ainda relatou saber que o conselho da terapeuta nem foi dado a ela, mas
que tem funcionado em função da história de vida das duas mulheres serem
tão semelhantes. Assim, o que se pode depreender deste episódio é uma
posição de referência que a terapeuta ocupa nas histórias de vida das
106
participantes. Posição esta, a partir da qual a figura da terapeuta é
concebida pelo grupo como alguém que tem um saber diferenciado em
relação aos demais componentes do grupo, não diferente da tão discutida
posição ocupada pelo psicoterapeuta enquanto „sujeito suposto saber‟.
Talvez caiba aqui relembrar um dos pressupostos filosóficos da terapia
comunitária que diz respeito à horizontalidade das relações. Vale também
enfatizar que esta é uma condição pretendida pela referida prática e que,
eventualmente, pode não ser alcançada, considerando-se que somos
sujeitos, dito por alguns historiadores, pós-modernos e temos nossas
subjetividades constituídas ao redor de relações hierárquicas, por vezes
mantidas pela tradição, outras vezes em função das distinções sociais
possibilitadas pela posse de diferetes saberes veiculados através do
discurso.
Davies & Harré (1990), apud Spink (1999), discutem o „jogo de
relações sociais‟ a partir de um constante processo de negociação que
desenvolve „trocas simbólicas‟ pautadas pela „interanimação dialógica‟. Tal
processo remete ao conceito de „posicionamento‟. Segundo Spink (1999),
“ao focalizar as práticas discursivas deparamos também com a
processualidade das construções identitárias. Posicionar-se implica navegar
pelas múltiplas narrativas com que entramos em contato e que se articulam
nas práticas discursivas” (p. 56).
Assim, os autores propõem que a pergunta, quem somos? é sempre
uma pergunta aberta com „respostas mutáveis‟ que dependerão das
posições disponíveis nas nossas práticas discursivas. A mesma pessoa
quando questionada pode responder a tal pergunta de diversas formas,
107
sendo que o conteúdo da narrativa será orientado pelo contexto
argumentativo que irá se configurar a partir da dialogia. Pode-se responder a
essa pergunta informando a profissão que se tenha e os títulos acadêmicos
conquistados ao longo de uma trajetória de vida, ou ainda, tão simplesmente
a partir da descrição física de si mesmo, complementada por preferências
quanto à alimentação, ao lazer, as leituras, etc.
Assim, “a força constitutiva das práticas discursivas está em poder
prover posições de pessoa: uma posição incorpora repertórios
interpretativos, assim como uma localização num jogo de relações
inevitavelmente permeado por relações de poder” (grifos meus, p. 56).
Portanto, as práticas discursivas têm implicação necessária com a utilização
de „repertórios‟ e „posicionamentos identitários‟.
Spink (1999) esclarece que as três dimensões ao redor das quais as
práticas discursivas se desenvolvem na dinâmica da produção de sentido
são: linguagem, história e pessoa.
De acordo com Bakhtin (1999), a linguagem verbal pode ser vista
como um exercício social. Assim, a realidade social pode ser pensada como
processo dialético, através da língua dada, em que a palavra vai constituindo
um movimento contínuo e existindo como fonte mediadora entre o social e o
individual.
Desse modo, quando o sujeito aprende a falar, também está
aprendendo a pensar, considerando que a palavra é a forma de revelação
de suas experiências, bem como dos valores de sua cultura. A partir de
então, tem-se que o nosso modo de percepção da realidade é
indissociavelmente influenciado pelo nosso „agir verbal‟ sobre o mundo.
108
Portanto, cabe a cada sujeito apropriar-se da palavra com fins
dirigidos à manutenção dos valores culturais disseminados socialmente ou,
ainda, com propósitos de intervir sobre a realidade dada.
Pode-se compreender aqui que muitas vezes as pessoas que
participam das sessões de terapia têm poucas possibilidades de ter o seu
discurso reconhecido e validado socialmente, pois comumente têm poucas
possibilidades de discussão das suas condições existenciais, e acabam
construindo idéias em torno das quais essa prática passa a ser vista como
algo sem importância, algo que não poderá ser útil como instrumento, pois
não há como transformar a realidade dada do mundo. A participação no
grupo de terapia parece permitir uma reflexão a partir do contexto de fala e
escuta instaurado pelas relações sociais ali desenvolvidas e assim as
participantes passam a ter „voz‟. A possibilidade de narrar suas experiências
de vida no grupo, sem que para tal lhes seja necessário ter um „saber
diferenciado‟, e serem reconhecidas por essa ação social, parece promover
um sentimento de auto-afirmação e confiança pessoal nas participantes que
legitima as suas histórias de vida, conferindo-lhes um sentido de autoria.
Assim, pode-se inferir que a partir das narrativas compartilhadas no grupo,
mediadas por relações fraternas, as participantes tem a possibilidade de
buscar a compreensão do mundo, interpretando-o e dessa forma agindo
como pessoas ativas na transformação da realidade dada.
A partir de tal consideração, far-se-á análise do conceito de rede
social de solidariedade.
109
9.3. REDE SOCIAL DE SOLIDARIEDADE
A terapia comunitária utiliza-se do símbolo da teia de aranha para
fazer menção à importância da cultura para o homem na geração de
vínculos solidários com a comunidade. Nessa referência, os índios
Tremembé, habitantes do nordeste brasileiro, são lembrados através da
dança da aranha que, segundo os mesmos, não é nada sem a sua teia, bem
como o índio não é nada sem a sua terra. Estabelecendo uma associação
com o homem urbano, o idealizador da terapia comunitária considera que “A
aranha sem a teia é como uma comunidade sem vínculos” (BARRETO,
2005, p. 37).
O autor prossegue considerando que
A cultura é como uma teia invisível que integra e une os indivíduos. Portanto, podemos acreditar que a melhor prevenção é manter o indivíduo ligado a seu universo
cultural e relacional, a sua teia, pois é através de sua identificação com os valores culturais de seu grupo que ele
se nutre e constrói a sua identidade. A cultura para o indivíduo é como a teia para a aranha (BARRETO, p. 38).
A narrativa das participantes da pesquisa aponta para uma maior
valorização da comunidade, através das relações estabelecidas, após terem
ingressado no grupo de terapia comunitária.
Uma das participantes relatou que muitas vezes lhe fica difícil
disponibilizar-se do trabalho para participar das sessões que ocorrem às
segundas-feiras a noite, pois esse é um dia da semana em que tem muito
trabalho a ser realizado na sua empresa. Concluiu, porém, que sempre dá
um jeito de estar presente nas sessões e quando retorna a sua casa, ao final
110
da sessão, sente-se sempre muito gratificada por ter estado no grupo e ter
tido a possibilidade de compartilhar das histórias de vida ali narradas.
Uma outra participante, disse utilizar-se das segundas-feiras para
fazer a faxina semanal em sua casa e, portanto, revelou que se sente muito
cansada nas segundas-feiras à noite, porém revelou ter muita satisfação
quando se aproxima o momento de ir as sessões e procura não faltar às
mesmas.
Outra das participantes disse gostar do momento em que percebe que
a semana está terminando, pois com isso aproxima-se a chegada da
segunda-feira e a mesma pode estar novamente junto ao grupo de terapia
comunitária.
O marido de uma das participantes teria comentado com uma de suas
filhas que a esposa estaria „ficando importante‟, pois está, „fazendo terapia‟.
Segundo uma outra participante, a sua mãe sempre a lembra das
sessões quando vai se aproximando o momento em que a mesma teria que
ir para as reuniões do grupo de terapia comunitária.
A outra participante disse que a sua filha tem lhe dito que a considera
mais „calma‟ depois que a mesma começou a freqüentar as sessões de
terapia.
Estes relatos sugerem uma vinculação entre as pessoas participantes
e os seus familiares, apontando para a importância da terapia na vida dos
mesmos, inclusive como um indicador da abrangência que a prática tem,
mesmo que indiretamente sobre as famílias.
111
Para Grandesso (2004), terapeuta familiar e de casal, a terapia
comunitária favorece uma organização sistêmica em redes solidárias, a
partir de um sistema complexo e autopoiético.
Segundo Maturana & Varela (1995), como já apontado, nos sistemas
autopoiéticos as relações produzidas pelos seus componentes, através de
interações, garantem seu equilíbrio sem desintegrar-se. Desse modo,
quando se compreende as sessões de terapia comunitária como sistemas
vivos autopoiéticos, elas podem ser percebidas enquanto unidades
autônomas, com caráter unitário e mantendo-se em contínua dinâmica de
trocas.
Como já discutido, segundo Camarotti et al (2003) “a consciência da
globalidade, sem perder de vista as várias partes do conjunto a qual
pertence, permite compreender os mecanismos de auto-regulação, proteção
e crescimento dos sistemas sociais e vivenciar a noção de co-
responsabilidade” (p. 57).
Uma nota que se faz digna de menção é o fato de todas as
participantes incluírem em suas narrativas outras pessoas participantes das
sessões, mesmo que essa tenha comparecido a apenas uma sessão,
sempre referenciadas pelos seus nomes.
Guareschi (1996) diferencia comunidade como sendo um tipo de vida
em sociedade, na qual todos são chamados pelo nome. Esse gesto
representaria além do fato de cada pessoa possuir um nome próprio, uma
manifestação de sua identidade e singularidade, uma possibilidade de
participação, uma oportunidade de dar a sua opinião, de manifestar o seu
pensamento e de ser alguém.
112
De acordo com González-Rey (2003) a subjetividade é um complexo
e plurideterminado sistema, perpassado pelo próprio curso da sociedade e
das pessoas que a constituem num contínuo movimento de complexas redes
de relações que estabelecem o desenvolvimento social. Para o autor, o
sentido subjetivo “... representa a forma essencial dos processos de
subjetivação” (2003. p. IX). Assim, o mesmo compreende a subjetividade
como “... dimensão complexa, sistêmica, dialógica e dialética, definida como
espaço ontológico” (p. 75).
A esse ponto, vale lembrar as diferenças das minhas experiências
pessoais na condução de grupos de terapia, localizados numa dada
comunidade com outro grupo realizado numa universidade, a partir da fila de
espera dos pacientes inscritos para atendimento clínico no centro de
formação em psicologia. O que se pode perceber foi uma vinculação maior
entre os sujeitos pertencentes a uma mesma comunidade na qual a prática
foi realizada. Os diálogos entre os sujeitos participantes das sessões após
as sessões eram uma realidade constante enquanto que no ambiente
universitário essa ocorrência raramente se dava. Era muito mais comum no
ambiente universitário que as pessoas após as sessões se dirigissem as
suas casas, não dando continuidade aos assuntos discutidos na sessão.
Como discutido anteriormente, para Spink (1999) o sentido é uma
construção social e, portanto, considerado um empreendimento coletivo
através das interações promovidas pelas dinâmicas das relações sociais
„historicamente datadas‟ e „culturalmente localizadas‟ que produzem o
contexto para compreensão e realização das situações e fenômenos
manifestados no cotidiano.
113
No pensamento de Bakhtin (1999), a linguagem tem uma unidade
central, cujo método de análise é a dialética. Assim, o princípio constitutivo
da linguagem é o dialogismo, a partir do qual a linguagem é compreendida
como um emaranhado de relações dialógicas em qualquer campo que se
apresente. Tal concepção dialógica relativiza a idéia de autoria individual,
destacando o caráter social e coletivo da produção de textos e idéias. Dessa
monta, concebe-se o próprio ser humano como um „intertexto‟, de
impossibilidade existencial no isolamento, produzindo sua experiência de
vida a partir da tessitura, entrecruzamento e interpenetração com o outro.
Nessa trama, a relação dialógica remete ao princípio da „não-autonomia do
discurso‟, em que as palavras do falante são sempre atravessadas pelas
palavras do outro e o discurso do falante também se constitui do discurso do
outro que o atravessa. Assim, a concepção do eu é sempre social, nunca
individual.
9.4. A FALA E A ESCUTA
Para todas as entrevistadas participantes das sessões de terapia
comunitária esse espaço é visto como um lugar privilegiado, no qual podem
falar de suas preocupações, dúvidas, angústias e sofrimentos existenciais.
Elas afirmam, em sua totalidade, que se sentem melhor enquanto pessoas
depois que passaram a participar das sessões de terapia no grupo. Além
disso, as participantes também apontam o espaço da terapia como um lugar
que lhes possibilita aprender novos modos de ser, ouvindo a experiência do
114
outro. Elas afirmam que a escuta é um exercício de complexa prática, pois
consideram que comumente tendem a falar mais e a ouvir menos. Apontam
que as sessões de terapia têm lhes ensinado a serem mais ponderadas, e a
partir de então elas têm buscado pensar primeiro naquilo que vão dizer,
antes de fazê-lo. Dizem que tem refletido acerca da importância do ouvir o
outro, antes de querer dar lhe conselhos, mas enfatizam que essa é uma
tarefa „árdua‟.
De acordo com Bakhtin (1999), o falar, aqui, pode ser compreendido
através da palavra que é um signo ideológico que ao mesmo tempo em que
reflete, também refrata a realidade. Assim, a palavra é a expressão da
linguagem interior e da consciência, além de elemento privilegiado da
comunicação na vida cotidiana, acompanhando toda criação ideológica e
fazendo-se presente em todos os atos de compreensão e interpretação. Por
isso, a palavra tem sempre um sentido ideológico ou vivencial que se
relaciona totalmente com o contexto, além de ser portadora de um conjunto
de significados que lhe foram dados socialmente. Pois, quando o exercício
da escuta apreende um dito, já o traz em si um não-dito, visto que
produzimos e ampliamos os sentidos das coisas, dando uma „versão de
sentido‟ que nos é própria e alcançando, portanto, uma réplica e não uma
repetição.
Considerando-se as sessões de terapia como um campo a partir do
qual se estabelece uma rede de relações dialógicas mediadas pela
linguagem, através da palavra, pode-se compreender que nesse espaço
gera-se conhecimento, circula-se a expressão de sentimentos e emoções,
estrutura-se o pensamento, transformando-o. Assim, pode-se pensar numa
115
construção interpessoal a partir da qual todos participam do mundo ali
construído (no grupo), seja enquanto falante ou enquanto ouvinte. E talvez, o
grande diferencial da terapia fique por conta da circulação da palavra que
permite a manifestação de diversos sentidos construídos pelos participantes
do grupo a partir de uma narrativa pessoal do falante, com a qual os
ouvintes identificam-se produzindo e expressando as suas réplicas.
A situação contrária a essa, e nem tanto incomum na nossa
sociedade atual, pode ser representada pelo professor mais „ortodoxo‟ na
realização do seu exercício profissional na sala de aula (aquele que
comumente ministra seus conteúdos de forma predominantemente
expositiva), com pouca interlocução entre os seus alunos. Nesse exemplo, a
palavra que deveria circular, fica muito mais com um só indivíduo, pautada
pela posição de poder que o mesmo ocupa na cena, o que pode muitas
vezes representar uma ânsia na transmissão de conhecimentos e
informações para os seus alunos por parte do professor. Assim, tal professor
perde de vista os sentidos produzidos por sua fala junto aos alunos, a
réplica, ficando enclausurado num sentido único.
Retomando a situação da terapia, pode-se pensar que cada pessoa
no grupo escuta a palavra proferida de uma forma muito singular e que é só
na troca coletiva que se torna possível revelar os sentidos produzidos,
negociá-los e até revê-los. Porém, dar a „voz‟ ou ouvir a „voz‟ não é tarefa
simples quando se tem a posse da palavra, a fala. O exercício da escuta
também é um desafio, pois para sua realização tem-se que estar num
movimento atentivo em relação ao outro, senão o diálogo não ocorre. É
116
somente o diálogo que nos permite rever pontos de vista, posicionar-nos e
reposicionar-nos frente à situação do compartilhar intersubjetivo.
O exercício da escuta parece ser dos mais desafiadores para as
participantes, pois as mesmas revelam que comumente ao ouvir as histórias
de vida do outro, logo sentem-se tentadas a dar conselhos. Relatam ainda
que muitas vezes lhes parece muito simples resolver um determinado
problema, narrado como sendo de difícil solução pelo falante que o vivencia.
Essa posição tomada parece sugerir uma dificuldade de „colocar-se‟
no lugar do outro e „sentir‟ como o outro estaria sentindo, como uma das
participantes relatou estar tentando fazer junto às suas filhas e ao seu
marido, nas situações cotidianas.
Uma das participantes relatou que sua mãe sempre lhe vinha repetir
comentários que já haviam sido feitos por diversas vezes a ela, em função
de doença senil que lhe atinge as propriedades da memória. A participante
disse que comumente permanecia junto à mãe, mas não prestava atenção
ao que esta falava, não tendo muito paciência para a repetição praticada
pela mãe. Disse perceber que atualmente tem colaborado para a
recuperação da memória de sua mãe, pois quando esta lhe vem dizer algo
que já lhe foi dito, ela ouve mesmo assim e procura interagir com a mesma.
Assim, tem percebido que,atualmente, a mãe lhe repete uma situação já
contada e logo após lembra-se de já tê-lo dito em outra ocasião,
comentando com a filha: “eu já lhe disse isso, né? Até que você respondeu...
(de determinada forma)“.
Esta ocorrência sugere um interesse legítimo pela fala do outro, a
partir da qual a pessoa ouvinte se disponibiliza para o seu locutor com
117
propósito autêntico de compreensão da comunicação que este pretende
fazer.
De acordo com Bakhtin (1999) pode-se compreender que a palavra
nessa situação descrita funciona como um instrumento que une o eu ao
outro, pois a mesma procede de uma pessoa e dirige-se para uma outra
pessoa. Assim, o que torna possível a compreensão da palavra também é
aquilo que é presumido pelo ouvinte em função do fato de que toda palavra
possui um acento de valor ou apreciação, transmitidos através da entonação
expressiva. Por isso, junto à palavra ocorrem os gestos, as expressões
faciais, a tonalidade e as entonações da fala. Portanto, toda compreensão
do produto do ato da fala, a enunciação, é sempre ativa, orienta-se pelo
contexto e contém o „germe‟ de uma resposta. O autor diz que para cada
palavra que se processa visando à compreensão faz-se corresponder uma
série de palavras do ouvinte, formando uma réplica. Assim, a compreensão
nada mais é do que uma forma de diálogo.
Uma questão intrigante da terapia comunitária diz respeito à
interrupção da fala dos participantes, quando os mesmos começam a se
aprofundar em questões existenciais vividas. O recurso utilizado para tal
muitas vezes é uma intervenção por parte do terapeuta comunitário, através
de expressões como: “Deixa-me ver se entendi”. Um outro recurso bastante
utilizado para conter tal fala dos sujeitos é a música cantada que pode ser
introduzida a qualquer momento na sessão, sempre que aquilo que a pessoa
estiver falando remeter os demais participantes à lembrança de alguma
música. A justificativa para tal condição é a de que a terapia comunitária não
se presta à prática psicoterapêutica e sim à atenção primária à saúde. Fica
118
aqui uma incerteza quanto à eficácia desse procedimento. Pois, nessa
prática, há todo um procedimento inicial de „aquecimento‟ dos sujeitos,
através de atividades lúdicas, para reduzir as defesas destes, dando ênfase
as suas emoções e disponibilizando-os à fala. Afinal, qual é a abrangência e
limite de um fluxo de consciência quanto à sua tentativa de contenção? Qual
é a garantia de interrupção de um processo psicológico após o mesmo ser
deflagrado? E quanto aos desdobramentos psicológicos gerados no sujeito
após uma sessão de terapia comunitária, qual é a amplitude de seus efeitos,
visto que a proposta não se destina à psicoterapia comunitária e pode ser
conduzida por quaisquer profissionais? E ainda com relação à proposta de
intervenção nas questões psíquicas do sujeito, evitando o aprofundamento
das mesmas, poderia ser esta uma forma de operar a „docilização‟ dos
sujeitos a partir de uma prática de continência, por comparação de histórias
de vidas alheias?
Isso posto, cabe aqui ressaltar um situação de forma mais concreta.
Uma das participantes, Joana, relatou que seu marido é portador da doença
de Alzheimer e uma de suas filhas, professora da rede pública que mora
com ela, está acometida pela síndrome do pânico, permanecendo afastada
do trabalho há alguns meses. Joana, 78 anos, é quem tem cuidado das
obrigações gerais da casa, do marido e da filha. Disse que antes da sua
participação no grupo de terapia comunitária costumava „ficar largada‟ no
sofá à noite de tanta exaustão em função das atividades domésticas
realizadas ao longo do dia. Hoje, ela diz sentir-se bem compartilhando de
suas dificuldades com o grupo e declarou:
119
Então eu venho aqui, o problema dos outros também é... O
meu é um problemão, filha e marido, mas eu falo assim... e eu nunca me revolto contra Deus. Ele me dá mais força,
maior é o problema, maior é a minha força. Mas eu falo assim... O problema dos outros também... aqui, né. E com isso eu pego força aqui e vou continuando.
Essa fala de Joana sugere que ela tem buscado no grupo motivações
para continuar produzindo sentidos para o seu dia-a-dia, a despeito de todas
as adversidades que ela parece enfrentar. Sugere ainda uma condição de
aceitação frente aos seus problemas quando ela tem a possibilidade de
comparar a sua vida com a dos outros participantes do grupo, percebendo
que os mesmos também tem problemas, mesmo que o seu seja „um
problemão‟. Essa condição parece lhe trazer algum conforto e possibilidade
de identificação com àqueles que tem problemas e por isso sofrem, fazendo-
a sentir-se forte para prosseguir a sua trajetória existencial.
Assim, a partir desse caso específico, quais outras possibilidades
Joana teria para dar sentido ao seu mundo? Se ela não estivesse no grupo,
quais outras estratégias a mesma poderia desenvolver para lidar com as
suas adversidades existenciais cotidianas? O diálogo com o seu marido e
com a sua filha poderia lhe promover uma reflexão crítica acerca de sua
existência, fazendo-a produzir novos sentidos para as suas experiências
cotidianas? A permanência em suas relações domésticas, estando fora do
grupo, lhe traria as mesmas possibilidades de reflexão e enfrentamento das
dificuldades, como as que tem encontrado estando no grupo? E se assim o
fosse, o quanto dessa autonomia poderia ser utilizada para „encantar‟ o seu
mundo?
120
Enfim, lançadas tais questões, serão discutidas algumas
características peculiares a terapia comunitária.
121
9.5. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRÁTICA
Com relação ao aquecimento proposto na terapia, as participantes
dizem gostar muito, pois se sentem mais „leves‟ com as músicas e com as
brincadeiras, mesmo quando nas sessões são discutidos assuntos que as
mobilizam bastante. Esses exercícios e dinâmicas têm a função de promover
um „quebra gelo‟, disponibilizando os participantes das sessões para a fala.
Cabe ressaltar que a aplicação desta prática neste grupo específico
apresenta algumas diferenças em relação à proposta original da terapia
comunitária. Devido ao fato da terapeuta comunitária também ser uma
psicoterapeuta e, ainda, devido aparentemente à sua vinculação com as
participantes, neste grupo, têm sido propostas algumas técnicas de
relaxamento que encontram muita receptividade por parte das entrevistadas.
Prática essa que particularmente aprecio e acredito ser mais um instrumento
que aproxima os componentes do grupo.
O mote, recurso utilizado para sintetizar as situações vividas no grupo
em uma frase, tende a ser de grande importância para as problematizações
que serão realizadas na sessão, pois possibilita que as pessoas possam
identificar-se com o tema discutido, compartilhando as suas experiências
semelhantes àquela narrada. O chamado mote simbólico, frase
metaforizada, costuma promover um resultado mais amplo quanto aos
depoimentos dos participantes, pois „abre‟ o sistema de uma forma mais
abrangente possibilitando que um maior número de pessoas tornem-se
depoentes naquela sessão.
122
O momento em que os participantes narram suas histórias de vida
para que possam ser votadas pelo grupo comumente costuma ser bastante
intenso, pois alguns participantes ficam muito mobilizados e tendem a
intensificar suas falas, aprofundando suas narrativas, contrariando o
princípio de objetividade na fala proposto para esse momento, quando são
normalmente interrompidos pela terapeuta comunitária que relembra as
regras da sessão.
A votação justificada do participante escolhido na sessão de terapia
pode ser vista como uma forma de promoção da tomada de consciência do
grupo, pois a mesma promove uma reflexão pessoal por parte do sujeito que
escolhe uma questão levantada a ser discutida, a partir de critérios pessoais
que o remetem às suas experiências pessoais. Esse também é um momento
privilegiado à fala nas sessões, pois disponibiliza a fala àquele que se
identificou com a questão expressa por um outro participante do grupo para
que seja votada.
Quanto à participação predominantemente feminina nas sessões, as
participantes dizem que o fato deve-se à dificuldade de expressão dos
homens com relação aos seus sentimentos. Elas alegam que alguns
homens da comunidade participam de algumas sessões e depois não mais
retornam por considerarem que naquele espaço só se falam coisas „tristes‟.
Uma das participantes relatou que houve um dia em que foi escolhida para
falar de seu sofrimento e, após o final da sessão, um senhor participante
disse: “Eu pensei que aqui eu fosse me desestressar, relaxar. Eu saí
arrasado”. Afirmou ainda que esse senhor nunca mais voltou às sessões
posteriores.
123
As participantes também consideram o momento da escolha do tema
discutido em cada sessão como um momento de muita dificuldade, pois
dizem que muitas vezes gostariam de oportunizar a fala para mais do que
uma pessoa, compreendendo diversos sofrimentos relatados como
legítimos. Pode-se inferir numa manifestação de solidariedade, por parte das
participantes, para com àqueles que sofrem e têm a iniciativa para expor o
seu sofrimento no grupo e acabam não sendo escolhidos, pois a cada
sessão apenas uma pessoa é escolhida para narrar seu sofrimento vivido.
A formulação de questões por parte dos participantes das sessões de
terapia, durante as sessões, também parece ser um mecanismo que
possibilita a reflexão crítica dos sujeitos frente às experiências de vida
compartilhadas. Porém, como já discutido, algumas vezes ocorre a
formulação de perguntas indutivas e/ou dedutivas que contêm em si um
conselho ou, ainda, julgamento de valores pessoais daquele que,
aparentemente, está problematizando um evento existencial do outro.
Nessas situações, cabe à pessoa que ocupa a posição de terapeuta
comunitário intervir, solicitando aos sujeitos que reformulem suas questões
de modo a destituir das mesmas suas crenças pessoais. Assim, enfatiza-se
no grupo que o objetivo do questionamento é compreender o sofrimento
vivido por aquele participante escolhido na sessão para narrar a sua vivência
e não a mera „investigação‟ ou especulação da vida do sujeito que está
relatando sua experiência pessoal para os participantes da sessão.
Percebe-se em algumas sessões que esse é um episódio bastante
comum e que dificilmente consegue-se dar a devida continência às
124
tentativas dos demais participantes de opinarem nas questões vividas pelo
sujeito escolhido para falar de seu sofrimento.
As participantes apontam para a dificuldade de respeitar algumas
regras previstas para o funcionamento do grupo, como a impossibilidade de
dar conselhos. Todas elas dizem ter muita dificuldade em conter-se e não
dar conselhos à pessoa eleita pelo grupo para falar dos seus sofrimentos
pessoais. O que as participantes percebem é que, muitas vezes, já há um
conselho ou opinião pessoal „embutidos‟ na pergunta formulada ao escolhido
daquela sessão. Algumas disseram ter vontade de procurar a pessoa que
relatou suas dificuldades e sofrimentos, após a sessão, para dizer a ela o
que pensaram a respeito do depoimento pessoal compartilhado.
Percebe-se que as participantes apropriam-se de modo pessoal das
regras e provérbios sugeridos no grupo, como um provérbio comumente
utilizado pelos terapeutas comunitários nas sessões que diz: “Quando a
boca cala, os órgãos falam e quando a boca fala, os órgãos saram”. Na fala
de uma das participantes da pesquisa esse provérbio foi pronunciado como:
“Quando a boca fala, o corpo cala”. Tal provérbio, transformado pela
participante em questão, sugere que a mesma apropriou-se de maneira
singular da narrativa proposta originalmente, compreendendo que quando o
sujeito tem a possibilidade de verbalizar seus sofrimentos, o seu „corpo cala‟,
não necessitando expressar-se através de doenças.
Uma questão de importância fundamental na terapia comunitária diz
respeito à busca por relações horizontais entre todos os participantes,
incluam-se aqui as figuras do terapeuta e co-terapeuta comunitários.
125
Na prática, o que se percebe é que esse não é um objetivo facilmente
alcançável, visto que, de acordo com os pressupostos discutidos
anteriormente, somos sujeitos construídos no/pelo social e, portanto, somos
produto e produtores deste mesmo social. Assim, a linguagem, enquanto
sistema de comunicação, torna-se a mediadora desta construção
intersubjetiva. E se assim o crermos, podemos inferir que o diálogo num
sistema „fechado‟, comportado por regras de funcionamento determinadas (o
grupo), „aloca‟ os sujeitos em posições, a partir das quais o discurso
proferido passa a ter dimensões e valores distintos. Se assim o compreendo,
cabe-me retomar ao lugar tão discutido em psicoterapia do „sujeito suposto
saber‟, relacionando-o a práxis do terapeuta comunitário.
A despeito da filosofia proposta na terapia comunitária, o sujeito que
ocupa a posição de terapeuta comunitário já comparece frente ao grupo
como portador de um saber que o restante do grupo não possui, a propósito,
situação bastante similar à posição ocupada pelo psicoterapeuta na relação
especialista-cliente, posição esta tão criticada pelos praticantes da terapia.
Portanto, a partir desta concepção, nos parece que a busca por
relações horizontalizadas pode prestar-se a um exercício ideológico, tanto
quanto àquele que visa ao alcance da produção de uma ciência neutra.
Talvez se possa pensar numa ideologia que faz a crítica a uma outra
ideologia (relações verticalizadas), mas que não soluciona o impasse das
relações desiguais geradas a partir das situações vividas cotidianamente e,
„alimentadas‟ pelo antagonismo de classes, ao que Foucault (1999)
denomina „dispositivo de poder‟.
126
A palavra terapia, segundo o Dicionário Aurélio, remete a idéia de
tratamento e, inclusive, psicoterapia (p. 1665). Terapêutico, por sua vez,
refere-se à parte da Medicina que estuda e põe em prática os meios
adequados para aliviar ou curar os doentes. Enquanto que terapeuta é
aquele que exerce alguma forma de terapêutica e/ou conhece bem as
indicações dela. A partir destes precários argumentos postos, questiono-me
acerca das representações sociais que os participantes da terapia
comunitária constróem acerca do sujeito que conduz a sessão, ou seja, o
terapeuta comunitário. Se assim for considerado, pode-se questionar acerca
dos desdobramentos pessoais e grupais, intrapsíquicos e interpsíquicos,
„deflagrados‟ durante e após uma sessão de terapia comunitária.
Assim, me pergunto, qual seria a formação necessária ao terapeuta
comunitário para a condução de grupos de terapia?
127
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Trilhar caminhos, construir trajetórias, explorar possibilidades,
vislumbrar instantâneos de realidade vivida. Eis a seara que a mim se
apresentou a partir do momento que me dispus a entrar em contato com
uma realidade que, àquele momento, julgara ser diferente da minha.
Por vezes tateando superficialmente, outras atravessando barreiras e
chegando próximo, bem próximo de emoções que dispensavam palavras.
Afinal, não é para isso que as palavras foram feitas, para deixar vazar as
emoções? Assim, fui me familiarizando com alguns quadros e tendo o
privilégio de me desfamiliarizar com outros tantos, apagando verdades e
escrevendo dúvidas, montando novas cenas, compondo novos cenários.
Creio que nesse caminho tive a oportunidade de conhecer outros em
mim, deixando esquecer um tanto daquele antídoto humano que também em
mim se guardava. Das velhas receitas aprendidas na sala de aula que
indicavam o “não pode chorar na frente do paciente” ou ainda “pense
sempre: não é comigo, é apenas resultado de transferência. Se necessário
for, anote no pulso essa ‘máxima’ e leia durante o atendimento”. Quanta
coisa a esquecer e quantas outras por lembrar e permitir aflorar.
Creio que me vi desesperar. Creio que me quis alegrar. Creio que me
fiz continuar.
Desde o contato com as primeiras e calorosas emoções após as
sessões de terapia comunitária, até o encontro com estas vivas mulheres
que irradiavam histórias de vida embebidas em sofrimentos e superações, a
minha alma não se fez descansar.
128
Percebi então a importância desse lugar na vida destas mulheres que
antes não tinham voz, não tinham direito à sua palavra, seus cantos eram
mudos. E agora contam, cantam e compartilham, sofrendo as dores contidas
de um conselho, um palpite que tanto queriam lançar ao ar.
Se hoje louvam umas às outras e sofrem, e choram, e descobriram
que, para além de sofrer e chorar, também podem expressar esse
sofrimento, é sinal de que a necessidade de questionar já lhes habita,
construindo morada.
A despeito de todas as contradições e ambigüidades humanas, elas
estão em um sistema que antes não lhes comportava por não existir.
Encontraram pessoas e, como outras pessoas, estão aprendendo a produzir,
a partir da dialogia, novos sentidos que lhes possam encantar o mundo,
encantando a si próprias.
Assim, cabe-me tão somente, num gesto de reverência às suas
histórias de vida comigo compartilhadas, responder-lhes: “Tocar as mãos,
abrir os corações, para „estar’ na comunidade. Tocar as mãos, abrir os
corações, para viver em felicidade”.
129
11. ANEXOS
ANEXO 1 - Questionário
1 - O que você acha da Terapia Comunitária?
2 - Você percebe alguma mudança em si próprio depois que começou a
freqüentar a Terapia Comunitária?
3 - As pessoas que convivem com você comentam alguma diferença no seu
modo de ser depois que você passou a freqüentar a Terapia
Comunitária?
4 - O que você mais gosta na Terapia Comunitária?
130
ANEXO 2 - ENTREVISTA
Data: 30/04/05
- Ivone - Estou me sentindo muito importante em dar uma entrevista.
- Entrev. - Pode ser o seu momento pop (risos).
- Ana - Os quinze minutos dela de fama (risos).
- Entrev. - É isso ai. Então uma primeira questão que eu tenho para vocês é
Como vocês chegaram até a Terapia Comunitária, Como é que a Terapia
Comunitária chegou até vocês, Como vocês chegaram até ela, Como foi
esse movimento? Eu gostaria de ouvir um pouco a esse respeito.
- Ana - Posso falar?
- Entrev. - Você quer falar?
- Ana - Falo.
- Entrev. - Fala o seu nome antes para a gente identificar.
- Ana - Ana. Através da Paula, Eu e a Joana fizemos Terapia e Ginástica.
Então dentro da aula de ginástica ela dava umas coisas de terapeuta, né?
- Entrev. - Sei, algumas atividades que eram terapêuticas?
- Ana - Não, mais ela era aluna também
- Entrev. - Ah, tá.
- Ana - Então, mas a gente lá era um grupinho muito bom. Se ela tem
alguma coisa, ela fala lá no meio. Todo mundo procura socorrer, procura
acudir e a Paula, como sendo psicóloga, então teve um momento em que eu
tava em crise com alguma coisa assim e ela que levantou a minha moral.
Então depois disso ela me convidou para vir aqui, era até no colégio as
primeiras (sessões de Terapia Comunitária). Ai eu comecei a freqüentar.
- Entrev. - Que colégio que era esse?
- Ana – (Do bairro).
- Entrev. - Vocês também participaram das sessões no colégio?
- Ivone - É. Na verdade começou assim, nós duas (Lídia e Ivone)
trabalhávamos na pastoral da criança que funciona aqui nessa igreja (do
bairro) e a Paula veio pelo Centro de voluntariado para trabalhar com as
131
crianças e ela achou melhor trabalhar com as mães. Ela começou a fazer a
terapia de grupo com as mães. Então tem um sábado do mês que estas
crianças da pastoral fazem uma atividade nessa escola, (no bairro), que é
aqui no bairro também. Então lá tem um bosque e nesse bosque a Paula
selecionou as mães que queriam participar e fazia terapia lá nesse bosque
uma vez por mês.
- Entrev. - O bosque é uma praça?
- Ivone - É, dentro da escola tem esse bosque. E a gente tinha vontade de
participar, mas como nós éramos voluntárias, tínhamos que trabalhar com as
crianças, não tínhamos tempo. Um dia, eu sugeri que ela fizesse um grupo
para a gente, à noite, para os voluntários poderem participar. Então surgiu a
Terapia aqui, à noite, mas da pastoral mesmo só nós duas permanecemos
(Ivone e Lídia). Ela (Lídia) participa da missa das 10h e começou a fazer
convites para o pessoal participar da Terapia e elas (Joana e Ana) já vieram
através da natação, da ginástica. O grupo já está crescendo porque um vai
convidando o outro.
- Entrev. - Quantas pessoas têm mais ou menos no grupo, hoje?
- Ivone - Perseverante mesmo acho que umas 15.
- Ana - Tem bastante, é que não vêm todos. Geralmente a gente falta.
Somos quinze que vocês conhecem mais.
- Lídia - Então, essa terapia começou pela pastoral da criança que seria para
os voluntários. Eu até falei, eu vou porque eu tenho certeza que não vai
quase ninguém e eu vim com essa certeza, simplesmente para não deixar a
Ivone e a Paula sozinhas. Essa foi a minha primeira intenção. Eu pensava,
graças a Deus problema eu não tenho. A gente tem a impressão de que
terapia é para quando você está com muitos problemas, você tem muita
incucação e você vai. Ai ela veio (Paula) e no fim nos abrimos para a
comunidade. Hoje na verdade ela é mais uma atividade da comunidade.
Entendeu? Então ela abrange a comunidade todinha. Então a gente anuncia
nas missas e quem conhece fala para os amigos. A procura é boa.
- Entrev. - V. como vocês tem chamado a atividade aqui?
- Lídia - Terapia da Auto-estima.
- Entrev. - Terapia da Auto-estima, interessante.
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- Lídia - É para chamar o povo. Porque se você falar Terapia de Grupo,
Terapia familiar, Terapia... As pessoas ficam sem saber.
- Ivone - Auto-estima já abrange todo mundo.
- Lídia - Foi até o padre Zé Maria que usou esse termo ai. Ele que sugeriu.
Ele falou da auto-ajuda, da auto-estima. E ficou da auto-estima. Então, ela
(Paula) vem a cada quinze dias e o pessoal formou um grupo, agora vem
toda segunda-feira, às 20h.
- Entrev. - E você Joana, como veio parar na Terapia da Auto-estima?
- Joana - Eu também vim através da hidroginástica, foi a Ana que me
incentivou e ela não ia. A casa dela é uma pensão, sábado todo mundo tá lá
não dá para ela ir.
- Entrev. - É a Big família?
- Ana - Põe big nisso, põe big. Deixei todo mundo comendo lá e vim embora
sem almoçar.
- Joana - Ai eu fui lá no colégio, dois dos meus netos estudam lá, e foi no
bosque. Eu me senti tão bem nesse bosque. Sabe é como está aqui em
cima (na igreja), eu me sinto bem. Eu me senti bem. Essa hora é a hora em
que eu descanso, mas eu fui, no sábado, uma vez por mês e continuei. De lá
ela (Paula) passou para cá e eu moro aqui, também sou da comunidade,
ficou muito mais fácil.
- Entrev. - Então o grupo lá não está funcionando, agora é aqui?
- Joana - Não.
Ivone - Não, as mães das crianças mesmo não se interessaram muito.
- Entrev. - Agora vamos então para o assunto propriamente dito , acho que
de alguma forma já entendi como é que vocês chegaram a Terapia. O que
vocês acham da Terapia da Auto-estima, qual é a importância dela na vida
de vocês hoje? Eu gostaria de ouvir um pouco a esse respeito agora.
- Ana - Eu acho que é assim, a gente se compreende um pouco com os
outros, né. Ouvindo. Porque graças a Deus a gente não tem problemas, tem
problemas cotidianos que toda família tem, mas você ouvindo o problema de
um e o problema do outro e tal, você acaba falando, ai como eu sou feliz
(sorri). Então você sempre tira, mesmo das coisas ruins, você sempre tira
um proveito. Você aprende alguma coisa e com isso você melhora o seu
133
modo de ser. Eu melhorei assim... em comparação a cuidar de outras
pessoas, essas coisas. Eu acho que eu melhorei bastante. Não tenho
“Azinho” ainda mais eu já mudei bastante, mas para mim foi ótimo.
- Entrev. - E você (Ivone)?
- Ivone - Olha, eu já cheguei a fazer terapia individual por pouco tempo, mas
eu achei que terapia em grupo, assim... completa mais a gente. Porque na
terapia individual eu só vou ouvir a mim mesma, quando você chega num
grupo e ouve um problema do outro, ai a gente começa a ter mais
consciência de que todo mundo tem problema. Que a gente não é a única
(enfatizada) que sofre e que tem medo, tudo isso. Isso me ajudou tanto.
Aconteceu que quando começou essa terapia foi quando realmente
começou uma fase difícil na minha vida. Muitos problemas, um atrás do
outro. Eu chegava aqui, eu ouvia os problemas dos outros. Eu aprendia,
tirava muita coisa para ajudar a resolver os meus. Saia conformada de saber
que outras pessoas também sofriam a mesma coisa. E até a gente aprende
a valorizar o que a gente tem, porque quando você ouve o outro falando de
algum problema tão sério, tão sofrido, a gente aprende a valorizar as coisas
boas da vida da gente. Então eu não abro mão da terapia de jeito nenhum.
Estou assim enrolada, trabalhando, com mãe doente e tudo, mas chegou a
segunda-feira às 20h eu largo tudo e corro para cá.
- Entrev. - Então Ivone, a grande diferença, se estou entendendo o que você
colocou, é que numa psicoterapia individual acaba só você falando e o
psicoterapeuta, e você não tem um compartilhar de experiências?
- Ivone - Isso, exatamente. Exatamente.
- Entrev. - Essa seria a grande vantagem para você da Terapia da auto-
estima? Você pode ouvir as questões do outro também e ajuda a pensar nas
suas questões a partir das questões do outro?
- Ivone - Muito, muito. A gente aprende muito. Olha, principalmente no
valorizar o que a gente tem. Eu não sei se todo mundo é assim ou se eu,
né? Aquela coisa de você achar que o seu problema é o maior que o de todo
mundo, que você é única ou então que a alegria do outro é muito maior e eu
não tenho aquilo. Só o outro é feliz, sendo que normalmente quando você
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não convive muito com a pessoa, a tendência é só você enxergar coisa boa
da vida daquela pessoa. Fala, puxa ela é tão feliz e eu sou tão ferrada, né?
- Entrev. - Tem uma expressão, não tem, que diz que o gramado do vizinho
é sempre mais verde? Porque a gente não está lá no próprio jardim, está
olhando a distância.
Ivone - Isso, é isso mesmo. É verdade. Ai então dentro do grupo você vê que
pessoas que estão sempre alegres, sorrindo, tudo, de repente ela tem um
problema até mais sério do que o meu. E a gente vai comparando, vai
tirando alguma coisa ai. Acho que a gente cresce muito. Isso abre muito a
visão da gente para esse aspecto.
- Entrev. - E vocês?
- Joana - É como a Ivone - disse, todo mundo tem problemas. Agora eu
nunca fiz terapia individual e nem gostaria porque eu sou muito faladeira, ai
eu ia falar, falar. Mas, como disse a Ana também a gente aprende. Eu estou
com 78 anos e aprendo todos os dias, aqui principalmente nessa igreja. Eu
aprendi a ser ponderada. Não falar o que vê, sabe? Desculpe a expressão,
vomitar o que você pensa. Eu peço para o espírito santo, saber o que você
fala para não ofender as pessoas.
- Entrev. - Saber o que você fala para não ofender as pessoas?
- Joana - É o que eu falo, não tem que falar com a cabeça tem que falar com
o coração. Pensar, raciocinar, ponderar. Aprendi muita coisa aqui na terapia
e eu gosto. Segunda-feira, esta última não deu para eu vir, e me faz bem. A
Paula ensinou a gente fazer relaxamento. Então, eu ando tendo uns
probleminhas com a minha filha, para não falar uns problemões, e quando
eu não consigo dormir eu faço aquilo que a Paula ensinou e eu desmaio. E
eu rezo também porque tenho muita fé em Deus.
- Entrev. - E o que foi que ela te ensinou, você pode falar?
- Joana - A minha filha? Então ela está...
- Entrev. - Não, o que foi que a Paula te ensinou? O relaxamento.
- Joana - E a questão de respirar. Respira, aspira e solta. Eu faço duas, três
vezes. Eu quero fazer mais, mas ai vai me dando... Eu nem sei como é que
eu durmo, só sei que eu deito. Ai eu pego o evangelho para ler também, ao
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invés de ficar assistindo aquelas novelas porcarias da vida e está me
fazendo bem. Tem dia que eu nem percebo e já estou dormindo.
- Entrev. - E você Lídia?
- Lídia - Bom eu, na verdade foi como eu disse. Eu vim mais assim como...
não sei.. Isso ai não tem nada a ver comigo.
- Ivone - Para fazer número.
- Lídia - Vim aqui só para dar um apoio, para mostrar boa vontade. E ai eu
fui percebendo... porque eu... eu também sou... como ela fala sempre em
todas as terapias... “quando a boca fala, o corpo cala”. E é o meu caso, eu
também, não sei se é um defeito, às vezes eu acho um grande defeito, às
vezes eu acho que é qualidade, não sei... Eu falo, mas eu não tenho tanto
problema assim, graças a Deus eu vivo harmoniosamente bem. Não tenho
esses grandes problemas que todo mundo tem. Ai uma falava e eu falava já
passei por isso. Ai o outro falava não sei o que de bebida, já passei por
aquilo. Então ai eu fui vendo que tudo que o povo fala é comum, de uma
forma ou de outra, cada um tem uma forma de conduzir, mas, no decorrer da
vida, a gente passa por aquilo e você nem percebe. E uma coisa que eu
gosto muito é que a Paula, eu gosto demais da postura dela. Porque às
vezes, o psicólogo, se você não tiver empatia... A mesma coisa, se você vai
ao médico e não for com a cara do médico, ele pode ser o melhor que for,
mas você vai preferir ir num que ninguém conhece, mas que te deu aquela
empatia. E a Paula, ela é uma pessoa muito forte na condução e ela ensinou
umas regrinhas que não pode julgar, que não pode sair dali, não sei o que. E
é muito difícil para a gente. É um exercício que a gente também aprende. A
outra lá fala e dá uma vontade de dar uns conselhos.
- Ana - Você não pode dar conselhos, tem que falar por você.
- Lídia - Nesse sentido a gente também vai crescendo, vai amadurecendo,
entendeu? E eu gosto bastante. Teve uns dias que eu não pude vir, mas
sempre que posso venho e eu estou gostando bastante. Acho que foi muito
importante. Eu achava que era coisa só para quem era muito problemático,
muito... era isso que eu achava. Gente que vai ao psicólogo é porque tem
uma mania, uma neurose, põe um negócio na cabeça. Então, a gente tem
essa impressão em geral, mas no fundo ali é o cotidiano da gente. É o dia-a-
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dia da gente que é levado ali naquela... que nem sempre você tira a solução.
Porque a gente vai com a idéia de que eu vou sair dali com a solução para o
meu problema, mas na verdade o problema ta em quem? Na gente.
- Ivone - É.
- Lídia - Ela pode ter passado uma experiência (apontando para Ivone), ela
(apontando para Ana), ela (apontando para Joana). Só que o meu, pode ser
que o que elas passaram não caiba na minha situação. Eu acho que cada
pessoa tem uma forma de conduzir a sua vida. Eu vivo com a minha mãe,
sou eu e a minha mãe. Então a minha mãe sempre foi o meu porto seguro, o
meu termômetro é ela. Assim, “você tá falando demais”, “você tá fazendo
isso de menos”. Então a gente vive... Você sabe mãe e filha que se dá super
bem? Então quando eu escuto uma filha falar que se dá mal com a mãe ou
mãe que não gosta de filha, isso para mim é um escândalo. Eu acho que é
porque eu não vivo isso. Então eu sempre achei que a minha vidinha até que
foi boa, né? Ai você escuta tanta coisa, mas eu já vivi... quando meu pai era
vivo, ele bebia. O que é essa vida ai fora, depois ele melhorou. Então a
gente vê que a gente já viveu, mas no grupo é mais assim, vamos dizer,
você se conforma mais com a sua situação porque dá a impressão de que
você não está sozinha. Agora, é como você falou, o gramado do outro é
mais verde que o meu. Porque a gente acha que o nosso é o pior. Tem uma
visão que amplia de um mundo, de convivência, de relacionamento.
- Entrev. - A Lídia tocou num aspecto de que você ouvir o problema do outro
e verificar o tamanho do problema que você tem, comparando com o do
outro, e que isso dá alguma possibilidade para a gente se conformar com
aquelas situações que a gente tá vivendo. Como é que é isso para vocês?
- Ana - Eu não diria me conformar. Eu diria lutar para melhorar o meu
problema (risos). Então você ouve a gente, tem tantas coisas... Graças a
Deus eu já passei fases ruins. Seu eu for contar a minha vida é uma
tragicomédia, mas graças a Deus eu tenho o temperamento bom. Eu levo
sempre as coisas para o lado melhor, não fico pensando no pior. Procuro dar
esse exemplo lá em casa e é bem difícil, você consegue para os outros,
dentro da sua casa você não tem o valor que te dão fora. Mas, se ela tem
um problema que eu acho que é parecido com o meu e tal, ai eu procuro...
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eu quero lutar para melhorar, não vou me conformar porque ela tem o
mesmo problema que eu, então tá tudo bem, tá certo, isso é normal. Eu
procuro, eu quero endireitar o que está de errado.
- Entrev. - Como é que é essa sua luta Ana? Vamos pensar assim, depois
que você sai de uma sessão de terapia da auto-estima e que você viveu
uma porção de histórias de vida ali, as pessoas compartilharam aquelas
experiências, você assimilou algumas coisas, outras imagino que não te
disseram tanto, outras falaram mais alto. Como é que você lida com estas
idéias todas que ficam no teu corpo, na tua cabeça depois que você sai da
terapia?
- Ana - Eu quero endireitar todo mundo (risos). Eu quero dar conselho, eu
quero falar, eu quero levar a minha alegria, a minha confraternização. Então
eu acho que eu posso, eu acho que eu tenho (enfatizado) esse... esse
poder. Muita modesta eu (risos), mas não é a terapia da auto-estima? Eu me
valorizo, não sou boba. Então eu acho assim que eu posso. Ai eu chego na
minha casa, na minha família, feliz da vida e procuro praticar isso com os
meus filhos. Sempre tem aquelas encrenquinhas, tenho 4 filhos, 10 netos,
bisnetos, pá,pá,pá, marido (risos).
- Entrev. - E como é que é esse praticar com filhos, marido, neto?
- Ana - Bom, eles nem percebem. Eu acho, não sei.
- Entrev. - E você enquanto agente desse processo?
- Ana - Ah, eu me acho ótima (risos). Porque eu sou assim, se a minha fi lha
tem problemas e tal, eu procuro animar. Problemas de desemprego em
família, tem um monte de desempregado lá em casa. Então eles vão sempre
assim, vó... Ai eu, isso ai não é nada, tem tanta gente assim. Nós vamos
melhorar, o dia de amanhã é outro, vamos lutar, não pode desanimar e
estou sempre sorrindo, mesmo quando elas estão chorando. Eu choro atrás
(risos), mas na frente delas eu procuro transmitir confiança.
- Lídia - Posso fazer uma observação? Todo fim de terapia nossa, a Paula
faz essa pergunta.
- Entrev. - Qual pergunta?
- Lídia - Quando ela termina, quando está terminando, ela pergunta o que
cada um leva de bom ou de ruim que aprendeu. E é muito interessante,
138
porque o grupo é mais ou menos o mesmo, e cada vez eles tiram uma coisa
diferente. Você entendeu? É uma lição diferente. A cada terapia é uma lição
que a gente leva. É isso que eu já acho interessante. Então ai quando você
vê, é aquela história que já foi dita aqui, ai como eu sou feliz e não sabia.
Assim, a gente passa a também dar mais valor as coisas bobinhas da vida
da gente, que a gente é muito chatinha e muito cheia de coisinha, para que
isso?
- Entrev. - Lídia, você se lembra de algum final de terapia que tenha te
tocado mais, algum tema que as pessoas tenham trazido e que foi muito
forte para você?
- Lídia - Com certeza, agora de imediato eu não saberia te dizer, mas quase
toda terapia mexe com a gente. A gente sai daqui questionando. A gente sai
assim querendo se melhorar. Querendo dali, como elas falaram, a gente
tentar melhorar não só a gente.
- Ana - Transmitir para os outros, né?
- Entrev. - Lídia, você se sente mais possibilitada para isso, como a Ana
disse que sai daqui acreditando, “eu posso fazer”, você também se sente
assim?
- Lídia - Com certeza.
- Entrev. - E vocês, como é para vocês, Ivone e Joana?
- Ivone - Eu também. Cada dia é uma lição diferente. Às vezes, o problema
levantado é um problema que não tem muito a ver comigo. Então, nesse dia
passa mais suave. Não saio assim tão, “Nossa, foi maravilhoso”. Mas tem
dias que levantam um problema que geralmente tem mais a ver com a gente
ou com alguém das nossas relações e que você sai dali pensando: “não vim
trazer esse problema e no fim eu estou levando a solução para ele ou já saio
com alguma coisa para dizer para o outro”. Então tem dias que você sai
levando algo muito maior. Outros dias nem tanto, mas a gente sai tranqüila
daqui. É sempre tranqüilo pela abertura que tem, uma coisa muito alegre.
Depois no final, a gente canta uma musiquinha, dá uma relaxada. Isso numa
segunda-feira, depois de um dia de trabalho. É muito bom.
- Ana - Depois de uma faxina.
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- Ivone - A gente sempre leva alguma... a gente sempre sai daqui bem,
mesmo que tenha sido levantado um problema triste.
- Entrev. - E eles são levantados?
- Ivone - São. Uma vez aconteceu... Eu trouxe um problema sério e um
senhor aqui da comunidade que veio, nunca mais voltou.
- Ana - O Sr. Ivo
- Ivone - Ele falou, “Não eu pensei que aqui eu fosse me „desestressar‟,
relaxar. Eu saí arrasado”. E nunca mais voltou.
- Ana - Relaxar.
- Lídia - Não, era terapia da auto-estima e ele achou que era uma coisa leve
que ia levantar a auto-estima dele.
- Entrev. - E você, Ivone, como se sentiu com um episódio desse?
- Ivone - Com relação ao meu problema? Eu fiquei até decepcionada. Eu
falei, “Puxa vida, acho que ele veio num mau dia”. Se ele tivesse vindo num
dia que fosse uma coisa mais suave, talvez ele fosse entendendo bem o que
era. Porque ele chegou sem nem entender como funcionava a terapia.
- Ana e Lídia - Mas, são todos os dias.
- Lídia - Não entendia nada, só falava, ele queria falar.
- Ivone - Ele chegou com vontade de falar e no fim eu acabei levantando um
problema e ele só ouviu coisas ruins, então ficou muito mal.
- Entrev. - Essas coisas ruins seriam as coisas que a gente vive no dia-a-
dia?
- Ivone - É. Quer que eu te conte o problema?
- Entrev. - Se você quiser.
- Ivone - Foi assim, eu tenho... eu tinha um sogro que estava com Alzheimer.
Eu era muito apegada a ele e, na época que eu me casei, eu tinha perdido o
meu pai e comecei a trabalhar. Ele e meu marido trabalhavam juntos, numa
empresa pequena, e eu comecei a trabalhar com eles e fiquei muito presa a
ele como um pai mesmo. E ele também... acho que me tinha como filha.
Nossa relação era muito forte. Ele, com Alzheimer, começou com todos
aqueles problemas de esquecer das pessoas e arrumar muitos problemas
que não existiam, mas ele nunca esqueceu de mim, nem do meu telefone,
vivia me procurando. Chegou num ponto em que ele já estava piorando
140
bastante e ingeriu vários comprimidos para morrer e me telefonou para que
eu fosse até lá que ele queria se despedir de mim, nós morávamos pertinho.
Conseguimos salvá-lo daquilo, mas ele piorou e foi para o hospital e isso
não o matou. Porém, ele ficou muito pior, muito mais agressivo, não teve
mais condições de vir para casa, foi para uma clínica geriátrica. Então aquilo
para mim foi o fim. Ele só tem dois filhos, o meu marido, mais um. Os dois
filhos resolveram colocá-lo nessa clínica, para mim foi o fim. Eu cheguei aqui
arrasada. Eu não concordava com aquilo. Eu não aceitava. Para mim era
uma maldade que eles estavam fazendo com ele. Fiquei me sentindo muito
mal e impotente porque eu não podia mudar essa situação.
- Entrev. - Você não teve uma outra idéia?
- Ivone - Não, eles tiraram ele do hospital.
- Lídia - Idéia teve.
- Ivone - Tivemos algumas assim no sentido de contratar enfermagem para
cuidar, mas pelo tamanho dele, era uma pessoa muito grande e forte,
precisariam ser enfermeiros homens, três para ficar vinte e quatro horas, ia
ficar um custo muito grande. Pensaram em tudo e chegaram a conclusão de
que a clínica era o mais viável. Mas eu não aceitei aquilo, para mim era o
meu pai que estavam fazendo uma maldade muito grande com ele. Eu
cheguei aqui arrasada, a sorte que foi no dia da terapia.
- Entrev. - Você foi a escolhida nessa sessão?
Ivone - Eu cheguei e pedi, coloquei o meu problema, mas já pensando que
se não me escolherem eu vou pedir por favor (risos).
- Entrev. - E precisou?
- Ivone - Nem precisou. E no fim eu saí daqui aliviadíssima (enfática) porque
eu vi que quase todos já tinham passado por um problema parecido. Um
teve que internar a mãe, o outro o pai, o outro, sogro, sogra, tia, quase
todos. Eu acho que bem poucos não tinham vivido a mesma situação. E todo
mundo colocou a mesma dificuldade que os filhos tinham visto. Todo mundo
colocou que também tiveram esse tipo de dificuldade. E depois a Paula
também levantou que também teve a mãe internada e ela ainda colocou que
internar um portador de Alzheimer é uma proteção. Meu sogro já tinha
141
tentado se matar e uma hora ele iria conseguir. Então tudo aquilo que eu
não estava conseguindo entender sozinha... pronto eu sai daqui outra.
- Entrev. - É a questão que você tinha colocado um pouco antes, no começo
da nossa conversa, que a gente pensa que porque as pessoas
aparentemente estão em harmonia, elas não sofrem, só tem alegria? Nesse
dia, você pode dizer que viu isso no relato das pessoas comparti lhando com
você?
- Ivone - Com certeza, com certeza e foi a maioria. A maioria tinha vivido a
mesma situação e achou a mesma solução também. Era a solução. Se
naquele dia eu tivesse ido numa terapia individual, eu acho que eu não teria
resolvido nada, porque o que resolveu foi o que eu ouvi dos outros.
- Entrev. - Vamos tentar então fantasiar um pouco, brincar com as idéias, se
você tivesse ido para a terapia individual naquele dia, o que você acha que
você teria levado para casa, usando a terapia comunitária com refrão?
- Ivone - Se eu tivesse ido na terapia individual?
- Entrev. - Ao invés de vir na sessão de terapia da auto-estima, se você
tivesse ido naquela noite, segunda-feira, numa terapia individual, tenta
imaginar o que você teria levado para casa no final da sessão individual.
- Ivone - Eu acho que eu teria levado a minha culpa de volta (risos), porque o
que me ajudou a me livrar daquela culpa foi o depoimento dos outros. Ai eu
vi que a maioria, que naquele grupo pequeno, tantas pessoas já tinham
vivido coisa semelhante. Imagina em outro contexto maior. Então, com
certeza (com ênfase), a terapia individual, aquele dia (com ênfase), não teria
me ajudado. Pena o Sr. Ivo ter ido embora.
- Joana - Porque ele não entendeu o problema da Ivone. Ela estava toda
precisando de apoio e ele, acho que pensou que fosse uma festa, sei lá...
Ele é muito festeiro, que ele também tá cheio de problemas (risos). E a Ivone
não sentiu o apoio nele, mas sentiu nas outras pessoas.
- Entrev. - Sei. E o que isso significou para você? Você está se lembrando
desse episódio nessa sessão em que a Ivone foi a protagonista, o que isso
trouxe para você naquele dia, o que você levou para casa naquela sessão,
você se lembra?
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- Joana - Levei. Porque eu estava, aliás estou no mesmo problema, meu
marido está com mal de Alzheimer. Não sei exatamente se há três anos, a
gente não sabe, mais ou menos por ai, mas aquilo vem aumentando. É um
problema que não tem solução, uma doença que vai gradativamente. Então
aquele dia eu levei assim... que meu marido as meninas quiseram internar
em dezembro. porque meu marido começou assim... porque mora em frente
a minha filha e meu genro foi lá na sacada e viu tanta roupa, falou “sua mãe
virou lavadeira, tem lavanderia?”. Ela respondeu “Não, meu pai faz muito xixi
e minha mãe fica lavando”. Ele disse: “Ah, mas ela vai ficar doente, já tem
idade”. Porque eu me dou muito bem com o meu genro, é o filho que a gente
não teve. E ele falou: “Então eu vou fazer um negócio”. Comunicou-se com a
minha outra filha e eles já arrumaram para internar. E ai eles vieram falar
comigo, não vieram de sola, vieram assim... Eu falei olha... Ai nesse meio de
tempo ele começou a tomar um medicamento novo, até difícil de encontrar.
É fórmula alemã, caríssima, mas está valendo a pena para o meu marido. Ai
nesse meio de tempo meu marido melhorou, ele está raciocinando, sabe? E
eu vi, eu sei que eles tinham razão. Eles queriam me poupar, mas ai eu falei
para eles... no natal fui ajudar minha filha, meu genro estava falando assim:
“O que você vai fazer? O que vocês resolveram?” Eu respondi, “Eu resolvi
que eu não quero que interne porque ele está melhorando, eu tenho saúde e
eu posso cuidar”. Ai eu pus um enfermeiro que dá banho nele todos os dias
e faz a barba,então já diminuiu para mim esse serviço. A roupa não tem
problema porque põe na máquina e põe desinfetante, certo? E Deus me
ajudou e meu marido está melhorando, você acredita? Ele está
raciocinando, ele não sabia mais assinar o nome. Ele é contador, não sabia
mais assinar o nome dele. Umas coisas que se você pensar é pachorra. Já
está escrevendo, está pintando, está desenhando (chorando), está
atendendo o telefone.
- Nesse momento o grupo começou a cantar, a exemplo do que ocorre nas
sessões:
“Encosta tua cabecinha no meu ombro e chora. E conta logo tuas mágoas
todas para mim. Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora.
Que não vai embora porque gosta de mim”.
143
- Joana - Então e a terapia tem segunda-feira que eu estou cansada, venho
arrasada aqui. Assim... Eu venho... Eu não sou triste. Eu sou... Às vezes, eu
falo será... Eu fui num casamento em dezembro e dancei com todos os
meus parentes, tudo. Eu falo será que eu fiz bem? Meu marido está aqui,
ficou com o enfermeiro, está doente e eu estou nessa alegria. Depois eu falo
não, é bom que eu sou assim porque senão sou eu quem vou ficar doente,
certo? Então eu venho aqui, o problema dos outros também é... O meu é um
problemão, filha e marido, mas eu falo assim... e eu nunca me revolto contra
Deus. Ele me dá mais força, maior é o problema, maior é a minha força. Mas
eu falo assim... O problema dos outros também... aqui, né. E com isso eu
pego força aqui e vou continuando.
- Entrev. - Então Joana, quando você sai daqui você se sente mais forte para
enfrentar a sua própria realidade, os episódios que a vida te coloca?
- Joana - Sim, sim, muito bem (bradando).
- Lídia - Tem um detalhe na terapia que eu observo, que às vezes vem uma
pessoa pela primeira vez. Ela vem angustiada, querendo falar, mas por
algum motivo o assunto dela não foi o eleito. A pessoa não vem mais. Então
eu percebo muito isso. Tem pessoas que vem assim, assim... trazer o meu...
- Ana - Tem que resolver.
- Entrev. - E elas não são escolhidas naquele dia e não retornam?
- Lídia - Eu tenho percebido isso. Eu tenho percebido isso.
- Ana - É porque tem uma votação. Você escolhe o tema e quem é mais
votado. Outro dia eu não recebi nem um voto, né Ivone? (risos)
- Ivone - Éé.
- Ana - Eu não recebi nenhum voto. (risos) Falei, não sirvo para a política.
- Lídia - Então, assim... Outro dia veio uma moça que disse que tossia muito
e não sei o que e no fim a As. ganhou. Porque ela sempre falou do marido
dela, esse marido dela ela fala desde o primeiro dia e nunca teve
oportunidade.
- Entrev. - Ela não tinha sido escolhida ainda?
- Lídia - Não. E ela estava tão feliz que ele tinha melhorado, entendeu, e ai
todo mundo votou nela.
144
- Joana - Eu até escrevi sabe, eu gosto de escrever, dia 14 de março. Eu me
senti bem de contar toda a minha vida na história. Como além de tudo meu
marido é deficiente. Era um touro e ficou doente, com medo de médico. Eu
me sinto assim protegida com elas... por elas. A única coisa que eu não
gosto na terapia é que você não pode dar palpite.
- Ivone - Às vezes, a língua fica coçando, assim...
- Joana - A gente só pode perguntar, não pode dar palpite. É isso que eu
não gosto.
- Entrev. - As. que importância que tem esse grupo da terapia na sua vida?
- Joana - Uma importância muito, muito boa. Você vê, apesar de eu morar
perto, a essa hora eu já deito cedo. A gente vem, mas eu fico torcendo para
chegar o dia de vir na terapia, me faz bem (emocionada). Não é que eu
quero que os outros tenham problema. Eu sei. Eu sou vivida. Eu sei que
todo mundo tem. Então, quando a pessoa tem, sempre que você fala alguma
coisa, como aquele dia a Ivone, ela pegou força aqui. É como eu também.
- Entrev. - Agora então eu tenho uma outra questão para vocês. Você
percebe alguma mudança em si própria depois que começou a participar da
terapia?
- Joana - A Ana já respondeu essa.
- Ana - Não precisa nem me perguntar.
- Ivone - Eu percebi uma mudança muito grande em mim, até dentro destas
regras que tem. Eu tenho duas filhas e um marido que não gosta muito de
falar, e a gente ainda trabalha juntos, e eu é que tenho que estar sempre
falando. Na hora de reclamar de alguma coisa ele sempre joga na minha
mão e essa regrinha de não dar conselho, não julgar. Eu acabei levando isso
no meu relacionamento com eles, principalmente com as minhas filhas. O
meu marido eu ficava querendo obrigar ele a falar. Tinha mania de ficar
querendo obrigar. E as minhas filhas eu já dava tudo pronto. Chegou com
problema, eu falava faz assim, faz assado e pronto. Então eu queria que
eles vivessem da maneira que eu queria. Então eu aprendi nisso,
principalmente na minha relação com elas, a fazer com que elas pensem no
problema e procurem a solução. Então ao invés de chegar e falar, oh fi lha
faz assim. Agora eu chego e pergunto. O que você gostaria mais, como você
145
gostaria que esse problema fosse resolvido. O que você acha melhor fazer.
Na verdade, no lugar de dar conselho eu aprendi a fazer perguntas e parei
também de querer obrigar o meu marido a falar (risos). Quando tem alguma
coisa na empresa que ele joga para mim, eu não obrigo nada. Eu só falo,
olha esse problema é seu, é você que vai ter que resolver e saio de perto.
- Entrev. - E o que tem acontecido?
- Ivone - Ai, ele vai até o cliente e fala. Já está até começando. Até na... A
senhora (Ana) veio na segunda-feira, né? Na segunda-feira teve até um
casal que o problema era assim. O marido muito quieto e também trabalha
com a esposa numa malharia, né? E na hora de resolver um problema, ele
jogava para a mulher porque ele não gosta de falar. E foi exatamente esse
conselho que a Paula deu: “Você cala e sai de perto. Deixa ele falar”.
- Lídia - Não é que eu queira me intrometer, mas não é só esse caso. Todos
os homens, a maioria, tão querendo... tudo deixar...
- Ivone - Eles jogam tudo...
- Lídia - Eles jogam tudo para as mulheres, isso. Eu sempre vivi isso. Meu
pai fazia isso. A minha cunhada é quem tem que dar a cara a tapa. Eles
fazem as burradas lá e põem a mulher para ir lá resolver. Mais isso ai não
é...
- Ivone - É. A mulher já tem a fama de falar mais, né? (risos)
- Lídia - É, a mulher resolve. (risos).
- Ivone - É. (risos)
- Entrev. - E se você pudesse sintetizar isso, esse procedimento que você
está tomando numa frase, numa palavra, qual seria? Essa coisa de ao invés
de você ir lá e dizer para as suas filhas o que eles tem que fazer. Ao invés
de dizer para o seu marido o que você quer que ele fale. O que é isso, essa
nova conduta que você tomou?
- Ivone - Agora você me pegou.
- Entrev. - Quando o seu marido vem e diz: “Olha, vai lá e fala aquilo para o
cliente por mim” e você responde: “Não, você é que tem que ir e falar com o
cliente”. O que é isso? O que você está fazendo nessa hora?
- Ivone - O que eu estou fazendo? Eu acho que eu estou dando a
oportunidade para ele crescer, amadurecer, né? Com as minhas filhas eu
146
tenho certeza que é isso. Estou deixando elas comandarem a vida delas.
Apenas... né...
- Lídia - De prontidão.
- Ivone - Ajuda, de prontidão e ligada para... Mas, vou jogando... agora que
nome? Que nome eu dou para isso.
- Entrev. - Com as suas filhas você tem certeza e a falta de certeza com o
seu marido, o que poderia ser?
- Ivone - Porque eu acho assim... que ele já está educado, já está pronto,
né? Não sei se ele vai mudar muito. Se vai melhorar alguma coisa. Com ele,
eu não tenho essa certeza. Com elas, eu tenho mais porque elas estão
começando agora. Estão aprendendo.
- Entrev. - E o que tem acontecido normalmente, hoje, quando você diz para
ele ir falar porque você não vai?
- Ivone - Ele vai (risos). Vai com um bico desse tamanho (gesticulando), mas
vai. E isso está me descarregando bastante, isso também... Porque eu
acabava ficando... né? Atribulada. Porque as filhas vinham tudo para mim.
Ele, né? Da empresa... é pequenininha, mas tem bastante problema. No fim,
todo mundo buscando a solução aqui, né? Não só buscando, como jogando
para eu resolver e devolver pronto.
- Entrev. - E você alimentava eles em dada medida, pode-se pensar assim?
- Ivone - Ah, eu alimentava muito. Antes da terapia era assim que
funcionava. Eu ficava esgotada. Às vezes, chegava a ponto de não dormir.
Sabe quando você deita na cama, o problema de um, o problema de outro.
Tentando resolver tudo ali. E agora, eu me sinto bem mais aliviada de estar
jogando assim... e estou sentindo um amadurecimento das minhas fi lhas
bem maior, principalmente a mais velha. A mais velha sempre foi mais
madura, mais senhora de si. Agora a mais nova sempre... tudo... vai vivendo
a vida e deixa a mãe resolver.
- Lídia - Mais é que a mãe superprotege, né? Porque é menorzinha, toma
mais cuidado.
- Ivone - É. Pode até ser, mas eu sei que ela está crescendo mais.
- Entrev. - Eu poderia dizer que você está se desresponsabilizando por
coisas, questões que não são tuas? Você está explicando para as pessoas:
147
“Olha, essa não é a minha responsabilidade aqui, ali, acolá. A minha
responsabilidade é uma outra. Essa é sua” ?
- Ivone - Isso, exatamente. E tem dado um bom resultado. Está me aliviando
bastante.
- Entrev. - Muito bom. E você V., você sente alguma mudança em si própria
depois da participação na terapia?
- Lídia - Ah, com certeza. Assim, às vezes eu me choco bastante com alguns
depoimentos. Coisa que eu nem imaginava que uma pessoa pudesse
passar. Então, ai eu... Depois eu fico pensando naquela... Posso falar né?
(pedindo anuência do grupo).
- Ana - (Sorri).
- Lídia - A gente realmente procura... A gente... porque mulher tem a fama
de fofoqueira, de falar para um, falar para o outro. Mas... a gente... eu estou
podendo falar... Então, às vezes, eu fico muito... Eu rezo muito por aquela
pessoa. Eu vejo que às vezes tem pessoas que não vêem solução. Tem
pessoas que vêm aqui e sai... Não é que não vê. Por mais depoimento que
tenha, a realidade dela para resolver é complicada, você entendeu? Então,
assim... Eu, particularmente, sou uma pessoa muito determi nada (alongando
a fala), bem assim. Então eu me choco com essas coisas. Eu acho que eu
amadureço com isso. Começo a ver o ser humano de uma outra forma.
- Entrev.- Que outra forma seria essa, a partir da terapia da auto-estima?
- Lídia - Assim, é... de ver que as pessoas, é... às vezes precisavam de um
pouco mais da minha atenção. Eu saio... (risos) toda terapia, dependendo,
eu tenho vontade de ir lá, conversar, falar, mas falei bom... não dá para falar.
- Ana - Dá vontade de ser psicóloga (risos).
- Lídia - É, não dá para falar, então eu falei... eu presto atenção para aonde
querer... outro dia veio uma moça aqui que se separou do marido. Mocinha,
até bem mais nova do que eu, já tem dois adolescentes, aquilo me chocou
tanto que eu, jamais, olhando para aquela moça, eu jamais poderia imaginar
que ela fosse sofrer tanto, quanto aquela moça sofre. Então, eu tenho
vontade de sair, conversar com ela, de resolver... ajudar, né? Mas, depois eu
falo, eu não tenho amizade. Então, ela segue a vida dela. Então, o pouco
que eu tenho de contato com ela, eu tento me aproximar. Eu tento trazer ela
148
para a comunidade, para ela ter um... um objetivo, não tão triste, como... o
que ela está vivendo agora, você entendeu? Mas, eu enquanto pessoa...
amadureço. A gente pensa que sabe... Eu quando tinha 13 anos, eu achava
que era o máximo. Eu achava que eu sabia tudo. Eu era uma convencida
daquelas.
- Ana - Vira e mexe a gente aprende (risos).
- Lídia - Gente, eu não sei nada. A gente não sabe nada na vida. A cada dia
a gente vai... que até você fala, aquela lá podia fazer assim. Não é tão
simples assim, entendeu? Às vezes, a gente quer dar solução, né? Mas...
para mim é fácil que não estou vivendo a situação, né? Como eu, trouxe um
problema aqui que era da minha avó. Minha avó vai fazer 98 anos e está lá
em casa. A gente é quem cuida, eu e a minha mãe. Morre o filho dela e não
contamos porque ele morreu meio que de repente. Ele ficou doente e eu não
achei que ele ia morrer. Era uma doença meio séria, mas eu não achava que
ele ia morrer. De repente morreu e para contar para ela? Eu trouxe a
questão, mas foi um rebuliço aquele dia, que a maioria disse que eu tinha
que contar, que a verdade (ênfase), a verdade acima de tudo.
- Entrev. - Então te deram conselho?
- Lídia - Indiretamente, no depoimento, a Paula é danada, ela não deixa, ela
conduz muito bem. Quando ela vê que a coisa vai tendenciando para um
lado, ela puxa.
- Ivone - Ela breca.
- Lídia - Mas, as pessoas no depoimento delas acabavam... começavam a
colocar conselhos. E eu cheguei em casa e falei: “Mãe, vamos contar. É
melhor contar”. A minha mãe respondeu: “Pelo amor de Deus, agora caiu na
minha mão”. Sabe, já faz 7 meses que ele morreu e nós não contamos e
todo dia ela pergunta: “O Nelson está melhor”. E a gente fica naquela
mentira. No começo foi difícil, entendeu? Nossa, era tão doloroso. Agora...
Agora... “Ah, tá melhorando. Ta ai”. E ela já tá meio idosa. Às vezes, tá meio
esquecida lá. Então, assim... por mais que pareça simples o problema, por
mais que pareça, depende de cada ser humano. A minha avó perdeu dois
(filhos). Um com um ano e meio e outro com cinco anos, de sarampo,
quando ela... Ela tem 98 anos, imagina, ela era muito mocinha e ela ficou tão
149
traumatizada que ela ficou muito nervosa e ela chorava, chorava. Ela se
entregou durante anos da vida dela por causa dos dois. Então, foi uma perda
muito grande. Se ela perde... e ela não sabe que o filho morreu. Agora,
estou eu e minha mãe com esse... Uns vêm e falam conta, outros vêm e
falam não conta. Então, quer dizer, por mais que eu escutasse ali, por mais
que todo mundo falou. Por mais que eu quisesse tentar. Mandaram eu
contar a história do gato, lá... Que o gato cai do telhado.
- Ana - O gato caiu do telhado (risos).
- Lídia - Não sei o que do gato. Ai, a minha mãe começou: “Ai, ele está muito
ruim”. Para que, ai ela não comia e chorava o dia inteiro. Chamava ele o dia
inteiro. A minha mãe: “Não, ele melhorou. Já está bom”.
- Entrev. - O gato desceu do telhado e está bem?
- Ana - Não funcionou o gato. (risos)
- Lídia - Não funcionou. Então, às vezes, é aquela coisa. Às vezes, uma
coisa que para a gente está tão evidente. É uma solução tão simples. A hora
que você está vivendo aquele problema, ela não é... Ela é difícil.
- Entrev. - Então Lídia, você poderia dizer que essa é uma grande mudança
que você percebe em você? Que as coisas não são tão simples. Faça isso
ou deixe de fazer aquilo que estará tudo resolvido. Que não basta dar um
conselho?
- Lídia - Exatamente. E tem um tempo também. A gente tem mania de
querer tudo para ontem. A gente quer que tudo resolva rápido, mas não é
assim. O tempo é o senhor da razão e, às vezes, vai passando o tempo, um
ano, sei lá... É difícil para a gente esperar. Tem decisões que não é um
problema seu, pessoal. Às vezes, você tem que decidir pelo outro. Ai,... Ai, a
coisa complica, né?
- Entrev. - E para vocês, vocês sentem alguma mudança pessoal?
- Ana - Eu já falei.
- Entrev. - (Para Ana) Você quer explorar um pouco a idéia?
- Ana - Eu já falei. Me sinto ótima (risos). Me sinto querer... assim... Gostaria
de mudar todo mundo. Como ela falou, é difícil. Você acha que a solução é
fácil, mas para a pessoa que está vivendo é mais difíci l.
150
- Entrev. - O Ana pode-se dizer que você se sente mais empoderada, com
poder para resolver as coisas?
- Ana - Ah, totalmente. Mulher maravilha (risos). Eu tenho a impressão que
assim... vem uma força, assim... que se eu conseguir conversar, ela vai
mudar esse pensamento. Então, às vezes é um defeito também, eu quero
moldar as pessoas do jeito que eu quero que elas sejam. Então isso pode
ser um defeito. Eu gosto de perguntar: “Porque você se deixa cair desse
jeito. Levanta. A vida é boa. Você tem que lutar. Você tem que... Ninguém
ganha nada caindo do céu, assim” Você tem que batalhar para ganhar”.
Então se eu vejo a pessoa muito arrasada ali, eu quero que..., sabe? Então,
às vezes é um defeito, né? Porque eu sinto assim, mas aquela pessoa está
arrasada. Ela não vai aceitar o meu ponto de vista. Então, eu acho que isso
é uma qualidade para mim, mas os outros me vêem... vêem isso como
defeito, entende? Eu me sinto muito bem (melancólica).
- Entrev. - Sei. Você se sente com mais poder para resolver as suas
questões?
- Ana - Uhum, muito, muito mais. Me sinto numa boa, né? (risos).
- Entrev. - E você Joana, que mudanças você vê em você?
- Joana - A essa altura do campeonato, para eu mudar foi difícil. Porque
acho que a mulher... sei lá... A gente quer mandar. A gente quer sempre
mandar. E eu em casa não... Era o meu marido que controlava dinheiro,
tudo. Depois, acho que uns cinco, seis anos, antes, mais... acho que vai
fazer... Até o meu genro no dia das secretárias me mandou flores e disse
que eu era... eu devia ser a secretária do governo, porque o dinheiro
começou a sobrar, sabe? Eu pus na poupança porque eu precisaria ter uma
posse, eu não sabia que o estado dava, tal. Comecei a economizar, fui me
precavendo. Mas, eu mudei. Porque você ouvir os outros é duro. Você só
quer falar, falar. Escutar é duro, né? Mas faz bem para a gente e eu aprendi
aqui, na terapia. Porque eu mudei, você vê em relação ao meu marido. Eu
estou tratando ele como se ele fosse o meu filho e está surtindo efeito. A
minha filha também. Eu sei porque eu não sou do tempo do diálogo. No meu
tempo, imagina se você ia conversar com a mãe, com o pai. Eu não sabia
nada com nada. Aprendi foi assim... a pelejar.
151
- Ivone - O espelho é seu, né?
- Joana - Foi duro para mim. Ainda bem que o meu marido era uma pessoa
muito boa. Foi me ensinando a viver e tal, desde a lua de mel. Com a minha
filha também. Agora eu chego e falo para ela: “Vamos conversar filha”. Coisa
que eu não fazia. Já ia: “pupururmrumm”, já ia fazendo, né? Eu aprendi aqui
na terapia.
(Nesse momento o padre da igreja, José, na qual estávamos realizando o
encontro, chegou e me foi apresentado. Ele fez uma brincadeira enquanto
estendia a mão para cumprimentar a todos do grupo, dizendo: “Não sou
candidato, mas em todos os casos”. Ivone explicou para o padre que eu
estava ali realizando uma entrevista com elas a respeito da terapia da auto-
estima para fins da minha dissertação de mestrado. Logo após o padre se
despediu nos desejando um bom encontro).
- Entrev. - Então Joana, pelo que eu entendi do que você estava falando,
você pode adquirir uma posição na vida que é a de ouvinte e não só a de
falante. O que houve, o que é isso que você está vivendo agora depois da
terapia?
- Joana - Eu estou aprendendo. É como a Ivone falou que não sabia assim...
é ensinamento da terapia que ela teve, como eu acho que eu tive. Para mim
foi muito proveitoso. Porque ninguém é dono da verdade. E também eu
aprendi, vamos dizer, a me controlar, porque tem hora que dá uma vontade
falar. Não dá, eu fico doente. (risos) Não que eu queira ensinar ninguém
não. Eu aprendo, eu adoro aprender. Eu gosto de aprender, sabe? E eu
tenho o espírito jovem, não quero nem saber. Sou a maior palpiteira do
pedaço, mas até isso eu aprendi. Eu fico quietinha. Também o modo como
você fala com a pessoa, às vezes você fala e você machuca. O modo de
você falar, se eu falar meigo, com jeitinho, aquilo lá soa diferente.
- Entrev. - Bacana isso. Você já tinha levantado isso anteriormente. As
palavras podem ferir o outro, dependendo da maneira como elas vêm?
- Joana - É, com certeza.
152
- Lídia - Depende do emocional da pessoa, né? Porque se a gente tá no
calor da discussão e o outro: “Ah, mais viu, você falando meiguinho lá e
ela...”. É uma coisa inerente do...
- Joana - Quer ver, eu vou contar para vocês. A dona Josefa, ela vem na
terapia e ela é vizinha da minha filha. A gente sobe junta. Ai, ela falou da
filha, tal. Não é para contar, mais isso daí (risos). Aqui não tem... é o intruso
aqui no nosso grupo. Intruso no bom sentido (risos). Ai, ela falou da filha,
falou, falou. E eu estou... eu não posso tomar sorvete de chocolate, então eu
tomei açúcar. Bom, eu ouvi que a filha dela está cheia de qualidades. Eu ia
falar para ela e ai eu lembrei que a Paula ia me pegar. Depois, quando nós
subimos, eu falei: “Dona Josefa, olha, eu vou falar para a senhora uma
coisa. Lá eu não podia falar, mas aqui eu posso. ”Eu admiro a sua filha
porque ela tem „n‟ qualidades”. E ela falou: “É verdade dona Joana. A
senhora me deixou... a senhora me abriu os olhos”. Porque eu só ouvi coisa
ruim dos filhos, do marido. Acho que ela não vê as qualidades que eles têm.
Mas, aquele dia eu me vinguei da Paula lá fora, eu falei.
- Entrev. - Vocês tocaram num ponto que eu achei interessante. Me parece
que o grupo de vocês está constituído de uma forma em que ele prega o
sigilo, porque na terapia convencional comunitária não tem a questão do
sigilo. O sigilo existe na psicoterapia individual. Na terapia comunitária, o que
a gente aprende é que devemos ter o bom senso. O grupo deve preservar
uma informação que ele perceba que a pessoa que colocou não gostaria
que outras soubessem. É um compartilhar de experiências e até pode-se
colocar que não se deve colocar um segredo que não poderia ser
comentado aqui ou ali
- Ivone - Mas sempre vaza alguma coisa. Na nossa última reunião foi
levantado isso. Veio uma participante, uma moça bem dependente, Maria,
ela tem problemas de saúde e tudo. Ela já é madurinha, mas ela é muito
dependente dos pais devido aos problemas de saúde que ela tem.
Aconteceu de alguém ter ouvido um depoimento dela aqui e contou para a
mãe. Ela chegou aqui muito brava.
- Lídia - Para a mãe dela?
153
- Ivone - É. Porque ela falou aqui e alguém contou para a mãe e a mãe veio
dar bronca. A Paula foi reforçar isso. Ela falou: “Gente, aqui a gente não
pode contar segredo. Porque se é segredo, mais de um está sabendo, não é
mais. Segredo não é para se colocar, mas a gente pede sigilo com o que é
dito aqui. Se quiser comentar o problema, comenta o problema sem dar
nomes.” Se de repente é levantado um problema e você chega no seu
trabalho e uma pessoa tem um problema parecido, você pode fa lar: “Olha,
uma pessoa no meu grupo tem um problema, assim, assim, assado. Ela
resolveu ou não resolveu”. Pode comentar o problema, mas não dê nomes.
Manter isso daí. Então as regrinhas são sempre iguais em todo grupo de
terapia?
- Entrev. - São. Os procedimentos do início ao final de uma sessão já são
definidos pelo idealizador da terapia, Adalberto Barreto, um cearense,
médico psiquiatra, teólogo, antropólogo. Ele criou esses procedimentos para
a prática da terapia comunitária, estabelecendo como ela deve começar e
como ela deve terminar. Uma das questões é essa de que não há
necessariamente o sigilo, mas deve prevalecer o bom senso.
- Ivone - O respeito.
- Lídia - Tem um detalhe que a dona Joana falou que eu acho muito
interessante. A gente só quer falar, entendeu? O ser humano tem essa
mania. Ele só quer... Então para a gente ouvir também é um exercício que a
gente faz de saber ouvir. Porque quando começa a terapia ninguém quer pôr
tema nenhum, fica aquele silêncio mórbido. Até começar, a terapia demora.
- Ana - A Paula olha de olho em olho. Vai olhando, vai olhando.
- Lídia - Aí, de repente uma fala, a outra fala. Ai, de repente não tinha
assunto nenhum, quando você vai ver tem meia dúzia. E tudo que a gente
gostaria que fosse colocado. É difícil da gente opinar, da gente escolher.
- Entrev. - Então o momento da escolha é difíci l Lídia? Você está trazendo
uma coisa importante.
- Ivone - É difícil.
- Lídia - Às vezes, eu acho que tal pessoa tem mais necessidade, entendeu?
Mas, o assunto dela não é tão assim... Às vezes, eu me identifico mais com
o dela (apontando para Ivone), mas eu vejo que ela está mais agoniada
154
(apontando para Ana). A gente tem essa... É difícil de votar. Então, a hora
que a pessoa fala, elas despencam a falar e não param... quando a pessoa
coloca. Ela vem tímida, vem um pouco assustada.
- Ana - Começa a falar.
- Lídia - Aí, quando começa a falar, ela não pára. Ela desembesta lá e é duro
para controlar. Ai, a Paula... Eu gosto muito... A Paula tem muito carisma.
Então o que a gente precisa saber é ouvir. A gente não para pra... A gente
quer a gente desabafar. Se eu encontro ela (Ana): “Olha, eu nem me
preocupo..., está acontecendo isso, mais não sei o que e ela está lá quieta
me olhando”.
- Ana - Vai ver que está até pior.
- Lídia - Vai ver ela quer me contar alguma coisa e eu não dou chance. Eu
vou falando.
- Ana - O meu problema é sempre o maior.
- Lídia - Então, a gente tem essa tendência de achar que é só a gente que
quer falar e, às vezes, o outro... Então, a terapia ela nos ajuda a saber ouvir,
porque você é obrigado a ouvir, né?
- Entrev. - Isso já marca uma mudança para você então?
- Lídia - Ah, com certeza.
- Entrev. - Teve consonância aqui com o que a Joana falou, que ela
aprendeu a ouvir mais. E para vocês, para a Ivone e para a Ana, como é
essa questão do ouvir?
- Ana - Eu prefiro ouvir do que falar. Só que de repente eu começo a falar e
não paro mais (risos). Mas eu prefiro ouvir. Mas ai eu olho para a Paula e ela
começa assim: “E ai quem vai falar?”. Ela passa de olho em olho assim,
todas, e ninguém abre a boca. Ai, então eu começo e começa todo mundo.
A primeira assim... que ela pede para falar. A primeira a falar é difícil, né?
- Lídia - É.
- Entrev. - Você tende a tomar a iniciativa?
- Ana - Geralmente. Eu não... mas eu prefiro ouvir.
- Entrev. - E você Ivone, o que você acha dessa questão da fala e da
escuta?
155
- Ivone - Olha, é... eu... eu... eu também tenho assim um pouco de
dificuldade de... de ficar falando dos meus problemas. Aprendi mais a falar
aqui. Aprendi a falar mais. Aprendi a ouvir porque muitas vezes eu ouvia,
mas eu não me colocava muito no lugar da pessoa. Às vezes, eu ouvia,
sabe? mas não dava muita importância e eu aprendi a me colocar mais no
lugar dela. Tentar sentir o que ela está sentindo. E com isso melhorou
bastante o meu relacionamento também, com as outras pessoas. Tentar
sentir o problema dela, como ela está sentindo. Ai, a gente entende melhor a
pessoa e isso tem me ajudado.
- Entrev. - Estar mais disponível para o outro?
- Ivone - Exatamente.
- Entrev. - Em que medida você sente que melhorou os seus
relacionamentos?
- Ivone - Olha, melhorou com a minha mãe. Minha mãe está doente na
minha casa. Eu achava... Eu não tinha muita paciência. Minha mãe está
assim meio demente já também, né? Eu não tinha muita paciência de ficar
ouvindo as histórias repetitivas (risos). Eu estava ficando muito sem
paciência com isso e comecei... Quando ela começa a falar, eu mesma já
penso assim: “Escuta com paciência, responde”. Porque, às vezes, eu já não
respondia mais. Ela falava e eu ficava muda, era uma coisa que eu já estava
cansada. Então eu comecei a responder, a comentar (ênfase) o que ela está
contando e tem ajudado até (ênfase) a cabeça dela a melhorar. Porque
agora quando ela vem me contar uma história que ela já repetiu, ela fala:
“Ah, eu já te falei, né, que você me falou isso assim, assado”. Então tem
ajudado nisso e principalmente com as minhas filhas, né? Também está... eu
consigo me colocar. A adolescente que é a mais difícil... que às vezes vem
falando tanta bobagem, para a gente é bobagem, né? Mas que para elas
tem uma importância extrema. Um namorinho, uma paixãozinha ali ou uma
briga com uma colega de escola, às vezes se sente rejeitada na escola por
isso ou aquilo. Então eu aprendi a dar mais importância nisso e ai eu paro,
escuto, tento me colocar no lugar dela, sentir o que ela está sentindo. E, às
vezes, muitas vezes eu consigo até dar um conselho assim... que eu
percebo que ela acata mais, que ela também sente que eu prestei atenção,
156
né? Porque muitas vezes aconteceu, com essa minha filha mais nova estava
acontecendo direto, eu estava muito sem paciência e ela fala, fala, fala, fala,
fica falando as coisas dela e de repente eu falo sim, não sem nem estar
sabendo o que ela estava falando e ela percebia e falava: “Mãe não era isso
que eu estava dizendo, não foi isso que eu perguntei”. Então, mesmo não
tendo muito tempo para conversar com elas, mas o pouco que a gente
conversa está tendo um valor maior.
- Entrev. - Faz diferença o interesse pela fala do outro então?
- Ivone - Faz muita diferença. Para a gente e para a pessoa que está
falando. Quando ela sente que a gente está realmente interessada no
problema dela, ela sai da conversa muito mais satisfeita e valorizada.
- Entrev. - Essa questão já dá um gancho bom para a próxima questão que
eu tenho para vocês, que é: As pessoas que convivem com você comentam
alguma diferença no seu modo de ser depois que você passou a freqüentar
a terapia?
- Ivone - Olha, comentar diretamente ninguém comentou, mas eu sinto essa
diferença.
- Entrev. - E vocês?
- Lídia - Ah, também não. Também... Sou eu e a minha mãe, ela nunca falou
nada. Mas ela me conhece bem, assim... Ela me conhece, como diz, como a
palma da mão, mas se a gente for ver nem a gente sabe que linha que a
gente tem, né? Mas ela me conhece bem. Ela fica: “Você não vai na
terapia?”. Então teve uns dias que eu não pude vir, até fiquei doente, depois
eu tive um compromisso. Então, ela fica me lembrando, né? “Você não vai,
tal”. Mas, assim, mudança... Porque a nossa relação sempre foi muito linear,
sempre foi de muita cumplicidade, sempre foi de muita... Então, aquilo... Não
teve assim... Assim que tivesse uma mudança muito grande.
- Entrev. - Então V., o simples fato dela te lembrar da tua vinda à terapia
para você quer dizer alguma coisa? Ou ela te lembra de outros
compromissos também?
- Lídia - Não, não. Não, porque eu comento né? Falo: “Segunda-feira é dia
da terapia”, às vezes eu comento, né? Ai, ela fala. Eu acho que ela gosta
que eu venha, nesse sentido percebo.
157
- Entrev. - De alguma forma ela vê como algo positivo para você?
- Lídia - Eu acho que sim, mas de comentar assim... não.
- Entrev. - E aqui no grupo, as pessoas comentam umas das outras, o que
estão vendo umas nas outras?
- Ivone - Não, né? Não teve nenhum momento em que a gente tenha
colocado isso.
- Ana - Precisamos falar para a Paula. Se bem que outro dia ela fez. A gente
tinha que achar os defeitos na outra.
- Ivone - Achar os defeitos e as qualidades.
- Ana - Eu não acho defeito em ninguém. É difícil.
- Joana - Mas além de achar o defeito e a qualidade você não pode falar.
Não tá certo. É a minha opinião.
- Lídia - Não. Só que ele quis na verdade. Eu já até conhecia essa técnica,
que uma vez me perguntaram e eu fiquei até bastante chateada com ela.
Então nesse dia, ela queria que a gente fosse de duas em duas e
conseguisse ver os defeitos, mas a gente só vai ver o defeito se a gente
conviver com a pessoa. Um dos defeitos, você só vê que ela está meio
gordinha, mais coradinha. Assim, que defeito... é complicado você...
- Ana - É horrível.
- Lídia - Você não convive com a pessoa, mas o recado que ela quis dar é
que foi... no fundo, no fundo...
- Ana - Que você não conseguia falar.
- Lídia - A mensagem era para a gente tirar uma lição dali, mas que foi difícil
para a gente ver defeito.
- Ivone - E antes, no começo ela não falou que não ia precisar falar. Então
todo mundo já ficou com medo de ter que achar os defeitos e depois ter que
falar para a pessoa (risos).
- Joana - Os defeitos que eu achei, que eu tinha que achar, viraram
qualidades porque são pessoas que se dedicam a família com todo amor,
outra se dedica a mãe que está doente. Então, isso daí para mim que é um
defeito, dedicação demais.
- Entrev. - É esquecer de si para cuidar de alguém?
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- Joana - É. Eu achei que isso daí era uma qualidade que pode ser um
defeito. É como disse a Lídia (no diminutivo) apontar o defeito.
- Lídia - Porque na verdade, a mensagem... a mensagem da técnica era a
seguinte: “O que eu mais acho em você, é o que eu sou”.
- Ana - O que você é.
- Lídia - Que é o que incomoda.
- Ana - Os defeitos que você acha nos outros é o que você tem.
- Lídia - É o que a gente tem. Então, vamos supor, eu tenho um defeito, mas
eu não percebo, eu não sinto assim que ele seja tão forte, mas o que está do
meu lado percebe ele lá.
- Entrev. - Uma das idéias do idealizador da terapia comunitária é de que eu
só reconheço aquilo que eu conheço. Isso quer dizer que eu só posso
apontar no outro aquilo que eu já tenho em mim.
- Lídia - É exatamente a escolha do tema.
- Joana - Você vai apontar um defeito de uma pessoa. Vamos supor, um
defeito que vai magoar a pessoa, você vai ficar mal, né?
- Entrev. - E vocês, Ana e Joana, alguém do convívio de vocês comentou
que percebeu alguma mudança em vocês?
- Ana - Não. Tanto assim, lá em casa meu marido é muito fechado também.
Aqui eu posso falar dele. Mas, quando eu comecei, ainda lá no colégio, com
a dona Maria Helena que vinha me buscar em casa. Ai, eu comentei com
ele: “Eu vou para a terapia, amiga nossa, lá é gostoso, eu não vou perder
nada, só vou ganhar com isso”. Ai, ele comentou com a outra minha filha:
“Nossa, a tua mãe agora está ficando importante, está fazendo terapia”. Eu
senti um certo orgulho do jeito que ele falou. Então, é uma filha que dá muito
valor para essas coisas. Então ela acha assim excelente e gosta. Eu sempre
chego e bato papo: “Olha, o tema foi esse e tal. Fizeram isso e aquilo”. Tanto
hoje para vir para cá, quando a Joana me ligou eu falei: “Ai, no sábado é tão
difícil para eu sair” e ela estava do lado e falou: “Mãe, a senhora vai, a
senhora não falou que ia?”. Então ela dá muita importância.
- Entrev. - Então a sua filha e o seu marido incentivam e valorizam como
algo positivo na sua vida a sua participação na terapia?
159
- Ana - Ah, sim. Tudo o que eu faço, eu estou sempre com a apoio deles. Eu
sou meio louquinha. Eu faço tudo que eu tenho vontade, mas eu sempre
encontro apoio neles. E nesse tema terapia... Ele não falou diretamente para
mim, né? Eu notei que ele falou com certo orgulho, sabe? “Olha, ela está se
desenvolvendo”.
- Joana - Então, essa minha filha que tem síndrome do pânico, ela fala a
senhora não vai na terapia. E eu sempre chamo porque, por exemplo, eu
não posso deixar uma pessoa com mal de Alzheimer sozinha. Mas eu já
estou bem escaldada, sabe o que eu faço? Eu falei... porque ele já não dá
mais para dormir em cima, dorme em baixo. Não podia subir, tal. Começou a
dar problemas. Conclusão, está resolvido isso. Se a gente tem que sair é
muito raro. Ai, eu já ponho ele na cama, televisão e ele não sai. Tranco a
porta, dá para ela vim, mas ela não vem e quer que eu venha, sabe? Ela
falou, “mãe, a senhora mudou muito depois da terapia”. Eu falo, “É verdade,
eu estou com mais paciência, com mais jeito. Porque eu dava curso de
batismo durante 18 anos. Falava, „Paciência‟. Falar é uma coisa meu filho.
Você fazer... eu vou te falar. O meu marido assobia o dia inteirinho, primeiro
ele gemia. Eu falei... Meu Deus eu não vou... Parece que ele saia um
gemido de dentro assim do peito, uma dor. Eu falava, “Ai Jesus me ajuda”,
isso no começo. Agora, faz uns tempos, ele assobia, assobia. Então, eu não
ouço nem mais o assobio porque eu estou gostando que ele assobie,
entendeu? Meu neto fez aniversário e nós fomos em uma pizzaria. Lá foi ele,
né? Poe duas fraldas para não vazar... E das coisas... O enfermeiro falou: “A
senhora é uma velhinha esperta”. Porque eu não vou passar vergonha,
certo? Então eu vou... Meu genro falou: “Hoje o Mário é por minha conta”,
esse que eu falo que é o meu filho. Ele fatiou a pizza para o meu marido,
deu cerveja. Minha filha falou: “De vez em quando pode dar cerveja para ele.
Ele tem 81 anos, pode tomar cerveja”. Ai, meu genro dava bala para ele não
assobiar. Eu falei: “Deixa ele assobiar. Eu prefiro que ele assob ie do que
gema”. Eu não estou escutando mais ele assobiar, você acredita nisso? Meu
ouvido já calejou. E quando ele está assobiando, porque ele quase já não
falava, agora ele não fala muito. Então, ele está fazendo exercício, certo?
Então, eu estou levando. Estou deixando a vida me levar. É a terapia.
160
- Entrev. - A sua filha reconhece isso em você?
- Joana - Ah, porque ela fazia, né? . Ela precisa fazer, ela fazia. Agora, ela
só vai ao médico. Então, ela falou: “Mãe a senhora está bem”. Estou mesmo.
- Ana - É porque vocês estão vivendo... você ajuda os outros, mesmo que
ela não queira vir. Mas, é um problema que você compartilha. Então, vocês
estão vivendo, não é?
- Joana - Ele pegava, por exemplo, se eu ponho uma bandejinha com fruta,
alguma coisa. Porque eu procuro não deixar faca. Porque eu ganhei um
manual do mal de Alzheimer. Então, eu sei todas as dicas que não pode,
né? Então, eu... ele pega, pega, pega, pega... Aquilo não me irrita mais
porque eu tiro do lugar. Entendeu, eu já? Ao invés dele ficar, tira e põe, tira e
põe, também já não me faz mal. Agora, eu até já... Eu peguei a coisinha de
remédio e falei: “Quer brincar, tó. Brinca com isso ai”. Eu acho que eu virei
outra pessoa.
- Ana - Eu tenho a impressão que a gente que está sobrecarregada, que
está tensa, né? Então, você vê em qualquer movimento dos outros... você se
irrita.
- Joana - Agora eu falei: “Se ele quer fazer a risca lá com garfo, deixa ele
fazer. Não me irrita mais”.
- Entrev. - Eu tenho uma última questão para vocês. O que cada uma de
vocês mais gosta na terapia. O que é muito bom. Qual é a hora em que é
muito bom? Qual é o aspecto que é muito bom da terapia?
- Joana - Só o que gosta? Não pode falar o que não gosta?
- Entrev. - Pode falar o que não gosta também. Então que seja assim, o que
gosta e o que desgosta. O que acha que é muito bom e o que é mais difícil
de fazer? Pode ser aquilo que desgosta. O que é muito prazeroso? O que
vocês acham que é mais consistente, que ali tem uma coisa muito boa? E a
sugestão da As., qual é o contraponto para isso?
- Joana - Oh, o que eu não gosto é que não pode dar palpite. Eu fico doente
(risos).
- Entrev. - Ela já pode aqui dar um palpite, está vendo? Já palpitou.
161
- Joana - Sou uma velhinha palpiteira (risos). E o que eu gosto assim é do
apoio que eu sinto, sabe? Eu me sinto assim, querida, estimada, apoiada, é
isso ai.
- Entrev. - É esse sentimento de que o grupo está ali com você?
- Joana - É. Está me dando força. Eu venho aqui, eu fico... Eu tenho outra
semana, tá?
- Entrev. - Diferente das suas semanas antes de você participar do grupo?
- Joana - Isso, isso mesmo.
- Entrev. - E você Ana?
- Ana - Eu gosto porque aqui a gente encontra assim... amizade, né? Eu
tenho muitas amigas e tal. Então, aqui já criei uma nova turma. Então, sei
lá... na hora da terapia somos tudo amigo, a gente brinca, a gente conversa,
a gente dança, a gente canta. Então, fica uma coisa mais gostosa, mais
leve, né? Isso participa a gente juntos. Eu sempre saio bem.
- Entrev. - Esse convívio te faz bem?
- Ana - Muito bem.
- Entrev. - E o que é difícil para você na terapia?
- Ana - Falar. Você notou? (risos)
- Entrev. - Isso é o que eu estou vendo. (risos)
- Ana - Não, é o início, né? Se todo mundo fica calado eu fico parada.
- Entrev. - Mas não é você quem toma a iniciativa?
- Ana - Sou eu (risos), mas eu tomo a iniciativa porque a Paula fica assim
que nem você e me olha assim no fundo dos olhos.
- Joana - A gente é obrigada a falar.
- Ana - “Fala você”.
- Entrev. - (Para Ana) E ai normalmente você fala?
- Ana - Falo.
- Entrev. - E para você Ivone, Qual é o melhor momento da terapia e o que
ela tem de difícil, digamos assim, se não é de pior?
- Ivone - Olha, para mim o melhor momento é do começo ao fim. O processo
todo eu gosto de todos os momentos. A abertura com a brincadeira, né?
Que a gente canta, dança, tudo. Mas, é assim... o momento mais... é menos
gostoso é esse ai onde as pessoas têm que se colocar e fica todo mundo se
162
segurando ali, né? Todo mundo com medo de falar. Mas não que não seja
bom. É um momento menos... mais incômodo.
- Ana - Difícil.
- Ivone - Ah não, não tem nada de ruim não. É sempre bom.
- Entrev. - E para você Lídia?
- Lídia - É assim, eu também acho que é um pouco angustiante porque às
vezes a gente tem vontade de falar alguma coisa que... você tem vontade.
Sabe quando você quer falar e seria tão bom se você pudesse falar. Porque
é um momento, tudo tem um momento certo, né? Mas... você tem a regra é
porque ela é boa para isso. Já foi testado e não somos nós quem vamos
mudar essa regra.
- Entrev. - Você está se referindo a falar de alguma coisa sua ou falar
alguma coisa para o outro?
- Lídia - Para o outro. E também eu acho que tem um diferencial aqui nesse
grupo, especificamente, porque por ser um grupo que freqüenta uma
comunidade, ele tem uma diferença de uma terapia que se fosse fazer em
qualquer outro lugar, entendeu? Porque aqui a gente tem muita fé. Então,
isso tem muito. A dona As. fala isso toda hora. As pessoas têm muita
necessidade de... “Ah, mais você arruma força onde?”, “A em Deus, na
minha fé”. Então, isso eu acho que é um diferencial desse grupo. Que é um
tipo de apoio onde as pessoas sabem que tem aquele apoio. De como ir
atrás. Você vai sempre encontrar. Por menos que a gente não veja, às vezes
não sinta, mas de uma forma ou de outra ele está muito presente. E assim,
eu gosto bastante porque tem muitas brincadeiras, descontrai. Então o
pessoal descontrai mesmo. E dança e abraça. Então aquele momento é
muito prazeroso, vamos dizer assim, entendeu?
- Entrev. - Esse encontro é muito prazeroso?
- Lídia - É muito prazeroso, tem um momento de oração no final e ela chama
a pessoa no meio e a gente faz uma oração.
- Entrev. - A pessoa que foi escolhida?
- Lídia - E ou as que tentaram levantar o problema e não pode ser
contemplada naquele dia. A gente faz uma oração. A gente canta aquela
musiquinha lá, né?
163
- Entrev. - Qual?
- Lídia - Abençoa...
- Ana - Fulana vai ser abençoada porque o Senhor vai derramar o seu
amor...
- Lídia - Ah, e a pessoa se sente... é uma coisa tão forte que a pessoa se
sente livre. A pessoa se sente e a gente também se sente como se a gente
fosse um doador. Antes de terminar, você está terminando, eu só queria te
dizer uma coisa. Por exemplo, foi muito falado aqui que as pessoas não...
tem muita dificuldade de mudança, mas muda sim. Eu acho que a mudança,
aquele que é „turrão‟ que fala que não muda, ele está se auto-enganando
porque é a vida que faz. Ela já falou a idade dela ai (Joana), ela fala que
está aprendendo a cada dia e eu acho que cada um de nós. E a gente se
torna um ser humano melhor, você entendeu? A Ivone também já deu o
depoimento dela aqui hoje, que você às vezes é um pouco radical em
certas... mas você vai mudando. Você vai mudando porque a nossa
finalidade é crescer. É mudar também porque a gente sabe, faça o bem terá
o bem, faça o mal... A gente sabe disso, nem precisava ser cristã, nem
precisava acreditar em Deus. Tudo o que me leva a bem, bem mesmo...
Quando a gente vai com o pensamento ruim, com uma energia ruim a gente
também volta com a energia ruim. Então eu acho que tudo isso contempla
na terapia.
- Entrev. - É isso?
- Lídia - É isso.
- Entrev. - Vocês querem colocar mais alguma coisa?
- Joana - Ah, eu lembrei. Eu gosto quando a Paula dá relaxamento. Ah,
como eu gosto.
- Entrev. - Na terapia?
- Joana - Na terapia, né. A gente aprende a se controlar, a se acalmar.
Gosto muito.
- Entrev. - Ela dá alguns exercícios de relaxamento para vocês durante a
terapia?
164
- Lídia - Como o grupo está muito homogêneo, são sempre os mesmos.
Quando ela vê que não vem pessoa de fora, que são os mesmos. Então, ai
ela faz uma dinâmica diferente. Que é gostoso. Ensina, né?
- Ana - Outro dia teve uma boa. Para a gente fechar os olhos e escolher um
lugar para você ir. Ah, ai eu vou tão longe. Meu Deus que gostoso. Eu já
fiquei debaixo de uma cachoeira sentindo aquela água rolar. Ai quando a
gente volta, ela comenta: “Você foi para onde? Você viu o que?” Essa aqui
(apontando para Joana) viu um pé de mamão.
- Joana - É porque eu plantei mamão em Itú e nasceu, tá cheio, tá sempre
dando mamão. Então é uma alegria.
- Ana - Engraçado porque cada uma vai para um lugar, né?
- Entrev. - E você Ivone, quer falar mais alguma coisa?
- Ivone - Acho que eu já falei bastante, né?
- Joana - Hoje nós falamos, hein?
- Ana - Hoje estava liberado. Falamos e demos palpite, né?
- Entrev. - Então, eu quero agradecer muito a presença de vocês, a
disponibilidade de vocês. Eu sei o quanto é difícil, principalmente no final de
semana, vocês já devem ter as suas programações em casa e foram
extremamente generosas comigo, atendendo a minha solicitação.
- Joana - Deu certo, você vê? Quando tem que ser.
- Entrev. - Eu queria inclusive já verificar previamente, já faço o
agradecimento e um novo pedido. Se for possível para vocês eu gostaria de
ter mais um encontro com vocês daqui a algum tempo, que seja de sábado
novamente nesse horário. Vocês acham que é possível?
- Ana - Se a gente estiver disponível com certeza, porque às vezes eu vou
para Vinhedo para a casa da minha filha.
- Entrev. - Eu gostaria de voltar a combinar um segundo encontro para a
gente aproveitar as idéias que surgiram nesse encontro e fazer um
encerramento.
- Ana - Também é sinal que você gostou também.
- Entrev. - Eu gostei.
- Joana - Então nós estamos felizes, né? Já que ele gostou.
165
- Lídia - Tomara que tenha te ajudado no seu preparo, na sua finalidade.
Porque eu acho que essa é uma profissão muito nobre, entendeu? Eu acho
que tudo que você tem para ajudar os outros eu acho que é muito nobre. O
mundo está precisando muito disso e são poucas pessoas que tem acesso.
Você vê, a Paula vem gratuitamente aqui. Ela faz um serviço voluntário. Ela
abriu, ela deu essa perspectiva e tantos que gostariam de ter e às vezes não
podem, não tem essa oportunidade.
- Ivone - É que a terapia individual é sempre cara. As pessoas que tem um
baixo poder aquisitivo não tem como fazer mesmo.
- Entrev. - Fica restrita a uma pequena parcela da população.
- Ivone - Com certeza e isso é tão importante. Nossa, para mim ajudou tanto,
tanto que eu falei, olha se eu pudesse eu ia de lugar em lugar, de paróquia,
em paróquia tentando montar um grupo para levar essa ajuda para o maior
número de pessoas possível. Olha, para a minha vida foi uma mudança
muito grande.
166
ANEXO 3 - RECORTE DE PROCEDIMENTO PARA ANÁLISE DOS
DADOS
Data da entrevista: 30/04/05
UNIDADES DE SIGNIFICADOS COMPREENSÃO PSICOLÓGICA
(Como chegaram a Terapia)
Através da Paula, Eu e a As. fizemos Terapia e Ginástica.
Então dentro da aula de ginástica ela dava umas coisas
de terapeuta, né? Então, mas a gente lá era um grupinho muito bom. Se ela tem
alguma coisa, ela fala lá no meio. Todo mundo procura
socorrer, procura acudir e a Paula, como sendo psicóloga, então teve um momento em que
eu tava em crise com alguma coisa assim e ela que levantou a
minha moral. Então depois disso ela me convidou para vir aqui, era até no colégio as primeiras
(sessões de Terapia da Auto-estima). Ai eu comecei a
freqüentar.
Ana inicia sua fala dizendo que chegou a terapia através de Paula, psicóloga, que
conheceu nas aulas de hidroginástica. Afirma que em função de Paula ser
psicóloga, apesar dela estar naquele contexto como mais uma aluna, ela introduzia algumas técnicas terapêuticas
de relaxamento nas atividades de hidroginástica, além de criar um espaço
de fala. Assim, Ana disse que estava „em crise‟ e foi convidada por Paula a participar do Grupo de Terapia da Auto-
estima na Igreja Católica do Bairro.
Eu também vim através da
hidroginástica, foi a Ana que me incentivou e ela não ia. A casa dela é uma pensão, sábado todo
mundo tá lá não dá para ela ir. Ai eu fui lá no colégio, dois dos
meus netos estudam lá, e foi no bosque. Eu me senti tão bem nesse bosque. Sabe é como
está aqui em cima (na Igreja), eu me sinto bem. Eu me senti bem.
Essa hora é a hora em que eu descanso, mas eu fui, no sábado, uma vez por mês e
continuei. De lá ela (Paula –
Joana declara ter sido convencida a
participar da terapia da auto-estima por Ana que aparentemente era a pessoa mais motivada a participar e que acabou
decidindo que não poderia. Percebe-se que Ana foi apoiada por Joana para que
pudesse participar das sessões. Afirmou que no início do grupo as sessões eram realizadas num bosque que fica dentro de
uma escola do bairro (1 encontro mensal), depois as sessões passaram a ocorrer
quinzenalmente, na Igreja do bairro.
167
Terapeuta) passou para cá e eu moro aqui, também sou da
comunidade, ficou muito mais fácil.
Na verdade começou assim, nós
duas (Lídia e Ivone) trabalhávamos na pastoral da
criança que funciona aqui nessa igreja e a Paula veio pelo Centro de voluntariado para trabalhar
com as crianças e ela achou melhor trabalhar com as mães.
Ela começou a fazer a terapia de grupo com as mães. Então tem um sábado do mês que estas
crianças da pastoral fazem uma atividade nessa escola, que é
aqui no bairro também. Então lá tem um bosque e nesse bosque a Paula selecionou as mães que
queriam participar e fazia terapia lá nesse bosque, uma vez por mês.
Dentro da escola tem esse bosque. E a gente tinha vontade
de participar, mas como nós éramos voluntárias, tínhamos que trabalhar com as crianças,
não tínhamos tempo. Um dia, eu sugeri que ela fizesse um grupo
para a gente, à noite, para os voluntários poderem participar. Então surgiu a Terapia aqui, à
noite, mas da pastoral mesmo só nós duas permanecemos
(Ivone e Lídia). Ela (Lídia) participa da missa das 10h e começou a fazer convites para o
pessoal participar da Terapia e elas (Ana e Joana) já vieram
através da natação, da ginástica. O grupo já está crescendo porque um vai convidando o
outro.
Ivone revela que o grupo de terapia da
auto-estima começou por sua sugestão. Ela e outras pessoas que trabalhavam na
pastoral da criança tinham vontade de participar dos grupos de terapia que Paula havia montado para as mães, porém não
podiam em função de seu trabalho com as crianças naquele mesmo momento.
Assim, sugeriu a Paula que montasse um grupo de terapia específico para os voluntários da pastoral, no período
noturno. Ivone disse que por fim, da pastoral, permaneceram no grupo apenas
ela e Lídia. Revela ainda a importância do convite feito de pessoa a pessoa para o crescimento do grupo.
Então, essa terapia começou pela pastoral da criança que seria para os voluntários. Eu até
falei, eu vou porque eu tenho
Lídia declara que a sua participação, no início, deu-se em função da crença de que quase ninguém iria participar e ela
resolveu apoiar a iniciativa de Paula e
168
certeza que não vai quase ninguém e eu vim com essa
certeza, simplesmente para não deixar a Ivone e a Paula
sozinhas. Essa foi a minha primeira intenção. Eu pensava, graças a Deus problema eu não
tenho. A gente tem a impressão de que terapia é para quando
você está com muitos problemas, você tem muita incucação e você vai. Ai ela veio
(Paula) e no fim nos abrimos para a comunidade. Hoje na
verdade ela é mais uma atividade da comunidade. Entendeu? Então ela abrange a
comunidade todinha. Então a gente anuncia nas missas e
quem conhece fala para os amigos. A procura é boa.
Ivone. Declara ainda que o grupo de terapia da auto-estima, que começou na
Igreja com o propósito de atender os voluntários da pastoral da criança, acabou
se tornando um espaço para a comunidade local como um todo.
(Qual é a importância da
Terapia)
Eu acho que é assim, a gente se compreende um pouco com os outros, né. Ouvindo. Porque
graças a Deus a gente não tem problemas, tem problemas
cotidianos que toda família tem, mas você ouvindo o problema de um e o problema do outro e
tal, você acaba falando, ai como eu sou feliz (sorri). Então você
sempre tira, mesmo das coisas ruins, você sempre tira um proveito. Você aprende alguma
coisa e com isso você melhora o seu modo de ser. Eu melhorei
assim... em comparação a cuidar de outras pessoas, essas coisas. Eu acho que eu melhorei
bastante. Não tenho “Azinho” ainda mais eu já mudei bastante,
mas para mim foi ótimo.
Para Ana a sua participação na terapia lhe
permite uma melhor compreensão do outro através da escuta. Ela enfatiza também a importância de ouvir os
problemas das outras pessoas, possibilitando relativizar a dimensão de
seus próprios problemas.
Olha, eu já cheguei a fazer
terapia individual por pouco
Ivone compara a terapia de grupo com a
terapia individual, ressaltando o diferencial
169
tempo, mas eu achei que terapia em grupo, assim... completa
mais a gente. Porque na terapia individual eu só vou ouvir a mim
mesma, quando você chega num grupo e ouve um problema do outro, ai a gente começa a ter
mais consciência de que todo mundo tem problema. Que a
gente não é a única (enfatizada) que sofre e que tem medo, tudo isso. Isso me ajudou tanto.
Aconteceu que quando começou essa terapia foi quando
realmente começou uma fase difícil na minha vida. Muitos problemas, um atrás do outro.
Eu chegava aqui, eu ouvia os problemas dos outros. Eu
aprendia, tirava muita coisa para ajudar a resolver os meus. Saia conformada de saber que outras
pessoas também sofriam a mesma coisa. E até a gente
aprende a valorizar o que a gente tem, porque quando você ouve o outro falando de algum
problema tão sério, tão sofrido, a gente aprende a valorizar as
coisas boas da vida da gente. Então eu não abro mão da terapia de jeito nenhum. Estou
assim enrolada, trabalhando, com mãe doente e tudo, mas
chegou a segunda-feira às 20h eu largo tudo e corro para cá. A gente aprende muito. Olha,
principalmente no valorizar o que a gente tem. Eu não sei se
todo mundo é assim ou se eu, né? Aquela coisa de você achar que o seu problema é o maior
que o de todo mundo, que você é única ou então que a alegria
do outro é muito maior e eu não tenho aquilo. Só o outro é feliz, sendo que normalmente quando
você não convive muito com a pessoa, a tendência é só você
do grupo enquanto espaço que permite ouvir outras histórias de vida que não só a
da própria pessoa. Ela declara que a partir dos problemas alheios conseguia pensar
formas de resolução de seus próprios problemas. Ivone menciona a questão da aceitação
dos seus problemas quando ouve o sofrimento do outro, até como forma de
valorização do que se tem. Ela menciona a valorização de potencial próprio a partir da escuta do sofrimento
alheio. Ivone menciona a falta de convivência
com o outro como sendo o atributo que não nos permite perceber que aquele também sofre como nós e que não é só
feliz.
170
enxergar coisa boa da vida daquela pessoa. Fala, puxa ela
é tão feliz e eu sou tão ferrada, né?
É como a Ivone disse, todo mundo tem problemas. Agora eu
nunca fiz terapia individual e nem gostaria porque eu sou muito faladeira, ai eu ia falar,
falar. Mas, como disse a Ana também, a gente aprende. Eu
estou com 78 anos e aprendo todos os dias, aqui principalmente nessa igreja. Eu
aprendi a ser ponderada. Não falar o que vê, sabe? Desculpe a
expressão, vomitar o que você pensa. Eu peço para o espírito santo, saber o que você fala
para não ofender as pessoas. É o que eu falo, não tem que falar com a cabeça tem que falar
com o coração. Pensar, raciocinar, ponderar. Aprendi
muita coisa aqui na terapia e eu gosto. Segunda-feira, esta última não deu para eu vir, e me faz
bem. A Paula ensinou a gente fazer relaxamento. Então, eu
ando tendo uns probleminhas com a minha filha, para não falar uns problemões, e quando eu
não consigo dormir eu faço aquilo que a Paula ensinou e eu
desmaio. E eu rezo também porque tenho muita fé em Deus. Uma importância muito, muito
boa. Você vê, apesar de eu morar perto, a essa hora eu já
deito cedo. A gente vem, mas eu fico torcendo para chegar o dia de vir na terapia, me faz bem
(emocionada). Não é que eu quero que os outros tenham
problema. Eu sei. Eu sou vivida. Eu sei que todo mundo tem. Então, quando a pessoa tem,
sempre que você fala alguma
Para Joana a participação na terapia lhe possibilita novas aprendizagens. Ela
ressalta que aprendeu a ser ponderada, raciocinando antes de falar o que pensa e evitando assim ofender as pessoas.
Joana relata também que aprendeu algumas técnicas de relaxamento no
grupo que a tem ajudado a dormir. Enfatiza a sua fé em Deus e nas orações que faz.
Joana relata que a sua participação no grupo lhe concede força para resolver as
suas questões cotidianas.
171
coisa, como aquele dia a Ivone, ela pegou força aqui. É como eu
também.
Bom eu, na verdade foi como eu disse. Eu vim mais assim
como... não sei.. Isso ai não tem nada a ver comigo. Vim aqui só para dar um apoio,
para mostrar boa vontade. E ai eu fui percebendo... porque eu...
eu também sou... como ela fala sempre em todas as terapias... “quando a boca fala, o corpo
cala”. E é o meu caso, eu também, não sei se é um
defeito, às vezes eu acho um grande defeito, às vezes eu acho que é qualidade, não sei...
Eu falo, mas eu não tenho tanto problema assim, graças a Deus eu vivo harmoniosamente bem.
Não tenho esses grandes problemas que todo mundo tem.
Ai uma falava e eu falava já passei por isso. Ai o outro falava não sei o que de bebida, já
passei por aquilo. Então ai eu fui vendo que tudo que o povo fala
é comum, de uma forma ou de outra, cada um tem uma forma de conduzir, mas, no decorrer da
vida, a gente passa por aquilo e você nem percebe. E uma coisa
que eu gosto muito é que a Paula eu gosto demais da postura dela. Porque às vezes, o
psicólogo, se você não tiver empatia... A mesma coisa, se
você vai ao médico e não for com a cara do médico, ele pode ser o melhor que for, mas você
vai preferir ir num que ninguém conhece, mas que te deu aquela
empatia. E a Paula, ela é uma pessoa muito forte na condução e ela ensinou umas regrinhas
que não pode julgar, que não
Lídia relembra que não tinha um propósito de busca pessoal quando aderiu ao
grupo. Ao longo de seu relato, vai demonstrando reconhecer muitos dos problemas
discutidos no grupo como problemas semelhantes aos seus, salientando a
diferenciação na condução que cada pessoa dá as suas questões. Sua fala sugere alguma alienação diária que não
nos permite discriminar as situações desconfortáveis em que vivemos como
problemas. Ao se referir a um dos refrões usados na terapia para disponibilizar as pessoas à
fala, Lídia realiza um trocadilho, demonstrando uma apropriação pessoal do dito: “Quando a boca cala, o corpo
fala”, que em sua fala torna-se: “Quando a boca fala, o corpo cala”.
Ela ressalta a sua apreciação pela figura da terapeuta que conduz os encontros do grupo, atribuindo-lhe uma característica
de empatia. Lídia enfatiza a importância das regras
enquanto uma aprendizagem pessoal que garante o funcionamento do grupo, apontando para a dificuldade trazida pela
vontade de dar conselhos aos participantes do grupo.
Ela relata que a participação no grupo lhe possibilita crescimento pessoal e amadurecimento, desmistificando a idéia
de que atendimento psicológico é somente para quem tem uma neurose ou
é muito problemático. Enfatiza ainda que o produto encontrado nos grupos diz respeito ao cotidiano dos participantes e
assim os problemas e as soluções estão no próprio sujeito.
172
pode sair dali, não sei o que. E é muito difíci l para a gente. É um
exercício que a gente também aprende. A outra lá fala e dá
uma vontade de dar uns conselhos. Nesse sentido a gente também
vai crescendo, vai amadurecendo, entendeu? E eu
gosto bastante. Teve uns dias que eu não pude vir, mas sempre que posso venho e eu
estou gostando bastante. Acho que foi muito importante. Eu
achava que era coisa só para quem era muito problemático, muito... era isso que eu achava.
Gente que vai ao psicólogo é porque tem uma mania, uma
neurose, põe um negócio na cabeça. Então, a gente tem essa impressão em geral, mas no
fundo ali é o cotidiano da gente. É o dia-a-dia da gente que é
levado ali naquela... que nem sempre você tira a solução. Porque a gente vai com a idéia
de que eu vou sair dali com a solução para o meu problema,
mas na verdade o problema ta em quem? Na gente.
(Aceitação)
Então eu sempre achei que a
minha vidinha até que foi boa, né? Ai você escuta tanta coisa, mas eu já vivi... quando meu pai
era vivo, ele bebia. O que é essa vida ai fora, depois ele
melhorou. Então a gente vê que a gente já viveu, mas no grupo é mais assim, vamos dizer, você
se conforma mais com a sua situação porque dá a impressão
de que você não está sozinha. Agora, é como você falou, o gramado do outro é mais verde
que o meu. Porque a gente acha
Lídia demonstra certa satisfação e
acomodação com a sua história de vida. Ela diz sentir-se conformada com a sua situação quando está no grupo, em
função de não se sentir sozinha. Também relata uma ampliação na sua visão de
mundo, de convivência e relacionamento a partir das experiências proporcionadas pelo grupo, sugerindo uma ampliação de
consciência, realidade essa um tanto ambígua.
173
que o nosso é o pior. Tem uma visão que amplia de um mundo,
de convivência, de relacionamento.
Eu não diria me conformar. Eu diria lutar para melhorar o meu
problema (risos). Então você ouve a gente, tem tantas coisas... Graças a Deus eu já
passei fases ruins. Seu eu for contar a minha vida é uma
tragicomédia, mas graças a Deus eu tenho o temperamento bom. Eu levo sempre as coisas
para o lado melhor, não fico pensando no pior. Procuro dar
esse exemplo lá em casa e é bem difícil, você consegue para os outros, dentro da sua casa
você não tem o valor que te dão fora. Mas, se ela tem um problema que eu acho que é
parecido com o meu e tal, ai eu procuro... eu quero lutar para
melhorar, não vou me conformar porque ela tem o mesmo problema que eu, então tá tudo
bem, tá certo, isso é normal. Eu procuro, eu quero endireitar o
que está de errado. Eu quero endireitar todo mundo (risos). Eu quero dar conselho,
eu quero falar, eu quero levar a minha alegria, a minha
confraternização. Então eu acho que eu posso, eu acho que eu tenho (enfatizado) esse... esse
poder. Muita modesta eu (risos), mas não é a terapia da auto-
estima? Eu me valorizo, não sou boba. Então eu acho assim que eu posso. Ai eu chego na minha
casa, na minha família, feliz da vida e procuro praticar isso com
os meus filhos. Sempre tem aquelas encrenquinhas, tenho 4 filhos, 10 netos, bisnetos,
pá,pá,pá, marido (risos).
Ana não concorda com a expressão de Lídia que remete ao conformismo a partir
do sofrimento compartilhado no grupo. Ela faz referência a luta, como possibilidade de transformação de sua realidade,
dizendo que não se deve conformar em função do outro ter o mesmo problema
que a gente. Afirma que procura endireitar o que está errado. Em fala anterior, Ana havia dito que era importante ouvir o outro
para compreender a si própria, pois ouvindo o problema de um, ouvindo o
problema de outro, ela podia se dar conta do quanto é feliz. Ela relatou que até mesmo das coisas ruins daria para tirar
proveito. Esta fala sugere uma ampliação da sua percepção a partir de um redimensionamento da experiência.
174
Olha, eu já cheguei a fazer terapia individual por pouco
tempo, mas eu achei que terapia em grupo, assim... completa
mais a gente. Porque na terapia individual eu só vou ouvir a mim mesma, quando você chega
num grupo e ouve um problema do outro, ai a gente começa a ter
mais consciência de que todo mundo tem problema. Que a gente não é a única (enfatizada)
que sofre e que tem medo, tudo isso. Isso me ajudou tanto.
Aconteceu que quando começou essa terapia foi quando realmente começou uma fase
difícil na minha vida. Muitos problemas, um atrás do outro.
Eu chegava aqui, eu ouvia os problemas dos outros. Eu aprendia, tirava muita coisa para
ajudar a resolver os meus. Saia conformada de saber que outras
pessoas também sofriam a mesma coisa. E até a gente aprende a valorizar o que a
gente tem, porque quando você ouve o outro falando de algum
problema tão sério, tão sofrido, a gente aprende a valorizar as coisas boas da vida da gente.
Então eu não abro mão da terapia de jeito nenhum. Estou
assim enrolada, trabalhando, com mãe doente e tudo, mas chegou a segunda-feira às 20h
eu largo tudo e corro para cá.
Ivone também aponta para a importância de ouvir o outro compartilhamento dos
seus sofrimentos, como uma forma para que tenhamos consciência de que todas
as pessoas têm problemas. Ela complementa o seu raciocínio dizendo que ao ouvir os problemas dos outros
consegue vislumbrar possibilidades para resolver os seus próprios problemas.
Relata ainda que no grupo aprende a sentir-se conformada por saber que outras pessoas também sofrem do mesmo
problema que ela e assim acaba por valorizar o que tem.
Ivone compara a psicoterapia individual à terapia de grupo e diz que o grande diferencial em favor do grupo é a
possibilidade de ouvir os problemas dos outros e perceber-se não sendo a única
pessoa que tem problemas.
(Percepção de mudança em si depois da Terapia?)
Eu percebi uma mudança muito grande em mim, até dentro
destas regras que tem. Eu tenho duas filhas e um marido que não
gosta muito de falar, e a gente ainda trabalha juntos, e eu é que tenho que estar sempre falando.
Na hora de reclamar de alguma
Ivone percebe que está diferente nas suas relações depois da terapia. Disse que está
utilizando algumas regras da terapia com o marido e as filhas. Já não obriga o
marido a falar, como antes, visto que esse é muito inseguro e também já não decidi tudo pelas filhas. Ela disse que hoje
procura fazer perguntas ao invés de dar
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coisa ele sempre joga na minha mão e essa regrinha de não dar
conselho, não julgar. Eu acabei levando isso no meu
relacionamento com eles, principalmente com as minhas filhas. O meu marido eu ficava
querendo obrigar ele a falar. Tinha mania de ficar querendo
obrigar. E as minhas filhas eu já dava tudo pronto. Chegou com problema eu falava faz assim,
faz assado e pronto. Então eu queria que eles vivessem da
maneira que eu queria. Então eu aprendi nisso, principalmente na minha relação com elas, a fazer
com que elas pensem no problema e procurem a solução.
Então ao invés de chegar e falar, oh filha faz assim. Agora eu chego e pergunto. O que você
gostaria mais, como você gostaria que esse problema
fosse resolvido. O que você acha melhor fazer. Na verdade, no lugar de dar conselho eu
aprendi a fazer perguntas e parei também de querer obrigar
o meu marido a falar (risos). Quando tem alguma coisa na empresa que ele joga para mim,
eu não obrigo nada. Eu só falo, olha esse problema é seu, é
você que vai ter que resolver e saio de perto.
conselhos e já não responde o que as filhas e o marido têm que fazer.
Com relação ao marido, Ivone acredita que está lhe concedendo a oportunidade
de amadurecer quando sugere que é responsabilidade dele falar com algum cliente e diz que não vai fazê-lo em seu
lugar. Esse procedimento relatado sugere que Ivone o tenha aprendido a partir da
vivência de um casal que apareceu no grupo e tinha uma história de vida parecida com a dela e do seu marido.
Ivone parece estar desresponsabilizando-se por decisões que as filhas e o marido
têm que tomar, ao invés de decidir pelos mesmos, como fazia habitualmente.
Ah, com certeza. Assim, às
vezes eu me choco bastante com alguns depoimentos. Coisa
que eu nem imaginava que uma pessoa pudesse passar. Então, ai eu... Depois eu fico pensando
naquela... Posso falar né? (pedindo anuência do grupo).
Eu, particularmente, sou uma pessoa muito determinada (alongando a fala), bem assim.
Então eu me choco com essas
Lídia consegue ampliar a sua visão
acerca do outro e de seus sofrimentos a partir do relatos compartilhados na
terapia. Ela afirma ter começado a ver o ser humano de uma outra forma, diferente das possibilidades que tinha antes.
Lídia diz ainda que a sua participação na terapia a fez perceber o quanto ela
achava que sabia das coisas, que era o „máximo‟ e que por fim descobriu que não sabia nada na vida. Ela também consegue
perceber que a pessoa que está
176
coisas. Eu acho que eu amadureço com isso. Começo a
ver o ser humano de uma outra forma.
Assim, é... de ver que as pessoas, é... às vezes precisavam de um pouco mais
da minha atenção. Eu saio... (risos) toda terapia,
dependendo, eu tenho vontade de ir lá, conversar, falar, mas falei bom... não dá para falar.
Mas, eu enquanto pessoa... amadureço. A gente pensa que
sabe... Eu quando tinha 13 anos, eu achava que era o máximo. Eu achava que eu sabia tudo. Eu
era uma convencida daquelas. Gente, eu não sei nada. A gente
não sabe nada na vida. A cada dia a gente vai... que até você fala, aquela lá podia fazer assim.
Não é tão simples assim, entendeu? Às vezes, a gente
quer dar solução, né? Mas... para mim é fácil que não estou vivendo a situação, né?
vivenciando um problema sofre muito mais do que aquele que, estando „estando
de fora‟, quer dar soluções ao problema.
Me sinto ótima (risos). Me sinto querer... assim... Gostaria de
mudar todo mundo. Como ela falou, é difícil. Você acha que a solução é fácil, mas para a
pessoa que está vivendo é mais difícil.
Ah, totalmente. Mulher maravilha (risos). Eu tenho a impressão que assim... vem uma força,
assim... que se eu conseguir conversar, ela vai mudar esse
pensamento. Então, às vezes é um defeito também, eu quero moldar as pessoas do jeito que
eu quero que elas sejam. Então isso pode ser um defeito. Eu
gosto de perguntar: “Porque você se deixa cair desse jeito. Levanta. A vida é boa. Você tem
que lutar. Você tem que...
Ana disse ter a impressão de que lhe vem uma força com a qual conseguiria mudar
as pessoas através do diálogo. Disse que isso pode ser uma qualidade, mas também um defeito por querer „moldar as
pessoas‟ do jeito que ela quer que elas sejam.
Ela disse que quando sai de uma sessão de terapia sente-se com poder para ajudar o mundo.
177
Ninguém ganha nada caindo do céu, assim” Você tem que
batalhar para ganhar”. Entrev. - Sei. Você se sente com
mais poder para resolver as suas questões? Ana - Uhum, muito, muito mais.
Me sinto numa boa, né? (risos).
A essa altura do campeonato,
para eu mudar foi difíci l. Mas, eu mudei. Porque você ouvir os
outros é duro. Você só quer falar, falar. Escutar é duro, né? Mas faz bem para a gente e eu
aprendi aqui, na terapia. Porque eu mudei, você vê em relação
ao meu marido. Eu estou tratando ele como se ele fosse o meu filho e está surtindo efeito.
A minha filha também. Eu sei porque eu não sou do tempo do diálogo. No meu tempo, imagina
se você ia conversar com a mãe, com o pai. Com a minha filha
também. Agora eu chego e falo para ela: “Vamos conversar filha”. Coisa que eu não fazia. Já
ia: “pupururmrumm”, já ia fazendo, né? Eu aprendi aqui na
terapia. E também eu aprendi, vamos dizer, a me controlar, porque
tem hora que dá uma vontade falar. Não dá, eu fico doente.
(risos) Eu aprendo, eu adoro aprender. Eu gosto de aprender, sabe? E eu tenho o espírito
jovem, não quero nem saber. Sou a maior palpiteira do
pedaço, mas até isso eu aprendi. Eu fico quietinha. Também o modo como você fala
com a pessoa, às vezes você fala e você machuca. O modo de
você falar, se eu falar meigo, com jeitinho, aquilo lá soa diferente.
Joana afirma que mudou após a terapia,
pois aprendeu a ouvir. Disse que ouvir é muito difícil, pois queremos sempre falar.
Ela afirma que a educação que recebeu não era pautada pelo diálogo. Ela disse que ouvir é muito „duro‟, mas faz
bem para a pessoa e isso ela aprendeu na terapia. Joana também lembra que o
modo como você fala com as pessoas pode magoá-las.
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