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Tensões em torno do ensino religioso na educação adventista
Isaac Malheiros Meira Junior1
1. Introdução
Desde seu início no século XIX, a rede adventista de educação tem mantido forte
ênfase no ensino religioso. O ensino religioso adventista atravessou vários períodos de
múltiplas abordagens pedagógicas sem sofrer grandes alterações na sua importância. Esse
fenômeno é contrário ao que ocorreu com outras redes religiosas de educação, cujo
processo de secularização tornou o ensino religioso algo desvinculado da pedagogia.
Uma vez que a rede adventista de educação é uma das mais importantes e
duradouras redes confessionais do mundo, é interessante entender como o ensino religioso
permaneceu tão forte e relevante na pedagogia adventista, superando os obstáculos
impostos pela busca da excelência acadêmica.
Esse artigo tem como objetivo analisar a importância histórica do ensino religioso no
desenvolvimento da pedagogia adventista, e analisar os atuais desafios e tensões
enfrentados por uma rede confessional que tenta manter a identidade cristã num mundo de
rápidas transformações. O ponto central é a tensão entre os interesses acadêmicos e os
interesses religiosos/espirituais, presente na Educação Adventista desde o seu início.
Para isso, foi realizada uma pesquisa explicativa com abordagem qualitativa e
utilizados os seguintes instrumentos de coleta dados: análise documental e bibliográfica. Os
dados foram analisados à luz do referencial teórico selecionado e apresentados aqui em
forma de texto.
2. A origem do ensino religioso adventista
Desde seu início em 1872, na cidade americana de Battle Creek (Michigan), a
1 Mestre em Teologia (EST – São Leopoldo), doutorando em Teologia (EST – São Leopoldo). Professor de Ensino Religioso no Instituto Adventista Cruzeiro do Sul. Bolsista da CAPES. Contato: <[email protected]>
Educação Adventista2 tem se caracterizado por sua visão cristã. Considerada a maior rede
educacional evangélica e a segunda maior rede confessional unificada do mundo, a Educação
Adventista sustenta-se sobre o pensamento filosófico e pedagógico chamado pelos
pedagogos adventistas de “bíblico-oriental” (ou hebraico-oriental), em contraposição ao que
eles chamam de “modelo greco-ocidental, que permeia grande parte da filosofia e a prática
pedagógica atual” (CUBIASD, 2004, p. 8).
A princípio, na década de 1850, onde houvesse uma comunidade suficiente, os
adventistas norte-americanos estabeleciam escolas nos lares sob a direção de um deles. Não
havia nenhum esforço sistemático oficial para encorajar tais escolas, até porque a Igreja
Adventista do Sétimo Dia (IASD) não existiria oficialmente como instituição organizada até
1863 (SCHWARZ; GREENLEAF, 2009, p. 116)
A insatisfação dos adventistas pioneiros com o sistema público norte-americano de
ensino os levava a estabelecer insistentemente escolas nos lares, à medida que os crentes
percebiam a necessidade e estavam dispostos a arcar com os custos envolvidos. Essa
insatisfação era justificada por coisas como exposição à linguagem vulgar, querelas, brigas e
outras influências consideradas deletérias pelos pioneiros adventistas (SCHWARZ;
GREENLEAF, 2009, p. 116).
Os adventistas creem no dom de profecia, através do qual Deus se comunica com a
humanidade. E acreditam também que esse dom se manifestou no século XIX de forma
inequívoca na vida e obra de Ellen White (1827-1915). Ellen White escreveu fartamente
sobre educação, dentre outros assuntos. Assim, os escritos da Bíblia e de Ellen White
formam o fundamento básico do pensamento adventista sobre educação. Ellen White
escreveu e promoveu conceitos educacionais que servem de parâmetro para a Educação
Adventista até hoje. Nesses livros encontramos todas as principais diretrizes seguidas pela
2 O Movimento Adventista começou nos Estados Unidos, na década de 1830, quando o pregador batista William Miller (1782-1849), após estudar intensamente as profecias do livro de Daniel, começou a anunciar a iminente vinda de Jesus Cristo à terra. O nome “adventista” deve-se exatamente à crença nessa segunda vinda (ou advento) de Cristo. Miller acreditava que Cristo retornaria a terra na década de 1840. O retorno de Cristo não aconteceu como esperado e o grupo se dispersou. Uma ramificação do movimento adventista deu continuidade aos estudos bíblicos e deu origem à Igreja Adventista do Sétimo Dia (GAARDER, 2000, p. 205 e 209).
rede educacional adventista.3
O estabelecimento da primeira escola oficialmente adventista foi impulsionado pela
publicação de um sonho de Ellen White em 1872. Ela escreveu 30 páginas sobre o tema da
educação e sobre a necessidade do estabelecimento de uma escola: “Precisamos de uma
escola onde possam ser ensinados àqueles que acabam de entrar no ministério ao menos os
ramos comuns da educação e onde eles possam aprender mais perfeitamente as verdades
da palavra de Deus para este tempo” (WHITE apud SCHWARZ; GREENLEAF, 2009, p. 120).
Percebe-se, nessa orientação inicial de Ellen White, a íntima ligação entre a religião e
o sistema educacional adventista desde o nascimento. A educação correta, segundo White,
deveria contemplar a vida física, mental, moral e religiosa dos estudantes, princípios
seguidos até hoje. Em seus livros sobre educação, White (2000, p. 208) refere-se à
necessidade de substituir o que denomina de “ensino mundano” por um ensino sob
orientação religiosa: “Seja a escola regida de acordo com as normas das antigas escolas dos
profetas, achando-se a Palavra de Deus no fundamento de toda a educação dada”.
Para os hebreus, a aprendizagem e ensino repousavam, em última instância, no
temor do Senhor (Deuteronômio 4:10; 14:23; 17:19; 31:12, 13). Conforme acentuam Harris,
Archer e Waltke (1999, p. 791), “aprender (nessa compreensão) é aceitar a vontade e a lei de
Deus”. Por isso, para os adventistas, qualquer abordagem cristã ao ensino que isole a religião
em um compartimento separado da vida “secular” seria uma abordagem infiel à descrição
bíblica.
Como fruto dessa orientação, uma escola patrocinada denominacionalmente foi
inaugurada em 1872 na cidade de Battle Creek, com doze alunos sob os cuidados do
professor Goodloe Bell. Após um impressionante crescimento, em 1874 a Sociedade
Educacional Adventista do Sétimo Dia tornou-se uma entidade legal e um colégio maior foi
inaugurado, o Battle Creek College (SCHWARZ; GREENLEAF, 2009, p. 123).
Curiosamente, na primeira escola adventista não havia nenhum curso bíblico regular
3 Três livros de Ellen White tratam inteiramente de educação: Educação (1903), Conselhos aos Professores, Pais e Estudantes (1913) e Fundamentos da Educação Cristã (1923), sendo este último uma compilação póstuma de artigos anteriormente publicados. Outras compilações sobre educação foram feitas posteriormente, mas essas são as obras principais.
oferecido em seus primeiros anos de funcionamento. O primeiro professor de Bíblia foi Uriah
Smith, um dos líderes pioneiros da IASD e editor de Review and Herald, revista oficial da
IASD. Ele morava próximo do colégio e sempre que podia fazia palestras sobre temas bíblicos
para os alunos.
No início, as escolas adventistas funcionavam em sistema de internato ou semi-
internato. Ofereciam um ensino que se aproximava do ensino técnico profissionalizante,
com intensas atividades agrícolas e manuais. Os alunos eram quase sempre filhos de
adventistas, e supria uma demanda interna na igreja, já que o ensino público era
considerado inadequado. Segundo White (1976, p. 154), os colégios adventistas,
especialmente os internatos deveriam prover uma “atmosfera doméstica” aos jovens, para
resguardá-los “de tentações à imoralidade”.
3. A constante tensão entre o acadêmico e o religioso
No início da Educação Adventista no colégio de Battle Creek, o estudo da Bíblia e a
religião encontraram pouco espaço no programa da escola. Não havia aulas regulares de
religião e as aulas não eram obrigatórias. George Knight relata que os catálogos do colégio
anunciavam: “Não existe coisa alguma nas matérias, ou nos regulamentos e práticas
disciplinares, que tenham algo de denominacional ou sectário. As preleções bíblicas são
apresentadas apenas para aqueles que as assistem por livre escolha” (KNIGHT, 2010a).
Ainda não havia uma filosofia adventista de educação clara e formalmente
estabelecida. As escolas eram iniciativas particulares e não oficialmente institucionais. No
entanto, desde o início já havia uma tendência “reformadora” na Educação Adventista.
No seu primeiro ensaio escrito especificamente sobre educação, em 1872, Ellen
White deixou bem claro: “somos reformadores” (SCHWARZ; GREENLEAF, 2009, p. 117).
Nesse mesmo ano, Goodloe Bell organizou a primeira escola oficialmente patrocinada em
Battle Creek. E assim surgiu um debate cujos efeitos perduram até hoje: a Educação
Adventista deve priorizar a sua missão religiosa ou a sua visão acadêmica de excelência? Em
1881, Ellen White (2004, p. 21-25) apresentou o risco de o colégio cair na irrelevância se
abrisse mão de sua confissão religiosa nos seguintes termos:
[...] há risco de nosso colégio ser desviado de seu desígnio original. [...] Não é o propósito da instituição dar aos estudantes o mero conhecimento de livros. Essa espécie de educação pode ser obtida em qualquer colégio da região. [...] Se uma influência mundana tiver que dominar nossa escola, seja ela vendida aos mundanos, e assumam eles o total controle.
E assim, o ensino religioso teve o seu lugar garantido na Educação Adventista, e não
apenas nas aulas de ensino religioso, mas em toda a vida escolar, cujo parâmetro era a Bíblia
e os princípios deduzidos a partir dela. Aos poucos, Ellen White desfazia a noção de
incompatibilidade entre a fé e a razão (WHITE, 2000, p. 394-395).
Ellen White (2004, p. 21-22) alertou claramente quanto ao resultado desastroso que
seria “deixar a influência moral e religiosa para trás”, e ainda estabeleceu que o propósito de
Deus era que “nosso povo tenha a oportunidade de estudar ciências, aprendendo ao mesmo
tempo os reclamos de Sua Palavra”.
A respeito do desenvolvimento intelectual, Ellen White (2000, p. 394) escreveu que
os alunos deveriam se esforçar para avançarem o mais rápido e irem o mais longe possível,
sendo o seu campo de estudo “tão vasto quanto possam alcançar suas faculdades”, e que a
intelectualidade promove a espiritualidade, pois “as verdades da Palavra divina podem ser
melhor apreciadas pelo cristão intelectual” (WHITE, 1996, p. 45).
Sob as orientações de Ellen White, a Educação Adventista tornou-se rapidamente
uma forte e crescente rede mundial de escolas e universidades. As orientações divinas dadas
através de Ellen White também garantiram uma padronização da abordagem religiosa nas
instituições adventistas de ensino. O principal legado das instruções de Ellen White é a
centralidade da Bíblia e a sua atuação como fator de integração das diversas áreas do
conhecimento.
A tensão entre os objetivos acadêmicos e os objetivos espirituais existe ainda hoje.
Aproximando-se alternadamente de um extremo e outro ao longo de sua história, a
Educação Adventista busca constantemente o equilíbrio entre a sua missão espiritual e sua
visão acadêmica. No entanto, ao contrário do que possa parecer, “essa tensão, apesar de
desconfortável, é saudável e necessária a fim de evitar que a Educação Adventista caia na
irrelevância por falta de uma distinta ênfase adventista ou por uma inadequação às
necessidades acadêmicas do século XXI” (KNIGHT, 2010a, p. 17).
Uma nova onda de pressão sobre a Educação Adventista foi trazida pelas rápidas
mudanças ocorridas no século XXI. Alguns setores da igreja sugerem que é tempo de
abandonar as características religiosas e tomar posição no cenário acadêmico, “pois os
alunos da rede não são mais exclusivamente adventistas e os colégios não são mais
instituições de treinamento para obreiros denominacionais” (RICE, 2010, p. 6).
Apesar da tensão entre os aspectos acadêmicos e religiosos, igreja e a escola mantêm
uma relação muito próxima. O Departamento de Educação da IASD descreve essa relação
com as seguintes palavras: “A escola adventista é uma instituição da Igreja Adventista do
Sétimo Dia, por isso os vínculos entre ambas são estreitos e de apoio mútuo, mas mediados
pelo respeito, sem perder de vista a finalidade formativa da escola” (DE, 2004, p. 82).
No entanto, Rice (2010, p. 6) alerta que enfraquecer o perfil religioso da rede
educacional adventista seria “irônico”, pois “esse é o principal fator que poderia aumentar
nossa atratividade para possíveis alunos”. Assim, manter a identidade e a fidelidade aos
históricos princípios norteadores da Educação Adventista é o que garantiria a sua relevância
diante de um mar de instituições academicamente excelentes, mas sem nenhum
compromisso com a cosmovisão cristã. Em suma, manter o ensino religioso adventista em
evidência é o que torna a Educação Adventista forte.
4. Entre o ensino religioso e a doutrinação proselitista
Como foi visto neste artigo, a Educação Adventista nasceu com o objetivo de atender
as famílias adventistas, preservando os seus filhos do que os adventistas consideravam más
influências da sociedade (WHITE, 2000, p. 173). No entanto, com o crescimento da rede
educacional adventista, um número cada vez mais crescente de alunos que não são
adventistas passou a estudar na rede:
Apesar de a Educação Adventista ter mantido uma posição fundamental na criação
de uma igreja mundial unificada, ela não tem mantido um crescimento proporcional ao do
número de membros da igreja. Cada vez mais alunos não adventistas se matriculam nessas
escolas, o que fez baixar a proporção de estudantes adventistas (KNIGHT, 2006).
Isso acirrou uma tensão que afetou diretamente o ensino religioso: como continuar
abordando o ensino religioso sem caracterizar proselitismo manipulador e, por outro lado,
sem perder a identidade adventista? A Educação Adventista não esconde seu objetivo de
impactar a vida dos alunos com a mensagem cristã, e, se possível, torná-los cristãos. Ellen
White (1996, p. 436) escreveu claramente que “a coisa mais importante” na educação “deve
ser a conversão dos alunos”. No entanto, como conseguir isso sem parecer ofensivo ou
agressivo?
Desde que as escolas adventistas aceitaram alunos não adventistas, o ensino religioso
procura trabalhar com eles a fé e os valores cristãos, sem receio ou vergonha de lhes
mostrar a visão adventista do cristianismo. No entanto, alguns adventistas sugeriram uma
abordagem mais branda, neutra, quase disfarçada, da religião. Mas foram duramente
confrontados por White (1976, p. 130), que afirmou: “não devemos encobrir nossa fé para
assegurar mais alunos”.
Apesar dessa ênfase evangelística, e ao contrário do que se possa supor, o ensino
religioso adventista não se resume à doutrinação (mesmo contendo estudo sistematizado de
doutrinas bíblicas). Para Knight (2010b, p. 169), “é errado pensar que a função das aulas de
religião é ensinar teologia, mas é igualmente errado pensar que teologia não deva ter
importância nas aulas de religião.” A abordagem crítica ao conhecimento, mesmo o religioso,
também está presente nas orientações de Ellen White (1977, p. 17): “Cada ser humano
criado à imagem de Deus, é dotado de certa faculdade própria do Criador – a individualidade
– faculdade esta de pensar e agir. [...] É a obra da verdadeira educação desenvolver essa
faculdade”. Assim, o ensino religioso adventista também se submete a essa abordagem
crítica. Mas essa abordagem não é tudo, o ensino religioso pretende ir além do plano
intelectual.
Frequentemente, os adventistas de todos os níveis educacionais têm enfatizado um
ensino da religião meramente no plano intelectual. Para Knight (2010b, p. 169), “o engano
está em supor que ensinar teologia equivale a ensinar religião.” A pedagogia adventista
estabelece que “um bom ensino da Bíblia imita o ensino de Jesus que foi reconhecido como
um inovador positivo quando se acercava das pessoas. Finalmente, o ensino da Bíblia
estimula uma aplicação sólida dos princípios bíblicos nas relações interpessoais e na própria
vida” (DE, 2004, p. 107).
Há que se destacar a importância da Bíblia na Educação Adventista. Apesar de não ser
encarada como um livro didático, a Bíblia é considerada como a fonte da auto-revelação de
Deus. Na sua epistemologia, a Educação Adventista reconhece a Bíblia como a base do
entendimento nos diversos campos de estudo (CUBIASD, 2004, p. 41). Segundo Unglaub
(2005, p. 21), a Educação Adventista tem na Bíblia “a sua fonte maior de revelação de Deus,
de sua natureza, do universo, e do ser humano como criação direta de suas mãos”.
Segundo White (2003, p. 56): “A Bíblia é nosso compêndio. Pais, professores e alunos
precisam conhecer melhor as preciosas verdades contidas tanto no Antigo como no Novo
Testamento.” O estudo cuidadoso da Bíblia, de modo a tornar os alunos em instrutores
bíblicos, é fortemente incentivado por White (1999, p. 474), e é recomendado a todas as
faixas etárias (WHITE, 1977, p. 188).
O objetivo do ensino religioso é levar a uma experiência com Deus, o que nem
sempre é garantido meramente com a teologia, ou o conhecimento sobre Deus e a Bíblia.
Como destaca Knight (2010b, p. 170), “o conhecimento de Deus é muito distante do amor a
Ele”. O mero conhecimento intelectual divorciado da espiritualidade sadia é um risco, pois
pode ser utilizado para o mal (WHITE, 2005, p. 422).
Discutindo sobre o ensino religioso nas escolas adventistas, Reuben Hilde (apud
KNIGHT, 2010b, p. 170), da Universidade de Loma Linda, afirma que “uma das puras
realidades que enfrentamos na Igreja Adventista do Sétimo Dia é que em muitos casos a
educação provida em nossas escolas não tem mudado sensivelmente os jovens”.
Segundo Hilde (apud KNIGHT, 2010b, p. 171), se uma escola cristã “não causa
transformação de vidas, o propósito dessa escola se torna absurdo”. A obtenção de
conhecimento é desejável, mas não é o objetivo único e nem máximo da Educação
Adventista. Segundo Knight (2001, p. 213), a aquisição de conhecimento – mesmo o
conhecimento cristão – não deve ser vista como um fim em si mesmo, mas tem como
objetivo principal o servir melhor a Deus e aos semelhantes.
Os objetivos do ensino religioso, de acordo com Carnack (apud KNIGHT, 2010b, p.
171), devem ser: (1) “traga o aluno a Cristo”, (2) “firme-o em Cristo”, e (3) “envie-o a
trabalhar por Cristo”. Percebe-se aí uma abordagem que se aproxima do proselitismo
cristão, cujo objetivo também é atrair, converter e enviar o convertido como missionário.
Em verdade, a linha que separa o ensino religioso do proselitismo é tênue. Não há um
esforço aberto e oficial na Educação Adventista de converter os alunos em cristãos
adventistas. No entanto, no ambiente escolar há pregação, apelos evangelísticos e o
oferecimento de estudos bíblicos mais aprofundados. Em eventos especiais, como nas
“Semanas de Oração”, é oferecida ao aluno a oportunidade de se preparar para o batismo
cristão, tornando-se um adventista, se o aluno desejar.
O que é aberta e oficialmente assumido na Educação Adventista é que seu objetivo é
influenciar a vida dos alunos com os valores e princípios cristãos, ainda que o aluno não se
batize e nem se torne formalmente um cristão adventista. O ensino religioso na rede
adventista não se resume ao ensino da Bíblia como um fim em si mesmo. Na escola
adventista não se estuda a Bíblia despretensiosamente, apenas por curiosidade. O que
acontece nas escolas adventistas é o ensino da Bíblia e da verdade cristã como um recurso
para uma finalidade: a aplicação do conhecimento à existência diária. O ideal do ensino
religioso adventista não é o sucesso acadêmico, mas o envolvimento ativo nas questões da
vida.
Ellen White deixou claro esse conceito ao escrever que a educação não é o mero
conhecimento intelectual, mas “um conhecimento experimental do plano da salvação”
(WHITE, 2000, p. 434). De acordo com ela, o conhecimento deve ser “experimentado no
caráter em vez de apenas na mente” (WHITE, 2000, p. 37). Discutindo a separação
dicotômica entre a intelectualidade e a espiritualidade, White (2000, p. 540) escreveu:
Uma religião meramente intelectual não satisfará o coração. Não deve ser negligenciado o preparo intelectual, mas não é ele suficiente. Aos estudantes deve-se ensinar que estão no mundo para prestarem um serviço a Deus. Devem ser ensinados a pôr sua vontade ao lado da vontade divina.
Para Knight (2010b, p. 172), o professor de ensino religioso enfrenta o perigo de
“sucumbir à tentação de viver em dois níveis – um da teoria, em que a expressão verbal não
pode ser separada da prática, e outro no mundo diário da sala de aula, onde a separação
realmente ocorre”.
5. Vislumbrando soluções equilibradas
O ensino religioso adventista não deveria “degenerar-se numa forma de doutrinação
que tenta contornar o julgamento crítico do estudante para obter a aceitação de certo ponto
de vista” (KNIGHT, 2010b, p. 176). No entanto, o ensino religioso deveria “ajudar os
estudantes a desenvolver suas habilidades de senso crítico e, ao mesmo tempo, providenciar
uma filosofia cristã para a avaliação dos fragmentos do conhecimento” (KNIGHT, 2010b, p.
176). Em suma, o ensino religioso deve ajudar os jovens a aprender a pensar de forma cristã,
a formar uma cosmovisão cristã.
Esse objetivo pode ser facilmente confundido com proselitismo manipulador. E, na
realidade, pode se degenerar em proselitismo. A Educação Adventista convive com essa
tensão constante: ser fiel à sua missão de influenciar toda a vida do aluno com os princípios
cristãos e ao mesmo tempo ser sensível às crenças particulares das famílias que contratam
seus serviços educacionais, não ultrapassando os limites da doutrinação e da manipulação
das mentes jovens.
O equilíbrio é conseguido ao relacionar o conhecimento bíblico com a vida cotidiana,
fazendo o ensino religioso ultrapassar os limites da sala de aula. Ellen White (2000, p. 545)
observa que os jovens precisam de oportunidades para desenvolverem o “trabalho
missionário – tempo para se relacionar com as necessidades espirituais das famílias da
vizinhança”. Para Knight (2001, p. 212), “esse desenvolvimento do caráter cristão nos alunos
se impõe como o maior objetivo dos professores cristãos.” No entanto, não é tarefa fácil
perceber a diferença prática entre alcançar esse objetivo e conseguir novos conversos para a
denominação.
Diante de tal desafio, o professor de ensino religioso deve ser bem preparado.
Segundo White (1977, p. 475), as escolas adventistas deveriam dispor de professores “bem
competentes no ensino da Bíblia, e que possuam profunda experiência cristã. Os melhores
talentos do ministério devem ser empregados em nossas escolas”.
Porém, isso nem sempre ocorre, visto que, em muitos casos, essa é uma função
desempenhada por pastores recém-formados que não tiveram nenhum tipo de preparo
acadêmico para o magistério. O professor de ensino religioso deveria ser valorizado como
um profissional de importância fundamental da educação cristã, e não ter o seu papel
minado e encarado como uma segunda classe de atividade profissional. Esse é um desafio
com o qual o ensino religioso adventista tem de lidar.
Ter sempre os melhores talentos do ministério adventista empregados nas escolas é
um ideal ainda a ser alcançado. No entanto, não há dúvidas de que White não estava
exagerando nesse ponto, visto que ela orienta que os “professores de Bíblia” sejam
sustentados pelo dízimo, da mesma forma que os pastores de igreja (WHITE, 1984, p. 473).
Outro desafio, destacado pelo professor universitário adventista Richard Rice, é:
como integrar a religião à vida escolar? Quão religiosos devemos ser e como devemos ser?
Rice (2010, p. 7) reconhece que é indesejável um afastamento da identidade religiosa, mas
que deve haver uma reestruturação da abordagem da religião na Educação Adventista. Para
Rice (2010, p. 7), o modelo educacional que visa à doutrinação não é mais uma opção viável
devido ao aumento da diversidade religiosa dos alunos da rede adventista. Para ele, a
abordagem à religião deve levar em conta esse tipo de diversidade.
Rice sugere algumas diretrizes para a abordagem da religião nesse novo cenário
educacional. Em primeiro lugar, os educadores adventistas devem ensinar como
representantes da comunidade religiosa, de dentro para fora, e não apenas como estudiosos
do assunto, de um ponto de vista externo à religião. Isso leva o ensino religioso a todas as
aulas, nas diferentes áreas, e não apenas nas classes específicas de ensino religioso. O
objetivo dessa abordagem é “ajudar os alunos a refletirem cuidadosamente sobre as
alegações do cristianismo” (RICE, 2010, p. 7-8).
Recomendar essa “perspectiva religiosa” significa relacionar as ideias e valores
cristãos com as crenças e valores refletidos em todas as disciplinas oferecidas. Segundo Rice
(2010, p. 8): “Isso envolve todo o corpo docente, não somente os professores de religião. E
pede que os professores sejam sensíveis às necessidades religiosas dos alunos, e
compartilhem suas próprias convicções com eles, tanto dentro como fora da sala de aula”.
Para eliminar a falsa dicotomia entre a religião e o aspecto acadêmico, a Educação
Adventista deveria intencionalmente proporcionar espaços e oportunidades para que os
alunos expressem e explorem a religião em ambientes diferentes. Capelas, cultos, classes
bíblicas, atividades artísticas e esportivas, reuniões sociais e serviços comunitários são
diferentes cenários onde o ensino religioso pode acontecer além das salas de aulas (RICE,
2010).
Acima de todas as propostas apresentadas, um ponto fica claro: deixar a Bíblia de
lado, e deixar de oferecer uma visão adventista dos princípios bíblicos são apontados como
fatores que podem levar à perda de identidade e uma inevitável secularização.
Além desses desafios, existem as pressões sociais e legais sobre o currículo
adventista. Pais que julgam ser excessiva a carga de ensino religioso ainda não
compreenderam a filosofia adventista de educação e a importância integrativa da Bíblia no
currículo adventista. No Brasil, algumas famílias já tentaram, sem sucesso, apelar para as
disposições legais a fim de enquadrar seus filhos num programa opcional de ensino religioso.
Reagindo a essas pressões, a liderança da rede educacional adventista na América do
Sul desenvolveu um projeto para reafirmar nas escolas o “compromisso total com Deus, com
sua igreja e com o evangelismo integrado”. Trata-se do “Plano Mestre de Desenvolvimento
Espiritual”, que coloca de forma bem clara os princípios, crenças e valores cristãos no centro
da vida escolar. A forte ênfase no aspecto espiritual fica clara nas palavras introdutórias do
PMDE (2008), que busca ajudar cada aluno “a se desenvolver espiritualmente, confirmando
as Instituições Educacionais Adventistas como lugar de evangelização [...]”.
Novamente, percebe-se um esforço aqui em não permitir que a religião perca a
centralidade na Educação Adventista. Ao que parece, para os educadores adventistas, voltar
à religião parece sempre ser a opção mais segura em face de desafios, pressões e riscos de
secularização. A religião e a centralidade do ensino religioso parecem funcionar como
âncoras da educação adventista, dando segurança e estabilidade em tempos de turbulência.
Considerações finais
O ensino religioso permaneceu forte e relevante na pedagogia adventista
primeiramente por causa da cosmovisão cristã que possibilitou a formulação de uma
filosofia educacional adventista onde a religião é onipresente. Os adventistas não acreditam
na dicotomia entre “secular” e “sagrado”. Não há dicotomia entre fé e razão, nem entre
ciência e religião. Para os adventistas, tudo vem de Deus e deve ser usado para servi-lo.
Devido a essa visão, a educação religiosa adventista não se limita às aulas de Ensino
Religioso, mas permeia todas as disciplinas e atividades da escola, dentro e fora da sala de
aula.
Desde o início, White deixou claro que a educação adventista é centralizada em Deus
e na Bíblia, e suas orientações foram fundamentais para que o ensino religioso não perdesse
espaço na educação adventista. Por influência de Ellen White, a Bíblia assumiu (e não
perdeu) o lugar central na pedagogia adventista. É o livro sobre o qual todo o conhecimento
se constrói. Da Bíblia os adventistas formulam o pano de fundo diante do qual todo
conhecimento se desenvolve. Da Bíblia os adventistas deduzem os princípios normativos de
sua pedagogia.
Em suma, os adventistas valorizam o ensino religioso por causa de sua cosmovisão
cristã, sua filosofia bíblica de educação e por causa das insistentes e claras orientações de
Ellen White a esse respeito.
Esses fatores geraram uma educação com duas preocupações principais: a sua missão
religiosa e a sua visão acadêmica de excelência. Essas preocupações geraram uma tensão
que jamais foi superada. A educação adventista vive andando no fio da navalha entre essas
duas questões. Porém, para alguns teóricos (Knight e Rice), essa tensão é saudável e
possibilita renovação de métodos e abordagens.
Outra questão conflituosa na educação adventista é o crescente número de alunos
não adventistas nas escolas. As pressões aumentam, e a abordagem religiosa inicial, que
tendia à doutrinação, está constantemente sendo revista. A educação adventista não abre
mão de seus valores bíblico-cristãos e nem do direito de transmitir tais valores aos alunos. O
ensino religioso está no centro dessa polêmica: não seria uma forma de manipulação
proselitista?
O ensino religioso contribuiu para o crescimento e solidificação da rede educacional
adventista como uma das maiores do mundo. O ensino religioso adventista foi o que
manteve a identidade confessional da rede ao longo de sua história, evitando que o ensino
adventista passasse pelo processo natural de secularização pelo qual outras redes
confessionais passaram. Os adventistas acreditam que a secularização neutralizaria o
diferencial da educação adventista, tornando-a irrelevante. Essa manutenção da missão
religiosa da educação adventista talvez tenha sido a maior contribuição do ensino religioso.
Certo ou errado, o fato é que a educação adventista sobreviveu a modismos pedagógicos, a
períodos de intenso ceticismo e ataque ao assim chamado fundamentalismo cristão.
Ao longo deste artigo, evitou-se fazer algum juízo de valor a respeito do ensino
religioso adventista, pois esse não era o objetivo da pesquisa. No entanto, nestas
considerações finais, algumas perguntas podem ser feitas: O fato de um ensino tão marcado
pela religião ter tanta procura não seria um indicativo de que uma grande parcela da
sociedade ainda busca princípios morais rígidos e até absolutos? O crescimento da rede
adventista de educação num tempo em que o ceticismo e relativismo ganham espaço não
parece indicar que há uma grande fatia das famílias que quer reagir à onda de ceticismo e
relativismo? Essas perguntas podem ser o ponto de partida para futuras reflexões.
Referências CUBIASD – Confederação das Uniões Brasileiras da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Pedagogia Adventista. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2004. DE - Departamento de Educação. Educação Integral Restauradora – Linha Pedagógica Adventista União Sul Brasileira da IASD. Brasília: Departamento de Educação da IASD, 2004. GAARDER, J. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. HARRIS, R. Laird, ARCHER, Gleason L., e WALTKE, Bruce. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
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