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Governo Federal Dilma Vana Rousseff Presidente Ministério da Educação Aluísio Mercadante Ministro CAPES Jorge Almeida Guimarães Presidente Diretor de Educação a Distância João Carlos Teatini de Souza Clímaco Governo do Estado Ricardo Vieira Coutinho Governador UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA Antonio Guedes Rangel Junior Reitor José Ethan Vice-Reitor Pró-Reitor de Graduação Eli Brandão da Silva Pró-Reitoria de Ensino Médio, Técnico e Educação à Distância Secretaria de Educação a Distância – SEAD Eliane de Moura Silva Assessora de EAD Coord. da Universidade Aberta do Brasil - UAB/UEPB Cecília Queiroz

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Governo FederalDilma Vana Rousseff

Presidente

Ministério da EducaçãoAluísio Mercadante

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CAPESJorge Almeida Guimarães

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Diretor de Educação a DistânciaJoão Carlos Teatini de Souza Clímaco

Governo do EstadoRicardo Vieira Coutinho

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL - UEPB

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Fone/Fax: (83) 3315-3381 - http://eduepb.uepb.edu.br - email: [email protected]

Editora da Universidade Estadual da Paraíba

DiretorCidoval Morais de Sousa

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Revisão LinguísticaMaria Divanira de Lima Arcoverde (UEPB)

Diagramação Arão de Azevêdo SouzaGabriel Granja

410 M152t Maciel, Diógenes André Vieira.

Teoria e crítica literárias II - Licenciatura em letras – Português./ Diógenes André Vieira Maciel./ Pró-Reitoria de Ensino Médio, Técnico e Educação a Distância.- Campina Grande: EDUEPB, 2013. 152 p.: il.: Color.

1. Teoria literária. 2. Crítica literária. 3. Gêneros literários. I. Título. II. EDUEPB/Coordenadoria Institucional de Programas Especiais.

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Teoria e Crítica Literárias II

Diógenes André Vieira Maciel

Campina Grande-PB2013

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Sumário

I UnidadeRetomando a teoria dos gêneros: à guisa de introdução......................7

II UnidadeA epopeia ......................................................................................31

III UnidadeA tragédia......................................................................................55

IV UnidadeA narrativa .....................................................................................77

V UnidadeO romance, o conto e a personagem.............................................103

VI UnidadeEspaço e tempo na narrativa..........................................................125

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I UNIDADE

Retomando a teoria dos gêneros: à guisa de introdução

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Apresentação

Como começar? Passei um bom tempo me perguntando isso. Afinal de contas, começar, para mim, sempre é bem mais difícil do que terminar. Ao começar, temos que sele-cionar caminhos e fazer escolhas. Lembrei-me, então, de uma personagem de um texto de Alcione Araújo, autor mi-neiro de quem eu gosto muito: e comecei. A personagem se chama Lorde, do texto A caravana da ilusão. Vagando pelo espaço sem fim, junto com a sua família – toda forma-da por artistas mambembes –, Lorde se depara com uma encruzilhada, inesperadamente, e se vê frente a “dúvidas, indecisões, desenlaces”. Se as encruzilhadas são lugares místicos, que indicam múltiplas possibilidades de caminhos, podemos, então, agora que se inicia uma nova disciplina, nos ver diante de uma série de questionamentos e também sem saber direito o que esperar diante deste outro começo. Assim, convido cada um de vocês a buscar as respostas, para esta pequena angústia do (re)começar, na literatura. É isso o que faço sempre. E foi por isso que me lembrei deste autor, deste livro e desta personagem.

Para a voz artística de Alcione Araújo, expressa nessa obra, diante de uma encruzilhada, haveria duas tomadas de posição possíveis: uma prática e outra esperançosa. Os práticos concluiriam que cada caminho levaria a um lugar distinto – então a escolha deveria ser de ordem pragmática e racional, baseada, portanto, em determinados parâmetros e critérios; de outro lado, para os esperançosos, sempre ha-veria a suspeita de que se poderia alcançar o mesmo lugar, independentemente do caminho tomado – ou seja, poderí-amos nos deixar levar pela emoção, e, assim, correríamos caminhos novos e desconhecidos, mas, sempre crendo em novas possibilidades, rumo à concretização de um objetivo, este sim já conhecido.

Todavia, para Lorde, um ser “de papel”, criado em um universo de letras e sonhos, haveria ainda o caminho de vol-

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ta... (mas, calma!) Nem de longe esta terceira via implicaria em desistir do caminho a ser trilhado. Voltar implica, sim, em desistir de certezas provisórias, assumir equívocos, abando-nar medos, incertezas e... recomeçar: olhando sempre para frente, buscando objetivos concretos, mas, também, para trás, para manter a consciência do caminho já trilhado, ava-liando também conquistas. Sempre. É assim que eu penso o nosso estudo em torno da literatura.

Os caminhos que trilharemos nesta disciplina, intitulada Teoria e Crítica Literárias II, são aqueles que nos conduzem pelos fundamentos desse campo do conhecimento artístico--literário em torno de formas da narrativa e do drama, dando sequência aos caminhos já iniciados anteriormente, quando vocês passearam pelos bosques aprazíveis do texto poético. Se não é possível mais apenas ler para se deleitar – mesmo que isso não seja pouco –, enquanto alunos de um curso de Letras e, portanto, professores em formação, temos que começar a olhar para a literatura (muitas vezes envolta em mistérios aparentemente indecifráveis) com novos olhos, e, assim, estaremos assumindo uma perspectiva como aquela evocada por Lorde, nos inícios do texto de Alcione Araújo. Para afinar este olhar, temos que nos valer, então, das ferra-mentas que nos são possibilitadas pela teoria da literatura e por toda uma tradição de crítica literária que nos ajudarão a percorrer não só os caminhos que busquem explicar de maneira sistemática a natureza da literatura, como também os que nos conduzam ao aprendizado de seus métodos e tradições de análise-interpretação.

Assim, a teoria literária será por nós entendida como o estudo de uma série de princípios e categorias da própria literatura, que nos guiam para a atividade crítico-interpre-tativa dos textos literários, vista, então, como o estudo de tais obras de arte. Serão estas balizas que nos abrirão os olhos quando estivermos diante da polissemia do texto, ou seja, diante daquele labirinto de significações, de mistérios,

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de coisas a decifrar, com as quais sempre nos deparamos e que, quase sempre, nos intimidam e assustam quando pre-cisamos analisar e/ou interpretar um poema, um conto, um romance, um texto teatral – e, conforme penso, é neste mo-mento que nos encontramos lá naquela encruzilhada à que me referia antes.

Como belissimamente nos ensina o professor Alfredo Bosi (2003), a interpretação da obra literária é aquela ta-refa que se propõe a decifrar a forma simbólica, aquilo que os sinais gráficos desenham na superfície do texto literário – em que as palavras funcionam no máximo de sua expres-sividade. Interpretar, portanto, seria escolher, “na messe das possibilidades semânticas, apenas aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer?” (p.462). Desta feita, um intérprete (na realidade, aqui, esta-mos tratando de um leitor com algum conhecimento de teo-ria literária, com certo hábito de leitura e afinado com certas questões interpretativas) seria aquele que consegue propor a uma comunidade de outros leitores (e poderíamos pensar na situação de diálogo produtivo com nossos futuros alunos em sala de aula) um sentido inteligível de um dado texto, tor-nando intercambiável sua experiência de leitura ao decifrar a questão já feita anteriormente: o que este ou aquele texto literário nos quer dizer?

Assim, poderemos, ao encontrarmo-nos diante da en-cruzilhada que um texto nos põe, escolher um caminho de interpretação dentre os vários que possam se apresentar, e este seria fruto de uma escolha guiada por algum critério teórico que nos levaria a um determinado resultado interpre-tativo. É assim que, por exemplo, um mesmo poema pode ser examinado por um viés formalista ou por outro de feição psicanalista e cada uma dessas maneiras de ler levará a uma interpretação, que não é nem mais correta, nem mais precisa que qualquer outra possível e guiada por qualquer outro modelo teórico adequado àquele texto literário. De outro lado, também, diferentes caminhos, talvez, possam le-var a uma interpretação equivalente e coerente de um mes-mo texto, mesmo que parta de diferentes leitores-intérpretes. Todavia, como Lorde, devemos, em muitos momentos, voltar atrás, para reler, repensar, refazer, corrigir, aprimorar. Creio que nenhuma análise-interpretação está fechada, pronta, acabada no momento em que nasce. Sempre temos algo mais a ler: seja um novo texto teórico recentemente publi-

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cado, seja uma análise de outro leitor que ainda não co-nhecíamos, e, assim, sempre teremos algo novo a ler e a acrescentar. Este caminho é, realmente, infinito. E, talvez, este seja o grande aprendizado. E a sua fonte de prazer – nesta busca pelo conhecimento.

Pelo jeito, começamos! Estaremos juntos nesta disciplina em que cumpriremos verdadeiras jornadas pela história das formas da Épica e da Dramática: das epopeias de Homero, lá na Grécia, ao romance moderno e contemporâneo; da tragédia grega ao drama moderno; do conto tradicional ao conto contemporâneo. Tudo isso servirá para o nosso enten-dimento de aspectos teóricos em torno de cada uma destas formas, como também para que possamos, juntos, empre-ender alguns exercícios de análise-interpretação. É esse o nosso compromisso, para o qual teremos que unir nossos braços para a execução de leituras e tarefas, mas, princi-palmente, para usufruirmos um pouco do nosso direito de sonhar, este sim o grande resultado do prazer, o qual quere-mos que se torne democrático, de ler a literatura.

Objetivos

Ao final desta aula, espera-se que você seja capaz de:

1. Discutir, criticamente, alguns aspectos teóricos, filosóficos e his-tóricos concernentes à teoria dos gêneros, diante do pensamen-to de Platão e Aristóteles;

2. Discernir a poética normativa dos gêneros da compreensão contemporânea em torno desta discussão;

3. Construir a compreensão teórica e crítica que possibilite dis-tinguir e classificar as obras literárias em gêneros, mediante a sistematização de seus traços estilísticos fundamentais.

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Retomando a teoria dos gêneros: à guisa de introdução

O que aprenderemos nesta aula?

Nesta nossa primeira aula, vamos retomar alguns ligeiros apon-tamentos sobre a polêmica em torno da classificação teórica das obras literárias em gêneros, que já foi abordada na aula 04, da disciplina Teoria e Crítica Literária I, como também na aula 03, em que se discutiam as maneiras de mimetizar/representar o mundo na literatura, este talvez um dos aspectos operacionais mais largamen-te remetidos em todo percurso de reflexão e crítica da produção estética no Ocidente. Para tanto, voltaremos a algumas discussões importantes para este debate, que vem sendo enfrentado desde a Antiguidade, buscando aprofundá-las. Portanto, será necessário que prestemos bastante atenção em cada uma das posições apresen-tadas, e que cada um de vocês já conheceu anteriormente, mas que, novamente, aparecerão aqui para que possamos retomá-las, ampliá-las e, de novo, debatê-las.

Com esta retomada, reafirmaremos alguns pontos que vocês já do-minam, com vistas, agora, às obras e textos teóricos sobre os gêneros épico e dramático, pois, apesar do caráter ao mesmo tempo artificial e aparentemente fechado destas classificações, elas se fazem necessárias para que possamos refletir criticamente sobre tais aspectos, muitas ve-zes, de ordem normativa. Em analogia com o contexto de produção de cada obra que podemos ler/interpretar-analisar, tais posições podem ser postas em xeque, para além da maneira cristalizada como os livros didáticos e alguns manuais as apresentam, como se fossem imutáveis. Todavia, nem sempre a coisa é tão fácil ou esquemática.

Tentaremos propor chaves para abrirmos algumas portas que nos facilitem caminhos para ultrapassarmos este entendimento com vistas a outro, que relacionará, por contraste e também pelas aproximações, a tradição teórico-crítica com a percepção da historicidade das formas e sua consequente utilização/manipulação pelos artistas em diferentes tempos, quando elas passam a formalizar inquietações de ordem sub-jetiva, relações sociais, aspectos da cultura, da história do homem e da arte literária, em seus diálogos com outras artes – como, por exemplo, o teatro, o cinema, a teledramaturgia. Esta perspectiva deixa às claras o caráter, ao mesmo tempo, novo e tradicional das formas artísticas, com as quais a teoria sempre tem dialogado, para ajudar o leitor a compreender aquilo com o que se depara.

Neste momento, os nossos principais norteadores, em perspec-tiva histórica – ou seja, relacionada a uma dada contextualização espaçotemporal, a saber, o mundo grego antigo – serão os filósofos

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Platão e Aristóteles, tomados como iniciadores deste amplo debate. Para facilitar o contato com suas formas tradicionais de pensar tal discussão, como também na tentativa de entender algumas das várias possibilidades de atualização de seus posicionamentos, lançaremos mão de uma série de comentadores, de suas obras e pensamento estético. Esta discussão sobre a teoria dos gêneros será nosso pri-meiro passo rumo às possibilidades de aproximação com mais textos teórico-críticos e, posteriormente, com as próprias obras literárias da Épica e da Dramática.

Perspectiva diacrônica: poética normativa dos gêneros e formas clássicas

Busto do filósofo Platão, em um dos Museus Capitolinos, em Roma.

I . O pensamento de Platão – Costuma-se afirmar que a classificação da literatura em gêneros teve sua origem em A Repú-blica1, um dos textos de Platão (filósofo grego, com datas de nascimento e mor-te entre 428/427 a.C. – 348/347 a.C.), em que, mediante a forma de diálogos, o filósofo expõe a doutrina de Sócrates, que fora seu professor. Antes de chegar-mos ao esboço platônico de uma poéti-ca dos gêneros, um dos pontos que nos interessa de perto pela intimidade com essa discussão, é aquele que diz respeito à arte, considerada como mímesis (imi-tação), em suas relações com a moral, à qual estava subordinada. Desta maneira,

só deveriam ser valorizadas as formas de arte úteis à educação, en-quanto as outras, portanto favorecedoras de corrupção, deveriam ser devidamente excluídas e condenadas (Cf. MONDIN, 2003, p. 78). Daí a afirmação bastante recorrente em torno da condenação da poesia (e, conseqüentemente, do poeta) nos escritos de Platão, notadamente, na República, todavia, também já presente em outro diálogo, o Íon2.

Comecemos nossa reflexão por este último. Sócrates, protagonista inconteste dos textos platônicos, abre debate com o rapsodo3 Íon em torno de sua relação com a epopeia de Homero, sobre a qual ele se sente proficiente, o mesmo não acontecendo em relação à obra de tantos outros poetas, para os quais não direciona nenhum interesse. Assim, verifica-se que, como já bem discutiram William Winsatt Jr. e Cleanth Brooks (1971), aquilo o que Íon diz sobre Homero e suas epo-peias, para Sócrates, não é feito por concorrência da arte e do conhe-cimento, ou seja, o rapsodo não dominaria uma técnica racional, que o capacitaria a falar sobre ou proferir versos de outros poetas, na medida em que, conforme este raciocínio, “qualquer pessoa capaz de criticar

1 Neste diálogo platônico é apresentada uma visão ideal do Estado, da polis grega, que se constituiria mediante três classes: os governantes, o exército e o povo (um conjunto complexo formado pelos artesãos, os agricultores, os comerciantes, os profis-sionais liberais e, ainda, os escravos). Esta última classe deveria estar devidamente curvada às leis que lhe seriam impostas – sua tarefa seria o abastecimento, relacio-nado à nutrição da polis. Para aqueles que comporiam o exército também uma série de direitos individuais seriam negados: não po-deriam ter posses, não constituiriam família e mesmo suas horas de lazer estariam sob intenso controle – destaque-se que até mes-mo a conjunção sexual seria vigiada (pois tinha, como finalidade única, a procriação), tendo em vista que suas atividades eram aquelas da defesa e da coragem. A classe dos governantes seria constituída por filó-sofos (ou como aparece em outros livros, os magistrados), que legislariam autorita-riamente sobre as outras classes, conside-rando a execução de suas atividades todas na esfera do pensamento. Tal concepção de Estado propunha, então, uma rigidez que se espraiava para a sua concepção do sistema educacional, também autoritária e extrema-mente rígida e excludente.

2 O Íon foi escrito no século IV, logo após a morte de Sócrates. Neste diálogo, temos dois interlocutores: o próprio Sócrates e o rapsodo Íon, que dá nome ao texto, que se encontra com o primeiro quando de seu regresso de Epidauro, onde teria conquis-tado primeiro lugar num festival de poesia (Cf. WINSATT JR.; BROOKS, 1971). Para ler o diálogo na íntegra, recorra, por exemplo, à internet: <http://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/c3adon.pdf>, onde encontramos uma tradução de Victor Jabouille.

3 Devemos chamar atenção para este per-sonagem: em relação com a nossa cultura, ele seria um misto de ator e professor de li-teratura, reunindo habilidades dessas duas profissões. Era capaz de executar récitas públicas das grandes epopeias homéricas, como a Ilíada e a Odisseia, enfatizando passagens de maior interesse para seu público, que diante de seu desempenho po-deria ir às lágrimas, como também proferia espécies de conferências de caráter crítico e moral. Era-lhe garantido um grande públi-co, diante do qual se apresentava ricamente vestido e adornado, com vistas a receber uma boa recompensa financeira, por conta de seu importante papel no sistema educa-cional grego antigo, a Paideia.

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um poeta deveria, necessariamente, ser capaz de criticar qualquer ou-tro” (p. 16). Vejamos um trecho do diálogo (PLATÃO, 1998, p. 39-40):

Um rapsodo: ânfora ática de início do séc. V.

Íon : Então, Sócrates, qual é o motivo por que, ao discutir-se outro poeta qualquer, não mostro interesse e não sou capaz de dizer nada que valha a pena e fico até sonolento? Mas quando se men-ciona Homero fico logo desperto, com o espírito atento e cheio de ideias?

Sócrates: Não é difícil de adivinhar, meu amigo. É mais que evidente para todos que tu és capaz de dissertar sobre Homero por arte e por ciência, pois, se falasses por arte, serias capaz de dissertar sobre todos os outros poetas, visto que existe uma arte poética geral. Não é?

Íon: Sim.

Ou seja, através de certa reserva em relação ao rapsodo (espécie de porta-voz ou difusor), Platão procura atingir o poeta, que também, de acordo com aquele mesmo raciocínio, não trabalharia conforme técnica artística e manipulando conhecimento, mas “apenas” sob inspiração, gra-ça divina – é este um dos pontos centrais da crítica platônica à arte poética:

Sóc.: [...] Na verdade, todos os poetas épicos, os bons poetas, não é por efeito de uma arte, mas por-que são inspirados e possuídos, que eles compõem todos esses belos poemas. [...] Com efeito, os poetas dizem-nos, não é verdade, que é em fontes de mel, em certos jardins e pequenos vales das Musas que eles colhem versos para tal como as abelhas, no-lo trazem, esvoaçando como elas. E falam verdade! [...] porque não é por uma arte que falam assim, mas por uma força divina, porque, se soubessem fa-lar bem sobre um assunto por arte, saberiam, então, falar sobre todos. E se a divindade lhes tira a razão e se serve deles como ministros, como dos profetas e dos adivinhos inspirados, é para nos ensinar, a nós que ouvimos, que não é por eles que dizem coisas tão admiráveis – pois estão fora da sua razão –, mas que é a própria divindade que fala e que se faz ouvir através deles. [...] (PLATÃO, 1998, p. 52-53)

E, sendo assim, não haveria nada de técnico nestas atividades, seja na composição seja na explanação em torno da poesia, pois todos estariam numa espécie de posição incômoda de delírio, como tomados pelos deuses, a verdadeira fonte de onde verteria a poesia. Este ele-mento ficará bem claro, se analisarmos a parte da evocação às Musas, recorrente na épica antiga e ainda presente na épica do Renascimento, por exemplo. Sobre isso trataremos na próxima unidade.

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Mas, à parte este certo carrancismo de Sócrates, a leitura deste diálogo poderia nos levar a pensar sobre, pelo menos, dois importantes princípios:

(1) a capacidade de alguém para compor poesia não o habilita necessariamente a dar “uma explicação racional dela”;

(2) a poesia não tem por objetivo formulações científicas.

Reencontraremos a desconfiança platônica em relação à poesia nos Livros II, III e X da República, nos quais nos deparamos com a objeção aos efeitos morais da poesia, por natureza opostos à virtude cívica, tendo em vista que ela lida com toda sorte de motivações e sentimentos (o bom e o mau, o prazer e a dor) e que se ocupa de “ficções”, muitas vezes con-denáveis (os deuses sendo representados como barulhentos, beberrões, falsos e vingativos; os heróis como emotivos e covardes; a malvadeza sendo louvada e os homens justos postos em situações de miséria, des-graça etc.). É nesse mesmo livro que vamos nos deparar com o concei-to de mímesis platônica, tomado como mera imitação – esta tosca ou mesmo degenerada em vista da realidade, da verdade e do mundo das ideias. Ou seja, a mímesis, neste contexto, comparece como uma noção pejorativa e de oposição à ordem da razão, indissociável da poesia e da atividade dos poetas, que deveria ser combatida e reconduzida pela moral, como bem podemos ver neste trecho, que propõe certa normati-zação da atividade do poeta, devidamente controlada pela prescrição:

[Sócrates]: – Porque diríamos, penso, que os poe-tas e os fazedores de fábulas cometem erros em re-lação aos homens, quando pretendem que muitos injustos são felizes, enquanto os justos são infelizes; que a injustiça é proveitosa se permanece oculta; que a justiça é um bem para outrem, mas para a gente um dano. Proibir-lhes-íamos semelhantes discursos e prescrever-lhes-íamos que cantassem e dissessem o contrário; não achas, também? (PLA-TÃO, 2006, p. 106-107)4

Mas, voltemos ao nosso ponto inicial. Um primeiro esboço de sis-tematização de uma poética dos gêneros na obra deste filósofo se dá quando, no Livro III da República, Sócrates explica-nos que há três tipos de obras poéticas:

[...] uma primeira espécie de poesia e de ficção in-teiramente imitativa que abrange, como já disseste, a tragédia e a comédia; uma segunda, em que os fatos são relacionados pelo próprio poeta, e hás de encontrá-la sobretudo nos ditirambos, e enfim uma terceira, formada pela combinação das duas prece-dentes, em uso na epopeia e em muitos outros gêne-ros. [p. 109-110]

Tais espécies de poesia, portanto, são formalizadas pelo emprego de três recursos: o “relato simples”, a “imitação”5 e a “mistura de ambos”.

4 As citações à República referem-se a esta edição, doravante cito apenas a pági-na.

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São estes três recursos estilísticos que nos permitem diferenciar, portanto, as espécies de poesia e, ao mesmo tempo, assemelhá-las, de acordo com a maneira como o poeta lança mão deles, no percurso criativo em si mes-mo. Desta forma, vejamos, detalhadamente, a discussão:

- Nas epopeias há:

narração, ou o “relato simples”, em 3ª pessoa (quando “o poeta fala em seu nome e não procura voltar o nosso pensamento em outro sen-tido, como se fosse outro o autor dessas palavras e não ele próprio” [p.108]), e

imitação, que se difere por ser discurso em 1ª pessoa (“Mas quando fala sob o nome de outrem, não diremos que torna na medida do possível a sua elocução semelhante à da personagem cujo discurso ele nos anuncia?” [p.108]);

- Nas tragédias e nas comédias, por sua vez, há apenas imitação, “quan-do se elimina o que diz o poeta entre os discursos e se deixa apenas o diálogo” [p. 109], que, por ocasião das representações teatrais se opera mediante atores;

- Nos ditirambos6, “os fatos são relacionados pelo próprio poeta” [p. 109].

Ou seja, nesta primeira sistematização observa-se uma compreensão básica do que tomaremos como um gênero narrativo, que, no dizer platô-nico, combina narração e imitação, formalizado nas epopeias; um outro imitativo [dramático, portanto, em que se enquadram tragédia e comédia] e um outro de expansão do próprio poeta, portanto, lírico [como se diz contemporaneamente, e que tocaria a tradição ditirâmbica, mesmo que esta ainda esteja na linha limite entre uma forma narrativa, dramática e lírica]. Esta, certamente, é a sistematização de onde todas as outras par-tem. Para finalizarmos esta pequena exposição, em torno do pensamento platônico, vamos recorrer, agora, ao texto de Battista Mondim (2003, p. 78-79), no momento em que se elencam os três motivos pelos quais, na República, se condena tragédia, comédia e a arte imitativa em geral:

a) porque representam os deuses e os heróis sujeitos a baixezas e paixões próprias da natureza humana, corroendo assim o senso religioso e fazendo que se perca o respeito aos deuses;

b) porque a arte imitativa não exprime a idéia original das coisas, a verdadeira realidade, mas reproduz as coisas que são apenas uma vaga aparição da Idéia: trata-se, portanto, de uma imitação, distante três graus da verdade;

c) porque não se funda na razão, mas no sentimento e na fantasia; e, em vez de ser um auxílio para a razão, agita as paixões, provo-cando o prazer e a dor. Há só uma arte que merece ser cultivada:

5 Devemos prestar bastante atenção a esta palavra. “Imitação”, no Livro III, é toma-da como procedimento literário, em que o poeta narra em 1ª pessoa, portanto uma acepção diferente daquela que aparecerá no Livro X, quando se utiliza a mesma pala-vra para “definir a natureza da obra poética como essencialmente mimética”, ou seja, a partir daí a própria poesia é tida como imita-ção, portanto um processo. Sobre isso, ver PLATÃO, 2006, p. 377-378.

6 Segundo Anatol Rosenfeld (1997), é esta compreensão do ditirambo que o aproxima-ria do que se toma hoje como uma possibili-dade formal dentro do gênero lírico, mesmo que sejam guardadas certas diferenças. Conforme notas a este diálogo, o ditiram-bo era um poema coral, de cunho lírico, associado ao culto dionisíaco, composto em forma de narrativa, que, depois, acabou assumindo caráter mimético. Para alguns estudiosos, é com esta abertura para o di-álogo que surge uma forma pré-dramática, talvez o princípio originário das tragédias. Todavia, os ditirambos conviviam com as formas dramáticas – tragédia e comédia – já devidamente consolidadas no contexto dos festivais atenienses, preservando seu cará-ter diferenciado daquelas.

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a música. Ela educa para o belo e forma a alma para a harmonia interior.

Portanto, como podemos atestar, no percurso do diálogo, as formas mais atacadas por Sócrates, certamente, são a tragédia e a comédia, vistas como corruptoras e pouco adequadas à educação, pois pela “imitação” se afastam da verdade, como podemos ler neste trecho em que se discute a “matéria“ e os caracteres imitados, julgando-os inade-quados à polis, por infligirem critérios de moralidade:

– Não admitiremos, pois – prossegui – que aqueles dos quais pretendemos cuidar e que devem tornar--se homens virtuosos, imitem, eles que são ho-mens, uma mulher jovem ou velha, seja no ato de injuriar o marido, ou quando se ponha a rivalizar com os deuses, para gabar-se de sua felicidade; ou se encontra na desgraça, quando se entrega ao pranto e aos lamentos; com maior razão ainda, não admitiremos que a imitem doente, apaixonada ou nas dores do parto. [p. 111]

Como veremos em aulas adiante, na Grécia, as personagens tea-trais eram representadas apenas por homens, e estes homens normal-mente estavam em fase de formação militar, daí a crítica severa aos indivíduos (e às ações por ele executadas) representados nas tragédias, notadamente, à representação de mulheres – julgadas como inferiores e sem direitos civis naquele contexto deveras androcêntrico, como o da Grécia. Pior que isso, essas mulheres eram quase sempre insurrectas contra maridos, deuses e estruturas sociais, como é o caso de Medeia, Antígona, Fedra7, capazes de, cada uma a seu jeito, dissimular, desobe-decer, mentir, trair, matar sua própria prole, lutar por direitos aos quais não tinham acesso. Ou seja, essas personagens não deveriam ser “imi-tadas” por aqueles homens responsáveis pela segurança da cidade, tidos como superiores, em seus vícios e desvios; pior, para eles, seria mesmo humilhante só e apenas “imitar” uma mulher, pois haveria sem-pre o risco de que a recorrência desta atividade “imitativa” maculasse sua formação, caráter e hábitos.

Retomando para fixar

De acordo com o que vimos acompanhando até aqui, já podemos atentar para a estreita relação entre os níveis técnicos e formais (que organizam diferentes formas poéticas por semelhanças ou distinções) e especulações sobre outras noções de ordem mais filosófica, que estariam no fundo daquela discussão, como, por exemplo, a noção de “imitação”. Considerando-se que tal noção é bastante relevante, é importante que se fixe a distinção de suas acepções no próprio pensamento platônico, com a finalidade de apreendermos este aspecto. Assim, vejamos o que nos

7 Vale a pena uma busca, em livros e/ou di-cionários de mitologia grega, ou mesmo na internet, de mais informações sobre estas personagens míticas. Todas são muito im-portantes para a tradição literária do Oci-dente. Esta primeira pesquisa acabará por auxiliar em momentos seguintes de nosso curso.

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ensina Roberto Acízelo de Souza (1999, p. p. 10-11) sobre este assunto:

No caso da análise platônica ora em considera-ção, por exemplo, a noção de imitação, inicialmen-te acionada apenas para descrever certo processo de composição literária que consiste em apresentar uma história mediante diálogos (os personagens do texto destinado à encenação teatral imitam falas e ações humanas), transforma-se num conceito-chave de vastas implicações filosóficas. Assim, a idéia de imitação, decolando de seu status primário – uma técnica ou forma poética –, mediante um percurso argumentativo que não cabe reconstituir aqui, aca-ba sustentando uma complexa teoria em que se ar-ticulam noções como verdade, justiça e educação.

Em detalhe, Platão e Aristóteles. Parte da tela Academia de Atenas (séc. XVI, de Rafael Sanzio)

II . A defesa da poesia - Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) foi outro filósofo da Grécia. Ele era discípulo de Platão e fundou posteriormente sua própria escola, o Liceu, quatorze anos depois da morte de seu professor. Seus escritos sobre esté-tica estão reunidos em duas obras: a Retórica8 e a Poética. Neste curso, vamos nos deter sobre a última, composta, na verdade, como um conjun-to de notas, possivelmente para serem utilizadas em suas aulas, mas que se tornaram célebres para toda a compreensão posterior sobre a natureza e divisão sistemática das artes, notadamente por se configurarem como uma espécie de resposta ao pensamento platônico, constituindo uma defesa

da poesia e uma reconfiguração do conceito de mímesis. Nessas notas, para alguns, incompletas (especula-se sobre uma parte, perdida no trans-curso do tempo, que versaria sobre a comédia), discute-se, com bastante detalhamento, a tragédia – vista como uma forma superior à epopeia, o que marca um traço bastante distinto em relação ao que vimos na Repúbli-ca. Este será um dos assuntos da nossa próxima aula.

Tratemos, então, primeiramente, daquilo que se refere à poesia en-quanto arte mimética por excelência. Para tanto, vejamos o que nos ensi-nam, de início, William Winsatt Jr. e Cleanth Brooks (1971), sobre o esfor-ço da tradição aristotélica em considerar a acepção de mímesis, em suas relações de proximidades e distanciamentos da concepção de Platão:

[...] Este termo que, para Platão, significava afas-tamento da realidade e distorção (pelo menos quando relacionado com a arte), é aplicado por Aristóteles no sentido de alguma coisa manifesta-mente melhor do que a realidade, muito embora possamos experimentar alguma dificuldade em compreender tal fato. [...] (p. 39).

A partir deste argumento, podemos começar a compreender esta nova noção de mímesis, usada para definir todas as artes como imi-

8 Como afirma Barnes (2009), a retórica, para Aristóteles, é vista também como uma arte: a da persuasão.

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tativas e para designar uma capacidade congênita do ser humano. Vejamos o que o filósofo afirma:

Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, ge-raram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.9

Ou seja, a mímesis geraria, portanto, prazer pelo contato com o produto da imitação, o que põe em relevo a capacidade de recriar artisticamente a realidade. Mais ainda, a mímesis torna-se, então, um processo produtivo, (re)criativo, pronto para designar também a ca-pacidade mesma do artista para lidar com os dados da realidade, na esfera do crível e do possível, no campo da poesia e das outras artes. Ou seja, as relações entre o “modelo” da imitação e o seu “produto” artístico tornam-se, assim, bem menos problemáticas – cabendo, inclu-sive, diversos graus de liberdade artística, ou mesmo de idealização, em relação aos “modelos”, o que pode compreender certo grau de aperfeiçoamento formal e não, apenas, de deformação, como propu-nha a tradição anterior:

Se a tragédia é imitação de homens melhores que nós, importa seguir o exemplo dos bons retratistas, os quais, ao produzir a forma peculiar dos mode-los, respeitando embora as semelhanças, os embe-lezam. Assim, também, imitando homens violentos ou fracos, ou com tais outros defeitos de caráter, devem os poetas sublimá-los, sem que deixem de ser o que são. [...] (p. 124-125).

Vemos que, em Aristóteles, a questão a ser discutida é a própria arte – os produtos artísticos e não apenas os modelos, marcando mais um ponto de diferenciação em relação às questões levantadas na República. Constrói-se, portanto, uma espécie de defesa da poesia, oposta ao ataque empreendido por Platão, na medida em que ela passa a ser entendida mediante seu caráter bastante peculiar: é algo mais filosófico e mais elevado que a história, visto tratar do universal e não do particular.

Portanto, a poesia não se interessa pelo que aconteceu, mas por aquilo o que pode acontecer, sempre dentro da esfera da plausibilidade – e aqui devemos destacar a questão da verossimilhança e da necessida-de, outros termos que também discutiremos nas aulas seguintes. De outro lado, destaca-se também a necessária visão de que erros em poesia são diferentes dos erros no campo da política, outra vez num raciocínio bas-tante diferente daquele empregado na República. Vejamos:

9 As referências ao texto aristotélico são todas retiradas da tradução de Eudoro de Souza. Assim, citamos, apenas a paginação. Para aprofundar o estudo deste texto, reco-menda-se a sua leitura, na íntegra, sempre que possível.

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O poeta é imitador, como o pintor ou qualquer ou-tro imaginário; por isso, sua imitação incidirá num destes três objetos: coisas quais eram ou quais são, quais os outros dizem que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser. Tais coisas, porém, ele as re-presenta mediante uma elocução que compreende palavras estrangeiras e metáforas e que, além dis-so, comporta múltiplas alterações, que afetivamente consentimos ao poeta.Acresce, ainda, que não é igual o critério de corre-ção na poética e na política, e semelhantemente, o de qualquer outra arte, em confronto com a poesia. Na arte poética, erros de duas espécies se podem dar: essenciais ou acidentais. Portanto, se propos-tos tais objetos, a imitação resulta deficiente por in-capacidade do poeta, o erro é intrínseco à própria poesia; se, pelo contrário, o defeito consiste apenas em não haver concebido corretamente o objeto da imitação – como querendo imitar um cavalo que movesse ao mesmo tempo as duas patas do lado direito –, o erro não é intrínseco à poesia, como não o é qualquer que se cometa relativamente a uma arte particular (Medicina ou outra), ou quando se representam coisas impossíveis. (p. 143)

Mediante a leitura deste excerto, podemos inferir que cada arte teria suas próprias regras de criação, ou de imitação/representação da reali-dade, e que tais regras também seriam diferentes das regras políticas, o que marcaria uma dissociação de uma em relação à outra. É interessante considerar que, mesmo com todos os avanços, o pensamento aristotélico ainda tem caráter normativo em relação à composição, compreendendo a dimensão do erro, do defeito em que podem incorrer os poetas, afe-tando o resultado do produto estético, ou não. Mas, esta definição, por-tanto, não se quer científica, como se propusera no Íon, mas, de fundo artístico-estético. Esta, certamente, era uma visada nova e que modificou o entendimento posterior.

Atividade IPara aprofundar esta questão, sugere-se a leitura de Antoine Compagnon, no capítulo “O mundo”, do seu livro O demônio da teoria, apresenta a polêmica travada por diversas correntes da teoria literária, no século XX, com a noção aristotélica de mímesis, que toma a literatura como imitação/representação da realidade e, consequentemente, do mundo. No conjunto dessa leitura, vale destacar dois pontos especialmente interessantes, e ainda relacionados ao texto aristotélico:

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a) a mímesis produz um artefato poético; assim, a ênfase da análise para o filósofo grego recai sobre a técnica da representação, que estrutura um enredo, uma história que se conta. Dito isso, podemos, então, concluir que a preocupação central é com a maneira como as partes se organizam em um objeto ficcional. Este processo, portanto, é que é mimético e dado pelo arranjo da linguagem com a qual se produz uma ficção poética verossímil;

b) sendo assim, a mímesis passa a ser atividade criativa e não mais cópia degradada da verdade, pois não mais tem compromisso com ela: implica, antes, em construção de conhecimento, e não de uma cópia ou réplica, no âmbito da recepção da obra. Ela, portanto, deixa de implicar em cópia estática e passa a produzir e a atuar numa dada experiência.

Assim, de posse desse texto, apresente as diversas posturas teóricas que o autor discute, tentando montar um quadro elucidativo das mesmas. Esta tarefa, que exige bastante atenção aos diversos autores, títulos de obras e contextos discutidos, deve ser amplamente discutida com os demais colegas de curso, de modo a tornar o debate proveitoso.

III. Aristóteles e as espécies imitativas da poesia - Na Poética, define-se poesia como imitação logo em seus inícios, e formula-se, também, a sua divisão em diferentes espécies, que se distinguem mediante três aspectos da imitação – que serão tomados como traços distintivos, vá-lidos como critérios de classificação em gêneros, todavia numa visada bastante diferente daquela que já discutimos em Platão. É válido que se destaque, ao mesmo, este trecho do filósofo grego:

A epopeia, a tragédia, assim como a poesia diti-râmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações. Diferem, porém, uma das outras, por três aspectos: ou porque imi-tam por meios diversos, ou porque imitam objetos diversos, ou porque imitam por modos diversos e não da mesma maneira. (p. 103)

Começamos, então, a compreender que a mímesis se dá mediante estes três aspectos: os meios utilizados (o ritmo, o canto, o metro), os objetos da representação (“homens que praticam alguma ação”) e os dois modos principais (o modo dramático e o modo narrativo/épico). Vejamos, pois, cada um deles mais detidamente:

a) Os meios de imitação – no caso da poesia distingue-se, de um lado, poesia ditirâmbica e, de outro, tragédia e comédia. Todas elas têm ritmo, melodia/canto e versos metrificados, mas os ditirambos utili-zam todos estes elementos ao mesmo tempo, enquanto a tragédia e a comédia os utilizam separadamente, em suas diversas partes constitutivas;

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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b) Os objetos da imitação – conforme Aristóteles, “os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole” (p. 105). Assim, distin-gue-se a tragédia da comédia e assemelha-se a tragédia à epopeia considerando-se a espécie de homens que cada uma dessas formas representa: “homens superiores” (tragédia, epopeia) e “homens in-feriores” (comédia);

c) Os modos da imitação - são dois os modos fundamentais: o narrativo e o dramático. No primeiro caso, o poeta narra em seu próprio nome ou assume personalidades diversas (caso da tradição ditirâm-bica e da épica – que também compreende uma narrativa mista, próximo ao que Platão também propunha –, diferenciada das for-mas dramáticas por este critério); no segundo caso, os atores agem, representando diretamente a ação imitada (é por esse critério que se assemelham tragédia e comédia).

Se faz necessário, a esta altura, citar um trecho da Poética, para fins de uma melhor explicação:

Há ainda uma diferença entre as espécies [de po-esias] imitativas, a qual consiste no modo como se efetua a imitação. Efetivamente, com os mesmos meios pode um poeta imitar os mesmos objetos, quer na forma narrativa (assumindo a personalida-de de outros, como o faz Homero, ou na própria pessoa, sem mudar nunca), quer mediante todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mes-mas. Consiste, pois, a imitação nestas três diferen-ças, como ao princípio dissemos – a saber: segun-do os meios, os objetos e o modo. Por isso, num sentido, é a imitação de Sófocles a mesma que a de Homero, porque ambos imitam pessoas de ca-ráter elevado; e, noutro sentido, é a mesma que a de Aristófanes, pois ambos imitam pessoas que agem e obram diretamente10. (p. 105-106)

Neste trecho, portanto, teríamos uma espécie de retomada do que discutimos acima, no que concerne aos aspectos pelos quais a mímesis se dá, marcando identidade ou diferença, entre as espécies poéticas. Assim, podemos afirmar que, no pensamento aristotélico, já teríamos uma siste-matização de espécies poéticas, ou, como estamos chamando aqui, as formas, o que dá conta de uma possibilidade de ordem genérica, a saber:

• o gênero épico (narrativo, em que o poeta narra em seu próprio nome ou assume a personalidade de outros de acordo com as necessidades, caso das epopeias homéricas) e o

• gênero dramático (em que se dá a imitação mediante a ação de agentes no drama, sem concurso de um narrador épico plenamen-te configurado, em textos que se destinam à representação teatral).

10 Homero é um aedo, palavra que vem do grego aoidós, ou seja, um “cantor” – é quem compõe e canta a poesia épica, como a Odisseia e a Ilíada, as mais conhecidas e famosas epopeias, que, na Grécia, não eram lidas, mas cantadas. Sófocles e Aristófanes, por sua vez, são, respectivamente, um tra-gediógrafo (aquele que escreve tragédia) e um comediógrafo (aquele que escreve comédias), ambos importantíssimos para a tradição da Dramática. Valeria a pena uma pesquisa em sites da internet ou em livros, para que se possa conhecer melhor a pro-dução destes dois autores sobre os quais também trataremos mais adiante.

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• também, teríamos uma aproximação ao gênero lírico, mesmo que ainda sempre se fale em narrativa, quando se mencionam os ditirambos: ([narrativa] “na própria pessoa sem mudar nunca”).

Daqui por diante, buscaremos entender a teoria dos gêneros, con-forme ela se apresenta nas suas formulações mais contemporâneas, certamente, devedoras dessas mais antigas. Mas, antes, vamos propor uma atividade para que possamos organizar melhor o nosso aprendi-zado até aqui. Vamos lá?

Atividade II

Considerando os apontamentos sobre as concepções filosóficas em torno da poesia e suas formas na Antiguidade, apresente:

a) as diferenças entre as formulações em torno do termo mímesis, na República e na Poética;

b) a maneira como cada um dos filósofos apresentados estabelece métodos de organização e sistematização das obras poéticas, destacando os princípios formuladores de uma teoria dos gêneros em ambos;

c) como se distinguem ou se assemelham, por exemplo, tragédia e epopeia.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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Gêneros literários: traços estilísticos fundamentais

Conforme estamos acompanhando, o início da teoria dos gêneros literários é bastante antigo e remete aos escritos filosóficos da Antigui-dade Clássica, cujas proposições ainda são o alicerce de quaisquer das mais modernas teorias sobre este assunto. Todavia, como quase toda conceituação, essa “teorização”, que divide as obras literárias em três grandes gêneros (o Épico, o Lírico e o Dramático), é, até certo ponto, bastante artificial, visto que estes acabam quase sempre sendo tomados como divisões completamente estanques: como se fossem uma espécie de grande armário com gavetas, onde, simplesmente, as obras vão sendo encaixadas, mediante critérios aparentemente mecânicos.

Na Antiguidade, conforme Souza (1999, p. 12), a concepção em torno dos gêneros seguiria três princípios:

normatividade (cada gênero tem suas regras de composição); hierarquia (há gêneros tidos como superiores – por exemplo, a tragédia – e outros con-siderados inferiores – por exemplo, a comédia); pu-reza (não se admite em princípio a possibilidade de uma obra combinar elementos de gêneros diversos).

Depois, na Idade Média e no Renascimento, mesmo que as refle-xões ainda estivessem estreitamente vinculadas às matrizes filosóficas da Antiguidade, emergem outras formas artísticas, para além da epopeia, tragédia e comédia, por exemplo, como as diversas formas líricas – das quais se destacará o soneto – e formas narrativas em prosa, como os romances de cavalaria. No que concerne ao gênero dramático, vê-se a irrupção das farsas e dos autos de caráter religioso, ainda muito associa-dos à Igreja, mas, também, surgem as formas do drama, já atreladas ao universo da burguesia emergente – muitas vezes cruzando-se os limites entre tragédia e comédia. Todavia, será com o alvorecer do Romantismo que esta teorização será mais amplamente desestabilizada, de acordo com o espírito de ruptura deste momento das artes, havendo a definitiva canonização do drama e do romance, enquanto formas literárias moder-nas, e a crescente liberdade do lirismo em relação às formas canônicas do período clássico, agora entregue aos arroubos de subjetividade dos poetas.

No século XX, ainda conforme Souza (1999, p. 15), “põe-se em dú-vida a própria pertinência do conceito, sob o argumento de que as obras literárias, produtos da criatividade livre e individual, não se deixam en-quadrar nos esquemas genéricos”. O que pretendemos discutir aqui se-gue esta linha de raciocínio: mesmo que tais critérios ainda tenham uma validade enquanto princípio de ordenação bastante amplo, os autores (contemporaneamente) NÃO precisam escrever suas obras preocupados com qualquer espécie de sistema normativo, em que, obrigatoriamente, as realizações artísticas seguiriam, à risca, as determinações estilísticas de

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cada concepção genérica, de modo a responder a certa necessidade de “pureza” absoluta de cada gênero, conforme prescreveriam determina-das escolas estéticas ou períodos históricos.

De outro lado, também devemos voltar nossa atenção ao fato de que a designação “gênero” não deve ser usada, indistintamente, para referirmo-nos tanto às três categorias primordiais já citadas quanto às suas espécies históricas, como a tragédia, a comédia e a epopeia, o romance, o conto, o drama moderno, o soneto, a ode etc., a que pre-ferimos chamar de formas. Essa sutileza será detalhada e devidamente explicada, nesta e em nossas próximas aulas, na medida em que os ca-sos específicos comecem a surgir, todos inseridos no terreno das formas históricas de arte.

Como bem já pontuou Anatol Rosenfeld (1997), a longa duração e permanência desta discussão já atestariam sua posição enquanto in-dispensável por conta da “necessidade de toda ciência de introduzir certa ordem na multiplicidade de fenômenos” (p. 16). Assim, confor-me apontamentos deste mesmo autor, seria possível reunirmos, num quadro esquemático, os traços estilísticos fundamentais de cada um dos gêneros. Vejamos alguns desses apontamentos, acompanhando o quadro abaixo:

TRAÇOS ESTILÍSTICOS FUNDAMENTAIS DA CADA GÊNERO, CONFORME ANATOL ROSENFELD

GÊNERO LÍRICO GÊNERO ÉPICO GÊNERO DRAMÁTICO

a) Definido como o mais subjetivo, uma vez que, em suas formas, uma voz central exprime seus estados de alma;

b) Destaca-se a extrema concisão de linguagem mediante uma extrema intensidade expressiva;

c) Não há configuração nítida de personagens, na medida em que qualquer configuração mais nítida deste elemento já implicaria em traços descritivos e narrativos;

d) Não há distância entre sujeito e objeto, “alma que canta” e o mundo;

e) Uso constante de recursos rítmi-cos e da desreferencialização da linguagem;

f) Preponderância da voz no presente.

a) Define-se um narrador, sempre presente no ato de narrar, me-diador entre o leitor e o universo representado;

b) Este narrador narra sua história a alguém;

c) No âmbito formal, verifica-se a utilização de sintaxe e lingua-gem mais lógicas que no gênero lírico;

d) Há a distensão e/ou quebra das unidades tradicionais de ação, tempo e espaço;

e) Preponderância da voz narrativa no pretérito, o que marcará a distância entre o narrador e o mundo, permitindo tomada de atitudes distanciadas e objetivas.

a) O mundo apresenta-se, no âm-bito da representação artística, seja na literatura/dramaturgia seja no teatro, como emanci-pado, autônomo de qualquer mediação e de qualquer sujeito (seja épico ou lírico);

b) O texto dramático constitui um TODO, formado pela interação dinâmica das partes, concentra-das em três unidades básicas: ação, tempo e espaço – unas e obedientes a este mesmo princípio;

c) Elemento central é a persona-gem, que age e cujas “concep-ções de mundo” nos são veicu-ladas mediante o “diálogo” que estabelece o “conflito”;

d) O tempo está, de acordo com a regra unitária, preponderante-mente, no presente.

Seguindo as indicações deste quadro, poderíamos classificar obras em cada um desses gêneros, mediante o entendimento de sua tessitura

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estilístico-formal, e aí estaríamos ainda atrelados àquela concepção que os tomaria como “puros”. Todavia, como bem poderemos atestar, desde a Antiguidade, os gêneros se interpenetram, se intercomunicam, se hibridizam, assumindo, de acordo com as diferentes possibilidades de representação do real, a “mistura” como princípio formalizador, por mais que isso contrarie muitas das escolas e/ou filosofias estéticas mais fechadas, basta atentarmos ao fato de que, por exemplo, numa tragé-dia, já temos interferências do épico-narrativo nas intervenções córicas (do coro, a parte formal que represente a coletividade em embate com a individualidade), ou mesmo em falas de personagens individuais, que, ao se expressarem sentimentos do seu mundo exterior, também podem já tocar a esfera do lirismo.

Assim, preferimos assumir, junto com Anatol Rosenfeld (1997), que seria mais prudente tratarmos dos gêneros em duas acepções: uma de ordem substantiva – ou seja, quando “lírico”, “épico” ou “dramático” dizem de elementos das estruturas fixas dos gêneros, ou seja, aqueles apresentados no quadro 1 – e outra de ordem adjetiva – que se refere a dados traços estilísticos que podem permear uma obra, seja qual for seu gênero dominante, daí hoje, em teoria e crítica, ser comum se falar em “drama épico”, “drama lírico”, “episódios líricos de um romance”, “lirismo do narrador”, “poema narrativo” etc. Estas dimensões também serão, com certeza, tratadas e devidamente exemplificadas nas nossas próximas aulas. O que temos que ter às claras é que, para além da sistematização imposta por necessidades didáticas, não mais podemos tratar de “pureza” em literatura, princípio este só considerável em as-pectos ainda muitos atrelados às poéticas normativas. Mesmo que não possamos esquecer tais questões, de suma importância para a com-preensão de toda uma tradição crítica, temos que abrir mão da norma para que possamos entrar no terreno da história de cada texto, em suas amplas relações com seus contextos de produção e recepção. Isso é um pouco do que faremos seguidamente. Até lá!

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ResumoNesta Unidade, trata-se da discussão em torno da classificação teórica

das obras literárias em gêneros, de acordo com as formas de mimetizar/representar o mundo na literatura. Para tanto, recorre-se ao início deste debate na Antiguidade, no pensamento dos filósofos Platão e Aristóteles, para se chegar às discussões mais contemporâneas, problematizando o caráter ao mesmo tempo artificial e aparentemente fechado destas classi-ficações, no âmbito das poéticas normativas, até se chegar às proposições das concepções históricas, mais produtivas em seus diálogos com relações sociais, aspectos da cultura, da história do homem e da arte.

Leituras recomendadas COMPAGNON, Antoine. O mundo. In:__. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fontes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. p. 96-138.

Neste texto, o autor se insere na discussão crítica, travada por diversas correntes da teoria literária, no século XX, em torno da noção aristo-télica de mímesis, mediante a qual se toma a literatura como imita-ção/representação da realidade e, consequentemente, do mundo. Tais correntes discutem o estatuto desta vinculação, mas, paradoxalmente, muitas delas ainda reivindicam a Poética como discurso fundador, e, neste texto, a noção de mímesis é primordial à própria definição de lite-ratura/poesia. Certamente, a leitura e discussão deste capítulo podem ampliar o nosso horizonte, inclusive se atentarmos para as divergências entre os críticos cotejados e, notadamente, para os conceitos de “dia-logismo” e de “intertextualidade” apresentados, ambos instauradores de uma nova referencialidade para literatura, que substitui a realidade – visto a própria tradição tornar-se seu referente.

ROSENFELD, Anatol. A teoria dos gêneros. In: __. O teatro épico. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 13-36.

Introdução a uma teorização mais ampla sobre o teatro, este texto é essencial para que se construa um panorama amplo em torno da discussão sobre os gêneros literários, da Antiguidade até a con-cepção em torno da “adjetivação” dos gêneros, vistos como traços estilísticos dos quais uma obra pode lançar mão, em maior ou me-nor grau. São tais traços que acabam rompendo com a noção de “pureza”, quase sempre elencada como um critério classificatório, marcando o caráter artificial da divisão radical que se abre para a compreensão histórica dessa discussão.

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Autoavaliação

Leia e reflita sobre o excerto abaixo. Após esta etapa, busque redigir um pequeno parágrafo, de modo que, nesta reflexão, você consiga retomar os principais pontos apresentados nesta aula. Aproveite este momento para avaliar seu desempenho, tentando identificar os pontos positivos e as possíveis fragilidades na compreensão:

A teoria dos gêneros é um princípio ordenador: classifica a literatura e a história literária não em função da época ou do lugar (por épocas ou lín-guas nacionais), mas sim de tipos especificamen-te literários de organização ou estrutura (WELLEK; WARREN, 1962, p. 286).

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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BARNES, Jonathan. Retórica e poética. In: __. (Org.) Aristóteles. Tradução de Ricardo Hermann Ploch Machado. Aparecida, SP: Idéias&Letras, 2009. p. 329-360.

BALME, Christopher B. Theories of theater 1: historical paradigms. In: __. The Cambridge introduction to theatre studies. New York: Cambridge University Press, 2008. p. 65-77.

BOSI, Alfredo. A interpretação da obra literária. In: __. Céu e Inferno: ensaios críticos e ideológicos. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, p. 461-479.

MONDIN, Battista. Curso de Filosofia: v. 1 – Os filósofos do Ocidente. Tradução de Bênoni Lemos. Revisão de João Bosco de Lavor Medeiros. 12. ed. São Paulo: Paulus, 2003.

PLATÃO. A República de... Organização e tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006.

PLATÃO. Íon. Introdução, tradução e notas de Victor Jabouille. Lisboa: Editorial Inquérito Limitada, 1988.

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SCHÜLLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Gêneros literários. In: JOBIM, José Luís (Org.). Introdução aos termos literários. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p.09-67.

WINSATT JR., William K; BROOKS, Cleanth. Crítica literária: breve história. Prefácio de Eduardo Lourenço. Tradução de Ivette Centero e Armando de Morais, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1971. (capítulos: “Sócrates e o rapsodo”, p. 13-32; “A resposta de Aristóteles: poesia como estruta”, p. 33-74)

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II UNIDADE

A epopeia

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ApresentaçãoNesta unidade, vamos aprofundar alguns pontos apenas

introduzidos na anterior, principalmente aqueles que se re-ferem à tradição clássica, em suas formas do gênero épico. Obviamente, não é nosso objetivo aqui esgotar este assunto, verdadeiramente inesgotável, mas apontar algumas questões que julgamos pertinentes para a formação do professor de literatura. Na nossa próxima aula, ainda retomaremos alguns aspectos concernentes à tradição clássica, todavia, serão aque-les que tocam, em suas semelhanças e diferenças, a forma da tragédia, introduzindo, assim, alguns primeiros apontamentos sobre o gênero dramático.

É bastante comum ouvirmos algo como: “Gosto de filmes épicos”. A palavra épico, aqui, está sendo usada em função adjetiva, sendo derivada de outra que, como vimos, serve para designar um gênero (a Épica) ou a forma artístico-literária (a epopeia) presente em nossa tradição desde os tempos mais antigos. A epopeia, enquanto forma do gênero épico, remete à nossa necessidade ancestral de contar uma estória antiga, passada em tempos imemoriais, na qual heróis desfilam sua bravura e, ao mesmo tempo, suas fragilidades perante os deu-ses; hoje, todavia, ao falarmos em épico, dizemos tanto dessa grande narrativa como também nos referimos a uma posição heróica, grandiosa de um indivíduo, ou mesmo tratamos de um grande evento que gerou uma modificação.

São épicos, por este raciocínio, tanto os filmes que repre-sentam o mundo antigo ou que, por exemplo, se relacionam às narrativas bíblicas como Os dez mandamentos (de 1956, em torno dos feitos de Moisés e do povo hebreu), ou mesmo aque-les que têm um contorno histórico, como ...E o vento levou (de 1939, adaptação de um romance estadunidense, ambientado em plena Guerra Civil). Também seriam épicos aqueles filmes cheios de ação e de efeitos especiais, por alguns chamados de ficção científica, caso de Guerra nas Estrelas (uma enorme saga, em seis partes, iniciada na década de 1970 e encerrada nos anos 2000). O que reúne todos estes filmes, portanto, é uma espécie de princípio de heroísmo, contido numa narrativa extensa, e que nos fascina pela possibilidade de travar contato com nossos próprios desejos, sonhos e fantasias sobre o mun-

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do e sobre nós mesmos. Afinal, como não se encantar diante de cada uma dessas histórias?

Assim, o conceito de épica se ampliou para além da forma artístico-literária (e aqui falaríamos da epopeia) e ganhou ou-tros rumos, tornando-se uma maneira de compreender o mun-do pela narração e memória de grandes eventos ou feitos.

Por este raciocínio, a todo tempo, estamos tendo contato com saberes cruzados que, de tanto serem remetidos, acaba-ram se cristalizando numa área de conhecimento comum a to-dos, indistintamente, sem que saibamos de onde eles nos che-gam. São muitas as referências culturais que nos reconectam à tradição antiga e ao legado de histórias de heróis como Ulisses – que na volta da Guerra de Troia, quer, antes de tudo, não se perder no caminho do retorno para a sua casa, em Ítaca –, ou Aquiles – o mais venerável de todos os heróis gregos, lutador exímio que se destacava à frente de exércitos na batalha pela retomada de Helena, nos campos de luta troianos –, e, vez ou outra, ainda nos aparecem expressões como “minha vinda para cá foi uma verdadeira odisseia” ou “esse é o meu tendão de Aquiles”, reveladoras do quanto a mais antiga tradição ain-da é viva e presente em nosso cotidiano. É sobre isso que nós iremos tratar.

ObjetivosAo final desta unidade, esperamos que você seja capaz de:

1. Definir, teoricamente e mediante a apreensão de elementos estético-formais, a epopeia.

2. Compreender e discutir a forma e alguns temas da epopeia em diferentes contextos de produção;

3. Ler, a partir de um estudo básico da estrutura formal, textos concernentes à tradição clássica da Épica.

Para atingirmos estes objetivos, se faz necessário, antes de tudo, dedicação à leitura atenta de todo o material indicado, para que, as-sim, este conteúdo que se refere a um tempo bastante distante de nós possa ganhar sentido para o nosso tempo e para a nossa formação profissional. Temos que entender que o antigo nos faz modernos, neste caso, quando conseguimos transpor suas dificuldades e atingir a com-preensão de nosso próprio mundo e realidades.

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Um incrível mundo narrativoI. A epopeia: Como já bem destacou João Adolfo Hansen (2008, p.

17), no mundo antigo, a epopeia era uma forma artística que “narrou a ação heróica de tipos ilustres, fundamentando-a em princípios ab-solutos, força guerreira, soberania jurídico-religiosa, virtude fecunda.” Como tal, devemos compreendê-la como uma forma fechada e que poderia, inclusive, ser tratada “arqueologicamente”, tendo em vista seu contexto de produção, a saber, a Grécia Antiga, mesmo que tenha tido aproveitamentos posteriores em Roma e, até o século XVIII, em tantas outras tradições, como a de língua portuguesa, por exemplo.

Sobre este caráter fechado, para um maior aprofundamento, tería-mos que remeter ao famoso estudo do teórico húngaro Georg Lukács (1920 [2000]), A teoria do romance, no qual se estabelece uma poéti-ca histórico-filosófica das formas épicas. Como não cabe, aqui, esta discussão extremamente ampla, vamos rapidamente apontar para o que Angélica Soares destaca, no tocante à permanência do épico para além das epopeias:

A epopeia que, segundo Lukács, corresponde a um tempo anterior ao da consciência individual e, por-tanto, voltado para o destino de uma coletividade, não se manteve em nossa época, que se caracte-riza sobretudo pelo individualismo e pelo investi-mento nos domínios do inconsciente humano. O sentido épico, no entanto, se manifesta toda vez que se tem a intenção de abarcar a multiplicidade dinâmica da realidade em uma só obra, criando-se uma unidade (SOARES, 2007, p. 42).

Ao falarmos de epopeia, estamos lidando com uma tradição de tex-tos afastada no tempo e no espaço de nossa realidade atual, todavia, ainda com amplas relações em obras de nosso tempo, daí podermos falar de um sentido épico em certos romances, que tocam as esferas da virtude guerreira e idealizada de um herói, seja para louvá-lo ou para problematizá-lo, ou mesmo todos os ecos dos mitos gregos, tão pre-sentes em nosso imaginário. Por seu turno, a forma do romance, que se não tem relação “genética” ou “hereditária” com a epopeia, pode ser tomada como representativa do gênero épico no mundo burguês, vol-tada para a representação do homem enquanto indivíduo, ao contrário do herói da epopeia, representante de uma coletividade.

O paradigma épico – ou seja, o modelo, o ideal a ser atingido, ou mesmo superado – é aquele presente nas epopeias homéricas Odisseia e Ilíada, da tradição grega, que foram emuladas1 em Roma, na Eneida, de Virgílio, e, por exemplo, em língua portuguesa, n’Os Lusíadas (data-do de 1572), de Luís Vaz de Camões. Vejamos, sobre isso, o que afir-mam António José Saraiva e Óscar Lopes, ao tratar do aparecimento da epopeia, em Portugal, no contexto do século XVI, em suas relações com a tradição que a precede:

1 Sobre isso, já afirmou HANSEN (2008, p. 20): “Emula-se o que se admira e ama: por outros meios materiais e modos miméticos, o poeta inventa o poema como forma aná-loga – mas não idêntica – à da obra autori-zada do costume, competindo com ela em engenhosidade e arte. A emulação efetua o prazer do destinatário culto, capaz de reco-nhecer o engenho e a perícia técnica do poe-ta como compositor da fábula.” Emular, por-tanto, não é meramente copiar, ou roubar, mas um trabalho que propõe ao leitor ideal (culto) o reconhecimento da fonte, além do reconhecimento do trabalho técnico e de composição do poeta emulador.

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Excerto 1: O gênero épico, isto é, narrativo, tinha para o classicismo do Renascimento certas regras abstraídas de modelos, que eram sobretudo a Ilíada e a Odisseia homéricas, a Argonáutica de Apolônio de Rodes e a Eneida de Virgílio. Assim se impusera o esquema de uma intriga dos deuses, divididos em partidos, numa determinada ação humana (uma guerra, uma viagem marítima...). A Eneida, embo-ra se tenha destacado muito de entre os poemas heróicos em latim, deve considerar-se uma fonte já secundária destas regras, porque surgiu como repto imitativo aos poemas homéricos.Ora estes correspondem a uma fase civilizacional de que Virgílio e os poetas do Renascimento já es-tavam muito afastados. Para Homero, os deuses constituíam entidades reais, forças superiormente vivas, e por isso voluntárias e antropomórficas, que irrompiam da realidade e que participavam nas lutas dos bandos dos guerreiros ou piratas dos ar-quipélagos e costas do Mediterrâneo oriental, vá-rios séculos antes de Cristo. Cada qual deles está pessoalmente empenhado em alcançar a vitória para o seu bando de adoradores, e portanto o seu critério do justo é o de um clã. Os homens, por sua vez, pondo à prova os seus músculos em combates singulares, ou a sua astúcia em enganar o adversá-rio, e até os deuses adversos, ganham proporções sobre-humanas, candidatam-se à imortalidade. [...] (SARAIVA; LOPES, 2005, p. 326).

Há duas questões, então, a serem tratadas. A primeira delas diz res-peito ao diálogo travado entre os textos épicos na tradição e no tempo, fazendo com que o leitor estabeleça uma comunicação dentro deste paradigma. É o que podemos atestar, por exemplo, ao lermos o primei-ro verso do poema de Camões: “As armas e os barões assinalados...”, no qual fica bastante óbvia a emulação daquilo o que temos, também, no primeiro verso do poema de Virgílio: “Arma virunque cano” (“Canto as armas e o varão”). No verso camoniano, “armas” é referência aos feitos militares e à história anterior portuguesa (como os episódios re-gistrados pelos cronistas da Idade Média), ligada à fórmula “barões assinalados”, citação aos homens fortes, viris (os “varões”), destacados por seus feitos memoráveis e passíveis de eternização pelo canto épico.

É desta maneira que essa fórmula se conecta, junto ao destinatário culto, ou seja, que domina o repertório, formado pela tradição prece-dente dentro do gênero épico, neste caso, a epopeia de Virgílio, que é já uma “fonte secundária” e bastante distante, no tempo, da tradição grega, de onde advém o seu modelo – visto Camões tematizar a guerra e a errância, como dupla emulação de Homero, respectivamente: da Ilíada (que trata de episódios da Guerra de Tróia, em seu décimo ano de combates) e da Odisseia (a narrativa em torno do retorno de Ulisses/Odisseu, perdido no mar, após esta mesma guerra) –, sem que sejam desconsideradas outras fontes épicas, como veremos abaixo.

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O modelo formal para Camões, portanto, mesmo dialogando com a narrativa de Virgílio, ainda era o homérico, também conforme os mesmos autores anteriormente citados, na medida em que, no Renas-cimento, se tornava importante o diálogo com as formas clássicas no tocante ao trabalho de um poeta que buscava engendrar os feitos his-tóricos do seu país numa forma artístico-literária de prestígio:

Excerto 2: Ressuscitar a epopeia homérica na épo-ca do Renascimento – quando o espírito abstrator de um mundo já muito mercantil pouco se presta-va à admiração de heróis semidivinos; e quando a mitologia clássica, característica do gênero, era uma expressão irrecuperável, salvo para um certo naturalismo de insinuação estética – constituía um nobilitante desafio ao engenho dos poetas.[...]Foi precisamente o desiderato da ressurreição da epopeia clássica segundo o padrão homérico que Camões procurou satisfazer, levando a cabo um objetivo característico dos escritores humanistas. O ambiente marítimo do assunto central aponta para a filiação do poema sobretudo na linhagem da Odisseia, da primeira metade da Eneida e dos poemas sobre os Argonautas escritos pelo grego Apolônio de Rodes e pelo romano Valério Flaco. E de fato alguns investigadores salientam algum dé-bito de Camões ao poema Argonáutica (Feitos dos Argonautas) deste último. (SARAIVA; LOPES, 2005, p. 327).

Sendo, portanto, paradigmas do gênero épico, as duas epopeias de Homero (sobre ele trataremos mais detidamente adiante, ainda nesta aula) são sempre referidas quando precisamos iniciar qualquer discus-são sobre este gênero e, mais especificamente, sobre esta forma, cuja primeira definição, de cunho normativo, já se encontra na Poética, de Aristóteles, sobre a qual já começamos a tratar na aula anterior. É assim que chegamos à segunda questão, sobre a qual precisamos discutir a partir do que lemos nos excertos destacados acima: a matéria épica, no limite entre história e ficção.

No capítulo IX da Poética, há a distinção entre poesia e história, visto que, segundo o filósofo, “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é sim o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível, segundo a verossimilhança e a necessidade”, visto que o historiador diz as “coisas que sucederam, e o outro [o poeta] as coisas que poderiam suceder” (ARISTÓTELES, 1998, p. 115). Nes-ta definição, encontramos um dos mais importantes conceitos para o estudo da literatura que é o de verossimilhança, ou seja, uma ação, uma fábula narrada por um poeta não deve ter compromisso com a “verdade”, mas com aquilo que pode ser “crível”, “passível de aconte-cer”, enlaçando mimese e ficção com o real, em consonância com as nossas necessidades de nos entregarmos à fabulação construída pelo

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poeta, diferentemente do que ocorre ao lermos, por exemplo, um trata-do de história, cujo objetivo está mais direcionado à esfera do verídico, do objetivo. Por mais que a matéria épica seja vária, cabe ao poeta selecionar, seja no mito (caso de Homero) seja na história (caso de Camões), dentre a multiplicidade de ações, aquelas que, pela esfera da possibilidade, verossimilhança e necessidade, possam compor uma unidade de representação formalizável em um enredo.

Angélica Soares (2007, p. 39), tendo em vista este entendimento, define a epopeia como uma forma narrativa – depois trataremos da tragédia (imitação pelo “modo dramático”), mas devemos considerar, desde agora, que Aristóteles já toma a epopeia como imitação em “modo narrativo”, conforme discutido na aula anterior –, tomada en-quanto forma geral apreensível: “uma longa narrativa literária de cará-ter heróico, grandioso e de interesse nacional e social”, que “apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos2 (o narrador, o narra-tário, personagens, tema, enredo, espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno de acontecimentos históricos passados, re-úne mitos, heróis e deuses”, podendo ser formalizada tanto no verso, quanto em prosa (sem prejuízo).

Com isso, abrimos a compreensão sobre as formas narrativas, in-clusive em outros tempos que não apenas aqueles da Grécia, e somos introduzidos ao seu imenso universo, no qual encontraremos o roman-ce, este, sim, representativo de nosso tempo, todavia, ainda uma forma em pleno desenvolvimento, como aprenderemos em aulas subsequen-tes.

II. Os elementos formais da epopeia – as partes quantitativas: Se a epo-peia tem uma forma já fechada, podemos entender a sua estrutura fixa própria, mediante a articulação entre as partes quantitativas e qualita-tivas (estas últimas serão discutidas, na próxima aula, quando vamos apreendê-las na tragédia, outra forma antiga de enorme relevância).

Vejamos, com atenção, o quadro abaixo:

PARTES QUANTITATIVAS

TÍTULO

É buscado ou nos heróis, dos quais se narram os feitos – caso da Eneida (de Eneias), da Odisseia (de Odisseu/Ulisses) – ou nos espaços da ação – caso da Ilíada (cujo cenário é Ílion, Troia em grego).

PROPOSIÇÃOÉ a parte em que se delimita a ação, apresentando-se o argu-mento de modo simples e grave, mediante o elogio de uma nação, herói ou povo.

INVOCAÇÃO

Esta invocação é essencial, pois são as Musas que possuem e podem distribuir a memória, importantíssima para a perfei-ta rememoração dos mais importantes episódios da narrativa que o poeta quer contar, tomada de uma tradição coletiva e, pelo ato de narrar, tecida de modo a ser eternizada.

2 Todos estes elementos serão discutidos em nossas próximas aulas.

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DEDICATÓRIA

Esta parte não compunha as epopeias antigas. É uma adição posterior, a partir dos preceitos da retórica, mostrando, para além da capacidade intelectual superior do poeta, que ele depende dos auspícios de um mecenas, social e economica-mente mais abastado, a quem se dirige o poema narrativo.

NARRAÇÃO

É a parte primordial, entendida como narração de uma ação una e inteira – feita com começo, meio e fim – e composta por um conjunto de episódios, que são as ações secundárias que se entremeiam à ação principal de modo a distendê-la e embelezá-la.

EPÍLOGO É o arremate ou desfecho do poema épico. Também não é uma parte obrigatória.

Monumento aos Descobrimentos, em Belém, Portugal.

Considerando aqui Os Lusíadas3, poema épico camoniano – que tem como tema a conquista marítima portuguesa, sintetizada na figura do navegador Vasco da Gama, tornado símbolo do povo lusitano, que fi-gura já no TÍTULO da obra –, a partir da com-preensão de que seu pa-radigma formal é a epo-peia antiga, devemos recorrer à leitura de al-

guns de seus trechos a título de exemplificação. Portanto, sigamos, com as primeiras três estrofes do Canto I:

1. As armas e os barões assinalados,Que da Ocidental praia Lusitana,Por mares nunca de antes navegados,Passaram ainda além da Taprobana,Em perigos e guerras esforçadosMais do que prometia a força humana,E entre gente remota edificaramNovo Reino, que tanto sublimaram;

2. E também as memórias gloriosasDaqueles Reis, que foram dilatandoA Fé, o Império, e as terras viciosasDe África e de Ásia andaram devastando;E aqueles que por obras valerosasSe vão da lei da morte libertando:Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

3 Não vamos discutir, longamente, os episó-dios deste poema épico que, certamente, será estudado nas disciplinas de Literatura Portuguesa. Nossa abordagem é mais foca-lizada em seus aspectos formais, com vistas ao entendimento da estrutura da epopeia. A sua escolha refere-se a uma maior proxi-midade de linguagem, que pode nos auxiliar neste momento. A edição que está sendo usada para as citações é a que se indica na bibliografia, mas há um sem número de edições disponíveis na internet. Sugerimos, para a leitura integral, a seguinte: <http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/literatura/lusiadas/>, disponível para download, no Centro Virtual Camões (Portugal), como re-produção da seguinte edição: OS LUSÍADAS, de Luís de Camões. Pref. de Álvaro Júlio da Costa Pimpão; apresentação de Aníbal Pin-to de Castro. 4. ed. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros. Instituto Camões, 2000.

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3. Cessem do sábio Grego e do TroianoAs navegações grandes que fizeram;Cale-se de Alexandro e de TrajanoA fama das vitórias que tiveram;Que eu canto o peito ilustre Lusitano,A quem Netuno e Marte obedeceram:Cesse tudo o que a Musa antiga canta,Que outro valor mais alto se alevanta.

Nessas três estrofes, temos a PROPOSIÇÃO mediante a apresenta-ção da matéria narrativa que será desenvolvida. Como bem podemos verificar, a noção de herói nesta epopeia se desloca para uma repre-sentação coletiva do povo lusitano, mesmo que exista um eixo central protagonizado por Vasco da Gama, que só comparecerá no poema em sua estrofe 44, ainda neste mesmo Canto4. É esse coletivo – expresso na fórmula, já comentada, “as armas e os barões”, somada aos feitos dos Reis, efígies da nacionalidade, que buscaram, na empreitada ma-rítima, dilatar a Fé e o Império, na conquista de territórios de África e Ásia – que se canta, submetidos ao engenho e à arte, louvando-se seus feitos gloriosos a fim de soterrar a memória de feitos ou aventuras do mundo antigo.

Se até mesmo os deuses Netuno (nome latino de Poseidon, divin-dade dos mares) e Marte (o deus grego Ares, da guerra) agora estão submissos ao povo lusitano – na verdade, uma possível alegorização do pleno domínio conseguido sobre o mar e sobre as artes da guerra, conforme podemos atestar no sexto verso da terceira estrofe –, decorre, então, como consequência, o silenciamento da Musa “antiga” frente à nova, fator de emulação considerável e bastante coerente com o con-texto de escrita de Camões. É assim que, nas duas estrofes seguintes, teremos a INVOCAÇÃO das novas Musas:

4. E vós, Tágides minhas, pois criadoTendes em mim um novo engenho ardente,Se sempre em verso humilde celebradoFoi de mim vosso rio alegremente,Dai-me agora um som alto e sublimado,Um estilo grandíloquo e corrente,Porque de vossas águas, Febo ordeneQue não tenham inveja às de Hipocrene.

5. Dai-me uma fúria grande e sonorosa,E não de agreste avena ou frauta ruda,Mas de tuba canora e belicosa,Que o peito acende e a cor ao gesto muda;Dai-me igual canto aos feitos da famosaGente vossa, que a Marte tanto ajuda:Que se espalhe e se cante no universo,Se tão sublime preço cabe em verso.

4 A narração se inicia na estrofe 19, sendo levada para o plano mítico, no qual nos de-paramos com um Concílio dos Deuses, que discutem a empreitada portuguesa, cruzan-do a tradição clássica (ficcional) com o dis-curso histórico sobre o país. Só na estrofe 44 aparece o Gama, que se achega à costa africana, sendo, então, devidamente carac-terizado: “Vasco da Gama, o forte capitão,/ Que a tamanhas empresas se oferece,/ De soberbo e de altivo coração/ A quem Fortu-na sempre favorece”. O Gama é favorecido pela Fortuna, deusa da boa ou da má sorte, comparecendo como síntese heróica do povo lusíada, já antes referido na estrofe 12, como capaz de tomar a fama de Eneias, herói da Eneida.

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Parnaso, de Raffaello Morghen (c. 1780-1785). Nesta tela se vê o deus Apolo e as Musas. Referência: http://mini-site.louvre.fr/saison18e/en/antiquite_revee/ar08.html

Ao contrário das Musas5 auxiliares da memória do poeta grego, agora, são as Tágides (as ninfas habitantes do rio Tejo, que deságua em Lisboa) que despertam o versejar, tão grandioso quanto os feitos da gente portuguesa, afeita à conquista, passíveis de ser traduzidos, ago-ra, no poema, que, em nada, deverá aos outros que bebiam nas águas da fonte do monte Hipocrene, sob as bênçãos do deus Febo (Apolo, em grego), patrono das artes poéticas.

Esta epopeia, em sua totalidade, voltada à celebração lusa, é de-dicada ao rei Dom Sebastião, como se pode atestar na longa DEDICA-TÓRIA que se espraia entre as estrofes 6 a 18, sendo esta última a que segue, aludindo-se aos conquistadores portugueses como Argonautas, em óbvia referência ao mito dos heróis gregos que se lançaram ao mar na nau Argo com a missão de recuperar o velocino de ouro (uma relí-quia sagrada), na Cólquida – daí as aproximações, já referidas, com a Argonáutica, poema de Apolônio de Rodes (século III a.C.):

Mas enquanto este tempo passa lentoDe regerdes os povos, que o desejam,Dai vós favor ao novo atrevimento,Para que estes meus versos vossos sejam,E vereis ir cortando o salso argentoOs vossos Argonautas, por que vejamQue são vistos de vós no mar irado;E costumai-vos já a ser invocado.

A NARRAÇÃO, nesta epopeia, se desenvolve em quatro planos: o pri-meiro deles é o da viagem propriamente dita [1], aquela na qual Vasco da Gama ruma às Índias, historicamente delimitável e escolhida como episódio mais significativo das conquistas portuguesas, eixo sobre o

5 Para a mitologia grega, Zeus teria amado Mnemósine, e dessa relação nasceram nove filhas, as Musas, cada uma responsável por presidir e inspirar uma atividade humana, sendo elas, conforme D’Onofrio (2000, p. 40): “1) Calíope, musa da poesia épica, in-vocada por todos os escritores de epopeias; 2) Clio, musa da história, pois inspirava os que exaltavam as conquistas de um povo; 3) Érato, musa da poesia lírica; 4) Euterpe, protetora da música; 5) Melpômene, musa do canto (mãe das sereias); Polímnia, musa inspiradora dos hinos religiosos e da orató-ria; 7) Talia, musa da comédia (mãe dos co-ribandes, sacerdotes que adoravam Cibele com cantos e danças alucinantes); 8) Terp-sícore, musa da poesia trágica; 9) Urânia, musa das ciências exatas, especialmente da astronomia.”

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qual se desenvolve o poema camoniano. A este plano superpõe-se o plano mitológico [2], povoado pelas referências aos deuses do panteão greco-latino, no qual se digladiam o deus Baco (Dioniso), defensor dos indianos, e, portanto, opositor à conquista, e a deusa Vênus (Afrodite, com ajuda de Marte/Ares), partidária da frota do Gama.

Como Camões tinha por intenção louvar toda a história anterior de conquistas portuguesas, surge, como distensão da matéria épica, um plano em que outros EPISÓDIOS histórico-narrativos [3] vão se multipli-cando, com claras referências ao passado, erigido em forma narrati-va, trazidas ao foco central uma por vez, como aquelas narradas pelo próprio Gama para audiências distintas, pelo Gigante Adamastor, a voz profética do Velho do Restelo, a referência a Inês de Castro, entre tantas outras.

A tudo isso, soma-se, ainda, a própria voz do poeta – uma espécie de plano metatextual [4] –, discurso que se posiciona, reflete sobre o que se narra, como bem podemos perceber, por exemplo, no EPÍLOGO, as estrofes finais (145 a 156), em que o poeta, já cansado de sua con-tenda, analisa o presente com as lentes do passado, em diálogo com a Musa e com o seu Rei, como se lê nas estrofes selecionadas abaixo:

145. Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho, Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Duma austera, apagada e vil tristeza.

146. E não sei por que influxo de Destino Não tem um ledo orgulho e geral gosto, Que os ânimos levanta de contino A ter para trabalhos ledo o rosto. Por isso vós, ó Rei, que por divino Conselho estais no régio sólio posto, Olhai que sois (e vede as outras gentes) Senhor só de vassalos excelentes!

Neste momento, cremos que esta estruturação das partes quanti-tativas, aqui esquematicamente apresentada, deve estar devidamente entendida. Já que iniciamos o nosso estudo das partes da epopeia, a partir de Os Lusíadas, chegou o momento de começarmos a nos apro-ximar do o universo da épica grega. Para tanto, vejamos a invocação à Musa, na Ilíada:

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Canta-me a Cólera – ó deusa! – de Aquiles Pelidacausa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem contae de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosose esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atiradose como pastos de aves. Cumpriu-se de Zeus o desígniodesde o princípio em que os dois, em discórdia ficaram cindidos, o de Atreu filho, senhor dos guerreiros, e Aquiles divino.

Homero, Ilíada, Canto I. [trad. Carlos Alberto Nunes]

Neste pequeno fragmento, podemos observar que Homero funde a “invocação” e a “proposição”, antecipando o assunto do poema épico: a cólera de Aquiles, que acaba por ocasionar sofrimento aos gregos (referidos como aquivos, ou em outras traduções argivos ou aqueus – povo de origem indo-europeia, que, por volta de 2000 a.C., inva-diu a Grécia, assimilando a civilização que por lá habitava e abrindo caminho para a chamada civilização micênica), em sua luta contra os troianos, ou dárdanos, de mesma origem6.

Sobre este mesmo fragmento, já destacou Salvatore D’Onofrio (2000, p. 41-42), a distinção que se faz entre o plano da enunciação (que evidencia a presença do narrador épico) e o plano do enunciado (em que avultam os fatos narrados). Vejamos: o uso do presente “can-ta-me” acusa o tempo da enunciação do poeta; enquanto o passado “cumpriu-se” dá conta da época em que os fatos ocorreram, distancia-dos, portanto, no tempo, tornando-se presente pela ação da memória que retoma a tradição, sob a presença da divindade, estabelecendo a verossimilhança.

A Ilíada, portanto, é marcada pela ira: primeiramente, a ira do deus Apo-lo, que defende o sacerdote troiano que teve Criseida e Briseida raptadas pelos gregos, só sendo aplacada quando Agamêmnon devolve a primeira ao pai. Daí decorre a segunda ira, agora de Aquiles contra Agamêmnon, o chefe dos exércitos confederados, remetido na invocação como “filho de Atreu”, pois o “senhor dos guerreiros” lhe toma a escrava Briseida, como compensação, pela perda da jovem entregue como peça de barganha com o deus. Aquiles, contrariado, recorre à sua mãe, a deusa Tétis, que, por seu turno, pede a intervenção de Zeus, até que o mal feito contra seu filho fosse reparado. Zeus, então, dá seu desígnio divino: até que Aquiles, novamente, esteja satisfeito, os troianos triunfarão sobre os aqueus.

Cerâmica de figuras vermelhas (c. 500 a.C.), atribuída ao pintor Sôsias, encontrada em Vulci (Etruria), representando os heróis gregos Aquiles e Pátroclo. Referência: http://www.logosphera.com/courses/news/materialpublico/ciclo_epico/index.htm

6 As duas epopeias homéricas se relacio-nam a um ciclo de narrativas míticas em torno da Guerra de Troia, cidadela atacada pelos exércitos gregos com vistas à recu-peração de Helena, esposa de Menelau, fugida e escondida naquela cidade junto com seu amante Páris, um dos príncipes troianos. Assim, a Ilíada é um poema da guerra, enquanto a Odisseia é um poema da paz, do retorno para casa, após os anos de combate. Não devemos querer encon-trar uma correspondência entre História e o mito formalizado nas epopeias, mesmo que Homero se refira a acontecimentos que podem, talvez, ser localizados nos domínios da civilização micênica, que desapareceu por volta de 1200 a.C. Devemos ter às claras que o fato do aedo evocar a Grécia micênica não significa, necessariamente, que tenha descrito tal civilização: há apenas janelas que se abrem para um mundo “real”, longe no tempo. Homero, afinal, não era historia-dor, mas um poeta.

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Cindido o exército, Pátroclo, o amigo mais fiel de Aquiles, oferece--se para ajudar os companheiros, vestindo a armadura do outro. No campo de batalha, Heitor, o campeão de Troia, acaba por abater o jovem, julgando ter derrotado Aquiles. Diante disso, este último volta ao campo de guerra, vingando-se de Heitor, e formalizando a terceira ira: o campeão troiano é morto, e tem seu corpo arrastado até o acam-pamento, onde permanece insepulto. O chefe grego se reconcilia com o herói, devolvendo-lhe Briseida. Príamo, o rei de Troia e pai de Heitor, dirige-se a Aquiles para solicitar permissão para levar o corpo do filho, para que lhe sejam prestadas as devidas honras e rituais. Na Grécia, deixar um corpo insepulto e transformado em pasto de aves de rapina, ou atirado à fúria mutiladora dos cães, era algo terrivelmente temido – porque poderia ocasionar uma maldição à cidade – e desrespeitoso em relação aos deuses do mundo inferior, o Hades, para onde seguiam as almas mortas, cujo périplo não se cumpria até que os rituais funerários fossem feitos. Comovido, então, com as súplicas do ancião, o herói grego atende a tal pedido. O poema termina com o funeral de Hei-tor. Em torno deste eixo principal, sucedem diversos outros episódios, incluindo-se sempre o consórcio entre homens e deuses, partidários de um ou de outro lado dos combatentes.

Nesta epopeia, ressalta-se o herói como protótipo humano, cen-trando-se a narração sobre Aquiles, o protagonista absoluto da ação, considerado, pelo povo grego, como herói nacional, conforme leremos abaixo:

[...] por sua portentosa força física (fora alimenta-do com entranhas de leões) e pela extrema perícia na arte da guerra. Em A Ilíada, além de seu valor bélico, é exaltado seu sentimento de honra, pelo qual pode ser considerado o primeiro “cavaleiro” do mundo ocidental. Não se curvando à prepotên-cia do chefe Agamêmnon, só volta à luta contra os troianos para vingar a morte do amigo Pátroclo. E seu sentimento de ira contra Heitor é superado apenas pela piedade perante as lágrimas do velho pai do herói troiano. [...] Enfim, Aquiles representa a encarnação artística do homem na idade juvenil que se deixa dominar ora pela violência das pai-xões (agressividade, ira, ódio), ora pela delicadeza dos sentimentos (amizade, piedade, religiosidade). (D’ONOFRIO, 2000, p. 45)

Um herói grego, afinal, é possuidor de virtudes, formadas pelo equilíbrio entre a força guerreira e o entendimento sábio sobre aquilo que o cerca, o que pode ser transmitido ao receptor, mediante a narra-ção de seus feitos.

Agora, passemos a uma atividade, na qual poderemos averiguar o nosso conhecimento, de acordo com o que vimos até aqui.

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Atividade I

Leia os versos de abertura da Odisseia, abaixo citados, nos quais se invoca a divindade, a Musa – que tudo conhece e que pode auxiliar sua expressão, por ser depositária da poesia e filha da deusa Memória:

O homem canta-me, ó Musa, o multifacetado, que muitosmales padeceu, depois de arrasar Troia, cidadela sacra.Viu cidades e conheceu costumes de muitos mortais. Nomar, inúmeras dores feriram-lhe o coração, empenhado emsalvar a vida e garantir o regresso dos companheiros. Masnão conseguiu contê-los, ainda que abnegado. Pereceram,vítimas de suas presunçosas loucuras. Crianções! Forrarama pança com a carne das vacas de Hélio Hipérion. Este oprivou, por isso, do dia do regresso. Das muitas façanhas, Deusa, filha de Zeus, conta-nos algumas a teu critério.(Homero, Odisseia, versos 1-10 [trad. Donaldo Schüller])

Após esta leitura, propomos a comparação com o que foi lido anteriormente, considerando:

a) as semelhanças e as diferenças entre a discussão que fizemos da Ilíada e d’Os Lusíadas;

b) o fragmento interpretativo a seguir: “[...] Como o título exprime, A odisseia é a narração das aventuras de Odisseu, nome grego de Ulisses, desde sua partida de Troia, saqueada pelos príncipes gregos, seus confederados, até a chegada em Ítaca, sua pátria” (D’ONOFRIO, 2000, p. 47);

c) o auxílio de pesquisa feita, na internet ou em livros, para que se tome um resumo dos Cantos destas epopeias, facilitando o entendimento da narração como um todo. Monte um esquema com estes resumos, o que também poderá ajudar na comparação.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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II. Homero – Como temos visto, qualquer discussão sobre a épica clássica remete, imediatamente, a Homero, cujo local de nascimento é disputado por sete cidades da Grécia asiática, dentre elas Esmirna e a ilha de Quios, onde ainda há a “pedra de Homero”, rochedo no qual se talhou um assento de onde, conforme a tradição, o poeta recitava seus versos para crianças. Nesta mesma ilha também existiram rapso-dos, que cantavam os poemas homéricos e que se diziam descendentes do aedo.

Homero, como sabemos, não era um rapsodo, tal qual Íon, per-sonagem do diálogo platônico homônimo, já tratado na aula anterior, mas um aedo: espécie de “cantor” (aedo vem do grego aoidós, que significa “cantor”) que compunha e declamava os versos, acompanha-do de um instrumento de corda, a phórminx (Cf. VIDAL-NAQUET, 2002, p. 15), e era capaz de “reproduzir, quase sem variantes, as epopeias puramente orais” (p. 18). É por isso que, hoje, quando apenas lemos a Ilíada e a Odisseia, conforme este mesmo estudioso, “não podemos esquecer que esses poemas eram destinados a serem recitados para um auditório de homens ricos e poderosos, capazes de ir à guerra armados da cabeça aos pés” (p. 15). Sobre isso, também já se posicio-nou Carlos Alberto Nunes, na introdução à sua tradução do primeiro destes poemas:

[...] Sendo certo que a Ilíada e a Odisseia eram re-citadas em festejos públicos, a princípio por episó-dios desconexos, conforme o exigia a preferência do auditório, sem que fosse obedecida a ordem dos acontecimentos, depois na sequência natu-ral da fábula, é aceitável que, no caso da Ilíada este recitativo se desse com as pausas indicadas, no fim dos cantos VIII e XVIII. Um recitativo de seis ou oito cantos. [...] E, particularidade interessante: estes cantos se encerram justamente com o cair da tarde, coincidindo a hora em que os ouvintes se dispersavam com a interrupção forçada da ação movimentada do poema, pela chegada da noite divina, a que era forçoso obedecer. [...] (NUNES, 2011, p. 51).

Há, portanto, um importante debate sobre a questão homérica, en-volvendo desde a querela sobre a autoria dos poemas – não se saben-do, ao certo, se houve um autor chamado Homero, ou vários autores, daí alguns estudiosos apenas presumirem a autoria dessas epopeias – até questões que situam estas epopeias num limiar entre oralidade e escrita, o que se complica ainda mais dada a sua imprecisa datação: algo entre os séculos IX e VIII a.C. Desta maneira, e considerando que, no século VIII a. C., não existiam livrarias, editoras ou gráficas, os po-emas homéricos só se tornam livros – como aqueles que podemos ter em mãos – em 1488, quando são impressos em Florença, na Itália, no contexto próximo ao surgimento da imprensa, mesmo que, de sua fixação à sua impressão, esses textos sofreram poucas variações.

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Tudo isso compõe um debate com raras conciliações, na medida em que estaríamos nos referindo a um período histórico e cultural já bastante afastado no tempo. Contudo, mesmo assim, podemos afirmar algumas coisas. Vejamos:

a) Os poemas homéricos, antes de serem um início, são uma realização final, derivada de uma longa tradição, de fundo oral. Certamente, foi esta tradição de narrativas épicas (orais, talvez escritas também, ou ambas) que foram devidamente organizadas por escrito, por um autor/compilador (que poderia se chamar Homero ou não), num momento conclusivo desta etapa, precedendo a sistematização do discurso historiográfico.

b) Tais narrativas ainda estavam associadas a um discurso mítico, em que a palavra era repetida oralmente pelos aedos antes de ser fixada pela escrita que, àquela altura, era ainda um importante instrumento para a oralidade e se tornava uma espécie de apoio para a memória. À parte tudo isso, o que nos interessa é que a epopeia, inspirada pela gesta heróica dos campos de batalha, se define enquanto forma de poesia narrativa em torno de personagens históricos ou pertencentes a esta tradição, o que indica que, por isso mesmo, pode conter certa parcela de acontecimentos calcados numa dimensão histórica.

c) Desde a primeira exposição doutrinária sobre o gênero épico, en-contrável na Poética, de Aristóteles, o epos (“narração”, “discurso”, “palavra”) é calcado na oralidade, seja no canto do aedo, que louva o herói, seja na fala representada do mesmo herói, também transmitida no poema, de modo a tornar-se imperecível. Há muitos aspectos das epopeias que parecem indicar que elas se destinavam à recitação, como, por exemplo, os epítetos7.

Esclarecidas estas questões, passemos a mais alguns breves comen-tários sobre os poemas homéricos. Com a Ilíada, conforme Donaldo Schüller (lendo Aristóteles), Homero renova a arte narrativa, pois, cons-truindo “a ação num curto espaço de tempo (poucas semanas), subor-dina-a a um tema central (a cólera de Aquiles) e mantém-se no estreito espaço do campo de batalha” (SCHÜLLER, 1985, p. 13), concentrando tempo, espaço e ação. Os seus heróis são modelares no que tange às suas virtudes, basta pensar que Menelau, mesmo que em sua investida contra Troia possa ampliar seu império, é antes movido pela busca da reparação de sua honra – por conta da tentativa de recuperar sua esposa, Helena –, o que, em nenhum momento, faz com que ele seja desleal ou desrespeitoso em relação aos seus inimigos. O objetivo des-ta epopeia, portanto, não é narrar toda a guerra, mas apenas um dos seus episódios finais, relacionado a Aquiles, o soldado mais valoroso do lado grego, marcado pela “cólera”, ao contrário de Odisseu, que é “multifacetado”, o que dará a tônica a outra epopeia.

7 Temos, aí, uma boa chave: os personagens não são apenas citados, mas são sempre acompanhados por uma série de qualifica-tivos, como “Heitor de capacete reluzente”; o “divino Aquiles de pés infatigáveis”; o “Odisseu das mil astúcias”; “Zeus de voz retumbante” ou, ainda, “Atena de olhos de coruja” e a, sempre marcada na Odisseia, como índice de passagem do tempo, “Auro-ra Róseos-Dedos”. Esses epítetos e fórmu-las têm por função repousar o aedo durante sua recitação, permitindo-lhe pausas, e am-param a sua memória, pela repetição.

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Ulisses e as sereias, de John William Waterhouse, pintura de 1891. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:John_William_Waterhouse_-_Ulysses_and_the_Sirens_(1891).jpg

A Odisseia, por isso, percorrerá o caminho contrário ao da Ilíada, pois nela dilatam-se o tempo, o espaço e a ação. Odisseu (ou Ulisses, conforme algumas traduções), após a última batalha de Troia, toma o caminho de volta para sua casa, mas acaba passando dez anos perdi-do no mar – entre as ilhas em torno de seu país, quando seu barco é afundado por conta da fúria de Poseidon, o deus dos mares.

Como o critério da narrativa, conforme se lê na invocação, é dado à Musa, a narração propriamente dita não se dá em ordem cronoló-gica, começando, aleatoriamente, de um ponto já bastante avançado (ou, como se diz, in media res) e marcando diferenças entre a ordem cronológica do enredo e a sua apresentação artística – só saberemos, cronologicamente, o que se passou quando, no canto IX, Odisseu es-cuta de um aedo o episódio do Cavalo de Troia, o que lhe faz revelar sua verdadeira identidade, diante da emoção suscitada, e começar a narrar o que lhe aconteceu na partida da guerra. A sua história, por-tanto, já se tornara tema de narrativas heroicas.

É dessa maneira que, no início do poema épico, encontraremos Odisseu com Calipso, numa ilha, onde ele já se encontra há mais de sete anos, confirmando a inversão temporal sobre a qual irá se erigir toda a composição. Assim, podemos concordar com o que fez Salvato-re D’Onofrio (2010, p. 48-49) ao reconstruir a ordem cronológica da trama, reordenando o material fabular e apresentando uma possível or-dem de leitura conforme a sucessão nos cantos. Portanto, vejamos qual seria: IX (Canto no qual se narra o caminho de Troia até o momento em que a embarcação naufraga), X, XI (nos quais Odisseu encontra Circe, uma feiticeira, que também lhe ensinará o caminho para o Hades), XII (quando o herói tenta ultrapassar um canal e novamente naufraga), V (chegada à ilha Ogígia, onde é retido por Calipso, cruzando a narra-tiva com o Canto I, de onde ele foge e, de novo, naufraga), VI, VII, VIII (nestes Cantos, Ulisses é acolhido em Esquéria, por Nausica e seu pai,

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dando a conhecer sua identidade e narrando tudo o que se passou até então), XIII, XIV (finalmente, ele parte para Ítaca, chegando disfarçado de mendigo, pela intervenção de Atena, e abrigando-se próximo à cidade, revelando, aos que não o reconhecem, que o rei estaria para voltar), I, II, III, IV (é quando se dá a Telemaquia8, após os deuses deliberarem pelo regresso do herói, Atena aconselha Telêmaco a viajar em busca de infor-mações sobre o pai, contrariando os pretendentes à mão de Penélope, que usa do artifício de tecer e destecer a mortalha do sogro, para adiar o casamento), XV, XVI (se cruzam as viagens de Odisseu e do filho, havendo o reconhecimento entre os dois), XVII, XVIII até o Canto XXIV (Telêmaco regressa e Odisseu, ainda disfarçado, entra no palácio onde será reconhe-cido, primeira pela Ama, depois por Penélope, retomando o seu lugar e punindo os espoliadores de seu patrimônio).

É assim que a narrativa propriamente dita, para além da distensão do tempo e do espaço, concentra-se em algumas poucas semanas, que antecedem a chegada do herói a Ítaca, onde sua esposa, Penélope, o aguarda. Depois de muitas peripécias, o rei retorna e retoma sua casa. Tudo isso se combina a um sem número de narrativas, contadas por muitas bocas e sob muitos olhares: Odisseu encontra-se com Sereias, feiticeiras, perde-se e encontra-se, desce ao mundo dos mortos, relembra a Guerra de Troia, e da sua própria boca saem histórias com feições de “histórias de marinheiro”... tudo isso tentando, sempre, não esquecer o caminho de retorno. São tantas as narrativas, que até mesmo o estudioso italiano Ítalo Calvino se perguntou: “Quantas Odisseias contém a Odisseia?”.

Talvez seja difícil fazer esta conta, na medida em que, nesta epopeia, também se converte o herói em narrador de suas próprias aventuras, per-mitindo-se a dilatação do tempo e dos episódios. Daí se afirmar que, ao contrário da Ilíada, a Odisseia “desdobra-se em três linhas de ação distintas: as aventuras de Ulisses, os quatro cantos iniciais em que é protagonista Telêmaco, filho de Ulisses, e a reconquista do palácio de Ítaca, que cobre a segunda parte do poema” (SCHÜLLER, 1985, p. 20). Mesmo assim, mantêm-se, conforme Otto Maria Carpeaux, a unidade de composição:

[...] Na aparência, não há ligação entre o “Nostos”, a viagem de Ulisses pelo Mediterrâneo em busca da pátria, e o “Romance de Ítaca”, a expulsão dos pre-tendentes da fiel Penélope. [...] Exatamente no meio, entre as duas partes, há a “Nekya”, a descida de Ulis-ses ao Hades, onde encontra os mortos da guerra troiana lamentando a vida perdida. Com este episó-dio as aventuras acabam. A partir desse momento o poeta dos heróis canta a realidade prosaica: a casa, a família, os criados e o cão. No reino da Morte, Ulisses encontra o caminho da vida. A “Nekya”, entre as aventuras fantásticas e o caminho de casa, serve para comemorar o fim sombrio de Troia e o destino trágico dos gregos, dos quais só Ulisses encontrará a paz final na vida de um aristocrata grego com os seus filhos, criados e animais domésticos. Com esse “realismo nobre”, confirma-se a unidade íntima entre a Ilíada e a Odisseia (CARPEAUX, 2010, p. 49).

8 Conforme o mesmo autor: “Em verdade, esta viagem não tem nenhuma relevância relativa à aventura de Ulisses: é uma histó-ria secundária encaixada na principal, com nexo bastante frouxo, o que levou a maioria dos críticos a considerar a ‘Telemaquia’ um poema épico originariamente independente e mais tarde aglutinado ao poema da narra-tiva de Odisseu” (p. 52).

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Nos fixemos, agora, numa passagem especialmente interessante, colocada entre dois momentos decisivos (a errância e o retorno): aque-la em que o herói narra sua descida até o Hades – o reino dos mor-tos. Lá, ele encontra seus antigos companheiros de campo de batalha, mortos nos últimos episódios da guerra, além de Agamêmnon, que, como ele ficará sabendo, foi assassinado, ao chegar ao seu próprio lar, pela esposa e pelo amante que intentava tomar seu lugar. Vejamos parte deste relato, em que o próprio herói nos conta o que viu e ouviu, no Canto XI:

Veio a máscara de Agamênon, o filho de Atreu. [...]Viu e reconheceu-me de um golpe só.Chorou alto. De faces úmidas, estendeu os braços.[...]Senti um repelão no peito. Chorei. Chamei-o pelonome. Meus lábios se abriram para lhe falar: “Meucaro filho de Atreu, distinto comandante de tropas,que tipo de morte te prostou? [...]”A resposta a minhas perguntas veio em seguida:“Filho de Laertes, meu inventivo Odisseu, [...][...] Foi Egisto. O puto planejou minha morte mancomunado comminha mulher, uma cadela. Fui convidado a entrar.Era um banquete. Mataram-me como um boi.[...][...] Ele ponderou: “Sirva-teisso de advertência. Nada de confiança excessiva, nem mesmo em tua mulher. Do que sabes, não lhe contes tudo. Se revelas certos assuntos, guarda para timesmo outros. A morte não te virá de tua mulher.Sei que a filha de Icário é sensata, tem a cabeça no lugar. Em sensatez Penélope é campeã. [...](trad. Donaldo Shüller)

Este relato, tão cheio de emoção, acaba provocando curiosidade acerca do que o futuro reserva para Odisseu, quando do seu retorno para Ítaca. Como já muito bem pontuou Donaldo Schüller (1985), a morte de Agamêmnon se torna uma espécie de sombra que acompa-nha o herói desde o início da narração. Basta lembrarmos que, logo no Canto I, esta mesma história, sob outro ponto de vista, é contada, através da fala do próprio Zeus, o rei dos deuses, diante de sua congregação divina: referindo-se ao destino de Egisto, amante de Clitemnestra, tam-bém assassinado por Orestes (o primogênito do rei Átrida) para vingar a morte de seu pai, o soberano do Olimpo alude aos desmandos dos próprios homens, que acabam por lhes empurrar para a perdição. Como não sabia o que se passava em sua terra durante sua longa ausência, Odisseu, diante da narrativa que escuta, também se vê cogitando sobre o que lhe esperará, quando do seu retorno. Assim, Homero trata este herói como um antiagamêmnon:

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[...] Embora evite a tragédia, lembra-a como so-lução possível, o que justifica o avanço cauteloso do guerreiro em Ítaca [aonde ele chega sob dis-farce de mendigo, com ajuda da deusa Atena]. Desde a descida ao Hades, Ulisses conhece o fim do comandante das forças gregas. Ao recusar em Ogígia a oferta da imortalidade, escolhe a exis-tência incerta que raras vezes recompensa em vida atos gloriosos. Se Homero escreve um antiagamê-non [sic.], Ésquilo, o primeiro tragedista, fará com a Oréstia uma antiodisseia, retomando um tema sugerido e abandonado desde a Odisseia. Mes-mo que a epopeia e a tragédia sigam caminhos diversos, guardam visível parentesco (SCHÜLLER, 1985, p. 24).

Estas são, portanto, referências que se cruzam ao mito que dará início à trilogia trágica de Ésquilo, Oresteia9. Na primeira das três tra-gédias, temos a representação, em modo dramático, do destino de Agamêmnon, diferentemente do que vimos aproveitado aqui em modo narrativo. Com isto, abrimos as portas para o entendimento da tragé-dia, outra forma estética do mundo antigo. Como estamos discutindo a epopeia, considerando, entre outras possibilidades, o pensamento aristotélico, é impossível, a esta altura, não tocarmos a definição de tragédia, construída, na Poética, em comparação com a forma narrati-va e por contraste com a comédia, outra forma dramática – estes serão tópicos estudados na próxima aula. Mas, antes de seguirmos, vale a pena retomarmos, na atividade seguinte, alguns dos pontos até agora elencados.

Atividade IIConsiderando o que afirmamos sobre a multiplicidade de planos narrativos na Odisseia, faça a leitura, na íntegra, do Canto I, com vistas à discussão do excerto abaixo, e, também, para destacar os diferentes espaços/cenários e personagens (homens e deuses) a que se faz referência:

Quantas Odisseias contém a Odisseia? No início do poema, a Telemaquia é a busca de uma narrativa que não existe, aquela narrativa que será a Odisseia. No palácio de Ítaca, o cantor Fêmio já sabe os nos-toi10 dos outros heróis; só lhe falta um, o de seu rei; por isso, Penélope não quer mais ouvi-lo cantar. E Telêmaco parte em busca dessa narrativa junto aos veteranos da Guerra de Troia: se a encontrar, termine ela bem ou mal, Ítaca sairá da situação amorfa sem tempo e sem lei em que se encontra há tantos anos. (CALVINO, 1994, p. 17)

9 A Oresteia foi a única trilogia trágica (for-mada por Agamêmnon, Coéforas [“Portado-ras de Oferendas”] e Eumênides [“Deusas Benévolas”]) que chegou completa até o mundo moderno, tendo sido composta pelo mais antigo dos tragediógrafos, Ésquilo, e representada pela primeira vez no ano de 458 a.C., em Atenas. Nela, se representa o desenlace do mito dos Átridas, que cul-mina na morte de Agamêmnon, seguida da vingança urdida por sua filha Electra e executada por Orestes, contra Clitemnestra e Egisto, o que acabará lhe levando a julga-mento por ter assassinado a própria mãe. Deste julgamento, Orestes sairá absolvido por conta das intervenções da deusa Ate-na. Vale a pena procurar mais informações sobre este mito, com amplas relações nas três tragédias e até mesmo nas epopeias homéricas, na medida em que usaremos a primeira destas tragédias logo adiante.

10 Esta palavra refere-se ao tema do retorno, tão caro a este ciclo troiano.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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ResumoNesta unidade, tratamos da epopeia, considerando, principalmente, a

definição de suas partes quantitativas e as muitas possibilidades de constru-ção de seu enredo, com ênfase especial sobre a épica homérica, na Ilíada e na Odisseia. Para tal fim, recorreu-se a aspectos do enredo da tradição grega e considerou-se o aproveitamento da forma em outros contextos, como aquele do século XVI, que viu surgir a primeira epopeia em língua portuguesa, Os Lusíadas, de Camões. Também procuramos introduzir o debate em torno da “questão homérica”, que, entre outros aspectos, afir-ma a natureza fortemente ligada às tradições orais da épica grega e põe em discussão a questão da autoria única destes poemas.

Leitura recomendada

VIDAL-NAQUET, Pierre. Pequena história de dois poemas. In:__. O mundo de Homero. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 13-22.

As discussões sobre Homero são inúmeras, como vimos, e, para esta nossa aula, nos concentramos, especialmente, neste livro, de um im-portante estudioso da Grécia Antiga. Este capítulo – como também todo o restante do livro – é, com certeza, uma leitura bastante elucida-tiva e especialmente prazerosa sobre um assunto tão vasto e, algumas vezes, extremamente complexo.

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Autoavaliação

Para finalizarmos esta aula, sugiro que vocês assistam ao filme Troia (2004), uma tradução/adaptação cinematográfica feita a partir dos episódios narrados por Homero, sobre os quais brevemente discutimos. Neste filme, a construção do herói, Aquiles, combina-se ao mito moderno do galã de cinema, na medida em que ele é interpretado pelo famoso ator Brad Pitt. Seria interessante, também, que fosse lido o texto “Homero e a representação mítica da guerra” , de Martim Cezar Feijó, que poderá ajudar a refletir sobre os temas que tratamos durante esta aula, avaliando, ao ver o filme, o que os conteúdos aqui abordados podem nos auxiliar para a compreensão do que motiva um evento bárbaro como uma guerra – no passado ou no presente. Certamente, esta atividade se tornará mais produtiva e prazerosa se feita em grupo.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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ReferênciasARISTÓTELES. Poética. 5. ed. Tradução, prefácio, introdução, comentários e apêndices de Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998.

CALVINO, Italo. As Odisseias na Odisseia. In:__. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 17-24.

CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Introdução e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

CARPEAUX, Otto Maria. A literatura grega. In:__. História da literatura ocidental: v. I. 3. ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010. p. 45-91.

D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.

HANSEN, João Adolfo. Introdução: notas sobre o gênero épico. In: TEIXEIRA, Ivan (Org.). Épicos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p. 15-91. (Multiclássicos; 1)

HOMERO. Ilíada. Tradução dos versos de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

HOMERO. Odisseia. v. I, II, III. Trad. Donaldo Schüler. São Paulo: L&PM, 2007. (Edição bilíngüe grego-português)

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio sobre as formas da grande épica. Tradução, posfácio e notas de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

NUNES, Carlos Alberto. A questão homérica. In: HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 09-63.

ROBERT. Fernand. A literatura grega. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2005.

SCHÜLLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

SOARES, Angélica. Gêneros literários. 7. ed. São Paulo: Ática, 2007. (Princípios; 166)

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III UNIDADE

A tragédia

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ApresentaçãoNós costumamos falar, cotidianamente, algumas pala-

vras, mas nem sempre, nos damos conta de seus sentidos. É bastante comum dizermos, quando algo de ruim acon-teceu a alguém, trazendo tristeza e dor, ou quando ocorre um evento de grandes proporções (por exemplo, um grave acidente com mortes), que se deu uma tragédia. O mesmo também acontece com a palavra trágico, tornada, portanto, um adjetivo capaz de qualificar eventos ocasionados por si-tuações que fogem à ordem natural – basta pararmos para considerar o que dizemos em dadas circunstâncias: “Ocor-reu um acidente trágico” ou “A prova foi uma tragédia”. Ou seja, para nossa visão de mundo seriam trágicos aqueles eventos que ocorrem a nós mesmos ou a outras pessoas, tão comuns e humanas quanto nós, e, por isso, dissemos que houve tragédias quando do atentado contras as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, ou quan-do dos tsunamis no Japão, ou apenas quando algo muito comum saiu fora daquilo o que gostaríamos, mesmo que estejamos tratando da esfera individual, e não apenas de eventos com efeitos coletivos.

Mas, em seus sentidos primeiros, a tragédia (e aqui toma-mos o substantivo) refere-se a uma forma artística que surgiu na Grécia antiga. Das tragédias nos restaram apenas alguns textos (os dramas trágicos, propriamente ditos) e algumas poucas imagens, pintadas em vasos muito antigos, além de outras poucas informações – digo poucas, pois foram muitas as tragédias encenadas na Antiguidade. Estes textos serviam a uma encenação teatral, com funções políticas e religiosas, diante de uma plateia que se postava num teatro (em grego, esta palavra queria dizer “lugar de onde se vê”), e neles estava representado o repertório de mitos e histórias tradicionais que o povo grego reconhecia – inclusive a partir de suas relações com as epopeias homéricas –, todavia, o que se destacava era capacidade de cada poeta de recontar o antigo e o tradicional, mostrando sua habilidade de co-mover o público e de inovar.

Ou seja, a tragédia estava intimamente relacionada àquele contexto, mas, enquanto forma artística, continuou

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tendo amplo desenvolvimento em toda a história do teatro no Ocidente (no Renascimento, no Classicismo francês, no Romantismo e, por que não, na Contemporaneidade), visto ser tomada, desde o pensamento de Aristóteles, como uma forma perfeita e complexa, sendo, então, uma espécie de ideal a ser atingido em muitos momentos da história da cul-tura pelos autores que buscavam uma posição de destaque e de reconhecimento. Mas, nesses outros contextos, ela se modificou formalmente. Nesta aula, trataremos, especial-mente, da tragédia grega, como aquela que se circunscre-via à representação de uma ação culminando em desfecho trágico, ou seja, aquele no qual um destino seria selado pela modificação de uma estrutura sociopolítica ou mesmo pela morte terrível de uma personagem importante como fecho da ação, sempre ocasionando uma mudança radical, nor-malmente, da felicidade para a infelicidade (mesmo que o contrário, bastante raro, também fosse possível).

Estudar a tragédia é, mais uma vez, conhecer o mundo antigo para que, como num espelho, possamos também nos reconhecer. É esse o nosso desafio. Garanto que é um desa-fio emocionante e muito rico.

Objetivos

Ao final desta unidade, esperamos que você seja capaz de:

• Distinguir aspectos teóricos que diferenciam a epopeia e a tra-gédia;

• Definir, teoricamente e mediante a apreensão de seus elemen-tos estético-formais, a tragédia;

• Compreender e discutir a forma da tragédia grega, a partir de um esquema de leitura do Agamêmnon, de Ésquilo.

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Da narração, da forma dramática e da representação teatral

Quase sempre, a teoria e a crítica literárias têm considerado os textos circunscritos ao gênero dramático como obras à parte do con-junto das formas literárias, tendo em vista a conexão destes textos com a arte teatral, em que o espetáculo se torna o objeto mais óbvio de análise. Contudo, devemos considerar que o espetáculo teatral não se compõe apenas de textos, mas de muitos outros elementos: as imagens sugeridas, a voz do ator e todos os outros elementos de sonoridade, a cenografia e os figurinos, que formam, no conjunto, uma espécie de obra audiovisual em que todas essas linguagens se congregam para dar a ideia de unidade.

É assim que, no contexto da representação teatral, o texto escrito – ou, também como podemos chamar, a dramaturgia – aparece como um aspecto de fundo literário, podendo, inclusive, à parte da represen-tação, apenas ser lido, sem que o leitor, necessariamente, precise ver o espetáculo. É claro que, ao lermos, criamos uma espécie de palco imaginário na cabeça, na qual os elementos suscitados pela leitura vão tomando uma forma. Por este viés, afirmamos que o texto dramático é literatura, sim, e autônomo para esta atividade de leitura, mesmo que seja escrito para ser encenado. Por estes caminhos, marcaríamos as relações de tensão entre narrar (o princípio da poesia épica, a diegese) e mostrar (o princípio da poesia dramática, tomado enquanto mimese), conforme se formula desde o pensamento grego, sobre o qual vimos falando desde a primeira aula.

Haveria, ainda, conforme D’Onofrio (2000, p. 126), outras cone-xões:

[...] A poesia dramática pode ser considerada a síntese da poesia épica e da poesia lírica. O dra-ma reúne a objetividade da epopeia com o princí-pio subjetivo da lírica, ocupando o justo meio entre a extensão da épica e a concentração da poesia lírica. Nele encontramos elementos épicos (a nar-ração de fatos acontecidos no passado, relatos descritivos de batalhas) e líricos (a expressão dos sentimentos das personagens). Em suas origens, aliás, o teatro está embrionariamente ligado às for-mas artísticas da epopeia e da lírica. [...]

Ou seja, a Dramática, mesmo que contenha elementos épicos e líricos, em sentido adjetivo, estaria centrada numa síntese de tempo--espaço – que pode ser recuperada, em suas matrizes épicas, pela nar-ração circunscrita ao diálogo entre as personagens – e pela constitui-

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ção de personagens que falam e agem independentes de um narrador, quase sempre mediante diálogo: mas, aqui, ainda teríamos uma dada forma de compreensão que estaria localizada a apenas determinados textos dramatúrgicos. Num texto dramatúrgico “puro” – e também já afirmamos, antes, que esta pureza é mero desejo teórico –, a narrativa “pura” estaria completamente afastada e, portanto, o tempo-espaço seria sempre aquele que se desenrola num presente absoluto, mediante as relações intersubjetivas que se dão através de um diálogo intersub-jetivo – ou seja, que põe sujeitos em relações comunicativas e ativas – entre indivíduos em cena ou na cena.

Dizer que a tragédia teria origens nestas matrizes da epopeia ou mesmo da lírica, presente nos ditirambos, não resolve um problema de difícil solução, pois falar sobre uma origem da tragédia, como também da epopeia, é algo bastante complexo e, quem sabe, impossível. São muitos os estudos que buscam esta resposta e são muitas as hipóteses. Uma delas é aquela que costuma apontar as origens da tragédia e, consequentemente, do gênero dramático no Ocidente, nas relações entre festas ritualísticas, em torno do culto ao deus Dionísio, e a possi-bilidade de se misturar “cantos e diálogos entre personagens fantasia-dos, representando uma ação mítica situada fora do tempo” (ROMILLY, 1998, p. 19), o que ilustraria ainda a fase mais religiosa desse rito1.

Representação, em um vaso grego, de Édipo e a Esfinge

Para entendermos a tragédia, enquan-to gênero literário na Grécia, devemos buscar situar este fenômeno na passagem deliberada para um espaço específico de representação (aquele do teatro e, tam-bém, das competições entre autores dis-postos a apresentar seus textos diante de uma plateia, que, emocionada, acompa-nhava o desenvolvimento de uma nova forma de arte) completamente distinto das festividades com caráter apenas ritu-al, visto que, por exemplo, no âmbito dos

festivais trágicos se passa a ter clareza de opções estéticas e técnicas, incluindo a própria noção de espetáculo e não mais de rito. Mesmo assim, em seus escritos sobre a tragédia, Aristóteles ainda relega o espetáculo (a opsis, em grego) a uma posição menor, valorizando ex-cessivamente o texto, marcando a distinção radical entre teatro (visual, espetacular) e literatura dramática (textual). Talvez seja aí que surja o problema sobre o qual vimos tratando anteriormente.

A representação teatral passa, então, na Grécia, a acontecer em meio às celebrações da Grande Dionísia, situadamente no festival: um concurso com duração de cinco dias, nos quais três poetas competiam entre si, apresentando três tragédias e uma peça satírica, cada um; ha-vendo também a apresentação de cinco comédias (as comédias seriam um universo completamente à parte, e caberia uma aula interia sobre elas2) e de cantos ditirâmbicos (Cf. WILLIAMS, 2010, p. 41).

1 Sobre, por exemplo, o ditirambo, que seria uma dessas formas primitivas – ainda de natureza pré-dramática, dadas as suas rela-ções com o épico-narratico e com a lírica –, já tratamos em nossa primeira aula. Valeria a pena retomar alguns destes aspectos des-ta forma em que se cruzam gêneros.

2 Chegaram até nós onze comédias de Aris-tófanes, um importante comediógrafo do contexto grego. As comédias, conforme a definição de Aristóteles, se distinguem das tragédias pelos objetos da representação, pois, ao definir a comédia, afirma-se: “A Comédia é, como dissemos, imitação de ho-mens inferiores; não, todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e ino-cente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disfor-me, não tem [expressão de] dor” (ARISTÓTE-LES, Poética, Livro V). Na comédia, associa-da em suas origens a rituais fálicos antigos de fecundidade da terra, um riso jocoso, derrisório e, ao mesmo tempo, transforma-dor, concorria para a discussão filosófica, ética, política, religiosa e, também, literá-ria. Bastaria ler As Rãs, de Aristófanes, na qual temos uma discussão bastante interes-sante sobre o universo artístico envolvendo a composição das tragédias. Fica como uma sugestão de leitura, bastante interessante e esclarecedora.

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Estas encenações, na Grécia, eram bastante diferentes do que pode-mos ver hoje, num teatro ou mesmo na TV: nelas atuavam apenas três atores individuais que assumiam as falas de várias das personagens, identi-ficadas apenas por máscaras (nas máscaras, a cor era um elemento distin-tivo: branco para as femininas e uma cor mais escura para as masculinas), e por um coro, de quinze outras pessoas. Hoje em dia, temos, quase sem-pre, a relação de um ator para cada personagem em cena, e a presença do coro, na história do teatro, foi sendo reduzida até desaparecer, prati-camente por completo, na tradição do drama burguês, iniciada no século XVI. Mais ainda: não podemos esquecer que a encenação grega se dava num imenso espaço a céu aberto, com capacidade para receber um gran-de público – fala-se em algo em torno de dezessete mil pessoas circulando pelo festival, em seus vários dias. Todas essas condições dizem respeito a um contexto muito antigo: estas peças foram encenadas no século V a. C., a época da grande tríade de dramaturgos – Ésquilo, Sófocles e Eurípides.

Foi Aristóteles que, em sua Poética, inaugurou uma tradição de análise das tragédias, mediante a descrição de sua estrutura formal, além da defi-nição em torno de sua finalidade, a catarse, ou seja, o efeito específico ao qual se chegaria, mediante a mimese própria da tragédia, sobre os senti-mentos do espectador/leitor. Assim, a valorização recairia sobre o texto em detrimento do espetáculo. Como estas condições de representação estão distantes de nós, assumiremos, aqui, um exame da tragédia enquanto es-trutura, a partir do pensamento aristotélico.

Para Jacqueline de Rommilly (1998), uma grande estudiosa do assun-to, é correto afirmar que “a tragédia somente adquiriu existência literária a partir do momento em que ela se inspirou, e de maneira ampla e direta, nos fatos de que já se ocupava a epopeia” (p. 19). Devemos, então, con-siderar que estas duas formas antigas tratavam dos mesmos assuntos: os grandes mitos – a Guerra de Tróia, as desgraças de Édipo e sua família, a maldição dos Atridas etc. Isso diz respeito ao fato de que a epopeia foi um gênero literário tomado como de excelência e extremamente valorizado, todavia, a perspectiva aristotélica irá, mediante a comparação, buscar afir-mar a superioridade da tragédia.

Tais mitos, portanto, eram extremamente conhecidos no contexto grego e cabia aos autores trágicos retomá-los para mostrar a sua interpretação pessoal3: ou seja, a originalidade não repousava no nível dos aconteci-mentos, da ação ou mesmo do desfecho, mas na maneira pela qual cada autor poderia enfocar sentidos e/ou outros elementos que ainda não ha-viam sido percebidos antes dele, e que eles iam beber nas fontes da epo-peia:

[...] E não há dúvida que dali extraíram, ao mesmo tempo, a arte de construir personagens e cenas ca-pazes de comover. Conferir o sentimento de vida, inspirar terror e piedade, partilhar um sofrimento ou ansiedade foram sempre traços da epopeia, que ela ensinou aos trágicos. Poder-se-ia igual-mente dizer que, se a festa criou o gênero trágico, foi a influência da epopeia que fez dele um gênero literário (ROMILLY, 1998, p. 21).

3 Este raciocínio toca a acepção aristotéli-ca de mimésis, negando a ideia de que ela seria um processo de mera cópia direta da realidade, ao passo que se enfatiza os di-ferentes graus de liberdade criativa, ou até mesmo de idealização, que recaem sobre os modelos míticos, na esfera narrativa. Ou seja, os mitos tradicionais seriam um objeto-modelo da representação que o ar-tista manipula criativamente para produzir um objeto–produto, no caso da tragédia, um enredo (mythos, em algumas traduções, mito ou fábula), que é a representação de uma ação. Dessa maneira, a atividade poé-tica ajudaria o público a distinguir a poesia (universal) da história (particular).

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Ou seja, de uma transmutação dos temas épicos surgia algo com-pletamente novo, em que se tornou foco mostrar uma ação em curso no drama (ação, em grego) e não apenas narrá-la. Nesse processo, se incorporava uma série de inovações formais, que se fundavam no diá-logo entre uma personagem individual e o coro e, depois, no diálogo entre essa personagem e outras. São estas inovações que levaram ao surgimento, então, de uma forma dramática “madura”, consistindo na presença de um coro (normalmente, a representação de uma coletivi-dade relacionada a polis) do qual se destaca o corifeu (já uma forma de personagem singular), sempre travando relações, mediante diálogo, com um protagonista e outros atores (que representam personagens também individuais), além dos figurantes.

Devemos, mesmo com todas as dificuldades, entender que ao con-trário do que vemos em nossos teatros modernos, os atores gregos não apenas falavam o texto: o coro usava do canto (fala cantada) e da dança; o corifeu utilizava uma modalidade entre canto e a fala, indi-cando a passagem para o diálogo com os atores; já os atores falavam em metros formais, repartindo entre si as partes faladas que podiam chegar ao canto, em momentos de clímax, inclusive marcando a inte-ração com o coro. Ou seja, talvez a representação teatral na Grécia estivesse muito mais próxima de uma ópera do que daquilo o que hoje entendemos como teatro, visto suas relações estreitas com a música e, portanto, com os ritmos musicais da fala.

O teatro grego também era bastante diferente dos nossos teatros. Vejamos mais uma passagem de Romilly (1998, p. 23-24), que, mesmo bastante longa, é importantíssima para nos auxiliar a visualizar aquilo que está tão distante:

[...] Os espectadores ocupavam arquibancadas dispostas num vasto semicírculo. Na sua frente levantam-se paredes de fundo, que dominavam uma cena, comparável ao cenário dos nossos te-atros. Esse era o cenário reservado aos persona-gens. Sobre eles se erguia uma espécie de sacada, onde poderiam aparecer os deuses. Não havia, na verdade, decoração, somente algumas portas e símbolos evocativos do quadro da ação. A ação desenrolava-se, normalmente, do lado de fora, às portas de um palácio. Se fosse necessário, um dis-positivo de palco (ou ekkuklèma) podia colocar em cena um quadro, ou um breve episódio, que reve-lasse uma ação realizada no interior. [...]Em contrapartida, havia uma grande diferença. Além daquele cenário, um teatro antigo dispunha daquilo que se chamava orchestra, ou “orquestra” no sentido que chamamos os “lugares da orques-tra”. Esta era uma vasta plataforma, de formato circular, cujo centro possuía um altar redondo de-dicado a Dioniso; esta plataforma era inteiramen-te reservada às evoluções do coro. É certo que o

Planta baixa de um Teatro grego.

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palco formava o fundo da orquestra, e que poucos passos levavam de um para o outro. No entanto, os dois espaços permaneciam bem distintos; os atores, no palco, não se misturavam normalmente com os coristas da orquestra; e os coristas jamais subiam ao palco.Em outras palavras, o coro, pelo lugar que ocupa-va, permanecia, de certa forma, independente da ação em curso; ele podia dialogar com os atores, encorajá-los, aconselhá-los, temê-los, e mesmo ameaçá-los, mas ficava à parte.4

Como discutimos na aula anterior, as partes quantitativas da epo-peia, vamos também apresentar as partes quantitativas da tragédia, ou seja, a sua estrutura. Mas, antes, devemos parar para refletir um pou-co sobre o que aprendemos até aqui, com uma observação que nos guiará até o fim desta aula: tomaremos como leitura, de modo a que possamos compreender, pela prática crítica e interpretativa, os concei-tos operativos que estamos discutindo, o texto da tragédia Agamêmnon, do mais antigo dos tragediógrafos: Ésquilo. Como já começamos a anunciar na aula anterior, esta tragédia é a primeira parte de uma tri-logia trágica que se chama Oresteia. Ela foi a única trilogia trágica (três tragédias articuladas sob um único ciclo mítico) que chegou completa até o mundo moderno. As suas outras partes são: Coéforas (“Portadoras de Oferendas”) e Eumênides (“Deusas Benévolas”). Discutiremos, aqui, portanto, a primeira delas, e, sempre que for necessário, nos reporta-remos às demais.

Tomaremos, para fins didáticos, o texto de Agamêmnon (2007), na tradução de Trajano Vieira, que traduz os versos gregos, escritos em metros variados e distribuídos de acordo com as mais diversas partes do drama trágico. No que se refere ao estudo que faremos adiante destas mesmas partes, tomaremos como base o comentário de Jaa Tor-rano (2004), de modo a nos auxiliar a compreender o TODO da ação. Obviamente, não se dispensa a leitura integral do texto – que, inclusive, pode ser lido em qualquer outra tradução disponível, que, para além da validade didática, é capaz de proporcionar uma experiência incrível de mergulho na poesia trágica antiga e no complexo entrelaçamento de mitos urdidos em uma estrutura não só bela, mas, antes de tudo, extremamente interessante e complexa.

4 Como uma curiosidade, há um vídeo no Youtube, entre tantos outros, que registra uma encenação moderna do Agamêmnon, com um elenco falando o texto em inglês. Mesmo que o vídeo não traga a legenda, é in-teressante observar aspectos da encenação antiga que se mantêm, como, por exemplo, o uso de máscaras e a relação com o coro. Atente-se para o fato que a representação, aqui, se dá em um teatro também moderno, e não em um espaço a céu aberto, como era na Grécia. Vejam: <http://www.youtube.com/watch?v=O7sdZQ1BDs0> [Parte 1] e <http://www.youtube.com/watch?v=ZZyQNOkLfNE&feature=related> [Parte 2].

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Atividade IComo já vimos até aqui, para a tragédia grega, o CORO era um dos elementos fundamentais, pois unia a expressão lírica a funções semelhantes à do narrador épico: “cabia a ele analisar e criticar as personagens, comentar a ação, ampliar, dar ressonância moral e religiosa a incidentes que por si só não ultrapassariam a esfera do individual e do particular” (PRADO, 1998, p. 87).

Partindo de uma primeira leitura da íntegra do texto do Agamêmnon, de Ésquilo, comente a função do CORO neste texto, destacando seus pontos de vista sobre as personagens individuais e sobre a ação que é representada, especialmente naquilo o que se refere à caracterização da rainha Clitemnestra, uma das mais importantes individualidades que surgem nesse texto. Seria importante chamar atenção para possíveis contrastes entre o que o CORO fala sobre a personagem e o que ela diz sobre si mesma.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

I. A definição de tragédia para Aristóteles: Considerando que, na Poética, este filósofo formulou o que se entende como uma poética da tragédia, ini-ciando uma tradição de análise que a toma como parte de um estudo sobre a técnica poética em geral, devemos tomar a sua definição desta forma po-ética em meio ao conjunto das obras poéticas consideradas como imitativas, apresentando seus elementos ou componentes essenciais, quase sempre em contraste com aqueles da epopeia. Também devemos considerar que o texto aristotélico deve ser lido como um texto teórico voltado à análise descritiva e que, por tal análise, se torna também prescritivo, afirmando como é a ma-neira melhor, ou correta, de se compor uma tragédia, diante do repertório de tragédias gregas, inscrito num conjunto em que se toma, como paradigma, a obra dos três grandes autores aos quais já nos referimos anteriormente.

Por conta dos rumos do tempo e dos movimentos da história, o pensamento aristotélico acabará não tendo nenhuma incidência sobre o teatro latino ou medieval, só depois do Renascimento italiano é que a Poética será redescoberta, no conjunto do grande movimento de rea-valiação e exumação da herança antiga, fazendo surgir o aristotelismo com um sistema bastante fixo e ortodoxo de regras em torno da com-posição do texto dramático e até mesmo da representação teatral5, ra-

5 Para maiores detalhes sobre este tópico, ler Jean-Jacques Roubine (2003). Segundo este estudioso, o assim chamado aristote-lismo se amplia para além de uma teoria, para tornar-se uma ortodoxia em relação à qual cada poeta deveria se situar, formali-zando um modelo de teatro que prevalece-ria em vigência entre os séculos XVII e XIX, quando apareceriam as rupturas e inova-ções do drama moderno.

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dicalizando seus princípios. Como, nesta exposição, não cabem todas estas discussões, vamos nos voltar a determinados aspectos que estão na própria definição de tragédia, presente no texto de Aristóteles:

É pois a Tragédia imitação de uma ação de cará-ter elevado, completa e de certa extensão, em lin-guagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o ‘terror e a piedade tem por efeito a purificação dessas emo-ções.’ (ARISTÓTELES, Poética, Livro VI).

Ao afirmar que a tragédia é a mimesis (imitação/representação) “de uma ação”, o filósofo estabelece que o seu centro está na representa-ção de uma trama de fatos – a que se chamará enredo (mythos) – dado “não por narrativa”, mas mediante atores – clara referência ao espetá-culo visual (opsis) – que representam personagens agindo diretamen-te, sem mediação de um narrador, e compondo esta ação que, pela piedade e pelo terror – a ordem dos sentimentos suscitados pela trama dos fatos –, opera a “purificação” (catarse) destes mesmos sentimentos, advinda do prazer estético. Ou seja, numa tragédia se mostram per-sonagens agindo no drama, por isso mesmo o enredo torna-se o seu elemento mais importante.

Nesta mesma definição, também se aponta para a compreensão de que esta ação é:

• de “caráter elevado”, tendo em vista que as personagens que agem são sérias, com caráter nobre e superiormente elevado: como as da epopeia, são superiores, elevadas em suas virtudes;

• “completa”, por conta do caráter unitário da ação represen-tada no enredo, pois os atos se concatenam de tal modo que nenhum pode ser suprimido sem afetar a sua estrutura, diferen-temente do que vimos na poesia épica em que vários episódios podem ser justapostos, podendo, inclusive, ser compreendidos separadamente. Na tragédia, cada episódio subordina-se aos outros;

• “de certa extensão”, considerando-se que a duração da ação a ser representada não deve ultrapassar o tempo necessário para que ocorra, de maneira verossímil e de acordo com as necessi-dades, a mudança do Destino (da felicidade para a infelicida-de, ou seu contrário), de modo a levar a ação ao seu desfecho.

Como já afirmamos, os sentimentos suscitados pela imitação da ação trágica são o “terror” e a “piedade”. Para Machado (2006), a piedade/compaixão é a emoção sentida pelo espectador perante a personagem que cai na infelicidade, e o terror/medo é a emoção que o espectador sente em relação a que o ocorrido com a personagem possa acontecer com ele próprio, em sua própria vida, tendo em vista o sentimento de empatia que se trava entre o herói e o leitor-público.

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Neste caso, o medo faz-se sentir por si próprio, ao passo que a compai-xão faz-se sentir pelo sofrimento imerecido do outro. Se o herói sofre, ele não sofre por conta de uma falha moral, mas por um erro cometido inconscientemente – sem culpa, como dizemos (a hamartia, em grego).

É esta a ordem de emoções que a tragédia deve despertar no es-pectador/leitor no intuito de purificá-las. Entretanto, o paradoxo está no fato de que, ao invés de sofrimento, o espectador deve sentir pra-zer, o que surgiria quando o espectador, diante do que se representa, experimenta tais sentimentos. Afirma-se, então, que, ao passo em que a análise aristotélica se interessa pela forma da tragédia, ela também se interessa pela sua finalidade: se a definição formal da tragédia a distingue das outras espécies poéticas, o seu efeito também a distin-gue. Este efeito é a catarse: que tem sentidos médicos, purgativos, e que Aristóteles passa a usar para definir um efeito estético de alívio de emoções6.

Como já estamos dizendo desde a primeira unidade, a representa-ção da ação trágica se dá mediante a utilização da linguagem orna-mentada (em que se faz uso de diferentes recursos poéticos), dividida e distribuída nas diversas partes do drama, a que o filósofo chamará de partes quantitativas, como também o fez em relação às da epopeia, Então, vejamos.

II. Partes quantitativas da tragédia: Estas são elementos que dizem res-peito às condições de representação da tragédia grega, em seu contex-to de produção. O meio verbal, portanto, se desdobrava em elocução (também uma parte da epopeia), que era a composição em metros, e em melopeia (a parte cantada, encontrável na tragédia e na comé-dia). A representação da ação em uma linguagem ornamentada dizia respeito ao uso dos diferentes ritmos, metros e do canto que seriam empregados em suas diversas partes, definindo uma estrutura mais ou menos fixa, a saber:

• Prólogo: é a parte inicial de uma tragédia, que precede a entra-da do coro em cena, em que se anunciava o tema e o assunto que seriam desenvolvidos.

• Párodo: era a parte da tragédia que compreendia a entrada do coro, declamando, cantando e executando elementos coreo-gráficos. Das partes corais, é sempre a primeira e era normal-mente composta em ritmo de marcha.

• Episódio: é uma parte completa, entre dois corais, em que se encontram um conjunto de ações ou núcleos narrativos, execu-tado pelos atores que representam personagens. Geralmente, na tragédia, são três episódios que são apresentados7.

• Estásimo: é um canto coral que se intercala entre episódios.

• Êxodo: é a parte final, o desfecho da ação, normalmente can-tado pelo coro.

6 Sobre esta função catártica das artes, e, mais ainda, para que vocês possam visuali-zar a arquitetura e entender a acústica do Teatro de Epidauro, na Grécia, uma das ma-ravilhas do Mundo Antigo, vejam esta parte deste documentário do Discovery Channel, disponível no Youtube, em que poderemos acompanhar a explicação da especialista em estudos gregos Edith Hall: <http://www.youtube.com/watch?v=mLyT05zlPh8&feature=relmfu>. No início do vídeo, se fala sobre templo onde se encontrava o Oráculo de Delfos, e sobre suas funções místicas, no mundo grego antigo. Atentem-se para o fato que Cassandra, na peça de Ésquilo, é uma sacerdotisa de Apolo. É extremamente interessante!

7 Em meio a algum dos episódios, podemos encontrar o kómmos, que envolvia na mes-ma torrente de emoções atores e coristas, fundindo a ação representada na cena e na orquestra, traduzida numa espécie de recitativo lamentoso. Como curiosidade, acessem ao vídeo, disponível no Youtube, que tem um exemplo de uma reconstrução de uma das partes musicais da tragédia Orestes, de Eurípides: <http://www.youtu-be.com/watch?v=eim-n4n0tX0>

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III. As partes qualitativas da tragédia: Estas partes de qualidade se-guiam o mesmo esquema da epopeia, a saber, enredo, caráter, pen-samento e elocução. Todavia, ainda se acrescentam, ao tratarmos da tragédia, mais duas: a melopeia e o espetáculo. Dessa maneira, a elo-cução e a melopeia seriam os meios da imitação; enquanto enredo, caráter e pensamento seriam o seu objeto de representação; por fim, o espetáculo, seria o modo da tragédia imitar (Cf. MACHADO, 2006, p. 26).

Vejamos a definição de cada uma destas partes no quadro abaixo:

PARTES QUALITATIVAS

ENREDO

Entende-se como enredo a trama dos fatos que, sob pena de perder a unidade, devem ser encadeados a partir de relações de causalidade de modo a compor a ação. Para Aristóteles, esta era a parte mais importante de uma tragédia.

CARÁTERÉ o que nos faz dizer, em relação às personagens, que elas possuem estas ou aquelas qualidades, como a bondade, a conveniência, a semelhança, a coerência.

PENSAMENTOÉ tudo o que dizem as personagens, manifestando uma prefe-rência, uma escolha, uma decisão.

ELOCUÇÃOÉ a manifestação do pensamento por meio de palavras, em forma de ordem, súplica, explicação, ameaça, pergunta, res-posta, etc.

MELOPEIAEra toda a parte musical, nitidamente o ornamento mais im-portante da linguagem, combinando poesia e música.

ESPETÁCULO

É um elemento bastante importante, mas considerado por Aristóteles como o menos artístico e menos próprio da poesia. Ele considerava que a tragédia seria capaz de manifestar seus efeitos apenas pela leitura, sem necessitar da representação cênica ou mesmo dos atores. O espetáculo cênico grego era grandioso e envolvia muitos meios, como já comentamos an-teriormente.

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Esquema analítico-interpretativo de uma tragédia: Agamêmnon, de Ésquilo

Na unidade anterior, refletimos rapidamente sobre o encontro de Odisseu com Agamêmnon, quando de sua descida ao Hades. Encon-tramos, juntamente com o herói da Odisseia, o rei grego já morto, dan-do notícias das circunstâncias de sua morte pelas mãos da sua esposa Clitemnestra e de Egisto, a quem ela tomara por amante. Convém, agora, situar os antecedentes que marcam esta família, a partir do que Junito de Souza Brandão (1999, p. 20) chamou de um guénos maldito: ou seja, a construção de “um grupo unido por laços de sangue, [...] co-responsáveis pelo agir do outro”.

Tudo começou com Tântalo, um rei da Frígia que desafiou a imorta-lidade e a onisciência dos deuses, servindo-lhes como banquete a car-ne de Pélops, seu filho, sendo, assim, amaldiçoado. Resuscitado pela intervenção do deus Hermes, Pélops teve dois filhos que passaram a disputar entre si pelo poder: Tieste e Atreu. Fingindo reconciliar-se com o irmão, Atreu serve a ele um banquete com as carnes dos sobrinhos, repetindo os crimes do avô e acionando, novamente, as rodas da mal-dição familiar que lhes pesava. Nascido depois deste evento sanguiná-rio, Egisto jura vingar o sangue dos seus irmãos, contra a descendência do tio, os reis-irmãos Agamêmnon8 e Menelau.

Como também já comentamos na unidade anterior, estes reis-ir-mãos se unem contra Páris, para vingar o ultraje infligido contra a casa de Menelau por conta do rapto de Helena. Todavia, no dia da partida das naus gregas que rumariam a Tróia, a deusa Ártemis, opositora a tal intento, pede, em troca dos ventos que garantiram a viagem, o sacrifí-cio de Ifigênia, a própria filha de Agamêmnon, despertando o ciclo de ira da sua mulher. Durante a ausência do marido, Clitemnestra une-se a Egisto, com quem trama o assassinato do rei, quando da sua volta. É esta a matéria da tragédia esquiliana, sobre a qual já tratara Homero na Odisseia.

Ésquilo irá nos “mostrar” os episódios anteriores à chegada do rei em Argos: a reação dissimulada de sua esposa à sua volta e os comen-tários sobre o que acontecia dentro do palácio tecidos pelos membros do Coro. Depois, presenciaremos o triunfante retorno do comandante grego, acompanhado por Cassandra – uma jovem profetisa troiana, trazida como espólio de guerra – que, juntamente com ele, também será assassinada pelas mãos do casal que se formara durante os dez anos de ausência de Agamêmnon. Agora, já podemos começar a aná-lise das partes da tragédia, seguindo um esquema analítico, tomando a tradução já indicada.

A ação se inicia com o PRÓLOGO (Versos 01-39), parte que tem a função de apresentar ao público (ou ao leitor) a matéria sobre a qual

Máscara funerária em ouro, também conhecida como Máscara de Agamêmnon. Datada de XVI a. C. e encontrada em 1876, em Micenas, por Heinrich Schliemann. Museu Arqueológico Nacional de Atenas

8 Por seu turno, a casa de Agamêmnon teve quatro filhos: Ifigênia, Crisótemis, Electra e Orestes. Ésquilo tratará deste assunto nas peças da Oresteia, que culminam no julga-mento de Orestes pela morte de sua mãe e do amante, como ato de vingança contra o assassínio do pai. Assim, podemos dizer que esta trilogia tem um final “feliz”, pois acaba com a harmonização da maldição que pesava sobre os Átridas, mesmo que as duas primeiras peças da trilogia tenham um final trágico por excelência: a primeira com a morte do rei, e a segunda com a morte da rainha e do seu amante, tendo por con-sequência a perseguição de Orestes pelas Erínias (deusas vingativas do sangue fami-liar), por conta do derramamento do sangue da mãe pelo filho, o que abrirá o debate entre os deuses tendo em vista a posterior percepção da inocência do jovem filho de Agamêmnon. Nestas peças, então, temos a oposição entre “thémis”, o direito antigo, baseado nas regras religiosas e sobre os la-ços de sangue, e a “dike”, o direito, agora, profano, baseado em raciocínios humanos.

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se edificará o restante do enredo. Nesta tragédia, ele é composto como um solilóquio dramático-narrativo do primeiro personagem a nos ser apresentado, o Guarda, e está claramente divido em duas partes (v. 01-20 e v. 21-39), cujo marco divisório é o anúncio da visão do aviso de fogo, indicador da queda de Ílion, com a vitória dos argivos, mar-cando o retorno iminente do rei, já há dez anos ausente.

Encontramos o Guarda esperando, no alto do palácio dos Átridas, em Argos, por este sinal, sob as ordens da rainha. É este o primeiro mo-vimento do prólogo, que fala das penas desta função, espraiando-se sobre a reflexão em torno do estado atual daquela casa, tecendo an-tecipações do final trágico, ao mesmo tempo em que o Guarda clama pelo fim de sua fadiga. Revela-se, então, nos céus, o sinal luminoso. Esta personagem, alegremente, não só vê sua missão cumprida, pondo fim à obrigação para com a rainha, mas, ao mesmo tempo, rejubila-se diante da volta do rei, a quem deve lealdade. É neste ponto que sua fala encaminha-se para aquilo o que deveria permanecer oculto: os movimentos internos à casa real, mas que, todavia, parecem bastante óbvios ao povo da cidade, como se revelará no transcurso da ação. Se a casa tivesse voz, talvez anunciasse, ela mesma, o que se passava; mas preferiria calar-se. E o rei, contraditoriamente, para sua própria casa seria tido como parvo – tolo, idiota – pois não pode antever o que o espera.

Convencionou-se, para esta tragédia, identificar como PÁRODO todo o enorme canto coral que se inicia com a entrada do coro e segue até a primeira aparição de Clitemnestra diante dos anciãos (v. 40-258). Se-guindo rigorosamente o que descreveu Aristóteles, seria párodo apenas o que se tem entre os versos 40-102, compostos em ritmo de marcha (o ritmo anapéstico) e que marcam o caminho do coro até a orquestra, onde os coreutas se postam durante toda a encenação e onde cantam, dançam e narram-representam partes da ação. Nestes versos, se com-pletam “as informações dadas no prólogo referentes ao tempo do dra-ma, ao caráter da expedição contra Troia, à personalidade do coro e às circunstâncias presentes da ação” (TORRANO, 2004, p. 23). Por isso podemos chamar esta ampla estrutura de Párodo Anapéstico, no qual se retoma a memória épica da guerra de Troia, localizando a estrutura do enredo em meio às façanhas dos irmãos Átridas.

Conforme o coro “narra”, ouviu-se, dez anos antes, um clamor de batalha que chegou até os deuses olímpicos, que enviam, contra Pá-ris (ou Alexandre), a Erínia – personificação mítica da vingança – por conta do desrespeito pelas leis do costume em torno das obrigações do hóspede para quem o recebe, o que ofendeu a Zeus-hóspede. Como sabemos Páris “roubou” Helena, mulher de Menelau, e, por ela, gre-gos e troianos travaram as batalhas ferocíssimas impulsionadas pela vingança – de caráter, também, sagrado, afinal, a hospitalidade argiva fora violada. A partir do verso 83, o coro se volta à rainha que se reve-la, mesmo ausente da cena, ao mesmo tempo em que sua presença se faz viva nos inúmeros sacrifícios que repousam sobre os altares de toda a cidade, claramente indicadores de que algo aconteceu. Assim, o coro questiona sobre o que ela teria conhecimento e que ainda estaria ocul-

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to da população. É necessário entender que a informação do Guarda, portanto, só haveria chegado à intimidade da casa real.

Segue-se, então, o que se chama de Párodo Lírico (v. 104-258), em que se ampliam os questionamentos feitos à rainha. Conforme Torrano (2004), esta passagem é formada por três movimentos. O primeiro de-les se dá quando o coro remonta o auspício (v. 104-161) revelado no dia da partida das naves gregas para a guerra, agora já finda: seria, portanto, uma antevisão da vitória, revelada no voo de duas águias que, diante dos reis, atacam ferozmente uma lebre prenha, devorando--a e às suas crias ainda não nascidas. Este auspício foi decifrado, pelo adivinho Calcas como duplo: tanto seria a indicação que os reis-irmãos conseguiriam derrotar Troia, como também revelaria um lado infaus-to: a deusa Ártemis impediria a partida dos gregos, parando o vento, por se sentir ultrajada diante do abate da pobre lebre. Calcas, então, solicitou a intervenção de Apolo, junto à sua irmã. Neste ponto, inicia--se o segundo movimento, em que o coro entoa um hino a Zeus (v. 160-183), maior que todos os seus nomes e/ou epítetos, louvando sua potência e aspirando a “esse ponto de vista divino” (TORRANO, 2004, p. 33). Sucede a este hino, o último movimento, no qual o coro se fortalece para fazer um relato de tudo aquilo o que sucedeu à mani-festação do auspício: Agamêmnon, para agradar a deusa e conseguir partir para a guerra, sacrificou a própria filha, Ifigênia, o que purgaria os males que pesavam sobre seu guénos, marcado pela Erínia vingati-va do sangue familiar (outrora derramado e agora cobrado por Dike, a Justiça), o que possibilitara a partida. É neste momento em que se saúda a entrada de Clitemnestra. Devemos entender que os episódios, nesta tragédia, são em número de cinco.

No PRIMEIRO EPISÓDIO (v. 258-354), dialogam, na cena, Clitemnes-tra e o Coro. Diante da majestade que se apresenta, símbolo de auto-ridade na ausência do rei, se destacará, do grupo córico, o Corifeu, de maneira reverente e respeitosa, para ainda perguntar sobre a razão dos sacrifícios que se espalham pela cidade (v. 258-263). A esta pergunta, a rainha veiculará suas razões: tudo se deve ao anúncio da vitória dos argivos sobre Troia. O corifeu, mesmo emocionado, ainda interpela a rainha sobre a origem da informação: seria uma revelação por sonho ou meros rumores? A rainha, altiva, anuncia que as boas novas vinham por sinal de fogo, evocando o deus Hefesto, transfigurado nas tochas que se acenderam pelas distâncias que separam um lugar do outro. É assim que ela pode enunciar o que se passa e o que acontecerá, como se vislumbrasse todo o percurso do retorno (v. 320-348). O coro louva, então, a sensatez da mulher que, assim, aproxima-se de um juízo mas-culino. A rainha retira-se da cena.

Segue-se, a este episódio, o PRIMEIRO ESTÁSIMO (v. 355-488). Esta é a primeira das três intervenções cantadas pelo coro, que separam os episódios. Louva-se a Zeus e à Deusa Noite, que se lançam sobre Troia, respondendo positivamente ao auspício sobre o qual se tratou no páro-do. A justiça se abateu sobre Páris, em resposta ao desrespeito contra o solar átrida, tendo como paga a ruína de sua cidade. Se antes o coro confiara, plenamente, nas palavras da rainha, agora, se opera uma

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ruptura, dada pelo desprestígio do discurso feminino, visto como sus-ceptível a rumores, que os coreutas passam a julgar como inverídicos.

Com o anúncio da aparição de um Arauto, capaz de esclarecer os sinais evocados pela rainha em sua veracidade, abre-se o SEGUNDO EPISÓDIO (v. 489-680). O homem saúda o solo de sua terra natal, para onde não mais acreditava que voltaria, louvando aos deuses e, principalmente, a Hermes, patrono dos arautos. Depois, dirige-se ao próprio palácio, que deveria preparar-se para a chegada do “há muito ausente” (v. 522), capaz de trazer claridade à noite, imagem que ecoa a passagem das trevas à luz do prólogo: o rei deveria ser acolhido por trazer paz à sua terra, após a vitória da Guerra. Estas revelações revalidam o sentimento de dúvidas do Coro, já pontuadas no primeiro estásimo. A isto o Arauto questiona: “O país era saudoso dos saudo-sos?” (v. 545). O Coro responde melancolicamente, dando ensejo para um novo questionamento: “Ausente o rei, alguém te amedrontava?” (v. 549). Se, para o Arauto, o retorno é jubiloso, de outro lado, o Coro passa a temer pelo pior, pois conhece o que se esconde no adro do palácio, passando a desejar a morte como dádiva, ao passo em que o regressante diz que as dádivas são todas advindas da vitória.

Entra em cena, então, a rainha que, sempre altiva, desdenha da-queles que tentaram lhe destratar, escarnecendo da sua interpretação do sinal de fogo. Diante do Arauto, ela dissimula: diz que é “esposa fiel”, estando, portanto, “incólume” e que, contrariando o falatório, ela não conheceu prazeres como outro homem, o que deveria, como “mulher de berço”, proclamar. Após estas palavras, retira-se. Ocorre, então, um terceiro momento deste episódio. Questionado pelo Coro acerca do destino de Menelau, o Arauto revela que parte da sua ar-mada foi destruída e afundada pela fúria dos elementos, reveladora da cólera de deuses, estando, pois, desconhecido o destino do irmão de Agamêmnon, prenunciando um temor do Coro pelo destino dos Átri-das, apesar da vitória já tão decantada.

Como se verá no SEGUNDO ESTÁSIMO (v. 681-781), o Coro discute, entre outras coisas, as origens dos nomes como prenunciadoras dos acontecimentos funestos. É assim que se apresenta a etimologia de He-lena (aquela capaz de levar à perdição naves, heróis e cidades), como antevisões da destruição da armada de Menelau e da cidadela de Ílion. Desse belo canto coral, eclode uma fala que saúda, finalmente, a che-gada do rei à cidade, louvado por todos e abrindo, assim, o TERCEIRO EPISÓDIO (v. 782-974). A saudação do Coro acaba se convertendo numa revelação ambígua dos trabalhos que esperavam o rei, em seu regresso: “Com o tempo, tua perquirição revelará/ o nativo que desna-turou ou não/ a polis natal,/ o reto e o roto” (v.806-809).

Agamêmnon, pela primeira vez, falará neste texto, mesmo que muito já tenha sido dito sobre ele: seu discurso começa com a saudação a Argos e aos deuses pátrios, seus aliados na vitória. Pela sua fala, se é possível visualizar os resquícios das cinzas de Ílion, destruída por conta de Helena pelos argivos, como também a declaração de um voto de con-fiança na lealdade dos seus patriotas, os quais são comparados a Odis-seu, parceiro sem par na batalha, do qual ele não conhece o destino.

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Em decorrência deste discurso, reaparece a rainha, que inverte a pers-pectiva do assunto, antes remetendo ao campo de batalha, agora deslo-cado por suas manipulações para a intimidade doméstica, representada também invertidamente: “Sentar sozinha em casa, para a esposa,/ sem o marido, é bem mofino” (v. 861-2), de modo a simular suas falsas preocu-pações com aquilo o que se passava nos campos troianos, dirigidas, en-tão, ao Coro. É a esta altura que ela vai dar conta da ausência de Orestes, justificando-a e dirigindo-se ao seu rei, ausente dez anos, pela primeira vez, sempre dizendo que busca elevar seu discurso à altura daquele que chega. Por fim, se volta à acolhida: ela solicita que seu marido não pise com os pés que marcharam em Troia sobre a sua terra natal. Para tanto, ela estendeu, dali até as portas do palácio, ricos mantos tingidos de púr-pura – a cor que, como saberemos, tingirá o palácio quando do sacrifício real. Agamêmnon teme que, por conta dos caprichos feminis, ele seja alvo da inveja humana ou mesmo que isso seja uma desmedida, pois só os deuses mereceriam tal recepção. Para persuadi-lo, Clitemnestra demole os argumentos do marido, declarando que, neste debate, deseja vencê-lo. O rei admira a força da mulher e aceita sua oferta, seguindo para o solar sobre a púrpura. Vitoriosa, ela fala em sentidos nos quais subjazem a sua opulência e o seu desejo de tomar o poder.

Com a entrada do rei na casa real, dá-se início ao TERCEIRO ESTÁ-SIMO (v. 975-1034), no qual o Coro exprime o temor diante dos vati-cínios que se apresentam, refletindo, por fim, sobre a iminência ame-açadora daquilo que há para se cumprir. Pela fala da rainha, que se dirige a Cassandra, figura muda até este momento e que chegou com a comitiva do rei, notamos sua presença em cena pela primeira vez, dando início ao QUARTO EPISÓDIO (v. 1035-1330).

A rainha trata Cassandra com desprezo, conclamando para que ela entre também no palácio, mas sempre a jovem troiana guarda silêncio, sendo interpretado este seu gesto, pelo Coro e por Clitemnestra, como medo ou, ainda, ignorância da língua grega. A rainha, por fim, se retira, alegando que a moça “é maluca e escuta maus espíritos” (v. 1064) e que não mais jogará palavras ao vento, deixando a recém-chegada com os membros do Coro. Cassandra, finalmente, abre a sua boca: grita e clama por Apolo, o seu guia, por quem se julga deplorada e abandona-da, começando a anunciar sua visão do que ocorrerá dentro da casa de Agamêmnon: o assassinato duplo – o do rei e o dela própria. Mas, os membros do Coro se recusam a dar crédito às suas palavras, só passan-do, depois, a confiar nelas. Cassandra, então, narra a sua relação com Apolo, o deus que preside os oráculos: por conta de sua recusa à relação erótica com o deus, a jovem foi punida com a incredulidade de todos os que a ouvissem, mas, mesmo assim, ela ganha crédito do Coro após sua proclamação: “Verás – afirmo! – a morte de Agamêmnon.” (v. 1246). A esta revelação, o Coro apenas clama para que a profetisa se engane. Num impulso de indignação diante de seu destino, Cassandra destrói as insígnias de profetisa que traz consigo e afirma que sua morte será marcada, no futuro, por um desagravo, “pois chega um justiceiro/ que vinga o pai, progênie matricida” (v. 1280-1), clara referência a Orestes, entregando-se, em seguida, à morte iminente, ao adentrar o palácio, clamando por justiça à luz do Sol.

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Jaa Torrano (2004) identifica as partes seguintes, antes do último episódio, como Anapestos do Coro (v.1331-1342) e Diálogo dos Coreutas (v. 1343-1371) – pois, realmente, não são, formalmente, um estásimo, tendo em conta seu caráter dialógico. Em tais partes, o Coro reflete sobre a morte próxima de Agamêmnon como pagamento pelo sangue dos filhos de Tiestes e, ao mesmo tempo, o de Ifigênia e de seus guer-reiros, mortos em Troia. Como nas tragédias gregas, as cenas de morte não eram exibidas, ouvimos, de dentro da casa, os gritos do rei, anun-ciando os golpes que lhe abatem. Os coreutas temem o que sucede, debatem sobre o que devem fazer e, na dúvida sobre o que se passa dentro da casa, temem invadi-la ao mesmo tempo em que temem a “tirania” que se aproxima. É neste ponto que Clitemnestra reaparece, abrindo o QUINTO EPISÓDIO (v. 1372-1576), iniciando seu discurso por afirmar que proferirá o inverso do que antes dizia, a rainha de Argos narra, minuciosamente o seu ato regicida (v. 1382-1392), espécie de oferenda ritual em contrapartida à imolação de Ifigênia, no passado – juntamente com a morte de Cassandra, tratada como amante do seu marido. O Coro analisa tais atos em suas consequências políticas e humanas, enquanto sofre pela morte do seu rei, e teme pelo destino da cidade.

Pintura em vaso ateniense mostrando a morte de Agamemnon. 500-450 a.C.

Esta tragédia não termi-na com um êxodo conven-cional, em que teríamos a reflexão do coro sobre a ação. Ao contrário, temos quase uma espécie de novo episódio, que se ini-cia no verso 1576, e que segue até o término do tex-to, em que se apresenta Egisto, retomando a narra-tiva em torno da disputa

entre Atreu e Tieste, culminando no banquete macabro, para que ele possa se caracterizar como um emissário de Dike, a Justiça. À fala de Egisto, contrapõe-se a lealdade do Coro ao rei morto, ameaçando o tirano com o desejo da volta de Orestes. Clitemnestra se interpõe, afir-mando ao seu amante que a cidade logo se prostrará ao mando dos dois. Assim termina a ação, deixando o espaço aberto para as suas sequências, conforme vimos comentando.

Terminada, também, a nossa atividade analítica e interpretativa, chegou a hora de pararmos, novamente, para uma reflexão mais am-pla sobre o que lemos. Esta unidade encerra nossa incursão às formas artísticas e aos liames teóricos que nos conectam ao mundo antigo. Na aula seguinte, começaremos a discutir aspectos da narrativa moderna e contemporânea. Até lá!

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Atividade IIJunito de Souza Brandão (2009) afirma que Ésquilo responsabiliza diretamente Clitemnestra pela morte de seu marido, Agamêmnon, pelo que é ameaçada pelo Coro. A tais ameaças, como diz o mesmo analista, ela responde “altaneiramente em nome de Ate, a cegueira da razão, e das Erínias, as vingadoras do sangue parental derramado: a morte do seu esposo é uma resposta ao sacrifício de Ifigênia” (p. 353). Ou seja, a rainha de Argos, vinga o derramamento do seu próprio sangue. Assim, teríamos duas maneiras de ler este assassinato: “do ponto de vista patriarcal, é um crime abominável, mercê da posição superior do homem; do ponto de vista do matriarcado, é considerado diversamente: Clitemnestra não estava ligada ao marido pelo ius sanguinis. O assassinato de um marido não interessa às Erínias, para as quais só têm importância os vínculos de sangue e a santidade materna” (BRANDÃO, 1999, p. 30). Diante disso, posicione-se, criticamente, sobre o final da tragédia, assumindo uma das formas de interpretar o assassinato cometido por Clitemnestra.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

Resumo

Nesta unidade, tratamos da tragédia, a partir da análise do seu contexto de produção, considerando para isso as suas condições so-ciais e estéticas de representação, como também de seus elementos formais, em suas aproximações e diferenças em relação à epopeia. Consideramos, para tanto, a definição aristotélica de tragédia, presente na Poética, e propomos a construção de uma leitura analítico-interpre-tativa da tragédia Agamêmnon, de Ésquilo.

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Leitura recomendadaComo as discussões críticas sobre a tragédia são realmente muito

amplas, considerando não só seus aspectos históricos, teóricos, mas, também, a variedade de temas tratados pelos diversos autores, sugiro, para aqueles que quiserem aprofundar seus conhecimentos, a leitura de dois artigos publicados em revistas especializadas na internet. O primeiro deles, de Rachel Gazolla, discute a tragédia em meio às suas relações com a polis e com a Filosofia, além das implicações éticas da mimesis. O segundo segue caminhos parecidos com o que tomamos: o seu autor, Adilson dos Santos, se preocupa com os aspectos formais da tragédia, seguindo um caminho teórico que também se lança ao desafio de diferenciar “tragédia” e “trágico”. Seguem as referências:

GAZOLLA, Rachel. Tragédia grega: a cidade faz teatro. Revista Philosophica, n. 26, Instituto de Filosofía Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, 2003. Na internet: <http://www.philosophica.ucv.cl/abs26tragedia.pdf>

SANTOS, Adilson dos. A tragédia grega: um estudo teórico. Investigações, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, v. 18, n. 01, jan. 2005. Na internet: <http://www.revistainvestigacoes.com.br/Volumes/Vol.18.N.1_2005_ARTIGOSWEB/A-tragedia-grega-um-estudo-teorico_ADILSON-DOS-SANTOS.pdf>

AutoavaliaçãoCom vistas a que cada de nós possamos avaliar o que aprendemos nesta unidade, escrevam um pequeno texto crítico, refletindo sobre as relações de semelhança e diferenças entre o conceito técnico de tragédia, tomada como um fenômeno artístico localizado na Grécia, e a maneira como se toma a palavra “tragédia” em muitas das notícias de jornais que circulam diariamente na imprensa. Para facilitar, selecione uma notícia recente em algum meio online (jornais, revistas etc.).

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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Referências

ARISTÓTELES. Poética. 5. ed. Tradução, prefácio, introdução, comentários e apêndices de Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998.

BRANDÃO, Junito de Souza. Uma heroína forte: Clitemnestra. In:__. Mitologia grega, volume III. 15. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 345-370.

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 2: Teoria da lírica e do drama. São Paulo; Ática, 2000.

ÉSQUILO. Agamêmnon.Tradução, introdução e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2007.

MACHADO, Roberto. Poética da tragédia e filosofia do trágico. In:__. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 23-30.

MALHADAS, Daisi. Tragédia grega: o mito em cena. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: CANDIDO, Antonio et. al. A personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 81-101.

ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Tradução de Ivo Martinazzo. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1998.

ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

TORRANO, Jaa. Sacralidade e violência: estudo de Agamêmnon. In: ÉSQUILO. Agamêmnon. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, FAPESP, 2004. p. 15-100. (Orestéia: 1)

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

______. Drama em cena. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

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IV UNIDADE

A narrativa

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ApresentaçãoÉ chegada a hora de direcionarmos nossos focos para as

formas da narrativa em prosa. Para tanto, vamos nos valer de conhecimentos sistematizados pela teoria da narrativa. Como vimos dizendo desde o início, por mais que a palavra “teoria” nos assuste um pouco, por parecer, algumas ve-zes, apenas uma palavra pronta para designar um conjunto indigesto de normas e conceitos vazios de sentido, nossa tarefa durante todo esse módulo é entender que a teoria, ao contrário do que possa causar essa primeira impressão, deve ser, antes de tudo, uma valorosa aliada para a tarefa de análise e interpretação crítica de um texto literário. São esses conhecimentos que, afinal, vão diferenciar o leitor co-mum de um leitor crítico, capaz de discernir procedimentos estéticos e interpretá-los durante a atividade de leitura de um texto.

Como se verá, nesta unidade, muito do que já estuda-mos passará a se articular em novas categorias que se di-recionam para as formas literárias da narrativa em prosa. Todavia, também buscaremos compreender a estrutura da narratividade, ou seja, aquele domínio que, todos nós, te-mos sobre formas de contar histórias, tendo em vista que nossa vida, nosso mundo, nossas experiências podem ser repassadas através de narrativas que, a todo o momento, nos rodeiam, não só na forma literária, mas em filmes, tele-novelas, músicas, folhetos de cordel, peças de teatro...

Depois, vamos nos aproximar das discussões teóricas em torno do foco narrativo, uma discussão bastante complexa, com diferentes maneiras de sistematização – nosso objetivo aqui será apresentá-la em linhas gerais, abrindo portas para um aprofundamento que, cada um de nós, sempre deve fazer, em diferentes momentos de nossas trajetórias como estudiosos da literatura. É, sem sombra de dúvidas, um dos desafios mais instigantes ao qual vamos nos lançar durante este módulo. Portanto, sigamos.

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ObjetivosAo final desta unidade, esperamos que você seja capaz de:

• Discutir o conceito de narrativa, mediante instrumentos teóricos da narratologia;

• Definir e distinguir categorias fundamentais na estrutura da nar-rativa literária: narrador, narratário, enredo;

• Sistematizar discussões em torno do foco narrativo.

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A narrativa: aproximações gerais e primeiras compreensões teóricas

Em um interessante capítulo do seu livro Teoria Literária, Jonathan Culler (1999) explica-nos que, tempos atrás, como também temos visto até aqui, literatura significava, acima de tudo, poesia. Contudo, com a ascensão do romance – forma literária que ganha grande importância no século XIX –, a poesia, mesmo ainda sendo bastante estudada, per-deu sua primazia diante do crescente interesse em torno do estudo da narrativa romanesca e, depois, da narrativa curta, o conto. Esse não seria um resultado advindo apenas de uma modificação histórica ou, ainda, por exemplo, dos currículos escolares, mas daquilo o que este teórico chama de uma “centralidade cultural da narrativa” (p. 84).

No que se refere a um campo de estudos sobre a narrativa, cha-mamos de teoria da narrativa (ou narratologia) aquelas vertentes te-óricas construídas como ramo específico da teoria literária e que se preocupam com o estudo da narrativa literária, ou seja, o conjunto de textos literários integráveis no modo narrativo: e aqui devemos lem-brar que, apesar da maioria dos textos narrativos serem escritos em prosa, não devemos, por exemplo, excluir do conjunto destes textos narrativos a epopeia, pois, mesmo escrita em versos, é intrinsecamente narrativa – caso, também, da nossa tradição nordestina dos folhetos de cordel. Mas, ao falarmos em narrativa literária, é claro que estamos nos circunscrevendo a apenas certa parcela de textos narrativos, ou seja, aqueles com caráter ficcional, daí também podermos ampliar este construto conceitual para a dimensão da narrativa ficcional.

É este o raciocínio expresso também por Carlos Reis (2008), em seu livro O conhecimento da literatura, no qual, como Culler, demonstra a clareza de que não devemos perder de vista o significado cultural e o funcionamento de outros textos narrativos em nossa experiência: são textos – num sentido amplo da palavra – encontráveis em outros con-textos comunicativos e suportes, como a narrativa fílmica, os programas televisivos, as anedotas, as canções, os desenhos animados, as pintu-ras, os videogames, as biografias etc., dos quais podemos depreender uma narrativa, uma história que se conta. Mas, para cada um deles, teríamos que recorrer a procedimentos específicos, por isso mesmo, e pelo limite da nossa proposta, buscaremos nos fixar nos meandros dos textos literários.

Assim, para além da especificidade literária, passaríamos a com-preender a narratividade como “processo geral que é comum a to-das as narrativas e não apenas exclusivo das literárias” (REIS, 2008, p. 344). Todos nós temos domínio sobre este processo, que se torna uma espécie de “competência” presente em nossas vidas desde sem-

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pre – basta lembrarmo-nos de como gostávamos, quando crianças, de ouvir uma mesma narrativa, identificando quando o “contador” tentava burlar alguma etapa para chegar logo ao final, ou mesmo alterando-o. Para Culler (1999, p. 85), então, a teoria da narrativa seria concebida como uma “tentativa de explicar detalhadamente, tornar explícita, essa competência narrativa”, espécie de conhecimento intuitivo, todavia, apoiada “em noções de enredo, de diferentes tipos de narradores, de técnicas narrativas”.

Neste ponto, como já apresentou Carlos Reis (2008, p. 347), pode-mos sintetizar as propriedades dos textos narrativos ficcionais:

• Quase sempre são textos que se voltam à tradução de uma exteriorização, contrariamente àqueles pertencentes ao gêne-ro lírico e que tendem à interiorização. Tal exterioridade está centrada num narrador, quase sempre colocado em “situação de alteridade em relação àquilo de que se fala” (p. 347). Basta pensarmos em narradores que estão completamente exteriores à história, em posição distanciada, ou seja, que diz “ele” (narra-dor de terceira pessoa), não sendo uma das suas personagens. É importante observar que mesmo em casos em que o narrador diz “eu” (narrador de primeira pessoa), colocando-se dentro da narrativa, essa exterioridade não se apaga, pois ele pode nos falar, por exemplo, da personagem que foi, no passado, vendo--se como a um outro1;

• a partir dessa exterioridade, os textos narrativos tendem à re-presentação objetiva: uma atitude que é dominante, mas não impede incursões de ordem subjetiva2. Portanto, é a “capacida-de que a narrativa literária possui para nos dar a conhecer, de forma não raro muito pormenorizada, algo que é objetivamente distinto do sujeito que relata”;

• os procedimentos estéticos em um texto narrativo instauram uma dinâmica de sucessividade, que está muito atrelada ao devir temporal. Ao tempo também se relacionam os espaços, as personagens etc., de modo que se dê “conexões de contiguida-de entre esses vários elementos que sucessivamente vão sendo apresentados” (p.350).

Passemos, agora, a um estudo mais pormenorizado dos planos fun-damentais de uma narrativa, ainda seguindo os passos deste mesmo autor.

I. Narrador, narratário, enredo – Conforme Carlos Reis (2008), a nar-rativa literária se estrutura em dois planos fundamentais: o plano da história relatada e o plano do discurso que a relata, articulados na instância da narração, em que se particularizam outras categorias nar-rativas: a personagem, o espaço, a ação, o tempo, a perspectiva nar-rativa (ou foco narrativo) e o narrador (ou seja, a pessoa que enuncia a narrativa)3. Cabe, agora, começar a discutir os planos fundamentais.

No plano da história, pelo conjunto de ações representadas em cadeias sucessivas, definimos o enredo, que pode ser pensado, como bem postula Culler (1999), a partir de duas maneiras. O enredo tanto é

Esta imagem de Gustave Dore é bastante representativa da relação entre o narrador (contador de histórias) e o seu destinatário.

1 Esse princípio de exteriorização “só se anula quando o sujeito da narração se centra, de forma insistente e sistemática (não apenas de maneira pontual), sobre o seu universo interior. Tende-se, nesse caso, para a interiorização própria do modo lírico e a narrativa chega a fazer-se precisamente narrativa lírica” (REIS, 2008, p. 348, grifos do autor).

2 Como aponta o mesmo autor, em narrati-vas não verbais, como a cinematográfica, “a posição da câmera ou os efeitos de monta-gem constituem fatores decisivos de insinu-ação subjetiva” (p. 348).

3 Estas categorias serão estudadas nas uni-dades a seguir.

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um modo de organização dos acontecimentos com vistas a transformá--lo numa história, como também é aquilo o que é configurado pelas narrativas, podendo-se, assim, apresentar-se a mesma história de di-ferentes maneiras, de acordo com o ponto de vista do discurso. Ou seja, “o enredo ou história é o dado e o discurso são as apresentações variadas dele” (CULLER, 1999, p. 87).

Para deixar, ainda mais claras tais definições, vamos recorrer a ou-tra estudiosa do assunto, Samira Nahid de Mesquita. Em um livro em que discute especificamente o enredo, esta autora o define da seguinte maneira:

[...] apresentação/representação de situações, de personagens nelas envolvidos e as sucessivas transformações que vão ocorrendo entre elas, criando-se novas situações, até se chegar à final – o desfecho do enredo. Podemos dizer que, es-sencialmente, o enredo contém uma história. É o corpo de uma narrativa (MESQUITA, 2006, p. 07).

É assim que o enredo se encontra nas obras em prosa (romance, conto, novela etc.), mas também num poema épico, numa peça de teatro, ou num samba-enredo de uma escola de samba, estruturando, portanto, a potencialidade narrativa, para além do gênero épico, en-quanto forma literária. Ou seja,

[...] Confrontado com um texto (um termo que in-clui filmes e outras apresentações), o leitor o com-preende identificando a história e depois vendo o texto como uma apresentação específica daquela história; identificando “o que acontece”, somos ca-pazes de pensar no resto do material verbal como sendo a maneira de retratar o que acontece. Daí, podemos perguntar que tipo de apresentação foi escolhida e que diferença isso faz. Há muitas vari-áveis e elas são cruciais para os efeitos das narra-tivas. [...] (CULLER, 1999, p. 87).

Mas, nas obras a que estamos chamando de narrativas literárias, ou também poderíamos falar de ficção em prosa, o enredo aparece como elemento estruturador daquilo o que se narra, portanto, a histó-ria. Daqui em diante, sigamos em busca de respostas a algumas per-guntas, básicas para o entendimento daquilo o que estamos expondo: “o que se narra?”; “quem narra?” e “a quem se narra?”.

Para respondermos à primeira pergunta – o que se narra? –, vamos recorrer, novamente à Mesquita (2006, p. 28), para quem o núcleo dramático é o “gerador das ações das personagens, em torno do qual se podem criar outros conflitos, confronto de forças antagônicas, ação gerando ação, em sentido contrário”. São estas forças que, em relacio-namento, impulsionam a mutação das situações, envolvendo as perso-nagens, mas também podem recair sobre o contexto social em que tais personagens se inserem.

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Primeiramente, então, poderíamos falar, por exemplo, da caracteriza-ção do enredo como “de amor”, “de aventuras” ou “de aprendizagem”, entre outros, de acordo com as motivações do seu núcleo dramático, centrado em seus personagens. De outro lado, quando a ênfase da moti-vação do conflito recai sobre o contexto social – discutindo, por exemplo, as relações conflituosas de trabalho, de luta pelo poder ou pelo dinheiro – podemos, por exemplo, chegar ao que se convencionou chamar de romance social, ou de tese. Portanto, nestes casos, as personagens se inserem, enquanto “matéria narrada”, em um “universo representado”, e aqui estamos tratando da “materialidade do espaço físico – mundo vegetal, mineral, animal, pessoas, objetos, em seu inter-relacionamento, em diferentes significações, nas situações em que são apresentados pelo discurso narrador” (MESQUITA, 2006, p. 31).

De acordo com esta autora, então, aquilo o que se narra se distingue da forma como se dá a narrativa, diferenciando o plano da história/enredo, ficção/narração do plano da história/discurso, enunciado/enun-ciação. Desta feita, o que se narra é uma história, um enredo estruturado como produto de situações e fatos narrados que se dispõem de uma determinada maneira a um leitor (ou ouvinte) por um discurso. Assim, a narração se dá mediante a enunciação.

Como consequência, chegamos, facilmente, à segunda pergunta – quem narra? –, Mesquita afirma que, na medida em que apresentamos a matéria narrada (ou seja, o plano da história), devemos, então, passar para uma compreensão em torno do plano do “discurso que narra”, ou da enunciação: portanto, o tratamento verbal que um autor dá ao material sobre o qual constrói sua obra e que aparece/desaparece no discurso (voz do narrador, enunciação). Este plano, então, “‘administra’ a narração, ordena os fatos, decide a perspectiva, o ponto de vista, o foco narrativo a partir do qual se focaliza a matéria narrada” (MESQUITA, 2006, p. 34).

O sujeito da enunciação, que articula a narração, portanto, é o nar-rador – construído pelo autor como um sujeito ficcional, tanto quanto as personagens4. É, assim, distinto do autor, sendo uma das suas “in-venções” para o universo narrativo que cria. Todavia, podemos também considerar sobre esta categoria aquilo o que afirma Carlos Reis (2008, p.354-5):

[...] é um fato que o autor pode projetar sobre o narrador determinadas atitudes ideológicas, éticas, culturais, etc., que perfilha, o que não quer dizer que o faça de modo direto e linear, mas eventual-mente cultivando estratégias ajustadas à represen-tação artística dessas atitudes: ironia, proximidade relativa, construção de um alter ego, etc. O que significa que as conexões entre autor e narrador resolvem-se no quadro amplo das opções técnico--literárias contempladas pelo autor.

Chegamos à terceira pergunta: a quem se narra? Se há uma história sendo contada, por um narrador, obviamente implica-se a existência de um receptor, para o qual este narrador se dirige, estando identificado –

4 Esta formalização daquele que narra pode se dar de múltiplas maneiras. Sobre isso tra-taremos adiante, ainda nesta unidade.

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caso de uma história dentro da história, como quando um personagem conta uma história que se encaixa na outra para outra personagem – ou, no mais das vezes, permanecendo subentendido, aceitando a narração sem questionamentos mediante aquilo o que lhe é explicita-do. Este receptor/destinatário da narração é chamado de narratário, e também não deve ser confundido com o leitor “real”: é um ser com existência puramente textual. Em muitos casos, portanto, pode ser di-fícil se identificar o narratário, pois ele não está na superfície do texto narrativo e não é mencionado, contrariamente ao estatuto do narrador.

Vamos pensar juntos?Gostaria de apresentar um caso curioso que envolve estas ques-

tões, de modo que possamos ter uma possibilidade de aplicação prá-tica dos conceitos expostos até aqui. O caso sobre o qual vou chamar atenção está relacionado ao romance O Guarani, de José de Alencar, escrito em 1857.

O romance de José de Alencar já foi adaptado para filmes e, também, para uma ópera, composta por Carlos Gomes, em 1870

Há, neste livro, um prólogo, em que o “autor” – aquela primeira voz que apa-rece no plano do discurso que narra: as aspas dão conta da questão a ser pro-blematizada – se dirige a uma “prima”, a quem destina a narrativa. Foi esta mesma “prima” sua interlocutora nas duas narrativas – Cinco minutos (1856) e A viuvinha (1857) – produzidas anterior-mente à fatura do romance, publicado originalmente em folhetins, a saber, uma forma de narrativa seriada, publi-cada periodicamente em jornais, dia-riamente, com capítulos curtos, bastan-te comum àquela época.

No prólogo, então, mais uma vez, a “prima” comparece, mas, des-ta vez, como alguém que depositara fé nas habilidades do “escritor” que agora lhe destina partes de um manuscrito para que sejam lidas, a fim de ganhar sua adesão a um projeto nascente. Assim, vejamos:

Minha prima. — Gostou da minha história, e pe-de-me um romance; acha que posso fazer alguma coisa neste ramo de literatura.Engana-se; quando se conta aquilo que nos im-pressionou profundamente, o coração é que fala; quando se exprime aquilo que outros sentiram ou podem sentir, fala a memória ou a imaginação.Esta pode errar, pode exagerar-se; o coração é sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu; e o sentimento, qualquer que ele seja, tem a sua beleza.

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Assim, não me julgo habilitado a escrever um ro-mance, apesar de já ter feito um com a minha vida. Entretanto, para satisfazê-la, quero aproveitar as minhas horas de trabalho em copiar e remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário desta casa, quando a comprei. Estava abandonado e quase todo estragado pela umidade e pelo cupim, esse roedor eterno, que an-tes do dilúvio já se havia agarrado à arca de Noé, e pôde assim escapar ao cataclisma.Previno-lhe que encontrará cenas que não são co-muns atualmente, não as condene à primeira leitu-ra, antes de ver as outras que as explicam.Envio-lhe a primeira parte do meu manuscrito, que eu e Carlota temos decifrado nos longos serões das nossas noites de inverno, em que escurece aqui às cinco horas.Adeus (ALENCAR, 1992, p. 13).

No corpo da narrativa romanesca propriamente dita, esta “prima” não mais voltará a aparecer, conservando-se “no pórtico do romance, deixando de ser aquele expediente mais ou menos fácil com que Alen-car conduzia as intrigas superficiais” nas narrativas anteriores, como já bem pontuou João Alexandre Barbosa (1992). Tornada “depositária da obra”, a “prima” (portanto, um narratário) desaparece e eclode a voz de um narrador.

Seguindo o ponto de onde começamos, é necessário ter clareza para não se confundir autor e narrador. Como já pontuaram Santos e Oliveira (2001), a propósito de outro romance, neste caso, o Dom Cas-murro, de Machado de Assis, nos textos ficcionais há uma série de vozes que se imbricam: as vozes das personagens que, por sua vez, nos são veiculadas pela voz de um narrador, que também pode ser personagem de sua própria narrativa – mas, “as vozes do narrador e das persona-gens soam através de uma outra voz, que as articula em um conjunto. Essa voz, agregadora mas múltipla, é a voz do autor” (p. 04). A partir deste apontamento, vamos retornar à citação feita acima do prólogo do romance alencariano.

É interessante considerar que o autor, localizado num tempo distin-to daquele da matéria narrativa, previne o destinatário em torno das cenas que lerá, tendo em vista remeterem a um relato de um tempo bastante anterior, pois o manuscrito foi encontrado no velho armário de uma casa onde agora ele habita, quase todo danificado pela umidade e pelo cupim, marcando, mais uma vez, a dimensão histórica não só do objeto mas da narrativa que ele contém. A questão, portanto, é bas-tante curiosa. Devemos considerar esta voz como a do próprio Alencar ou como mais um artifício ficcional, em que o autor (ele mesmo) já se mascara com um autor fictício?

Para quem já leu Dom Casmurro é claro que o seu narrador é Bento Santiago, o Bentinho. Este narrador “é um sujeito ficcional, ele também é habitante do universo imaginado por Machado de Assis” (p. 03).

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Assim, neste romance machadiano haveria dois níveis de enunciação:

[...] há um nível ficcional de enunciação – cujo sujeito, em Dom Casmurro, é Bentinho; e um nível não-ficcional de enunciação – cujo sujeito é Ma-chado de Assis. No primeiro caso, trata-se de um narrador; no segundo, de um autor. O narrador, portanto, não é quem efetivamente escreve o livro (é possível, porém, que o narrador encene, simule a ação de escrevê-lo). A voz do narrador não é a voz do autor, apesar de poder haver, entre elas, muitas semelhanças – de timbre, de intensidade, de sinuosidade, etc. o narrador é uma criação do autor. A voz do narrador é a ficção de uma voz. Um nível de enunciação (Bentinho narrando sua história) está contido no outro (Machado narrando a história de Bentinho narrando sua história). A voz de Bentinho está contida na voz de Machado, mas não corresponde a ela (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 03, grifos dos autores).

Por este raciocínio, poderíamos afirmar que quem se enuncia, no prólogo de O Guarani é um autor-narrador, já inserido num plano fic-cional, e o não o autor José de Alencar, que estaria no plano não--ficcional, conduzindo as vozes romanescas. É este autor-narrador que, enunciando-se no prólogo, já passar a construir uma argumentação bastante sedutora para justificar a escolha do que se encontrará narra-do nas páginas sucedâneas – ou seja, uma narrativa de tempos idos, cujas cenas “não são comuns atualmente” – solicitando que a “prima” “não as condene à primeira leitura, antes de ver as outras que as ex-plicam”. É este sujeito ficcional, manipulado pelo autor, que suspende, a partir dali, qualquer limite entre falso e verdadeiro, instaurando a di-mensão da narrativa literária nos meandros da verossimilhança – sobre isto já tratamos nas unidades anteriores, mas vale retomar: se ao ler, o leitor deve tomar os fatos narrados como críveis, esta

[...] credibilidade advém da organização lógica dos fatos dentro do enredo, da relação entre os vários elementos da história. Cada fato da história tem uma motivação (causa), nunca é gratuito, e sua ocorrência desencadeia inevitavelmente novos fatos (consequência). Na análise da narrativa, a verossimilhança é percebida na relação causal do enredo, isto é, cada fato tem uma causa e desen-cadeia uma consequência (GANCHO, 2006, p. 12, grifos da autora).

Por este artifício, ao mesmo tempo em que se solicita não só o bom grado da recepção da “prima”, simultaneamente começa-se a se inserir o leitor real no universo ficcional, pedindo-lhe, de início, certa condes-cendência em torno do que ele se prepara para ler – a saber, uma his-tória que se refere ao Brasil do século XVII, povoada por aventureiros,

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senhores portugueses em missão de colonização, heróis à moda dos romances de capa e espada, heroínas suspirantes por amor e realiza-ção e, principalmente, índios, divididos em dois grupos antagônicos: os que se aliam aos colonizadores, de onde se destacará o herói absoluto do romance, Peri; e, de outro lado, os temíveis Aimorés, antropófagos que se lançarão sobre o solar da família de Dom Antônio em busca de vingança.

Provavelmente, o autor, pessoa física, desde o prólogo, parece se preparar ou mesmo antever todos os maus juízos extremados já pro-feridos em torno da exigência de um seu compromisso histórico com a verdade sobre a colonização brasileira, sempre relida ficcionalmente em seus romances de temática indianista: daí tecer o prólogo como esta abertura radical para a ficção. Como se sabe, a narrativa ficcional não tem compromisso com a verdade histórica: ela deve ser entendida, lida, apreciada, de acordo com o seu encadeamento, pelos fatos que se articulam em seu enredo, seguindo as esferas de causa e de conse-quência, portanto, a partir de sua estrutura verossímil, apreensível em sua economia interna.

Mais ainda, é curioso como o autor, ao manipular este sujeito fic-cional que escreve – na verdade, um copista ou escriba, às voltas com um manuscrito carcomido –, também discute uma questão relacionável às formas narrativas, em confissão para a “prima”. Sobre o pedido dessa destinatária fictícia para que se escreva um romance, ele acaba por confessar-se pouco habilitado para a escrita de tal forma, por isso prefere assumir esta postura de coautoria em relação ao manuscrito, justificando, assim, a matéria histórica sobre a qual O Guarani se assen-ta, o que será bastante reafirmado nas inúmeras notas que buscam dar severidade documental às personagens, fatos, tipos, costumes e hábitos retirados dos cronistas do Período Colonial. Abre-se caminho para mais uma discussão sobre os mesmos (des)limites entre fato e ficção, entre história e romance... Sobre isso, a palavra do crítico é contundente:

[...] E é curioso observar como, pela leitura do “Prólogo”, é ainda o personagem, não o autor, dos romancetes anteriores que envia à “prima” a cópia de um hipotético manuscrito realizada por ele e Carlota (a jovem romântica do primeiro ro-mancete, como se sabe) “nos longos serões das nossas noites de inverno”, como ali está dito. A fic-ção dentro da ficção, portanto, e não assumindo ares de crônica verdadeira como nos livros iniciais, é que vinha estabelecer a distinção entre história e romance por ele requerida (BARBOSA, 1992, p. 06).

É interessante, ainda, destacar que a estrutura dessa narrativa, or-ganizada em muitos capítulos curtos, conforme as necessidades de seu primeiro suporte folhetinesco, acaba dando ao leitor uma forte impres-são de estrutura cinematográfica, sempre pontuada pela suspensão de um evento chave retomado na sequência, ou ainda pelas revelações

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da narrativa que começa já em estado avançado, só tendo os eventos anteriores ao que se lê em suas primeiras páginas retomados a poste-riori. O enredo, portanto, vai se construindo aos poucos, em relações de consequência entre os inúmeros episódios que se apresentam para retardar o conflito final entre os Aimorés e os portugueses, culminando na destruição ritualística do solar português erigido nos trópicos, quan-do a narrativa tecida em tons épicos se entrega definitivamente ao mito.

No epílogo, se fecha o ciclo das águas do Paquequer, rio que se avi-zinha da casa, com a tromba d’água diluviana – curiosamente também já presente no prólogo, na nota incômoda em torno da sobrevivência do cupim via arca de Noé –, abrindo outro momento da narrativa em que Cecília, a filha de Dom Antônio de Mariz, se une ao índio Peri, marcando o nascimento da mestiçagem brasileira pelo signo aquático e não mais pelo fogo destrutivo do confronto, presente na explosão do paiol que extingue a linhagem portuguesa e, ao mesmo tempo, a fúria dos índios que se negavam a dobrar-se ao colonizador. As águas diluvianas do Paquequer despertam no índio Peri a narrativa do mito de Tamandaré, um Noé indígena, que salva sua amada da destruição das águas repovoando o mundo, como, de alguma maneira, o próprio Alencar também aponta que voltará a acontecer, após a palmeira que leva o indígena e a jovem portuguesa sumir-se no horizonte. O hipoté-tico leitor, seja o narratário, sejamos nós mesmos, tem que estar atento a tudo isso, para, e só assim, poder desfrutar das maravilhas desse incrível romance.

A esta altura, e como consequência desta reflexão em conjunto, entre nós mesmos e os posicionamentos teóricos e críticos expostos, sigamos à nossa primeira atividade. Certamente, já temos uma série de conhecimentos passíveis de articulação.

Atividade I

Leia, com atenção, o trecho inicial do conto de Machado de Assis, intitulado “Miss Dolar”5:

Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papel sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss Dollar.Se o leitor é rapaz e dado ao gênio melancólico, imagina que Miss Dollar é uma inglesa pálida e

5 Para a leitura integral do conto, recorra a bibliotecas e acervos virtuais.

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delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo à flor do rosto dois grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas tranças louras. A moça em questão deve ser vaporosa e ideal como uma cria-ção de Shakespeare; deve ser o contraste do roast--beef britânico, com que se alimenta a liberdade do Reino Unido. Uma tal Miss Dollar deve ter o po-eta Tennyson de cor e ler Lamartine no original; se souber o português deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Camões ou os Cantos de Gonçal-ves Dias. O chá e o leite devem ser a alimentação de semelhante criatura, adicionando-se-lhe alguns confeitos e biscoitos para acudir às urgências do estômago. A sua fala deve ser um murmúrio de harpa eólia; o seu amor um desmaio, a sua vida uma contemplação, a sua morte um suspiro.A figura é poética, mas não é a da heroína do ro-mance.Suponhamos que o leitor não é dado a estes deva-neios e melancolias; nesse caso imagina uma Miss Dollar totalmente diferente da outra. Desta vez será uma robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos vivos e arden-tes, mulher feita, refeita e perfeita. Amiga da boa mesa e do bom copo, esta Miss Dollar preferirá um quarto de carneiro a uma página de Longfellow, coisa naturalíssima quando o estômago reclama, e nunca chegará a compreender a poesia do pôr do sol. Será uma boa mãe de família segundo a doutrina de alguns padres-mestres da civilização, isto é, fecunda e ignorante.Já não será do mesmo sentir o leitor que tiver pas-sado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso. Para esse, a Miss Dollar ver-dadeiramente digna de ser contada em algumas páginas, seria uma boa inglesa de cinquenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando ao Brasil em procura de assunto para escrever um romance, realizasse um romance ver-dadeiro, casando com o leitor aludido. Uma tal Miss Dollar seria incompleta se não tivesse óculos verdes e um grande cacho de cabelo grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapéu de linho em forma de cuia, seriam a última demão deste magnífico tipo de ultramar.Mais esperto que os outros, acode um leitor dizen-do que a heroína do romance não é nem foi in-glesa, mas brasileira dos quatro costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga é rica.A descoberta seria excelente, se fosse exata; infeliz-mente nem esta nem as outras são exatas. A Miss Dollar do romance não é a menina romântica, nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a bra-

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sileira rica. Falha desta vez a proverbial perspicácia dos leitores; Miss Dollar é uma cadelinha galga.Para algumas pessoas a qualidade da heroína fará perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de não ser mais que uma cade-linha galga, teve as honras de ver o seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para este livro. O Jornal do Comércio e o Correio Mercantil publica-ram nas colunas dos anúncios as seguintes linhas reverberantes de promessa:“Desencaminhou-se uma cadelinha galga, na noi-te de ontem, 30. Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achou e quiser levar à rua de Mata-cava-los n°..., receberá duzentos mil-réis de recompen-sa. Miss Dollar tem uma coleira ao pescoço fecha-da por um cadeado em que se leem as seguintes palavras: De tout mon coeur.”Todas as pessoas que sentiam necessidade urgente de duzentos mil-réis, e tiveram a felicidade de ler aquele anúncio, andaram nesse dia com extremo cuidado nas ruas do Rio de Janeiro, a ver se da-vam com a fugitiva Miss Dollar. Galgo que apare-cesse ao longe era perseguido com tenacidade até verificar-se que não era o animal procurado. Mas toda esta caçada dos duzentos mil-réis era comple-tamente inútil, visto que, no dia em que apareceu o anúncio, já Miss Dollar estava aboletada na casa de um sujeito morador nos Cajueiros que fazia co-leção de cães (ASSIS, 2003, p. 694-695).

Agora, pense sobre duas das perguntas feitas acima: “o que se narra?” e “a quem se narra?”. Considere, na sua reflexão, as diferentes possibilidades de construção de expectativas acionadas, virtualmente, pelo narrador, em relação ao narratário, apenas pelo nome Miss Dolar. Depois, tome o excerto crítico, abaixo, e reflita, por escrito, sobre os diferentes narratários que podem ser delineados, tendo em vista estes mesmos horizontes de expectativas em relação ao que se anuncia como matéria narrada – a partir daí, busque responder a outra pergunta: “quem narra?”, refletindo sobre a relação entre autor e narrador, conforme fizemos acima.

A mesma tendência de confundir autor e narrador pode ser observada no que diz respeito a leitor e narratário. O termo narratário foi cunhado para designar o sujeito para quem se narra, aquele a quem se dirige o discurso. [...] Esse leitor construí-do, pressuposto, pressentido, desejado é o narra-tário. De maneira semelhante, podemos conhecer o autor real de um texto. Mas, no espaço textual, o autor transparece transfigurado, por omissão ou reforço de certos traços, ou seja, assumindo a voz de um narrador. Assim como o narrador é o resul-tado de um processo de ficcionalização do autor, o

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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narratário é o resultado da ficcionalização do leitor.Nenhum escritor sabe, exatamente, quem é o leitor de seus livros. Por outro lado, sempre se escreve tendo-se em mente o fato de que haverá um leitor. É essa ideia de leitor – o narratário – que podemos detectar em qualquer texto. [...] (SANTOS; OLIVEI-RA, 2001, p. 20-21, grifos dos autores).

II. A questão do foco narrativo – Para ampliarmos conhecimentos, com vistas a responder a pergunta “quem narra?”, é necessário nos vol-tarmos, agora, às teorias em torno do narrador e do foco narrativo, que são primordiais para a consolidação de um instrumental teórico relevante para o entendimento das estruturas narrativas, não só no que diz respeito à narrativa literária, mas em relação às demais formas de narrativa, em sentido amplo.

Temos, então, que partir da seguinte consideração: toda narrativa é ficção, tendo em vista que não é possível exigir, de um narrador, neutralidade em relação ao que se narra. Portanto, ao lidarmos com estruturas narrativas estamos lidando com narrativas ficcionais, visto que, mesmo um historiador, tem certo grau de envolvimento subjeti-vo em relação àquilo o que narra. Todavia, como começamos esta unidade afirmando, a narrativa tende a buscar, pela exterioridade, a objetividade, o que, automaticamente, é posto em questionamento ao lidarmos, por exemplo, com narrativas em primeira pessoa (aquelas em que o narrador diz “eu”). Ou seja, a exterioridade e subjetividade são dominantes, mas não excludentes da expressão de subjetividades, tendo em vista que, em literatura, também como já aprendemos, não há “pureza”6.

De todo modo, as narrativas na modernidade se distinguem, sobremaneira, daquilo o que já vimos em relação à narrativa épica clássica, formalizada nas epopeias, tendo em vista as inúmeras diferen-ças (não apenas formais, mas históricas e contextuais) que separam a forma antiga, por exemplo, da narrativa romanesca. Daí, Ligia Chia-ppini Moraes Leite apresentar, lucidamente, esta discussão, no tocante ao narrador:

Na EPOPEIA, o NARRADOR tinha uma visão de conjunto e se colocava (e colocava o seu público) à distância do mundo narrado. O seu tom era solene; e ele era o rapsodo, uma espécie de vate, de ini-ciado, de mediador entre as musas e seus ouvintes. Já o narrador do ROMANCE – quando a narrativa se prosifica na visão prosaica do mundo, quando se individualizam as relações, quando a família se torna nuclear, quando o que interessa são os peque-nos acontecimentos do quotidiano, os sentimentos dos homens comuns e não as aventuras dos heróis – perde a distância, torna-se íntimo, ou porque se dirige diretamente ao leitor, ou porque nos aproxima intimamente das personagens e dos fatos narrados (LEITE, 2006, p. 11-12, destaques da autora).

6 Segundo Leite (2006, p. 12), a narrativa objetiva “seria um mito. Mesmo quando o narrador não se interpõe diretamente entre nós e os seres ficcionais, eles são feitos de palavras, escolhidas e arranjadas num conjunto estruturado por alguém – um autor implícito, segundo W. Booth, sempre, ao mesmo tempo, oculto e revelado pelo e no que se narra”.

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Como essa mesma autora expõe, em seu livro O foco narrativo (2006), as teorias em torno dessa questão surgem a partir das reflexões de Henry James e Percy Lubbock: o primeiro, em prefácios aos seus romances, defende a ideia de que em um romance deveria haver um ponto de vista único, de modo a que não se desvie o leitor da história que se conta, destacando, assim, que o narrador deve ser uma “pre-sença discreta”, para dar a impressão de que a história “se conta a si própria”, atacando, portanto, qualquer configuração de narradores de primeira pessoa. Depois, Lubbock, no mesmo sentido, também irá con-denar narrativas em que o narrador se configura como excessivamente “indiscreto”, interferindo sobremaneira no que se conta.

Daí a distinção entre narrar e mostrar, que indicaria o grau de intro-missão do narrador à medida que, quanto mais ele interfere na narra-tiva, ele acaba por mais contar que mostrar. Vejamos alguns exemplos desses usos, a partir de dois excertos que nos ajudarão a compreender melhor essa questão. Mas, antes, gostaríamos de chamar atenção para a oposição, feita por Lubbock, a partir do que nos ensina Leite, entre cena e sumário:

[...] Na CENA, os acontecimentos são mostrados ao leitor, diretamente, sem a mediação de um NAR-RADOR que, ao contrário, no SUMÁRIO, os conta e os resume; condensa-os, passando por cima dos detalhes e, às vezes, sumariando em poucas pági-nas um longo tempo da HISTÓRIA (LEITE, 2006, p. 14, destaques da autora)7.

Assim, de posse destas informações, atentemos, primeiramente, a um caso em que há o predomínio do mostrar, portanto, em que se dá um tratamento dramático à narrativa. Para isso, vamos recorrer, de novo, a um trecho de O Guarani, tendo em vista que, nesta cena sele-cionada, praticamente o narrador não interfere no decurso da ação, deixando as personagens agirem mediante o diálogo travado e repre-sentado diretamente, como se o leitor estivesse diante da cena que se desenvolve, quase dispensando a presença mediadora do narrador que, neste caso, apenas nos deixa a par daquilo o que o diálogo não consegue transmitir, como a movimentação das personagens no espa-ço ou os gestos e sentimentos que complementam o que se exprime pela voz das mesmas:

A menina avistando o índio correu para ele.— Meu pobre Peri, disse ela; tu sofreste hoje muito, não é verdade? E achaste tua senhora bem má e bem ingrata, porque te mandou partir! Mas agora, meu pai disse: Ficarás conosco para sempre.— Tu és boa, senhora: tu choravas quando Peri ia partir; pediste para ele ficar.— Então não tens queixa de Ceci? disse a menina sorrindo.— O escravo pode ter queixa de sua senhora? tor-nou o índio simplesmente.

7 Alguns desses aspectos serão retomados na Unidade 06.

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— Mas tu não és escravo!... respondeu Cecília com um gesto de contrariedade; tu és um amigo sincero e dedicado. Duas vezes me salvaste a vida; fazes impossíveis para me veres contente e satisfeita; to-dos os dias te arriscas a morrer por minha causa.O índio sorriu.— Que queres que Peri faça de sua vida, senhora?— Quero que estime sua senhora e lhe obedeça, e aprenda o que ela lhe ensinar, para ser um ca-valheiro como meu irmão D. Diogo e o Sr. Álvaro.Peri abanou a cabeça.— Olha, continuou a menina; Ceci vai te ensinar a conhecer o Senhor do Céu, e a rezar também e ler bonitas historias. Quando souberes tudo isto, ela bordará um manto de seda para ti; terá uma espada, e uma cruz no peito. Sim?— A planta precisa de sol para crescer; a flor pre-cisa de água para abrir; Peri precisa de liberdade para viver.— Mas tu serás livres; e nobre como meu pai!— Não!... O pássaro que voa nos ares cai, se lhe quebram as asas; o peixe que nada no rio morre, se o deitam em terra; Peri será como o pássaro e como o peixe, se tu cortas as suas asas e o tiras da vida em que nasceu.Cecília bateu com o pé em sinal de impaciência.— Não te zanga, senhora.— Não fazes o que Ceci pede?... Pois Ceci não te quer mais bem; nem te chamará mais seu amigo. Vê; já não guardo a flor que me deste.E a linda menina, machucando a flor que arrancou dos cabelos, correu para o seu quarto e bateu a porta com violência.O índio voltou pesaroso à sua cabana (ALENCAR, 1992, p. 136-7).

Um segundo caso, seria aquele em que se dá o predomínio do narrar, também extraído do mesmo romance alencariano, em que po-demos constatar um tratamento pictórico dado à narrativa, através do uso do sumário, que condensa uma passagem de tempo, explicitando a presença do narrador, enquanto instância ativa na narração – como se pode atestar, o excerto começa com a tarde “morrendo” e termina com a noite já plenamente instalada, entre um momento e outro, tanto a natureza quanto às personagens reagem, mas tudo isso se dá rapida-mente, como numa construção de um quadro rápido, em que ações se sucedem para indicar o decurso temporal, mediante ações e reações:

A tarde ia morrendo.O Sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas, que iluminava com os seus últimos raios.A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela ver-

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de alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores.Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas; o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam a pou-sada, enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.Um concerto de notas graves saudava o pôr-do--sol e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda e ceder à doce influência da tarde.Era a Ave-Maria.Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo, em que a nature-za se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite![...]A brisa, roçando as grimpas da floresta, traz um débil sussurro, que parece o último eco dos rumo-res do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente a esse senti-mento vago, que não é bem tristeza, mas respeito misturado de um certo temor.De repente, os sons melancólicos de um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde, era um dos aventureiros que tocava a Ave--Maria.Todos se descobriram.[...]Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um fundo recolhimento e diziam uma oração muda, que apenas agitava imperceptivelmente os lábios.Por fim o Sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício, e um tiro saudou o ocaso.Era noite (ALENCAR, 1992, p. 42-3).

Após estes rápidos exemplos, é importante esclarecer que as posi-ções de James e Lubbock foram, no decorrer do tempo, bastante criti-cadas por seu caráter prescritivo e excludente, mesmo que ainda possa-mos fazer uso delas, em determinados contextos8. Tais críticas decorrem da constatação de que, em uma narrativa, há a possibilidade de termos inúmeros pontos de vista, como também o vislumbre de todas as possi-bilidades de um narrador indiscreto, como o que vimos no conto “Miss Dollar”, de Machado de Assis, capaz de interferir nos rumos da história que se conta.

8 Com destaque para a oposição cena e sumário, útil quando vamos analisar uma narrativa midiática – por exemplo, um filme, em que pelos usos da câmera e da edição, configurados como um narrador (a que se chama de narrador cinemático) capaz de selecionar aquilo a que o espectador tem acesso, desenvolve a narrativa em cenas e em sumários narrativos, estes últimos muito usados, por exemplo, para indicar uma mu-tação de tempo e/ou espaço.

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Obviamente, a partir dessa constatação, poderíamos fazer um le-vantamento das inúmeras classificações relativas ao foco narrativo9, mas seria quase impossível apresentar todas elas. Tal qual já fez Leite (2006), também poderíamos nos ater à sistematização proposta por Norman Friedman – voltaremos a ela em nossa próxima atividade –, no texto “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico” (2002), originalmente publicado em 1967, mas ainda bastante referido e utilizado por diversos estudiosos. Entretanto, destas inúmeras posições, aqui, gostaríamos de chamar atenção para uma bastante curiosa e que se opõe a qualquer dogmatismo, tomada por Wayne Booth, em seu livro A retórica da ficção (1983)10, que é a base do que discute Maria Lúcia Dal Farra, em seu estudo sobre narrativas em pri-meira pessoa, intitulado O narrador ensimesmado (1978).

Para Booth, conforme Leite (2006), há inúmeras maneiras de se contar uma história que não estão submetidas ao predomínio de um método dramático sobre um pictórico, nem a regras gerais sobre o que se supõe como uma narrativa ideal, mas que se relacionam pri-mordialmente aos “valores a transmitir e [aos] efeitos que se busca desencadear” (p. 17). Portanto, este autor cunhou uma categoria que põe em posição incômoda as teorias “do desaparecimento do autor ou da narrativa objetiva”, considerando que “o autor não desaparece [na narrativa] mas se mascara constantemente, atrás de uma personagem ou de uma voz narrativa que o representa” (p. 18): é o que Booth cha-ma de “autor implícito”.

Ao mesmo tempo em que, conforme já compreendemos, o “ho-mem responsável pelo romance, cujo nome aparece na capa, traz a sua face apagada dentro da ficção. Seu rosto está encoberto pelos véus da mistificação romanesca e seu olhar velado pela perspectiva do narrador que criou” (DAL FARRA, 1978, p. 19); por outra perspectiva, a partir do que pontua Booth, o autor, mesmo camuflado pela ficção, se trai no interior da obra, e essa constatação é advinda da compre-ensão crítica de sua técnica particular, cuja “retórica” é manipulada no processo de articular a obra com vistas a “se comunicar com seus leitores e impor seu universo ficcional” (p. 20). Portanto, não se criaria apenas um narrador impessoal, ideal, distanciado, mas, cada autor criaria “juntamente com sua obra uma versão implícita de si mesmo: o seu ‘autor-implícito’” (p. 21).

Deste modo, e por este raciocínio, não se deveria considerar ape-nas o ponto de vista do narrador, em uma análise, mas entendê-lo como um dos elementos que estão em embate na construção da ótica romanesca: que também deve considerar os pontos de cegueira, pois o ponto de vista adotado, seja o mais amplo ou o mais restritivo, sem-pre “é um recurso do autor implícito para promover ‘lacunas’ – por excesso ou carência de lucidez – que juntas, visão e ‘cegueira’, num intercâmbio dialético – espécie de feixe de diferentes interferências de tons – darão a coloração verdadeira ao romance” (DAL FARRA, 1978, p. 24). Antes de avançarmos mais, é hora de pararmos para mais uma atividade.

9 No Dicionário de narratologia (1987, p. 158-159), anota-se: “[...] focalização refere-se ao conceito identificado também por meio de expressões como ponto de vista (preferida sobretudo por teóricos e crítico anglo-americanos), visão (adotada, por exemplo, por J. Pouillon e T. Todorov), restrição de campo (utilizada quase ex-clusivamente por G. Blin) e foco narrativo (muito usual em estudos de proveniência brasileira).”

10 Este livro, infelizmente, não está mais dis-ponível em português. Sua última edição, a propósito, foi feita em Portugal, em 1980. Ou seja, há mais de 30 anos. Citamos, por-tanto, a sua segunda edição, em inglês.

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Atividade IIComo apontamos, acima, uma das mais famosas sistematizações em torno do ponto de vista na ficção é que foi empreendida por Norman Friedman11. Portanto, pedimos que todos leiam o seu texto, e façam um resumo daquilo que nele se discute, com vistas a aprofundarmos as discussões que estamos empreendendo.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

III. Focalização e Narrador: Para fins didáticos, ainda vamos conside-rar o foco narrativo como elemento que ganha certa preponderância, todavia não devendo mais ser tomado como algo excessivamente res-tritivo. Assim, o foco narrativo – ou a focalização12 – se define:

[...] como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma per-sonagem da história, quer o do narrador hetero-diegético; consequentemente, a focalização, para além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços, etc.), atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa po-sição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação. Daí que a focalização deva ser considerada um procedimento crucial das estraté-gias de representação que regem a configuração discursiva da história (REIS; LOPES, 1987, p. 159).

Por estes rumos, como já pontuou Carlos Reis (2008, p. 366), esta focalização poderia ser resumida em três possibilidades:

• focalização omnisciente: “potencialmente ilimitada quanto ao âmbito de alcance que atinge e aos elementos informativos que faculta”;

• focalização interna: “condicionada pelo campo da consciência – sentidos, percepções, apreciações, etc. – de uma personagem inserida na história”;

11 O texto está disponível no seguinte en-dereço eletrônico: <http://www.usp.br/revistausp/53/15-norman-2.pdf>.

12 Ver nota 08.

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• focalização externa: “limitada à superfície do visível e cingindo a informação narrativa ao exterior dos elementos observados”.

Todavia, para este mesmo autor, ao se chamar atenção sobre o ato de enunciação do discurso, ou seja, para a narração, seria necessário considerar que ela estaria condicionada a outras questões, como o tempo e o espaço em que decorrem os fatos, como também à própria relação do narrador com o que narra e com o narratário a quem se dirige. É a partir da relação do narrador com a história que podemos analisar13, por exem-plo, o ato de narrar, marcando uma situação narrativa que pode se dar mediante a formalização de diferentes tipos de narradores (REIS, 2008):

• narrador heterodiegético: “o narrador relata uma história a que é estranho, porque a não integra nem integrou como perso-nagem” (p. 370) – predominantemente se exprime na tercei-ra pessoa, destacando a situação de alteridade – para fins de exemplo, vamos utilizar um trecho do romance O primo Basílio, de Eça de Queirós (1998, p. 257-258), no qual veremos tam-bém a focalização omnisciente do narrador:

Às duas horas Luísa saía da Encarnação – e ia to-mar um trem ao Rossio: para não parar à porta do Paraíso com espalhafato de tipóia, apeava-se ao Largo de Santa Bárbara; e fazendo-se pequenina, cosida com a sombra das casas, apressava-se com os olhos baixos, e um vago sorriso de prazer.Basílio esperava-a deitado na cama, em mangas de camisa: para não se enfastiar, só, tinha trazido para o Paraíso uma garrafa de conhaque, açúcar, limões - e com a porta entreaberta fumava, fazendo gro-gues frios. O tempo arrastava-se, via a todo o mo-mento as horas, e sem querer ia escutando, notando os ruídos íntimos da família da proprietária que vivia nos quartos interiores: a rabugem de uma criança, uma voz acatarroada que ralhava, e de repente uma cadelinha que começava a ladrar furiosa. Basí-lio achava aquilo burguês e reles, impacientava-se. Mas um frufru de vestido roçava a escada e os tédios dele, bem como os receios dela, dissipavam-se logo no calor dos primeiros beijos. Luísa vinha sempre com pressa; queria estar em casa às cinco horas, “e era um estirão depois!” Entrava um pouco suada, e Basílio gostava da transpiraçãozinha tépida que havia nos seus ombros nus.

• narrador homodiegético: é um narrador que viveu a história en-quanto personagem, sendo, então, esta sua experiência a fonte de todas as suas informações, portanto, seu registro se dá em primeira pessoa – como exemplo, segue um trecho do romance Dois Irmãos (2007, p. 197-198), de Milton Hatoum. Nesta nar-rativa, o narrador, Nael, registra fragmentos da memória fami-liar, quase sempre em torno dos dois irmãos do título (Yaqub e

13 Esta tipologia de narradores, como tam-bém os tópicos em torno da focalização, aqui apresentados, foram introduzidos nos estudos de narratologia pelo estudioso fran-cês Gerard Genette, largamente utilizada e referida por Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, em seu Dicionário de Narratologia (1987).

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Omar), mesmo sem ser o protagonista dos eventos mais centrais da narrativa, ou mesmo narrando eventos que não presenciou, mas que lhe foram narrados por outrem; assim, sua focalização é externa, como bem podemos atestar neste fragmento do último capítulo, em que o narrador se limita ao seu ponto de vista para descrever o seu último encontro com Omar:

Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o meu refúgio. Aproximou-se do meu quarto devagar, um vulto. Avançou mais um pouco e estacou bem perto da velha seringueira, diminuído pela grandeza da árvore. Não pude ver com clareza o seu rosto. Ele ergueu a cabeça para a copa que cobria o quintal. Depois virou o corpo, olhou para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha não o esperava. Um muro alto e sólido separava o meu canto da Casa Rochi-ram. Ele ousou e veio avançando, os pés descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão.

• narrador autodiegético: também se registra em primeira pessoa, mas esta natureza de narrador “é uma entidade que, tendo atravessado experiências e aventuras várias, relata, a partir de uma posição amadurecida, o devir de sua existência” (p. 371). Como exemplo, vamos observar o trecho final do romance de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas (2001, p. 623-624), em que Riobaldo narra sua história a um ouvinte, sempre silêncio – daí a focalização as-sumir ares de monólogo, mesmo que a presença do outro esteja sempre subentendida; portanto, a dominância é interna:

E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras.Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Fran-cisco – que de tão grande se comparece – aprece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.

Acabamos esta unidade por aqui. Com a certeza de que, antes de tudo, ela é apenas um primeiro porto, em que onde podemos descansar, antes de seguirmos aos outros mares, abertos à navegação. Nas unida-des seguintes, ainda continuaremos a estudar outros aspectos e compo-nentes estéticos da narrativa.

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Resumo

Começamos a estudar, nesta unidade, a estruturação de uma nar-rativa em prosa, através de alguns de seus componentes principais: narrador, narratário e enredo. Igualmente, vimos as diferenças, no tocante ao foco narrativo, entre mostrar e narrar, aspectos estes rela-cionáveis à formalização do narrador em meio ao processo narrativo. Para isso, observamos três tipos de focalização narrativa: omnisciente, interna e externa, que estão, por sua vez, diretamente ligadas aos tipos de narradores, que também são três: heterodiegético, homodiegético e autodiegético. Estas classificações são necessárias para que possamos, enquanto estudiosos da narrativa, perceber os pontos de vista do nar-rador e até que ponto este se aproxima do autor, aspecto que configura o autor implícito, também estudado nesta unidade.

Leitura recomendada

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: __. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da literatura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 197-221.

Neste texto clássico para muitas áreas (como a teoria literária e a filosofia), Benjamin discute a relação entre o ato de narrar e a expe-riência, situando o romance e a narrativa oral dentro do campo das formas épicas, e formulando algo como uma tipologia de narradores, na medida em que se propõe a discutir a perda da capacidade de inter-cambiar experiências, na modernidade, pela narrativa oral, que, para ele, estaria condenada ao fim. Deste ponto, o filósofo passa a proble-matizar o narrador, como também o autor, o leitor e a matéria narrada nos romances, forma esta que pressupõe o isolamento e a solidão. É, antes de tudo, uma bela leitura.

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Autoavaliação

Com base nas discussões sobre a narrativa e nas atividades propostas, que abordaram a relação entre narrador e narratário, além do ponto de vista ficcional, na visão de Norman Friedman, gostaríamos que cada aluno refletisse sobre dois aspectos:

1. Até que ponto, em uma leitura despretensiosa de uma obra literária, eu notava a presença – próxima ou não – do narrador, no processo narrativo?

2. Após esta unidade, serei capaz de distinguir os tipos de focalização e os tipos de narrador, ao ler uma narrativa, através de uma perspectiva analítica?

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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ReferênciasALENCAR, José de. O guarani. São Paulo: Ática, 1992.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Contos completos. Organizado por Djalma Moraes Cavalcante. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2003.

BARBOSA, João Alexandre. Leitura de José de Alencar. In: ALENCAR, José de. O guarani. São Paulo: Ática, 1992. p. 03-08.

BOOTH, Wayne C. The rethoric of fiction. Chicago: The University of Chicago Press, 1983.

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca Produções Culturais Ltda., 1999.

DAL FARRA, Maria Lúcia. O narrador ensimesmado. São Paulo: Ática, 1978.

FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182, março-maio 2002. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/53/15-norman-2.pdf>

HATOUM, Miltom. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio: episódio doméstico. Cotia: Ateliê Editorial, 1998.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Livraria Almedina, 1987.

REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2008.

SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). 10. ed. São Paulo: Ática, 2006.

MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.

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V UNIDADE

O romance, o conto e a personagem

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ApresentaçãoJá começamos, na unidade anterior, a discutir mais deti-

damente questões concernentes à narrativa em prosa. Nesta unidade, vamos nos voltar para duas de suas formas mais recorrentes, com as quais qualquer estudante de Letras e, depois, o professor em sua sala de aula, quase sempre vai se deparar: o romance e o conto.

Obviamente, esta escolha implica na ausência de ou-tras formas relevantes e não menos importantes, como a crônica, a novela, a narrativa autobiográfica etc. Mas, pela própria limitação de nosso espaço de estudo, vamos preferir ensaiar alguma verticalização em torno apenas dessas duas, o que já será uma tarefa bastante ambiciosa. A esta altura, cada um vocês pode perguntar: por quê? A resposta é rela-tivamente fácil: porque as discussões teóricas e críticas em torno do romance e do conto são, por si só, tão diversas e tão extensas que já dariam assunto para tantos outros mó-dulos de estudo. O que pretendemos, aqui, não é esgotar ou mesmo apresentar à exaustão tais teorias: queremos con-vidá-los para algumas reflexões que podem abrir caminhos para futuras pesquisas e tantas outras descobertas no futuro.

Combinadamente, vamos também abrir espaço para in-troduzir alguns apontamentos em torno da personagem de ficção – este “ser de papel” que habita os universos constru-ídos nos livros. São estes seres que, após uma leitura praze-rosa, continuam habitando a nossa própria vida, tornando--se, muitas vezes, companhias para tantas jornadas e tantos aprendizados. Portanto, a unidade que começaremos ago-ra, é, de novo, um convite: não só ao que se pode aprender, teoricamente, mas à percepção daquilo que podemos ga-nhar com a boa leitura. Aceitando este convite, poderemos começar a compreender melhor o que lemos.

Pois, então, o convite já está feito: resta apenas aproveitar.

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Objetivos

Ao final desta unidade, pretendemos que você seja capaz de:

• Discutir o romance enquanto forma/gênero moderno da narra-tiva literária;

• Refletir sobre aspectos teóricos relativos ao conto;

• Analisar a personagem na narrativa.

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Imagem de uma menina leitora, em uma tela de George Goodwin Kilburne

I. O romance – Abrir uma discussão sobre a narrativa romanesca, com vistas a uma construção de um rápido painel em torno de aspectos te-óricos dessa forma estética e histórica, é uma tarefa que exige fôlego. Como Reis e Lopes (1987) já pontuaram, o romance se colocaria ao lado de outras formas narrativas, como o conto ou a epopeia, valendo a consideração de que, depois do século XVIII, foi esta forma – o roman-ce – que mais ganhou vulto, popularidade e grande atenção, seja por parte dos autores ou mesmo dos setores críticos e teóricos, tornando-se “decerto o mais importante dos gêneros literários modernos” (p. 348).

Diferentemente da epopeia, que, como já discutimos em unidades anteriores, é uma forma com seu desenvolvimento histórico já fechado e acabado, por isso mesmo mais fácil de ser apreendido mediante expli-cações mais esquemáticas – o que nem de longe é uma certeza concreta e/ou absoluta1 –, o romance é, por sua própria natureza, uma forma de difícil definição, dadas as mutações pelas quais passou e continua passando no transcurso do tempo. É possível, então, tomá-lo como uma forma em aberto e em desenvolvimento, daí ainda não ser definível pelas poéticas, notadamente as do passado, tendo em vista que

[...] tem revelado uma extraordinária capacidade de rejuvenescimento técnico e de renovação te-mática; afirmando-se como fenômeno multiforme, num tempo em que as constrições das Poéticas não têm razão de existência (porque o romance ganhou sua vitalidade sobretudo a partir da época em que tais constrições se desagregaram) [...] (REIS; LO-PES, 1987, p. 348).

1 Bastaria considerarmos, para quebrar a facilidade dessa afirmativa, que há uma lar-ga discussão em torno da Odisseia de Home-ro, que, para alguns estudiosos, já teria uma estrutura romanesca, dada a diversidade de ações, de focos narrativos e de personagens que se multiplicam em suas páginas, ao contrário da Ilíada, essa sim mais próxima do que se exigiria, nos tratados poéticos, de uma epopeia.

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Tal raciocínio reverbera, certamente, o que já afirmara o teórico russo Mikhail Bakhtin (1998, p. 397) que, ao estudar o romance, não só reconhece todas as dificuldades implicadas, mas, também, ao con-trastá-lo à epopeia, prontamente, afirma-o como “único gênero por se constituir, e ainda inacabado”, ao passo que a forma grega antiga já pode ser identificada como “não só algo criado há muito tempo, mas também como um gênero já profundamente envelhecido”2, corrobo-rando a certeza de que as poéticas antigas não conseguem abarcar o romance, dado seus aspectos ainda in progress.3 Ou seja, podemos afirmar que o romance está apenas remotamente relacionado histórica e formalmente à epopeia visto que ele

[...] se formou precisamente no processo de des-truição da distância épica, no processo de familia-rização cômica do mundo e do homem, no abaixa-mento do objeto da representação artística ao nível de uma realidade atual, inacabada e fluida. Desde o início o romance foi construído não na imagem distante do passado absoluto, mas na zona de con-tato direto com esta atualidade inacabada. [...] O romance, deste modo, desde o princípio foi feito de uma massa diferente daquela dos outros gêneros acabados. Ele é de uma natureza diferente. Com ele e nele, em certa medida, se originou o futuro de toda literatura. [...] (BAKHTIN, 1998, p. 427).

Obviamente, ao falarmos de romance, ora remetemos diretamente a uma história de amor, como aquelas cunhadas no Romantismo, ora automaticamente lembramos de uma narrativa mais longa, impressa em livro: mas sempre estamos no terreno da modernidade das formas narrativas. Mesmo assim, é importante ter em vista que a constituição do romance, tal como o conhecemos, não foi abrupta, pois

[...] desde a Antiguidade que se registram aflora-mentos e tentativas que remetem difusamente ao que virá a ser o romance; e subgêneros como o romance sentimental e o romance de cavalaria medie-val, o romance pastoril do Renascimento, o romance picaresco e o romance barroco, não beneficiando do prestígio concedido a gêneros como a epopeia ou a tragédia, podem ser encarados como manifestações que apontam de forma incipiente para o advento do grande gênero narrativo que o romance virá a ser, numa sociedade dominada pelos valores da so-ciedade burguesa florescente desde o século XVIII (REIS; LOPES, 1987, p. 349, grifos dos autores).

Assim, mesmo que, como já demonstrou Bakhtin (1998), tenha-mos desde o século II-VI d.C., ainda no contexto antigo, o que se cha-ma de “romance grego”, quase sempre no terreno das narrativas de aventuras, há uma tendência a se discutir o romance, primeiramente, a partir de suas formulações medievais, tendo em vista que, nesta épo-

2 Para deixar ainda mais às claras este ar-gumento, citamos Bakhtin (1998, p. 405): “Do ponto de vista do nosso problema, a epopeia como um gênero determinado, se caracteriza por três traços constitutivos: 1. O passado nacional épico, o ‘passado abso-luto’, segundo a terminologia de Goethe e Schiller, serve como objeto da epopeia; 2. A lenda nacional (não a experiência pessoal transformada à base da pura invenção) atua como fonte da epopeia; 3. O mundo épico é isolado da contemporaneidade, isto é, do tempo do escritor (do autor e dos seus ou-vintes), pela distância épica absoluta”.

3 Tendo sido considerado um “filho bastardo da epopeia” (Cf. D’ONOFRIO, 1999, p. 117), o romance cresceu e acabou atingindo um estágio de supremacia pelo qual, de uma maneira ou de outra, todos os outros gê-neros “romancizaram-se”. Este processo foi definido por Bakhtin (1998) como uma modificação radical que a representação empreendida no romance, seja do contem-porâneo, seja dos novos extratos linguísti-cos e sociais, lançou sobre os outros gêne-ros literários, contaminando-os com o seu “inacabamento”.

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ca histórica, o vocábulo “romance” designava a língua vulgar, que já começava a se distinguir do latim. Logo depois, esse mesmo vocábulo ganha sentido literário, designando “composições de caráter narrativo redigidas em língua vulgar” (AGUIAR E SILVA, 1969, p. 254)4. A esta altura, o romance ainda era em verso, sendo a presença da prosa mais tardia, mas já estava associado à escrita/leitura, e seu escopo temático era inspirado pela mitologia pagã e pelos elementos corteses e cava-lheirescos, como os ciclos em torno do Rei Arthur, personagem deveras importante e presente nas narrativas do medievo. Na Renascença, o romance começou a afirmar-se, ganhando destaque nas obras do fran-cês François Rabelais, Gargantua e Pantagruel, e também no romance pastoril e sentimental, podendo-se destacar a obra Menina e moça, do português Bernadim Ribeiro. No século XVII, sob o signo do Barroco, o romance prolifera-se pela Europa, havendo um destaque especial ao Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes, e ao surgimento do romance picaresco Vida de Lazarillo de Tormes, de autor anônimo: o primeiro era uma crítica/sátira ao romance de cavalaria medieval, enquanto o segundo introduz no romance uma percepção mais realista da sociedade e de seus costumes contemporâneos (Cf. AGUIAR E SIL-VA, 1969, p. 257).

Diante deste percurso, podemos perceber que o romance moderno, como já foi afirmado acima, só eclode no século XVIII, quando as po-éticas tradicionais começam a perder seu caráter hegemônico, rígido e normativo. É nessa época que

[...] começa a afirmar-se um novo público, com no-vos gostos artísticos e novas exigências espirituais – um público burguês –, [e] o romance, o gênero li-terário de ascendência obscura e desprezado pelos teorizadores das poéticas, conhece uma metamor-fose e um desenvolvimento muito profundos, [...].[...]Quando o romantismo se revela nas literaturas europeias, já o romance conquistara, por direito próprio, a sua alforria e já era lícito falar de uma tradição romanesca. Entre finais do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, o público do romance alargara-se desmedidamente e, para sa-tisfazer a sua necessidade de leitura, escreveram-se e editaram-se numerosos romances. [...] (AGUIAR E SILVA, 1969, p. 260-262).

Ou seja, ao passo em que cresceu um público leitor, relaciona-do a novos gostos e demandas estéticas de representação, o romance encontra terreno para se desenvolver, na Europa e em outros países. Como já consideramos, esse processo se deu de forma lenta e gradual.

A partir do que escreve Jack Goody (2009), é possível questionar o aparecimento “relativamente vagaroso” dessa forma narrativa, e buscar discutir suas causas, tendo em vista alguns aspectos: a narrativa nas so-ciedades orais trazia o ato de “contar histórias” como algo que não era sério, algo do que se deveria desconfiar. A narrativa ainda estava asso-

4 Não estamos, aqui, pretendendo apresen-tar uma certidão de nascimento do roman-ce, mas situar algumas questões relevan-tes. Para ajudar a esclarecer, citamos Jack Goody (2009, p. 35-36): “É difícil fixar com certeza quando nasceu o romance. Em seu ensaio dedicado ao narrador, Walter Benja-min associa o desaparecimento da narração oral ao advento do romance, com os seus diversos modos de articular a experiência. Mikhail Bakhtin – que utiliza o termo ‘ro-mance’ numa acepção muito mais ampla do que Benjamin – faz remontar suas origens ao romance de aventuras gregos do século II d.C. e ao romance da vida cotidiana, assim como às Metamorfoses, de Apuleio, e tam-bém a um terceiro ‘espaço-tempo’ centrado no tempo biográfico, ao qual, porém, não corresponde naquele período nenhuma obra efetiva. Todas essas três formas precedem o romance moderno, que é fundamental-mente uma consequência da invenção da imprensa no fim do século XV; porém, como fica claro com esses exemplos, a natureza da narração já tinha mudado radicalmente com a difusão da escrita. [...].”

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ciada à mentira, tendo em vista que se ignorava a possibilidade de fic-cionalização de eventos, o que passou a ser contornado pela legitimação da narrativa que, na Europa cristã, passou a se dirigir aos mitos bíblicos, aos milagres e à história dos santos – daí, por diante, a narrativa passa a ser tomada como “verdade”. Só depois, com o passar dos anos, o ro-mance se inscreve na área da narrativa secular, abraçando o conceito de “realismo” e se distanciando da tradição religiosa. Com o Renascimento, conforme o mesmo autor, no contexto da invenção da imprensa, “os romances seculares se afirmaram definitivamente, mesmo sendo ridicula-rizados, considerados apropriados apenas a mulheres ociosas, não cer-tamente a homens sérios, e acusados de exercer uma influência negativa sobre os leitores” (p. 54). Diante disso, a nova estratégia de legitimação foi “pretender-se fiel à realidade da vida” (p. 54), o que poderemos ates-tar na busca dos romancistas pela matéria contemporânea, ao contrário da distância épica que víamos nas epopeias.

As atitudes desconfiadas em relação ao romance só começam a ra-rear no século XIX, junto à aludida mudança da atitude do próprio públi-co leitor. Em concomitância, a modificação do público traz ao centro da representação o indivíduo que tem autonomia sobre seu próprio destino, ganhando extrema ênfase na tradição realista e naturalista. No século XX,

Renovam-se os temas, exploram-se novos domí-nios do indivíduo e da sociedade, modificam-se profundamente as técnicas de narrar, de construir a intriga, de apresentar as personagens. [...] O ro-mance não cessa, enfim, de revestir novas formas e de exprimir novos conteúdos, numa singular mani-festação da perene inquietude estética e espiritual do homem. [...] (AGUIAR E SILVA, 1969, p. 265).

Assim, mesmo que seja de difícil categorização, notadamente no que se refere ao romance do século XX-XXI, tão diverso em suas técnicas narrativas e em possibilidades de representação, Victor Manuel Aguiar e Silva (1969) esboça uma tentativa de classificação tipológica, a partir do que propõe o teórico Wolfgang Kayser, mesmo que se saiba que ela tem seus limites, e, portanto, não pode ser tomada como rígida e absoluta. É o que apresentamos a seguir:

• Romance de ação ou de acontecimento: “caracterizado por uma in-triga concentrada e fortemente desenhada, com princípio, meio e fim bem estruturados. A sucessão e o encadeamento das si-tuações e dos episódios ocupam o primeiro plano, relegando para lugar muito secundário a análise psicológica das persona-gens e a descrição dos meios” (p. 266);

• Romance de personagem: “caracterizado pela existência de uma única personagem central, que o autor desenha e estuda de-moradamente, e à qual obedece todo o desenvolvimento do romance” e que tende “para o subjetivismo lírico e para o tom confessional” (p. 266);

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• Romance de espaço: “se caracteriza pela primazia que concede à pintura do meio histórico e dos ambientes sociais nos quais decorre a intriga” (p. 267).

Passemos, agora, a uma primeira atividade, na qual buscaremos aprofundar alguns desses conhecimentos através de um estudo de texto.

Atividade IFranco Moretti, um importante estudioso do romance, em artigo intitulado “O romance: história e teoria”5, parte de três questões, de modo a refletir sobre a teoria do romance, a saber: por que os romances são escritos em prosa; por que são frequentes os enredos de aventuras; e por que houve, no século XVIII, uma ascensão do romance, na Europa. Propomos que o texto seja lido e que se apresentem, por escrito, os argumentos utilizados pelo autor para buscar as respostas para cada uma dessas questões, o que se articula ao que foi discutido até aqui, fixando a aprendizagem.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

II. O conto – Passemos, agora, à discussão sobre o conto. Forma narrativa advinda das épocas em que as histórias ainda eram contadas oralmente, o conto é considerado, por muitos autores, como de difícil definição. Talvez isso se dê pelo fato de o conto ter surgido através do ato de contar histórias, que, por sua vez, com o passar do tempo, foi se deslocando da oralidade para seu registro escrito – mesmo que não abandone seu suporte oral, pois, até hoje, ainda contamos e ouvimos histórias.

Este ato de contar está muito ligado a diversas áreas da experiência humana em sociedade: seja por que, através delas, podemos trans-

5 Este artigo está disponível, online, no site da revista Novos Estudos: http://www.novo-sestudos.com.br/v1/contents/view/1362

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mitir um conhecimento, uma experiência, seja porque este hábito foi se associando ao desenvolvimento de práticas artísticas para além do conhecimento comum.

Essa falta de precisão entre realidade e ficção nos faz lembrar, en-tão, da conhecida expressão “contar casos”. Sabemos que, popular-mente, “contar casos” significa relatar acontecimentos, que são ree-laborados pela imaginação de quem os conta e também de quem os ouve. Assim, um evento simples pode ser influenciado pelos recursos escolhidos pela pessoa que o narra, como entonação de voz, gestos, olhares, palavras, sugestões..., para que o público se mantenha aten-to à história (GOTLIB, 2006). Igualmente, essas técnicas de invenção existem no plano da escrita e são primordiais para dar ao conto a possibilidade de condensar e potencializar em “seu espaço todas as possibilidades de ficção” (BOSI, 2006, p. 7).

Como já apontou Cleusa Rios P. Passos (2001, p. 67), qualquer conceituação teórica em torno do conto é nebulosa, pois para quem vai estudar esta forma estética sempre haverá a constatação da “impos-sibilidade de abarcá-lo integralmente”, mesmo que haja algum con-senso: sempre ele é tomado como “breve e condensado”, em relação à extensão da narrativa do romance, aproximando-o, por este critério, da novela, outra forma não menos nebulosa, como também da crônica, quando “comporta trama menos cerrada, fatos coloquiais, escritos com certa graça, evocativos da tradição oral”.

Na África, as narrativas em torno dos deuses e dos ritos circulavam oralmente antes mesmo do aparecimento da escrita, elas eram tão for-tes que cruzaram oceanos, venceram a dominação, a força do jugo e se mantiveram vivas no Novo Mundo. Ulisses, na Odisseia, contou suas aventuras, como também as ouviu, sendo contadas por um rapsodo. Na tradição oriental, por exemplo, encontraremos uma grande conta-dora de histórias: Scherazade, que pelas suas habilidades tece histórias durante 1001 noites para vencer a morte iminente que lhe ameaça, enquanto abranda a sanha vingativa do sultão traído, que lhe tomara por esposa, jurando morte a todas as mulheres a ele oferecidas em matrimônio. A habilidade para contar histórias de Scherazade é capaz de transformar não só o seu destino, mas o mundo ao seu redor, mo-dificando estruturas de poder e domínio. A palavra proferida por ela é mágica, poderosa, como já afirmou Adélia Bezerra de Meneses (2004).

É importante lembrarmos que Scherazade não é uma escritora: ela é uma contadora. Mas essa contadora é habitante de um mundo ficcio-nal. A narrativa em torno do sultão e da jovem astuta é a moldura para um sem número de outras narrativas (todas contadas por essa mulher), as quais, de uma maneira ou de outra, nós já ouvimos, como a de “Sin-dbad, o Marujo” ou a de “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa” – todas surgidas naquele momento intervalar em que a mulher e o marido se entregam aos prazeres da narração, após os prazeres do corpo. São contos dentro da narrativa maior das 1001 Noites que acabaram sendo extremamente conhecidos por conta de antologias que encontraram um destinatário sempre aberto à fantasia.

Ilustração para “Chapeuzinho Vermelho”, de Gustave Dore.

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Essa experiência ganhará espaço no mundo moderno nas inúmeras coletâneas dos, assim conhecidos, “contos de fadas”, como a organi-zada por Charles Perrault, em fins do século XVII, intitulada Contos da Mamãe Gansa, em que encontraremos contos famosos como “A Bela Adormecida”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Cinderela”, entre outros; de-pois a coleção dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, datada de meados do século XIX, intitulada Fábulas infantis e familiares, chegando até os contos de Hans Christian Andersen, também datados do século XIX.6

É assim que, refletindo em torno do conto, Newton de Castro Pontes (2010) afirma que não se deve definir o conto apenas por uma avalia-ção do seu conteúdo, “mas por sua forma, usualmente descrita a partir de uma série de normas que incluem narratividade e ficcionalidade, ex-tensão, unidade de concepção e recepção, intensidade do efeito, eco-nomia, condensação e rigor” (p. 43, grifos do autor). Daí ser bastante produtiva a observação feita por este mesmo autor em torno da pers-pectiva do teórico russo Vladmir Propp, que definiu uma “morfologia do conto”, nas suas pesquisas sobre o conto oral de seu país, chegando a uma definição de funções, termo usado para designar ações constan-tes praticadas por personagens distintas e por maneiras diferentes, em contos também diversos7.

Dessa feita, ao ser classificado como uma forma literária, ainda no século XIX, na época do Romantismo, começaram a surgir algumas discussões técnicas com o fim de definir o conto. Uma dessas primeiras incursões teóricas foi empreendida pelo escritor estadunidense Edgar Allan Poe, conhecido por seus contos de terror.

No texto “A filosofia da composição”, datado de 1846, Poe intenta estabelecer normas que indiquem as estruturas de composição do conto, a partir de suas particularidades e diferenças em relação às narrativas lon-gas, como o romance, tudo isso mediante uma autorreflexão em torno do processo compositivo de uma de suas obras mais famosas, o poema “O corvo”8. Assim, ele destaca categorias compositivas, ou critérios formais para a composição de um conto.

A unidade de efeito ou impressão é o ponto de maior importância, sendo, pois, responsável pelos efeitos causados em nós leitores: um estado de excitação, de “exaltação da alma”, que, segundo o contista, são esta-dos transitórios. Portanto, como esclarece Gotlib (2006, p. 32), “é preciso dosar a obra, de forma a permitir sustentar esta excitação durante um determinado tempo. Se o texto for longo demais ou breve demais, esta excitação ou efeito ficará diluído”, e isso nos leva ao próximo ponto – o tempo que levamos para ler um conto e melhor assimilá-lo.

Ao determinar um tempo estimado para a leitura de um conto, Poe compara três formas: o poema rimado, o conto e o romance. No primeiro, que também não deve ser longo ou breve demais, uma vez que tais ca-racterísticas podem comprometer a percepção do leitor – os breves podem não causar uma impressão duradoura, enquanto os longos podem fazer com que essas impressões se percam –, a leitura deve ser feita de uma só vez, de “uma só assentada”, como explica Gotlib (2006). Já o romance, em razão de sua estrutura em prosa, pode ser lido num período de tempo

7 O estudo das funções daria conta da aná-lise, bastante específica do conto maravi-lhoso, não chegando a se tornar constan-tes, por exemplo, no assim chamado conto literário, já inserido nos modos modernos de produção artística, e cada vez mais distan-ciado das formas orais.

8 Também, conforme Pontes (2010, p. 44): “[...] Embora este não seja um conto (é, na verdade, um poema de cunho narrativo), os princípios utilizados em sua composi-ção parecem ser a indicação para todos os textos curtos, a serem lidos “de uma só as-sentada” – referência à dimensão ideal de uma obra que vise ao efeito da “unidade de impressão” (efeito buscado na maioria de seus textos). [...]”.

6 Neste período, os contos ouvidos da boca de camponeses, eram transpostos para o livro, sendo modificados e ganhando lições edificantes, em que elementos grotescos ou violentos foram extirpados. Adequando--se ao espírito colecionador que aflora no Romantismo, as tradições populares for-malizadas nestes textos “valorizavam os produtos da imaginação, das fantasias e dos sonhos” dando aos “contos de fadas o mais alto status literário que jamais haviam alcançado”, pois estariam identificados à “mente espontânea, inocente e simples” do povo, como já bem anotou Marina Warner (1999).

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maior, e está sujeito a pausas de leitura. Isso, para Poe, pode ser o sufi-ciente para destruir a verdadeira unidade do romance, já que influências externas podem modificar as impressões do livro.

Assim, o conto, se definiria por sua brevidade, diferentemente do ro-mance, que, geralmente, tem seu enredo desenvolvido em torno de vários eventos. Para Poe, um contista deve se ater a uma ideia pré-estabelecida, fundamental, e, a partir dela, aplicar suas técnicas de construção, sempre tendo em mente a diminuição dos elementos estruturais da narrativa. Ou seja, personagens, tempo e espaço são reduzidos, não havendo acúmulos, como no romance. Julio Cortázar (2006, p. 152), grande contista argenti-no, nos esclarece tal ponto:

O contista sabe que não pode proceder acumula-tivamente, que não tem o tempo por aliado; seu único recurso é trabalhar em profundidade, verti-calmente, seja para cima ou para baixo no espaço literário. E isto que assim expresso parece uma me-táfora, exprime, contudo, o essencial do método. O tempo e espaço do conto têm que estar como que condensados [...].9

Assim, esta sintetização dos elementos da narrativa, marca de sua brevidade, deve ser notada logo no início do conto, uma vez que a tensão do enredo deve ser logo percebida pelo leitor, ao contrário do romance, em que uma gama de acontecimentos e descrições são apre-sentados antes que cheguemos à tensão propriamente dita.

Ainda sobre a construção de um conto, notadamente em relação ao tema (a ideia pré-concebida da qual fala Poe), à intensidade da ação e à tensão interna da narrativa, Cortázar tece algumas considerações sobre as medidas que devem tomar os contistas. A intensidade de um conto baseia-se na união entre elementos formais e elementos expressi-vos escolhidos pelo autor a favor do ajuste do tema, consistindo, assim, na eliminação de “ideias ou situações intermédias” que não visem à tra-ma. A tensão, por sua vez, cuja intensidade pode ser dada aos poucos, caracteriza-se pela aproximação mais lenta que temos da trama, sendo levados por fatos importantes que desencadearão em seu ápice.

É curioso atentar para uma importante questão: as posições apre-sentadas até aqui têm um caráter normativo e prescritivo, considerando antes os aspectos formais, que passam a se sobrepor aos elementos de ordem temática/conteudística. Em tais reflexões, a forma do conto

[...] não está concebida, portanto, em uma rela-ção dialética com os conteúdos, de modo que a moldura é criada antes do que há de ser emoldu-rado, e uma vez estabelecida, é imutável, ou seja, a-histórica – neste sentido, o texto de Poe traz uma concepção aristotélica da poética [do conto], a partir de suas estruturas composicionais – as es-truturas arquitetônicas apenas devem se adaptar a elas (PONTES, 2010, p. 46).

9 Daí o porquê de Cortázar comparar o conto à fotografia e o romance ao cinema. No pri-meiro caso, há a “necessidade de escolher e limitar um acontecimento significativo”, já, no segundo, há o princípio de “uma ordem aberta, romanesca”, onde vários episódios podem ocorrer.

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Daí a grande dificuldade, sempre, em se definir o conto, tendo em vista que desde os inícios dos apontamentos teóricos sobre ele, a críti-ca sobrepôs critérios de ordem prescritiva, a qualquer outros. Todavia, qualquer estudo mais detido em torno da forma do conto nos permitiria compreender a existência de três grandes variantes formais, como já bem anotou Pontes (2010, p. 58-59): o conto maravilhoso, de origem oral, conforme foi definido por Propp; o, assim chamado, conto literá-rio, conforme definido por Edgar Allan Poe, e, por fim, teríamos a forma moderna do conto, cujo marco é a produção do autor russo Anton P. Tchekhov, em cujas obras “o enredo perde a centralidade, a unidade de tensão já não é mais uma obrigação (abre-se espaço para digressões) e o problema da manifestação da consciência através da linguagem pas-sa a ser recorrente”. Daí se poder afirmar que:

[...] o conto maravilhoso está para a forma moderna do conto assim como a epopeia está para o roman-ce: aquele possui uma forma definida, acabada; lida com um tempo (o recorrente “era uma vez...” marcando a predominância do passado) e uma hierarquia (histórias que se passam com heróis e princesas em um mundo feérico, superior à realida-de) diferentes do tempo presente; está apartado da realidade e de seus processos dinâmicos. Na passa-gem da oralidade para a linguagem escrita, temos a primeira mudança no gênero, que o aproxima do romance: o conto literário é presentificado e já lida com a realidade (inclusive em suas representações mais quotidianas), embora esta ainda contenha ele-mentos de mistério, perfeitamente exemplificados pelas Histórias extraordinárias de Poe, elementos que descendem da mágica do conto maravilhoso, mas agora posta no território das representações do grotesco. Na forma moderna, por fim, o conto ade-re aos heróis da reflexão que já vinham sendo explo-rados de alguma forma desde o realismo romanes-co [...] e que serão desenvolvidos em sua plenitude no decorrer do século XX, especialmente a partir dos escritos de autores como Marcel Proust, Virginia Wo-olf, Dyonélio Machado, James Joyce e Graciliano Ramos (no romance), e de Jorge Luis Borges, Anton Tchekhov, Clarice Lispector e Hemingway (no con-to). Se no conto literário clássico podemos dizer que existem dois enredos sendo desenvolvidos (e a par-tir disto é estabelecida a tensão), a forma moderna substitui a relação entre esses dois enredos por uma relação dialética entre o negativo do mundo (o va-zio existencial das personagens e sua incapacidade de agir ou mesmo se expressar) e a expressão de uma subjetividade através da forma, constituindo um novo tipo de tensão: a forma tenta dar sentido subjetivo ao que o conteúdo apresenta como dados inúteis, excessivamente elementares.[...] (PONTES, 2010, p. 59).

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Mas, para além de qualquer classificação, o que permanece é o entendimento de que o conto tornou-se objeto de múltiplas reflexões ao longo do tempo, sendo defrontado com inúmeras experiências “à procu-ra da síntese, singularidade e tensão literária que o marcam” (PASSOS, 2001, p. 87), impossibilitando qualquer ideia fechada ou totalizadora em torno dele, tendo em vista ser uma forma ainda em pleno desenvolvi-mento – em que uma nova possibilidade criativa nega, dialoga, descons-trói ou mesmo se debruça sobre aquelas que lhe antecederam. Como afirmamos no início desta unidade, não vamos aqui buscar nenhum con-ceito definitivo: queremos apenas iniciar uma discussão que, em si, não está encerrada.

Atividade II

Cândida Vilares Gancho, em seu livro Como analisar narrativas, define conto como:

[...] uma narrativa mais curta, que tem como carac-terística central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens. O conto é um tipo de narrativa tradicional, isto é, já adotado por muitos autores nos séculos XVI e XVII, como Cer-vantes e Voltaire, mas que hoje é muito apreciado por autores e leitores, ainda que tenha adquirido características diferentes, por exemplo, deixar de lado a intenção moralizante e adotar o fantástico ou o psicológico para elaborar o enredo (GAN-CHO, 2006, p. 09-10).

Diante desse excerto crítico, e das questões que foram apresentadas acima, reflita sobre o conto “O Filho-da-Estrela”, de Oscar Wilde, publicado pela primeira vez em 1888, considerando o seu diálogo com as formas dos contos de fadas e, ao mesmo tempo, com a configuração moderna do conto, com ênfase sobre a construção do enredo. Para apoiar esta atividade de leitura, considerem, ainda, elementos já vistos na unidade anterior, como a organização do enredo, da configuração do foco narrativo e do narrador. dica. utilize o bloco

de anotações para responder as atividades!

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III. A personagem – Para começarmos a entender um dos principais componentes da narrativa, vejamos um conceito básico de personagem, que é dado pelo professor canadense Uri Margolin (2007):

[...] personagem designa qualquer entidade, in-dividual ou coletiva – normalmente humanos ou que tenham características humanas – introduzidas em um uma obra de ficção. Personagens existem, portanto, no mundo ficcional, e desempenham um papel, mesmo que pequeno, em um ou mais acon-tecimentos que dizem respeito à narrativa. Perso-nagem pode ser sucintamente definida como uma participante deste mundo ficcional (p. 66).10

Entendemos, assim, que a personagem está intimamente ligada a uma série de acontecimentos, que, organizados, formam o enredo de uma narrativa. Antonio Candido (1998), em seu ensaio sobre a perso-nagem do romance, afirma que “quando pensamos no enredo, pen-samos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida em que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino [...] O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo” (p. 53). Para Can-dido, é esta ligação indissolúvel que exprime os intuitos do romance, e, consequentemente, a vida, os significados e os valores que o animam.

Esta ideia é compartilhada pela maioria dos estudiosos em análise li-terária, que acredita que este vínculo é o que exige do analista da per-sonagem literária o cuidado em não separá-la do contexto da obra. Ou seja, além de sua construção exterior, dada pelas possíveis experiências de mundo de seu criador, que pode ou não basear-se em modelos reais, uma personagem deve ser compreendida através da função que exerce no romance. A convencionalização da personagem, como chama Candido, deve ser dada, portanto, por meio de seu encaixe no universo romanesco: suas relações com as demais personagens, com as ideias, com o tempo, com o espaço...

Esta ideia de Candido corrobora os estudos de Aristóteles sobre a poé-tica literária, que entendia a personagem como um reflexo do ser humano, e acreditava que o seu processo de criação, além de estar vinculado à re-produção do real, deveria ser pautado, principalmente, na verossimilhança interna da obra, ou seja, a existência da personagem deveria estar vincula-da às leis particulares do texto literário. Daí o porquê de uma personagem do realismo fantástico, como a Alice de Lewis Carroll, fazer total sentido para nós, mesmo em suas viagens mágicas.

Podemos, então, afirmar que a construção das personagens acom-panhou a evolução do tempo e seguiu as diversas mudanças da huma-nidade, notadamente a partir dos aspectos socioculturais. Segundo Beth Brait (2006), em Roma, por exemplo, a literatura servia ao entretenimento e à função pedagógica, por isso, para o poeta Horácio, as personagens estavam intimamente ligadas ao aspecto moral, e deveriam, assim, servir de exemplos para o público. Já na Idade Média, o modelo moralizante

10 Tradução livre do original “[...] ‘character’ designates any entity, individual or collecti-ve – normally human or human-like – intro-duced in a work of narrative fiction. Charac-ters thus exist within storyworlds, and play a role, no matter how minor, in one or more of the states of affairs or events told about in the narrative. Character can be succinctly defined as storyworld participant”.

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era aquele que representava os ideais cristãos, e a personagem deveria, necessariamente, reproduzir o melhor do ser humano. Entre os séculos XVIII e XIX, época em que a estética clássica estava em declínio, um novo modelo de personagem surgiu, baseado na análise das paixões e sen-timentos humanos. Diante de um novo público – a burguesia –, o novo delineamento refletia personagens múltiplas e complexas, caracterizadas psicologicamente.

Conforme Candido (1998), esta “dificuldade do ser fictício” demonstra o não esgotamento de sua construção em traços característicos, revelando, então, uma natureza aberta e sem limites. Nestas personagens complica-das, podemos perceber “certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério” (p. 60). Era a época do Roman-tismo, dos romances psicológico, histórico e de costumes, do Realismo e do Naturalismo, da sátira social e política e dos estudos científicos.

Feitas estas considerações, podemos, então, passar à classificação das personagens, que, para a maioria dos estudiosos da narrativa, se dá em duas esferas. A primeira delas refere-se à importância da per-sonagem para o desenvolvimento do conflito dramático. Assim, temos a personagem protagonista (ou principal) e a secundária (ou figurante).

Na primeira categoria, a personagem é fundamental para a cons-tituição e o desenvolvimento do enredo. É nesta categoria que se en-caixa a função de herói, tipo de personagem comum no Renascimento, época em que Cervantes construiu seu Dom Quixote, ou, indo a uma época mais distante, na Antiguidade Clássica, período no qual Home-ro elaborou o seu ardiloso Ulisses. Para Reis e Lopes (1987), o herói relaciona-se a uma concepção antropocêntrica da narrativa, uma vez que a história gira em torno de sua figura geralmente histórica. Cabia, assim, aos heróis a perspectiva triunfalista, a capacidade de afirmação do homem. No Romantismo, por exemplo, período em que a figura do herói foi, também, bastante utilizada, esse tipo de personagem enfren-tava, porém, outros cenários sócio-históricos, e eram marcadas por seus conflitos perante as convenções morais e sociais de sua época, tendo em vista que tais constrições iam de encontro aos seus ideais.

As personagens secundárias, ou figurantes, são aquelas que, ge-ralmente, não são importantes para o desenvolvimento do enredo, da intriga. No entanto, para o desenrolar da ação, as personagens secun-dárias de feições sociais são elementos fundamentais para a ilustra-ção de “uma atmosfera, uma profissão, um posicionamento cultural, uma mentalidade” (REIS; LOPES, 1987, p. 157). Segundo Bourneuf e Ouellett (apud BRAIT, 2006), as personagens secundárias podem ser percebidas como elementos decorativos: inexiste o psicológico, mas sua função está na caracterização de um núcleo. Daí o porquê de se identificarem com as personagens-tipo, como as diversas que encontra-mos n’O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Esta é uma categoria que veremos agora, na segunda esfera de caracterização das personagens, elabora-da por E. M. Forster, em Aspects of the Novel.

Fundamentada, principalmente, nos aspectos psicológicos das per-sonagens, para a classificação desta esfera, Forster baseou-se na ob-

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servação do processo de composição das personagens por seus criado-res. Assim, os tipos de personagens foram divididos em duas classes11:

1. Personagens planas (flat): as personagens-tipo, que representam determinadas categorias sociais, e as estereotipadas (caricaturas), com acumulação excessiva de signos, ambas sem profundidade psicológica. Têm hábitos e reações previsíveis e não surpreendem o leitor, no decorrer da narrativa. O Cortiço, como uma obra natura-lista rica em detalhes, tem vários exemplos de personagens planas, reproduções de tipos observados por Aluísio Azevedo, no fim do século XIX. A caracterização exagerada da cocote francesa Léonie nos dá a impressão exata de um tipo pertencente à classe das pros-titutas de luxo da época, ao mesmo tempo em que se configura como uma caricatura:

O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mos-trando uns sapatinhos à moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas lavas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de ren-das cor-de-rosa e com grande cabo cheio de ara-bescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas abas forradas de velado escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa; as suas jóias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lá-bios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os cos-tumes e as maneiras daquela pobre gente, que de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreitá-la pela porta da casinha de Alexandre [...] (AZEVE-DO, 2004, p. 95).

Além de seus atributos exteriores, as atitudes da personagem Léo-nie não impressionam o leitor, que prevê sua índole desde o início da narrativa. Há, do mesmo modo, diversas personagens planas, como a maioria dos moradores do cortiço, representantes de tipos sociais: la-vadeiras, operários, capoeiras..., que não se modificam com o decorrer da trama, mas que têm sua importância no desenvolvimento da ação.

2. Personagens redondas (round): são as personagens complexas, mul-tidimensionais, imprevisíveis. Não se reduzem aos limites de uma categoria social e têm o poder de surpreender o leitor. Ainda n’O Cortiço, temos a personagem Jerônimo, considerada como redonda em razão de sua mudança gradativa. O português, que ao chegar à estalagem era conhecido pelo gosto ao trabalho, pela modéstia e pelos modos tradicionais portugueses, aos poucos, abrasileira-se, tornando-se preguiçoso e violento. Sua esposa Piedade de Jesus, igualmente, portuguesa asseada e laboriosa, pode ser considera-da como uma personagem redonda, uma vez que, após ser aban-

11 Antonio Candido (1998) nos traz, ainda, uma terceira categoria: Personagem plana com tendência à redonda, cuja densidade psicológica é mediana, com possibilidade de surpreender.

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donada pelo marido, muda-se para o cortiço rival, caracterizado como decadente, e cai em degradação, tornando-se alcoólatra e promíscua:12

Piedade, essa e que se levantou das febres com-pletamente transformada. Não parecia a mesma depois do abandono de Jerônimo; emagrecera em extremo, perdera as cores do rosto, ficara feia, tris-te e resmungona; mas não se queixava, e ninguém lhe ouvia falar no nome do esposo (AZEVEDO, 2004, p. 171). Por esse tempo, Piedade de Jesus, sem se conformar com a ausência do marido, chorava o seu aban-dono e ia também agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperança, a que nem as lágrimas bastavam para adoçar as agruras. A princípio, ain-da a pobre de Cristo tentou resistir com coragem àquela viuvez pior que essa outra, em que há, para elemento de resignação, a certeza de que a pessoa amada nunca mais terá olhos para cobiçar mulhe-res, nem boca para pedir amores; mas depois co-meçou a afundar sem resistência na lama do seu desgosto, covardemente, sem forcas para iludir-se com uma esperança fátua, abandonando-se ao abandono, desistindo dos seus princípios, do seu próprio caráter, sem se ter já neste mundo na con-ta de alguma coisa e continuando a viver somente porque a vida era teimosa e não queria deixá-la ir apodrecer lá embaixo, por uma vez. Deu para desleixar-se no serviço; as suas freguesas de roupa começaram a reclamar; foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco; fez-se madraça e moleirona, pre-cisando já empregar grande esforço para não bulir nas economias que Jerônimo lhe deixara, porque isso devia ser para a filha, aquela pobrezita orfa-nada antes da morte dos pais. [...] (p. 175-176).Pobre mulher! chegara ao extremo dos extremos. Coitada! já não causava dó, causava repugnância e nojo. Apagaram-se-lhe os últimos vestígios do brio; vivia andrajosa, sem nenhum trato e sempre ébria, dessa embriaguez sombria e mórbida que se não dissipa nunca. O seu quarto era o mais imun-do e o pior de toda a estalagem; homens malvados abusavam dela, muitos de uma vez, aproveitando--se da quase completa inconsciência da infeliz. Agora, o menor trago de aguardente a punha logo pronta; acordava todas as manhãs apatetada, mui-to triste, sem animo para viver esse dia, mas era só correr à garrafa e voltavam-lhe as risadas frouxas, de boca que já se não governa (p. 201-202).

Outro bom exemplo de personagem redonda é Paulo Honório, narrador-protagonista de S. Bernardo, em razão de sua densidade psi-cológica. Durante toda a narrativa, Paulo Honório se vê cercado de

12 Antonio Candido (1998) também mencio-na os estudos de Johnson, no século XVIII, que categorizava as personagens como de costumes e de natureza. As primeiras são relacionadas às personagens planas, mar-cadas pela caricatura, de características invariáveis e reveladas desde o princípio. Já as segundas aproximam-se das perso-nagens planas, observadas através de uma caracterização analítica e não pitoresca. Os romancistas de costume constroem suas personagens de acordo com o com-portamento humano em sociedade; já os de natureza percebe o homem através de sua existência interior.

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seus conflitos interiores, notadamente após seu casamento com Ma-dalena. Essa subjetividade faz com que suas ações sejam imprevisíveis, dando ao enredo um tom de imprecisão. Paulo Honório, antes um empreendedor confiante e objetivo, torna-se inseguro e introspectivo, perdendo o controle de si mesmo. Vejamos dois exemplos que ilustram essa mudança:

O meu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa, plantar algo-dão, plantar mamona, levantar a serraria e o des-caroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um rebanho bovino regular (RAMOS, 2008, p. 12).De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha: Digo em voz baixa:-- Estraguei a minha vida, estraguei-a estupida-mente.A agitação diminui.-- Estraguei a minha vida estupidamente.Penso em Madalena com insistência. Se fosse pos-sível recomeçarmos... Para que enganar-me? [...] (RAMOS, 2008, p. 220).

De acordo com Beth Brait (2006), a construção das personagens se dá através de alguns recursos utilizados pelo escritor, que, baseado em modelos reais ou imaginários, cria personagens que só fazem sentido “através de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e sensíveis seus movimentos” (p. 52), ideia que esbarra nas já mencio-nadas teorias de Forster e Candido. Esses recursos, no entanto, en-volvem, necessariamente, o narrador, uma vez que é através dele que somos levados pelo mundo ficcional. Segundo a autora, tais artifícios fazem do narrador uma câmera ou uma personagem envolvida direta ou indiretamente com os acontecimentos narrados, e, de acordo com sua postura, ele nos revela “um ponto de vista capaz de caracterizar as personagens” (p. 53).

Em suma, o processo de construção das personagens dá-se pelo poder de caracterização de seus criadores, que, através da articulação verbal – texto –, construída por meio da capacidade que têm em absor-ver a realidade e juntá-la à sua sensibilidade e estilo, fazem com que o leitor, munido de seu conhecimento de mundo, perceba suas “criaturas de papel”.

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Atividade IIIComo começamos a apresentar, na unidade anterior, aspectos do romance O Guarani, de José de Alencar, vamos, agora, mediante a leitura de um capítulo deste mesmo romance , fazer um estudo de suas personagens. É o capítulo V, da Primeira Parte, intitulado “Loura e Morena” – como sempre, pedimos que leiam o capítulo, na íntegra, ele está disponível online e em muitas edições em livro, de fácil acesso – em que nos são apresentadas Cecília e Isabel, respectivamente, a filha de Dom Antônio de Mariz, e a mestiça, criada como sobrinha, mas, na realidade, sua filha bastarda com uma indígena. Leiam, atentamente, o capítulo, e discutam a caracterização das duas personagens centrais do mesmo. Observem e apresentem a maneira como o narrador caracteriza as personagens, fisicamente e psicologicamente, contrastando, durante todo o capítulo, o mundo indígena, presente, inclusive, no devaneio onírico de Cecília, e o mundo português, de modo a tornar mais complexa a compreensão de ambas.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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Resumo

Nesta aula, dividida em três seções, discutiram-se as noções de romance, conto e personagem. Na primeira delas, vimos as origens do romance, sua comparação à epopeia e seus percursos e desenvolvi-mentos no decorrer dos tempos, através dos quais o gênero romanesco passou por diversas mutações. Daí o porquê da dificuldade de sua definição. Em relação ao conto, foram observadas sua relação com a oralidade e, também, a impossibilidade de estudos teóricos precisos sobre o gênero, em razão de sua extensão e sua estética indefinidas. Na terceira e última seção, estudamos a definição de personagem, sua relação com o enredo, suas funções na narrativa, suas relações com as demais personagens e com os demais elementos da narrativa – tempo, espaço etc.

Leitura recomendada MENESES, Adélia Bezerra de. Vermelho, verde e amarelo: tudo era uma vez. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 69, 2010. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/10525

Para aprofundar a relação entre os contos de fadas e a contempo-raneidade, seguindo uma linha de raciocínio convergente a que preten-demos lançar, na proposta de trabalho com o conto de Oscar Wilde, este texto é quase indispensável, pois analisa três contos distintos, de autores e épocas também distintas, mediante análise comparativa.

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AutoavaliaçãoConsiderando tudo o que foi lido nesta Unidade, como também as três atividades propostas, gostaríamos que cada aluno atentasse para três reflexões, respondendo e justificando cada uma delas:

1) após esta Unidade, serei capaz de compreender as diferenças entre romance, epopeia e conto?

2) em uma análise narrativa, ao me debruçar sobre o estudo de uma ou mais personagens, serei capaz de perceber suas características e apontá-las conforme sua importância na narrativa e seus aspectos psicológicos?

ReferênciasAGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da literatura. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1969.

ALENCAR, José de. O guarani. São Paulo: Ática, 1992.

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 36. ed. São Paulo: Ática, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance (Sobre a metodologia do estudo do romance). In:__. Questões de literatura e estética (A teoria do romance). Tradução de Aurora Fornoni Bernadini et al. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, Hucitec, 1998. p. 397-428.

BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 2006.

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: __. Valise de Cronópio. Tradução de Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa; organização de Haroldo de Campos e Davi Arriguci Jr. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 147-163.

D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto, 1: Prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 1999.

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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GOTLIB, Nádia. Teoria do Conto. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006.BRAIT, Beth. A personagem. 8. ed. São Paulo: Ática, 2006.

CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Hemílio Salles Gomes (Orgs.). A personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 51-80.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 9. ed. São Paulo: Ática, 2006.

GOODY, Jack. Da oralidade à escrita. Reflexões antropológicas sobre o ato de narrar. In: MORETTI, Franco. O Romance, 1: A cultura do romance. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 35-67.

MARGOLIN, Uri. Character. In: HERMAN, David (Org.). The Cambridge Companion to Narrative. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 66-79.

MENESES, Adélia Bezerra de Meneses. Scherazade ou do Poder da Palavra. In:__. Do poder da palavra: ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 2004. p. 37-55.

MORETTI, Franco. O romance: história e teoria. Novos Estudos, São Paulo, n. 85, p. 201-212, novembro de 2009. Disponível em: http://www.novosestudos.com.br/v1/contents/view/1362

PASSOS, Cleusa Rios P. Breves considerações sobre o conto moderno. In: BOSI, Viviana, et al. (Org.). Ficções: leitores e leituras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p. 67-90.

POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. Prefácio de Pedro Süssekind e tradução de Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

PONTES, Newton de Castro. Formas inacabadas: a questão da romancização em textos de Clarice Lispector e Tennessee Williams. Dissertação (Mestrado em Literatura e Interculturalidade) – Universidade Estadual da Paraíba, Pró-Reitoria de Pós-Graduação, 2010. 125 f.

RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. 109. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Livraria Almedina, 1987.

WARNER, Marina. Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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VI UNIDADE

Espaço e tempo na narrativa

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ApresentaçãoPara analisar e interpretar uma estrutura narrativa, como

vimos aprendendo, temos que atentar para a constituição do seu narrador e de suas personagens – estes, dentre os componentes de uma narrativa, seriam os que primeiramen-te saltariam aos nossos olhos. Mas, não podemos esquecer que as personagens agem em um dado espaço e que a nar-rativa se desenrola em um dado tempo. Assim, temos que começar a considerar que tempo e espaço devem constituir guias para um entendimento, cada mais vez mais complexo, das estruturas narrativas.

De maneira bastante breve, como já anunciou também Carlos Reis (2008, p. 361-362), ao lermos uma narrativa vamos conseguir apreender um espaço em que suas perso-nagens se situam, pois, numa primeira instância, teremos acesso aos “componentes físicos que servem de cenário à história: cenários geográficos, interiores, decorações, obje-tos, etc.”, mas, também, numa segunda instância, esse mes-mo conceito se expandirá, para abarcar atmosferas tanto de ordens sociais quanto de ordens psicológicas, que envolvem estas mesmas personagens.

Da mesma maneira como conseguimos apreender este “lugar” onde se desenrola qualquer ação narrativa, também podemos começar a pensar sobre o seu tempo: uma cate-goria que tanto pode delimitar a época em que se passa a história – um momento histórico localizável ou mesmo um tempo mítico e distante, como o das epopeias e dos contos de fadas –, mas, também, pode levantar questões relativas à duração do enredo, que pode ser um dia, um ano, ou al-guns anos, ou mesmo a duração de vidas inteiras, quando se narram destinos de um grupo familiar ou social.

Como se verá, nesta Unidade, pretendemos ampliar e problematizar estas questões iniciais, de modo a aprofundar, mais ainda, tudo o que estamos apontando desde a Unida-de 04, quando começamos nosso passeio pelos caminhos da narrativa. Enfim, vamos lá?

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Objetivos

Ao final desta unidade, esperamos que você seja capaz de:

• Definir, analisar e interpretar as categorias de tempo e espaço, na leitura de uma narrativa;

• Entender a relação entre espaço e caracterização de persona-gens;

• Discutir aspectos relacionados à constituição do tempo em uma narrativa.

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O espaço na narrativaA importância do espaço como categoria relevante para a análise

da narrativa começou a ser observada, em âmbito brasileiro, a partir de um estudo de Osman Lins, intitulado Lima Barreto e o espaço romanesco (1976). Por acreditar que o todo de uma narrativa é feito de categorias indissociáveis e igualmente importantes, a preocupação deste autor, então, foi além da caracterização do espaço meramente geográfico, onde o enredo se desenvolve e onde atuam as personagens – daí ele começar a dar ao elemento espacial a mesma relevância conferida às outras categorias, até então tomadas como primordiais às análises literárias. Hoje, o estudo do espaço literário vai além das percepções espaço-temporais, cujas relações são imprescindíveis para o nosso en-tendimento sobre o contexto sociocultural ao qual pertence uma obra, conferindo ao espaço, dentro da narrativa, possibilidades de análise cada vez mais abrangentes, e que podem iluminar inúmeras questões.

Ao estudarmos o espaço em uma obra literária, é comum que per-cebamos, primeiramente, seu caráter físico, uma vez que conseguimos pensá-lo através de sua introdução feita, por um narrador que buscar situar o enredo e as personagens que nele atuam. Assim, ao lermos um romance brasileiro, certamente um dos nossos mais conhecidos, como O Cortiço1, por exemplo, construímos imageticamente a grande habita-ção coletiva onde grande parte do enredo se desenvolve, uma vez que os recursos narrativos manipulados pelo autor vão nos dar indícios que apontam a caracterização deste espaço. Vejamos, agora, um trecho do primeiro capítulo:

Fotografia do século XIX, com uma visão panorâmica de um cortiço

Noventa e cinco casinhas comportou a imensa es-talagem.

Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do so-brado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças verme-lhas, por cima de uma tabuleta amarela, em que

1 Romance brasileiro, escrito em 1890, por Aluísio Azevedo. Em quase todas as análises ou quaisquer outras referências que se faz a esta obra, sempre, avulta o espaço, delimi-tado desde o título, como algo digno de ser observado, inclusive em suas relações com o sobrado, marcando uma tensão que torna o cortiço “um espaço emblemático por ser determinante na construção de identidades e subjetividades; ao mesmo tempo em que representa o espaço físico, estampa a for-mação de uma nova espacialidade social, que definirá a constituição do ambiente urbano brasileiro” (GAMA-KHALIL, 2010).

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se lia o seguinte, escrito à tinta encarnada e sem ortografia:

“Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras.”

As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis, sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar.

Graças à abundância de água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espa-ço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los.

E aquilo se foi constituindo numa grande lavan-deria, agitada e barulhenta, com as suas cercas de vara, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apare-ciam como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco.

E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco (AZEVEDO, 2004, p. 26).2

Como bem podemos atestar, para além de seu aspecto físico, inscri-to na descrição do narrador, a configuração do espaço nesta narrativa pode ser tomada a partir de outras diversas funções, na medida em que toca aspectos outros, como a própria constituição de um espaço social, ricamente trazido ao leitor mediante uma linguagem, neste caso, re-pleta de detalhes sensoriais (cores, luminosidade, sensações térmicas), mas, também, capaz de unir ao espaço, de maneira tão intrincada, que se torna dele indissociável, via perspectiva narrativa, o elemento humano que “brota” do seu chão. Assim, já neste rápido fragmento, podemos ir além das opiniões que entendiam o espaço literário como uma categoria inferior, dando-lhe um papel de pano de fundo, estático, sem relação com as personagens. Aqui, o espaço aparece fervilhando, povoado por personagens que se acercam dele, por suas vantagens e possibilidade de vida. Voltaremos a isso adiante, quando retomaremos as discussões em torno do romance de Aluísio Azevedo.

2 Todas as referências, daqui por diante, se referem a esta mesma edição. Portanto, indicaremos, após cada citação, apenas a paginação.

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Devemos, agora, começar a considerar que os estudos contempo-râneos apontam o espaço da narrativa, conforme designação dada por Brandão e Oliveira (2001), mediante dois componentes:

• o físico – ao qual chamam de determinista (paisagens, interio-res, decorações, objetos), que condiciona o desenrolar da ação e o trânsito das personagens;

• o social e psicológico – ao primeiro é atribuída a descrição de ambientes “que ilustram quase sempre uma contenção crítica” (p. 79), marcados, sobretudo, por personagens-tipo3 (REIS; LO-PES, 1987), como é o caso d’O Cortiço, que relata uma época existente e já passada, através da representação das classes baixas do Brasil, no fim dos oitocentos; e, ao segundo, um es-paço criado através do comportamento, geralmente solitário, das personagens, cuja representação simbólica se dá pela sub-jetividade de pensamentos e memórias, “cenário de uma mente quase sempre perturbada” (REIS; LOPES, 1987, p. 130).

Em outras palavras, as funções espaciais perpassam tanto pelo atributo físico, que situa uma personagem e suas ações, quanto pela relação entre esta personagem com outras personagens e com o pró-prio espaço. N’O Cortiço, portanto, para além da percepção física da habitação coletiva, percebemos, também, como o espaço se organiza socialmente, através da coexistência de seus moradores. Igualmente, conseguimos visualizar a relação que esses moradores têm com o es-paço em que vivem, transformando-o e sendo transformados por ele. É o que poderemos, também, começar a estudar logo a seguir.

Sabemos que, a partir dos estudos pioneiros de Osman Lins, al-guns outros estudiosos propuseram uma análise mais pormenorizada do espaço em literatura, como Ozíris Borges Filho (2007). Para que possamos compreender os sentidos do espaço em um texto, segundo este autor, é preciso que estejamos atentos a algumas abordagens uti-lizadas pelo narrador para a criação de um espaço ficcional, em razão de seus significados irem além dos mais claramente observados. Mui-tos dos espaços que comparecem em uma narrativa estão diretamente ligados às personagens, pois, em uma obra literária, o espaço pode, por exemplo, caracterizar as personagens. Ou seja, percebemos, através do espaço criado, os contextos nos quais vivem as personagens, sejam eles sociais ou psicológicos.

Considerando que o espaço no romance de Aluísio Azevedo, tam-bém é construído, na sua constituição social mais ampla, por uma caracterização de universos do trabalho, como é o caso das lavadei-ras, mencionadas já no primeiro excerto citado, que, como vimos, é determinante para a própria ocupação do cortiço, tendo em vista as condições propícias para o exercício desta profissão pelas moradoras – a saber, a presença de tinas e de águas abundantes, além do amplo pátio para que se estendessem as roupas já lavadas –, podemos centrar atenção sobre essa categoria para pensar como, por uma construção

3 Sobre estas questões, já tratamos na Uni-dade sobre a personagem na narrativa.

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espacial, as personagens também passam a ser caracterizadas, ates-tando a importância central do espaço para uma análise mais acurada.

A certa altura do capítulo três, é mediante a descrição do espaço, ou seja, de acordo com a posição das tinas onde as mulheres lavam as roupas, e, também, pela hora em que cada uma chega ao seu posto de trabalho, que o narrador vai apresentando as personagens que compõem este universo social do cortiço – são elas: Leandra, a “Machona”; Augusta “Carne-Mole”, mulher de Alexandre; Leocádia, casada com o ferreiro Bruno; Paula, a “Bruxa”; Marciana e sua filha Florinda; a já velhinha Dona Isabel, mãe de Pombinha (que por conta de sua fragilidade física, nem lava nem engoma roupas); e, por fim, o único homem deste conjunto, o lavadeiro Albino. Portanto, ao passo em que o narrador posiciona as lavadeiras neste espaço de trabalho, ele vai nos apresentando, uma a uma, em suas individualidades, nas suas relações familiares e com os outros moradores do cortiço.

Colocadas todas elas em situação de trabalho, João Romão – o proprietário daquela moradia coletiva, sobre quem trataremos logo a seguir – cruza o pátio, acompanhado por um cavouqueiro – um ho-mem especializado no trabalho com pedras, conforme veremos também adiante –, e, “depois de transporem uma porta que se fechava com um peso amarrado a uma corda, acharam-se no capinzal que havia antes da pedreira” (p. 47), onde homens labutavam. É para a pedreira que a perspectiva narrativa irá se deslocar, e, neste espaço, encontraremos outras personagens, mas, antes de se chegar até lá, se passa por uma oficina de ferreiro, como bem podemos observar abaixo:

[...] Logo em seguida, surgia uma oficina de ferrei-ro, toda atravancada de destroços e objetos que-brados, entre os quais avultavam rodas de carro; em volta da bigorna dois homens, de corpo nu, banhados de suor e alumiados de vermelho como dois diabos, martelavam cadenciosamente sobre um pedaço de ferro em brasa; e ali mesmo, perto deles, a forja escancarava uma goela infernal, de onde saiam pequenas línguas de fogo, irrequietas e gulosas.

Além da percepção que temos do espaço construído pelo narrador (a oficina está cheia de “destroços e objetos quebrados”), observamos como também são caracterizadas as personagens inseridas neste es-paço (os dois homens, que, diante da forja, trabalham um pedaço de ferro, ao redor da bigorna). A forja é descrita como “goela infernal”, visto cuspir línguas de fogo, que iluminam de “vermelho” os corpos dos homens que passam a parecer, diante da ótica narrativa, como “dois diabos”. Assim, diferentemente do trabalho das mulheres, esta sorte de atividade, bem mais calcinante, nos expõe outra situação social em que o espaço quente, claro-escuro, avermelhado, aproxima os homens que lá trabalham de uma caracterização diabólica, prestes a serem engoli-dos pela forja, cujo fogaréu mostra-se guloso e capaz de sucumbi-los pelas próprias condições adversas do trabalho.

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Do mesmo modo, o espaço pode evidenciar o caráter das persona-gens, como é o caso de João Romão, personagem caracterizado por sua avareza. A descrição de seu local de dormir nos dá pistas sobre sua índole mesquinha: “Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha” (p. 15). Ou seja, mesmo diante de suas posses, a persona-gem dorme sobre o balcão da venda: pelo espaço, neste caso, co-meçamos, também, a acessar dados importantes da posição social e, consequentemente, da psicologia de João Romão. De outra maneira, vamos encontrar o cômodo do bom lavadeiro Albino, que, pela descri-ção – o capricho como arruma cada detalhe, seja a cortina de labirinto, o papel vermelho na parede da sala, sejam os adornos todos –, denota o seu caráter prendado, mesmo que ocupe uma posição social menor, em relação a Romão:

Albino levou o seu capricho até à cortina de labi-rinto e chão forrado de esteira. A casa dele desta-cava-se das outras; era no andar de baixo, e cá de fora via-se-lhe o papel vermelho da sala, a mobília muito brunida, jarras de flores sobre a cômoda, um lavatório com espelho todo cercado de rosas artificiais, um oratório grande, resplandecente de palmas douradas e prateadas, toalhas de renda por toda a parte, num luxo de igreja, casquilho e defumado (p. 181).

Do mesmo modo, podemos perceber como o espaço influencia as personagens, uma vez que “se há o espaço que nos fala sobre perso-nagem, há também o que lhe fala, o que a influencia”, como afirma Osman Lins (1976, p. 99). Um clássico exemplo é o de Jerônimo, outra personagem do romance de Azevedo, que, aos poucos, abre mão de seus costumes portugueses (ele é um migrante) e abrasileira-se, em razão de seu convívio com os moradores do cortiço São Romão, para além, claro, da relação que passa a travar com os trópicos. Entenda-se, neste caso, a própria questão da influência do meio como uma forte base da teoria naturalista4, sob a qual o autor escreveu seu romance – daí a incrível relevância do espaço para este romance:

A vida americana e a natureza do Brasil patente-avam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição; para idealizar felicidades no-vas, picantes e violentas; tornava-se liberal, im-previdente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos pra-zeres, e volvia-se preguiçoso resignando-se, ven-cido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria contra os con-quistadores aventureiros (p. 86).

4 O Naturalismo é indicado por Zola não como uma escola, mas como um método de-senvolvido através da ampliação de ideias já utilizadas desde a Antiguidade. Tem como objeto de estudo a vida natural e social do homem, submetido e transformado pelo meio em que vive. O entendimento do ho-mem, em suas ações individuais e coletivas, segundo Zola, visa a uma melhor organiza-ção social, uma vez que, ao se conhecer o determinismo de um fenômeno, pode-se regular a sociedade. Assim, as experiên-cias desenvolvidas sobre certos aspectos humanos, como vícios ou patologias, podem contribuir no equilíbrio da “saúde do corpo social” (ZOLA, 1982).

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Percebemos, assim, como o clima brasileiro foi determinante nas mudanças do português. Mas, para além disso, muitas das caracteriza-ções espaciais têm o intuito de aguçar os sentidos de quem as percebe, ou seja, cheiros e gostos, por exemplo, podem ser percebidos através da leitura; é o que chamamos de sinestesia, recurso amplamente utili-zado em O Cortiço. No exemplo abaixo, percebemos o amanhecer ba-rulhento no cortiço através da minúcia do narrador, e, não raro, quase sentimos o aroma do café, tudo isso mediante a leitura, que, pelas artimanhas narrativas, instaura o espaço mediante as sonoridades e aromas do cortiço que acorda:

Entretanto, das portas surgiam cabeças congestio-nadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando to-dos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não an-dam. No confuso rumor que se formava, destaca-vam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhan-ça dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia (p. 35).

Além de transformar as personagens, o espaço pode ser transformado por elas, como bem podemos observar na descrição da pedreira, que se dá pela atuação das personagens naquele espaço de trabalho, quando da chegada de João Romão e do cavouqueiro até lá, conforme cum-prem o percurso que vínhamos comentando anteriormente:

Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se traba-lhadores, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta; de outro afeiçoavam laje-dos a ponta de picão; mais adiante faziam parale-lepípedos a escopro e macete. E todo aquele retin-tim de ferramentas, e o martelar da forja, e o coro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar--lhe ao fogo, e a surda zoada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a ideia de uma atividade feroz, de uma luta de vingança e ódio. Aqueles homens gotejantes de suor, bêbedos de calor, desvairados de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra, pareciam um punhado de demônios revoltados na sua impotência contra o impassível gigante que os

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contemplava com desprezo, imperturbável a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abris-sem as entranhas de granito [...] (p. 48).

Novamente, os trabalhadores, diante das condições terríveis a que estão submetidos (uns “ao sol”, outros sob barracas “de lona ou de fo-lhas de palmeira”, são aproximados a “demônios” – e arriscamos afir-mar que estes espaços de trabalho, porque oprimem e quase aniquilam os que lá estão, seriam realmente figurações infernais. O conjunto, portanto, dos espaços de trabalho, barulhentos, pelas conversas cruza-das, pelas cantorias que embalam os ritmos do corpo, seja a pedreira, seja os sons distantes do pátio do cortiço (cuja “zoada”, se assemelha, para o narrador, a de uma “aldeia alarmada”), apontam para as difi-culdades do mundo do trabalho, tornado uma “atividade feroz”, sendo, portanto, tais espaços, arenas onde se travam lutas de “vingança e ódio”. Os trabalhadores da pedreira, ao fim, lutam contra o próprio espaço que tencionam dominar, sob as ordens de João Romão, pela exploração de seus recursos minerais. E é este espaço, caracterizado como um “gigante”, que, impassível, observa os golpes a si desferidos: ou seja, o espaço aqui, modificado pela ação das personagens, ao mesmo tempo em que se modifica, também modifica indivíduos, que deixam de ser gente para, de novo, se assemelharem a demônios, im-potentes na busca por demolir um gigante – tanto a própria pedreira, quanto as próprias condições de exploração do trabalho.

Além destas funções, há outros papéis atribuídos ao espaço da nar-rativa, como o de propiciar a ação das personagens. Neste caso, o espaço é favorável ao desenvolvimento de uma ação, a ser executada por uma personagem. N’O Cortiço, podemos observar tal relação no episódio em que Jerônimo, juntamente com seus amigos Pataca e Zé Carlos, arma uma emboscada para o capoeira Firmo, amante da voluptuosa Rita Baiana e, portanto, seu rival neste assunto. Após armarem o plano no botequim de Garnisé, Firmo é atraído por Pataca até a praia da Saudade, onde Jerônimo e Zé Carlos o esperam. O espaço da praia é caracterizado pela escuridão da noite, assinalada pelos vultos que sur-giam da “treva” e pela chuva. O espaço, portanto, é o cenário perfeito para um crime:

A praia estava deserta. Caia um chuvisco. Ventos frios sopravam do mar. O céu era um fundo negro, de uma só tinta; do lado oposto da baía os lampi-ões pareciam surgir d’água, como algas de fogo, mergulhando bem fundo as suas trêmulas raízes luminosas (p. 149).

Vale lembrar, porém, que o universo de um texto literário é ilimitado e pode suscitar diversas outras possibilidades de interpretação, e isso não é diferente em se tratando da categoria que estamos estudando. Além disso, deveremos perceber, em uma análise literária, que, muitas vezes, um espaço pode não influenciar ou caracterizar uma persona-gem, destinando-se, exclusivamente, a situá-la. Nestes casos, então,

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não se percebe “um nexo entre a personagem, a ação cumprida e o cenário em que a cumpre” (LINS, 1978, p. 101).

I. Espaço e ambientação – Como foi possível percebermos até aqui, no romance O Cortiço, há alguns espaços circunvizinhos à habitação coletiva, como a taverna, a pedreira, o sobrado da família Miranda, e, embora ocorram alguns episódios nestes espaços, é no próprio cor-tiço que grande parte do enredo se desenvolve. Há, também, outros espaços como ruas, praias e confeitarias, onde as personagens apenas transitam de passagem – ou seja, o espaço não está concentrado, ou não é unitário, mesmo que haja um deles que seja o mais amplamente aproveitado.

Por outro lado, podemos encontrar enredos em que há uma con-centração radical de espaço, é o caso do conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis, no qual tudo ocorre numa sala da casa de Meneses e Conceição; o espaço da casa vazia é determinante para as ações de Conceição e do adolescente Nogueira, ou seja, como vimos ante-riormente, o espaço influencia as personagens. Neste conto, o espaço vazio e silencioso da casa torna-se uma “espécie de armadilha” (LINS, 1976, p. 100). Assim, nesta narrativa curta, como também em outros contos, percebemos, geralmente, um número reduzido de espaços, ou mesmo nenhum (neste caso, a configuração do espaço nem chega a ser mencionada).

Já em algumas obras, o enredo divide-se em vários espaços, como na Odisseia, poema épico sobre o qual tratamos mais detidamente na Unidade 02. Para que Ulisses possa chegar a Ítaca, sua morada, de-pois de sair da extinta Tróia, ele passa por uma série de percalços em diversos espaços. Diferente do cortiço de João Romão, onde as ações mais importantes ocorrem, os múltiplos espaços da Odisseia guardam episódios igualmente importantes para o desenvolvimento da epopeia.

Para começarmos a fixar o conteúdo, vamos recorrer ao que já apontou Cândida Vilares Gancho (2006, p. 27), no que diz respeito a uma rápida definição de espaço como:

[...] o lugar onde se passa a ação numa narrativa. Se a ação for concentrada, isto é, se houver poucos fatos na história, ou se o enredo for psicológico, haverá menos variedade de espaços; pelo contrá-rio, se a narrativa for cheia de peripécias (aconteci-mentos), haverá maior afluência de espaços.

O espaço tem como funções principais situar as ações das perso-nagens e estabelecer com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo eventuais transfor-mações provocadas pelas personagens.

Feito isso, passemos, agora, a outra questão: a possibilidade de se diferenciar espaço e ambientação numa narrativa. Para Osman Lins (1976), a ambientação pode ser diferenciada do espaço propriamente dito da seguinte maneira:

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Por ambientação, entenderíamos o conjunto de pro-cessos conhecidos ou possíveis, destinados a pro-vocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a aferição do espaço, levamos a nossa experiência de mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos ex-pressivos do autor, impõe-se certo conhecimento da arte narrativa (p. 77, grifos do autor).

Ou seja, enquanto espaço dá conta de um lugar físico, passamos a empregar o termo ambientação (ou ambiente) para designar “um ‘lugar’ psicológico, social, econômico etc.” (GANCHO, 2006, p. 27). Haveria, então, três tipos de ambientação, de acordo com Lins (1976): franca, reflexa e oblíqua (ou dissimulada).

A primeira é caracterizada pela descrição pura e simples do narrador, sem intromissões de uma personagem. O observador, em uma ambien-tação franca, é o narrador, podendo haver a presença de uma perso-nagem no espaço descrito: “o observador (nomeado ou não) observa o exterior e verbaliza-o, introduzindo na ação um hiato evidente” (p. 79). Já a ambientação reflexa, no entanto, se dá através da observação exclu-siva das personagens, sem intromissão do narrador; é a personagem que sente e descreve o espaço, evitando, assim, a pausa da ação, como na descrição feita por Paulo Honório, narrador-personagem de S. Bernardo, sobre a vista através da torre da igreja de sua fazenda:

Lá de cima escutava o barulho que Marciano, invi-sível, fazia. E, pelas quatro janelinhas abertas aos quatro cantos do céu, contemplava a paisagem. Por uma delas via embaixo um pedaço do escritório, uma banca e, sentada à banca, minha mulher escrevendo. Com um ligeiro desvio de olhos, afastava a cena fa-miliar e corriqueira, divisava o oitão da casa, portas, janelas, a cama de d. Glória, um canto da sala de jantar. Levantava a cabeça – e o horizonte compu-nha-se de telhas, argamassa, lambrequins. Mais para cima, campos, serra, nuvens (RAMOS, 2008, p. 183).

À ambientação reflexa pode ser atribuído um tom subjetivo. Na des-crição poética das ruas do Rio de Janeiro, na crônica “A Rua”, João do Rio transparece sua aproximação com os espaços urbanos, utilizando--se de exemplos reais, aos quais chamamos extra-literários: “A Rua da Misericórdia, ao contrário, com as suas hospedarias lôbregas, a misé-ria, a desgraça das casas velhas e a cair, os corredores bafientos, é per-petuamente lamentável. Foi a primeira rua do Rio (RIO, 2008, p. 35). Esta mesma subjetividade é, também, característica da ambientação oblíqua, que se dá pela junção entre espaço e ação: conforme age a personagem, o espaço é descrito, simultaneamente, como “se nascesse dos seus próprios gestos” (LINS, 1976, p. 84). Vejamos o fragmento de Vidas Secas, também de Graciliano Ramos, em que Fabiano e sua família chegam a uma fazenda abandonada:

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Fabiano procurou em vão perceber um toque de chocalho. Avizinhou-se da casa, bateu, tentou for-çar a porta. Encontrando resistência, penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas, rodeou a ta-pera, alcançou o terreno do fundo, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas, um pé de turco e o prolongamento da cerca do curral. Trepou-se no mourão do canto, examinou a ca-atinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no copiar, fazendo tenção de hospedar ali a família (RAMOS, 2009, p. 13).

Notamos, então, que, conforme Fabiano se movimenta, detalhes da fazenda vão surgindo. Para Dimas (1985), este é o tipo de ambien-tação mais difícil de ser percebido, uma vez que não há a separação entre ação e descrição, bem como não há uma personagem que nos transmite “direta ou indiretamente, o setting em que se insere” (p. 26). Deste modo, para que possamos perceber a ambientação dissimulada, é necessária bastante atenção.

II. Toponímia e perspectiva narrativa – Como já mencionado, a análise do espaço narrativo pode abrir várias possibilidades de interpretação, e, além disso, pode evidenciar não só um tipo de função ou ambien-tação, mas vários em uma mesma narrativa. Do mesmo modo, alguns detalhes como os nomes dados aos espaços narrativos e a aproxima-ção do narrador, demonstrada pela perspectiva narrativa, podem ser observados.

Toponímia é o termo utilizado por Ozíris Borges Filho (2007) para designar o estudo da nomeação dos espaços. Vejamos um exemplo da utilização deste recurso, mediante uma rápida menção ao livro Os Miseráveis, romance de Victor Hugo , publicado em 1862, no qual há uma vila chamada Digne, cujo clérigo é o Bispo Myriel, ou Monsenhor Bienvenu, o que nos revela a relação de semelhança entre o nome do lugar e seu sentido na obra. Para tanto, é preciso que saibamos o contexto da chegada de Jean Valjean, o protagonista da trama, à vila: como um prisioneiro fugitivo de Toulon, Valjean chega em Digne e con-segue abrigo na paróquia de Bienvenu, após perambular pelas ruas, sem destino. Preso por dezenove anos, Valjean é, então, acolhido num lugar “digno”, por um bispo que lhe dá as boas-vindas. O nome do espaço (Digne, digno em português), reforçado pelo nome da persona-gem religiosa (Bienvenu, bem-vindo em português) fortalece o sentido do espaço na narrativa e, ainda, abre possibilidades interpretativas, marcando os indícios de que uma vida nova se inicia para Valjean.

Em meio a todos estes aspectos, ainda devemos estar atentos à perspectiva narrativa presente numa obra que nos dispomos a analisar. O porquê disto está nas diferentes formas de delineamento do espaço por parte do narrador, seja ele onisciente, personagem ou neutro. Em uma focalização onisciente, a observação do espaço é ilimitada, panorâmica;

Retirantes, tela de Candido Portinari, datada de 1944.

Victor Hugo, autor do romance Os miseráveis.

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na interna, realizada por uma personagem, a descrição do espaço pode aparecer condicionada à sua consciência, ao seu ponto de vista; e, na externa, cujo narrador é neutro e não intervém na ação, a descrição limita-se ao exterior e dá-se objetivamente. Assim, a configuração de uma sala, por exemplo, pode se dar de formas diferentes, a depender da perspectiva narrativa: um narrador onisciente pode descrever a sala com todos os seus detalhes, através de uma ambientação minuciosa; uma personagem, ou um narrador-personagem, pode descrevê-la se-gundo seus princípios, seu estado de espírito e sua caracterização física e moral; já um narrador neutro pode, simplesmente, mencionar a sala como um cômodo de portas e janelas.

Portanto, ao analisarmos a categoria do espaço, temos que estar atentos às funções espaciais aplicadas à narrativa, às circunstâncias se-mânticas por trás de cada configuração, à ligação às outras categorias, como tempo, foco narrativo e personagem, bem como aos contextos sócio-históricos nos quais as obras literárias foram construídas.

A esta altura, é momento de parar para fazermos uma pequena atividade. Ela será uma possibilidade de aprimorarmos o que vimos até agora.

Atividade IJá que nos referimos, acima, a um conto de Machado de Assis, intitulado “Missa do Galo”, escrito em fins do século XIX, esta atividade irá se voltar a ele. Como é um conto bastante conhecido, e também acessível em livros ou mesmo em bibliotecas virtuais, é importante que todos possam lê-lo na sua íntegra, como sempre temos indicado.

Após a leitura, e diante dos apontamentos que traçamos, busque analisar e interpretar aspectos que digam respeito ao espaço no conto, buscando apreender como o espaço é apresentado, como as personagens se relacionam com o espaço, e se é possível distinguirmos as noções de espaço e ambientação no texto machadiano. E, por fim, vamos pensar: o espaço é uma categoria narrativa importante para a construção do enredo deste conto?

dica. utilize o bloco de anotações para responder as atividades!

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O tempo na narrativaPara começar, vamos levar em conta a opinião de Forster (1969,

p. 22), que afirma que “o que a história faz é narrar a vida no tempo”. Partindo deste princípio, podemos considerar que em um romance, por exemplo, a história narrada é composta por um conjunto de ações, que, organizado em uma sequência de tempo, é responsável por des-pertar a curiosidade em nós, leitores, segundo o desenrolar dos fatos, portanto, conforme o enredo se desenvolve; através desta sequência de acontecimentos, temos o desejo de saber, como, num dado decurso de tempo, a história chegará a um desfecho.

Portanto, temos que ter às claras que ao lermos ou analisarmos uma obra, estamos lidando com um tempo fictício – aquele relativo ao texto, e que diz respeito ao desenvolvimento do enredo em certo decurso temporal. Assim, conforme Gancho (2006, p. 24-25), este tempo, estruturalmente atrelado ao universo ficcional, se liga ao enredo em diversos níveis:

• como possibilidade de se delimitar a época em que se passa a narrativa, passando a constituir “um pano de fundo para o enredo”, podendo ou não coincidir com “o tempo real em que foi publicada ou escrita a obra”;

• como possibilidade de se apreender a duração da narrativa, pois “histórias se passam em um curto período de tempo, já ou-tras têm um enredo que se estende ao longo de muitos anos”5.

Comecemos, então, a focalizar estes aspectos em algumas espe-cificidades. Um dos maiores pesquisadores do tempo como categoria narrativa é o teórico francês Gérard Genette, que pontua, em sua obra Discurso da Narrativa (1995), os conceitos de tempo da diegese (a his-tória em si) e tempo da narração (o discurso) e a relação entre eles. Para Genette, o tempo da diegese pode ser apresentado através de dois aspectos: o cronológico e o psicológico. O primeiro diz respeito ao tempo objetivo, aquele que se pode contar sucessivamente, no qual há uma ordem temporal dos eventos; já o segundo, subjetivo, refere-se ao íntimo das personagens, ao tempo vivencial de memórias, experiências, sensações e emoções, ocorridas através do contato das personagens com o mundo. Assim, ao lermos uma obra, podemos nos deparar com fragmentos que indicam um desses aspectos, ou ambos. Vejamos al-guns casos.

Em S. Bernardo,6 de Graciliano Ramos, ao começar a contar sua história, o narrador-protagonista Paulo Honório dispõe fatos que nos fazem compreender, cronologicamente, como se deu o percurso de sua existência. No trecho abaixo, percebemos as dificuldades passadas pelo protagonista em um tempo específico:

Naquele segundo ano houve dificuldades medo-nhas. Plantei mamona e algodão, mas a safra foi ruim, os preços baixos, vivi meses aperreado, ven-dendo macacos e fazendo das fraquezas forças para não ir ao fundo. Trabalhava danadamente,

5 Da mesma maneira como tratamos do espaço, o tempo, por exemplo, num conto é mais conciso, portanto, marcando uma duração mais curta, enquanto que, num romance, se apontaria para uma duração mais larga.

6 S. Bernardo, escrito em 1934, revela o conflito psicológico de uma personagem, Paulo Honório, dominada por seu sentimen-to de propriedade. O objetivo deste narrador é escrever um livro de sua vida, contando-a por meio alternado de lembranças e fatos presentes, talvez para recuperar suas per-das, das quais vai se destacar a relação com Madalena, sua esposa. O monólogo interior e os conflitos psicológicos são presentes durante seu depoimento e revelam ao leitor uma personalidade dura, calcada em valo-res escusos, na qual a falta de escrúpulos, a impetuosidade, a astúcia, a persuasão, o empreendedorismo, a dinamicidade, a do-minação e a obstinação vêm à tona.

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dormindo pouco, levantando-me às quatro da ma-nhã, passando dias ao sol, à chuva, de facão, pis-tola e cartucheira, comendo nas horas de descanso um pedaço de bacalhau assado e um punhado de farinha. À noite, na rede, explicava pormenores do serviço a Casimiro Lopes. Ele acocorava-se na es-teira e, apesar da fadiga, ouvia atento. Às vezes tu-barão ladrava lá fora e nós aguçávamos o ouvido (RAMOS, 2008b, p. 35).

Assim, notamos a sequência dos dias de Paulo Honório durante o segundo ano de aquisição da fazenda São Bernardo, retomadas pela memória, mas que, mesmo assim, indicam uma sucessão de fatos. Além de nos situarmos no tempo em que ocorrem os fatos narrados, através de termos que denotam uma cronologia: “segundo ano”, “me-ses”, “quatro da manhã” e “à noite”, percebemos, também, uma re-lação de causa e efeito, característica inerente ao tempo cronológico, segundo Benedito Nunes (1995). Esquematicamente falando, podemos perceber esta relação de causa e efeito da seguinte forma: plantação de mamona e algodão → safra ruim → preços baixos → trabalho ár-duo (para compensar as perdas). No entanto, esta narrativa é também marcada pelo tempo psicológico, evidenciado através dos pensamen-tos de Paulo Honório sobre sua vida.

Sol, chuva, noites de insônia, cálculos, combina-ções, violências, perigos – e nem sequer me resta a ilusão de ter realizado obra proveitosa. O jardim, a horta, o pomar – abandonados; os marrecos--de-pequim – mortos; o algodão, a mamona – se-cando. E as cercas dos vizinhos, inimigos ferozes, avançam (RAMOS, 2008b, p. 217).

Percebemos, pois, que, diferente do trecho anterior, no qual há a disposição de eventos num determinado decurso de tempo, marcado por fenômenos da natureza, além daqueles que dizem respeito à ordem subjetiva e social, combinadamente, este fragmento traz a experiên-cia subjetiva da personagem, cuja decadência, sua e da fazenda, lhe proporciona momentos de reflexão interior em torno de um tempo já passado. No tempo psicológico, não há uma ordem linear, mas mo-mentos imprecisos de consciência. Conforme Reis e Lopes (1987, p. 387), “diretamente relacionado com o devir existencial da persona-gem, o tempo psicológico é também o referencial de sua mudança, do desgaste e erosão que sobre ela provoca a passagem do tempo e as experiências vividas”.

À construção do tempo psicológico são vinculados os chamados “recursos de subjetivação da personagem” (FRANCO JUNIOR, 2005, p. 46), como o monólogo interior e o fluxo de consciência. A reflexão aci-ma, de Paulo Honório, encaixa-se no primeiro recurso, que é caracteri-zado pelo diálogo da personagem consigo mesma, sem perder o domí-nio de sua consciência e da noção de lógica presente no cotidiano. Em outras palavras, ao lermos o relato de Paulo Honório, percebemos que

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há uma lógica em seus pensamentos, mesmo que sejam caracterizados por uma latente reflexão de ordem subjetiva. Por outro lado, o fluxo de consciência seria assinalado pelo efeito de perturbação subjetiva, na qual não há controle, lógica e encadeamento de pensamentos da personagem; o discurso torna-se fragmentado e há imprecisão entre a natureza real ou fictícia dos fatos narrados (FRANCO JUNIOR, 2005). Um exemplo de Angústia, também de Graciliano Ramos, nos dá con-dição de perceber esse estado de ideias truncadas, na voz de Luís da Silva, o narrador-protagonista:

Esta repartição me exasperava e endoidecia. O cor-po em completo sossego, o cigarro apagado. Não sabia em que posição estavam as pernas. As mãos pesavam em cima do peito. Mas as pernas, onde estariam elas? Flutuava como um balão. O corpo quase adormecido e sem pernas. As idéias, porém, não me deixavam, idéias truncadas. Uma guerra na Europa. D. Mercedes comprará discos novos para a vitrola. Moisés se ocultava com medo da polícia. Um espírito puro, um espírito boiando, livre da ma-téria. As botinhas do Lobisomem estavam cada vez mais cambadas. Onde andaria seu Ivo? Um espírito boiando. Como seria? O espírito de Deus era leva-do sobre as águas (RAMOS, 2008a, p. 128-129).

Observamos, desse modo, que não há relação clara entre as ideias narradas, e temos a impressão que as reflexões de Luís da Silva são ex-postas conforme fluem em sua mente, sem regras, recortadas por me-mórias e sensações confusas. Tais recursos de subjetivação são comuns em narrativas em primeira pessoa, principalmente em romances psico-lógicos, como Angústia e S. Bernardo, que “constituem essencialmente uma pesquisa progressiva da alma humana, no sentido de descobrir o que vai de mais recôndito no homem, sob as aparências da vida super-ficial” (CANDIDO, 2006, p. 101).

Explicadas essas dimensões do tempo, conforme elas se reve-lam na narrativa, constituindo um tempo da diegese, entraremos no tempo da narração e nos recursos utilizados no discurso narrativo, que compreende o tempo dos acontecimentos, dos fatos, das ações apre-sentadas em tal discurso (FRANCO JUNIOR, 2005), conforme os estu-dos de Gérard Genette (1995).

Todavia, antes de avançarmos, vamos retomar os pontos exposto, de maneira que possamos fixa-los. Para tanto, lançaremos, novamente, mão dos apontamentos de Gancho (2006), que define:

• tempo cronológico: “tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, isto é, do começo para o final. Está, portanto, ligado ao enredo linear (que não altera a ordem em que os fatos ocorreram); chama-se cronológico porque é mensurável em horas, dias, meses, anos séculos” (p. 25);

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• tempo psicológico: “tempo que transcorre numa ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou das personagens, isto é, altera a ordem natural dos acontecimentos. Está, portanto, ligado ao enredo não linear (no qual os acontecimentos estão fora da ordem natural)” (p. 25).

III. Ordem, duração e frequência – ao lermos uma obra literária, é comum percebermos no enredo alguns anacronismos, que são algo como equívo-cos temporais, passíveis de serem observados dentro de uma narrativa não linear, ou seja, episódios que não seguem uma ordem temporal direta. Em razão disto, ao estudar a categoria tempo em literatura e compreender como os recursos anacrônicos são dispostos por um autor em uma obra, Genette (1995) classificou a relação entre a ordem dos acontecimentos da diegese (história em si) e a ordem de apresentação desses acontecimentos no dis-curso (narração). Em outras palavras, a ordem cronológica de uma história pode não coincidir com a ordem apresentada na narração, e esse desen-contro se dá devido à utilização de figuras de linguagem anacrônicas como as narrativas in media res e in ultima res, além das analepses e prolepses.

Em S. Bernardo, Paulo Honório inicia sua narrativa com uma informação que permeará todo o decorrer da obra: a construção de um livro sobre sua vida; para, depois, dar início aos acontecimentos que o fizeram chegar neste propósito. A técnica utilizada por Graciliano Ramos, portanto, é a narrativa in media res, expressão latina que significa “no meio de”. A apresentação de Paulo Honório é feita, todavia, apenas no terceiro capítulo, no qual inicia a história de sua vida: “Começo declarando que me chamo Paulo Honó-rio, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo S. Pedro” (RAMOS, 2008b, p. 16). As recordações da personagem que fazem com que nos situemos na construção de seu caráter são apresentadas através de analepses, os conhecidos flashbacks, um recurso que permite um recuo no tempo, bastante utilizado no cinema. Fatos anteriores aos seus cinquenta anos, tempo presente, no qual conta a narrativa, são rememorados pelo protagonista e expostos ao leitor. :

Se tentasse contar-lhes a minha meninice, precisava mentir. Julgo que rolei por aí à toa. Lembro-me de um cego que me puxava as orelhas e da velha Margari-da que vendia doces. O cego desapareceu. A velha Margarida mora comigo aqui em S. Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compen-sar o bocado que me deu. Tem um século, e qualquer dia desses compro-lhe mortalha e mando enterrá-la perto do altar-mor da capela (RAMOS, 2008b, p. 16).

Vemos neste trecho a construção do tempo não linear. Paulo Ho-nório recorda o passado já situado na fazenda S. Bernardo, lugar que só teremos conhecimento com o decorrer da narrativa, antecipando um fato. Essa antecipação, uma impaciência narrativa, como deno-mina Genette, é chamada de prolepse, e revelada claramente na an-

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tecipação da expectativa em torno da morte da mulher que o criou. Percebemos, então, que só neste trecho encontramos três menções ao tempo: o passado, marcado pelas memórias de Paulo Honório, o pre-sente, de onde ele narra sua vida, e o futuro, assinalado com a menção da fazenda S. Bernardo. Outra forma de notar essa não linearidade é atentarmos para os verbos: ao falar de suas lembranças, Paulo Ho-nório utiliza o tempo passado; ao voltar ao seu tempo atual, seu eixo temporal, utiliza o presente. É o que Benedito Nunes (1995) chama de tempo linguístico, caracterizado pelas coordenadas espaço-temporais utilizadas no texto.

As narrativas in ultima res são aquelas que se iniciam com a apre-sentação que pertence ao desfecho da história. Um exemplo clássico é o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, cujo princípio da narrativa se dá no pós-morte do narrador-protagonista, o próprio Brás Cubas – a morte seria, tradicionalmente, o término de um enredo, mas, neste caso, ele é o que aciona a atividade narrativa, pois permite conhecer a totalidade de uma vida:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em pri-meiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco (ASSIS, 1996, p. 17).

Outro aspecto observado por Genette (1995) é a relação entre a duração – ou velocidade, como denominam Reis e Lopes (1987) –, dos acontecimentos no plano da diegese e a duração desses mesmos acon-tecimentos no discurso narrativo, dada através dos seguintes recursos: cena, sumário - ou resumo -, elipse, pausa e digressão.

A principal pista para detectarmos uma cena é o discurso direto dos diálogos. Na cena, o tempo da diegese é concomitante ao tempo do discurso. Então, quando nos deparamos com um diálogo ou com uma descrição da ação de uma personagem, estamos diante de uma cena. No fragmento extraído d’O Cortiço, observamos essa similaridade de tempos:

E aligeirando o passo, penetraram na estrada do capinzal com direção ao fundo do cortiço.-- Ah! É verdade! Como você se chama?-- Jerônimo, para o servir.-- Servir a Deus. Sua mulher lava?-- É lavadeira, sim senhor.-- Bem, precisamos ver-lhe uma tina.E o vendeiro empurrou a porta do fundo da es-talagem, de onde escapou como de uma panela

Machado de Assis, autor de inúmeros romances brasileiros.

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fervendo que se destampa, uma baforada quente, vozeria tresandante à fermentação de suores e rou-pa ensaboada secando ao sol (p. 51).

A descrição do fragmento evidencia a simultaneidade dos tempos. Na cena, a impressão que temos é que o episódio da história, o en-contro entre ambos e a caminhada até o cortiço, é narrado em tempo real. Assim, como afirmam Reis e Lopes (1987, p. 53), “a cena constitui a tentativa mais aproximada de imitação, no discurso, da duração da história”. Por outro lado, o sumário, todavia, faz com que tenhamos a percepção de que o tempo da história narrada foi reduzido. No discur-so, um resumo é utilizado para apresentar um evento que, no plano da história, teria uma duração maior. Em razão disso, há uma variação entre o tempo da história e o tempo do discurso, aspecto observado, igualmente, nos demais recursos. Essa variação assinala uma distância em relação aos eventos por parte do narrador, que seleciona os fa-tos que considera relevantes e abrevia os de menor importância (REIS; LOPES, 1987). Observemos essa condensação de tempo no excerto abaixo, extraído do conto “D. Benedita”, de Machado de Assis:

Não casou. O genro tornou do sul, a filha deu à luz um menino robusto e lindo, que foi a paixão da avó durante os primeiros meses. Depois, o genro, a filha e o neto foram para o Norte. D. Benedita achou-se só e triste; o filho não bastava aos seus afetos (ASSIS, 2007, p. 117).

Em outro exemplo, retirado de Madame Bovary, romance de Gustave Flaubert, escrito em 1856, podemos notar, além do sumário, a elipse, ou seja, há uma supressão de alguns elementos da história, na narração:

Oito dias depois, estando ela estendendo roupa no pátio, cuspiu sangue; e, no dia seguinte, enquanto Charles voltara-lhe as costas para fechar a cortina da janela, disse apenas: “Ai, meu Deus!”, soltou um suspiro e perdeu a consciência. Estava morta, foi um assombro. Quando, no cemitério, tudo acabou, Charles vol-tou para casa (FLAUBERT, 2003, p. 31).7

Já a pausa provoca uma suspensão do tempo diegético em benefí-cio do tempo do discurso. Em outras palavras, a história em si é inter-rompida por descrições ou reflexões do narrador, que, quando conclu-ídas, dão lugar às ações anteriormente pausadas. Todavia, nem todas as descrições podem ser configuradas como pausas, visto que podem partir da necessidade de se “olhar” uma personagem e, mesmo assim, se dar continuidade à ação.

A interrupção da ação pode ser feita, também, através da digres-são, cuja definição é dada por Reis e Lopes (1987, p. 102, grifos dos autores):

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[...] fala-se em digressão sempre que a narrativa é interrompida para que o narrador formule as-serções, comentários ou reflexões normalmente de teor genérico e transcendendo o concreto dos eventos relatados; por isso a digressão correspon-de, em princípio, a uma suspensão momentânea da velocidade narrativa adotada.

Machado de Assis lança mão deste recurso para dar aos seus nar-radores, que, geralmente, são personagens, o poder de intromissão. Vejamos um exemplo retirado de Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Fui até a janela, e comecei a rufar com os dedos no peitoril. Virgília chamou-me; deixei-me estar, a remoer os meus zelos, a desejar estrangular o marido, se o tivesse ali à mão... Justamente, nes-se instante, apareceu na chácara o Lobo Neves. Não tremas assim, leitora pálida; descansa, que não hei de rubricar esta lauda com um pingo de sangue. Logo que apareceu na chácara, fiz-lhe um gesto amigo, acompanhado de uma palavra graciosa; Virgília retirou-se apressadamente da sala, onde ele entrou daí a três minutos (ASSIS, 1996, p. 94. grifo nosso).

Compreendemos, assim, que Brás Cubas interrompe a narração da história para fazer um comentário seu, direcionado a uma “leitora pálida”, retomando-a logo em seguida. A digressão pode nos mostrar, também, uma opinião crítica através da intrusão do narrador, dando ao comentário um sentido ideológico, mas pode, do mesmo modo, “preparar a apresentação de personagens, afrouxar o ritmo de desen-volvimento da narrativa, incrementar uma atmosfera de suspense pelo retardamento de revelações importantes ou até servir de elemento pura-mente ornamental” (BOOTH, 1980 apud REIS; LOPES, 1987, p. 103).

Além dos aspectos de ordem e duração aplicados à organização e à representação do tempo, Gérard Genette (1995) identificou a frequência da narrativa, caracterizada pela relação entre o número de eventos da história e o número de vezes que estes eventos são mencionados no discurso narrativo. Para isso, Genette classificou a frequência em três modalidades: narrativa singulativa, que apresenta o mesmo número de eventos na diegese e na narração, ou seja, se há apenas uma ação na história, há apenas uma narração dessa ação; narrativa repetitiva, cuja indicação se dá pela repetição, no discurso, de um único momento da história; e narrativa iterativa, na qual uma única emissão narrativa abran-ge várias ocorrências do mesmo evento da história.

No caso da narrativa singulativa, a frequência mais comum, segun-do Genette, percebemos um tom de momentaneidade no discurso com os chamados gestos esgotados, aqueles que se dão num instante, sem continuidade, geralmente apresentados através do pretérito perfeito e do presente histórico. Observemos este trecho de Triste Fim de Policarpo Qua-resma: “Quaresma fez o ‘Tangolomango’, isto é, vestiu uma velha sobre-

7 Para Bridgeman (2005), a sintetização do episódio da morte da primeira esposa de Charles Bovary, se dá pelo papel menor atribuído à personagem Heloísa, tendo em vista a importância de sua segunda esposa, Emma, a personagem principal do romance. Observemos a brevidade da narração des-pendida para retratar o intervalo de tempo entre os primeiros sinais da doença e sua morte, bem como a supressão das cerimô-nias funerárias, na última sentença, carac-terizando, desse modo, a elipse, fazendo a narrativa avançar para o seu foco principal.

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casaca do general, pôs uma imensa máscara de velho, agarrou-se a um bordão curvo, em forma de báculo, e entrou na sala” (BARRETO, 1991, p. 34). Através dos verbos flexionados no pretérito perfeito, em negrito, notamos as ações pontuais de Quaresma, e temos a impressão de um evento concluído. Do mesmo modo, observamos a narrativa singulativa em uma cena, dada em um único tempo.

Por outro lado, “contar ‘n’ vezes aquilo que só se passou uma só vez” (GENETTE, 1995, p. 115) é característica da narrativa repetitiva, que pode ser empregada em razão da focalização interna de diferentes per-sonagens, como num romance policial, em que um mesmo evento pode ser interpretado de acordo com o ponto de vista de personagens diferen-tes. Igualmente, a repetição de um mesmo episódio é traço dos roman-ces psicológicos, nos quais o fluxo de consciência é empregado. Em S. Bernardo, por exemplo, o pio da coruja é frequentemente mencionado por Paulo Honório, marcando, de certo modo, o enredo do romance. Percebido pela cultura popular como mau agouro, o pio da coruja per-segue o protagonista, que, em certo ponto, já não sabe distinguir entre um pio real ou imaginário.

A última modalidade, a narrativa iterativa, indica um aspecto econô-mico de representação do tempo narrativo (REIS; LOPES, 1995, p. 208), uma vez que apresenta uma única vez um evento que pode, certamente, ocorrer várias vezes na história, como no trecho d’O Cortiço, abaixo:

Jerônimo acordava todos os dias às quatro horas da manhã, fazia antes dos outros a sua lavagem à bica do pátio, socava-se depois com uma boa pa-langana de caldo de unto, acompanhada de um pão de quatro; e, em mangas de camisa de riscado, a cabeça ao vento, os grossos pés sem meias meti-dos em um formidável par de chinelos de couro cru, seguia para a pedreira (AZEVEDO, 2005, p. 55).

Notamos, portanto, que a rotina diária de Jerônimo é reduzida a uma única emissão pelo narrador. Os verbos flexionados no imperfeito e a locução adverbial “todos os dias” reforçam a iteração do discurso, que evita a repetição de um evento corriqueiro.

Cremos que chegamos ao fim dessa exposição. Agora, novamente, vamos parar para executarmos mais uma atividade, que pode nos ajudar a fixar os conteúdos.

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Atividade IIVamos retomar a leitura do conto sobre o qual nos debruçamos na Atividade 1, “Missa do Galo”. Desta vez, após a leitura, é necessário que se busque analisar e interpretar aspectos que digam respeito ao tempo no conto: ele é psicológico ou cronológico? Há diferenças entre o tempo da diegese e o tempo do discurso? Aponte os trechos mais significativos, destacando-os e construindo uma breve análise-interpretação, de modo a explicar como o tempo, neste caso, é determinante para o que se conta.

Resumo

Nesta aula, foram discutidas as categorias de tempo e espaço na narrativa, com vistas à análise e interpretação de ambas em uma obra literária. Com relação ao espaço, procurou-se evidenciar sua importân-cia na narrativa e sua relação intrínseca às personagens, apontando, além dos espaços físico, social e psicológico, a diferença entre espaço e ambientação, o conceito de toponímia e as diferentes perspectivas espaciais, delineadas segundo o narrador. Sobre o tempo narrativo, com base, principalmente, nos conceitos elaborados por Gérard Ge-nette, foram apresentados dois tempos, o da diegese, caracterizado pela linearidade do tempo cronológico, e o da narração, assinalado pela subjetividade do tempo psicológico, que, por sua vez, caracteriza--se pelo monólogo interior e pelo fluxo de consciência. Igualmente, foram discutidas as propriedades de ordem, duração e frequência dos acontecimentos, tanto na diegese quanto no discurso narrativo.

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Leitura recomendadaGAMA-KHALIL, Marisa Martins. O lugar teórico do espaço ficcional nos estudos literários. Revista Anpoll, v. 01, n. 28, 2010. Disponível em: <http://www.anpoll.org.br/revista/index.php/revista/article/view/166>.

Neste estudo, percebemos a importância do espaço como cate-goria narrativa. Através da posição da teoria e da crítica literárias em relação à construção do espaço ficcional, apontada pela autora, po-demos perceber a gama de estudos relacionados ao espaço, e sua aplicabilidade nas análises literárias.

FRANCO JUNIOR, Arnaldo. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Ozana (orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Editora da UEM, 2003. p. 33-56.

De forma bem didática, Franco Junior apresenta o tempo da nar-rativa e os recursos de subjetivação da personagem, característicos do tempo psicológico. Baseado em Genette, o autor topifica as classifi-cações dos tempos diegético e narrativo, facilitando a compreensão de seus subtópicos: tempos cronológico e psicológico, e tempos dos acontecimentos, fatos e ações do discurso narrativo.

Autoavaliação

Considerando tudo o que foi lido nesta Unidade, como também as duas atividades propostas, gostaríamos que cada aluno fizesse, em um parágrafo, duas pequenas reflexões:

1) antes desta Unidade, quando eu me dedicava à leitura de uma narrativa, eu parava para pensar sobre questões envolvendo tempo e espaço?

2) a partir de agora, eu poderei considerar estes elementos da narrativa como relevantes? Se sim, por quê?dica. utilize o bloco

de anotações para responder as atividades!

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GAMA-KHALIL, Marisa Martins. O lugar teórico do espaço ficcional nos estudos literários. Revista Anpoll, v. 01, n. 28, 2010. Disponível em: <http://www.anpoll.org.br/revista/index.php/revista/article/view/166>. Acesso em: Set. 2012.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 9. ed. São Paulo: Ática, 2006.

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