TESE CONSOLIDADA Paolareeditada

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  • 7/24/2019 TESE CONSOLIDADA Paolareeditada

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS

    CENTRO DE PESQUISA E PS-GRADUAO SOBRE AS AMRICAS

    A pertinncia do conceito de legitimidade para organizaespolticas: modelos racionais-legais europeus, Tahuantinsuyue

    sociedade Tupinamb em perspectiva comparada

    Paola Novaes Ramos

    Banca Examinadora:

    Prof Dra. Sonia Ranincheski (Presidente) CEPPAC/UnB

    Prof. Dr. Gilmrio Guerreiro Costa (Membro Externo) Universidade Catlica de

    Braslia

    Prof Dra. Marilde Loiola Menezes (Membro Externo) - Instituto de Cincia Poltica/

    UnB

    Prof Dra. Fernanda Sobral (Membro Interno) CEPPAC/ UnB

    Prof. Dr. David Fleischer (Membro Interno) CEPPAC/UnBProf. Dr. Henrique de Oliveira Castro (Suplente) CEPPAC/UnB

    BRASLIA DF

    02 de Julho de 2010

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    Aos meus pais.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo em primeiro lugar aos meus pais, Marcus Vinicius e Maria Clara, a quem

    dedico essa tese, de quem me orgulho de ser filha, e a quem devo as razes do que

    sou. Ao meu irmo Guilherme, minha cunhada Dora e ao Chico, pelo amor de famlia.

    Ao Matthias, por todo o amor, carinho, apoio, pacincia, flores, alimentos, referncias

    bibliogrficas e incontveis contribuies a esta tese. minha orientadora Sonia

    Ranincheski, pela confiana, pelo conhecimento e apoio em vrios sentidos, e acima

    de tudo, por incentivar minha vida profissional na UnB. Ao CEPPAC, por ampliarmeus horizontes acadmicos. Ao IPOL, a quem devo o incio da minha formao,

    especialmente aos professores Luis Felipe Miguel e Marilde Loiola, pelo incentivo e

    apoio de sempre. CAPES, pelo financiamento do meu estgio doutoral e bolsa-

    sanduche na Espanha, e pelas bolsas nos anos de graduao (PET-POL) e mestrado,

    que possibilitaram minha trajetria acadmica at o doutorado. Aos professores

    Fernanda Sobral, Henrique Carlos de Castro, David Fleischer, Bencio Schmidt,

    Moiss Balestro e Graa Rua, pelas contribuies acadmicas. Aos professores Nuria

    Rodriguez vila e Jaume Farrs pelo apoio em Barcelona. s Universidades de

    Barcelona e Salamanca, pelas oportunidades e fontes de pesquisa. Ao Fr e Sandra,

    pelo carinho e cuidado em Barcelona. Residncia Universitria Sagrado Corazn de

    Jess de Salamanca, pelo acolhimento. Aos meus tios Tets e Welington, e s minhas

    famlias materna e paterna. Aos amigos Natlia Lleras, Juliana Rochet, Anglica

    Bessa, Sarah Mailleux, Claudia Digues, Ana Paula Hecksher, Carminha Carvalho,

    Silvana Gilli, Adriana Marques, Anna Beatriz Ferreira, Fernando Paulino, Andr

    Leme Lopes, Danilo Carvalho, Renato Vieira, Valria Silva, Mari Pesquero, Carmen

    Jimenez e Carmen Rodrigues. E finalmente, Universidade de Braslia, meu ponto de

    partida como aluna, e meu novo caminho como professora.

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    RESUMO

    A presente tese analisa a pertinncia do conceito de legitimidade em diferentes formasde organizao poltica, especificamente no que se refere presena ou no da diviso

    entre governantes e governados. Para tanto, observa e compara os fundamentos

    racionais-legais de modelos histricos e tericos de estados nacionais europeus a

    formas de organizao sociais e polticas do imprio teocrtico Inca (Tahuantinsuyu)

    e da sociedade tribal Tupinamb em tempos pr-coloniais.

    Caracterizado principalmente por deter o monoplio legtimo dos meios de violncia,

    o estado nacional secular de origem europia observado em contraste lgica deorganizao coletiva dos mundos sul-americanos pr-coloniais, com o intuito de

    contribuir para o debate terico sobre o conceito de legitimidade e diferentes formas

    de organizao poltica de sociedades humanas.

    Utilizando referenciais da teoria poltica moderna e a metodologia dos tipos ideais

    weberianos, dois elementos fundamentais do estado nacional (monoplio dos meios

    de violncia e legitimao pelo ethos racional-legal) so problematizados em

    contraste ao Tahuantinsuyu teocrtico da regio andina e sociedade tribalTupinamb da atual costa brasileira antes do contato colonial.

    Esta tese busca, portanto, entender em que medida havia os dois principais elementos

    caractersticos dos estados em geral: uso de mecanismos para manter as sociedades

    agregadas (seja este mecanismo a fora fsica ou a crena) e legitimao desses

    mecanismos. Com auxlio das categorias weberianas, o objetivo ampliar o escopo de

    anlises sobre estado nacional para um mbito comparativo de interpretaes de

    estudos histricos sobre diferentes culturas e formas de organizao poltica.

    Assim, possvel verificar como o conhecimento sobre organizaes polticas sul-

    americanas pr-coloniais capaz de contribuir para a compreenso e o

    aprofundamento de conceitos fundamentais em teoria poltica, e no caso desta tese, o

    conceito de legitimidade.

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    ABSTRACT

    This thesis analyzes the pertinence of the concept of legitimacy in different types of

    political organization, especially concerning the presence or absence ofinstitucionalized governmental structures. In order to observe this phenomenom, it

    compares the fundamental elements of historical and theoretical legal-rational state

    models to the pre-colonial political organizations of the theocratic Inca Empire

    (Tahuantinsuyu) and the Tupinamb tribal society.

    Since european-origin secular models of national states are usually characterized by

    the legitimate monopoly of means of violence, they are observed in contrast to the

    two South American Pre-Columbian worlds mentioned above, in an effort to

    contribute to the theoretical debate over the concept of legitimacy and different forms

    of human social and political organizations.

    By the use of references in modern political theory and the weberian-ideal types

    methodology, two fundamental elements of the national state (monopoly of the means

    of physical coercion and legitimacy by legal-rational values) are contrasted to the

    theocratic logic of Tahuantinsuyu in the Andes and the Tupinamb tribal society in

    the Atlantic coast before colonial contact.

    Since this thesis aims to understand political organizations, it analyzes up until what

    point did these two amerindian societies contain two of the basic elements that

    characterize states in general: the use of specific mechanisms to keep the group

    together by force of belief systems, and the legitimacy of such mechanisms. With the

    help of weberian categories, the goal is to broaden the analytical scope of national

    state studies to a comparative level of the interpretation of historical objects and the

    political organization of different cultures.

    In this sense, it is possible to try to verify how studies about political organization in

    Pre-Columbian South America may contribute to the understanding of fundamental

    concepts in political theory - in this case, the concept of legitimacy.

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    SUMRIO

    AGRADECIMENTOS ...................................................................................................... i

    RESUMO ......................................................................................................................... iiABSTRACT .................................................................................................................... iiiSUMRIO ........................................................................................................................ vLISTA DE FIGURAS .................................................................................................... viiLISTA DE TABELAS ................................................................................................... viiINTRODUO ................................................................................................................ 2

    Motivaes da Tese ...................................................................................................... 5Mtodo e contedo ....................................................................................................... 8Objetivos ..................................................................................................................... 11Problema e Hiptese ................................................................................................... 12

    CAPTULO 1 CATEGORIAS WEBERIANAS E REFLEXES SOBRE PODER E

    LEGITIMIDADE ........................................................................................................... 18A dimenso das crenas e a perspectiva weberiana ................................................... 21Valor, Ao Social e Tipos Puros de Dominao Legtima ....................................... 24

    Dominao racional-legal ....................................................................................... 26Dominao Tradicional .......................................................................................... 27Dominao carismtica........................................................................................... 28

    Legitimidade como conceito e critrio ....................................................................... 29Outras concepes de poder, dominao e legitimidade: breve comparao entrecenrios europeus e amerndios .................................................................................. 34Visualizao do conceito de poder e suas gravitaes ............................................... 40

    CAPTULO 2 FORMAS RACIONAIS-LEGAIS DE ORGANIZAO POLTICA

    NA EUROPA MODERNA ............................................................................................ 49Consideraes Preliminares ........................................................................................ 49Conceitos fundamentais .............................................................................................. 50O conceito de estado nacional e suas origens histrico-sociolgicas ......................... 54Cidades, imprios e estados nacionais como organizaes polticas europias ......... 63Especificidades formais e valorativas dos modelos de estado racional-legal europeu67Governos e estados racionais-legais e a teoria poltica moderna ............................... 79Modelo hobbesiano e modelo rousseauniano de estado racional-legal ...................... 82

    O modelo hobbesiano: Leviat ............................................................................... 83Novo Contrato Social: o modelo rousseauniano de governo racional-legal .......... 85

    Consideraes sobre o captulo .................................................................................. 87CAPTULO 3 TAHUANTINSUYU.............................................................................. 91

    Consideraes preliminares ........................................................................................ 91Caractersticas histricas e geogrficas dos Andes .................................................... 93Tipologia das organizaes polticas sul-americanas ................................................. 94Algumas culturas antecedentes e contemporneas dos Incas ................................... 101Trajetria poltica dos Incas at a formao do Tahuantinsuyu ............................... 108Tahuantinsuyu .......................................................................................................... 113Regras de Sucesso ................................................................................................... 129O Tahuantinsuyu como Culto ................................................................................... 131Especificidades dos Incas ......................................................................................... 136

    Interpretaes sobre o Tahuantinsuyu ...................................................................... 137Consideraes sobre o captulo ................................................................................ 147CAPTULO 4 A SOCIEDADE TUPINAMB ........................................................ 150

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    Consideraes preliminares ...................................................................................... 150Sociedades primitivas ou sociedades tribais ............................................................. 151Tipologias de organizao social e caractersticas histrico-geogrficas de sociedadespr-coloniais sul-americanas .................................................................................... 152Consideraes sobre sociedades tribais .................................................................... 157

    As culturas da atual regio brasileira de acordo com lnguas nativas ...................... 160Indgenas sul-americanos de florestas tropicais ....................................................... 163Tupinambs: Os indgenas da Costa Atlntica ......................................................... 167Especificidades dos Tupinamb ............................................................................... 180As descries de Florestan Fernandes sobre a sociedade Tupinamb...................... 183Cenrios de ocupao Tupinamb e o contato colonial ........................................... 184Organizao social dos Tupinamb na leitura de Fernandes .................................... 187A Questo Migratria ............................................................................................... 196A Questo da Guerra ................................................................................................ 200Divises Sociais e Sistemas de Hierarquia ............................................................... 209Consideraes sobre o captulo ................................................................................ 211

    CAPTULO 5 MODELOS RACIONAIS-LEGAIS DE ORGANIZAO POLTICA,TAHUANTINSUYU E SOCIEDADE TUPINAMB EM PERSPECTIVACOMPARADA ............................................................................................................. 214

    Consideraes Preliminares ...................................................................................... 214Estado, imprio e questes geogrfico-populacionais .............................................. 215Consideraes sobre o Tahuantinsuyu ..................................................................... 225Sociedades sem estado, a idia racional-legal de repblica e a sociedade tupinamb.................................................................................................................................. 231Elementos comuns entre a racional-legalidade europia, o Tahuantinsuyu esociedades tribais tupinambs .................................................................................. 232Situaes de guerra e meios de violncia fsica ....................................................... 235Semelhanas entre as organizaes polticas analisadas: gerenciamento de diferenas.................................................................................................................................. 242Coletividade, Pertencimento e Reconhecimento ...................................................... 243Semelhanas e diferenas entre Incas e Tupinambs ............................................... 245Legitimidade em estados e governos racional-legais, no Tahuantinsuyu e dentre osTupinamb ................................................................................................................ 247Legitimidade, dominao, igualdade e hierarquia .................................................... 248Consideraes Finais ................................................................................................ 253

    CONCLUSO .............................................................................................................. 257BIBLIOGRAFIA METODOLGICO-CONCEITUAL .............................................. 271

    BIBLIOGRAFIA ESTADO NACIONAL E FORMATOS DE ESTADO E GOVERNO...................................................................................................................................... 275BIBILIOGRAFIA SOBRE AMERNDIOS, O TAHUANTINSUYU E OSTUPINAMBS ............................................................................................................ 282BIBLIOGRAFIA GERAL ............................................................................................ 290APNDICE I SUSAN RAMREZ E FLORESTAN FERNANDES ........................ 309APNDICE II TABELAS COMPARATIVAS ........................................................ 312APNDICE III QUESTES INDIGENAS PS-COLONIAIS ............................... 316APNDICE IV POSSVEIS ESTUDOS A PARTIR DESTA TESE ....................... 318

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Eixo de Legitimidade (elaborao prpria) .................................................... 14Figura 2: Eixo de Relaes de Obedincia (elaborao prpria) ................................... 41

    Figura 3: Diagrama de relaes de poder, influncia e autoridade (LUKES, O Poder:uma viso radical, 1980, p. 27) ...................................................................................... 42Figura 4: Diagrama das relaes entre cidades, estados, capital e meios de coero(TILLY, Coersion, Capital and European States1993, p.16) ....................................... 66Figura 5: Mapa poltico da Amrica Andina antes da consolidao da hegemonia Inca(SELLIER,Atlas de los Pueblos de Amrica2007, p. 27) ........................................... 107Figura 6: Mapa de expanso geracional do Tahuantinsuyu (HEWITT, The History of

    Money: Peru, 2009) ...................................................................................................... 114Figura 7: Estrutura hierrquica do Tahuantinsuyu (PERLACIO CAMPOS, Historia,2008) ............................................................................................................................. 123Figura 8: Imagem de autoria do cronista de origem amerndia, Guamn Poma de Ayala,

    no sculo XVI: ndio chasquitransportando quipue tocandopututo(GARCILASO DELA VEGA, 1991) ......................................................................................................... 126Figura 9: Imagem do Quipu (URTON, Signs of the Inka Khipu: Binary Coding in the

    Andean Knotted-String Records, 2003) ........................................................................ 127Figura 10: Imagem do Quipu (URTON e BREZINE, Khipu Database Project,2002)128Figura 11: Diagrama de vnculos hierrquicos no Tahuantinsuyu(RAMREZ, To Feedand be Fed: the cosmological bases of authority and identity in the Andes2005, p. 69)...................................................................................................................................... 144Figura 12: Distribuio das lnguas do Tronco Macro-Tupi (URBAN, Histria dacultura brasileira segundo as lnguas nativas, 1992, p. 89) ........................................ 163Figura 13: Mapa Migratrio dos Tupi-Guarani segundo Mtraux (FAUSTO, 1992, p.

    384) ............................................................................................................................... 169Figura 14: Mapa Migratrio dos Tupi-Guarani segundo Brochado (FAUSTO, 1992, p.384) ............................................................................................................................... 169Figura 15: Imagem do chefe Francisco Carypyra, extrada da obra A funo social daguerra na sociedade tupinamb(FERNANDES, 2006) .............................................. 179Figura 16: Diagrama ilustrativo da disposio de uma tribo Tupinamb (elaboraoprpria) ......................................................................................................................... 188Figura 17: Diagrama ilustrativo da disposio espacial de aldeia Tupinamb I(elaborao prpria) ...................................................................................................... 191Figura 18: Diagrama ilustrativo da disposio espacial de aldeia Tupinamb II(elaborao prpria) ...................................................................................................... 192Figura 19: Cena de combate corpo a corpo, gravura de Jean de Lry (imagem extradada obraA funo social da guerra na sociedade tupinamb, FERNANDES, 2006)... 202

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: Dinastias Inca (elaborao prpria, inspirada na narrativa de GARCILASODE LA VEGA, Comentarios Reales de Los Incas, 2008)............................................ 113Tabela 2: Organizao social Inca (PERLACIO CAMPOS, Historia, 2008, traduoprpria) ......................................................................................................................... 129

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    Existe algo na relao de poder que no apenas da ordem da violncia.

    Pierre Clastres

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    INTRODUO

    O estudo da poltica diz respeito, essencialmente, a decises que visam garantir a

    sobrevivncia de sociedades humanas e seus membros. Tais decises podem ser

    tomadas com ou sem diviso formal entre governantes e governados, e na presena ou

    no do monoplio dos meios de violncia. Isto significa, em termos gerais, a verificao

    da existncia ou no de elites polticas, se elas so ou no dotadas de poder coercitivo

    (definido nesta tese como a ameaa ou uso de fora fsica, ou como efetiva destruio

    material de bens e corpos).

    A vida poltica, neste sentido, realiza-se por meio de decises coletivizadas (SARTORI,

    1987), que podem ser tomadas pela totalidade da populao, por uma maioria numrica,

    ou por uma minoria de indivduos em posio de comando. E a estabilidade desses trs

    tipos de estratos decisrios reside na legitimidadedas regras e das pessoas que tomam

    tais decises polticas.

    Diante desses pontos de partida, esta tese um estudo exploratrio sobre legitimidadeem diferentes tipos de organizao poltica: modelos racionais-legais de estados de

    origem europia, o TahuantinsuyuInca e a sociedade tribal dos Tupinamb. O objetivo

    principal e terico , portanto, verificar como tais modelos de sociedade se organizam

    (de forma hierrquica ou igualitria) e quais so os valores que justificam tais modelos

    (critrios de legitimidade).

    Tal empreendimento ser auxiliado pela observao dos alcances e limitaes dealgumas categorias weberianas sobre poder, dominao e legitimidade diante dos

    modelos tericos e empricos escolhidos para anlise. A diviso ou no de determinadas

    sociedades entre governantes e governados (da qual deriva a instituio da maioria dos

    modelos de estado, por exemplo) e os tipos de legitimidade das organizaes polticas

    observadas permitem interpretar como se manifestam, qual o papel das crenas e qual

    o significado atribudo ao estado, possibilidade de guerra e ao uso da fora fsica

    nesses diferentes modelos.

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    Como objetivo especfico e emprico, realiza-se uma comparao por contraste entre

    eles. Assim, so observadas as propostas de organizao poltica de sociedades

    europias modernas e interpretaes acadmicas de especialistas que destacam a

    importncia da crena nas organizaes polticas de sociedades amerndias pr-

    coloniais.

    Alm disso, os modelos racionais-legais de organizaes polticas modernas europias e

    as duas sociedades amerndias pr-coloniais coincidem em termos de perodo histrico,

    pois o contato colonial da Europa com as Amricas marca tanto o fim das sociedades

    amerndias analisadas tais como eram antes da chegada dos europeus, quanto tambm

    o perodo de consolidao do ethosracional-legal na Europa.

    Este fator permite comparao por contraste de vrios aspectos de organizao poltica e

    pode contribuir para estudos acadmicos sobre crena e legitimidade. Lateralmente,

    contribui tambm para observar como a destruio fsica entre seres humanos pode ser

    encarada em diferentes culturas (especialmente no que diz respeito s crenas sobre

    autoridade e dominao e sobre o uso da fora, violncia e guerra).

    A teoria social moderna sobre legitimidade contempla tanto teorias de estado (como,

    por exemplo, a filosofia poltica de Thomas Hobbes, que considera a existncia de

    estado com autoridade e poderes coercitivos absolutos a melhor forma de se conduzir

    grupos humanos) quanto de governo (como, por exemplo, as propostas de John Locke e

    Jean-Jacques Rousseau1), e assim, os modelos racionais-legais de organizao poltica

    so contrastados sociedade teocrtica dos Incas, explicitamente hierrquica, e

    sociedade tribal Tupinamb, que embora estratificada, era politicamente mais

    igualitria.

    Para a interpretao das duas sociedades amerndias, foram escolhidos dois autores

    como referncias centrais: a historiadora Susan Ramrez (RAMREZ, 1996; 2005;

    2008) e o cientista social Florestan Fernandes (FERNANDES, 1989; 2006). O fato dos

    1 Rousseau defende um modelo de sociedade que no centrado no monoplio legtimo de violnciafsica, e sim na expresso da vontade geral dos membros da sociedade, e tampouco enfatiza uma divisoexplcita da sociedade entre governantes e governados, mas apia-se em estruturas republicanas racionais-

    legais de governo.

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    dois autores terem realizado pesquisas extensas sobre cada uma das duas sociedades,

    recorrendo s fontes histricas dos cronistas coloniais e reinterpretando descries

    clssicas os levou a atribuir nfase dimenso subjetiva das crenas como fator

    explicativo de suas formas de organizao poltica. Aps observar diversas descries e

    interpretaes sobre os Incas e os Tupinamb, respectivamente, ambos acadmicos

    destacam a importncia das crenas em determinados valores como varivel relevante

    para se explicar o comportamento polticode cada uma das duas sociedades.

    Neste sentido, embora os dois autores tenham formaes diferentes e nenhum dos dois

    utilize categorias weberianas, este tipo de interpretao crucial para o estudo da

    legitimidade (categoria central da presente tese).

    A comparao entre os modelos de sociedade escolhidos ser realizada pelos conceitos

    e critrios de legitimidade e dominao legtima descritos por Max Weber,

    considerando legitimidadeuma categoria ampla, que embora seja elaborada pela lgica

    cultural europia, pode ser aplicada a realidades sociais diferentes, e alm disso,

    independe de relaes de dominao para existir.Dominao, por outro lado, ainda que

    seja um fenmeno menos complexo e menos caracterizado pela cultura europia,

    depende, nas cincias sociais, da idia de legitimidade para existir. Legitimidade e

    dominao nesta tese pode, portanto, estar sobrepostas ou no, dependendo da

    individualidade histrica a ser analisada.

    Desta maneira, a dominao racional-legal observada nesta tese em sobreposio a

    idia de legitimidade, tanto na anlise de estados nacionais histricos europeus quanto

    na teoria social moderna (com destaque para as teorias contratualistas de Thomas

    Hobbes e Jean-Jacques Rousseau, pelo fato dos dois autores apresentarem um contrasteexplcito na diviso da sociedade em uma minoria de governantes e uma maioria de

    governados no caso do primeiro, e na sobreposio dos dois papis no caso do

    segundo2). Ademais, a abordagem contratualista na teoria potica moderna a que mais

    2O novo contrato social de Rousseau, por exemplo, sobrepe as funes de governantes e governadossobre o corpo de cidados, que so senhores e sditos de si mesmos (ROUSSEAU, 2006, Livro I, Cap.

    VII e Cap. VIII).

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    explicitamente salienta a razo como fundadora de uma nova ordem social, algo tpico

    do ethosracional-legal europeu.

    Os tipos puros de dominao legtima tradicional e carismtica, por vez, so observados

    nas descries de possvel legitimidade do Tahuantinsuyudos Incas, onde existia uma

    sociedade com estado. E no caso das sociedades tribais tupinamb, que no tinham

    estado e articulavam-se como uma rede social de cultura partilhada, os tipos puros de

    dominao legtima podem no ser pertinentes, embora o critrio de legitimidade, se

    desvinculado de noo de poder e hierarquia entre indivduos, possa fazer sentido.

    Para construir referenciais comuns capazes de conectar organizaes polticas to

    diferentes, alm do critrio de legitimidade e dos tipos puros de dominao legtima,

    esta tese utiliza categorias sociolgicas weberianas sobre poder, dominao e

    legitimidade como parmetros conceituais gerais. Outros autores como Stephen Lukes,

    Louis Dumont, Pierre Clastres e Hannah Arendt sero tambm utilizados tambm para

    dialogar com o pensamento weberiano. Os tipos de ao social descritos por Weber

    sero, tambm, ferramentas de anlise para realizar as comparaes entre os objetos.

    Motivaes da Tese

    Esta tese possui uma motivao de ordem metodolgica (testar a capacidade explicativa

    e potencialmente universal de alguns conceitos amplos das cincias sociais) e uma

    motivao em termos de contedo terico (observar a legitimidade como dimenso

    valorativa de organizaes polticas com ou sem diviso entre governantes e

    governados).

    Esta inspirao vem do fato de que estruturas polticas e a relao entre governantes e

    governados inspiraram vrios pensadores modernos a fazer perguntas sobre o uso da

    fora, a questo da guerra e os motivos ou justificativas das relaes de mando e

    obedincia (MAQUIAVEL, 1996; HOBBES, 2008; LOCKE, 2006; WEBER, 1999a;

    1999b). Ou ento, buscam explicar ou justificar por que tais relaes existem

    (HOBBES, 2008; LOCKE, 2006; ROUSSEAU, 2006; MONTESQUIEU, 1996) e como

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    evit-las para que no haja abuso de poder ou opresso entre seres humanos (LOCKE,

    1996; ROUSSEAU, 2006; MARX, 1985, 1993; BAKUNIN, 1999; CLASTRES, 2003).

    O que motiva tais perguntas a necessidade poltica de justificar quem decide os rumos

    que as sociedades devem tomar ou um chefe, ou um grupo de deliberao, ou a

    totalidade dos membros da sociedade em questo.

    No caso dos estados nacionais modernos europeus, sua natureza racional-legal em geral

    possui um argumento baseado na adeso por livre vontadepara justificar a relao de

    mando e obedincia entre governantes e governados. Este , tambm, o centro

    gravitacional de modelos contratualistas. E segundo Flathman, justamente neste ponto

    que se iniciam definies e estudos sistemticos sobre legitimidade (FLATHMAN,

    1996).

    Pelo motivo de auto-justificao racional, o tipo ideal do estado moderno europeu

    contrastado s formas amerndias de organizao poltica dos incas e tupinambs que

    tambm tinham, segundo Ramrez e Fernandes, explicaes e justificativas sobre quem

    decide ou indica os rumos das decises coletivizadas. Tais explicaes, mesmo que no

    fossem racionais-legais, podem ser consideradas justificativas igualmente capazes de

    motivar perguntas acadmicas sobre legitimidade.

    Trata-se, portanto, de uma tese que observa os contedos de diferentes tipos de

    legitimidade em organizaes poltica. Nos Andes do Tahuantinsuyu descrito por

    Ramrez, havia diviso explcita entre governantes e governados, forte presena de

    poder coercitivo e relaes claras de autoridade (algo inicialmente passvel de ser

    comparado a interpretaes de modelos de estado monrquico de Maquiavel, Hobbes eMontesquieu, por exemplo).

    Na costa atlntica Tupinamb, por outro lado, existia outra cultura amerndia na qual

    no existia desigualdade explicitamente institucionalizada entre os membros da

    sociedade. Os reconhecimentos de superioridade no se desdobravam em hierarquias

    polticas, monoplio dos meios de violncia, grandes desigualdades de recursos

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    materiais ou relaes explcitas ou veladas de mando e obedincia3(algo inicialmente

    comparvel, por certa semelhana, a modelos polticos mais igualitrios propostos por

    autores modernos como Rousseau (ROUSSEAU, 2006) e Etienne de la Botie (LA

    BOTIE, 2001), por exemplo).

    Assim, a nfase da tese na legitimidade detm-se principalmente dimenso das

    crenas e valores sobre poder e dominao na esfera poltica. Secundariamente, atm-se

    a como esses valores motivam e justificam o uso da fora, a violncia fsica e a guerra.

    Assim, as descries de Susan Ramrez sobre os incas pr-coloniais (RAMREZ, 1996;

    2005; 2008) e de Florestan Fernandes sobre os tupinambs (FERNANDES, 1977; 2006)

    foram escolhidas justamente porque, por meio das obras dos dois autores, possvel

    localizar interpretaes de certas crenas, motivaes e justificativas acerca dos arranjos

    sociopolticos das duas sociedades amerndias, e como as duas culturas lidavam com a

    manuteno e a sobrevivncia dos seus respectivos grupos sociais por meio de

    justificativas polticas.

    No caso dos modelos racionais-legais modernos, observa-se geralmente teorias de

    estado que instituem hierarquia poltica e monoplio legtimo dos meios de violncia

    (MAQUIAVEL,1996; HOBBES, 2008; MONTESQUIEU, 1996), ou teorias de governo

    mais horizontalizadas e baseadas na palavra, e no nas armas (ROUSSEAU, 2006).

    Assim, o recorte que define a legitimidade como eixo gravitacional da tese permite o

    enfoque nos valores que motivam a criao de instituies polticas racionais-legais em

    dois formatos diferentes (com ou sem estado detentor do monoplio legtimo dos meios

    de violncia) e em organizaes polticas amerndias no-racionais-legais.

    Embora Ramrez e Fernandes no utilizem fundamentos da teoria poltica moderna na

    descrio de seus objetos, e tampouco categorias weberianas sobre poder, dominao e

    legitimidade, ainda assim a comparao entre as interpretaes desses dois autores sobre

    os incas e os tupinambs permite explicitar a idia de legitimidade como conceito

    fundamental para a compreenso de organizaes polticas.

    3

    Segundo Fernandes e Fausto, dentre os tupinambs, a diferena entre chefe e demais membros dasociedade residia em reconhecimentos simblicos e valorativos, sem sobreposio das posies decomando poltico, militar e econmico (FERNANDES, 1977; 2006; FAUSTO, 1992).

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    As categorias weberianas, embora no sejam usadas nos textos das obras dos autores

    abordados (por impossibilidade histrica no caso dos modernos e por opo acadmica

    por parte dos dois autores contemporneos), permitem principalmente que se ressalte as

    dimenses valorativas das teorias polticas modernas racionais-legais sobre estado e

    governo, e das descries de Ramirez e Fernandes sobre a organizao poltica dos

    incas e dos tupinambs.

    importante ressaltar que Max Weber no reivindica o conceito de dominao ou o

    critrio de legitimidade para sociedades diferentes da que adotam a estrutura do estado

    moderno europeu, e por isso, Weber um ponto de partida da tese, mas no

    necessariamente, um ponto de chegada. Alm disso, embora Max Weber seja um autor

    que nunca buscou universais, e sim descries tpicas, a possibilidade de se buscar

    conceitos com capacidade explicativa abrangente pode ser um norte a ser seguido pelas

    cincias sociais, utilizando tipos especficos como os weberianos como ponto de partida

    para busca de semelhanas e de contrastes.

    Assim, a possibilidade de conceitos amplos considerada um ponto de chegada

    almejado. No entando, esta idia, defendida na tese diante do conceito de legitimidade,

    faz sentido para conceitos operacionais, mas no ha pretenso de busca de

    generalidade para elaborao de grandes teorias sociais.

    Mtodo e contedo

    Pelo fato desta ser uma tese eminentemente terica, compara-se formas de organizaes

    polticas modernas europias e duas formas de organizao poltica amerndias pr-

    coloniais niveladas na forma de tipos ideais. Assim, utiliza-se a metodologia weberiana

    que recorta aspectos da realidade em questo e os contrasta, considerando as sociedades

    inca e tupinamb como individualidades histricas (WEBER, 2004, cap. 1) descritas

    por dois autores especializados, principalmente com o intuito de apontar e criticar a

    tendncia de certos estudos que generalizam os amerndios como unidade de anlise

    homognea (ver crticas neste sentido em CARNEIRO DA CUNHA, 1986; e FAUSTO,

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    2005). Mais do que isto, como foi dito, nivela os objetos na forma de tipos ideais

    comparavs no que diz respeito possibilidade de legitimidade em cada um deles.

    As descries dessas individualidades histricas (tanto o Tahuantinsuyu quanto os

    tupinambs) sero realizadas como recortes especficos que os particularizam tanto

    dentro do pensamento de dois autores especializados em tais sociedades (Ramrez e

    Fernandes), quanto dentro do cenrio onde havia vrias outras sociedades indgenas que

    habitavam o a rea sulamericana antes da conquista europia (cacicados amaznicos e

    do norte do atual Peru, outras sociedades tribais alm da Tupinamb, e vrios grupos

    nmades caadores-coletores).

    Do ponto de vista dos sujeitos que formam as sociedades dos modelos amerndios

    analisados (estado/imprio do Tahuantinsuyu e sociedades tribais tupinambs), um

    aspecto a se destacar que os grupos indgenas so observados na condio de grupos

    scio-culturais (CARNEIRO DA CUNHA, 1986, Parte II; CARDOSO DE OLIVEIRA,

    2006, caps. 1 e 3). Estas so as individualidades histricas que definem o

    Tahuantinsuyucomo um imprio plural unificado pela figura de El Cuzco (RAMREZ,

    2005), e tambm a sociedade em rede Tupinamb (FERNANDES, 1989; FAUSTO,

    1992).

    Tal critrio marca uma diferena fundamental entre essas individualidades histricas

    amerndias e o tratamento individual dado dos membros das sociedades em modelos

    racionais-legais, que baseiam seu pertencimento organizao poltica na adeso

    pessoal e na escolha racional de sujeitos individuais atomizados (sem considerar grupos

    culturais ou tnicos como unidades de pertencimento). Contudo, embora este seja um

    dos pontos principais a serem considerados na comparao entre modelos amerndios eracionais-legais, no ser o ponto central desta tese, pois requer estudos mais

    aprofundados sobre o tema que necessitaria de outra tese de igual porte.

    No que tange geografia s e populaes amerndias, as dimenses territoriais, a

    composio e a distribuio populacional das regies que incas e tupinambs

    habitavam so trs fatores materiais necessrios para a comparao entre as duas

    organizaes sociopolticas. Observa-se que no passado pr-colonial, no territrio dacosta do atual Brasil a densidade demogrfica indgena era consideravelmente menor

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    que nos Andes (as sociedades gravitavam ao redor de centenas ou no mximo de

    milhares de membros, enquanto, segundo estimativas, o Tahuantinsuyu chegou a

    abarcar entre nove e dez milhes de membros). Como os cenrios geogrficos eram

    bastante diferentes, havia formas de organizao poltica mais dispersas sem

    centralizao na costa do atual Brasil4.

    Assim, a comparao por semelhana da sociedade com estado dos incas e as

    sociedades sem estado dos tupinambs feita pela mnima semelhana de prtica de

    agricultura em territrio fixo por parte das duas sociedades (algo pouco expressivo

    dentre os caadores-coletores nmades, por exemplo) e pela lgica dos laos de

    parentesco (algo abolido da lgica racional-legal de estados modernos europeus, no

    sentido de vnculo entre governantes e governados).

    Por outro lado, o fato dos tupinambs formarem sociedades em rede (FERNANDES,

    1977; 2006; FAUSTO, 1992) e no grupos populosos hierarquizados, como o caso dos

    cacicados complexos da Amrica do Sul (MURRA, 1984; ROOSEVELT, 1992) e do

    Tahuantinsuyuinca (RAMREZ, 1996; 2005; 2009) apresenta um contraste substantivo

    tanto com a realidade dos incas, quanto com os modelos de estado racionais-legais

    europeus.

    Do ponto de vista da mobilidade territorial, os Tupinamb se deslocavam com

    freqncia, e segundo Ramrez, El Cuzco, imperador que era o centro gravitacional da

    sociedade inca, movia-se de centro urbano a centro urbano dentro do Tahuantinsuyu,

    sendo que a cidade de Cuzco como o centro do imprio estabeleceu-se principalmente

    como referncia dos colonizadores europeus (RAMREZ, 2005).

    Nesse sentido, o nivelamento de objetos muito diferentes entre si (o modelo histrico de

    estado moderno europeu, fundado na guerra, o modelo interpretativo e justificativo de

    4A maioria das estatsticas estima que o estado/imprio inca chegou a abarcar entre nove e dez milhes deindivduos FAVRE, 2004, p. 7 - enquanto os tupinamb estavam entre 189 mil STEWARD, 1946,vol. 5 e 1 milho DENEVAN, 1976, pp. 226-230). Atualmente, a presena demogrfica indgena ainda mais baixa no Brasil em relao a pases andinos como Bolvia e Peru, pois alm de originalmente(antes do contato colonial) j haver menos indgenas nesta regio, as eliminaes populacionais porguerras e principalmente por doenas infecciosas trazidas pelos europeus foram devastadoras

    (DIAMOND, 2003, cap.3). Alm desse fator, o prprio imprio portugus promoveu polticas mais fortesde miscigenao com indgenas e afro-descendentes para povoar o pas, algo menos presente na ao doimprio espanhol nas colnias das Amricas.

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    de contrastar o ethos racional-legal europeu a culturas no-europias, ainda que Max

    Weber no tenha aprofundado seus estudos em culturas amerndias.

    Os objetivos especficos da tese, portanto, so: 1) observar nos objetos analisados se h

    ou no poder institucionalizado e estruturas de mando e obedincia no mbito

    politico; 2) observar a pertinncia da categoria legitimidadediante do ethos racional-

    legal moderno europeu e das sociedades inca e tupinamb; 3) observar como e se os

    tipos puros de dominao legtima weberianos procedem na teoria poltica moderna

    sobre legitimidade e nos mundos amerndios inca e tupinamb descritos por Ramrez e

    Fernandes; 4) observar como a ameaa ou o uso da fora e a destruio fsica so

    tratados nos objetos analisados.

    Problema e Hiptese

    Partindo da pergunta chave de Max Weber ao desenvolver suas explicaes sobre os

    tipos puros de dominao legtima: por que existem relaes de mando e obedincia na

    vida social, ou mais precisamente, por que as pessoas obedecem? (WEBER, 1982;

    1999a; BENDIX, 1986), ao analisar os objetos escolhidos como possibilidades ou

    histrias partilhadas de solo e sangue7, pergunta-se qual a capacidade explicativa (em

    termos de abrangncia e limitao) do conceito de legitimidade diante de diferentes

    modelos de organizao poltica, se analisado pela racional-legalidade da teoria

    poltica moderna e interpretaes de Ramrez e Fernandes sobre as sociedades inca e

    tupinamb?

    A partir desta pergunta, elabora-se a seguinte hiptese: mesmo na ausncia de diviso

    entre governantes e governados e monoplio legtimo do poder coercitivo (ou seja, na

    ausncia de estado no sentido tradicional do termo, como possvel verificar nas

    descries da sociedade Tupinamb e no modelo republicano de Rousseau), ainda assim

    possvel observar a existncia do fenmeno da legitimidade pela crena na

    7 Disputas, convivncia ou eliminao dentro de um mesmo territrio algo substitudo pela razo nosmodelos racionais-legais, mas presente nos rituais de antropofagia no caso dos tupinambs, e na

    miscigenao entre etnias promovidas e controladas pelo estado no caso dos incas). Para discusses maisprofundas sobre questes sobre pertencimento de solo e sangue, ver SAHLINS, 2003.

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    superioridade de valores, ou saberes, ou discernimento, de certos membros do grupo,

    que auxiliam no processo de decises coletivizadas e na orientao da vida social. E em

    modelos racionais-legais monrquicos europeus e no Tahuantinsuyu, onde h presena

    de estado com diviso entre governantes e governados e monoplio legtimo dos meios

    de violncia, a legitimidade vincula-se a relaes de dominao.

    A idia geral de legitimidade em Weber trata o fenmeno no apenas como

    reconhecimento de algo superior em meio sociedade (seja a superioridade

    manifestada em um valor ou em um indivduo), mas que tambm como justificativa

    para relaes coercitivas ou de mando e obedincia (WEBER, 1999b, p. 155; BENDIX,

    1986, p. 233).

    Para ampliar as interpretaes sobre legitimidade, portanto, observa-se as figuras dos

    chefes tupinambs (FAUSTO, 1992, p. 383) e do grande legislador de Rousseau

    (ROUSSEAU, 2003b, cap. 7) como exemplos de lideranas desprovidas de poder

    coercitivo e possivelmente sequer estabelecem relaes de dominao com os demais

    membros do grupo social, mas que no escapam relao simbolicamente desigual de

    influncia.

    Sem ocupar posio explcitas de mando ou possurem poder coercitivo, e impedidos de

    acumular bens materiais, os chefes tupinambs e o grande legislador rousseauniano

    tinham um reconhecimento diferente da legitimidade tradicional, carismtica ou de

    natureza racional-legal. Possivelmente, aproximam-se mais do tipo ideal da liderana

    carismtica. Tal legitimidade, se que o conceito procede nesses casos, no se

    vincula a qualquer tipo de monoplio (material ou simblico) e ainda assim pode, em

    tese, manter uma sociedade coesa (desde que, como ressaltam Clastres e Rousseau, comescalas populacionais reduzidas CLASTRES, 2003, Entrevista; ROUSSEAU, 2003b).

    Assim, possvel que tal legitimidade no esteja necessariamente ligada ao conceito

    de dominao, mas sim de influncia, o que permite interpretar esse conceito como uma

    gradao, e no como um imperativo, ou o que Merquior denominou graus de validade

    na situao de poder [pois] a legitimidade e a ilegitimidade absolutas constituem casos

    excepcionais (MERQUIOR, 1990, p. 7). Desta forma, como indica o diagrama naFigura 1, a legitimidade pode ser localizada em um eixo que tem apenas o

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    reconhecimento em uma das extremidades, e as relaes de coero justificadas por

    valores sociais na outra (sendo que estas garantem o direito de mando e o dever de

    obedincia, geralmente amparados em monoplio dos meios de violncia):

    LEGITIMIDADE

    ----------------------------------------------------------------------------------------------- Apenas Reconhecimento de Valores Reconhecimento de valores + Justificativa de Dominao

    Figura 1:Eixo de Legitimidade (elaborao prpria)

    Desta forma, lgicas valorativas em diferentes culturas podem responder perguntas

    sobre motivaes de obedincia, e assim impulsionar estudos sobre a pertinncia ou no

    do conceito de legitimidade como justificativa de estratificao social. Ou ento, podem

    apenas existir como reconhecimento de valoressuperiores, intermediados pela vontade

    de todo o grupo ou ento por certos indivduos.

    Neste sentido, se alguns fenmenos sociais universais, principalmente o poder, podem

    no pertencer natureza humana e sim vida social (CLASTRES, 2003, Entrevista; ver

    tambm MOSCA, 1966), tal afirmao contraria boa parte da teoria poltica moderna

    sobre estado (MAQUIAVEL, 1996; HOBBES, 2008; MONTESQUIEU, 1996;LOCKE, 1963) mas no autores que apresentam teorias mais igualitrias de governo

    civil, como La Botie e Rousseau (LA BOTIE, 2001; ROUSSEAU, 2003), e

    tampouco sociedades amerndias como a sociedade tupinamb8.

    Considerando o que afirma Roberto Cardoso de Oliveira (CARDOSO DE OLIVEIRA,

    2006, p. 118) inspirado por Marcel Mauss, a importncia de se perguntar quem so e

    como pensamos grupos sociais a serem estudados nas cincias sociais, esta tese, porcomparar modelos tericos modernos europeus e interpretaes acadmicas sobre

    realidades histricas amerndias, no um estudo emprico sobre sociedades amerndias

    8Tais organizaes indgenas tanto servem de contraste a modelos racionais-legais de estado civil, como

    foram fontes de inspirao ao imaginrio que cria a idia de estado de natureza, e tambm umcontraponto selvagem ou irracional para o mundo racional-legal do estado civil europeu.

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    e europias, e sim uma comparao entre possveis tipos de legitimidade histrica,

    geogrfica e culturalmente situadas9.

    Assim, os estudos sobre os valores sociais desta tese derivam precisamente da busca de

    se descobrir como pensavam determinados grupos sociais em termos de poder,

    dominao, legitimidade e violncia pela interpretao de suas organizaes polticas.

    Se o uso de categorias weberianas para observar as Amricas no corresponde a mais

    uma forma de colonizao do pensamento, como apontam vrias leituras

    contemporneas na Iberoamrica sobre a atualidade da construo do pensamento

    social10, podem ser consideradas tentativas de se observar o fenmeno terico da

    legitimidade. Este fenmeno terico pressupe que, talvez, o poder coercitivo

    monopolizado no seja um universal inevitvel da humanidade no que diz respeito a

    organizaes polticas, mas a hierarquia de valores e a legitimidade, possivelmente

    podem tender a ser, principalmente como forma de atribuir sentido vida social.

    Trata-se, no fundo, de observar se a contemplao da diversidade de formas polticas

    por meio de categorias weberianas uma maneira de se verificar a pluralidade do

    real, nas palavras Roberto Cardoso de Oliveira (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976,

    p.7). A idia bsica desta tese, portanto, integrar algumas interpretaes de autores

    modernos europeus e de autores contemporneos como Susan Ramrez e Florestan

    Fernandes aos estudos gerais de teoria poltica sobre poder, legitimidade e dominao,

    enfatizando a pertinncia dos valores sociais em tais estudos polticos.

    9Isto possibilita compreender tais sociedades como individualidades histricas dentro da interpretao de

    Ramrez e Fernandes em contraponto lgica das narrativas de estudos prvios (BETHELL, 1984;MURRA, 1984; HENDERSON e NETHERLY, 1993; CARNEIRO DA CUNHA, 1986, 1992;CARDOSO DE OLIVEIRA; FAUSTO, 1992; 2005) sobre quem eram os amerndios sul-americanos ecomo se organizavam politicamente. Desta forma, busca-se contribuir, pelo uso das categoriasweberianas, para o conhecimento sobre o alcance das teorias sociais sobre organizao poltica com baseem estudos amerndios pr-coloniais, alm de destacar as interpretaes de Ramrez e Fernandes sobre aimportncia das crenas nas sociedades estudadas e na esfera poltica em geral.

    10 Para questes sobre descolonizao do pensamento e reconstruo das cincias sociais a partir dosAndes, ver MIGNOLO, 2001; MALDONADO-TORRES, 2007. Sem ignorar a existncia de recentescorrentes de sociologia iberoamericana sobre colonizao e descolonizao do pensamento, as realidadesamerndias nesta tese no so engessadas em categorias de origem europia. O intuito simplesmentecontribuir para observar o alcance e as limitaes das teorias polticas clssicas e contemporneas sobre

    poder e dominao por meio de conhecimento especfico sobre as sociedades sul-americanas pr-colombianas.

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    Para desenvolver este raciocnio, portanto, esta tese desenvolve-se em uma introduo,

    cinco captulos e uma concluso. O captulo 1 tem a finalidade metodolgica de situar

    os objetos da tese do ponto de vista conceitual, e os captulos 2, 3 e 4 descrevem os

    objetos de anlise (modelos racionais-legais de estado e governo, o Tahuantinsuyue a

    sociedade tupinamb, respectivamente), e o captulo 5 uma anlise comparativa.

    O captulo 1 descreve a metodologia da tese, as categorias weberianas utilizadas com

    nfase nas definies dos tipos de ao social, nos tipos puros de dominao legtima e

    principalmente, na categoria de legitimidade. Os conceitos de poder, autoridade,

    dominao e violncia so tambm abordados e utilizados como auxiliares para

    esclarecer o que legitimidade, e alguns aspectos de pensadores Dumont, Lukes,

    Clastres, Merquior e Arendt tambm sero abordados para auxiliar a discusso.

    O captulo 2 dedica-se teoria poltica moderna de origem europia e apresenta, em

    primeiro lugar, as caractersticas do estado nacional racional-legal como tipo ideal

    histrico, e posteriormente, descreve tipos ideais tericos estado e governo11, com

    nfase nos princpios de legitimidade de diferentes autores modernos.

    Ao final do captulo, os modelos de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau so

    enfatizados, pois alm de proporem a instituio de estados por contrato (o que j

    uma caracterstica do ethosracional-legal), suas propostas caracterizam-se por rupturas

    com o estado de natureza, enquanto o modelo contratualista de Locke, por vez, trata a

    transio da realidade que antecede o contrato e o governo civil racional-legal como

    uma conseqncia natural da vida em sociedade (LOCKE, 2005, cap. 7), e mereceria

    uma anlise mais minuciosa em uma tese de outra natureza, e portanto, no ser

    abordado com tanto destaque.

    O captulo 3 e o captulo 4 desta tese descrevem os dois mundos amerndios escolhidos

    para anlise, a sociedade inca e a sociedade tupinamb. O captulo 3 dedicado ao

    Tahuantinsuyu dos Andes, observado principalmente pelas interpretaes de Susan

    Ramrez (RAMREZ, 1996; 2005; 2008). O captulo 4 descreve os Tupinamb da costa

    11 A metodologia dos tipos ideais, de inspirao weberiana, abrange conceitos elaborados a partir das

    reflexes de vrios autores, e no apenas os clssicos tipos elaborados por Max Weber, ainda que estessejam tambm bastante utilizados na tese.

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    atlntica do atual territrio brasileiro, observados principalmente pelas interpretaes de

    Florestan Fernandes (1989; 2006). Ambos captulos, por serem empricos, tm muitos

    contedos histricos descritivos, apresentados em linguagem basicamente narrativa,

    mas o enfoque nas formas de organizao social com nfase na dimenso de crenas

    descritas por Ramrez e Fernandes nas duas sociedades.

    O captulo 5, ltimo da tese, contrasta os modelos racionais-legais modernos europeus e

    as sociedades amerndias por meio de anlises comparativas. nesse ponto que ocorre o

    contraste entre as duas sociedades sul-americanas pr-coloniais e os tipos ideais de

    organizao poltica racional-legal de estado e governo dos europeus modernos. A

    nfase das comparaes na presena ou ausncia de posies de comando em cada um

    dos modelos observados, existncia ou no de esferas polticas e nos valores

    atribudos s situaes reais ou potenciais de guerra.

    Na concluso, a tese se encerra com anlises que apontam os alcances e limitaes do

    conceito de legitimidade, alm da possibilidade de uso das categorias weberianas para

    observar tais sociedades e outras possveis interpretaes sobre relaes de poder e

    dominao.

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    Os homens no poder querem que suas posies

    sejam consideradas legtimase suas vantagens merecidas.

    Reinhard Bendix

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    CAPTULO 1 CATEGORIAS WEBERIANAS E REFLEXES

    SOBRE PODER E LEGITIMIDADE

    Esta tese trabalha com quatro objetos de anlise, a serem desenvolvidos ao longo dos

    captulos que seguem, nivelados e comparados dentro do mtodo weberiano de tipos

    ideais. A categoria de tipo ideal definida por Weber como

    Um quadro de pensamento, no da realidade histrica, e muito menos da

    realidade autntica; no serve de esquema em que se possa incluir a realidade

    maneira de exemplar. Tem, antes, o significado de um conceito-limite,puramente ideal, em relao ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o

    contedo emprico de alguns de seus elementos importantes, e com o qual esta

    comparada. Tais conceitos so configuraes nas quais construmos relaes,

    por meio da utilizao da categoria de possibilidade objetiva que nossa

    imaginao, formada e orientada segundo a realidade, julga adequadas

    (WEBER, 1999c, p.140).

    Desta forma, embora os objetos da tese sejam tanto terico-hiopotticos como os

    modelos de estado racional-legal de Hobbes e o modelo de governo racional-legal de

    Rousseau, ou interpretaes empricas sobre o Tahuantinsuyu descrito por Susan

    Ramrez e a sociedade tupinamb descrita por Florestan Fernandes, podem todos ser

    nivelados como tipos ideais, por terem como denominador comum o fato de serem

    concepes de mundos sociais possveis.

    Assim, os tipos ideais da tese tm como contedo dois modelos tericos e duas

    interpretaes de realidades histricas, e alguns de seus aspectos so recortados e

    interpretados luz das categorias weberianas com auxlio de outros autores (como

    Arendt, Clastres e Lukes, por exemplo). Tais aspectos a serem explorados so

    precisamente os tipos de legitimidade em cada um dos objetos, se que existe o

    fenmeno da legitimidade em todos eles (tal dvida refere-se em especial sociedade

    tupinamb), e a forma como o uso da fora e os meios de violncia so encarados nos

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    quatro objetos, de modo que, como tipos ideais, possam eventualmente inspirar estudos

    futuros.

    A validade acadmica desta comparao que contrasta modelos racionais-legais de

    organizao poltica europia e realidades amerndias pr-coloniais pode encontrar

    respaldo nas constataes de Gabriel Cohn, que ao refletir sobre a metodologia

    comparativa weberiana, afirma:

    "Segundo Karl Jaspers, um dos caminhos para achar o possvel a comparao.

    Num mbito histrico-universal, Max Weber contidamente relaciona entre si

    eventos totalmente diversos. (...) O semelhante o meio para se chegar

    captao tanto mais decisiva do especificamente diferente. Em situaes

    histricas semelhantes os possveis so semelhantes." (COHN, 1977, p. 128)

    Desta forma, a busca do semelhante ou trao comum, nesta tese, est na verificao

    da existncia e do tipo de legitimidadee secundariamente no papel da violncia em cada

    um dos quatro objetos.

    O fato de se comparar a cultura racional-legal de origem europia a culturas diferentes,seguindo os passos de Max Weber pode tambm relativizar o status quoacadmico na

    rea de teoria poltica pela observao de contextos geogrficos e histricos de grupos

    culturais diversos. Cohn demonstra, neste sentido, a importncia de autores que

    trabalham com o passado histrico, pois contribuem para a compreenso do mundo

    atual. Portanto, o estudo de modelos de estado racional-legal com pretenses de

    homogeneidade interna tpicas de naes pode ser comparado a organizaes polticas

    de diferentes culturas. A comparao deste modelo com culturas amerndias pr-coloniais pode, assim, ter pertinncia para estudos weberianos no sentido expresso por

    Gabriel Cohn:

    "A nao apenas um ponto de partida para a vontade de saber sociolgica de

    Max Weber. Trata-se do nosso estado do mundo em geral. Para compreender

    isso, necessita-se da histria universal; mas, por outro lado, para se compreender

    qualquer evento histrico, preciso mergulhar no presente do prprio mundo de

    cada qual" (COHN, 1977, p. 126).

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    Assim, antes de entrar em contextos, importante esclarecer as bases conceituais que

    servem de ponto de partida para qualquer estudo. Weber define luta,poder, dominao

    e disciplina, respectivamente, em uma escala crescente de estabilidade. Em uma relao

    de poder, um indivduo pode impor sua vontade mesmo mediante resistncia e

    independente da base na qual essa oportunidade se fundamenta (WEBER, 1989,

    p.107).

    Pode-se observar tambm que a concepo weberiana de luta tangencia, ou

    possivelmente antecede, o conceito de poder, se analisados em um eixo crescente de

    estabilidade. Por lutaWeber entende a relao social na qual

    a ao de um partido12 orientada propositadamente a fim de satisfazer a

    vontade prpria, prevalecendo contra a resistncia de outros partidos ou de outro

    partido. Se os meios de uma tal luta no consistem na violncia fsica real, ento

    o processo de luta pacfica (WEBER, 1989, p. 71).

    No caso da dominao, por vez, h a incorporao da dimenso das vontades e crenas

    em ambas as partes relacionadas, definidas por um direito de mando e um dever de

    obedincia. Trata-se da oportunidade de ter um dado comando obedecido por um grupo

    especfico de pessoas (WEBER, 1989, p. 107), o que torna a dominao mais estvel e

    previsvel do que a luta e o poder justamente porque ela abarca a dimenso das crenas

    e do consentimento em ambos partidos.

    Finalmente, se a dominao tem mais fora no vetor de comando, a disciplina mais

    forte no vetor da obedincia, e defini-se como a oportunidade de se obter a obedinciaimediata de uma forma previsvel (...) por causa de sua orientao prtica ao comando

    (WEBER, 1989, p. 107).

    Tais formas de relao social por dominao enquadram-se principalmente na diviso

    das sociedades entre um estrato que manda e outro que obedece, ou no que se refere

    12

    Por partido entende-se no apenas partidos polticos em busca do poder do estado moderno, mas atoresengajados de forma ampla, podendo ser designados tambm como atores ou partes.

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    esfera poltica, entre governantes e governados. No caso de sociedades onde no h

    tanta estratificao ou hierarquia entre pessoas, tais relaes de imposio no

    necessariamente procedem, e podem ser observadas com mais clareza por meio das

    categorias de luta e poder13.

    A dimenso das crenas e a perspectiva weberiana

    Segundo Bendix, para Max Weber a vida social caracterizada por trs espaos

    subjetivos sobrepostos: autoridade, interesse material e orientao valorativa

    (BENDIX, 1977, p. 286). Todos esses espaos fazem parte, em maior ou menor grau, da

    dimenso das crenas. Dentre eles, a autoridade a mais especfica de todas, pois existe

    apenas quando se estabelece a distino explcita entre superior e inferior (ou seja,

    quando se estabelece hierarquia14). Contudo, para Weber a dimenso das crenas mais

    fortemente explicitada pelo poder dos lderes, cujas idias influenciam comportamentos

    alheios sem imposio

    Em sociedades onde no h clara hierarquia entre pessoas, mas sim um reconhecimento

    simblico da chefia (se que o termo chefia adequado), ainda assim h interesses

    materiais e orientaes valorativas que podem fazer vezes de superioridade, ou seja, um

    valor que guia a sociedade pode ser considerado superior a outros valores e a qualquer

    pessoa ou membro do grupo (ver DUMONT, 1997).

    Uma vez que na dimenso crenas tambm residem a religio e o significado do

    parentesco15, em grande parte da literatura a esfera poltica muitas vezes isolada como

    parte exclusiva da dimenso material dos poderes coercitivos e econmicos

    (CLASTRES, 2003, cap. 1). Na produo acadmica da cincia poltica denominada

    13 Ainda assim, por mais que no haja hierarquia entre indivduos e relaes estveis de dominao, aconduo da sociedade norteada por certos valores coletivos que do sentido existencial e decomportamento ao grupo, que sero considerados mais adiante com o auxlio do pensamento de LouisDumont (DUMONT, 1997).

    14Ver DUMONT, 1997, p. 68.15

    Embora parentesco possa ser considerado um fenmeno privado e no poltico nas sociedadessecularizadas europias, eles so na maioria das vezes os pilares das estruturas de poder no-racionais.

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    realista, a esfera poltica em geral associada sua dimenso material, que diz respeito

    a escalas populacionais (tamanho da sociedade); escassez ou abundncia de bens

    (mbito da economia), tecnologia16; espao fsico de convivncia entre membros das

    sociedades (territrio); e principalmente, aos meios de violncia (coero).

    Contudo, a dimenso imaterial das crenas espao dos valores onde reside a

    legitimidade pode ser considerada igualmente relevante para estudos sobre a esfera

    poltica, e associada s questes materiais, capaz de explicar as sociedades de forma

    mais abrangente. Embora correntes contra-hegemnicas da teoria poltica

    contempornea j apontem para a integrao das duas dimenses h algum tempo17, as

    anlises das correntes realistas so ainda bastante presentes, e priorizam a existncia de

    estados, questes militares e econmicas, e no fenmenos de crena como fatores

    explicativos de fenmenos polticos.

    Independente do sentido realista, porm, do ponto de vista poltico, quando a distino

    entre governantes e governados existe diz respeito ao monoplio do poder coercitivo,

    em geral, de uma minoria numrica conduzindo uma maioria (MAQUIAVEL, 1996;

    HOBBES, 1995; BOBBIO, 2001; TURNEY-HIGH, 1971). Este o recorte ao qual a

    teoria poltica moderna, e grande parte da teoria poltica contempornea, se atem.

    Por no hierarquizar as duas dimenses e por buscar sempre associ-las em sua

    metodologia18, destacando a importncia da cultura e dos valores em relao dimenso

    16 Na definio de Franz Boas, os elementos que compem a cultura so a lngua, as tecnologias e ascrenas (BOAS, 1966), sendo as tecnologias como parte do saber transmitido e portanto, tambm

    imateriais. Nessa linha de raciocnio, tais elementos manifestam-se tanto na dimenso material quanto nadimenso imaterial, no momento em que so transmitidos de gerao em gerao e elo contato comoutros grupos. Na tese, cultura concebida como a unio destes trs elementos, entendidos como crenase prticas sedimentadas na histria, na identidade de pertencimento a determinado grupo, e nas regras deconduta formais e informais.

    17 GRAMSCI, 1999; BOURDIEU, 1998; GUTMAN, 1992; PHILLIPS, 1995; LACLAU, 1986;MOUFFE, 2005.

    18Enquanto Marx observaria a interao entre as duas dimenses dialeticamente, concebendo como tese adimenso material e como anttese a dimenso imaterial, e obtendo por resultado da interao dessas duasforas a sntese da realidade social (MARX, 1983), Weber diria que tanto a dimenso material quanto aimaterial interagem como elementos necessrios para explicar a realidade, sem orden-los de forma

    linear, dialtica ou hierrquica. Weber inspira-se nas aporias kantianas de opostos inconciliveis, mas astranscende no momento em que aponta para a limitao do mundo racional para compreender a realidade(COHN, 1979, Parte I, cap. 1 e cap. 5; Parte II, cap. 2).

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    material, Weber utilizado como referncia terico-metodolgica central para anlise

    dos autores que pensam a vida poltica dos amerndios sul-americanos.

    Quando no h diviso institucionalizada entre governantes e governados, os membros

    do grupo social esto politicamente distribudos de forma mais igualitria, embora isso

    em geral s seja admitido em unidades de identidade coletiva de menor porte e menos

    populosas (ROUSSEAU, 2003b; CLASTRES, 2003, FAUSTO, 1992). O foco da tese

    est precisamente em observar se h pertinncia do uso do conceito de legitimidade

    nesses casos.

    Nesses modelos nos quais no existem divises institucionalizadas entre governantes e

    governados, tanto em casos abstratos como o contrato social proposto por Rousseau

    (ROUSSEAU, 2003b), quanto em sociedades concretas como grupos e culturas tribais

    amerndias no estilo dos tupinambs, existam certos papis sociais de destaque do ponto

    de vista simblico, como a chefia e o xamanismo (FERNANDES, 1970;

    FAUSTO,1992,2005; CLASTRES, 2003; CARNEIRO DA CUNHA, 1986), ou o

    legislador rousseauniano (ROUSSEAU, 2003b, Cap. 7).

    Contudo, mesmo sem poder coercitivo ou econmico, a existncia de tais figuras pode

    corresponder a uma posio de autoridade? Diferente das sociedades com estado, nessas

    sociedades no h desigualdade interna to marcante nem do ponto de vista econmico,

    nem do ponto de vista poltico, e tampouco do ponto de vista militar, mas h distines

    simblicas que podem ou no ser concebidas como figuras de autoridade.

    Estudos sobre tais formas mais igualitrias de organizao poltica, portanto, se atm

    basicamente a duas questes: 1) nmero reduzido de membros do grupo social no nvelde pequenas cidades-estados (ROUSSEAU, 2003b, Cap. 1), ou no nvel tribal

    (CLASTRES, 2003, Entrevista); e 2) reconhecimento da relevncia da dimenso

    imaterial das crenas na esfera poltica, que parecem mais auto-suficientes do que nas

    sociedades nas quais as crenas no existem por si mesmas no mbito poltico, mas sim

    para justificar a existncia de monoplio do poder coercitivo.

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    Valor, Ao Social e Tipos Puros de Dominao Legtima

    As categorias weberianas utilizadas como referncias na tese so os quatro tipos ideais

    de ao social (racional segundo valores, racional segundo fins, afetiva e por costume),

    e principalmente os trs tipos puros de dominao legtima (tradicional, racional-legal e

    carismtica). Metodologicamente, os objetos analisados so tipos ideais tericos de

    estado racional-legal, e o uso da categoria individualidade histrica para designar as

    interpretaes das duas sociedades amerndias em questo.

    Segundo Weber, os valores19que motivam indivduos a seguirem determinada pessoa

    ou influncia podem produzir dominaes legtimas predominantemente tradicionais,

    respaldadas por aes sociais segundo costumes; racionais-legais, vinculadas a aes

    sociais racionais segundo valores, ou segundo fins e interesses especficos; ou

    dominaes carismticas, motivadas por aes sociais de motivao afetiva e pessoal

    (WEBER, 1999, cap. III; BENDIX, 1985, cap. XI).

    Weber define costume como atividades habituais em que os homens persistem por

    imitao irrefletida (BENDIX, 1986, p. 230) e tradiocomo vigncia do que sempre

    assim foi (WEBER, 1999, vol. 1, p. 22). Em outras palavras, tradio20 um postulado

    invarivel que inspira aes repetitivas, e costumes so aes que em geral no variam

    conjunturalmente.

    19Valores, embora imateriais, so relaes sociais objetivas e empiricamente verificveis. Politicamente,

    tais relaes sociais se apresentam, em geral, como formas de organizao de coletividades, que podemser observadas por meio de processos histrico-sociolgicos (onde possvel verificar a trajetria dasdisputas e consensos de idias e interesses) ou por meio de momentos chave que fundam determinadasinstituies de organizao das sociedades.

    20De forma mais especfica, ao falar das tradies do Reino Unido, Hobsbawm afirma que tradies, queparecem ou se afirmam como bastante antigas, na verdade so muitas vezes recentes, e em alguns casos,inventadas. Segundo ele, tradies inventadas so um conjunto de prticas, normalmente inspiradas porregras aceitas explcita ou tacitamente, de natureza ritual ou simblica, que objetivam inculcar certosvalores e normas de comportamento por repetio, que automaticamente implicam continuao com opassado (HOBSBAWM, 1988, p. 1, traduo prpria). Deve-se distinguir tradio (...) do costumeque domina as chamadas sociedades tradicionais. O objeto e a caracterstica definidora da tradio,incluindo as inventadas, a invariabilidade. (...) Costumes no podem ser invariveis (...), demonstram

    uma combinao de flexibilidade substancial e adeso formal a precedentes (HOBSBAWM, 1988, p. 2,traduo prpria).

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    Por outro lado, ao definir carisma, Weber afirma que trata-se de

    uma qualidade pessoal considerada extracotidiana (na origem, magicamente

    condicionada, no caso tanto dos profetas quanto dos sbios curandeiros ou

    jurdicos, chefes de caadores e heris de guerra) e em virtude da qual seatribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos, ou

    pelo menos, extra-cotidianos especficos, ou ento, se a toma como enviada por

    Deus, como exemplar, e portanto, como lder (WEBER, 1999, vol. 1, pp. 158-

    159, nfase prpria).

    Contudo, ao falar de liderana, Weber acreditava que a existncia de seguidores se dava

    pela crena na existncia de uma ordem moral que lhes impe deveres (BENDIX,

    1986, p. 230), revelada pelo lder. Pode-se inferir que o lder, apesar do poder pessoal,

    tambm veculo da afirmao de algum valor socialmente partilhado e relevante para

    o grupo, que adere pela afeio ou pela racionalidade segundo valores.

    Para esta tese, portanto, importante destacar a diferena entre a relao que une os

    tipos de liderana e as constelaes de interesses, e as relaes que unem a autoridade

    aos tipos de dominao (BENDIX, 1986, p. 230), pois os quatro objetos analisados

    podem encaixar-se em um par de relaes sociais (liderana-constelaes de interesses)

    ou em outro (autoridade/dominao), e principalmente, deve-se verificar se o conceito

    de legitimidade permeia todos esses quatro objetos (estado em Hobbes, governo civil

    em Rousseau, Tahuantinsuyu e sociedade tupinamb) e categorias (liderana,

    constelao de interesses, autoridade e dominao21) ou no.

    A dominao racional-legal, por vez, que essencialmente caracteriza o estado nacional

    laico moderno e as propostas de governo baseadas na racionalidade, est associada aaes sociais racionais segundo finsverificveis no liberalismo econmico, e tambm a

    aes sociais racionais segundo valores (WEBER, 1999a, p. 15), verificveis do

    liberalismo poltico (ambos tpicos desta determinada individualidade histrica). O

    liberalismo poltico como valor baseado em liberdade e igualdade, dependendo da

    interpretao, pode incluir teorias de governo radicalmente democrticas como a de

    21Explicitamente a legitimidade est ligada ao par conceitual autoridade-dominao, mas indaga-se se o

    conceito de legitimidade tem alcance ou flexibilidade suficiente para adequar-se tambm relaoliderana-constelao de interesses.

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    Rousseau, como postula Jos Guilherme Merquior (MERQUIOR, 1990, Primeira

    Parte), desde que a desigualdade material no seja fonte de conflito.

    Por ao social racional segundo fins entende-se as expectativas quanto ao

    comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas

    expectativas como condies ou meios para alcanar fins prprios, ponderados e

    perseguidos racionalmente, como sucesso (WEBER, 1999a, p. 15). E por ao social

    segundo valores entende-se crena consciente no valor tico, esttico, religioso ou

    qualquer que seja sua interpretao absoluto e inerente a determinado comportamento

    como tal, independentemente do resultado (WEBER, 1999a, p. 15).

    O fato de existirem formatos polticos no caracterizados pela racionalidade, e sim com

    forte contedo espiritual, no significa, porm, que aes sociais racionais segundo fins

    ou valores no estejam presentes. No caso dos amerndios, pode-se observar, dentro das

    tipologias weberianas, os dois tipos de ao social racional, ainda que os meios para se

    chegar a determinados resultados sejam ligados a crenas de fundo religioso.

    Alm disso, as aes racionais segundo fins e segundo valores, nos casos amerndios,

    podem permear tambm um tipo de dominao legtima tradicional (obedincia por

    costume arraigado WEBER, 1999a, p. 15) pela fora dos laos de parentesco, e

    tambm, em maior ou menor grau, a dominao legtima carismtica22 e neste caso,

    principalmente no que se refere aos dois diferentes tipos de chefia com e sem poder

    coercitivo.

    Sinteticamente, Weber concebe os tipos puros de dominao legtima da seguinte

    forma:

    Dominao racional-legal

    Baseada estritamente em estatutos e na cultura escrita, sua idia bsica [que]

    qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado

    22 Definida como reconhecimento por parte dos dominados de um lder por seus dons e qualidades

    extracotidianos e/ou mgicos, em virtude de capacidade de revelao e entrega venerao de heris ouconfiana em lderes (WEBER, 1999a, pp. 158-159).

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    corretamente quanto forma. A associao dominante eleita ou nomeada, e ela

    prpria e todas as suas partes so empresas23. (...) O quadro administrativo consiste de

    funcionrios (...) e os subordinados so membros da associao (cidados24,

    camaradas). Obedece-se no pessoa em virtude de seu direito prprio, mas regra

    estatuda, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer.

    Tambm quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra: lei ou

    regulamento de uma norma formalmente abstrata. (...) A burocracia constitui o tipo

    tecnicamente mais puro da dominao legal (WEBER, 2006, pp. 129-130, destaques

    em itlico no original).

    Dominao Tradicional

    Crena na santidade das ordenaes e dos poderes senhoriais que existem desde

    tempos imemoriais e no reconhecimento de um estatuto vlido desde sempre

    (WEBER, 2006, p. 131). Seu tipo mais puro o da dominao patriarcal, mas pode a

    dominao tradicional pode repousar tambm em uma estrutura estamental, onde os

    servidores no so pessoalmente do senhor, e sim pessoas independentes, de posio

    prpria que lhes angaria proeminncia social25 (WEBER, 2006, p. 132).

    Neste tipo de dominao, a associao dominante de carter comunitrio. O tipo

    daquele que ordena senhor e os que obedecem so sditos, enquanto o quadro

    administrativo formado por servidores (dependentes pessoais do senhor, familiares

    ou funcionrios domsticos, ou parentes, ou amigos pessoais favoritos ou de pessoas

    que lhe estejam ligadas por um vnculo de fidelidade vassalos, prncipes, tributrios).

    Obedece-se pessoa em funo da sua dignidade prpria, santificada pela tradio: [ou

    seja] por fidelidade. O contedo das ordens est fixado pela tradio, cuja violao

    23Nesse ponto, nota-se implicitamente a associao deste tipo de dominao com a idia de propriedadeprivada.

    24 Os membros com status de cidados so a principal fonte de legitimidade tanto no pensamento deHobbes quanto de Rousseau

    25Este seria, tpica-idealmente, o caso da relao da famlia real inca com os caciques aliados no incio doTahuantinsuyu, e pode-se inferir que o projeto dos Sapa Incasera eventualmente transformar a realidade

    tradicional-estamental da regio andina em uma estrutura tradicional patriarcal, como ser desenvolvidonos captulos 3 e 4 desta tese.

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    desconsiderada por parte do senhor poria em perigo a legitimidade do seu prprio

    domnio, que repousa exclusivamente na santidade delas (WEBER, 2006, p. 131).

    Dominao carismtica

    Existe em virtude de devoo afetiva pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais

    (carisma) e, particularmente: a faculdades mgicas, revelaes ou herosmo, poder

    intelectual ou de oratria (WEBER, 1999c, p. 134). Ou seja, d-se por uma motivao

    que ultrapassa o reconhecimento e at mesmo a admirao, muitas vezes manifestando-

    se em devoo.

    Weber descreve a dominao carismtica em um sentido que torna a magia um possvel

    oposto da sobrevivncia cotidiana econmica, no sentido de que a satisfao de todas

    as necessidades que transcendemas exigncias da vida econmica cotidiana tem, em

    princpio, fundamentos totalmente heterogneos [ou seja] carismticos. Isto significa

    [que] os lderesnaturais, em situaes de dificuldadespsquicas, fsicas, econmicas,

    ticas, religiosas e polticas no eram pessoas que ocupavam um cargo pblico, nem que

    exerciam determinada profisso especializada e remunerada, no sentido atual da

    palavra, mas portadores de dons fsicos e espirituais especficos, considerados

    sobrenaturais (no sentido de no serem acessveis a todo mundo) (WEBER, 1999b, p.

    323).

    Assim, o sempre novo, o extracotidiano, o inaudito e o arrebatamento emotivo que

    provocam constituem aqui a fonte de devoo pessoal. Seus tipos mais puros so a

    dominao do profeta, do heri guerreiro e do grande demagogo. Associao dominante

    de carter comunitrio, na comunidade ou no squito. O tipo que manda o lder. Otipo que obedece o apstolo. Obedece-se exclusivamente pessoa do lder por suas

    qualidades excepcionais e no em virtude de sua posio estatuda ou de sua dignidade

    tradicional; e portanto, tambm somente enquanto essas qualidades lhe so atribudas,

    ou seja, enquanto seu carisma subsiste(WEBER, 1999c, p. 135). Weber atribui

    dominao carismtica uma natureza eminentemente irracional (WEBER, 1999c, p.

    135), e afirma que a autoridade carismtica baseia-se na crena no profeta ou no

    reconhecimento que encontram pessoalmente o heri guerreiro, o heri da rua ou odemagogo (WEBER, 1999c, p. 136).

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    Ao descrever esses trs tipos puros de dominao legtima e afirmar que em geral as

    realidades polticas repousam sobre bases mistas, sendo que a crena na legitimidade

    formal define a dominao racional-legal, o hbito define a dominao tradicional e

    o prestgio define o carisma (WEBER 1999c, p. 137).

    Assim, os conceitos de dominao tradicional e dominao carismtica podem ser

    ferramentas utilizadas para caracterizar aspectos polticos das sociedades amerndias

    inca e tupinamb (em especial no que se refere medida em que elas so ou no

    agregadas por relaes de poder e/ou autoridade), e por mais que os dois modelos

    amerndios pr-coloniais no contemplem a dominao racional-legal, no

    necessariamente excluem a lgica dos tipos racionais de ao social (segundo fins e

    segundo valores). Analisadas luz do pensamento de Ramrez e Fernandes, elas so

    contrastadas dominao racional-legal e posteriormente ao monoplio legtimo dos

    meios de violncia de origem tipicamente europia.

    No que se refere dimenso poltica, o conceito de legitimidade mais amplo que o de

    dominao no pensamento weberiano. A dominao, por designar submisso voluntria,

    depende de legitimidade para ser estvel e perdurar no tempo. A legitimidade, contudo,

    diz respeito s justificativas de determinada ordem social, e pode existir em sociedades

    que no aceitam ou no conhecem estruturas de hierarquia entre indivduos, mas que

    possuem valores primordiais que devem ser seguidos por todos, e so esses valores,

    independente de seus contedos, que determinam a legitimidade do tipo de organizao

    social.

    Legitimidade como conceito e critrio

    O conceito de legitimidade deve sua existncia necessidade de se justificar relaes

    sociais de mando e obedincia entre seres humanos, ou de hierarquia de valores que

    regem uma sociedade. Est, portanto, ligado a uma idia de justificativa de determinada

    ordem social. Alm disso, pode servir como critrio para se avaliar situaes de poder

    social com submisso voluntria, ou seja, a legitimidade tambm pode servir para

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    qualificar relaes de dominao (no sentido weberiano, por adjetivos como dominao

    carismtica, tradicionalou racional-legal).

    Se a legitimidade o que justifica organizaes sociais, em geral, invocada em

    situaes de conflito como valor que reafirma relaes de poder. A legitimidade , latu

    sensu, uma forma de reconhecimento de algum valor, e strictu sensu, de algum valor de

    superioridade, representado na forma de governantes ou no.

    A legitimidade sempre alguma forma de reconhecimento, do reconhecimento de

    algum valor, expresso ou no em uma pessoa ou em um grupo de pessoas. Segundo

    Merquior, na antiguidade clssica europia a idia de legitimidade em geral tinha

    conotao de legalidade, daquilo que est de acordo com alguma lei ou documento26,

    embora exista o relato de Xenofonte (Memorabilia, IV, 4) no qual Scrates afirma que o

    que era legal era tambm justo (MERQUIOR, 1990, p. 2). Segundo Merquior,

    o conceito de legitimidade se aproxima decisivamente da experincia do poder.

    Na verdade, a emergncia da legitimidade como questo poltica foi ocasionada

    pelo colapso do regime de governo direto no mundo antigo, podendo ser

    atribuda, em grande parte, substituio da democracia direta da gora e do

    governo pessoal dos tiranos locais pela autoridade imperial. Assim, o uso

    medieval do termo legtimo para designar os detentores do poder reflete uma

    longa familiaridade com o poder de representao dos imperadores e dos papas.

    A necessidade prtica de justificar tais delegaes d autoridade naturalmente

    estimulou a anlise terica da validade do poder, ou da legitimidade

    (MERQUIOR, 1990. p. 2).

    J na Idade Mdia, legitimidade significa aquilo que est de acordo com os costumes,

    independente do que est postulado na letra da lei, mas principalmente,

    26

    Como por exemplo, o reconhecimento de inimigos oficiais (que, diferentes de saqueadores e piratas,assinavam tratados).

  • 7/24/2019 TESE CONSOLIDADA Paolareeditada

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    o direito e a filosofia medievais constituram a noo da legitimidade como qualidade

    do direito ao governo. Tambm introduziram a idia de que o consentimento um

    elemento integrante do poder legtimo (MERQUIOR, 1990, p. 3).

    Alm disso, a legitimidade como conceito especificamente poltico primeiramente

    formulado, segundo Merquior, por Guilherme de Occam na primeira metade do sculo

    XIV, que definia legitimidade como um fenmeno governamental baseado no

    consentimento (ou seja, o velho argumento medieval (...) no qual aquilo que atinge a

    todos deve ser aprovado por todos- MERQUIOR, 1990, p. 3), e com o advento do

    estado moderno constitucional, a legitimidade por consentimento coletivo passa a ser o

    substrato do discurso que justifica a representao racional-legal dos estados modernos,

    sempre associados idia de autoridade legtima (MERQUIOR, 1990, p. 3).

    Esse tipo de legitimidade poltica, moderna e europia, no mais reconhece mais apenas

    o sangue como fonte de pertencimento sociedade, abrindo lugar principalmente para a

    adeso racional voluntria da coletividade sob comando de governantes27.

    Contemporaneamente, Cromatie argumenta que legitimidade o fenmeno que ilustra

    como todos os governos respaldam-se, pelo menos em parte, na cooperao dos

    governados (...) e invariavelmente precisam lidar com um aparato c