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5/14/2018 Territorio e Cultura Material - slidepdf.com
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ESPAÇO, ORGANIZAÇÃO SOCIAL E TECNOLOGIA
Palestra proferida na Segunda Semana de Arqueologia do MAE/USP, no dia 1 de junho de 2011
Astolfo Gomes de Mello Araujo
Museu de Arqueologia e Etnologia / USP
O tema da Mesa Redonda, “Espaço, Organização Social e Tecnologia”, pode, a meu ver, ser
sintetizado em uma única palavra: território. Porque em arqueologia, território é algo
delimitado a partir da cultura material, que tem implicações em termos da organização social
do grupo que a produziu e a tecnologia empregada.
A arqueologia, tão logo se desvencilhou do colecionismo e da adoração dos objetos por seus
aspectos
estéticos,
teve
preocupações
territoriais.
A
distribuição
espacial
de
artefatos
ou
de
conjuntos de artefatos foi observada desde os primórdios da disciplina, e com isso buscou‐se
definir culturas, áreas culturais, etnias ou os antigos territórios de grupos humanos pré‐
historicos. A disciplina foi usada para fins políticos e expansionistas, mas qual ciencia não o foi?
Territorios foram, são e serão uma preocupação legitima da arqueologia. Fazem parte de um
rol de problemas que perpassam todas as correntes teóricas, uma vez que pode‐se ter
interesse em territórios sendo historico‐culturalista, processualista, pós‐processualista, ou
evolucionista. Obviamente as interpretações e interesses podem variar, mas ainda assim os
territórios vão ser perseguidos, não só porque são interessantes em si, mas porque nosso
cérebro tem
uma
necessidade
inata
de
classificar
e segmentar
o mundo,
e a noção
de
território faz com que o espaço geográfico contínuo seja delimitado. Territorios são a maneira
com que todos os animais organizam esse espaço continuo em proveito próprio, tornando‐se
proprietários de uma área. Propriedade é um conceito que, alem de pré‐capitalista, é pan‐
biológico, a meu ver.
As abordagens que vimos nesta Mesa Redonda são várias e distintas, e território é o foco
central, e o que vou apresentar agora são algumas reflexões a respeito de território e cultura
material.
Uma das coisas que tenho para dizer é que, passado o furor da New Archaeology, o Historico‐
Culturalismo parece ter se vingado. Na verdade, uma vez bem realizados, os procedimentos de
campo visando a “mera” reconstituição da historia cultural de uma região são fonte valiosa de
informação para quem tem interesse em territórios. Um bom exemplo foram as coletas feitas
por Phillips, Ford e Griffin no médio Mississipi nos anos 1950. As coletas de superfície, feitas
com o intuito de coletar tudo o que aparecesse, uma vez que intuitivamente elas deviam ser
“representativas”, acabaram sendo realmente representativas, e os dados podem hoje ser
utilizados por arqueólogos de qualquer vertente teórica que estejam interessados na
variabilidade funcional, estilística (ou seja la qual for) da cerâmica e queiram perceber
territórios desses indígenas do período Woodland ao longo do rio Mississipi. Claro que um
historiador cultural
que
coletasse
só
bordas,
ou
só
fragmentos
decorados,
não
estaria
produzindo uma coleção representativa. Seria impossível quantificar as freqüências e perceber
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áreas de maior ou menor contato cultural. Mas muita gente que veio depois do histórico‐
culturalismo fez a mesma coisa, então isso não é culpa dos histórico‐culturalistas, e sim dos
métodos de campo.
Seja como for, o fato é que passado o furor, como ia dizendo, percebe‐se hoje que não dá para
fazer grande
coisa
sem
uma
historia
cultural
na
base.
Portanto,
se
alguém
for
trabalhar
em
uma região desconhecida, não vai conseguir sair do lugar sem antes definir quem, quando e
onde estava lá. Isso é historia cultural, e se for bem feita gera dados relevantes. E essa geração
de dados consome tempo, sem falar em dinheiro. Qualquer abordagem que peque por aplicar
métodos que não forneçam dados confiáveis sobre os sítios arqueológicos de uma
determinada região, por mais sofisticada que seja em termos teóricos, por mais “updated” que
seja o jargão, não serve para nada dali a 10 anos. Aliás, esse é o verdadeiro objetivo da
arqueologia de contrato: fornecer uma amostra confiável do patrimônio arqueológico de uma
determinada região, com escavações bem feitas, bem registradas e coleções representativas.
Esse é um objetivo titânico, diga‐se de passagem. Não é uma coisa menor. Se isso fosse
alcançado em todos os casos, estaríamos no melhor dos mundos. Eu discordo totalmente de
quem diz que arqueologia de contrato é tão indissociável da arqueologia acadêmica, que no
contrato você deve ter um problema a resolver, do tipo “quais os fatores que levaram à
adoção da agricultura na área da Hidrelétrica Indio Afogado”, ou “analise da arte rupestre ao
longo do traçado da linha LTKVW Oiapoque‐Chuí”. Não, se você se debruça sobre um
problema especifico no contrato, você esta obviamente negligenciando os outros. O objetivo é
ser representativo, “no mas”. E novamente, obter uma amostra representativa é um objetivo
titânico.
Muito bem, se território engloba as noções de espaço, organização social e tecnologia, como
estamos em termos de arqueologia brasileira? Acho que não muito bem.
Em termos de espaço, temos hiatos monstruosos que não são culpa de ninguém, mas sim de
um território muito grande com poucos arqueólogos ativos. Nesses hiatos pode ocorrer
qualquer coisa, podemos ter tradições tecnológicas inteiras e totalmente novas, que ainda não
foram definidas. Antes que alguém me apedreje por falar em tradições, desde o Pronapa ainda
estamos tentando colocar algo no lugar, sem sucesso. Então vamos de tradições mesmo.
Cabem nesses buracos negros de informação industrias líticas e cerâmicas não definidas, não
catalogadas e, portanto, inexistentes. Isso vale para lugares longínquos e exóticos como a
Amazonia e o Mato Grosso, mas vale para o Estado de São Paulo também. Por incrível que
pareça, o Estado de São Paulo é um dos menos conhecidos do Brasil em termos arqueológicos.
E isso com toda a cana, soja, malha viária, hidrelétricas, programas nossa casa nossa vida,
gasodutos e etc, cortando tudo de alto a baixo. O numero de pesquisas no estado cresceu
exponencialmente desde o final dos anos 1990, quando a arqueologia de contrato realmente
decolou, mas esses dados ainda estão fragmentados em centenas de relatórios depositados no
IPHAN. Eu imagino que os dados sejam gerados, mas eu mesmo não sei o que acontece,
imaginem o publico em geral. Para se pensar espaço, é necessária uma boa historia cultural, e
isso nós não temos na maior parte dos casos. Um bom exemplo é um artigo que escrevi
falando da Tradição Itararé‐Taquara, onde tive que mostrar um mapa com base em sítios aqui
e acolá,
e sem
conseguir
definir
se
a Tradição
Aratu
(também
conhecidos
historicamente
como
Kayapós Meridionais) já estava no norte de São Paulo quando a Tradição Itararé
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(historicamente conhecidos como Kaingang) passou por ali rumo sul, ou se esse pessoal desceu
pela Serra do Mar, se expandiu pelos estados sulinos, e depois retomou uma expansão rumo
norte já no período historico. E depois o Pe. Schmitz encontra Tradição Aratu no Paraná, e não
temos NADA a sul da região de Ribeirão Preto. É como se a Tradição Aratu em São Paulo
passasse de metrô por sob o estado e reaparecesse no Paraná. Há uma exceção no Vale do
Paraiba, na altura de São José dos Campos, mas o raciocínio dá na mesma. Outro exemplo: a
Tradição Umbu, que poderia ganhar o concurso de má definição. É como se ela se estendesse
desde o RS, SC, PR, tomasse todo o estado de SP e chegasse até o sul de MG, sem falar em
desvios para o MS até chegar ao pantanal. Em SP ninguem nunca parou para analisar essas
pontas desde o Tom Miller, nos anos 1970. Ele mesmo não chamou de Umbu, chamou as
pontas de Rio Claro de Tradição Rio Claro, e muito provavelmente estava certo, porque mesmo
dando uma vista d´olhos elas não tem nada a ver com as pontas do RS‐SC‐PR. Ora, novamente,
sem um estudo minimamente decente, histórico‐culturalista mesmo, dessas pontas, vamos
falar de território e tecnologia de caçadores‐coletores que iam do RS até o centro de SP como
sendo a mesma
coisa?
A
transmissão
cultural
entre
os
indivíduos
dessas
populações
era
assim
tão forte, a ponto de um individuo no centro de SP ter contato freqüente com outro do RS, a
ponto de fazer as mesmas pontas? Porque se for isso, teríamos uma territorialidade
totalmente diferente, verdadeiramente cosmopolita desses caçadores‐coletores. Eles não
teriam territórios definidos, seriam verdadeiros cidadãos do mundo, circulando livremente
desde os Pampas até o cerrado. Já pensaram nisso? Então temos um problema, porque fica
difícil falar em organização social sem informações confiáveis. Como se organizavam
socialmente esses caçadores‐coletores? Tinham territórios definidos ou saiam por aí ao bel‐
prazer?
Agora com
relação
à tecnologia:
ainda
usando
a Tradição
Umbu
como
Judas,
esse
pessoal
continuou a fazer as mesmas pontas de projétil durante 10 mil anos? Então isso já daria um
artigo, não numa simples American Antiquity, mas na Science ou na Nature. A tecnologia tem
uma componente funcional e outra não funcional, ou histórica. A parte funcional se relaciona
ao meio para se chegar a um fim. A parte histórica se relaciona a QUAL meio se utiliza para se
chegar ao fim, porque são vários os meios. Pode‐se caçar com arco e flecha, com lança, com
armadilha e, dizem, tem gente que caça até com vara de pescar. Quem define qual meio um
determinado grupo utiliza? Uma perspectiva bem materialista diria que é o ambiente. Que as
pessoas experimentariam vários métodos e chegariam no melhor, que seria, portanto, uma
adaptação. Essa visão é bem processualista. Um evolucionista diria que a tecnologia
empregada vai
depender
de
aspectos
funcionais,
mas
também
de
contingencias
históricas,
porque seres humanos não são otimizantes, assim como nenhum outro ser vivo é otimizante.
Claro que quem não entende de evolução fica até surpreso, porque acha que evolução quer
dizer “melhora” e “adaptação ao meio”. Não, o poder do acaso é fortíssimo na teoria
evolutiva, e uma determinada linhagem cultural pode desembocar em um meio de se fazer
artefatos que passa de maneira tradicional, de pais para filhos, que não tem nada de “ótimo”
ou “adaptativo”, mas simplesmente funciona. O melhor exemplo disso, para mim, são as
famosas tradições (opa, olha elas aí de novo) Itaparica, Umbu e uma terceira, vamos chamar
de “Industria Lagoassantense” porque eu não tenho coragem de fundar uma nova tradição,
que
são
todas
contemporâneas,
do
início
do
Holoceno,
por
volta
de
12
mil
anos
atrás,
e
são
totalmente diferentes. Umbu são as pontas e outros tipos de artefatos formais, como
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raspadores, que até a sua tia que mora em Barbacena reconheceria, Itaparica não tem ponta
nenhuma, os únicos artefatos formais são os plano‐convexos, vulgo “lesmas”, e a
Lagossantense são.. nada definível. Lascas de espatifamento e algum lascamento unipolar raro,
a partir de cristais de quartzo, que você passa por maus bocados quando o fazendeiro vem ver
o que é, e você mostra aquelas lasquinhas e tenta convence‐lo de que foi gente quem lascou.
Pois bem, esse pessoal, que podemos chamar genericamente de Paleoindios, tinha uma
alimentação basal muito parecida. Pequenos animais, basicamente veados e porcos do mato,
um monte de preás e roedores do genero, coelhos, peixe, muito raramente uma anta,
provavelmente muita coleta de frutos e raízes, a julgar pelas caries. Então não dá para dizer
que essas três tecnologias diferentes eram estritamente relacionadas à parte funcional. Que
eram relacionadas ao sistema de subsistência de cada grupo. A meu ver, são simplesmente
três maneiras diferentes de lascar, passadas de geração em geração dentro de territórios
definidos, baseadas em uma deriva cultural muito antiga, talvez já herdada desde antes da
passagem pelo estreito de Behring, talvez nem tanto, mas com certeza antiga. Elas
simplesmente funcionavam,
e em
time
que
está
ganhando
não
se
mexe.
Pelo
menos
não
conscientemente.
E essa expressão do time que está ganhando nos remete ao aspecto conservador da nossa
espécie. Apesar de propaganda em contrário, nós somos bastante conservadores. Seres
humanos só mexem no time quando alguma coisa está dando muito errada, e aí não se tem
nada a perder. É claro que pode‐se mudar coisas cosméticas, como por exemplo a barba e o
corte de cabelo, as cores do escudo, mas o basal está sempre lá. Se as coisas estiverem dando
medianamente certo, segue‐se a tradição. E isso até mesmo na nossa sociedade industrial
contemporânea, somos aferrados à tradição, mesmo que não enxerguemos isso.
Bom, isso é só para dizer que em sociedades ditas tradicionais, como o nome sugere, a
tradição é uma coisa muito forte. E que as tradições são transmitidas, principalmente, de
maneira vertical, dos mais velhos para os mais novos. Tudo bem, existe transmissão horizontal,
entre pares, e inversa, quando os filhos ensinam os pais, mas a importância dessas
modalidades de transmissão é recente, e condicionada a aspectos peculiares de nossa
sociedade. Usar modelos atuais de transmissão cultural para explicar sociedades tribais é uma
falácia. Nessas sociedades, você pode aprender pela sua mãe, pela tia. Pode ser por um tio ou
pelo pai, mas o componente vertical é forte o suficiente para que sejam percebidas linhagens
culturais. As pessoas interagem mais com quem está próximo do que com quem está longe. E
também tem
filhos
com
quem
esta
próximo.
E aprendem
a língua
dos
pais.
Podem
aprender
outras línguas, mas existe uma coisa chamada língua materna. Daí não ser nenhuma heresia a
colagem entre cultura material, língua e genética, porque essas coisas tendem a caminhar
juntas. Esse é o default, o modelo nulo. Existem casos onde isso não é verdadeiro? Sim, mas
são exceções, e talvez relacionadas a colapsos culturais pós‐contato. Dizer que não se pode
pensar em cultura material como definidora de grupos com maior contato cultural / genético /
lingüístico é jogar o bebê com a água suja. O ônus da prova cabe a quem estiver trabalhando
em um caso onde isso não seja verdade. O sucesso do histórico‐culturalismo, inclusive, se
baseia nessa realidade. As seriações funcionavam tão bem justamente porque as pessoas se
relacionavam mais com quem estava próximo e menos com quem estava longe, se
identificavam mais
com
quem
tinha
a mesma
base
cultural
e lingüística,
e menos
com
quem
não tinha. Se assim não fosse, as diferenças em termos de cultura material seriam totalmente
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aleatórias e sem sentido, e nem estaríamos aqui falando de território, organização social e
tecnologia, porque isso seria impossível de se observar empiricamente.
Por fim, vou terminar dizendo que nós arqueólogos vivemos sempre entre a cruz e a espada,
em um mundo onde inferências tem que ser feitas a partir de uma montanha de dados
coletados em
campo,
e que
o cérebro
humano,
apesar
de
ser
“essa
maquina
maravilhosa”,
é
extremamente incapaz de lidar com tudo isso. A saída obvia é a quantificação, e creio que
ainda somos metodologicamente ingênuos com relação à quantificação. Muitas vezes
podemos perceber intuitivamente padrões, mas na maior parte das vezes esses padrões são
falsos, construídos por nossos cérebros classificadores. E outras tantas vezes os padrões
existem, mas achamos que estamos vendo coisas aleatórias e sem padrão. Portanto, termino
minha fala dizendo que sem quantificação estaremos fazendo pouco mais do que se fazia no
século XIX.