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 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM TESE DE DOUTORADO A PRODUÇÃO DO DISCURSO LÍTERO- MUSICAL BRASILEIRO  NE LS ON BARROS DA COSTA SÃO PAULO 2001

Tese Nelson

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM TESE DE DOUTORADO

A PRODUO DO DISCURSO LTEROMUSICAL BRASILEIRO

NELSON BARROS DA COSTA SO PAULO 2001

Nelson Barros da Costa

A

LTERO-MUSICAL BRASILEIROTese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Lingstica Aplicada sob a orientao da Prof0. Doutora Anna Rachel Machado (PUC/SP).

Ficha catalogrfica elaborada pela Bib. Nadir Gouva Kfouri - PUCSP

f f f f f fPRODUO DO DISCURSOSo Paulo 2001

410 C

TD Costa, Nelson Barros da A produo do discurso ltero -musical brasileiro. - So Paulo: s.n., 2001. Tese (Doutora do) - PUCSP Programa: Lingustica Aplicada e Estudos da Linguagem Orientador: Machado, Anna Rachel 1. Anlise do discurso. 2. Msica popular brasileira. Palavra-Chave: Discurso constituinte - Heterogeneidade da MPB Movimentos esttico-ideol gicos

Banca Examinadora

_______________________________________________________ Dra. Anna Rachel Machado (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo - PUC/SP - Presidente)

Dra. Elisabeth Brait (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo - PUC/SP)

Dra. Ins Signorini (Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP)

Dra. Maria Ceclia Magalhes (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo - PUC/SP)

Dr. Pedro de Souza (Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC)

Autorizo, exclusivamente, para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta tese por processos fotocopiadores ou eletrnicos.

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Dedicado a Ftima Vasconcelos, a mulher que amo, com quem compartilho a vida e o amor pela linguagem e pela msica.

Rayana Vasconcelos, herdeira dessa vida e desse amor.

minha me Irene Barros, a quem amo sobre todas as coisas.

meu falecido pai, Adauto Freire, que, sem querer, tocando seu violo e sua escaleta e ouvindo velhas canes em programas radiofnicos, me ensinou o prazer e a fascinao pela cano

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Agradeo intensamente Ftima. Fundamental.

A minha querida orientadora, Anna Rachel, pela acolhida e pacincia.

Ao prof. Dominique Maingueneau, pela gentileza proporcional genialidade.

professora Rgine Delamotte Legrand, simptica e calorosa.

CAPES, pela bolsa de doutorado e pela bolsa de doutorado sanduche, que me possibilitou estudar 10 meses na Frana.

A minha irm Nilda, pela grande fora durante a estadia na Frana e na volta ao Brasil.

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A meu irmo Nlio, pelo mesmo motivo e pelos toques em teoria musical. A minha me, por me abrigar na volta ao Brasil.

A meu cunhado Manoel Csar, que me franqueou o acesso a suas monumentais discoteca e biblioteca.

Aos professores Beth Brait e Srio Possenti, com suas crticas duras, porm ternas.

A Clarissa, Emlia, Nelson Augusto, Marilene, Pricles, Urbano, Veriana, demais membros da banca e todos aqueles amigos e colegas que, num momento ou noutro, de uma forma ou de outra, contriburam para que eu sobrevivesse ao trmino desse trabalho.

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Resumo Este trabalho pretende analisar a Msica Popular Brasileira enquanto prtica discursiva, tendo como base a orientao que Dominique Maingueneau prope para a Anlise do discurso francesa. Ele tambm lana mo de categorias procedentes das teorias das heterogeneidades discursivas (Jacqueline Authier-Revuz), do princpio dialgico (Mikhail Bakhtin) e da intertextualidade (Kristeva, Genette, sistematizada por Nathalie Piegay-Gros), perspectivas j integradas por Maingueneau no que ele denomina de primado do interdiscurso. Realizamos basicamente duas tarefas: 1. Propor uma descrio da Msica Popular Brasileira a partir da caracterizao das diversas vertentes e movimentos que interagem num campo construdo por uma prtica discursiva que inclui no apenas os produtores efetivos de canes, mas tambm os discursos que as comentam e divulgam. Para isso, utilizamos as categorias de posicionamento, comunidade discursiva, etos, domnios enunciativos etc. Esta descrio desenvolvida no captulo III, aps a definio da orientao terica (captulo I), da hiptese terica e das opes metodolgicas (captulo II); 2. Discutir a hiptese de que discurso ltero-musical brasileiro dos nossos dias conquistou ou vem conquistando o papel de discurso constituinte, no sentido explicitado por Maingueneau, que o define como o discurso que: d sentido aos atos da coletividade, consistindo numa forma de vida articuladora da conscincia coletiva a indicar modos de sentir, de pensar e de interpretar os fatos scio-culturais; estabelece um archion, ou seja, determina um corpo de enunciadores consagrados e elabora

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uma memria para si e para a sociedade; constitui-se tematizando sua prpria constituio, pretendendo ao mesmo tempo constituir-se para os outros (auto e heteroconstituio) e dizendo-se ligado a uma Fonte legitimante (a Beleza, a Verdade, Deus etc.); usa a palavra de outros discursos constituintes para legitimar sua palavra e definir seu lugar no interdiscurso. Essa discusso o contedo do captulo IV e contou tambm com o uso de conceitos como aluso, metfora, interdiscursividade, intertextualidade e outros, sempre redefinidos em funo da perspectiva terica maior. O trabalho pretende, enfim, esboar uma espcie de perfil lingstico-discursivo da produo ltero-musical brasileira, particularmente daquela que habitualmente chamada de Msica Popular Brasileira, esperando contribuir para os que pretenderem, mais do que analisar canes isoladas, abordar produtos de sujeitos concretos inseridos em um contexto densamente povoado de dilogos e de histria, em que as canes, mesmo as mais simples, so ns de uma intrincada configurao interdiscursiva. A se influenciam mutuamente comunidades cancionistas (do passado e do presente, nacionais e estrangeiras), comunidades discursivas de outras instituies discursivas, discursos cotidianos, ideologias etc.

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Rsum Ce travail a le but danalyser la Musique Populaire Brsilienne en tant que pratique discursive travers de la conception d'Analyse du Discous dveloppe par Dominique Maingueneau. On utilise aussi les catgories issues des thories de l'htrognit discursive (Jacqueline Authier-Revuz), du principe dialogique (Mikhail Bakhtin) et de l'intertextualit (Piegay-Gros), perspectives dj integres par Maingueneau dans le primaut de l'interdiscours . On a realis donc deux taches: 1. Proposer une description de la Musique Populaire Brsilienne partir de

la caractrisation des plusieurs tendances et mouvements en interaction dans un champs construit par une pratique discursive qui inclut pas seulement des producteurs efectifs des chansons, mais aussi des discours qui les commentent et les divulguent. Pour a, on a utilis les catgories positionnement, communaut discursive, domaines nonciatives. Cette description est dveloppe dans le chapitre III, aprs la prsentation des rfrences thoriques (chapitre I) et des hypothses thoriques et de la mthodologie (chapitre II). 2. Mner une discussion sur lhypothse o le discours de la moderne

chanson brsilienne joue ou prtend jouer, au Brsil, un rle de discours constituant dans le sens explicit par Maingueneau: des discours qui ont la prtension de donner sens aux actes de la collectivit et aux autres discours; d'tablir un archion, c'est-dire, un corps d'nociateurs consacrs, et de construir une mmoire pour eux-mmes et pour la societ; de se constituer en thmatisant sa propre constitution pour jouer un rle constituant l'gard d'autres discours; de se poser comme lis une Source lgitimante; d'utiliser les mots des autres discours constituants pour lgitimer ses

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paroles et dfinir son lieu dans l'interdiscours. Cette discussion est le contenu du chapitre IV et utilise d'ailleurs les concepts allusion, mtaphore, interdiscursivit, intertextualit etc., toujours redfinis en fonction de la perspective thorique plus ample. Le travail prtend, donc, laborer une esquisse linguistique-discursive de la production chansonnire brsilienne, en particulier, celle qui est habituellement appele Musique Populaire Brsilienne. Notre but est contribuer aux ceux qui veulent, plus que d'analyses de chansons isoles, une aproche des productions des sujets concrets, insres dans un contexte plein de dialogues et d'histoire, o les chansons, mme les plus simples, sont noeuds d'une intrique configuration interdiscursive. Dans cette configuration, des communauts chansonnires (du pass et du prsent, nationaux et trangres), des communauts discursives d'autres institutions discursives, des discours du quotidien, des idologies etc., ont influence rciproque.

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Sumrio APRESENTAO ............................................................................................... 16 OPES TERICAS........................................................................................... 26 1. Reformulando conceitos: a proposta de Dominique Maingueneau ................ 271.1 O primado do interdiscurso .........................................................................................28 1.1.1 Fontes constitutivas do primado do interdiscurso .................................................. 291.1.1.1 1.1.1.2 1.1.1.3 O dialogismo...................................................................................................... 30 As heterogeneidades enunciativas ......................................................................... 33 A intertextualidade.............................................................................................. 36 As relaes intertextuais ...................................................................................... 41 As relaes interdiscursivas ................................................................................. 48 As relaes metadiscursivas................................................................................. 59 Uma sntese ....................................................................................................... 63

1.1.2

Anlise do discurso e alteridade: uma sistematizao ........................................... 41

1.1.2.1 1.1.2.2 1.1.2.3 1.1.2.4

1.2 A estrutura enunciativa................................................................................................67 1.3 Os discursos constituintes...........................................................................................70 1.3.1 O processo de instituio do discurso constituinte................................................. 731.3.1.1 1.3.1.2 1.3.1.3 O investimento cenogrfico ................................................................................. 73 O investimento em um cdigo lingistico .............................................................. 77 O investimento em uma corporalidade (etos)......................................................... 79 O discurso literrio.............................................................................................. 82 Instituies e vida literria........................................................................................ 84 Discurso literrio e domnios enunciativos ................................................................. 86 Investimento em um cdigo lingstico...................................................................... 89 O investimento cenogrfico...................................................................................... 91 Investimento em uma corporalidade (etos) ................................................................ 93 Auto e heteroconstituio ........................................................................................ 95 O discurso religioso............................................................................................. 97 Consideraes iniciais.............................................................................................. 97 Discurso religioso e Anlise do Discurso ..................................................................102 Marcas e propriedades do discurso religioso .............................................................106 O investimento cenogrfico.....................................................................................112 O investimento lingstico.......................................................................................112 Investimento tico..................................................................................................115 Gneros e posicionamento ......................................................................................116 O discurso cientfico ..........................................................................................117 Algumas caractersticas gerais .................................................................................117 Investimento lingstico. .........................................................................................118 Investimento cenogrfico........................................................................................120 Investimento tico..................................................................................................121 Domnios enunciativos ...........................................................................................121 Auto e heterocontituio .........................................................................................123

1.3.2

Alguns discursos constituintes e suas condies enunciativas................................ 82

1.3.2.1 a) b) c) d) e) f) 1.3.2.2 a) b) c) d) e) f) g) 1.3.2.3 a) b) c) d) e) f)

1.4

O discurso enquanto prtica intersemitica ............................................................ 125

13

1.5

Concluso.................................................................................................................. 129

HIPTESE TERICA E OPES METODOLGICAS.....................................131 2. Assumindo paradoxos .................................................................................1322.1 2.2 2.3 2.4 2.5 Hiptese terica........................................................................................................ 132 Opes metodolgicas.............................................................................................. 140 Tempo ........................................................................................................................ 147 Espao ....................................................................................................................... 149 Tempo x espao......................................................................................................... 161

A HETEROGENEIDADE NO DISCURSO LTERO-MUSICAL BRASILEIRO ...165 3. A heterogeneidade na msica popular brasileira...........................................1663.1 Consideraes iniciais.............................................................................................. 166 3.2 Pluralidade na diversidade: posicionamentos na Msica Popular Brasileira........ 169 3.2.1 Movimentos esttico-ideolgicos.........................................................................1703.2.1.1 3.2.1.2 3.2.1.3 A Bossa Nova ...................................................................................................174 A cano de protesto .........................................................................................180 O Tropicalismo .................................................................................................188 Os mineiros do Clube da Esquina ........................................................................197 O Pessoal do Cear ........................................................................................210 A cano catingueira..........................................................................................243 A cano romntica ...........................................................................................268 Os sambistas.....................................................................................................280 Os forrozeiros ...................................................................................................290 A cano pop. ...................................................................................................304 A MPB.............................................................................................................318

3.2.2 3.2.3 3.2.4 3.2.5

Agrupamentos de carter regional........................................................................196 Agrupamentos em torno de temticas ................................................................... 243 Agrupamentos em torno do gnero musical. .........................................................280 Agrupamentos em torno de valores relativos tradio ....................................... 302

3.2.2.1 3.2.2.2 3.2.3.1 3.2.3.2 3.2.4.1 3.2.4.2 3.2.5.1 3.2.5.2

3.3

Concluso.................................................................................................................. 331

MSICA POPULAR BRASILEIRA: DISCURSO CONSTITUINTE? ..................333 4. msica popular brasileira: discurso constituinte?..........................................3344.1 Consideraes iniciais.............................................................................................. 334 4.2 O archion ltero-musical brasileiro ........................................................................ 337 4.2.1 A meno elogiosa............................................................................................... 338 4.2.2 A homenagem explcita ........................................................................................ 339 4.2.3 A intertextualidade............................................................................................... 340 4.2.4 Gestos enunciativos..............................................................................................341 4.3 Pretenso auto e heteroconstituinte ......................................................................... 356 4.3.1 Autoconstituio................................................................................................... 356 4.3.2 Funo heteroconstituinte ..................................................................................... 3654.3.2.1 Dos atos e comportamentos sociais .....................................................................365 4.3.2.2 De outros discurso constituintes ..........................................................................380 a) Discurso ltero-musical brasileiro e discurso literrio ..................................................380

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b) c) c.1) c.2) c.3) c.4)

A Msica Popular Brasileira e o discurso cientfico ...................................................394 Discurso ltero-musical brasileiro e discurso religioso.................................................409 Aluso metafrica palavra religiosa........................................................................413 A aluso ao etos religioso........................................................................................435 Referncia palavra e ao etos religiosos ...................................................................447 Imbricao interdiscursiva cano-religio................................................................459

4.4 4.5 4.6

As fontes legitimantes da cano popular brasileira............................................... 466 Os limites do discurso litero-musical brasileiro..................................................... 473 Concluso.................................................................................................................. 480

BIBLIOGRAFIA..................................................................................................484 5. Referncias ..................................................................................................4855.1 5.2 5.3 5.4 Bibliogrficas............................................................................................................ 485 Revistas e colees ................................................................................................... 491 Dicionrios e enciclopdias...................................................................................... 491 Pginas na Internet .................................................................................................... 492

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APRESENTAO

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Uma tipologia sumria dos trabalhos discursivos sobre a MPB leva-nos a distinguir sete tipos de produes: a historiografia (incluindo a biografia), as anlises histrico-scio-antropolgicas, a resenha jornalstica, a exegese literria, os trabalhos de catalogao (antologias e colees - geralmente acompanhadas de comentrios e anlises biogrficas e historiogrficas), a anlise semitica e a anlise textual 1. So raros os trabalhos sobre MPB que a analisam sob a perspectiva da Anlise do Discurso (AD)2. Desde j, cabe advertir que estamos diante de dois termos (Anlise do discurso e MPB) de modo algum evidentes, assim como tambm no evidente a relao entre os dois enquanto teoria e objeto. conhecida a diversidade de posicionamentos tericos que se denominam anlise do discurso. Conforme Maingueneau 3, essa diversificao se d por diversos fatores:

Cf., respectivamente, Tinhoro, 1998; Matos, 1996; Souza, 1983; SantAnna, 1978; Gil, 1996; Tatit, 1996 e Schimti, 1989. 2 Temos conhecimento apenas de Guimares, 1989, e de Nascentes, 1999. 3 Maingueneau, D. (1995). Prsentation in Langages (Les analyses du discours en France), mars, 117, p. 8-9.

1

17

+

Disciplinas de referncia: nos Estados Unidos e na Inglaterra, as pesquisas

em anlise do discurso apresentam forte vnculo com a tradio dos estudos da Antropologia e da Etnolingstica, o que leva a uma diferenciao importante em relao anlise do discurso feita na Frana, mais ligada lingstica estrutural, histria e psicanlise; + Pressupostos tericos: diferenas entre analistas partidrios de uma viso

mais psicanaltica e de uma teoria althusseriana da ideologia e analistas etnometodlogos; + O tipo de corpus estudado: conforme os discursos analisados estejam

ligados a interaes cotidianas, a situaes institucionais, comunicao de massas etc., teremos diferentes modelos tericos, que tendem a se transformar em escolas ou vertentes; + O ponto de vista sobre o objeto: o interesse por esse ou aquele aspecto da

discursividade (emergncia de uma instituio discursiva, estratgias de produo ou recepo etc.) motivo para a formao de posicionamentos diversos; + Os objetivos: de acordo com o que se pretende com a anlise (se melhorar

a comunicao em um setor da sociedade; criar ou aperfeioar a prtica do ensino; atender a demandas de ordem poltica; ou simplesmente aprofundar o conhecimento da discursividade ou de uma modalidade de discurso.), teremos diferentes correntes de anlise do discurso.

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Tambm o conceito de Msica Popular Brasileira vago e sujeito a definies divergentes. Como veremos adiante, desde que foi utilizado pela primeira vez, no final da dcada de 50, o termo foi vtima de disputa por diversas tendncias, variando, conforme a correlao de foras, de abrangncia, de critrio e de definio. A anlise do discurso que utilizamos aqui a chamada Anlise do Discurso Francesa. Seguiremos a linha desenvolvida por Dominique Maingueneau, a qual consideramos que fornece instrumental terico-metodolgico capaz de contribuir para a compreenso do funcionamento dessa produo cultural, cujo papel to marcante na constituio de nossa identidade nacional. Utilizamos tambm algumas categorias relativas ao domnio das teorias das heterogeneidades discursivas (Jacqueline AthierRevuz), do princpio dialgico (Mikhail Bakhtin) e da intertextualidade (Piegay-Gros), teorias integradas por Maingueneau no que ele denomina primado do interdiscurso. Na verdade, trata-se de um trabalho que pretende muito mais sugerir um campo de aplicao emprica de um conjunto de conceitos tericos, do que propriamente realizar uma descrio completa de um discurso a partir de um modelo. Utilizando-os para analisar a cano enquanto discurso, estamos propondo no apenas a legitimidade dessa produo simblica enquanto realidade emprica rica e complexa, passvel de investigao produtiva e reveladora, mas tambm afirmando a originalidade dos conceitos e a sua conveniente aplicabilidade a um tipo de produo que no se limita a

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um nico plano semitico, como so os discursos aos quais o autor j os aplicou4, mas que se desdobra irredutivelmente entre duas materialidades semiticas: a linguagem verbal e a msica. Essa aplicao se torna ainda mais justificada quando se observa que os conceitos propem justamente a rearticulao de dimenses que o autor afirma terem sido separadas por outras propostas, quais sejam a da formao discursiva e a das condies de sua produo. Assim, consideramos relevante nosso empreendimento, dado que a proposta de Maingueneau prev a articulao entre realidades que geralmente, tambm nos trabalhos sobre a msica popular brasileira, costumam, salvo excees, ser analisadas separadamente: + + texto e melodia; o discurso da cano e os outros discursos que o contextualizam

(interdiscurso); + + + cano e circulao da cano (arranjos, meios de difuso, pr-difuso); Cano e formas de elaborao; Cano e gnero musical;

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Discurso filosfico (Maingueneau e Cossuta, 1995 e Maingueneau, 1996), discurso religioso (Maingueneau, 1984 e 1983), discurso literrio (Maingueneau, 1996a, 1995 e 1996c), discurso dos meios de comunicao (Maingueneau, 1998).

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+

Autor, grupos e espaos de convivncia;

Trata-se, como se v, de um verdadeiro programa de estudos, do qual avaliamos ter realizado uma pequenssima parte. A natureza interdisciplinar desse programa demanda conhecimentos tcnicos dos quais dispomos poucos. Essa limitao impediu um maior aprofundamento de certos aspectos, especialmente os relativos ao domnio da teoria musical, ao qual no pudemos seno aludir. Por outro lado, uma vez que no somos msicos nem pretendemos os msicos como leitores exclusivos, essa limitao evitou a tentao de dotar o trabalho de uma metalinguagem que restringiria fortemente a leitura. Acreditamos, portanto, que o trabalho de fcil leitura por msicos (no-lingistas) e por lingistas (no-msicos) e at por um pblico leigo, apenas amantes da msica popular e sua linguagem. Assim, com auxlio do instrumental terico fornecido pela anlise do discurso, procuramos, aps a definio da orientao terica (captulo I) e das opes tericometodolgicas (captulo II), empreender uma tentativa de organizar o caos terminolgico que envolve a msica brasileira e suas diversas tendncias. Esse empreendimento tem dupla funo no trabalho. Primeiro, organizar em linhas gerais o conjunto de autores de modo a termos, na anlise, mais do que uma massa uniforme de nomes, um todo relativamente organizado que sirva de referncia na considerao de autores e cantores. Assim, um determinado compositor ser referido como ocupando um espao especfico dentro de uma configurao mais ou menos definida ou em processo de definio. Uma segunda funo j esboar a sugesto de que, mais do que um mero meio de veicular sentimentos ou ideologias, o discurso ltero-musical brasileiro tem uma feio institucional peculiar. Ou seja,

21

embora precariamente, configura-se um espao no qual as produes discursivas sofrem constrangimentos e regulaes prvia e historicamente estabelecidas; uma instncia que produz uma tradio, uma memria, um corpo de enunciadores consagrados; um lugar que exige uma inscrio, um posicionamento e uma competncia especial de quem pretende nele enunciar. A questo discutida no quarto e ltimo captulo ser, portanto, a seguinte: + Tendo em vista o grande prestgio da MPB no Brasil, poderamos enquadrla no rol de discursos que adquiriram, no seio da sociedade brasileira, um estatuto que Maingueneau5 denomina constituinte: um discurso que tem por projeto indicar maneiras de pensar e viver em uma sociedade, de dizer-se ligado a fontes legitimantes a fim de servir de fundamento para os outros discursos, de fundar um panthon de grandes nomes, modelos ao mesmo tempo para si e para a sociedade? Esperamos, ao final deste trabalho, ter esboado uma espcie de perfil lingstico-discursivo da produo ltero-musical brasileira, particularmente daquela que estamos habituados a chamar de Msica Popular Brasileira. Acreditamos, deste modo, estar contribuindo para os que pretenderem, mais do que analisar canes isoladas, abordar produtos de sujeitos concretos inseridos em um contexto densamente povoado de dilogos e de histria, em que as canes, mesmo as mais simples, so ns

5

MAINGUENEAU, Dominique e COSSUTTA, Frdric. L'analyse des discours constituants in Langages (Les analyses du discours en France), 117, 1995. Parte desse artigo a aparecer em portugus

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de uma intrincada configurao interdiscursiva, em que se influenciam reciprocamente: comunidades cancionistas (do passado e do presente, nacionais e estrangeiras), comunidades discursivas de outras instituies discursivas, discursos cotidianos, ideologias etc. Nos livros didticos, por exemplo, em que s recentemente comeam a aparecer canes como objeto de estudo, acreditamos que essa forma de abordagem seria de grande auxlio. Em trabalho indito, de nossa autoria, onde analisamos a presena da cano nos Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa e em livros didticos de Lngua Portuguesa, verificamos que, tanto nuns como noutros, a cano ainda encarada como uma espcie de variante menor do texto literrio e, conseqentemente, analisada como se fosse uma poesia de entretenimento. A assimilao de categorias como prtica discursiva, comunidade discursiva, cena enunciativa e outras e a viso dessas categorias como integrando um dispositivo enunciativo em que todos os aspectos da enunciao (gnero, cenografia, etos etc.) se encontram em determinao recproca, com certeza, ajudaria a compreender a cano como um gnero autnomo, produto de uma comunidade discursiva especfica, e, por isso, merecedora de uma abordagem particular. Queremos ainda advertir o leitor de alguns procedimentos tomados no decorrer do trabalho:

na Revista do GELNE, ano 2, n. 2, 2001, sob o ttulo Analisando discursos constituintes, de autoria apenas do primeiro autor.

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+

Nosso trabalho no trata quantitativamente os dados. Como explicaremos

no prximo captulo, nosso corpus tem carter virtual, isto , no partiremos de um conjunto pr-definido de canes, mas de um elenco de compositores, o que significa que qualquer uma de suas canes pode ser tomada para ilustrar ou demonstrar uma ou outra afirmao. Assim, no ser, a nosso ver, a quantidade de ocorrncias, mas a qualidade delas, que ter valor demonstrativo. De qualquer maneira, procuraremos, na medida do possvel, apresentar vrias ocorrncias que pretendemos significativas; + O leitor notar que na parte terica esto definidos conceitos que no

aparecem aplicados seno ligeiramente na parte analtica. Isso se deve necessidade que tivemos de dotar a parte terica de uma integridade que ficaria comprometida caso nos restringssemos a apresentar apenas os conceitos efetivamente utilizados na parte analtica; + Dadas as limitaes de nossos conhecimentos na rea musical, acabamos

por privilegiar a anlise dos textos verbais da MPB. No entanto, estaremos, em diversos momentos de nosso trabalho, fazendo aluso dimenso meldica das canes analisadas e mesmo representando esquematicamente seu perfil meldico, baseados em autores como Luiz Tatit e Jos Miguel Wisnik. Recomendamos, por isso, que o leitor procure, na medida do possvel, escutar as canes a fim de que se tornem mais claros ou perceptveis os raciocnios e ilaes aqui desenvolvidos; + Para evitar interromper o fluxo da leitura, as letras de muitas canes

foram postas em nota de p de pgina e em tamanho maior do que o convencional (12).

24

+

O sistema de referncia bibliogrfica segue as normas da Revista Delta, da

PUC/SP. Para evitar a repetio desnecessria de datas nas citaes, omitiremos a data a partir da segunda referncia mesma obra, e o nmero da pgina ser colocado aps dois pontos ( : ). As canes sero quase sempre acompanhadas da data de gravao e do nome do intrprete, caso este no seja o autor. Caso o intrprete no aparea, fica convencionado que (so) o(s) compositor(es) o(s) responsvel(is) pelo seu registro. Esperamos, com este trabalho, estar contribuindo modestamente para enriquecer os estudos sobre a cano, apresentando uma outra forma de v-la, ainda pouco explorada e ainda em processo de elaborao pelo prprio autor, mas que julgamos produtiva e reveladora na compreenso da msica popular brasileira. Uma vez que o nosso pas tomou para si a explorao fecunda e intensiva desse gnero, e teceu em torno dele uma trama institucionalide diante da qual a indiferena quase impossvel, embora o desprezo intelectual seja quase sempre a regra, cabe queles que conjugam descaradamente o interesse cientfico com a paixo integrar-se e entregarse a seu estudo.

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OPES TERICAS

1

Aqui o meu pas, dos sonhos sem cabimento...(Meu pas, Ivan Lins / Vitor Martins, 1993)

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1.

REFORMULANDO CONCEITOS: A PROPOSTA DE DOMINIQUE MAINGUENEAU

Como foi dito anteriormente, Dominique Maingueneau questiona os conceitos, ou melhor, a articulao entre os conceitos de condies de produo e de formao discursiva, no mbito da Anlise do Discurso Francesa. Segundo o autor (1989), tais categorias so freqentemente vistas segundo a frmula conjunto/subconjunto, como um exterior que se ope a um interior, ou um anterior a um posterior. Para o autor, as duas realidades so imbricadas, como as duas faces de uma folha de papel. Assim, antes de pensar uma relao de anterioridade em que um discurso se constitui de tal modo conforme as coeres do contexto no qual ele produzido, prefervel pensar que a produo daquele discurso supe suas condies de realizao. Noutras palavras, a existncia de qualquer discurso traz inscritas em si as condies de sua existncia. Para evitar a contaminao que os dois conceitos herdaram dessa viso dualista, Maingueneau prefere falar de prtica discursiva, expresso que integra a formao discursiva, que seria uma espcie de dimenso linguageira da discursividade, e a noo de comunidade discursiva, a vertente social da atividade discursiva, que remeteria no apenas ao grupo ou a organizao de grupos no interior dos quais so produzidos, gerados os textos que dependem da formao discursiva (...), mas tambm a tudo que este(s) grupo(s) implica(m) no plano da organizao material e modos de vida (1989 : 56). A partir dessa conceituao, duas possibilidades de pesquisa, em estreita relao,

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se pem: investigar a imbricao entre o texto e seu processo de produo/circulao, verificando como as prticas discursivas fundam cenas enunciativas na materialidade lingstica dos textos e como esto inscritas a as condies dessa fundao (Maingueneau, 1989, 1995, 1996a, 1996b); e analisar a organizao social das comunidades discursivas, ou seja, verificar como, ao mettre en oeuvre a produo simblica de uma sociedade, os grupos envolvidos com a produo do discurso interagem entre si, demarcando espaos, legitimando-se um nos/aos outros, mesclando-se ou entrando em conflito. No s isso (o que implicaria na verdade em uma sociologia da linguagem), mas conceber a prtica discursiva como parte integrante e modo de ser dessa organizao (Maingueneau, 1984, 1995; Maingueneau e Cossutta, 1995, e Cossutta, 1993). Assim posto, torna-se perfeitamente legtimo o estudo do discurso ltero-musical, que ser considerado resultante da prtica de uma comunidade discursiva que pe em funcionamento um complexo processo de produo de sentido que envolve estilos de vida, gestos, rituais de criao, enfim, um modo de ser que a identifica e a diferencia de outras prticas discursivas. 1.1 O primado do interdiscurso

Uma das crticas feitas primeira gerao da AD Francesa que esta costumava ver os discursos como fechados sobre si mesmos, para ento estabelecer sua identidade, baseada no que, na superfcie discursiva, os configurava como iguais a si prprios em oposio a um exterior. Da a tendncia a se tomarem textos emanados

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de formaes discursivas previamente supostas como homogneas (discurso comunista, discurso cristo etc.), com o objetivo de extrair estruturas elementares que dariam conta do funcionamento discursivo daquele tipo de discurso. Essa perspectiva foi abandonada por outra segundo a qual o discurso s pode ser encarado em sua relao inextricvel entre sua identidade discursiva e seu Outro (Maingueneau, 1984). Das vrias tendncias que reagiram antiga abordagem do discurso e contriburam para essa nova perspectiva, descreveremos sucintamente trs: a aberta por Jacqueline Authier-Revuz, que distingue heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva; o resgate da teoria dialgica do chamado Crculo de Bakhtin; e as reflexes acerca da intertextualidade, de autores como Genette, Kristeva etc. Sua importncia aqui reside no apenas no fato de que se encontram no mesmo campo de interesse que nosso referencial terico principal, qual seja, o da Anlise do Discurso de linha francesa, na orientao de Maingueneau, mas tambm porque alguns de seus conceitos e distines sero por demais teis como instrumentos de anlise emprica.

1.1.1 Fontes constitutivas do primado do interdiscurso

Comearemos pelo Crculo de Bakhtin, no somente por uma questo de anterioridade cronolgica, mas por reconhecer sua influncia fundadora nas outras perspectivas, inclusive na de Maingueneau.

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Em seguida, exporemos as demais, seguidas de uma sistematizao dessas perspectivas com o objetivo de organizar nosso instrumental terico.

1.1.1.1

O dialogismo

A perspectiva bakhtiniana v a linguagem como fenmeno essencialmente dialgico. Ou seja, para ela, trata-se de uma atividade que consiste, em todas as suas dimenses, numa dinmica pluriinterativa, em que cada elemento ou ao marcado pela presena irredutvel e, por vezes, conflituosa da subjetividade e da alteridade. Assim, o signo, por exemplo, enquanto objeto significativo mnimo dessa atividade, visto como ideolgico, isto , como necessariamente j habitado por outros pontos de vista, mas tambm e conseqentemente de significao sempre inacabada e, por isso, sempre sujeita a disputa pelas foras sociais que o utilizam. Essa propriedade do signo, de comportar em si a marca do eu e do(s) outro(s), faz dele um lugar onde se confrontam ndices de valores contraditrios:...O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. () esta plurivalncia social do signo ideolgico (...), este entrecruzamento dos ndices de valor, que torna o signo vivo e mvel, capaz de evoluir. O signo, se subtrado s tenses da luta social, se degenerar em alegoria, tornar-se- objeto de estudo de fillogos e no ser mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. (Bakhtin, 1995 : 46)

Mas, se cada palavra marcada constitutivamente pelo uso que dela fizeram e fazem mltiplos outros falantes, assim tambm todo enunciado est enraizado em um contexto social pelo qual marcado profundamente. Um enunciado no passa de um

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elo de uma cadeia de enunciados: alm de utilizar signos dialgicos, sempre dirigido para outrem. Est, portanto, atravessado pelo ponto de vista, pelas vises de mundo alheias:Toda enunciao, mesmo na forma imobilizada da escrita, uma resposta a alguma coisa e construda como tal. Toda inscrio prolonga aquelas que a precederam, trava uma polmica com elas, conta com as reaes ativas da compreenso, antecipa-as. Cada inscrio constitui uma parte inalienvel da cincia ou da literatura ou da vida poltica. (: 98)

Em certos casos, esse dialogismo constitutivo se escancara, tornando mais visveis as relaes entre a palavra autoral e a palavra alheia, isto , revelando com maior nitidez a polifonia. Assim, a polifonia manifesta a subjetividade do falante, traduzida por sua atitude dialgica sobre o discurso do outro. Trata-se da orquestrao consciente dessa voz na voz do enunciador, da qual o romance a forma mais bem acabada. Mais especificamente, no romance tem-se um macro-enunciado que tem por objeto mesmo a orquestrao de mltiplas vozes e linguagens:O romance uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, s vezes de lnguas e de vozes individuais. A estratificao interna de uma lngua nacional nica em dialetos sociais, maneirismos de grupos, jarges profissionais, linguagens de gneros, fala das geraes, das idades, das tendncias, das autoridades, dos crculos e das modas passageiras, das linguagens de certos dias e mesmo de certas horas (cada dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulrio, seus acentos), enfim, toda estratificao interna de cada lngua em cada momento dado de sua existncia histrica constitui premissa indispensvel do gnero romanesco. graas a este

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plurilingismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo seu mundo objetal, semntico, figurativo e expressivo. O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gneros intercalados, os discursos das personagens no passam de unidades bsicas de composio com a ajuda das quais o plurilingismo se introduz no romance. (Bakhtin, 1993 : 74/75)

Em suma, a hiptese terica de Bakhtin sustenta que o discurso manifestao de subjetividade e ao mesmo tempo de socialidade (nossa conscincia formada socialmente e como tal ela sntese de mltiplas subjetividades). O discurso , portanto, essencialmente heterogneo. O sujeito do discurso utiliza sempre as palavras dos outros e as utiliza ora passivamente, atravs das palavras que ele aprendeu socialmente e que herdou das geraes anteriores, ora ativamente, na medida em que ele cita as palavras dos outros intencionalmente, mesmo que no marque de maneira explcita essa citao em seu discurso, e tambm na medida em que seu discurso sempre resposta a outros discursos passados ou futuros (antecipados). Assim, o dialogismo bakhtiniano6, ao conceber a linguagem como uma atividade humana constitutivamente heterognea e interativa, social e plurilingstica, em que a relao com o Outro a base da discursividade, abre um horizonte terico fundador para diversos desenvolvimentos tericos posteriores.

6

A reflexo do autor russo estende-se ainda, de modo coerente, a muitos outros fenmenos concernentes linguagem e cultura em geral, quais sejam as noes de gnero de discurso,

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1.1.1.2

As heterogeneidades enunciativas

A concepo bakhtiniana da linguagem estabelece os princpios gerais norteadores da reflexo sobre a linguagem a partir dos anos 70, com a sua introduo no Ocidente pelo pioneiro Mikhail Bakhtin: le principe dialogique, de Julia Kristeva. Desde ento, a principal preocupao da maioria dos pesquisadores foi a de pensar a operacionalizao das idias-chave do dialogismo para a anlise concreta da atividade verbal. Authier-Revuz (1984, 1985, 1995) uma das que, preocupada com os fenmenos relativos complexidade enunciativa (polifonia, autonmia, ironia etc.), apoiando-se em Bakhtin, nas fundaes da anlise do discurso francesa (Foucault, Althusser e Pcheux) e na abordagem psicanaltica lacaniana, para dar conta da heterogeneidade constitutiva do sujeito e seu discurso (Authier-Revuz, 1984), empreendeu uma dmarche nesse sentido, que se tornou clebre. Uma vez aceito o fato da heterogeneidade discursiva, a autora vai distinguir a heterogeneidade constitutiva do discurso e a heterogeneidade mostrada no discurso, como representando duas ordens de realidades diferentes: a do processo de constituio de um discurso e a do processo de representao, em um discurso, de sua constituio. A primeira, portanto, radical, intrnseca ao processo mesmo da

carnavalizao, foras verbo-ideolgicas etc. Detivmo-nos aqui no que consideramos mais geral em sua teoria e no que diz respeito especificamente questo da interdiscursividade.

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discursividade e, enquanto tal, no localizvel nem representvel na superfcie do discurso: trata-se da presena irredutvel da exterioridade do discurso no prprio discurso. A esta heterogeneidade se ope a representao, no discurso, das diferenciaes, disjunes, fronteiras, atravs das quais o eu do discurso se distancia dessa pluralidade, de outros aos quais ele atribui uma exterioridade (idem, ibidem):Face au a parle de l'htrognit constitutive rpond, travers les comme dit l'autre et les si je puis dire de l'htrognit montre, un je sais ce que je dis, c'est--dire, je sais qui parle, moi ou un autre, et je sais comment je parle, comment j'utilise les mots.7 (1984 : 106, grifos da autora)

Ou seja, a heterogeneidade mostrada todo um movimento enunciativo de retorno do sujeito sua prpria enunciao, que, ao mesmo tempo, representa a conscincia do sujeito falante da inconsistncia de seu discurso e, por outro lado, a iluso de que ele pode recuperar, reconstituir sua enunciao desintegrada pela heterogeneidade constitutiva. Movimento contraditrio, pois ele mesmo quebra a unidade do sujeito, na medida em que este passa a se ver como outro e a ver com os olhos de outro(s) seu prprio discurso. O discurso aparece, ento, como um tecido cheio de furos, e as marcas de heterogeneidade mostrada como fios que suturam esses furos e que deixam suas

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Ante o isto fala da heterogeneidade constitutiva, responde, atravs dos como diz o outro e os se me permito dizer da heterogeneidade mostrada, um eu sei o que estou dizendo, ou seja, eu sei quem fala, eu ou um outro, e eu sei como eu falo, como eu utilizo as palavras.

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marcas. Cabe ento ao analista o trabalho de observao e descrio dessa retrica da falha: l'ensemble des brisures, jointures qui jouent, comme de coutures cachs sous l'unit apparente d'un discours, et que l'analyse - analyse du discours, description des textes littraires et potiques, psychanalyse - peut en partie mettre jour comme traces de l'interdiscours ou du jeu du signifiant, les formes marques de l'htrognit montre opposent la rhtorique de la faille montr, de la couture apparente. 8 (: 108)

Mas nem toda heterogeneidade mostrada marcada. Por vezes, a identidade do sujeito do discurso se entrega a um jogo arriscado com a heterogeneidade constitutiva, dissolvendo-se e confundindo-se com o discurso do outro, apagando propositalmente suas fronteiras, podendo se perder ou, no melhor dos casos, obter sucesso em sua afirmao. Ela recusa, ento, toda proteo frente heterogeneidade constitutiva, na esperana de ser recuperada pelo leitor/ouvinte, confiando-se em que esta fale por si mesma e que faa vir tona sua identidade e seu discurso oblquo sobre o discurso do outro. o caso de estratgias discursivas como o discurso indireto livre, a ironia, a

Ao conjunto de fraturas, remendos que atuam, como costuras escondidas, sob a unidade aparente de um discurso, e que a anlise - anlise do discurso, descrio de textos literrios e poticos, psicanlise - pode, em parte, fazer vir tona como traos do interdiscurso ou do jogo do significante, as formas marcadas da heterogeneidade mostrada opem a retrica da falha mostrada, da costura aparente.

8

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metfora, os jogos de palavra etc. (idem, ibidem). Authier-Revuz, ento, se dedica a um trabalho meticuloso de pesquisar e classificar o sentido de todas essas formas de ruptura do fio do discurso e da unicidade do sujeito falante, encontrveis sob as mais variadas feies e nos mais variados tipos de enunciao, que a inscrevem o Outro. Os fatos de heterogeneidade mostrada so, na maioria das vezes, marcados por formas como X, como diria..., X, ou melhor, Y..., X, com o perdo da palavra... etc., ou atravs de elementos grficos como aspas, itlicos e outros. Mas cada um deles pode ocorrer de modo no marcado, o que abre espao para categorias, j bastante antigas, construdas a partir de como o discurso se relaciona com a palavra alheia: a pardia, a aluso, o plgio etc.e que recobrem uma variedade de fenmenos denominados de intertextualidade. 1.1.1.3 A intertextualidade

no quadro da teoria do texto, mas tambm da redescoberta das idias do Crculo de Bakhtin, que os conceitos mencionados no pargrafo anterior encontram uma sistematizao a partir de uma preocupao mais estritamente lingstica. Essa sistematizao tem aqui sua importncia, dado que, coerentemente com o modelo de anlise do discurso que adotamos, a pesquisa sobre a materialidade lingstica dos discursos singulares um componente fundamental para a discusso de nossa hiptese. O uso das pesquisas da teoria do texto (assim como a das heterogeneidades) no significa, porm, adotar seus pressupostos de base. Trata-se da utilizao crtica de

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um conhecimento acumulado a partir da premissa bsica da presena constitutiva da alteridade em todo discurso. Seguiremos a sntese das teorias da intertextualidade e a proposta de sistematizao apresentadas por Nathalie Pigay-Gros (1996), acrescentando a essa sistematizao alguns elementos, a nosso ver, a faltantes. Sempre trabalhando na perspectiva do texto literrio francs e com a teoria da intertextualidade de autores franceses, a autora aponta algumas idias que marcaram a histria dessa teoria. Histria marcada pela constante hesitao......entre une approche de l'intertextualit qui met l'accent sur la dynamique et le processus qui la caractrisent, au risque de dissoudre totalement l'objet intertexte, dissmin par la productivit, ou sur la saisie de l'intertexte dans son objectivit; la tension se place entre un intertexte explicite, clairement dmarqu et donc isolable, et la prsomption d'un intertexte implicite, difficile reprer et dont l'objectivit pose galement la question des limites de l'intertextualit. 9 (: 15)

Ela atribui a Julia Kristeva, com sua obra Smiotik, a primeira tentativa de

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...entre uma abordagem da intertextualidade que pe acento sobre a dinmica e o processo que a caracterizam, sob o risco de dissolver inteiramente o objeto intertexto, disseminado pela produtividade, (e outra que pe acento) sobre a captura do intertexto em sua objetividade; a tenso se coloca entre um intertexto explcito, claramente demarcado, portanto, isolvel, e a presuno de um intertexto implcito, difcil de recuperar e do qual a objetividade pe igualmente a questo dos limites da intertextualidade.

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abordar a intertextualidade. Bastante influenciada por Bakhtin, cujas idias ajudou a difundir na Frana, essa autora considera que a intertextualidade essencialmente uma permutao de textos. Para ela, o texto uma combinatria, o lugar de reciclagem de fragmentos de textos: construir um novo texto partir sempre de textos j construdos, que so decompostos, negados, retomados. A construo de um texto , portanto, um processo, uma dinmica intertextual. Mas a intertextualidade de todo texto no provm apenas do fato de que este eventualmente contm elementos emprestados, imitados ou deformados. Qualquer texto, o processo mesmo de produo textual um trabalho de resdistribuio, desconstruo, disseminao de textos anteriores. O texto, ento, um conjunto inextricvel de traos dificilmente recuperveis, muitas vezes inconscientes, de enunciados anteriores ou contemporneos. Podemos constatar que a posio de Kristeva parece se colocar na perspectiva do que Authier-Revuz denomina de heterogeneidade constitutiva. O objeto intertexto , por esse ngulo, um objeto disperso; resulta intil sua identificao e classificao, uma vez que ele est em toda parte. Uma orientao diferente a de Grard Genette, que estabelece sua concepo de intertextualidade no seu Palimpsestes. Para esse autor, a intertextualidade apenas um dos elementos definidores da instituio literria, enquanto conjunto de categorias gerais (tipos de discurso, modos de enunciao, gneros literrios etc.) s quais cada texto singular pretende adeso. Para Genette, o objeto de uma teoria do texto literrio no seria os textos em sua singularidade, mas tudo aquilo que situa o texto no contexto de sua relao explcita ou implcita com outros textos, em uma palavra, a

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transtextualidade. Esta, ento, incluiria cinco tipos de relaes: + A arquitextualidade: relao que um texto contrai com o gnero de

discurso no qual ele pretende se enquadrar. Assim, fazer um soneto desde j contrair uma relao com outros textos do mesmo gnero; + A paratextualidade: relao de um texto com o seu paratexto (prefcio,

advertncia, ilustraes etc.). Dificilmente um texto, sobretudo se ele escrito, aparece isolado. Ele quase sempre acompanhado por textos apostos que o contextualizam; + A metatextualidade: relao estabelecida quando um texto comenta outro,

sem necessariamente cit-lo ou nome-lo. Trata-se da relao crtica, analtica, interpretativa; + A hipertextualidade: relao de derivao entre um determinado texto

(hipotexto) e um outro (hipertexto), que construdo a partir dele. o caso da pardia e do pastiche; + A intertextualidade: presena mais ou menos explcita de um texto no

interior de um outro. Entram a a citao, o plgio, a aluso. Desse modo, Genette coloca a intertextualidade em um quadro bastante restritivo, dando conta apenas das relaes estritamente objetivas de pertinncia entre textos. Mesmo fenmenos como a pardia e o pastiche, classicamente considerados como fatos de intertextualidade, esto excludos do conceito. Trata-se, ento, de uma concepo oposta de Julia Kristeva, portanto, merecedora de ponderao por parte de

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Pigay-Gros:Pour tre (...) pertinente l'analyse, en effet, la notion (d'intertextualit) ne doit tre ni l'objet d'une extension excessive - toute trace d'htrognit serait une marque intertextuelle -, ni d'une restriction abusive - seules importeraient les formes explicites, qu'il faudrait examiner indpendamment de toute rfrence l'auteur et l'Histoire. 10 (: 41)

A autora prope, finalmente, uma abordagem dos fenmenos intertextuais enquanto estratgias de escrita deliberada, em meio heterogeneidade generalizada de todo discurso, concepo inseparvel da considerao dos efeitos de sentido resultantes dessas estratgias:Les effets de sens qu'elles produisent, assurment distincts de l'intention de l'auteur, ne peuvent tre ngligs: citer, faire une allusion, parodier..., c'est aussi rechercher la satire, le comique, dtourner la signification, malmener l'autorit, renverser l'idologie. (...) certains procds intertextuels, le pastiche, par exemple, exigent que l'auteur ait une conscience aigu de sa propre criture et contrle avec une trs grande prcision la part d'htrognit qu'elle inclut 11. (: 40)

Para ser pertinente anlise, com efeito, a noo (de intertextualidade) no deve ser nem objeto de uma extenso excessiva - todo trao de heterogeneidade seria uma marca intertextual - nem de uma restrio abusiva - apenas importariam as formas explcitas, que seria necessrio examinar independentemente de toda referncia ao autor e Histria. 11 Os efeitos de sentido que eles produzem, seguramente distintos da inteno do autor, no podem ser negligenciados: citar, fazer uma aluso, parodiar..., tambm buscar a stira, o cmico, distorcer a significao, destratar a autoridade, inverter a ideologia. (...) certos procedimentos intertextuais, o

10

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1.1.2 Anlise do discurso e alteridade: uma sistematizao

Cada uma das teorias apresentadas acima prope objetivamente a investigao de relaes especficas seja entre textos (relaes intertextuais), seja entre discursos (relaes interdiscursivas), seja entre o sujeito e seu discurso (relaes metadiscursivas). Discutamos um pouco cada uma delas.

1.1.2.1

As relaes intertextuais

Abaixo vemos um esquema da tipologia das relaes intertextuais proposta por Piegay-Gros (op. cit. : 45):

pastiche, por exemplo, exigem que o autor tenha uma conscincia aguda de sua prpria escritura e um controle de considervel preciso da parte de heterogeneidade que ele inclui.

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Relaes de co-presena Relaes intertextuais Relaes de Derivao

Citao Referncia Plgio Aluso Pardia Travestismo burlesco Pastiche

Como se pode notar pelo esquema, Piegay-Gros distingue dois tipos de relaes intertextuais: aquelas fundadas sobre uma relao de co-presena entre dois ou mais textos e as que so fundadas sobre uma relao de derivao de um ou vrios textos a partir de um texto-matriz, podendo ser, cada uma delas, explcitas (marcadas por um cdigo tipogrfico ou por meno) ou implcitas (cabendo ao leitor sua recuperao). As relaes de co-presena englobam a citao, a referncia, a aluso e o plgio, sendo as duas primeiras explcitas e as duas ltimas implcitas. A citao a mais emblemtica das relaes intertextuais. quando se torna mais clara a insero de um texto em outro. Um sistema de sinais tipogrficos (aspas, itlico etc.) materializa essa heterogeneidade. Pode cumprir diversas funes, dentre as quais, a autoridade, o ornamento etc. A referncia, do mesmo modo que a citao, remete o leitor a um outro texto, sem, porm, convocar as palavras deste. Nesse caso, podem ser evocados ttulos, personagens, lugares, pocas etc. pertencentes a outros textos.

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J o plgio uma espcie de citao no marcada. Um texto plagia outro quando apresenta uma passagem deste, sem indicar que isto foi feito. A idia de plgio levanta a questo da normatizao social da intertextualidade: a forma e o grau da presena de um texto em outro esto sujeitos a uma regulao jurdica e moral. Assim, o plgio condenado socialmente e ser considerado tanto mais censurvel e punvel, tanto maior e mais literal for o trecho convocado (: 50). Por fim, a aluso, como o plgio, no explicita a retomada intertextual, mas, diferente deste e do mesmo modo que a referncia, no convoca literalmente as palavras do outro. A aluso elabora um jogo de sugesto ao leitor, solicitando sua memria e inteligncia, sem romper a continuidade do texto (: 52). Assim, para que a aluso faa efeito, necessrio que o leitor relacione o que o autor disse efetivamente com o que ele deixou de dizer diretamente. Em outras palavras, o leitor deve recuperar o texto aludido por meio dos poucos ndices que o autor lhe pe disposio. Tais ndices so, na maior parte das vezes, palavras, mas podem aparecer como um formato textual, uma entonao, um estilo. As relaes de derivao, de sua parte, supem uma intimidade maior e mais integral entre dois textos. Incluem basicamente trs tipos: a pardia, o travestismo burlesco e o pastiche. A pardia consiste na modificao do assunto ou contedo de um texto, que conserva o seu estilo ou estrutura. A pardia pode agir em diversos graus: pode deformar mxima ou minimamente o contedo do texto parodiado, conservando sempre sua estrutura; pode tambm conservar contedo e estrutura, mudando-lhe

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apenas o contexto etc. Seja como for, a estrutura do texto primeiro sempre respeitada, causando um efeito de diferena e semelhana, que demanda engenhosidade e suscita o ldico e a carnavalizao. O inverso ocorre com o travestismo burlesco, que retoma o contedo, mas deturpa completamente a estrutura ou o estilo do texto derivante. Do mesmo modo que a pardia, sua eficcia depende do reconhecimento do hipotexto por parte do leitor. Como a pardia, tambm o travestismo burlesco est ligado muitas vezes a uma vontade de subverso de um texto consagrado inclinada stira e carnavalizao deste. Mas nem sempre: ainda que seu uso mais comum seja, de fato, a dessacralizao irreverente, o travestismo burlesco serve muitas vezes atualizao de textos em linguagens arcaicas e tambm como forma de simplificao de textos eruditos. Finalmente, o pastiche consiste na imitao de um estilo. Contrariamente pardia, ele no atua sobre uma obra especfica; imita, sim, um jeito textual que atravessa vrios textos de um mesmo autor. Tem em comum com a pardia, o respeito pela forma, mas se diferencia desta por sua indiferena quanto ao contedo. Enquanto na pardia, o contedo se relaciona por oposio ao contedo do texto parodiado; no pastiche, o contedo indiferente, de modo que qualquer assunto pode ser objeto de um pastiche: o que importa o estilo do autor pastichado. As trs relaes de derivao aqui expostas tm em comum no apenas o fato de trabalharem sobre produes textuais consagradas, mas tambm o fato de jogarem com um sentimento de identidade e diferena que podem produzir um efeito ldico sobre o leitor e, ao mesmo tempo, provocar nele seja um distanciamento crtico, seja uma

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desmistificao em relao s grandes obras. Distinguem-se das relaes de copresena pelo fato de que as obras que dela lanam mo devem sua existncia ao texto derivante, o que no ocorre com as que, de diversos modos, tomam emprestadas passagens de outros textos. Mas ambas, como vimos, so relaes potencialmente subversivas. Elas no podem, no entanto, ser separadas de modo estanque. Assim, uma pardia, por exemplo, no raramente se utiliza de uma montagem de citaes. Adotaremos a classificao de Pigay-Gros para a considerao das relaes intertextuais eventualmente encontradas em nosso corpus, fazendo porm as seguintes ressalvas: + A intertextualidade no pode estar encerrada no mbito da literatura, como pode fazer crer o trabalho da autora. Trata-se mesmo de uma prtica inerente a no importa qual prtica discursiva e que pode estabelecer uma rede de laos entre elas (literatura # cincia # religio # cano # discurso cotidiano # etc .)12; + No precisa se limitar a trechos de textos contnuos. O texto reportado assume tamanhos extremamente variveis e se apresenta por vezes fragmentado. Podese tratar de palavras ou expresses dispersas e alcanar a mesma dimenso do texto

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O sinal # representa aqui relao entre prticas discursivas. Bem entendido, dentro de cada uma dessas prticas, a intertextualidade estabelece relaes com textos especficos.

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portador (o que constituiria o caso limite de apropriao integral do texto alheio). A intertextualidade supe um modo de recortar o texto alheio coerente com o modo de ser do texto integrante. Citar palavras, frases ou versos completos de uma poesia, por exemplo, implica em trs modos diferentes de lidar com o texto alheio, modos estes totalmente pertinentes ao posicionamento do texto citante; + Quanto s relaes de derivao, parece-nos que a categoria travestismo burlesco por demais especfica ao discurso literrio e ser praticamente ignorada em nosso trabalho; + J o conceito de pardia apresenta, conforme salienta Maingueneau (1989 : 102), a desvantagem de ter historicamente adquirido um sentido depreciativo. Os problemas relativos aos dois mecanismos intertextuais arrolados por PiegayGros como relaes de derivao (a pardia e o travestismo burlesco) sugerem uma modificao geral da segunda categoria da classificao da autora, qual seja a de relaes de derivao. Adotaremos a sugesto de Maingueneau (idem, ibidem), que propem denomin-las de imitao. Para os autores, a imitao pode assumir dois valores opostos: a captao e a subverso. A captao acontece quando um locutor, pretendendo beneficiar-se da autoridade do enunciado de outro, incorpora em diversos aspectos a estrutura deste e mostra que o faz. Assim, diferentemente do plgio, que apaga o enunciador plagiado, aquele que usa da imitao captativa revela sua atitude intertextual com o objetivo de marcar sua filiao a determinado estilo, escola ou doutrina esttica. Alm disso, o plagiador insere furtivamente em seu texto trechos da enunciao de outrem, enquanto que o imitador incorpora o todo de sua enunciao a

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partir do modelo alheio, apagando a si mesmo enquanto enunciador singular. Na subverso, por sua vez, ocorre esse mesmo fenmeno de apagamento, mas com objetivos opostos: ao imitar um texto, o locutor pretende desqualific-lo no prprio movimento dessa imitao. Portanto, a imitao, seja captativa ou subversiva, conta com a cooperao do leitor ou ouvinte para surtir efeito, pois, diferentemente das relaes de co-presena, assumem relaes paradigmticas com o texto alheio, que est ausente. A pardia ser, ento, considerada uma imitao subversiva e o pastiche, uma relao captativa. Sintetizando, utilizaremos em nosso trabalho o seguinte esquema de categorias intertextuais:

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Relaes de co-presena Relaes intertextuais

Citao Referncia Plgio Aluso Captativa Pastiche, estilizao

Relaes de derivao

Subversiva Pardia

Dessas relaes, veremos, apenas a citao, a referncia, a aluso e a pardia tero alguma utilidade no exame das letras das canes.

1.1.2.2

As relaes interdiscursivas

A perspectiva bakhtiniana sugere a existncia de relaes interdiscursivas. Como o prprio nome indica, elas consistem nas relaes da enunciao com o interdiscurso, isto , com o suposto exterior discursivo. Note-se que aqui o sentido de interdiscurso estrito, pois refere-se ao interdiscurso enquanto sistemas discursivos annimos (modos de dizer, gneros, regras, frmulas, formaes discursivas etc.) que circulam na sociedade e compem uma memria. A interdiscursividade , assim, a convocao de, ou o dar a ouvir, vozes exteriores ao fio discursivo (ou seja, ao que foi efetivamente dito), que flutuam na esfera interdiscursiva, quer fazendo parte de sistemas linguageiros co-relacionados a prticas sociais (formaes discursivas), quer como vozes ou enunciaes encenadas, implcitas ou mascaradas.

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Assim, quando uma determinada formao discursiva faz uso de expresses populares, quando utiliza termos habitados por outras esferas, registros discursivos e at mesmo lingsticos, ou ainda quando se reporta a etos, gestos e esquemas discursivos de outras prticas discursivas, temos relaes interdiscursivas ou interdiscursividade. Podemos incluir, ento, como interdiscursivos mecanismos semelhantes s relaes textuais, com a diferena que o objeto da interdiscursividade no o texto, mas os elementos arrolados no pargrafo anterior. Assim, a partir da classificao dos mecanismos intertextuais esquematizados por Pigay-Gross, apresentados e reformulados acima, podemos, portanto, obter o seguinte esquema, adaptado para as relaes interdiscursivas: Referncia Relaes de co-presena Aluso Relaes Interdiscursivas Captativa Relaes de Imitao Subversiva Temos assim os seguintes casos:49

cenografia validada; etos; palavras; cdigos de linguagem; gneros, etc.

a) referncia interdiscursiva: quando um texto pertencente a uma formao discursiva comenta, representa, descreve, em suma, se refere de alguma forma a outra formao discursiva ou ao interdiscurso; b) aluso interdiscursiva: a aluso, neste caso, uma maneira engenhosa 13 de se referir palavra ou linguagem do exterior discursivo, utilizando-se de recursos como o jogo de palavras, a implicitao e o disfarce, dentre outros; dispensando a meno de personagens, cenrios e autores (referncia discursiva) e, principalmente, a reportao de trechos de textos alheios (citao intertextual); c) captao interdiscursiva: um texto pode representar cenografias validadas pertencentes a outras prticas discursivas. Podemos citar como exemplo certos poemas de carter religioso cuja cenografia se apia em cenrios referentes aos episdios bblicos. Pode tambm mimetizar o etos de outros discursos para legitimar seu discurso. o caso de um professor que, ao dar a sua aula, imita a postura do cientista. d) subverso interdiscursiva: textos podem incorporar parodicamente etos, cenrios validados, cdigos de linguagem etc. de outras formaes discursivas para subvert-los, legitimando-se por oposio. Embora a interdiscursividade seja um fenmeno de natureza enunciativa, ela pode incidir sobre a palavra. Trata-se da interdiscursividade lexical, em que a

13

A palavra Aluso provm do latim allusione, que vem de ludere, jogar.

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palavra que provoca a remisso a uma outra realidade enunciativa. So exemplos, a polissemia, a argumentao, a metfora. Ser necessria, no entanto, uma concepo discursiva e dialgica desses fenmenos, tradicionalmente encarados como problemas meramente da ordem da palavra isolada. Essa concepo implicaria em ver nesses mecanismos semnticos o confronto entre duas vozes que pertencem a diferentes esferas discursivas. Eles estabelecem relaes entre mundos discursivos, podendo funcionar como um link entre duas formaes discursivas. Ou, em termos bakhtinianos, que podem significar o ponto de articulao que pe em dilogo tensivo no apenas dois ou mais sentidos ou enunciados, mas duas vozes pertencentes a duas esferas discursivas diferentes, um elo de ligao entre linguagens referentes a extratos sociais, gneros de discurso, estilos, formaes discursivas etc. Tal concepo leva em conta, portanto, que as palavras, quando enunciadas, esto sempre grvidas das diversas prticas discursivas que delas se utilizam para interagir na sociedade. Assim, quando um economista afirma que Ano processo histrico de formao econmica do Nordeste, as particularidades demogrficas, econmicas e ecolgicas de cada regio se articularam dentro de um sedimentado sistema de relaes sociais...14, a metfora efetuada pelo uso da palavra sendimentado evoca

FIGUEROA, Manoel. (1977). O problema agrrio no Nordeste do Brasil. So Paulo / Recife: Hucitec / Sudene, p. 5.

14

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uma outra prtica discursiva em que palavra sedimentao usada como significando o processo pelo qual substncias minerais ou rochosas, ou substncias de origem orgnica, se depositam em ambiente aquoso ou areo15: a prtica discursiva das cincias geolgicas. A metfora ento acaba funcionando como encruzilhada de vozes, fazendo ouvir no apenas a voz da prtica discursiva qual pertence o discurso, mas a voz de uma prtica pertencente a outra regio discursiva. Em nosso caso especfico, veremos que a metfora pode servir, na cano popular, como efetuao de uma remisso para outras prticas discursivas, como a religiosa, a cientfica e a literria. A polissemia, por sua vez, ao evocar diferentes sentidos para uma mesma unidade lexical, suscita diferentes experincias discursivas, pois todo e qualquer sentido resultado da sedimentao que o uso dos falantes operou na histria de uma palavra. Com efeito, a polissemia objeto de disputa no mbito da produo discursiva da sociedade. Eni Orlandi, em seu artigo Tipologia de discurso e regras conversacionais16 e em outros, sugere que a existncia de dominncias e tendncias entre os sentidos das palavras ligada s condies de produo dos discursos. Para a autora, o sentido

15

Verbete Sedimentao de Ferreira, Aurlio B. de H. (1994). Dicionrio Aurlio Eletrnico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 16 Orlandi (1987 : 149 B 175).

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literal o sentido oficial, institucionalizado, produto de uma sedimentao histrica. No havendo um sentido central j dado para as palavras, todos os sentidos so, de direito, sentidos possveis. Mas em certas condies de produo pode haver dominncia de um sentido sobre os outros; ou, em outras palavras, uma tendncia polissemia ou ao seu controle. A autora prope ento uma tipologia de discurso que tomar como critrio a tolerncia para com a polissemia, de acordo com as condies de produo. Para Orlandi, pode-se vislumbrar trs grandes tipos de discursos: o discurso ldico, que privilegia a pluralidade de sentidos e tende a apagar a dominncia de um dos sentidos em relao aos outros; o discurso polmico, onde ocorre uma disputa entre os sentidos, em que o privilgio conferido a um deles negociado e fundamentado; e o discurso autoritrio, que absolutiza um dos sentidos em jogo de tal maneira que ele no se torne apenas o dominante, mas o nico (: 167). A autora resume assim sua tipologia:... no discurso ldico a polissemia aberta (veja-se o exemplo da poesia), no polmico controlada (veja-se o debate), no autoritrio contida (vejam-se definies estritas em argumentos de autoridade) (idem, ibidem)

Em nosso caso, a polissemia no discurso com o qual estamos lidando, indiscutivelmente de carter ldico, por conta de suas pretenses constituintes, conforme nossa hiptese, deve se caracterizar por traduzir, segundo seu ponto de vista e objetivos (corroborar ou subverter), as diversas frmulas com que os outros discursos intentam controlar (discursos polmicos - como o discurso cientfico, por exemplo) ou engessar (discursos autoritrios - como o discurso religioso) a polissemia.

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Cabe ainda lembrar que pretendemos incluir como fenmenos polissmicos todos aqueles derivados da plasticidade das palavras, que possibilita excedentes de significao pretendidos ou incontrolados, quais sejam os produzidos pelos trocadilhos, jogos de sons, de slabas e de palavras, fuso e justaposio de palavras etc. Esses fenmenos possibilitam que as palavras, quando modificadas ou articuladas a outras, adquiram outras leituras e novos matizes semnticos, explodindo a monossemia institucionalizada pela lngua. Quanto argumentao, mister notar que tal fenmeno articula no apenas dois ou trs contedos, mas duas ou mais vozes ou discursos, ou ainda, posies enunciativas. Guimares (1995) considera que a frase Os incidentes de Leme envergonham o pas, mas o pas no parece estar envergonhado. A nao no est tomada por um sentimento doloroso de estupor ou indignao17 poderia ser analisada da seguinte forma:r = Os incidentes de Leme envergonham o pas, mas p = o pas no parece estar envergonhado. q = A nao no est tomada por um sentimento doloroso de estupor ou indignao. (no-r)

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Revista Senhor , 279, 22/07/86, p. 22, apud Guimares, 1995 : 79.

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Numa anlise meramente semntica, poder-se-ia dizer, ento, que, atravs de vocbulos como mas, porm, contudo, etc., coordenam-se dois argumentos (p e q) com o fim de, num movimento conjunto, refutar, retificar ou justificar a recusa de r. Numa anlise discursiva, no entanto, os dois argumentos podem ser encarados como duas posies discursivas presentes na sociedade:...este movimento argumentativo pode ser adequadamente apreendido e explicado a partir da considerao do interdiscurso na enunciao, e portanto na argumentao. Esta seqncia de texto cruza dois discurso que caracterizo sem maiores precises como: o da comodidade do brasileiro, de um lado, e, de outro, o dos direitos e deveres da cidadania. Pode-se dizer que o texto apresenta o discurso da comodidade do brasileiro como predominante e isto dirige o funcionamento das relaes argumentativas. Por outro lado, pode-se dizer que o lugar do sujeito-autor assume o discurso dos direitos e deveres da cidadania. Ou seja, o autor-jornalista apresenta-se como determinado pelo discurso da comodidade do brasileiro, ao mesmo tempo em que a fora do discurso da cidadania contra a violncia do Estado (um dever da cidadania) determina este outro lugar, que se apresenta como pessoal. (: 80)

Assim, o processo argumentativo consiste num gesto de relacionar dois ou mais discursos. Mas do que isso argumentar consiste em induzir a que um deles seja interpretado como concluso e o(s) outro(s) como argumento. Esta empreitada pode ou no ser exitosa, mas marca sem dvida um posicionamento do enunciador no interdiscurso. assim que a metfora, como a polissemia e a argumentao, sero encaradas em nossa anlise do corpus, como palavras do discurso responsveis pela remisso a

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uma exterioridade discursiva, mais precisamente a outra prtica discursiva. O leitor deve ter notado at aqui um uso restrito e um uso amplo do adjetivo interdiscursivo. Ele foi usado no sentido restrito quando designou qualidade relativa a uma realidade amorfa de j-ditos, regras e modos de dizer do exterior discursivo que envolvem e atravessam as formaes discursivas, sendo que o processo de o discurso se demarcar remetendo a essa realidade foi chamado de interdiscursividade. O conceito foi usado em sentido amplo quando designou a propriedade de todo discurso se constituir sempre e necessariamente em funo dos outros, independentemente de qualquer marca ou gesto remissivo a esses outros. nesse ltimo sentido que tomaremos o termo interdiscursivo contido no ttulo desta seo, prosseguindo assim a exposio de nosso referencial terico especfico, qual seja, a orientao que Dominique Maingueneau imprime Anlise do Discurso de linha francesa. Considerando demasiado vago o termo interdiscurso, o autor (1984) prope uma tripartio do conceito em: universo discursivo, campo discursivo e espao discursivo. O universo discursivo compreenderia o conjunto de formaes discursivas de todos os tipos interagindo em uma dada conjuntura. Segundo o autor, trata-se de um conceito de pouca utilidade para o analista, dada sua grande extenso, constituindo apenas um horizonte a partir do qual sero construdos domnios suscetveis de ser estudados, os campos discursivos (: 27). Campos discursivos seriam o conjunto de formaes discursivas em

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concorrncia, delimitando-se reciprocamente em uma regio determinada do universo discursivo (: 28). O autor chama a ateno para que concorrncia seja entendida em sentido amplo, abrangendo no apenas o enfrentamento aberto, mas tambm a aliana, a indiferena aparente etc. entre discursos que possuem a mesma funo social e divergem quanto maneira de exerc-la. Seriam campos discursivos o poltico, o pedaggico, o filosfico etc. ou subconjuntos desses, que comporiam, dentro desses campos maiores, uma configurao relativamente autnoma. Assim que, por exemplo, Maingueneau (idem) toma como objeto de anlise o discurso devoto e o discurso jansenista, subconjuntos do campo discursivo religioso, ao invs de abordar diretamente este ltimo em sua totalidade. Por fim, os espaos discursivos so subconjuntos de formaes discursivas cuja interrelao o analista julga pertinente analisar. Trata-se, portanto, de um recorte resultante de hipteses fundadas no conhecimento dos textos e da histria destes, que sero confirmadas ou rejeitadas no decorrer da pesquisa.A polmica entre os dois campos discursivos anteriormente colocados, que constituiu objeto de anlise por Maingueneau (idem), exemplifica a noo de espao discursivo. No nosso caso, teremos o espao discursivo da interdiscursividade entre o discurso ltero-musical brasileiro e os discursos literrio, cientfico e religioso, em um dado momento histrico, guiados pela hiptese de que o privilegiamento desses discursos faz parte da pretenso constituinte de tal prtica discursiva. Lidaremos, assim, com o campo discursivo da produo ltero-musical brasileira, de natureza intersemitica e de definio ainda inconsistente, dilacerado que por hierarquias

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instveis (MPB, brega, folclore, ...), posicionamentos (mineiros, vanguardas, Rock Brasileiro, ...), movimentos estticos (Bossa Nova, Tropicalismo, ...) etc. Veremos mais adiante que, nesse campo discursivo, comumente denominado de Msica Popular Brasileira, atuam e interagem diversos posicionamentos, que disputam lugares sobre o campo discursivo, procurando orient-lo, defini-lo, nele marcar posies ou mesmo questionar sua existncia ou apagar suas fronteiras.

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1.1.2.3

As relaes metadiscursivas

Em um sentido estrito, as relaes metadiscursivas, ou metadiscursividade, so o que Jacqueline Authier-Revuz, autora de um profundo estudo sobre o tema18, prope chamar de relao de conotao ou modalizao autonmica. Tal fenmeno supe, ao ver da autora, a autonmia simples, processo pelo qual um fragmento do discurso por ele mencionado em meio aos outros elementos lingsticos por ele usados. A autonmia simples inclui o discurso direto, onde h uma ruptura sinttica seguida da apresentao de um outro discurso como um objeto: Z disse: 'X'. Mas abrange tambm outras formas de meno atravs de um gesto metalingstico: a palavra X..., o termo Y..., a expresso Z..., o adjetivo W... etc. (Authier-Revuz, 1984 : 103). No entanto, o que a autora denomina modalizao autonmica supe um movimento reflexivo em que o locutor opacifica seu prprio dizer, isto , suspende a obviedade ou transparncia de determinada palavra ou expresso de seu discurso, ao tom-la como objeto. Em poucas palavras, ele usa e menciona18 o signo ao mesmo tempo, tal como no exemplo abaixo:

Authier-Revuz (1995), trabalho resumido em Authier-Revuz (1982) e ainda mais resumido em Authier-Revuz (1984). 18 A autora lana mo da distino clssica entre meno e uso. Quando dizemos cantar bom, estamos usando a palavra cantar; mas quando dizemos cantar um verbo, mencionamos a mesma.18

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um marginal, como se diz hoje em dia. 19

Em que a palavra marginal utilizada ao mesmo tempo como um falar sobre o mundo (marginal = indivduo margem da sociedade) e sobre o signo marginal. Em casos como esse, a heterogeneidade consiste em: 1. cumular duas estruturas semiticas hierarquizadas: primeiro relaciona-se um signo a um referente (semitica denotativa) e, em seguida, toma-se este signo como referente (semitica metalingstica); 2. efetuar-se como falando das coisas com palavras; representar-se fazendo isto, e representar, atravs da autonmia, a forma desse fazer (1995 : 33); 3. alm desse desdobramento do sujeito enunciativo, h tambm o remeter-se a uma outra fonte enunciativa em relao qual o discurso pretende afirmar sua identidade e unidade. Neste ltimo caso, essa alteridade pode ser representada por: a) uma outra lngua (al dente, como dizem os italianos); b) um outro registro discursivo (familiar, vulgar etc.: para usar uma palavra dos jovens de hoje em dia...);

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Exemplo fornecido pela autora, em Authier-Revuz (1995: 31)

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c) um outro discurso (tcnico, poltico, marxista etc.: ...'significante', no sentido que a lingstica estrutural confere ao termo...); d) uma outra modalidade de significao da palavra, recorrendo-se explicitamente a um exterior lingstico ou a um outro universo discursivo (no primeiro caso, o da lngua como lugar de polissemia, homonimia, metfora20 etc. - X, sem trocadilho ou X, para usar de um eufemismo...; e no segundo caso, o da palavra j habitada historicamente por um ou mais discursos: uma contradio, no sentido materialista do termo); e) uma outra palavra, potencial ou explcita denotativa de reserva (X, se se puder chamar isso de X...), hesitao ou retificao (X, ou melhor, Y), confirmao (X, essa a palavra exata...) etc. f) um outro falante (como diria Marx..., ) ou o interlocutor suscetvel de

no compreender ou de no aceitar expresses tidas como bvias (...X, com o perdo da palavra..., se voc quiser, X, X, se voc me entende) (1984 : 104). Em um sentido mais amplo, que ser aquele usado em nosso trabalho, o metadiscurso consiste, como o nome indica, no processo segundo o qual o discurso de um locutor tem como objeto seu prprio discurso, constituindo a si mesmo como

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Adotaremos, no entanto, uma viso especial desses fenmenos, que sero, como vimos, considerados tambm relativos ao mundo da interdiscursividade.

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alteridade, ou seu prprio discurso como outro. Por esse ponto de vista, o metadiscurso mais do que um conjunto de acrscimos contingentes destinados a ratificar a trajetria da enunciao, coloc-la em conformidade com as intenes do locutor (Maingueneau, 1989 : 94). Isto porque, lidando com discursos que se inserem forosamente em uma situao exigente, as operaes metadiscursivas que visamos aqui necessariamente supem uma gesto, uma regulao da enunciao diante das coeres imediatas ou gerais da formao discursiva.Cada glosa apresenta-se, pois, como a exibio de um debate com as palavras, o qual se pretende exemplar; ela define para o co-enunciador o bom caminho atravs do rumor infinito dos signos da lngua e do interdiscurso. O sujeito cuja imagem construda pelas glosas um sujeito que domina um discurso e que oferece este domnio em espetculo. (idem, ibidem, grifos do autor)

Desse modo, a metadiscursividade tem ntima relao com a interdiscursividade, pois a prpria imagem da dupla afirmao da unidade de uma formao discursiva: acreditando ser possvel circunscrever a indeterminao do discurso, o erro, o deslizamento etc., ela encaminha a um exterior determinando automaticamente, por diferena, um interior discursivo que, ao significar seus pontos de divergncia com o seu exterior, marca seu territrio prprio em um campo onde a luta pela existncia passa pelo domnio de um certo nmero de significantes (: 95). Por outro lado, o sujeito enunciador, atravs da metadiscursividade, denega o lugar que lhe destina a formao discursiva em que se constitui: em lugar de receber sua identidade deste

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discurso, ele parece constru-la, ao tomar distncia, instaurando ele mesmo as fronteiras pertinentes (idem, ibidem). 1.1.2.4 Uma sntese

Os desenvolvimentos tericos apresentados nos itens anteriores, embora tratem do fenmeno geral da heterogeneidade e comunguem em certos princpios, no se utilizam dos mesmos conceitos bsicos. No essencial, o conceito de outro, em cada uma delas, no corresponde precisamente ao mesmo recorte terico. Tambm a abordagem da relao do sujeito com esse outro no coincide ponto por ponto nas trs perspectivas. Procuraremos, luz das idias de Maingueneau, recortar conceitos das trs abordagens e tentar sistematiz-los para construir nosso quadro terico. Tanto a heterogeneidade quanto o dialogismo sero considerados como princpios de base. A diferena est apenas no que cada conceito chama ateno acerca da natureza do discurso. O primeiro ressalta o carter plural de qualquer enunciado, atravessado que pela presena irredutvel de seu exterior. J o dialogismo pe em relevo o fato de que todo enunciado orientado para um co-locutor, seja ele real ou virtual, responde a enunciados anteriores e antecipa enunciados futuros. Mas ambos apontam para a importncia do outro na constituio tanto do discurso quanto do sujeito discursivo. Consideraremos tambm a distino entre heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada como fundamental, uma vez que impede que o conceito de heterogeneidade se dilua. Se todo discurso e mesmo toda palavra heterognea, o

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conceito perde sua operacionalidade e sua eficcia. Por isso, a primeira ser tomada como pressuposta e no se reduzir jamais segunda, uma vez que heterogeneidade mostrada consiste na forma apreensvel e superficial da heterogeneidade constitutiva. justamente a que se inscreve a idia do primado do interdiscurso: na impossibilidade da identidade discursiva se constituir sem a alteridade. Mas, para efeito da pesquisa analtica, ser a heterogeneidade mostrada, por motivos bvios, que ser objeto de busca no corpus. Ao lado da heterogeneidade mostrada, temos a polifonia. Diferentemente da heterogeneidade constitutiva e do dialogismo, que designam fenmenos semelhantes apenas vistos de ngulos diferentes, a heterogeneidade mostrada e a polifonia, embora recubram fenmenos intimamente relacionados, designam, no nosso entender, processos diferentes. A ltima consiste no processo segundo o qual o locutor, levado por diversos fatores, faz soar em seu enunciado outras vozes, tal como um som faz soar o seu harmnico, ou um msico faz ouvir em sua composio diversas melodias simultneas. J o conceito de heterogeneidade mostrada bem mais localizado e ressalta o movimento do enunciador ao tomar suas prprias palavras como objeto de seu enunciado, assinalando ora sua impropriedade designatria, ora sua impertinncia, ora sua inexpressividade, ora sua incapacidade interlocutiva, deixando ver as linhas que compem o fio de seu discurso. Assim que, em nosso trabalho, no distinguiremos heterogeneidade constitutiva de dialogismo, ao passo que os conceitos de heterogeneidade mostrada e polifonia sero utilizados para nomear fenmenos diferentes, embora estreitamente relacionados.

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Quanto s realidades de heterogeneidade mostrada, temos que a primeira delas, a intertextualidade, tem por caracterstica principal o fato de concernir ao discurso autoral (ainda que nem sempre se consiga determinar o autor dos textos envolvidos). A considerao da autoria como forma de alteridade estabelece aparentemente discordncia entre nossa preocupao aqui e a linha de interesse da dmarche Revuziana, que se recusa a encarar as manifestaes de heterogeneidade como uma relao de um sujeito fonte e senhor de seu dizer com um exterior lingstico, ou ainda, entre um sujeito lingstico uno e o Outro lingstico, discursivo ou textual. No entanto, importante frisar que o sujeito cindido ainda um sujeito e que, se este no deve ser tomado ilusoriamente como fonte e senhor de seu discurso, no se pode negar que, em ltima instncia, todo discurso passa por uma produo singular. Isto no significa cair na idia subjetivista da inteno. Assim, como adverte Pigay-Gros, uma teoria da intertextualidade deve pr em cheque a invalidao total da noo de autor sem, no entanto, restaurar a noo de inteno:La thorie du texte ne tient jamais compte de l'intention de l'auteur (...): ce qui l'auteur a voulu dire en se rfrant tel ou tel texte n'importe pas. Mais, mme si la lecture de la citation, de l'allusion... n'a pas, effectivement, tre guide par cette notion d'intention, peut-on pour autant perdre de vue qu'elles constituent le plus souvent une stratgie de signification directement dirige vers le lecteur? La manipulation des textes classiques, par exemple, peut-elle

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tre comprise sans que l'on tienne compte de cette stratgie de signification qui la fonde?21 (: 40)

Tampouco significa ignorar o papel que tem na produo individual de um texto as contingncias sociais s quais o locutor est submetido. Para nossa perspectiva de Anlise do Discurso, no importa considerar a estrutura das relaes textuais em si mesmas, mas que implicaes tm essas relaes para o posicionamento do locutor dentro de sua prtica discursiva, entendendo esta como uma articulao entre a dimenso lingstica e a dimenso social da enunciao. Assim, a intertextualidade pe em relao dois ou mais textos concretos em decalagem temporal ou no, de posies divergentes ou no, em re