138
 UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO ESTRUTURA DE UM ESTUDO EXPLORATÓRIO SOBRE ENCOPRESE EM CRIANÇAS DOS 7 AOS 12 ANOS: ABORDAGEM PSICODINÂMICA Cláudia Raquel Leal Bettencourt MESTRADO INTEGRADO EM PSICOLOGIA (Secção de Psicologia Clínica e da Saúde) 2008 1

Tese Final Cláudia

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS DA EDUCAO

ESTRUTURA DE UM ESTUDO EXPLORATRIO SOBRE ENCOPRESE EM CRIANAS DOS 7 AOS 12 ANOS: ABORDAGEM PSICODINMICA

Cludia Raquel Leal Bettencourt

MESTRADO INTEGRADO EM PSICOLOGIA (Seco de Psicologia Clnica e da Sade)

2008

1

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS DA EDUCAO

ESTRUTURA DE UM ESTUDO EXPLORATRIO SOBRE ENCOPRESE EM CRIANAS DOS 7 AOS 12 ANOS: ABORDAGEM PSICODINMICA

Cludia Raquel Leal Bettencourt

MESTRADO INTEGRADO EM PSICOLOGIA (Ncleo de Psicologia Clnica Dinmica)

Dissertao de Mestrado orientada pelo Prof. Doutor Manuel Matos

2

2008

Resumo A presente estrutura de projecto de investigao prope um estudo exploratrio sobre o sintoma encoprese, com crianas dos sete aos doze anos, e respectivas famlias (nomeadamente, as mes). O presente trabalho subdivide-se em trs mdulos distintos. O primeiro mdulo consiste numa reviso da literatura psicodinmica sobre a compreenso das patologias psicossomticas no geral, e sobre o sintoma encoprese na sua especificidade. O segundo mdulo apresenta a estrutura do projecto de investigao proposta, em que se sugerem os procedimentos metodolgicos necessrios para: 1) a caracterizao das relaes familiares, tal como so percebidas e concebidas pelas crianas que apresentam o sintoma encoprese (utilizando o Family Relations Test, revised; Bene, & Anthony, 1978); 2) a verificao emprica da hiptese psicodinmica proposta por Santos & Caldas (1972), sobre os mecanismos de defesa preferenciais (um perfil defensivo tpico) das mes das crianas que manifestam o sintoma encoprese (utilizando o Defence Mechanisms Inventory; Gleser, & Ihilevich, 1969); 3) e por ltimo, apresenta-se um esboo inicial de um questionrio (Questionrio Psicodinmico sobre a Encoprese; Matos, & Bettencourt, 2008) construdo a propsito desta investigao, e pretende de forma sinttica, rpida e acessvel, recolher aspectos do desenvolvimento psicoafectivo destas crianas ( essencialmente uma ferramenta clnica) pertinentes para a compreenso do sintoma. O ltimo mdulo deste trabalho consiste num estudo do caso de um rapaz de oito anos (e respectiva me) que apresenta um quadro clnico de encoprese, retentiva, secundria, com o qual se exemplifica a estrutura de projecto de investigao proposta. Palavras-chave: Encoprese; Crianas em Idade Escolar; Abordagem Psicodinmica, Estrutura de um Projecto de Investigao; Estudo de Caso.

Abstract The following structure of this investigation proposes an exploration study about the symptom encoprese, in children between seven and twelve years hold, and their familys (particularly, their mothers). The present paper its composed of three different parts. The first one consists on a revision of the psychodynamic literature about the generality of psychosomatic disorders, and about the specificity of the symptom encoprese. The second part presents the structure of the proposed investigation, in which we suggest the necessary methodological procedures to: 1) the characterization of the family relations, exactly as children with encoprese perceives it (using the Family Relations Test, revised; Bene, & Anthony, 1978); 2) the verification of the psychodynamic hypothesis made by Santos, & Caldas (1972), about the preferred defence mechanisms (a specific profile) of the mothers of children with encoprese (using the Defence Mechanisms Inventory; Gleser, & Ihilevich, 1969); 3) and in the final of second part, we present an initial sketch of a questionnaire (Questionrio Psicodinmico sobre Encoprese; Matos, & Bettencourt, 2008) built with the purpose of in a simple, fast, and accessible way, collected data of the psycho-affective development (its essentially a clinical tool), relevant to the understanding of the symptom. The third part of this paper consists in a clinical study of an eight year old boy with retentive encoprese, and of his mother, with which we exemplify de proposed structure of this investigation. Key-words: Encoprese; Children in School Age; Psychodynamics; Structure of an Investigation Project; Case Study.

3

ndice1. Enquadramento TericoParte I As Patologias Psicossomticas e o Modelo Terico Psicodinmico1. O Conceito Psicossomtica.....p. 1 2. Referencial Psicodinmico e a Patologia Psicossomtica no Adulto...p. 2 3. A Psicossomtica na Criana.p. 13

3.1. Teoria Psicodinmica: dimenses especficas na compreenso da psicossomtica da crianap. 13 3.1.1. A Relao primria..p. 13 3.1.2. A Construo do Sentimento de Continuidade do Self e a Patologia Psicossomtica.p. 20 3.1.3. A Importncia do Contacto Pele-a-Pele e o Sentimento de Continuidade de Si na Patologia Psicossomtica.p. 24 3.1.4. Nota sobre o Acesso Triangulao e a Patologia Psicossomticap. 29

Parte II O Sintoma Encoprese.................................p.311. Quadro psicopatolgico e consideraes para o diagnstico1.1. Descrio da sintomatologiap. 31 1.2. Diagnstico Diferencial ...p. 331.2.1. Distino e Introduo compreenso da patologia Megaclon Funcional ..p. 33

1.3. Evoluo e Prognsticop. 35 1.4. Dados epidemiolgicos (Incidncia e prevalncia, comorbilidade, variaes em funo do sexo).p. 36

2. Abordagem terica compreensiva: Referencial psicodinmico e o sintoma da encoprese na crianap. 372.1. Tarefas de Desenvolvimento Normativas na Aquisio do Controlo Esfincteriano e a Fase Anal do Desenvolvimento Psicossexual.p. 37 4

2.2. Caractersticas Psicolgicas da Criana com Encoprese.p. 40

2.3. Compreenso Psicodinmica do Sintoma Encoprese.p. 43 2. Presente Estudo..p. 52 Objectivos...p. 523. Mtodo.p.

553.1. Amostra.p. 55 3.2. Procedimentos.p. 55 3.3. Instrumentos1. Family Relations Test (F.R.T-revised) (Bene & Anthony, 1978)p. 56 2. Defence Mechanism Inventory (DMI) (Gleser & Ihilevich, 1969)p. 62 3. Questionrio Psicodinmico sobre Encoprese (Matos, & Bettencourt, 2008).p. 64

4. Referncias.p. 65

5. Anexos5.1. Anexo I Critrios de Diagnstico para Encoprese 5.2. Anexo II Estudo de Caso Clnico: Miguel, 8 anos, com Encoprese Secundria e detipo Retentivo: Exemplo da Aplicao da Metodologia de Investigao Proposta Anexo II. I Desenho de uma pessoa (elaborado pelo Miguel) Anexo II.II Desenho da famlia Anexo II. III Questionrio Psicodinmico preenchido pela me do Miguel Anexo II.IV Grficos dos Resultados do Miguel no Family Relations Test Revised

(Bene, & Anthony, 1978) 5.3. Anexo III Contedos dos Itens do Family Relations Test Revised (Bene, & Anthony, 1978) 5.4. Anexo IV Autorizao para os Pais das Crianas com Encoprese 5.5. Anexo V Requerimento formal da autorizao do projecto para o Hospital D. Estefnia

5

1. Enquadramento Terico Parte I As Patologias Psicossomticas e o Modelo Terico Psicodinmico4. O Conceito PsicossomticaA patologia psicossomtica pode ser entendida como um desequilbrio no sistema bio-psicosocial de cada indivduo, que possui um valor comunicacional para o indivduo que dela padece e para o meio que o envolve. Diz respeito a patologias orgnicas, derivadas de leses ou funcionais, nas quais se reconhece uma participao psicolgica prevalecente na sua gnese e evoluo (Kreisler, 1985, p.430), e podem ser definidas como estados fsicos (sintomas, sndromes, e doenas) em que, face a uma situao conflitual, desencadeiam um processo de desorganizao somtica, passageira ou recorrente, por submerso das possibilidades de integrao mental ou falncia dos mecanismos capazes de assegurar a elaborao mental dos conflitos (Silva, 1991, p.18). Na definio dos limites e da abrangncia da noo de sintoma psicossomtico, Stisman (1999, p. 320) organiza a seguinte sntese dos principais conceitos psicanalticos, que permite delimitar e posicionar na relao com outros conceitos inerentes ao domnio da investigao psicossomtica, o sintoma em trabalho nesta investigao: a) A converso histrica, por definio no implica uma leso orgnica e relaciona-se com uma patologia funcional; b) Uma alterao orgnica enquadrada pela patologia psicossomtica clssica, especialmente estudada pela escola de Chicago; c) Uma alterao orgnica que corresponde a qualquer patologia somtica, qualquer que seja o rgo comprometido e a gravidade do quadro; d) Uma manifestao somtica acompanhada de leses orgnicas, que no remete para um conflito neurtico; ou seja, um sintoma hipocondraco; e) Alteraes funcionais diversas como a encoprese, que no se baseiam numa leso orgnica nem correspondem a uma manifestao histrica, nem se enquadram na patologia hipocondraca.

6

5. Referencial psicodinmico e a patologia psicossomtica no adulto Na tradio psicanaltica freudiana, a patologia psicossomtica foi inicialmente concebida como expressando um conflito psquico, semelhana da compreenso psicanaltica dos sintomas de converso histrica. A explicao conflitual da patologia psicossomtica resumia a patologia psicossomtica teoria da converso histrica (Coimbra de Matos, 2003). Desta perspectiva inicial, retira-se a importncia do valor comunicacional do sintoma (algo que a psicossomtica e a converso histrica partilham), embora na patologia psicossomtica, o plo pr-genital e predipiano do sofrimento expresso, seja um trao que marca uma ciso importante na forma de conceber e compreender as aproximaes feitas entre os dois tipos de psicopatologia. Esta perspectiva revelou-se insuficiente na compreenso da complexidade inerente predisposio ao funcionamento psicossomtico, e os movimentos tericos subsequentes fazem tentativas de preencher as lacunas do raciocnio psicanaltico sobre a patologia psicossomtica. Alexander (1963), uma referncia histrica, fez dos primeiros estudos sistemticos sobre algumas das principais patologias concebidas como psicossomticas, e no se afasta completamente da nfase na dinmica conflitual na compreenso da patologia psicossomtica, visto que procurou detectar, para cada patologia que investigou, os conflitos centrais que acreditava contriburem directamente para a predisposio dos tipos de desorganizao somtica especfica a cada patologia. Demarcando-se com mais clareza da perspectiva conflitual sobre a etiologia da patologia psicossomtica, a Escola de Psicossomtica de Paris, com Marty, MUzan, & David (1967) define e delimita um tipo de organizao da personalidade, que parece predispor ao sofrimento psicossomtico, recorrendo aos conceitos de: 1) Pensamento operatrio, o cmulo da carapaa defensiva, em que temos um pensamento despido de vida afectiva, pobre, assente numa predominncia extrema e defensiva do concreto e do princpio da realidade (dominado pelo processo secundrio do pensamento1), em que o pensamento simblico, dependente das mltiplas1

Segundo Freud (citado por Santos & Caldas, 1972) a vida psquica em grande parte inconsciente e constituda

por dois processos de pensamento interdependentes, mas bastante distintos em relao sua natureza. O processo de pensamento primrio maioritariamente inconsciente, e a satisfao das pulses imediata, total e pela via mais simples, sendo que este funcionamento est intimamente relacionado com experincias arcaicas elementares, de desejos satisfeitos ou frustrados e pela alucinao do desejo, funcionando segundo o principio do prazer (p.19). O processo de pensamento secundrio mais tardio no desenvolvimento da criana e est em contnuo aperfeioamento

7

inter-conexes entre processo primrio e processo secundrio de pensamento, est empobrecido; 2) Depresso essencial associada a uma perda precoce, um trauma muito aqum da possibilidade da elaborao psquica (anterior aos 6 meses), que resulta num estado assintomtico em termos psquicos e que se traduz numa perturbao do funcionamento biolgico do organismo, uma depresso sem objecto, sem expresso afectiva ou psquica, normalmente com um rgo ou sistema preferencial ou de eleio que alvo da expresso do sofrimento psquico no elaborado (omelanclico sabe que perdeu, mas no sabe o que perdeu; na depresso essencial, no h conscincia da perda, no se sabe o que perdeu, e o corpo sofre por marcas de um passado doloroso desconhecido).

Complementarmente e paralelamente a este trabalho, a Escola Psicossomtica de Chicago, com Nemiah & Sifneos (1970) responsvel pela introduo do conceito de alexitimia, na caracterizao dos pacientes com tendncias desorganizao somtica, cujos traos salientes so: 1) dificuldade na identificao e descrio dos sentimentos, 2) dificuldades na distino entre sentimentos, associada a uma tendncia para a hiper-focalizao nos componentes somticos concomitantes da activao emocional, 3) diminuio da capacidade de imaginao e fantasia; e 4) um estilo cognitivo extremamente prtico, hiper-orientado para a realidade e para o mundo exterior, definio similar ao conceito de pensamento operatrio introduzido pela Escola Psicossomtica de Paris. Ambas as escolas vo beber experincia clnica para as suas concluses, so as referncias histricas, e marcam a viragem no pensamento psicanaltico sobre a psicossomtica. No sentido da caracterizao do estilo relacional dos pacientes com tendncia expresso do sofrimento por via somtica, Marty, MUzan, & David (1967), introduzem o termo relao branca, isto , uma relao, que pode ser considerada como relativamente dependente, mas com um lado bastante funcional e superficial, no sentido de que o acesso intimidade, partilha com mutualidade, e vida afectiva mais profunda, tende a estar sistematicamente empobrecido. Tambm McDougall (1989, p. 451-452) defende que os pacientes psicossomticos tm uma tendncia para serem extremamente dependentes do seu objecto de amor para se sentirem vivos e tendiam a ficar doentes fisicamente quando se sentiam abandonados (). Mas o seu amor altamente permutvel. A preocupao central que algum tem de estar l. Coimbra de Matos (2003) denomina este tipo de relao de objecto de relao protoptica, no sentido da indiferenciao e inespecificidade relacional. Uma vinculao pobre e facilmente substituvel. O objecto de amor tem assim muitas dificuldades em sentir-se existir na relao. No h envolvimento genuno, espelho de

ao longo da toda vida, tendencialmente de natureza pr-consciente e consciente, e apesar de tambm visar a descarga pulsional, responsvel pela mediao com as exigncias da realidade, servindo funes de mediao, entre o ego e o meio. A capacidade reflexiva a sua sustentao, e orienta-se segundo o princpio da realidade, em detrimento do princpio do prazer (Santos & Caldas, 1972).

8

verdadeira diferenciao entre self-objecto. O psicossomtico vive num impasse afectivo erelacional; apenas est (na verdade, sem estar) na relao (Coimbra de Matos, 2003, p.127).

A pobreza afectiva inerente relao de objecto primria tendencialmente repetida como estilo relacional preferencial. Na patologia psicossomtica, assistimos ao no investimento darealidade objectal. No h desinvestimento porque nunca houve investimento. () O sujeito no foi investido como ser nico e diferente de todos, () falhou a constncia do sujeito no interior do seu objecto, aquilo que lhe daria identidade e rosto (Coimbra de Matos, 2003, p.76). A instabilidade ou

falncia na organizao da constncia objectal (Mahler, 1975) permitem antever um traumatismo numa fase muito precoce do desenvolvimento self (com comprometimento do processo de simbolizao e do acesso pleno capacidade de representao do objecto), em que a funo de auto-regulao biolgica ainda no se teria autonomizado da regulao dependente do objecto, tpica da mutualidade inicial entre me e beb com exponente mximo na vida uterina. A partir desta indiferenciao entre a auto-regulao, os afectos e o objecto interno, entende-se a ameaa permanente ao bem-estar fsico, quando o psiquismo ainda no se diferenciou (Milch, 1998). Nos pacientes psicossomticos, rara a presena de uma angstia psquica organizada sendo mais tpico predominarem os estados de tenso/excitao no elaborados psiquicamente, sem significao, descarregados no corpo (acting in) (e.g. McDouglas, 1989; Stisman, 1999). Kuchenhoff (citado por Pontes, 2004) defende que na organizao psicossomtica embora a tenso seja a principal fonte de expresso da vida pulsional, possvel discernir temas principais na angstia destes pacientes. Segundo Kuchenhoff (citado por Pontes, 2004), a sua natureza predominantemente bipolar, com um plo ligado angstia de separao (denotando o lado anacltico da relao de objecto) e outro plo ainda mais primitivo de angstia de morte ou de aniquilamento (prximo dos receios psicticos, mas conseguindo um encapsulamento moderado no corpo e na preocupao com a doena). Est implicada uma clivagem da personalidade relativamente encapsulada, conseguindo-se uma boa adaptao ( superfcie), muitas vezes custa de um falso self muito rgido (Winnicott 1958, 2000), situando-se o paciente aqum quer da triangulao quer da relao primria suficientemente boa (Coimbra de Matos, 2003). A prpria necessidade de erguer esta muralha defensiva em falso self, acaba por contribuir para aumentar a dinmica de alienao em relao prpria vivncia subjectiva, uma pobreza afectiva que se recapitula em cada relao (James, 1979). O corpo do paciente psicossomtico acaba por servir de continente a si mesmo (Matos, 2005) tomando para si a funo de holding do objecto primrio. Sem objecto, sem confiana na relao, o psicossomtico um ser que vive da dor fsica no lugar da psquica. Um sofrimento depressivo massivo, precoce e inexplorado psiquicamente.

9

A experincia clnica diz-nos contudo, que os pacientes psicossomticos nem sempre se enquadram no modelo de mquina pensante (Coimbra de Matos, 2003), e pertinente questionarmo-nos se realmente se pode falar, com exactido, de uma estrutura de personalidade psicossomtica pura, ou se o funcionamento psicossomtico poder ser melhor compreendido se o entendermos segundo uma perspectiva nuclear da personalidade. Coimbra de Matos (2003) introduz algumas noes chave para compreenso da diversidade e divergncias na concepo psicanaltica sobre a patologia psicossomtica. Fala da discrepncia entre as noes de depressividade e de depresso falhada, ambas capazes de predispor expresso psicossomtica do sofrimento. Com a depressividade, Coimbra de Matos (2003) define um trao de personalidade que produz uma vivncia depressiva mais ou menos mentalizada, mas cujo principal sintoma, a tendncia para o abatimento, a idealizao dos objectos patognicos, custa de uma fragilidade narcsica importante, que culmina numa auto-estima dependente de critrios externos. uma depresso por sentimento de perda de amor do objecto primrio, que se enquista e permanece por resolver, por exprimir, sendo corpo e os sintomas psicossomticos, utilizados como defesas anti-depressivas, servindo funes de apoio gesto da pulsionalidade nas relaes de objecto. Para a organizao deste trao de personalidade contribuem () perdas afectivas cumulativas na primeira infncia e limitao/proibio excessiva do comportamento espontneo e reactivo, ou seja, carncia afectiva e represso precoce (Coimbra de Matos, 2003, p.33). Por outro lado, a noo de depresso falhada, aproxima-se mais do conceito de depresso essencial j descrito, em que a perda afectiva muito precoce, antes da organizao de uma representao interna do objecto estvel, e consequentemente de acesso posio depressiva descrita por Klein (citada por Segal, 1975). O trauma precoce relaciona-se muitas vezes com a desarmonia afectiva na dade, em que A carncia do afecto, no mentalizada ou elaborada psiquicamente, repercute-se no organismo biolgico como hipotonia geral e perturbaes da regulao neurovegetativa, endcrina e imunitria (Coimbra de Matos, 2003, p.35). Com esta diferenciao Coimbra de Matos (2003) oferece uma proposta de compreenso da patologia psicossomtica na sua diversidade de manifestaes e de gravidade, salientado a maior gravidade da depresso falhada (ou essencial se quisermos) integrando os contributos da Escola Psicossomtica de Paris, nomeadamente, explicitando o porqu de nem todas as manifestaes de sofrimento atravs da via somtica se fazerem acompanhar do tpico pensamento operatrio e pobreza fantasmtica. Com a noo de depressividade, identifica o matizado intermdio (menos grave) no funcionamento psicossomtico, e faz a ponte entre o carcter psicossomtico e a normalidade. Em nossa opinio sempre que o sofrimento psquico no suficientemente expresso a nvel afectivo e ideativo por emoes e pensamentos , comunicado em palavras ou gestos e descarregado em actos, a sade fsica periga e o caminho para a doena est aberto (Coimbra de Matos, 2003, p.90). 10

Alm disso, Coimbra de Matos (2003) enfatiza a importncia do recalcamento primrio, como estratgia defensiva passiva, dada a falncia da estrutura psquica necessria para a representao do acontecimento traumtico. Nas palavras de Frank (citado por Coimbra de Matos, 2003) O irrecordvel mas inesquecvel da experincia traumtica. Uma fissura que separa self corporal de self psquico, dada a ausncia de experincia de ressonncia afectiva, reconhecimento, e sua expresso na relao (a clivagem horizontal como prope Coimbra de Matos, 2003), da qual resulta o inconsciente primrio no recalcado, constitudo por desejos frustrados, angstias, medos, sustos, na sua componente visceral, sensaes; a vida pulsional em bruto e desintegrada, desligada das relaes afectivas e da vida intra-psquica. Um inconsciente encapsulado, diferente do inconsciente organizado atravs do recalcamento tpico da resoluo do conflito edipiano (Coimbra de Matos, 2003). No h recalcamento do que no chegou a ser representado e/ou elaborado simbolicamente na relao com os objectos de amor. Tentando concretizar, podemos dar o exemplo, da criana que chora, porque tem sensaes de fome, e est sozinha no bero. Ela depende do objecto para mentalizao dessas necessidades (e para a satisfao das mesmas, claro) o beb no sabe que tem fome, ele sente desconforto, desprazer e se a me no vm, ou est ausente, fica a frustrao sentida visceralmente, e o vazio da experincia de ser reconhecido, e cuidado atempadamente pelo objecto (experincia que se guarda preciosamente atravs da sua representao intra-psquica, uma das fontes do narcisismo primrio). O inconsciente primrio no recalcado (Coimbra de Matos, 2003), o esquecimento, o irrecordvel da carncia ou vazio da experincia, da representao e da sua expresso/ligao na relao com os objectos de amor. Demos o exemplo da fome, mas defendemos que este processo se aplica a todo o tipo de emoes (e.g. tristeza, raiva, medo), vivncias, angstias, e ansiedades. a funo de objectalizao das pulses (Matos, 2007), das necessidades, no fundo de todas as vivncias intra-psquicas significativas, por parte dos objectos de amor. Com esta concepo, consegue-se uma nova aproximao concepo da patologia psicossomtica, sendo que independentemente da gravidade do trauma, este mecanismo estaria subjacente expresso somtica do sofrimento (por falncia da sua representao, ligao com a vida objectal e intra-psquica), ligada quer noo de depresso essencial (Escola Psicossomtica de Paris), quer a um trauma intermdio (ou acumulao de microtraumas) menos patolgico que pressupe um sofrimento depressivo larvar no mentalizado (depressividade) (Coimbra de Matos, 2003), quer prpria normalidade, visto que todos os ns quando os recursos psquicos so suplantados, e no se organiza o espao na relao para a expresso do sofrimento/vivncias intrapsquicas, recorremos ao corpo como forma de gesto/descarga emocional alternativa, e transitria. Complementarmente, McDougall (1989) concebe a organizao de patologia psicossomtica como uma das variadas formas de acting, defendendo a possibilidade do psiquismo humano 11

recorrer ao corpo (em condies especificas) como forma de comunicao. Introduz a propsito da patologia psicossomtica o conceito de regresso psicofisiolgica, para explicitar o tipo de regresso inerente organizao de um sintoma psicossomtico como reaco preferencial face a estados emocionais perturbadores, em que o indivduo regride a um estado muito precoce de investimento libidinal do objecto, em que ainda se faz depender da relao de objecto a sobrevivncia fsica, sendo que a organizao de um sintoma psicossomtico recapitula e concretiza esta possibilidade de ameaa sobrevivncia e bem-estar do indivduo, que varia na sua intensidade e gravidade (McDougall, 1989). As hipteses de McDougall (1989) em relao organizao e manuteno da patologia psicossomtica podem ser sistematizadas da seguinte forma: 1) o sintoma psicossomtico pode possuir uma funo protectora do self face a pulses e desejos arcaicos que so intudos como ameaadores da prpria vida psquica e fsica da pessoa; 2) assim, em momentos de ameaa que recapitulam estes mesmos afectos primitivos, ocorre um bloqueio do acesso destes contedos palavra e ao pensamento, tal como a criana faz devido sua imaturidade e dificuldade na sua digesto psquica sem o apoio do objecto; 3) este processo pode resultar numa regresso psicofisiolgica, em que o perigo acaba por ser vivido atravs do desequilbrio das funes vitais ao organismo, que vive estes percursores de afectos sob a forma de acting ou descarga pulsional; 4) alm disso, o corpo tal como a mente tambm pode envolver-se e circunscrever-se a ciclos patolgicos de compulso repetio, o que explica a persistncia e reincidncia na especificidade da escolha do rgo ou sistema que adoece, ou se desorganiza; 5) os afectos activados no so elaborados simbolicamente (falncia da capacidade de representao) (Matos, 2005), sendo directamente transmitidos pela mente ao corpo, de forma primitiva e no verbal; 6) complementarmente, as doenas psicossomticas acabam por ganhar secundariamente benefcios significativos, como a comunicao de sofrimento e a reafirmao dos prprios limites corporais, de um corpo que se defende do sub-investimento afectivo hiper-investindo-se, ao mesmo tempo que acaba por conseguir a libertao de alguma pulsionalidade agressiva, em que o corpo atacado fisicamente ao mesmo tempo uma forma de atacar o corpo da me internalizada ()(McDougall, 1989,p.29); 7) em alguns casos, doena psicossomtica pode tambm servir de prova de que o prprio corpo est vivo, investido, defendendo-se contra a angstia ou medo da morte interna, do desaparecimento psquico e existencial, ligados a vivncias depressivas profundas ou de perda, por integrar e simbolizar (McDougall, 1989). Na tentativa de elucidar um dos mecanismos e/ou dinmicas implicadas na organizao de um fenmeno de acting (quer seja acting in, ou out), Zusman (1994) elabora o conceito de opo sgnica, e relaciona-o com o desenvolvimento de patologias psicossomticas. Sabendo que a capacidade de simbolizao um dos traos mais especficos da espcie humana, o autor afirma que 12

o pensamento animal (em estreita conexo evolutiva com os humanos) sgnico, um sentir que prepara a aco, sem existir mentalizao (Zusman, 1994). O pensamento sgnico um pensamento do corpo, no corpo, que no ganhou transformao simblica, e que se anuncia como aco motora, secretria ou visceral (Zusman, 1994, p. 159). Em contrapartida, o smbolo2 define-se pela sua capacidade de representar o objecto na sua ausncia (e.g. Zusman, 1994). O signo3 remete ao objecto a que se refere, enquanto que o smbolo remete para uma concepo do objecto. O signo denota, o smbolo conota (Zusman, 1994, p.156). O signo pelo contrrio, ao representar o objecto no dispensa a sua proximidade, sendo que o pensamento pr-verbal o pensamento sgnico e a sua caracterstica primordial estar mais prximo da aco que o pensamento simblico. (Zusman, 1994, p.160). Durante a sua evoluo a criana passa por um perodo relativamente longo em que o funcionamento psquico predominantemente sgnico, ou seja, todo o perodo que antecede a capacidade representativa de objectos inanimados (Piaget) desde o nascimento at abordagem do perodo pr-operatrio e dos primeiros objectos de amor (principais cuidadores) que culmina na organizao da constncia objectal na abordagem da fase final do processo de separaoindividuao (Mahler, 1975) (que se prolonga por toda a vida, nunca estando completamente resolvido). Tambm a capacidade de estar s (Winnicott, 1958, 2000) de forma relativamente tranquila e confiante, por parte da criana pequena, na ausncia dos seus objectos de amor, depende da possibilidade de transformao progressiva de vivncias e sentimentos mais primitivos com forte componente sgnica em smbolos, sendo o objecto transicional um facilitador deste processo evolutivo (Winnicott, 1958, 2000). Assim, se um trauma ocorrer numa fase de vida da criana em que o funcionamento simblico ainda no foi suficientemente consolidado, plausvel pensar que a memria, marca, trauma, fique guardada, reprimida, e que tome contornos sgnicos. o recalcamento primrio (Coimbra de Matos, 2003), defensivo e em funo da sobrevivncia do indivduo, diferente do recalcamento inerente organizao do pensamento simblico. Um trauma irrecordvel, mas inesquecvel.

2

No funcionamento simblico existe uma capacidade sinttica da realidade interna e externa, que tem sempre

uma base afectiva, de ligao, e por isso com significado para a pessoa que o simboliza. Subjacente ao processo simblico, est a organizao de uma capacidade de estar s salutar (Winnicott, ????), em que a vida pulsional est ligada relao real como o objecto amado e pode, na ausncia do mesmo, ser sublimada (re-utilizada) e investida na organizao e manuteno de uma representao de objecto estvel e securizante.3

Alm disso, importa diferenciar o signo do que Hanna Segal denominou de equao simblica, tpica do

processo psictico de descompensao ou funcionamento psquico, na medida em que o segundo perde na totalidade a sua qualidade representativa (Zusman, 1994).

13

Na verdade, a possibilidade de simbolizao das experincias traumticas, no uma realidade indiscutvel, e depende de mltiplos factores, por exemplo, da maturidade psico-afectiva do indivduo (Zusman, 1994), da fase de desenvolvimento que se atravessa, da fora do ego no momento do trauma, da presena de um objecto de amor securizante capaz de conter e oferecer suporte experincia, e tambm depende, em grande medida, da qualidade e intensidade da experincia traumtica a ser vivida, processada, integrada (Zusman, 1994). Neste sentido, todas as formas de acting (in e out) podem, hipoteticamente, ser concebidas como manifestaes de uma forma de pensamento sgnico encapsulado (Zusman, 1994). Aqui seria a tentativa inconsciente de re-viver formas de sentir primitivos, pr-verbais, de natureza corporal e sensorial, numa situao em que o perigo passado revivido no presente re-enactement quer tenha um fundamento na realidade (e.g. angstia persecutria face a uma situao relativamente ameaadora) ou no (e.g. quando a situao real neutra, mas sentida, intuda como ameaadora). Assim, o processo sgnico do pensamento pode esclarecer a compulso repetio dos eventos traumticos (actings sucessivos) que se manifestaram em alturas em que o pensamento simblico estava insuficientemente consolidado, ou em que a gravidade e intensidade da experincia no permitiu a sua simbolizao imediata e no momento presente, dada a necessidade de sobrevivncia. A sndrome de stress ps-traumtico tambm ganha sentido luz deste raciocnio. Os pacientes que recorrem via psicossomtica como umas das formas de expresso do seu sofrimento (isto , que tendem a processos de acting in), parecem presos ao reviver de um trauma precoce, que integra a realidade (tanto a tendncia para a concretude do pensamento como a valorizao do sentir do corpo no presente so muito marcadas), e que tambm depende de um processo sgnico de pensamento, em que se re-experiencia este sentir primitivo associado a uma experincia traumtica precoce, aqum da simbolizao4 4

(Zusman, 1994). Ainda assim, como

No infrequente na literatura psicanaltica a ligao do carcter psicossomtico com a tendncia para

organizao de sndromes psicticas reactivas durante o tratamento, sendo que este fenmeno torna-se mais claro, se notarmos a variabilidade do grau de organizao da capacidade de teste realidade neste pacientes. Quanto mais frgil esta capacidade se apresentar, mais difcil ser para o paciente sustentar a diferenciao entre este seu sentir primitivo experienciado a partir de uma via sgnica de funcionamento psquico (e sem razo concebida conscientemente) e a realidade na actualidade. A organizao de um sentimento de confiana bsica nos outros, e no psicoterapeuta especfico que acompanha este reviver pode, em nossa opinio, contribuir como factor muito significativo para a conteno e evoluo das possveis sndromes reactivas de natureza psictica. Alm disso, tambm o desenvolvimento da capacidade de se entristecer face a estas vivncias primitivas, pode funcionar como factor protector no seu re-viver ou re-enactement de natureza sgnica, facilitando ou desencadeando um processo de luto e de depresso (fsica e psicolgica) que permite e facilita o caminho para uma possvel simbolizao destas vivncias traumticas.

14

refere Zusman (1994, p.160): as manifestaes sgnicas e simblicas no se excluem. Um mesmopaciente pode apresentar ambas em suas exteriorizaes psicossomticas. Mas quando os fenmenos se polarizam pode-se perceber que o histrico tende mais para a belle indiference que o paciente sgnico, frequentemente mais angustiado, assustado com a morte a propsito dos seus sintomas.

Neste sentido, pode ento falar-se uma complementaridade entre o pensamento sgnico que recorre aco (acting) quer no corpo (in) quer no contexto relacional (out) e o pensamento simblico, face a traumas que excedem a capacidade integrativa e adaptativa do indivduo em questo, quer seja uma criana muito pequena, ou adolescentes e adultos submetidos a vivncias traumticas insuportveis e dificilmente integrveis no momento de ocorrncia do evento stressante. As patologias desencadeadas pelo processo sgnico esto associadas ao acting in de um sentir primitivo de desistncia da vida5 (Zusman, 1994). a opo sgnica de Zusman (1994), aplicada a um processo auto-destrutivo (varivel na sua intensidade e consequncias para o corpo) aqum da elaborao simblica e consciente (similar aos fenmenos de para-suicdio em algumas crianas eadolescentes). No nvel sgnico o desejo de morrer o incio de aco que encaminha o processo da morte por uma qualquer forma de adoecimento, mediante perturbaes fisiolgicas mais ou menos eficientes que afectam os processos homeostticos ou pela morte sbita. As doenas auto-imunes, por exemplo, so manifestaes efectivas de um processo sgnico auto-destrutivo. Sua instrumentao fisiolgica o sistema imunitrio. (Zusman, 1994, p.160). O dualismo cartesiano perde o seu sentido5

Apesar de tudo, a conscincia deste fenmeno alerta-nos para uma perspectiva de evoluo positiva a partir do

sofrimento e fomenta a esperana, visto que num processo psicoteraputico, plausvel presumir que um processo de transformao de sgnico em simblico se recapitule. Como refere Zusman (1994, p.163): O fenmeno emptico, (), uma manifestao de ordem muito mais sgnica do que simblica, faz parte da rea do pr-verbal (). Toda a comunicao humana comporta uma componente verbal (simblica), e uma componente sgnica (a prosdia, a melodia da voz, a linguagem corporal). Num trabalho teraputico em que se procura alcanar, de forma mais ou menos profunda, as estruturas do psiquismo, e se pretende a evoluo das relaes de objecto internalizadas (geradoras de sofrimento), acaba-se consequentemente, por facilitar e promover o contacto e fluidez entre os fenmenos inconscientes e conscientes, facilitando e amplificando as ligaes entre ambos. Neste sentido, o conceito de reverie de Bion (1967) define um aspecto da transformao sgnico/simblico que se cumpre na relao me-beb, quando a linguagem que comunica essa dupla de natureza sgnica (Zusman, 1994, p.163), e que se recupera no processo psicoteraputico. Os grupos de ajuda, para pacientes que vivem traumas semelhantes, intuem a importncia desta partilha facilitadora da simbolizao colectiva e individual dos traumas em questo, visto que a possibilidade destes indivduos se sentirem genuinamente compreendidos, por si prpria teraputica. Por fim, recordamos a importncia do psicodrama (enquanto terapia da aco) tambm parece partir consciente ou inconscientemente do pressuposto de que a aco dos conflitos atravs da representao (muitas vezes intuitiva, sem recordao consciente completa) pode facilitar o processo de luto, desinvestimento no passado traumtico, e o reinvestimento na realidade presente.

15

(e.g. Zusman, 1994), nesta concepo que encara o ser humano como bio-psico-social, em que todas as dimenses so verdadeiramente influentes e inter-dependentes. Complementarmente, na compreenso das patologias psicossomticas, Sami Ali (1999) desenvolve a noo de super-ego corporal (que castiga e pune o corpo, tal como o super-ego faria atravs da moral e do sentimento de culpa) que assume uma relevncia especial na compreenso do funcionamento psicossomtico. Aqui o que norma social, cultural e familiar incorporado acriticamente (por receio da perda do objecto e do seu amor), abafando a individualidade, forando um estereotipar do carcter, com colagem s regras aprendidas com receio da perda do amor do objecto. O ser confunde-se com o dever ser (Sami Ali, p. 32). Narcisismo, indiferenciao, ser,dever ser, ideal do eu, super-eu, super-eu corporal, so aspectos que ajudam a caracterizar a vulnerabilidade psicossomtica. () (Stisman, 1999, p. 322). Curiosamente, a doena somtica acaba

por ser uma forma de desamparo socialmente aceitvel, o que acaba por fundamentar a noo de superego corporal, na medida em que se rene a acomodao com as normas sociais com um tipo de sofrimento que permite a vivncia de dependncia e abatimento recusadas na relao de objecto tpica do funcionamento psicossomtico. Contrariamente grande maioria da literatura psicanaltica (particularmente Escola Psicossomtica de Paris e Chicago) sobre o funcionamento psicossomtico, Sami-Ali (1999) opese noo de carncia de vida fantasmtica por inorganizao da vida psquica nestes pacientes, salientando o papel da estrutura psicossomtica enquanto organizao defensiva, face a afectos imaturos, de natureza primitiva, mas extremamente ricos e presentes caso a carapaa defensiva se deixe perfurar. Afirma que o ponto nodal da organizao da patologia psicossomtica um tipo diferente de recalcamento, de natureza patolgica e defensiva, o recalcamento da funo do imaginrio numa tentativa de conteno e desmembramento da vida pulsional, recusada psiquicamente, porque desorganizada, incoerente, por metabolizar. No ser tanto uma questo de deficincia da vida fantasmtica quando se fala do pensamento operatrio descrito pela Escola Psicossomtica de Paris, mas sim uma defesa severa e rgida contra a mesma, dada a sua natureza rica, mas violenta, assustadora, primitiva, e geradora de angstias arcaicas (psicticas muitas vezes) pouco elaboradas e simbolizadas (Vidigal, 2004). Neste sentido, tambm Coimbra de Matos (2003) se distancia da concepo da Escola Psicossomtica de Paris, defendendo que o vazio fantasmtico e representacional se restringe zona da falha, da clivagem somato-psiquica (que poder ter maior ou menor extenso, resultando na maior ou menor pobreza simblica do pensamento), uma rea branca no esprito (Coimbra de Matos, 2003) que serve de combustvel de cada vez que o desejo (alimentado pela vida pulsional) se transforma em tenso descarregada em acting in, por desligamento da respectiva representao. Uma clivagem patolgica da personalidade que permite a evoluo (fragilizada) ao longo do 16

desenvolvimento psico-afectivo, em que uma parte extremamente infantil e primitiva do self (a criana por cuidar e amar empaticamente) acaba por ser vivida exclusivamente custa de uma relao com o corpo, como se grande parte do funcionamento primrio do pensamento passasse a ser expresso na relao com o corpo, sem aceder conscincia. Assim, com este esforo de gesto atravs do corpo da parte mais primitiva da personalidade (o sonho, a fantasia, no fundo, a parte infantil da personalidade que defensivamente congelada) consegue-se custa da perda da autenticidade do self e do sentimento de identidade psquica e fsica, uma hiper-adaptao realidade patognica, atravs da organizao de um funcionamento em falso self defensivo, alexitmico e operatrio. Com os sintomas somticos, o paciente psicossomtico parece fazer uma escolha. Destri-se para preservar a relao de objecto, e proteger o objecto da vida pulsional, sentida como ameaadora e incontrolvel. Alm disso, como refere McDougall (1989) Apercebi-me da necessidade inconsciente, num nmero significativo de pacientes, de preservar estas patologias, no s como forma de re-assegurar os prprios limites corporais mas tambm como prova da sua sobrevivncia psquica (McDougall, 1989,p.21) Uma retirada que lembra o salto do autista para dentro de si, sendo que a diferena parece-nos ser que a retirada afectiva do psicossomtico, se faz ao servio da manuteno e proteco da relao de objecto e dos prprios objectos quer reais quer internos. Kutter (2001) defende que esta retirada relacional paradoxal (ter uma relao sem estar em relao) o principal organizador patognomnico do sintoma psicossomtico, que resulta numa sobrecarga do investimento pulsional na representao do corpo, descarregada em acting. O sensorial e o corpo, sujeitos a um hiperinvestimento libidinal e agressiva. Mas a retirada sempre bidireccional, interaccional, relacional. Na relao primria houve falta de objecto disponvel e contentor da vida pulsional do beb. a falncia da funo de objectalizao das pulses (agressivas e libidinais) por parte do objecto primrio (Matos, 2005), o que contribui para a desconexo da vida pulsional e para a pobreza relacional e psquica repetitiva e patognica para o self e para os outros. O psicossomtico deforma o self hiper-adaptando-se a uma realidade em que nos parece que a prpria questo da confiana bsica no objecto questionada. H contudo o desejo (ligada sobrevivncia fsica e psquica) de preservar a relao, um tipo de dependncia na sua componente mais fsica, concreta, sensorial. Est inerente um problema de individuao, na medida em que dificilmente h o espao, a distncia, a ausncia que pensamento e representao. No psicossomtico o nada, a ressonncia do corpo. No existindo espao para a autonomia, temos o esforo de hiper-adaptao. Mas tudo tem um custo e o corpo que paga como diz Antnio Variaes. O corpo permanece autntico, e no deixa o self esquecer o sofrimento.

17

18

3. A Psicossomtica na Criana3.1. Teoria Psicodinmica: dimenses especficas na compreenso da psicossomtica da criana 3.1.1. A Relao primriaSperling (1955) defende que o padro psicossomtico de resposta resulta de um tipo especfico de conflito entre os impulsos libidinais e agressivos, revelando por isso, dificuldades na gesto da ambivalncia, e estando relacionado com um padro tambm especfico de interaco na relao me-filho. () A criana muito pequena possui apenas um psiquismo embrionrio, automaticamente uma psicossomtica, dada a sua incapacidade evidente de integrar psicologicamente os estados de tenso a que pode ser sujeita. () A insuficincia psquica do beb compensada pela intuio da me. A unidade psicossomtica compreende a me, depositria de funes ainda no adquiridas pela criana quer sejam psicolgicas ou somticas (Kreisler, Fain, & Soul, 1981, p. 33).

A me serve de sistema de pra-excitaes criana na sua relao consigo prpria e com o mundo exterior, permitindo a aquisio de um sentimento de segurana e confiana bsica, que contribui para a internalizao de um amor primrio suficientemente securizante. Este lado afectivo, contentor, e de envolvimento simbitico primitivo complementa, o lado da relao me-beb que implica os cuidados funcionais e socialmente aceites, sendo que na patologia psicossomtica, esta competncia materna, muitas vezes, encontra-se sub-desenvolvida (Kreisler, Fain, & Soul, 1981). A compensao auto-ertica uma das respostas mais frequentes na criana sujeita a uma carncia parcial deste tipo, o que resulta numa hiper-sensibilidade excitao de certas zonas do corpo, que atravs da sua estimulao por parte da criana, conseguem ver-se satisfeitas, fora da relao de objecto, atravs de um comportamento auto-ertico compensatrio (Kreisler, Fain, & Soul, 1981). importante referir contudo, que o desenvolvimento de mecanismos auto-erticos compensatrios tambm pode ser extremamente adaptativo quer na patologia da criana ou na sua ausncia (Kreisler, Fain, & Soul, 1981). Na patologia, o componente patognico da autoestimulao relaciona-se com uma estratgia de retirada relacional paradoxal (estar em relao sem se relacionar), constituindo muitas vezes uma defesa anti-depressiva, que em vez de estar ao servio da relao, acaba por substituir o objecto de forma defensiva na satisfao dessa necessidade. A me da criana psicossomtica acaba inconscientemente por reforar a dependncia da criana, por lhe ser mais simples (dadas as vicissitudes da sua prpria histria de vida) ser afectuosa, disponvel, atenciosa, quando esta adoece (Sperling, 1955). A criana com medo da perda do amor do objecto (e do prprio objecto) submete-se de forma mais ou menos inconsciente a esta necessidade materna de cuidar, de se sentir til e indispensvel para algum (frequentemente camuflando a sua prpria tristeza). A criana acaba por inconscientemente receber a mensagem de que consegue mais afecto, e uma melhor qualidade na relao com o objecto primrio atravs do 19

adoecer ou da desorganizao somtica (adoecer depressivo), em comparao com o estado de sade em que est mais independente e autnoma da me6 (Sperling, 1955). A prtica clnica demonstra a importncia de no negligenciar o valor protector do sintoma organizado no contexto da famlia de uma criana com patologia psicossomtica, visto que no invulgar que, com a melhoria do paciente identificado (o que foi escolhido inconscientemente paramanifestar o sofrimento do sistema familiar, alm do seu prprio sofrimento), se verifique que outro

elemento do sistema comear a deprimir ou tambm ele prprio a adoecer, ou pelo contrrio, que uma atitude de sabotagem inconsciente se desenvolva (caso os pais se sintam excludos do processo), algo que dever do psiclogo assegurar na sua importante relao com a famlia da criana no trabalho psicoteraputico (Meissner, 1977). uma forma de proteco de uma fragilidade emocional pressentida por parte da criana em relao me (quase ocupando/substituindo-se mesma nessaposio, e oferecendo a oportunidade me de cuidar e se sentir maternal, til e cuidadora na relao com o filho), organizando-se uma situao (a de estar doente e precisar dos cuidados maternos) em

que as demonstraes de afecto e cuidados so socialmente esperadas, e facilmente conseguidas. Um afecto que a criana sente que precisa. No fundo, o sintoma tambm responde a este sentimento de carncia afectiva, em que estar doente, significa estabelecer ou re-estabelecer as condies para asatisfao imediata dessas necessidades, enquanto ao mesmo tempo as pulses destrutivas conseguem uma forma de se libertarem atravs dos sintomas corporais sem acederem conscincia (Sperling, 1955, p. 322). Na diversidade da patologia psicossomtica, este um padro relativamente

constante, apesar das variaes em termos da gravidade e intensidade da problemtica (Sperling, 1955). Complementarmente, McDougall (1974, p.447) defende que existem dois traospredominantes na relao me-beb que tende a criar uma predisposio para a patologia psicossomtica. O primeiro normalmente uma proibio das tentativas do beb em desenvolver substitutos auto-erticos da relao materna, iniciando-se assim, o ponto nodal para a criao de uma representao do objecto e os elementos nascentes da fantasia e imaginao. O segundo trao a anttese disto, nomeadamente, um comportamento contnuo de oferta da me como nico objecto de satisfao e de viabilidade psquica. A autora faz uma distino muito relevante em relao aos

cuidados maternos proporcionados, entre a me satisfatria, ou a me suficientemente boa de Winnicott (1958, 2000) e a me calmante, sendo que neste caso, a prpria me por vicissitudes ao nvel do seu prprio desenvolvimento e histria de vida tem mais dificuldade em permitir criana6

No infrequente a presena de uma rejeio activa por parte da me do estado de doena da criana quando

aferida conscientemente, contudo depois da recuperao da criana, acaba por ser a prpria me que comea a evidenciar sinais de sofrimento psicolgico e/ou fsico, que a criana de alguma forma conseguia intuir, o que elucida a natureza inter-relacional do sintoma psicossomtico.

20

organizar a sua capacidade de auto-controlo e de conteno da sua prpria angstia. A me suficientemente boa descrita por Winnicott, d espao criana para errar, e at para se magoar sustentando a explorao do mundo, entendendo a sua posio de espectadora (interveniente apenas se necessrio) atenta e disponvel na vida do seu filho, orgulhando-se genuinamente da sua autonomia, e reforando as suas capacidades de auto-tranquilizao e independncia. A integrao da vida psquica e a edificao da representao mental conseguem-se a partir das ausncias que so presenas, que so pensamento, isto , que representao do objecto ausente fisicamente, mas to marcante na vida afectiva que se torna presente na vida psquica apesar da ausncia. A organizao da capacidade de estar s (Winnicott, 1958, 2000) depende desta aquisio que parece empobrecida na criana com tendncia de expresso do sofrimento por via somtica, sendo que a ausncia do objecto de amor sentida como corte, deixando vazios sucessivos, em que a substituio do objecto pode ser uma estratgia importante no preenchimento do vazio emocional. Na relao simbitica me-beb tpica uma unidade self-objecto em que a me e a criana servem uma funo regulatria mtua (Wolf, citado por Taylor, 1992). A me desenvolve e aperfeioa a sua capacidade de reconhecimento dos percursores afectivos atempadamente, isto , sem que a criana se sinta dominada por esses afectos por integrar e diferenciar. Esta capacidade emptica da me indispensvel neste processo, dado que a criana por si mesma no possui essa capacidade (Krystal, 1978). A responsividade do objecto constitui um primeiro dilogo: alinguagem da criana essencialmente sensorial, emocional, tnico-postural em que o corpo, ainda sem organizao psquica de conjunto, utilizado para exprimir a vida psquica rudimentar em devir, () A me serve ser o primeiro objecto pensante da criana. Se no houver responsividade emptica e afectiva do objecto que garanta o dilogo sintnico, os elementos sensoriais, emocionais e tnico-posturais podem ficar desligados entre si, e constituir-se como elementos estranhos que no acedem condio pensante (Matos, 2005, p.188).

Esta capacidade transformadora da relao me-beb exerce uma funo vital na vida afectiva da criana, particularmente, em dois aspectos da sua personalidade: 1) a capacidade de diferenciao e integrao dos afectos no sentido da sua progressiva des-somatizao e simbolizao, possibilitando o acesso expresso verbal (Krystal, 1978); 2) a continuao da relao simbitica sem uma disrupo traumtica promove a atribuio das competncias de autocuidado e funes afectivas representao do prprio self (Krystal, 1978, p. 243). O processo de internalizao, e da maturao da capacidade auto-regulatria (biolgica e afectiva), facilitado pela utilizao do objecto transicional (Winnicott, 1958, 2000), um apoio concreto para a organizao da constncia objectal (Mahler, 1975). Contudo, inicialmente os objectos substitutivos antes de fazerem a transio entre fantasia e realidade, proximidade e distncia, fsico e psiquismo simblico, funcionam como geradores de sensaes e que relembram o 21

contacto inicial e simbitico com a me (Gaddini, citado por Taylor, 1992). Estas experincias sensoriais podero funcionar como organizadores mais primitivos dos percursores afectivos numa fase de desenvolvimento em que a funo simblica e a capacidade de representao esto em devir. Apesar desta dependncia extrema da funo regulatria do equilbrio psico-fisiolgico da criana ser progressivamente internalizada e por isso, menos dependente do objecto, este processo permanece incompleto ao longo da vida (Taylor, 1992). Se um trauma ocorrer nesta fase, ou pelo contrrio uma acumulao de micro-traumas que excedem a capacidade adaptativa do beb, plausvel presumir uma fixao ou marca regressiva se organize, predispondo a criana a um funcionamento em que o domnio sensorial hiper-investido, a expresso da vida pulsional e do sofrimento preferencialmente somtica, e a regulao psicofisiolgica depende excessivamente do objecto relacional. Inerente complexidade psicolgica, emergente ao longo do desenvolvimento da criana, est subjacente a todo o funcionamento fisiolgico que lhe serve de sustentao, sendo que o caminho passa pela indiferenciao somato-psiquica total at uma progressiva diferenciao com organizao de um psiquismo relativamente individualizado (Kreisler, Fain, & Soul, 1981). A dade me-beb o principal suporte desta diferenciao, sendo que um aspecto muito relevante na compreenso do ajuste na relao me-criana, a conscincia da diferena das estruturas psquicas de ambos os elementos da dade, e a importncia da capacidade regressiva e de simbolizao da me facilitando o encontro afectivo e comunicao sangena na relao primria. Se este encontro fracassa, ento o beb, por falncia do continente materno (aparelho psquico da me), no desenvolve a capacidade de intropatia (leitura dos prprios afectos e interaces), abortando o seu desenvolvimento emocional, fantasmtico e simblico. A capacidade de reconhecimento do outro, do diferente e estranho, fica, ela tambm, embotada (Coimbra de Matos, 2003). Golse (2007) fala da importncia da sintonia afectiva e da transmodalidade na relao mebeb, enfatizando a capacidade do beb para transferir as aprendizagens realizadas segundo uma modalidade sensorial para outra, sendo atravs desta capacidade que o beb desenvolve e aperfeioa, na relao com a me, as representaes de interaces generalizadas (Stern, citado por Golse, 2007). A me na relao com o seu beb poder dar respostas predominantemente unimodais, ou transmodais, isto introduzindo ou no outras modalidades sensoriais, na interaco iniciada com a criana. Esta capacidade especfica da dade me-beb, prepara a criana para a integrao da sensorialidade, e para a conscincia da distino progressiva entre self sensao interna/externa ambiente envolvente eu/no-eu; uma aquisio fundamental que sustenta a organizao da representaes, tanto de objectos inanimados, como dos objectos de amor. Golse (2007, p.67-68) defende a presena de 3 nveis possveis na caracterizao da ligao me-beb, que se interpenetram e influenciam mutuamente: o primeiro, o estabelecimento da 22

vinculao, que remete para a questo dos invlucros e de uma pele comum me e a filho; o segundo, os laos primitivos binrios e didicos em que a sintonia afectiva seria o mecanismo central da constituio das interaces afectivas e fantasmticas; e o terceiro nvel, o da relao propriamente dita, na sua componente estrutural e estruturante, base da interiorizao do objecto e da relao de objecto, predominantemente inconsciente, onde a pedra de toque a passagem do psiquismo edificado com base no funcionamento dual para um psiquismo baseado no funcionamento triangular. Bowlby (citado por Golse, 2007) defende a possibilidade de organizao de uma vinculao negativa, em que a vinculao se aliaria s pulses de auto-destruio em vez de s pulses de auto-conservao, o que me parece relevante para a compreenso do funcionamento psicossomtico na criana e no adulto. A frustrao precoce (tpica da depresso essencial ou falhada j descritas) numa fase em que ainda se define o significado da experincia de amar, de se vincular, e que acaba por ter um impacto importante na estruturao da relao de objecto interna tpica do funcionamento psicossomtico. Complementarmente, na caracterizao da perspectiva do beb na relao primria, Golse (2007) defende que existem 3 grandes dimenses a considerar neste encontro relacional entre mefilho. A primeira relaciona-se com o conflito esttico proposto por Meltzler (citado por Golse, 2007), ou seja, o deslumbramento estruturador da capacidade de tirar prazer, primeiro com os objectos de amor, e posteriormente com o mundo (tendo os cuidadores como principais facilitadores deste processo). Este deslumbramento o prottipo de todas as emoes estticas. Este conflito crucial na passagem do nvel relacional em que predomina a vinculao para o nvel relacional que implica uma evoluo para a intersubjectividade, na primeira joga-se superfcie do objecto,enquanto a segunda implica o interior do objecto, e esta diferena evidentemente, crucial quanto ao processo de acesso intersubjectividade e instaurao da subjectivao da decorrente (Golse, 2007, p.98). A criana psicossomtica no descobriu a beleza e a paixo pela vida no olhar e interioridade

maternos. E esta interioridade que a criana aprende e encontra. Temos ento uma criana, triste sem saber porqu, e sem capacidade para reconhecer que esta triste. Uma tristeza que no consegue ser pensada, nem pela me nem pela criana, e que substitui o olhar apaixonado e deslumbrado pelo mundo. Uma tristeza que os liga (me e filho), os vincula e os faz sofrer somaticamente. A segunda dimenso relaciona-se com a importncia do equilbrio entre o semelhante e o no semelhante, o previsvel e o imprevisvel, a capacidade de organizao de expectativas seguras e a introduo da criatividade e da novidade na relao me-beb potenciadora de um bom desenvolvimento psico-afectivo, visto que se a me demasiado diferente do que habitual, a distncia intolervel para o beb (Golse, 2007, p.99). Por fim, a terceira dimenso a construo do lugar/espao do terceiro que ser o prottipo do lugar ocupado pela figura paterna no acesso triangulao. A organizao deste espao passa 23

pela capacidade da me para construir, no seu mundo afectivo, o lugar do outro objecto de amor (Golse, 2007), o lugar do homem amado que tambm pai (aquisio fundamental e benfica para o desenvolvimento psico-afectivo do beb), e, consequentemente pela sua capacidade de manuteno de um estilo relacional maduro, genitalizado (reclamando a sua identidade enquanto mulher na relao com o companheiro, e no se esgotando no papel de me), apesar da exigncia regressiva nos cuidados com o filho. A falncia na construo deste espao/lugar para o terceiro, para o desconhecido, para o nem-eu-nem-ela (prottipo da organizao da angstia ao estranho no beb) contribui para falncias na diferenciao do self em relao me ( a relao predominantemente simbitica, sem espao para a diferena, e para a individuao dos elementos da dade me-filho). Assim, quando a me est cansada, ansiosa ou deprimida, por exemplo, o beb vai verificar que o seu estilo interactivo diferente do habitual. O desconhecido reside ento na prpria me, e estamos portanto na presena, parece-nos, do germe de triangulaes precoces, nalguns casos patolgicos. (o itlico nosso) (Golse, 2007, p.167). A capacidade do beb se deprimir e vivenciar o sofrimento atravs da aco, da representao e do pensamento implica o acesso intersubjectividade. Na patologia psicossomtica o papel das carncias qualitativas na relao me-beb tem sido sistematicamente evidenciado, em que o objecto primrio esta presente e assegura os cuidados funcionais, mas no se envolve psquica e afectivamente com a criana, fracassando a experincia de holding materno que fica insuficientemente interiorizada. Est em questo uma perturbao da organizao da intersubjectividade, que remete para o processo de diferenciao extra-psquica que permite a cadaindivduo viver-se como separado do outro, ao mesmo tempo que se sente o outro como um indivduo capaz de viver como um sujeito distinto. (Golse, 2007, p.203). a j mencionada relao branca, o estar na relao sem se relacionar.

A organizao do pensamento simblico um componente fulcral do sistema de paraexcitao egico, um aparelho de pensar pensamentos (Bion, citado por Mazet, & Houzel, 1994) que lhe emprestado pelo objecto de amor primrio e que progressivamente interiorizado pela criana (Golse, 2007). tambm uma forma de assegurar a continuidade do sentimento de existir (Golse, 2007), uma ressonncia psquica preenchedora, e que parece estar insuficientemente organizada nas crianas com tendncia expresso somtica do sofrimento e da vida pulsional. Complementarmente, importa referir que a criana em virtude da sua neurofisiologia, est em contacto directo com o inconsciente da sua me (Kreisler, Fain, & Soul, 1981, p.28), e isso que ele guarda como principal organizador da sua personalidade em devir, num processo interaccional, a partir da relao me-filho nica e irrepetvel, que culmina na constituio e organizao do seu prprio funcionamento psquico inconsciente. Um inconsciente partilhado, porque toda a vida psquica mesmo a mais precoce implica uma relao, partilha, ligao. A vivncia totalmente 24

diferente se a me tiver de controlar as suas sensaes, reprimi-las, inibi-las e, por conseguinte, frustrar seriamente o seu beb, mesmo quando tenta compensar essa carncia fundamental mediante uma superabundncia de cuidados nos domnios conscientes que a tranquilizem (). Tambm se compreende o valor gravemente desorganizador que os sinais contraditrios adquirem. A inconsistncia dos sinais maternos, ou a sua incoerncia, uma das causas de transmisso de desordens criana (Kreisler, Fain, & Soul, 1981, p.28).

O lado inconsciente da relao me-beb o que pela sua natureza mais foge ao controlo da me. Spitz (citado por Kreisler, Fain, & Soul, 1981) defende que o perodo de gravidez oferece o tempo e as condies para a me desenvolver a sua capacidade regressiva, relacionada com a conscincia dos aspectos mais primitivos e primordiais na relao com o seu filho. a preocupao primria materna descrita por Winnicott (1958, 2000), que implica um processo de sucessivas identificaes regressivas que colocam o adulto em contacto ou em ligao com as suas prprias partes infantis, lhe permitem entrar em relao emocional profunda com o beb (Golse, 2007). Este lado maioritariamente inconsciente, sensorial, cinestsico organiza grande parte do que a criana compreende na relao com o objecto primrio. Neste lado inconsciente, est a histria da mulher que um dia foi criana e que agora se torna me, com todos os dissabores e alegrias implicados. Na patologia psicossomtica, a importncia da comunicao inconsciente na relao me-criana, e da maior ou menor capacidade de integrao, quer do lado afectuoso, quer do lado agressivo na relao com a criana, sem o esvaziar defensivo do seu contedo afectivo e primitivo (muitas vezes super-compensando nos cuidados funcionais assegurados) tambm bastante significativa. Na grande maioria da literatura clnica, a me julgada injustamente por algo que muitas vezes so marcas do seu prprio sofrimento, e que em grande medida fogem completamente ao seu controlo consciente (Kreisler, Fain, & Soul, 1981). As diferenas individuais dos objectos de amor da criana, em relao sua capacidade emptica e de envolvimento em afectos que requerem o contacto com um lado extremamente primitivo da personalidade, tm um impacto muito significativo na relao com as crianas (e na estruturao da sua identidade e personalidade). Contudo, tendo como meta a sade e bem-estar psicolgico de todos, grave o erro dos tcnicos de sade mental que punem ou culpabilizam as famlias (todos temos histria, fragilidades, e recursos) que muitas vezes, apelam pelo seu auxlio, de forma extraordinariamente espontnea. Outra tarefa fundamental da me enquanto objecto de amor primrio investir libidinalmente o corpo do seu filho na sua totalidade (Kreisler, Fain, & Soul, 1981, p.420). Um investimento fundamental e que sustentculo da auto-estima na sua componente mais primitiva. Na ausncia desse investimento, a criana tentar com todos os recursos que possui compens-la, tentando atravs das mais diversas formas de auto-erotismo, auto-investir o seu prprio corpo. 25

Contudo, este funcionamento omnipotente (que requer um gasto de energia excessivo), acaba por forar a criana, a um funcionamento defensivo mais fechado relao, e que acaba indirectamente por perpetuar a carncia original, diminuindo a probabilidade de a criana encontrar essa satisfao entre outras relaes afectivas alternativas (Kreisler, Fain, & Soul, 1981). Na histria de vida de pacientes psicossomticos, muitas vezes, encontram-se referncias de uma necessidade da criana se auto-proteger a partir de vrios mecanismos face estimulao excessiva ou empobrecida na relao com os cuidadores primrios, marcada por uma dificuldade de leitura dos sinais e significados das intenes e afectos das crianas (capacidade emptica), que resulta numa acumulao afectos relacionados com a frustrao e agressividade que dificilmente tem o espao para serem expressos ou pensados, na relao real com a famlia e no espao psquico que os seus elementos dispem criana (McDougall, 1989). Segundo Bowen (citado por Meissner, 1977), no sistema familiar psicossomtico, o corpo de um dos elementos da famlia concebido inconscientemente como estando em ligao recproca com o psiquismo de outro elemento familiar, sendo que a disfuno psicossomtica torna-se um dosmecanismos a que recorrem as personalidades menos maduras na tentativa de controlar a intensidade emocional inerente proximidade excessiva (simbitica) (Meissner, 1977, p.109). A organizao do

sintoma psicossomtico acaba por contribuir para a coeso familiar, apesar de se basearem no mitigarda expresso dos afectos particularmente os negativos (). Parece existir um nvel afectivo de interaco que est subjacente a um mito familiar de que a sobrevivncia psicolgica da famlia requer a represso dos impulsos agressivos (Meissner, 1977, p.108).

Por fim, no sentido de compreender o porqu desta hiper-adaptao por parte da criana a um estilo relacional que induz sofrimento psquico e fsico, fundamental salientar a importncia vital da presena da me, dos seus cuidados funcionais e afectivos, que tem reflexo no grau do esforo que estas crianas demonstram, custa de deformaes patolgicas do seu desenvolvimento psicoafectivo, para no correrem risco de a perder. Perder a me arriscar a vida, uma ameaa sobrevivncia, sendo que no funcionamento psicossomtico parece patente a conscincia dessa realidade, agindo-se no corpo esta mesma ameaa sobrevivncia (casos mais graves) ou ao bemestar bio-psico-social (casos menos graves), preservando, custa disso, a relao indispensvel com o objecto primrio (McDougall, 1989).

3.1.2. A construo do sentimento de continuidade do self e a patologia psicossomticaPartindo da metfora da fortaleza vazia utilizada por Bruno Bettelheim para caracterizar o autismo, podemos defender que na representao da patologia psicossomtica existem quartos vazios na fortaleza. Segundo Rosenfeld (citado por Vidigal, 2004), no funcionamento psicossomtico e na patologia do acting toxicodependente esto envolvidos ncleos autsticos 26

encapsulados, ou o que Vidigal (2004) denominou de bolsas autsticas matizando uma estrutura da personalidade pr-depressiva, em que se verifica uma regresso parcial (pois no desorganiza todo o funcionamento psquico) e encapsulada, qual est inerente um tipo de relao predominantemente sensorial com o mundo. Segundo Rosenfeld (citado por Vidigal, 2004), os pacientes psicossomticos utilizariam o sofrimento fsico de forma a gerar sensaes corporais autsticas geradas no e pelo seu prprio corpo (excluindo o objecto desta funo), recreando a iluso de um corpo para dois (McDougall, 1989), fantasma simbitico vivido no corpo, e evitando angstias de morte e de despersonalizao ligadas a uma conscincia precoce e traumtica da separao entre self e objecto. A perda do sentimento de existir psiquicamente, acaba por ser o custo inerente fixao a este fantasma patolgico, em que a sensao do corpo em sofrimento substitui, de alguma forma, uma sensao de existncia e continuidade identitria. Encontra-se uma dinmica semelhante em alguns casos de compulso para a passagem ao acto sexual e comportamentos de auto-mutilao, em que so as sensaes corporais mais primitivas permitem mergulhar na sensorialidade e sensualidade autistas, para ter o sentimento de existir, e deste modo colmatar a angstia de morte () (Vidigal, 2004,p.51)

Os pacientes psicossomticos possuem uma parte do seu funcionamento a viver num mundo bi-dimensional, utilizando a identificao adesiva como modalidade de defesa, atravs da qual procuram colar-se superfcie do objecto, numa identificao profunda e sem limites, numa confuso self/objecto, do qual no se percebe a profundidade () H um hiper-investimento deste objecto, () ao contrrio do que acontece no processo autstico (Vidigal, 2004, p.53).

27

Este funcionamento lembra o que Ogden (1989) denominou de posio autstica-contgua7 [estdio normal no desenvolvimento psico-afectivo, anterior posio esquizo-paranide e posio depressiva descritas por Melanie Klein, citada por Segal (1975)], em que o domnio da sensao fonte de constncia, segurana, e da conscincia de se sentir existir. A aquisio fundamental nesta posio autstica contgua a constituio de um pano de fundo sensorial que crie um sentimento existencial mais ou menos seguro primeiro predominantemente corporal, que mais tarde sirva de pano de fundo edificao da existncia psquica (Ogden, 1989). Como que uma criana desenvolve uma representao do seu prprio corpo e se torna consciente dos seus limites? E que consequncias se podem esperar se este desenvolvimento psquico e afectivo no ocorrer com suficiente congruncia e preciso? A vida psquica comea com uma experincia de fuso, conduzindo fantasia de que existe apenas um corpo e uma mente para duas pessoas, que so uma unidade indivisvel. (McDougall, 1989, p.32). Este sentimento de omnipotncia, ou de iluso de indiferenciao fundamental na construo dos ncleos mais primitivos da personalidade8 (McDougall, 1989). Com a manuteno patolgica deste universo fusional, perde-se a identidade pessoal, o que equivalente anulao do espao (psquico, afectivo e relacional) de um dos elementos da dade (McDougall, 1989). A fantasia inerente diade me-beb, um corpo para dois (oneness) tem o seu exponente mximo na vida uterina, em que o prolongamento dessa experincia como estado de desejo desempenha um papel fundamental na vida psquica do recm-nascido (McDougall, 1989, p.33), sendo que quando a relao me-criana suficientemente boa, desenvolve-se uma7

A angstia tpica desta posio extremamente primitiva do desenvolvimento, a angstia de desintegrao, ou

desmantelamento que se traduz numa experincia subjectiva de disrupo massiva da coeso sensorial e sentimento de inter-ligao entre modalidades sensoriais e experincias subjectivas (Ogden, 1989). Os mecanismos defensivos que se organizam face a esta angstia so direccionados para o restabelecimento ou aquisio de um sentimento subjectivo de superfcie sensorial conectada e restituio dos padres rtmicos e contnuos (exemplo, todo o tipo de actividades musculares rtmicas) dos quais a integridade do self depende (Ogden, 1989), e que consistem na organizao repetida de formas autsticas (Tustin, citada por Ogden, 1989, p.128) calmantes porque permitem readquirir um sentimento de se existir, uma existncia corporal integrada. As formas autsticas reduzem a realidade complexa s sensaes que o contacto pele-a-pele com o objecto proporciona (potenciam a diferenciao e desenvolvimento da percepo), por exemplo uma cadeira, no existe enquanto cadeira, existe mediante as sensaes fsicas que evoca quando algum se senta nela. Anulam indirectamente a diferena entre self, objecto e sensaes que este objecto provoca (Odgen, 1989). Assim, um carro de bombeiros duro para uma criana que se encontre fixada ou regredida a este estado psquico (como o caso do autismo), existe e compreendido mediante as sensaes corporais, o toque, cheiro, sabor, que face sentir, uma experincia que visa a reaquisio e re-confirmao dos limites corporais do prprio self e do seu componente intra-psquico.

Pode pensar que a criana vacila entre um desejo de fuso com o corpo da me e um desejo de independncia completa (McDougall, 1989, p.54).

8

28

diferenciao progressiva do sentimento de conscincia psquica da criana a partir da matriz psicossomtica inicial, e uma diferenciao entre o seu prprio corpo e a primeira representao do mundo externo que o corpo da me (McDougall, 1989, p.33). No funcionamento psicossomtico, a iluso um corpo para dois representa um pressuposto relacional em que o amor conduz morte psquica, isto , perda no s das barreiras mentais contra a intruso dos outros mas tambm dos meus limites corporais () (McDougall, 1989, p.37). A realidade da separao e da diferenciao inter e intra-psquica em relao aos objectos de amor uma realidade incontestvel que a criana aprende progressivamente a integrar. Apesar disso, quando a separao e a diferenciao no so experienciadas como aquisies psquicas que enriquecem e do significado vida instintiva, elas passam a ser temidas como realidades que ameaam e diminuem a auto-imagem ou esvaziam o indivduo do que parece ser vital para a sobrevivncia psquica, nomeadamente a iluso de unidade fusional com a imagem arcaica materna da infncia (McDougall, 1989, p.41) McDougall (1989) defende que na patologia psicossomtica, a funo de para-excitaes na relao primria ficou de algum modo comprometida, ou pelo contrrio, a criana poder ter sofrido uma sub-estimulao traumtica precoce, sendo que estas dificuldades perturbam a capacidade da criana em constituir uma representao de si separada da do objecto de amor primrio. Isto poder conduzir organizao de uma representao corporal arcaica, em que os limites corporais, o investimento das zonas ergenas, e a distino entre o corpo da me e o corpo da criana permanece confusa (McDougall, 1989, p.42). De forma bastante pertinente, McDougall (1989) associa a patologia autstica e a patologia psicossomtica, entendendo-as como reaces extremas (com gravidade extrema no autismo) ao pavor em relao separao e diferenciao, sentidas traumaticamente como experincias demasiado bruscas e precoces, que no conseguiram ser integradas e assimiladas na estruturao da personalidade da criana. Em relao a estas duas formas de reaco da criana pequena a um traumatismo (a retirada autstica e a reaco psicossomtica), McDougall (1989, p.43) refere aprimeira conduz patologia autstica, em que o corpo e o funcionamento psicossomtico frequentemente permanecem intactos sendo que a mente se fecha ao mundo exterior; a segunda mantm a relao com a realidade externa intacta, com o risco de que o corpo comece a agir de forma autstica, isto , desligando-se das mensagens afectivas psquicas .

Do pavor da separao sentida como corte (sem ligao psquica que o preencha) pode resultar uma tentativa de organizao precoce de uma pseudo-autonomia em falso self (McDougall, 1989). A criana tem uma necessidade vital de manter a iluso de unicidade com a figura materna(), esta iluso de fuso que permite criana pequena adormecer, digerir o seu alimento, e eliminar os produtos excretrios. () A negao de certas partes corporais ou funes, tal como a excluso dos

29

afectos e dos pensamentos baseados nos afectos, organizada pela criana pequena no sentido de prevenir a destruio da ligao indissolvel me-beb (McDougall, 1989, p.47).

Para McDougall (1989) existe um tipo de funcionamento psquico que predispe o indivduo regresso psicofisiolgica como forma de gesto de cargas afectivas intensas, em que o imago materno se organizou de forma clivada, com um plo que agrupa os aspectos bons e idealizados da relao me-beb, uma representao do objecto materno omnipotente, onde prevalece a unicidade dos corpos da me e da criana, e um outro plo, com um carcter persecutrio e ameaador porque simultaneamente frio e rejeitante, matizada de pavor e de desejo muito de diferenciao e de autonomia, por parte da criana. O imago paterno tende por seu lado a ser podre e desinvestido. Toda esta configurao intra-psquica contribui para o desenvolvimento, na criana com tendncias psicossomticas, de um sentimento de identidade subjectivo perturbado com uma falta de distino entre self e objecto concomitante. (McDougall, 1989, p.58). A mente impelida para utilizar de forma regressiva formas de expresso corpo-mente arcaicas e pr-verbais. () Assim, apenas a raiz psicofisiolgica do afecto descarregada. A mente fez o que pode sem o acesso palavra (McDougall, 1989, p.66). Em sntese importante salientar, o papel da iluso inconsciente de um corpo para dois, que nos pacientes psicossomticos se organiza de modo insuficiente, resultando numa insegurana fsica e psquica do sentimento de continuidade existencial, compensado atravs de um hiper-investimento do corpo, da sensao. Para tentarmos compreender o porqu da fixao do paciente psicossomtico a esta forma de funcionamento psquico, necessrio compreendermos como que se passa a evoluo desde o domnio sensorial-motor at ao domnio da representao psquica, e qual o papel do corpo na aquisio e construo da conscincia de se sentir existir e na organizao da constncia objectal, estruturadores fulcrais da estabilidade da vida psquica e afectiva.

3.1.3. A importncia do contacto pele-a-pele e o sentimento de continuidade de si na patologia psicossomticaVimos como o sintoma psicossomtico pode ser responsvel por () uma sensao de identidade (a sense of being) similar s sensaes corporais que as crianas autistas procuram () (Allouch, 2003, p.81). A tese sobre a patologia psicossomtica, em questo neste trabalho, relaciona-se com a importncia do contacto pele-a-pele numa relao em que o objecto de amor oferece o espao psquico e afectivo para dois seres distintos, ainda que ligados e em sintonia. Este espao e diferenciao no psiquismo do objecto primrio, percursor de um espao ou interioridade psquica, estruturador do sentimento de se sentir existir, que parece estar frgil nestes pacientes. Vivemos numa sociedade que apoia o apogeu da mente operatria, a perda das ligaes comunitrias que nos contextualizam e envolvem socialmente. a era da imagem, e no da 30

representao, com todos os custos que isso acarreta para o desenvolvimento do pensamento simblico. o domnio da concretude, do ter, da perfeio. So os vazios narcsicos que se tentam preencher fora, e compulsivamente, com a perda do que nos torna mais humanos, mais animais, a perda do contacto fsico e do envolvimento afectivo nesse contacto. O filme Crash, comea e termina exactamente com este apelo, hoje as pessoas j no se tocame por isso, a soluo chocarem (crash) uns nos outros, a pobreza relacional, em que os cuidados funcionais so super-compensadores de uma carncia afectiva que todos ns, no nosso ntimo, reconhecemos. A pele , simultaneamente, meio de comunicao, limite entre estmulos internos e externos, limite entre o self e no self (Anzieu, 1991), () uma zona ergena onde permitido ou proibidotocar, rgo de troca e de prazer recproco desde a relao primria () (Matos, 2007, p.5). Atravs

do toque, a me , simultaneamente, contentora dos limites do corpo e dos limites do psiquismo em devir do seu filho. Alm disso, o contacto pele-a-pele na relao me-beb, tem uma natureza dual para a criana, na medida em que, o corpo materno simultaneamente continente (porque contm e envolve) e contedo (atravs das sensaes geradas pelo toque) (Anzieu, 1991). este corpo a corpo entre o beb e a sua me que veicula as formas bsicas de significao da realidade, as experincias percursoras do pensamento, da organizao de uma interioridade estvel, segura e pensante. O eu-pele um cran que protege dos excessos de excitao e que filtra as primeiras comunicaes. (Anzieu, 1991, p. 64) O interesse da investigao em psicanlise tem sido os contedos psquicos (afectos, fantasmas, pensamentos, fantasia, angstias, vida pulsional), contudo e principalmente para as patologias de natureza psicossomtica, fundamental o estudo da organizao e da constituio do continente desses contedos, o embrio da vida psquica. Felizmente, () a partir da dcada de 1950, passou-se de uma psicanlise que poderia dizer at sobretudo de orifcios a uma psicanlise que se poderia designar mais cutnea(). (Golse, 2007, p.26).

31

Anzieu (1995) introduz o conceito de Eu-Pele9, procurando salientar a importncia da pele como envelope no s do corpo, mas tambm da primeira organizao egica, sobre a qual se edificam todas as outras aquisies desenvolvimentistas. O Eu-pele constitui-se com base na internalizao da relao me-beb, quer pela organizao da dinmica continente-contedo, quer pela constituio concomitante de um espao emocional e de um espao de pensamento (o primeiro pensamento a alucinao do seio e do prazer associado experincia, algo que se constri na sua ausncia, e a partir frustrao associada sua perda temporria), auxiliado pelo aparelho de pensar pensamentos materno (Bion, citado por Mazet, & Houzel, 1994). A constituio de um Eu-Pele responde necessidade de um envelope narcsico e assegura ao aparelho psquico a certeza e a constncia de sentimento de existir de base (Anzieu, 1995, p.61). O Eu-pele depende das sensaes geradas pelo contacto pele a pele com a superfcie do corpo materno, e fundamento da possibilidade de pensar, pois dele depende a organizao de um espao psquico, de uma interioridade suficientemente slidas e seguras, atravs da experincia de toque, da sincronia9

Segundo Anzieu (1995) o Eu-pele tem vrias funes: 1) Da mesma forma que a pele contm e sustenta os

rgos, esqueleto e msculos, tambm o Eu-Pele exerce a funo de manuteno o psiquismo. Esta funo psquica deriva da interiorizao pelo beb da experincia de holding na relao com a sua me. O eu-pele uma parte da me particularmente as suas mos que interiorizada e que mantm o funcionamento do psiquismo () (Anzieu, 1995, p.121); 2) Funo continente, organizada particularmente pelo handling e holding materno. Da mesma forma que a pele envolve todo o corpo, tambm o eu-pele envolve o aparelho psquico. Se se verificar uma carncia nessa funo contentora do Eu-Pele duas formas de angstia podem ser despoletadas que so relevantes na compreenso da patologia psicossomtica, a primeira, uma angstia de excitao pulsional difusa, responsvel pela constituio de um seu envelope psquico defensivo com as sensaes dolorosas difusas. No segundo caso, o envelope existe, mas a sua continuidade insuficiente e frgil, um eu-pele poroso. Esta forma de carncia parece ter um papel relevante na compreenso do sintoma encoprese; 3) Inclui a funo de para-excitaes materna (Freud, 1985) que progressivamente absorvida e incorporada no Eu-pele da criana; 4) Possui um papel fundamental na organizao do sentimento de individuao do self, na sua componente mais primitiva, um corpo habitado e investido porque se sentiu habitado e investido pelo objecto de amor primrio; 5) uma superfcie psquica que serve uma funo de sntese e ligao entre os diversos nveis sensoriais, sendo o seu fundo originrio, o envelope tctil, exerce assim uma funo de intersensorialidade. Se esta funo no se organizar, angstia primitivas de desmantelamento, tal como descritas por Meltzer (1975) podem ser importantes, como no caso do autismo; 6) A pele do beb um objecto libidinal que pode ou no ser investido pela me como tal. Assim, com a internalizao desta capacidade o eu-pele responsvel pela funo de suporte ou apoio da excitao libidinal ou pulsional, conseguindo-se captar e integrar o investimento libidinal atravs de um envelope de excitao sexual global, que parcial e focado em determinadas zonas ergenas ao longo do desenvolvimento, e que depois se torna integrado, em que o prazer cutneo libidinal permanece primariamente ligado ao prazer genital; 7) A pele como fonte de estimulao constante ligada ao tnus sensrio-motor equivalente ao Eupele na sua funo de reabastecimento libidinal da funo psquica, mantendo o pensamento investido pulsionalmente; 8) por ltimo, a pele como rgo responsvel pela comunicao com o mundo exterior (ex. tatuagens, piercing, maquilhagem), equivale ao Eu-pele como fundamento da matriz identitria.

32

afectiva na dade, e de uma atitude materna cncava, isto , receptiva e activa da vida psquica e afectiva primitiva do seu filho. Uma me que no foi contida e envolvida desta forma, ter mais dificuldade em conseguir sincronizar-se (funo alpha e envolvimento fsico e psquico) na relao com o seu filho, de forma a estar disponvel, e conseguir uma leitura verdadeiramente emptica das necessidades da criana, que embrio do seu prprio aparelho psquico. Na patologia psicossomtica assistimos a um hiper-investimento do corpo que no parece ser aleatrio. um corpo pouco investido na relao, no toque na sua dimenso de envolvimento. Um corpo que se auto-investe, rejeitando o objecto nesta funo. a carncia do contacto pele-a-pele, numa interaco que implica envolvimento fsico, psquico e afectivo. Um corpo que depende de si, e que a partir da organizao do sintoma psicossomtico consegue que algo que se passa l dentro, fomentando a constituio de uma pseudo-interioridade. O contacto pele-a-pele, na amamentao de extrema importncia, mas mais do que isso, o contacto pele-a-pele, ao longo de todo o desenvolvimento do indivduo. O Eu-pele (Anzieu, 1995) est para sempre em formao na relao com os objectos do nosso amor. A nossa pele, desprovida de plos em relao aos outros animais, parece potenciar o toque e a experincia sensorial, sendo que para a mente infantil, tudo o que o organismo contacta, e isto normalmente atravs do toque, representa no s o ambiente como os limites de si prprio (Gadini, 1987, citado por Mazet & Houzel, 1994). Tanto na patologia psicossomtica como no autismo, existem perturbaes da organizao do Eu-pele, sendo que no autismo a prpria constituio do mesmo que est em questo, e na patologia psicossomtica, existe um Eu-pele poroso (conceito de Anzieu, 1995), em que os pensamentos, afectos, vontades so dificilmente conservados ou contidos, so fluidos e instveis, causando uma angstia ligada com a sensao de vazio interior, sendo que a agressividade utilizada como forma de expresso privilegiada de afirmao da autonomia e dos limites do self. Um Eu-pele com poros. Na compreenso do sintoma encoprese, destaca-se a importncia dos orifcios como veculos de passagem, interrupes no Eu-pele, smbolos da introjeco e da projeco/expulso, investidos libidinalmente, e profundamente ligados com as sensaes de cheio/vazio, a percepo de volume, e o seu correspondente psquico, o volume/espao psquico. Este sentimento de interioridade s possvel se existir um sentimento de base, de integridade do Eu-pele, um envelope que foi um dia real, afectivo, relacional, entre corpo e o sonho, e que agora predominantemente psquico, uma relao de objecto internalizada e estruturadora do psiquismo. Alm disso, defendemos a importncia de considerar o papel que o cheiro das fezes pode desempenhar, quer como mensagem real de afastamento do outro, de necessidade de distncia relacional quer como, uma espcie de envelope olfactivo substitutivo (Anzieu, 1995). 33

Tambm a noo de Pele Psquica10 introduzida por Esther Bick (1991) se aproxima muito ao conceito de Eu-pele de Didieur Anzieu (1995). At esta pele psquica ter sido internalizada, a noo interioridade do self permanece empobrecida. As perturbaes na formao desta pele primitivapodem conduzir ao desenvolvimento de uma segunda pele, em que a dependncia em relao ao objecto substituda por uma pseudo-indepndencia, (), com o objectivo de criar um substituto para esta funo contentora da pele (Bick, 1991, p.188). A importncia da constituio de um envelope

psquico capaz de conter os objectos internos, os afectos e algo que inevitavelmente desempenha um papel fulcral na construo do ncleo identitrio mais primitivo, ligado ao self corporal. Patente est mais uma vez a importncia da pele, do contacto pele a pele, na interiorizao da pele psquica, um contacto afectivo, sintnico, ligado com a capacidade do objecto materno em adequar a comunicao na relao com o recm-nascido, regredindo ela prpria sua componente mais primitiva e inconsciente de forma a dar sentido s comunicaes primitivas do seu filho. A funo alpha descrita por Bion (citado por Mazet, & Houzel, 1994) inerente ao papel do objecto materno tambm desempenha um papel fundamental na organizao de um espao psquico interior e constante, visto que sem a capacidade metablica dos elementos beta por parte da me, o beb ver-se-ia submerso e inundando na tenso psquica e corporal. A pobreza da organizao de um Eu-pele (Anzieu, 1995), ou pele psquica (Bick, 1991), parece contribuir para a organizao de um sentimento existencial bsico empobrecido, desvitalizado. A pobreza do contacto pele-a-pele, do toque, o carinho afectivo sincronizado com uma funo alpha (Bion, citado por Mazet, & Houzel, 1994) na relao primria capaz de conter o psiquismo paralelamente conteno corporal, responsvel pela aquisio progressiva da conscincia dos limites do self, na sua componente mais primitiva, parece desempenhar um papel fundamental na compreenso do hiper-investimento defensivo do corpo (com descargas ou acting in) nos pacientes psicossomticos. Assim, o paciente psicossomtico ao hiper-adaptar-se relao de objecto patognica, acaba por preencher falhas nas aquisies precoces ao nvel do desenvolvimento, nomeadamente,10

Bick (1991) caracteriza o processo da sua organizao na criana da seguinte forma: 1) as diversas partes da

personalidade na sua forma mais primitiva possuem uma fora que as liga entre si, e que internalizada atravs da relao de objecto capaz de passar essa integrao; 2) a introjeco desse objecto suficientemente bom, ou dessa relao com o primeiro objecto da criana, o seio materno, conseguida pela identificao da criana c