tese Simone Hüning final[1]

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SIMONE MARIA HNING Tese O SUJEITO BIOTECNOLGICO NA VIAGEM PELO REINO DAS BATATAS TRANSGNICAS, PORQUINHOS FOSFORESCENTES E ALMAS CODIFICADAS PORTO ALEGRE 2008

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SIMONE MARIA HNING

O SUJEITO BIOTECNOLGICO NA VIAGEM PELO REINO DAS BATATAS TRANSGNICAS, PORQUINHOS FOSFORESCENTES E ALMAS CODIFICADAS

Tese de Doutorado em Psicologia Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul Programa de Ps-Graduao em Psicologia Faculdade de Psicologia

Orientadora: Professora Dra. Neuza Maria de Ftima Guareschi

Porto Alegre

2008

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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)H937s Hning, Simone Maria O sujeito biotecnolgico na viagem pelo reino das batatas transgnicas, porquinhos fosforescentes e almas codificadas / Simone Maria Hning. Porto Alegre, 2008.143 f. Tese (Doutorado) Fac. de Psicologia, PUCRS Orientador: Profa. Dra. Neuza Maria de Ftima Guareschi

1. Subjetividade. 2. Biotecnologias. 4. Biopoltica. I. Ttulo.

3. Psicologia.

Bibliotecria Responsvel: Dnira Remedi CRB 10/1779

4 BANCA EXAMINADORA

________________________________________________ Dra.Neuza Maria de Ftima Guareschi (PUCRS) Orientadora

________________________________________________ Dra. Heliana Barros de Conde Rodrigues (UERJ)

________________________________________________ Dr. Arthur Arruda Leal Ferreira (UFRJ)

________________________________________________ Dra. Rosane Azevedo Neves da Silva (UFRGS)

________________________________________________ Dr. Marcos Villela Pereira (PUCRS)

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Aos meus pais Luiz e Clarice.

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O presente trabalho foi financiado pelo CNPq, uma entidade do Governo Brasileiro voltada ao desenvolvimento cientfico e tecnolgico.

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AGRADECIMENTOS

Ao CNPq, agncia de fomento pesquisa, pela bolsa durante todo o perodo de doutorado no Brasil e pela bolsa de Doutorado Sanduche no Exterior. Ao Programa de Ps-graduao em Psicologia da PUCRS, atravs de sua coordenao e secretaria. Ao Instituto de Psicologia Social da London School of Economics and Political Science LSE, atravs de seus professores e funcionrios. minha orientadora, Neuza Guareschi, por sua mxima pedaggica Larga a velha e vai pra zona... mas volta, por permitir e incentivar viagens exploratrias e gerenciar de forma brilhante as minhas crises intelectuais durante essas viagens. Por me fazer abandonar os lugares estveis e explorar as possibilidades porque h vos mais altos do que os que saem do Salgado Filho. Pelas lies de resistncia e a orientao de que, s vezes, preciso esquecer o doutorado. Ao professor Dr. Pedrinho Guareschi pela confiana e apoio para a obteno da bolsa de doutorado sanduche no exterior. Ao professor Dr. Derek Hook, que me recebeu como coorientador pelo perodo de um ano durante a realizao do estgio-sanduche, no Instituto de Psicologia Social da London School of Economics and Political Science LSE. Aos membros de minha Banca de Qualificao: Profa. Dra. Heliana B. Conde Rodrigues (UERJ), Profa. Dra. Rosane A. Neves da Silva Neves (UFRGS) e Profa. Dra. Ruth Gauer (PUCRS). Ao membros da Banca de Defesa: Prof. Dr. Arthur A. Leal Ferreira (UFRJ), Profa. Dra. Heliana B. Conde Rodrigues (UERJ), Prof. Dr. Marcos Villela Pereira (PUCRS), Profa. Dra. Rosane A. Neves da Silva (UFRGS). Aos colegas do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivao que participaram de minha caminhada, contribuindo para as reflexes aqui desenvolvidas. Especialmente cmplice no doutorado, Patrcia Flores, pelas contribuies tericas e amizade compartilhada. Aos bolsistas do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivao. Meu obrigada especial s amigas Carol Reis, Thas Bennemann e Letcia Bertuzzi, pela pacincia e pelos inmeros assessoramentos.

8 Aos colegas e amigos da LSE, especialmente Eri Park, Dimitris Thomopoulos, Jacqueline Crane, Katarina Keresztesova, Mohammad Sartawi, Parisa Dashtipour e Stavroula Tsirogianni, pela acolhida calorosa, regada a pints quentes, nas terras frias da Rainha. Aos amigos especiais descobertos durante essa viagem que estiveram sempre disponveis para me acompanhar, trazendo inspirao e a enchendo de vida: Brbara Rocha, Bruno Greff, Gabriel Vallejo, Gisele Dhein, Jlio Csar Hoenisch, Lutiane Lara, Marta do Valle Faria e Ronie Da Silveira. Para vocs as palavras de Fernando Pessoa: Absurdemos a vida, de leste a oeste. s amigas maduras Ins Henningen e Denise Prehn. minha famlia, por compreender minhas ausncias nesse perodo e por suas palavras de incentivo a no prolongar meu doutorado: Ah, ento voc estudante, ainda no trabalha; Ento voc tem tempo, j que s estuda;Mas voc no trabalha?; Quando que voc vai ter um emprego?... Ao meu irmo Gustavo Hning, por tolerar os livros espalhados pela casa e as invases de amigos viajantes, especialmente nestes ltimos meses de escrita. famlia Guareschi/Paiva, (Neuza, Glnio, Maria Rita e Pedro), um agradecimento muito especial pelo carinho, amizade, apoio e disponibilidade constantes. A Fernando Pessoa, pela companhia nos momentos de desassossego. Aos pioneiros das biotecnologias que inventaram a cerveja, que coloriu momentos de fundamental importncia para a realizao deste doutorado, compartilhados com estes e outros parceiros e amigos, que embora no estejam aqui nomeados, foram companheiros dessa viagem... que tambm sem a cachaa, ningum segura esse rojo!

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En resolucin, l se enfrasc tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los das de turbio en turbio; y as, del poco dormir y del mucho leer, se le sec el celebro de manera que vino a perder el juicio. Llensele la fantasa de todo aquello que lea en los libros, as de encantamentos como de pendencias, batallas, desafos, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles; y asentsele de tal modo en la imaginacin que era verdad toda aquella mquina de aquellas soadas invenciones que lea, que para l no haba otra historia ms cierta en el mundo. (Cervantes, 2004, pp. 29-30)

Os classificadores de coisas, que so aqueles homens de cincia cuja cincia s classificar, ignoram, em geral, que o classificvel infinito e portanto se no pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo que ignorem a existncia de classificveis incgnitos, coisas da alma e da conscincia que esto nos interstcios do conhecimento. Talvez porque eu pense de mais ou sonhe de mais, o certo que no distingo entre a realidade que existe e o sonho, que a realidade que no existe. E assim intercalo nas minhas meditaes do cu e da terra coisas que no brilham de sol ou se pisam com ps maravilhas fluidas da imaginao. Douro-me de poentes supostos, mas o suposto vivo na suposio. Alegro-me de brisas imaginrias, mas o imaginrio vive quando se imagina. Tenho alma por hipteses vrias, mas essas hipteses tm alma prpria, e me do portanto a que tm. No h problema seno o da realidade, e esse insolvel e vivo. Que sei eu da diferena entre uma rvore e um sonho? Posso tocar na rvore; sei que tenho o sonho. Que isto, na sua verdade? Que isto? Sou eu que, sozinho no escritrio deserto, posso viver imaginando sem desvantagem da inteligncia. No sofro interrupo de pensar das carteiras e da seco de remessas s com papel e cordis em rolos. Estou, no no meu banco alto, mas recostado, por um promoo por fazer, na cadeira de braos redondos do Moreira. Talvez seja a influncia do lugar que me unge distrado. Os dias de grande calor fazem sono; durmo sem dormir por falta de energia. E por isso penso assim. (Pessoa, 1999, p. 341)

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RESUMO

Este estudo versa sobre a centralidade que as biotecnologias vm assumindo na constituio e compreenso da subjetividade na contemporaneidade a partir de uma pesquisa que analisa a proliferao das biotecnologias e a intensificao de enunciados sobre as mesmas na vida cotidiana. Tomando as ferramentas conceituais oferecidas pelos trabalhos de Bruno Latour e Michel Foucault, iniciase esta tese pela anlise da constituio da mesma, que permeada por questes polticas, ticas, institucionais e tericas. Em seguida, aponta-se para transmutaes que as biotecnologias vm provocando nos modos de conceber o biolgico, a vida, o corpo e o eu, sustenta-se que, na contemporaneidade, a biotecnologia tem se constitudo em um novo dispositivo poltico, no sentido utilizado por Foucault. Compondo uma abordagem metodolgica com base nos estudos cientficos e na arquegenealogia foucaultiana, explora-se a disperso de enunciados sobre biotecnologias em comunicaes cientficas e miditicas (retiradas de peridicos cientficos, jornais, revistas, televiso e internet). Sugerese a constituio de um modo de ser biotecnolgico, ou seja, sujeitos hbridos de humanos e no-humanos compostos por substncias orgnicas e no-orgnicas. A partir disso so analisadas as relaes entre diferentes noes de subjetividade, que emergem historicamente vinculadas a campos de saber e poder, bem como racionalidades de governo. Por fim, discute-se como a psicologia participa dessa rede contempornea em que as biotecnologias tornam-se cada vez mais importantes para a compreenso do mundo e daquilo que estamos nos tornando. Considerando as novas alianas do campo psi com as biotecnologias, so problematizadas algumas intervenes tradicionais e recentes da psicologia. Alm disso, pontua-se nesta tese a contribuio de Bruno Latour e Michel Foucault para os modos de fazer pesquisa e produzir conhecimento na psicologia, frente s mudanas e desafios da sociedade contempornea. Palavras-chave: biopoltica. biotecnologias, dispositivo, subjetividade, psicologia,

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ABSTRACT This thesis is about the central role biotechnology has played in the constitution and understanding of subjectivity in contemporary society. Initially, using conceptual ideas by Latour and Foucault, this study analyses political, ethical and institutional issues involved in the PhD research process. Then, looking at every day life elements, the research analyses the proliferation of biotechnology and the intensification of its discourses. Through combining methodologies from Science Studies and Foucauldian archaeology and genealogy, the range of discourses about biotechnology in scientific and media communications is explored. Scientific journals, newspapers, magazines, TV and internet resources were collected and analysed. Based on this research, we observe that biotechnologies are transmuting the ways we conceive the realms of biology, life, body and self. Subsequently, it is argued that in contemporary society biotechnology has established itself as a new dispositive, in the Foucauldian sense. It is suggested that biotechnologies are making possible the constitution of a new kind of human being a hybrid human non-human subject constituted by organic and nonorganic matters and whose subjectivity will be presently called biotechnological. The relations between different notions of subjectivity are analysed pointing to the historical emergence of these concepts linked with fields of knowledge and power as well as rationalities of government. Finally, critical insights are provided regarding psychologys participation in the contemporary network, where biotechnologies become more significant to the understanding of the world and what we are becoming. Some of the new and traditional psychological interventions are problematized based on the analysis of the alliances with biotechnologies. In all, this thesis concludes by considering the contribution of Bruno Latour and Michel Foucault towards policies of research and production of knowledge in psychology in relation to the changes of contemporary society. Key-words: biotechnologies, dispositive, subjectivity, psychology, biopolitics.

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SUMRIO UMA CRNICA IMPERTINENTE ..................................................................... NOTAS PRELIMINARES ..................................................................................... CLULAS TRONCO: O QUE SO E PARA QUE SERVEM SOBRE COMO REDUZIR (OU NO) A EXPERINCIA DE UM DOUTORADO A UMA TESE ............................................................................... Cientista usa o prprio corpo como cobaia: relacionamentos e sobrevivncia na academia .................................................................................................................... Estudo desvenda longevidade de organismo assexuado: a psicologia no rido terreno da Cincia ..................................................................................................... Pesquisadores discutem critrios e normas acreditadas para bioensaios: condies, impossibilidades e crise da/na universidade ........................................... No necessrio matar uma vida para fazer outra, diz pesquisadora: a bifurcao como estratgia poltica .......................................................................... Pimenta inspira anestsico que no paralisa: para administrar o desconforto e manter-se em movimento .......................................................................................... MERCADO EST ABERTO A NOVOS EMPREENDIMENTOS BIOTECNOLGICOS ........................................................................................ O homem que descozinhou o ovo: o dispositivo da sexualidade e a produo do sujeito psicolgico ..................................................................................................... Pat traioeiro: decodificando as bases da pesquisa ............................................ Cientistas se unem para desmascarar falsa cincia em campanhas publicitrias: bioinformao e implantao da biotecnologia na vida cotidiana .. LIGEIRAMENTE HUMANA.............................................................................. Marroquinos fazem pato nascer de ovo de galinha em laboratrio: que subjetividade? ............................................................................................................ Voc orgnico ou transgnico?: o sujeito biotecnolgico ................................. 12 15

17 19 31 38 44 51 58 63 72 76 84 84 88

NO MAIS FICO ....................................................................................... 104 Estimulador de memria: o que a psicologia tem a ver com governo? ................. 108 O equilbrio do crebro: alianas psico-biotecnolgicas ................................... 111 CIENTISTAS IDENTIFICAM PARTE DO CREBRO QUE DECIDE O QUE VALE A PENA LEMBRAR: REGISTROS DA VIAGEM .................... 123 Existe um segundo cdigo?: deslocamentos ........................................................ 125 APNDICES ............................................................................................................ 133 Apndice A Ato normativo 1 ................................................................................. 134 Apndice B Ato normativo 2 ................................................................................. 136 REFERNCIAS ...................................................................................................... 139

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UMA CRNICA IMPERTINENTE

Esta crnica no de minha autoria e aqui no desenvolvo nenhuma discusso terica. Eu a inseri nesta tese como um fragmento destas coisas que ajudam a produzir, a pensar e a dizer coisas que s vezes tentamos dizer e no sabemos como... Uma leitura agradvel que ofereo, que pode ser ignorada, tomada como ponto de partida, intervalo ou fechamento da leitura da tese... Os crditos so de Luis Fernando Verssimo. O Recital Uma boa maneira de comear um conto imaginar uma situao rigidamente formal digamos, um recital de quarteto de cordas e depois comear a desfila, como um pulver velho. Ento vejamos. Um recital de quarteto de cordas. O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta platia. So trs homens e uma mulher. A mulher, que jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os trs homens esto de fraque. Tomam os seus lugares atrs das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se no esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou no. Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silncio. Aquela expectativa nervosa que precede o incio de qualquer concerto. As ltimas tossidas da platia. O primeiro violinista consulta seus pares com um olhar discreto. Esto todos prontos, o violinista coloca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco. Vai comear o recital. Nisso... Nisso, o qu? Qual a coisa mais inslita que pode acontecer num recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trs deles? No. Uma manada de zebus passa, parte da platia pula das suas poltronas e procura as sadas em pnico, outra parte fica paralisada e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar at o ltimo zebu so profissionais e, mesmo, aquilo no pode estar acontecendo comea a tocar. Nenhuma explicao pedida ou oferecida. Segue o Mozart. No. preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confuso, uma pequena incongruncia. Algo que crie apenas um mal-estar, de incio e chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que posa na cabea do segundo violinista durante um pizzicato. No. Melhor ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.

14 H um murmrio na platia. O que aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelista. O primeiro violinista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que no tem gua na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que aquilo? Depois de alguns instantes em que a tenso no ar como a corda de um violino esticada ao mximo, o primeiro violinista fala: Por favor... O qu? diz o homem da tuba, j na defensiva. Vai dizer que eu no posso ficar aqui? O que o senhor quer? Quero tocar, ora. Podem comear que eu acompanho. Alguns risos na platia. Rudos de impacincia. Ningum nota que o violoncelista olhou para trs e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua: Retire-se, por favor. Por qu? Quero tocar tambm. O primeiro violinista olha nervosamente para a platia. Nunca em toda a sua carreira como lder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Uma vez um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi. Mas nunca uma tuba. Por favor. Isto um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart. No tem nenhuma parte para a tuba. Eu improviso alguma coisa. Vocs comeam e eu fao o um-p-p. Mais risos na platia. Expresses de escndalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem est de fraque. Segundo algumas verses veste uma camisa do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal. O violinista ameaa chamar algum dos bastidores para retirar o tocador de tuba a fora. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento dos lbios e ameaa: Se algum se aproximar de mim eu toco pof! A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos. Est bem diz o primeiro violinista. Vamos conversar. Voc, obviamente, entrou no lugar errado. Isto um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart no tem um-p-p. Mozart no sabe o que est perdendo diz o tocador de tuba, rindo para a platia e tentando conquistar a sua simpatia.

15 No consegue. O ambiente hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se ameaador: Est bem, seus elitistas. Acabou. Onde que vocs pensam que esto, no sculo XVIII? J houve 17 revolues populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocs todos sero interrogados. Um a um, pp. Torna-se suplicante: Por favor, s o que eu quero tocar um pouco tambm. Eu sou humilde. No pude estudar instrumento de cordas. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa... Num tom sedutor, para a violista: Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginao lbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto anti-sptico, em mim que voc pensa. Na minha barriga e na minha tuba flica. Voc quer ser violada por mim num alegro assai, confessa... Finalmente, desafiador, para o violoncelista: Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. o mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve! O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A platia agora grita e pula. o caos! Simbolizando, talvez, a falncia final de todo o sistema de valores que teve incio com o iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razo ou ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga que agora quem est com o bigode ruivo a violista. Vendo-a assim, o tocador de tuba pra de morder a perna do segundo violinista, abre os braos e grita: "Mame!" Nisso, entra no palco uma manada de zebus. Crnica extrada do livro "O Analista de Bag", L&PM Editores Ltda - Porto Alegre, 1981, pg. 58.

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NOTAS PRELIMINARES

A introduo A introduo dessa tese apresenta uma particularidade, da qual o leitor deve ser advertido. Antes de introduzir a tese e a questo de estudo propriamente ditas, ela ocupa-se de um breve exame de sua caixa-preta. A expresso caixa-preta usada em ciberntica sempre que uma mquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual no preciso saber nada, seno o que nela entra e o que dela sai (Latour, 2000b, p. 14). O objetivo de iniciar abordando o contedo da caixa-preta, orientada pelo trabalho de Bruno Latour, , alm de agregar autoria cincia, evidenciar as relaes polticas, econmicas e institucionais que compem os resultados da pesquisa, mesmo que estas sejam usualmente neutralizadas pela regulao da enunciao operada na academia. Essa opo, que ao mesmo tempo terica e poltica, implica em uma trajetria pouco convencional antes que sejam cumpridos os requisitos de apresentao daqueles aspectos que usualmente se espera encontrar em uma introduo. A subjetividade e a psicologia como unidade pedaggica e institucional A despeito da sempre problemtica referncia psicologia no singular, dada sua no-unidade em termos de posicionamentos epistemolgicos e sistemas tericos, a psicologia assumiu, desde o sculo XIX, uma unidade pedaggica e institucional (Rose, 1991, 1996). considerando essa unidade institucional, que tambm pode ser apreendida pelo objeto subjetividade que atravessa as diferentes abordagens da psicologia (ainda que tambm esta ser definida e composta com especificidades a partir de cada um destes diferentes sistemas psicolgicos), que trato neste trabalho da interface das biotecnologias com a psicologia (tratada no singular). Neste sentido, a subjetividade tomada inicialmente como um termo geral, sem qualquer rigor de uma definio terica mais especfica (na medida em que

17 cada abordagem estabelecer sua prpria definio), que conota tudo aquilo que se relaciona ou define tradicionalmente como concernente esfera psicolgica, ou ao reino da subjetividade, nas diferentes verses tericas da psicologia. Esta concepo distingui-se da que utilizo como operador terico a partir das contribuies de Foucault e Latour. As distines entre estes conceitos sero desenvolvidas ao longo deste trabalho. Tradues A traduo de todas as citaes feitas a partir de fonte no publicada em lngua portuguesa so de minha responsabilidade.

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CLULAS-TRONCO: O QUE SO E PARA QUE SERVEM1 SOBRE COMO REDUZIR (OU NO) A EXPERINCIA DE UM DOUTORADO A UMA TESE

...nossa entrada no mundo da cincia e da tecnologia ser pela porta de trs, a da cincia em construo, e no pela entrada mais grandiosa da cincia acabada (Latour, 2000b, p. 17).

hora de concluir o doutorado e eis aqui o produto final, o objeto que congrega os elementos e processos que foram mobilizados durante o curso do doutorado: a tese. De acordo com Latour (2000b), exatamente quando se chega a um fato ou artefato cientfico que rene elementos em um todo organizado (p. 216), em uma pea nica e coesa, quando muitos elementos so levados a atuar como um s (p. 217), que se tem uma caixa-preta na cincia. O obscurescimento da caixa-preta proporcional ao sucesso da cincia, mas seus contedos podero ser facilmente acessados, se chegarmos antes que se transformem em algo acabado e seu exame far com que desaparea a distino entre contexto e contedo (p. 17). Por isso, apesar da tentao de acabar a tese da forma mais rpida (e seguir objetivamente para os fatos cientficos seria certamente o trajeto mais curto e fcil), buscarei inici-la mostrando pelo menos um pouco do que contm sua caixa-preta, algumas trajetrias percorridas, processos, encontros, relaes que se estabeleceram... Muitos diriam que isso seria apenas um prembulo, (se) necessrio para contextualizar o leitor no trabalho cientfico1

Portal Terra Biotecnologia, 15 de fevereiro de 2005: Elas so de diversos tipos e um verdadeiro tesouro, pois podem originar outros tipos de clulas e promover a cura de diversas doenas como o cncer, o Mal de Alzeimer e cardiopatias. Estamos falando das clulas-tronco, foco de discusses entre cientistas, leigos e polticos. (...) O fato que a legislao brasileira sobre pesquisas com clulas-tronco de embries humanos, j aprovada no Congresso Nacional, permite o uso dessas clulas para qualquer fim. Mas a lei de Biossegurana aguarda aprovao na Cmara dos Deputados. E muita polmica ainda pode surgir, j que a Igreja e outros grupos so contra a utilizao de clulas-tronco embrionrias. (...) De forma bem simplificada, clulas-tronco so clulas primitivas, produzidas durante o desenvolvimento do organismo e que do origem a outros tipos de clulas. (...) Uma das principais aplicaes produzir clulas e tecidos para terapias medicinais. (...) Clula-tronco embrionria (pluripotente) so clulas primitivas (indiferenciadas) de embrio que tm potencial para se tornarem uma variedade de tipos celulares especializados de qualquer rgo ou tecido do organismo. J a clula-tronco adulta (multipotente) uma clula indiferenciada encontrada em um tecido diferenciado, que pode renovar-se e (com certa limitao) diferenciar-se para produzir o tipo de clula especializada do tecido do qual se origina... . A matria completa est disponvel em: .

19 que o seguir. Prembulo, nessa perspectiva, absolutamente descartvel quando os resultados da pesquisa migrarem se migrarem para as instncias oficiais da Cincia2: os congressos, os peridicos indexados... ops! A tese de doutorado tambm um documento oficial da Cincia! O que isso faz aqui? Bem, talvez, de minha posio de aspirante a dizer algo neste universo acadmico, deva pedir licena ao mesmo tempo em que presto um esclarecimento: no estou fazendo um prembulo. No escrevo aqui uma apenas uma introduo para situar o leitor ou adiantar o que vir. Aqui comea a fabricao e escrita de minha tese. E comea pela inevitvel concluso de que para que eu consiga escrever minha tese, necessrio falar de minha experincia e discutir a relao, sem pretender com isso um apelo ao subjetivismo, ou qualquer tentativa de tornar mais transparente minha escrita, luz de minha histria pessoal, ou mostrando minha interferncia em relao do objeto estudado. Essa atitude fundamenta-se tanto na orientao de Latour (2000b) sobre a abertura da caixa-preta da pesquisa, quanto no que sugere Parker (2002), indicando que esse processo deve fazer parte da reflexo terica que envolve a produo da psicologia. A regra acadmica que diz: no fale sobre voc mesmo evidenciada pelas detalhadas descries dos aparatos, sujeitos e procedimentos utilizados nos relatrios de pesquisa, que em contrapartida negligenciam a posio do pesquisador em relao a mesma precisa, desde o incio, ser quebrada objetivando conectar biografia e histria na pesquisa (Parker, 2002), o que inclui perguntar quem o pesquisador, em que rede de relaes ele se insere, qual sua posio moral e poltica, que valores e condies marcam os meios de produo do conhecimento. Isso implica no apenas falar sobre mim, mas deixar falar os outros elementos que compe as condies de produo da pesquisa, analisar as condies culturais e polticas que constituem o que possvel pensarmos e por onde possvel nos mover, em contrapartida iluso de livre escolha e da produo de relatos neutros e objetivos sobre o mundo. E exatamente em funo da reflexo terica que pretendo fazer, das ferramentas tericas com as quais opero (e de acordo com estas), que paraAdoto a distino proposta por Latour (2001) para quem a Cincia com C maisculo refere-se quela que se diz autnoma e distanciada do coletivo. Esta colocada em oposio s cincias: Opomos a Cincia, definida como a politizao das cincias pela epistemologia (poltica), para tornar impotente a vida pblica, fazendo pesar sobre ela a ameaa de uma salvao por natureza j unificada, e as cincias, no plural e em minsculo, definidas como um dos cinco mtodos essenciais do coletivo procura de proposies, com as quais deve constituir o mundo comum, encarregado da manuteno da pluralidade das realidades externas (Latour, 2004, p. 372).2

20 conseguir escrever minha tese necessrio introduzir a minha experincia e as relaes que estabeleci (com teorias, autores, com minha orientadora, com o programa de ps-graduao em psicologia, com as disciplinas cursadas, com colegas, com a academia, com a agncia de fomento pesquisa e assim por diante) no me engajando em uma estrutura confessional, mas apresentando este trabalho como algo que se articula com suas condies de produo. necessrio, para re-afirmar a psicologia como um saber que se inscreve num campo de embates e transformaes, que envolvem outras foras para alm das supostas fronteiras de pureza da Cincia e da idia do saber pelo saber. necessrio introduzir a experincia para no reduzir o processo aos resultados, no reduzir os resultados ao rigor metodolgico, no reduzir os saberes Cincia... Cientista usa o prprio corpo como cobaia3: relacionamentos e sobrevivncia na academiaPrograma Fantstico de 12 de agosto de 2007: Eva Byte, a reprter virtual do programa pergunta: Quanto tempo falta para que o homem consiga comandar a casa num estalar de dedos? (...) Um apresentador, humano, responde: No falta tanto tempo assim. Um cientista ingls, por exemplo, implantou chips no corpo para mostrar como o homem pode interagir com mquinas. Outra apresentadora segue: Ele anuncia que no futuro, crianas com chips implantados no crebro vo aprender em segundos o que levariam anos estudando na escola. Das ruas, a opinio de adolescentes: Eu implantaria sim o chip, melhor, mais rpido.; Assim no tem graa, muito fcil. (...) O narrador: Que cientista seria capaz de mutilar o prprio corpo em nome de uma experincia cientfica? Eis o voluntrio: Kevin Warwick, pai de dois filhos, pesquisador-chefe do Instituto de Robtica da Universidade de Reading, na Inglaterra. (...) O cientista enfrentou cirurgias para implantar chips no prprio corpo. Imagens documentam o momento em que os mdicos completaram o implante no brao esquerdo do cientista. Com o chip dentro do corpo, ele poderia interagir com computadores e acionar mquinas. O chip uma pea minscula feita base de silcio. Funciona como uma espcie de rgo do corpo humano. Kevin Warwick declarase o primeiro cyber-cientista da histria. Ao enfrentar a experincia o cientista diz que quer antecipar um futuro fascinante: A terra diz ele ser um planeta povoado por seres humanos que estaro fisicamente conectados a mquinas e computadores. (...) O cientista responde ao entrevistador: As vantagens do implante de chip no nosso corpo so to grandes que no vejo como evitar. Quem no quiser ter chips implantados, vai ser considerado uma subespcie. (...) Depois do primeiro implante feito aqui no meu brao, passei a ser reconhecido pelo edifcio: portas se abriam, luzes se acendiam quando eu passava. O implante que fiz no brao pode ser usado como identificao. Quem estiver com o chip implantado poder ter o acesso liberado em prdios de segurana mxima. H outro chip que pode ser implantado em criminosos, como pedfilos, por exemplo: toda vez que ele se aproximar de um local como um shopping center, as portas se fecharo. um uso possvel.(...). Eis um exemplo de como homem e mquina podem se transformar em um corpo s. (...) Ter um implante no crebro o meu prximo passo. (...) As crianas aprendero de outra maneira (...) vo ser educadas no nas escolas como hoje, mas atravs de chips que sero implantados no crebro. A educao estar num software. A criana no precisar estudar matemtica, fatos e nmeros. Bastar apertar um boto: o estudante aprender tudo automaticamente. (...) Como as mquinas esto se tornando mais e mais inteligentes, um dia elas podero governar o mundo, a no ser que ns humanos nos aperfeioemos e nos tornemos parte das mquinas. Ou seja, teremos de ligar nossos crebros diretamente ao crebro das mquinas... O vdeo com a matria completa est disponvel em: .3

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A noo de uma cincia isolada do resto da sociedade se tornar to absurda quanto a idia de um sistema arterial desconectado do sistema nervoso (Latour, 2001, p. 97).

Desde que ingressei no programa de ps-graduao da PUCRS4, no ano de 2001, tenho vivido uma relao (mais ou menos) estvel e aberta com Michel Foucault. Mais ou menos estvel no sentido de que embora continue intensa, nunca permaneceu a mesma. Aberta, porque sempre houve espao para entrada de outros nessa relao. Enfim, foi graas a essa abertura e creio que tambm intensidade do vnculo com Foucault que conheci Bruno Latour. A relao com Latour comeou mais tarde e de forma mais conflituosa, mas extremamente instigadora. Foucault j havia produzido vrias ebulies em meu pensar, instaurando uma constante indignao em relao a certa insistncia de pensar como as coisas so ou, por que as coisas so no apenas nas instncias dos saberes cientficos, mas nas prticas cotidianas que transbordam em naturalizaes e essencializaes. Condensando os vapores resultantes destas ebulies, debruceime nos ltimos anos sobre a problematizao da psicologia, suas prescries, normalizaes, sua implicao em modos de produo de subjetividades e formas de governamentalidade. A sensao de incmodo constantemente expressada em relao psicologia-psicologista, aos esteretipos colados ao ser psicloga, ao cientificismo acadmico, ao estar eu mesma buscando construir uma trajetria acadmica, negligncia da discusso poltica e carncia de reflexo tica na academia... no se esvaiu, mas se intensificou. Talvez seja um misto de catarse e querer acreditar que possvel se fazer uma psicologia-poltica sem o apelo a psicologismos, ser psicloga-no-psicologista, construir uma trajetria acadmica no-academicista. O incmodo que me acompanha por esses anos, foi insaciavelmente alimentado por encontros com outros seres indignados, que tambm inseridos no circuito acadmico alfinetam uma psicologia que tenta sentar-se confortavelmente na almofada fofa e privilegiada da Cincia Moderna, que como analisa Bauman (1999),

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Uma das questes que se relaciona s condies de produo desta tese, o fato de que durante todo este perodo, trabalhei sob a orientao de Neuza Guareschi, o que marca uma possibilidade bastante singular nesta instituio.

22 ...nasceu da esmagadora ambio de conquistar a Natureza e subordinla s necessidades humanas. A louvada curiosidade cientfica que teria levado os cientistas aonde nenhum homem ousou ir ainda nunca foi isenta da estimulante viso de controle e administrao, de fazer as coisas melhores do que so (isto , mais flexveis, obedientes, desejosas de servir) (p. 48). Essa Cincia ostentou um sonho de pureza e um esforo para a eliminao de ambivalncias, conectados racionalidade poltica Moderna (Bauman, 1998, 1999), que colocou no centro de tais atividades cientficas as aes de classificao e separao, produzindo assimetrias tais como Natureza e Cultura, humanos e no-humanos (Latour, 1994). Camargo (2007) analisa como essa concepo de Cincia, que ele define pelos adjetivos determinista, generalista, mecanicista e analtica, ... progressivamente coloniza a cultura geral, tornando-se hegemnica nas sociedades ocidentais (p. 20), produzindo um efeito de que os adjetivos cientfico, verdadeiro, real e objetivo e seus cognatos so considerados na linguagem comum como parte de uma mesma famlia semntica, usados de forma intercambivel, seno mesmo como sinnimos (p. 20). Ele prossegue pontuando que essa concepo pressupe uma cincia unificada... supostamente aplicvel a qualquer objeto... passando pelos seres humanos em escala individual ou coletiva (p. 28); e estabelece hierarquias de formas de saber a partir de um critrio de racionalidade, que neste caso implica na excluso de qualquer atributo humano agncia, vontade, valor de sua operao (p. 21). Essas consideraes reverberam na proposta de Latour (1994, 2001) de transformar a Cincia, ou melhor, as cincias em objeto de pesquisa. Fazer das cincias objeto de pesquisa voltar o olhar para o processo de produo investido nas prticas e textos cientficos que mascarado pelos discursos epistemolgicos que revestem o conhecimento, formatando-o a um tipo de retrica especfica que tenta torn-lo impessoal e frio. por isso que Latour insiste que necessrio examinar a caixa-preta das cincias antes que ela seja fechada. No deixar que a experincia e o processo sejam encobertos pela retrica das concluses que se apresentam como produto final objetivadas como fato, artefato, tese ou artigo cientfico. Examinar a caixa-preta atentar para as controvrsias que ocorrem no

23 desenvolvimento da pesquisa, os acontecimentos muitas vezes sem prestgio acadmico e as relaes que esto incorporadas ao trabalho cientfico, embora freqentemente velados por uma armadura de objetividade. por isso, diz Latour (2000b), que os textos cientficos parecem aborrecidos e sem vida, de um ponto de vista superficial. Se o leitor recompuser os desafios que estes textos enfrentam, eles passaro a ser to emocionantes quanto um romance (p. 90). E tambm por isso que incluo na escrita da tese esse exerccio de anlise do processo de doutorado. Mas a questo em pauta aqui no diz respeito ao mero acrscimo de emoo. preciso dar visibilidade s condies que acompanharam a produo dos fatos cientficos, regulao da enunciao e os jogos de poder que constituem o que a cincia. O exame da caixa-preta, proposto por Latour, potencializa no trabalho da pesquisa, a anlise das relaes de saber e poder centrais no trabalho foucaultiano. Embora esse exame seja uma orientao que imprime fortes marcas no modo como inicio e desenvolvo este trabalho, ele no ser tomado aqui com o rigor que se tomaria uma metodologia na medida em que ele no o objeto da tese. Pensar a experincia-doutorado como um processo para alm de um resultado-tese (ou artigos a serem publicados), tensiona a idia de produo de cincia/conhecimentos e de produo de si. O olhar para o processo no se centra exclusivamente na apresentao de resultados inequvocos ou conclusivos, de hipteses confirmadas ou refutadas, ou de uma grande descoberta cientfica (requisitos centrais de abordagens cientificistas); mas na visibilizao e reflexo sobre a prpria maquinaria de produo da cincia, no circuito mobilizado nessa produo, da movimentao e articulaes que tendo acompanhado a produo do fato, artefato ou tese cientfica, so usual e deliberadamente omitidos nas formas finais de comunicao da Cincia importante estratgia para construir a iluso de uma Cincia neutra e objetiva, livre de interesses (polticos, econmicos, ticos, morais...) cujos fatos abordados parecem ter seguido uma lgica natural, linear e assptica. Uma caracterstica compartilhada por Foucault e Latour que potencializa a problematizao da produo da psicologia na contemporaneidade, e marca minha opo por trabalhar com esses autores, a recusa ao entendimento dos saberes a partir de um modelo epistemolgico (Ferreira, 2006/2007, p. 02):

24 ... o que Latour aponta que a nossa subjetividade nada teria de universal; ela seria uma construo histrica, produto de uma srie de articulaes locais. Seria nestas articulaes scio-tcnicas que nossos eus seriam forjados artificialmente. Nada mais prximo da genealogia foucaultiana (Ferreira, 2006/2007, p. 24). Ao problematizar os modelos e conceitos que so considerados o motor do chamado progresso cientfico, tanto a proposta genealgica inspirada em Foucault, como a perspectiva dos estudos cientficos de Latour, colocam em dvida a naturalidade de noes centrais para a Cincia Moderna (expressos em dicotomias tais como razo X emoo, Natureza X Cultura, humano X nohumano), mostrando que estas foram empregadas para legitimar e efetuar em termos prticos as distines e justificar regimes de diversos tipos (SnchezCriado, 2005, p. 04). Em ambos os casos, da genealogia e dos estudos das cincias, se trata de colocar em pauta a anlise da rede de elementos implicada na sua produo. Recusa-se uma postura contemplativa ou essencialista, na medida em que a atividade cientfica produz novas entidades que, por sua vez, do forma a ns mesmos... portanto, trata com e d espao a verses de mundo (p. 05). Sua anlise conecta-se com a genealogia das subjetividades, em termos foucaultinos, ou seja, a histria das formas prticas e mutveis de conectar e regular ou ordenar as noes sobre o eu, o mundo e os outros (p. 06). Porm, a ironia desta proposta e a perplexidade de quem aqui se aventura aparecem na medida em que, por mais que eu objetive tensionar as configuraes hegemnicas da cincia e em especial da psicologia para que as indignaes possam ser compartilhadas e alguma diferena produzida , fazer e, por fim, apresentar este tipo de questionamento dentro de um programa acadmico de psgraduao implica, inevitavelmente, em assujeitar-se em maior ou menor grau, em diferentes momentos a uma aliana com a maquinaria de fabricao dos discursos ou fatos cientficos, com o lugar do especialista e dos especialismos no mundo acadmico. Implica tambm fazer-se sujeito que toma parte nos jogos de produo de verdade buscando ativar nesta rede outros enunciados possveis. Vejamos. Um doutorado o curso que prepara pessoas pra obteno do ttulo de doutor. Um doutor, diz-nos o doutor Houaiss (2001), aquele que, numa

25 universidade, foi promovido ao mais alto grau depois de haver defendido tese em alguma disciplina literria, artstica ou cientfica (p. 1081). A psicologia considerada hoje uma Cincia a despeito das controvrsias em relao a essa classificao, que sem dvida merecem ser discutidas e que retomarei mais adiante , no literatura ou arte. De modo que na psicologia se produz, ou pelo menos se deveria produzir, teses cientficas. Uma tese em psicologia seria a sntese de um tipo de argumentao lgica e racional, que utiliza um tipo de linguagem especfica, decorrente do que convencionamos chamar, muitas vezes indiscriminadamente, de pesquisa sobre uma questo psicolgica. A legitimao do carter cientfico dada pela correspondncia a uma srie de regras discursivas e prticas definidas internamente pela prpria comunidade cientfica (Foucault, 1999b; Latour, 2000b; Lyotard, 2002). Demarcar-se como cientfica um exerccio retomado pela psicologia a cada produo de novas teses psicolgicas. Entre outras atividades um processo que deve ser constantemente alimentado. H um como fazer que se deve aprender pela insero e associao com as instituies cientficas. O doutorado deve, portanto, nos ensinar a pensar em termos cientficos, fazer cincia, produzir artefatos cientficos e assim por diante. Infelizmente o que se entende por cincia e o que implica dizer-se cientfico so questionamentos pouco freqentes em tais cursos! E por isso, talvez, que me seja to cara a relao com Foucault. A cincia, diz Foucault (1999b), o resultado do disciplinamento dos saberes atravs da organizao das disciplinas em torno de critrios para distinguir o verdadeiro do falso, seleo e normalizao de contedos, classificao hierrquica e centralizao desses saberes num campo maior (a cincia) que ele sintetiza pelas operaes de seleo, normalizao, hierarquizao e centralizao , que vai formular problemas especficos ao policiamento disciplinar dos saberes: problemas de classificao, problemas de hierarquizao, problemas de vizinhana, etc. (Foucault, 1999b, p. 218). Da se pode compreender, prossegue ele, a Universidade como o grande aparelho uniforme dos saberes (p. 219), que seleciona saberes, os quantifica, qualifica, categoriza, homogeiniza e os centraliza atravs de suas comunidades cientficas. Pode-se compreender tambm, continua Foucault, como esse disciplinamento dos saberes provocou uma nova forma de dogmatismo:

26 ...um controle que no incide pois, sobre o contedo dos enunciados, sobre sua conformidade ou no com a verdade, mas sobre a regularidade das enunciaes. O problema ser saber quem falou e se era qualificado para falar, em que nvel se situa esse enunciado, em que conjunto se pode coloc-lo, em que e em que medida ele conforme a outras formas e a outras tipologias de saber (Foucault, 1999b, p. 220). Essa disciplina da enunciao produziu o duplo efeito de permitir maior circulao de enunciados, tornando-os mais provisrios, ativando as controvrsias e a produo de novos enunciados desbloqueio epistemolgico; ao mesmo tempo em que o controle dos procedimentos de enunciao tornou-se extremamente mais rigoroso, estabelencendo novas relaes entre saber e poder, onde apareceu uma regra nova que j no a regra da verdade, mas a regra da cincia (Foucault, 1999b). Pela regra da cincia, (quase) tudo poder ser dito, uma vez que corresponda aos procedimentos de enunciao, que so usualmente esvaziados de seus contedos tico-polticos. Por sua vez, a provisoriedade dos enunciados garante o contnuo aquecimento da disciplina da enunciao: sempre se ter algo a dizer e o sistema circulatrio da cincia continuar a funcionar. Por isso necessrio afinar os procedimentos de enunciao, qualificar os diferentes agentes em relao a estes procedimentos. Em outras palavras, fazer com que alguns conheam as regras, fabricando aqueles que podem fazer/falar a cincia. As universidades, as sociedades cientficas, o ensino cannico, as escolas, os laboratrios, o jogo das especializaes, o jogo das qualificaes profissionais, tudo isso uma maneira de organizar, a propsito de uma verdade, posta pela cincia como universal, a raridade dos que podem ter acesso a ela (Foucault, 2006c, p. 317). Nesse processo inevitvel pensar que, como Baro de Munchausen, talvez me encontre em plena areia movedia; afinal, eu tambm passei pelo treinamento do doutorado, que nos prepara para pensar em termos cientficos, e estou aqui participando dos procedimentos por busca de legitimidade acadmica. Mas, quem sabe, remexer nessa areia seja a melhor forma de conseguir encontrar formas de sair dela, antes que se decrete que no h alternativa. Ou talvez, nem se trate de sair, mas de produzir movimentos na rede da qual sou parte, para que algo novo possa ser produzido. E neste sentido, a

27 primeira questo que penso que deva ser remexida : o que se faz, afinal, em um curso de doutorado que nos prepara para ser doutores? Obviamente um doutorado no se faz apenas do escrever uma tese. E difcil delimitar onde tem incio um processo de doutoramento: ele pode ser uma intensificao de indignaes, a formulao de questes novas, uma exigncia posta por questes de mercado e, at mesmo, uma opo de lazer, possibilidades que trazem em si uma histria. Mas nenhuma destas razes nobre o suficiente para garantir que se freqente um curso de doutorado e qualquer uma delas s ser frutfera se for conciliada com o sucesso nos rituais de seleo aos cursos de psgraduao, dando o primeiro passo para a transformao do que Foucault (2006c) chamou de sujeito universal abstrato, em um sujeito qualificado concreto, que vai em busca da verdade universal, no disciplinamento do conhecimento Moderno: Haver portanto, claro, um sujeito universal dessa verdade universal, mas ser um sujeito abstrato pois, concretamente, o sujeito universal capaz de aprender essa verdade ser raro, porque ter de ser um sujeito qualificado por certo nmero de procedimentos que sero precisamente os procedimentos da pedagogia e da seleo (p. 316). A seleo institucional, pode incluir uma prova que requer a aproximao dos documentos cientficos considerados importantes em cada instituio, atentando para as teorias e linguagens que so bem-vindas, e demonstrando domnio e compreenso desta linguagem (processo que pode ser facilitado quando h insero prvia da mesma, dos grupos de pesquisa e pesquisadores, o que implica desde o incio que os sujeitos universais j partem de posies diferentes). Alm da prova, normalmente tambm avaliado o currculo do candidato, que dever destacar aquilo que acredita que ser bem avaliado e pontuado e, claro, eliminar as informaes que considerar inconvenientes. E, especialmente em cursos de psicologia que valorizam a subjetividade e a histria de vida, pode ser solicitado um memorial... que, paradoxalmente, pode nos afastar da objetividade acadmica5...

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Tambm poderia dizer que para entrar em um doutorado (e sair dele como doutor), se poderia rezar e fazer promessas. Mas embora estude numa universidade catlica, que possui crucifixos em suas salas de aula, correria o risco de ser considerado pouco conveniente, em uma tese, atribuir o ingresso no doutorado a qualquer tipo de crena.

28 Tambm costuma fazer parte deste ticket de acesso ao restrito mundo dos doutos, a apresentao de um projeto de pesquisa, que deve convencer que se possui uma temtica relevante, hipteses a investigadar, uma metodologia adequada resoluo do problema proposto e a indicao de algumas teorias para aplicadar no desenvolvimento da pesquisa. E assim como a seleo, parte do contedo da caixa-preta de uma tese concerne a este processo que desde o princpio comea a configurar as condies de possibilidade, marcando estratgias, foras, linguagens, que acompanham a fabricao de um fato ou artefato no mundo cientfico. Para alguns, ou para muitos, o ritual de ingresso no estar encerrado aqui. H que se confiar na objetividade dos instrumentos de avaliao, os quais criteriosamente permitiro que alguns desses sujeitos que comeam a se concretizar por essas polticas institucionais sejam contemplados com bolsas concedidas pelas agncias de pesquisa, para cursar o doutorado dedicando-se exclusivamente, ou parcialmente ao mesmo, ou apenas eventualmente, j que nem todos sero contemplados. De um ponto de vista mais formal, este momento, que coincidir com o incio das disciplinas para cumprir os crditos obrigatrios um dos raros momentos do curso, onde os doutorandos dos diversos grupos de pesquisa so reunidos pode ser considerado o incio oficial do doutorado. A partir daqui minha narrativa ter que assumir um tom mais singular, relativo experincia nas duas instituies por onde transitei como doutoranda6. Apesar de serem instituies que se distanciam em inmeros aspectos para alm da questo geogrfica, uma unidade programtica as aproxima. Essa unidade dada pela nfase, no programa das disciplinas oferecidas, a questes de doutrinamento de como fazer um projeto e como escrever um ensaio temtico, seguindo os moldes acadmicos; e, fundamentalmente, estudos sobre metodologia de pesquisa que enfatizam a importncia de sabermos optar por um estudo quantitativo ou qualitativo, embora muitos insistissem que uma fotografia mais exata da realidade seria obtida pela combinao das duas! O contedo transversal consistiu em aprender a identificar amigos e inimigos na fogueira das vaidades da produo acadmica e o conjunto dessas aprendizagens sintetiza-se em adquirir as formas de pensamento e as tcnicas que permitem precisamente ter acesso a essa verdade de toda parte, mas sempre profunda, sempre escondida,6

Trs anos na Pontifcia Universidade Catlica do RS e um ano na London School of Economics and Political Science.

29 sempre de difcil acesso (Foucault, 2006c, p. 316). Outro contedo importante neste processo foi como escrever artigos com mais chances de ser aceito em peridicos cientficos; como escolher os peridicos para onde vale a pena enviar um artigo; como multiplicar os pes, fazer a salamizao da pesquisa, ou seja, a publicao de fatias de uma pesquisa em diversos artigos. E finalmente, tentaram ensinar-me como escrever uma tese, objeto submetido anlise neste momento derradeiro que vai selar o sucesso ou fracasso do processo de doutorado7. Uma particularidade na composio dos crditos obrigatrios da instituio onde cursei meu doutorado que estes no se obtem apenas pelas disciplinas. Alguns destes crditos dependem de publicaes obrigatrias durante o curso, afinal, se a pessoa pretende obter um ttulo de doutor importante que ela aprenda desde cedo que precisa produzir; e produzir de acordo com as normas vigentes. Os artigos publicados, portanto j avaliados por pares ou comisses editoriais, eram submetidos a um membro do corpo docente para que este reavaliasse o documento, atribuindo-lhe uma nota e um nmero de crditos que este poderia somar, de acordo com o tipo de publicao. sempre importante a co-autoria com orientador, porque esta resultar em mais crditos8. No possvel defender a tese de doutorado sem as publicaes. No tico publicar nada relativo ao doutorado sem o nome do orientador. E no h dvidas de que o processo de pensar e produzir uma tese seja um processo coletivo, que envolve no apenas o orientador, bem como demais colegas do grupo de pesquisa. , alis, essa uma das razes pelas quais me detenho a explorar essa caixa-preta. No entanto, para alm de um reconhecimento de um processo de produo coletiva, esse tipo de orientao transforma a possibilidade de co-produo em ferramenta disciplinar, s vezes coercitiva, evidenciando a acentuada assimetria de foras dos diferentes7

E neste momento, em minha defesa, gostaria de dizer de antemo, que este contedo programtico (como escrever uma tese) ficou para mim um pouco confuso. Em diferentes momentos do doutorado se impunham diferentes modelos a seguir. No incio, uma tese era uma tese (nos formatos tradicionais). Depois ela no deveria mais ser uma tese, porque estas so muito extensas, quase nigum l e acabam esquecidas nas prateleiras das bibliotecas. Tambm porque estas no acrescentam tanto de acordo com os critrios de produtividade cientfica e demandam muito trabalho extra para serem adaptadas a publicaes. Assim, ao invs da tese, o produto de doutorado deveria ser a produo de pelo menos 3 artigos cientficos j adequados a revistas cientficas especficas, sendo (pelo menos) um terico e dois empricos. Mas, graas flexibilidade acadmica, nos meses finais de meu doutorado, um novo Ato Normativo (Apndice 1) apresenta nova regulamentao, descrevendo minuciosamente como deve ser uma tese, acrescido do adjetivo optativo para quem ingressou no doutorado antes de 2007. 8 No final de 2007 houve alteraes quanto s regras de avaliao destas publicaes, que eliminou o sistema de notas e o substituiu por pontos, conforme Apndice 2.

30 elementos da rede institucional que, como assinala Pinho (2005), nos faz perceber que, ontologicamente, pesquisadores mais experientes e coordenadores de grupos de pesquisa no se distinguem de qualquer tipo de chefe. Em sntese, o programa de ps-graduao, assim como os orientadores, so avaliados, entre outras coisas, pela produo cientfica e como doutorandos candidatos ao ingresso no mundo acadmico preciso aprender a funcionar em sincronia com essa indstria. Simultaneamente, no grupo de pesquisa onde me inseri, pude aprender que no existe psicologia desvinculada de posicionamentos polticos e ticos e que se pode resistir a tudo o que foi ensinado nas disciplinas obrigatrias. Que s vezes, precisamos falar a mesma linguagem pra dizer algo diferente... e quem sabe um dia possamos tambm usar formas diferentes de expresso, sem que isso seja usado para desqualificar o que se diz. Com o grupo de pesquisa foi possvel pensar que nem tudo o que se faz na academia precisa seguir modelos academicistas e que a prpria academia pode ser, ainda que lentamente, transformada por prticas dispersas e pequenas revoltas que minam os grandes regramentos da produo cientfica, os quais tentam tambm regrar e doutrinar o prprio pensar h que se admitir, com grande sucesso. Fazer o doutorado, portanto, no implica apenas em desenvolver aprofundamento terico ou habilidades intelectuais, ou treinamento para pesquisa. tomar parte em um processo de doutrinamento e resistncia em relao s rotinas acadmicas e polticas institucionais que so to ou mais importantes para a sobrevivncia no meio acadmico do que o brilhantismo intelectual; determinando o que se produz e o que ganha visibilidade neste espao. Trajetria que inclui tambm a passagem pela banca examinadora, momento crucial do processo da produo de conhecimento, que poder marcar ou no a classificao do presente texto como um trabalho de pesquisa adequado (ou no) ao doutoramento, envolvendo mais uma gama de questes, tais como, quem escolher a banca, quem compor a banca, de onde vm essas pessoas, de onde falam, por que estes e no outros examinadores e assim por diante. O que todas essas questes indicam que minha tese (que no to minha quanto pode parecer) no interessa s a mim: envolve todo um investimento financeiro (de recursos pblicos e particulares), poltico, pessoal (no apenas meu, mas de pessoas que trabalharam comigo) e institucional. E embora no curso de doutorado tenha sido assinalado em vrios momentos por

31 alguns dos agentes responsveis por minha educao cientfica, que no se faz um doutorado para defender uma tese que mude o mundo, mas para obter o ttulo de doutor (um objetivo bastante ego-centrado), estes mesmos agentes no esqueceram tambm de me advertir que tal processo no pode se dar por encerrado com a defesa da tese, pois temos um compromisso com a reputao do programa no qual nos inserimos. Uma tese, pra ter valor, tem que ser publicvel e publicada9. O programa de ps-graduao deve ser referido e isso tudo mantm azeitada a maquinaria de produo acadmica de acordo com os critrios de produtividade correntes sobre a qual podemos encontrar uma interessante anlise no trabalho feito por Alvarez (2004). Fazer um doutorado, tornar-se cientista, envolve ainda inmeras outras atividades, tais como encontros cientficos, participao em congressos, conferncias, jornadas: os que escolhemos e os que so impostos (porque preciso dar visibilidade produo do programa de ps-graduao). Precisamos capitalizar a produo, trabalhar com metas, aprender a ser operrios. Ler, para escrever, para publicar, para computar, para somar pontos nas avaliaes institucionais e nos prprios currculos... quem sabe para pensar e se recusar. E envolve, para que se possa concluir, que se fabrique uma tese capaz de passar pelo controle de qualidade, que possa figurar entre os fatos cientficos, inscritos nos espaos oficiais de registros da cincia, compartilhado por pares da comunidade cientfica. preciso construir a cientificidade do que se produz: conhecer as regras, buscar aliados, referir documentos, tomar parte na produo e eliminao de controvrsias, indicar (dentro de certo limite publicvel) os caminhos pelos quais se transitou para a construo do fato. preciso transformar o processo coletivo de produo de conhecimento em fato cientfico, o que em perspectivas conservadoras significa todo um esforo para apresentar o fato j higienizado de tudo o que no cabe na descrio metodolgica da cincia e deslocada de sua implicao poltica (Latour, 2000b, 2001). Essa rpida espiada na caixa-preta j indica que as questes at aqui apontadas me renderiam material e motivao suficientes para escrever uma tese sobre as mesmas. Mas, como j indicado elas no constituem o objeto dessa tese e h ainda outras questes pelas quais necessrio passar para que se possa9

De preferncia com a maior agilidade e o menor investimento possveis, de modo que a tese deveria se apresentar em um formato prximo aos exigidos pelos peridicos cientficos, em outras palavras, ser escrita com vistas publicao.

32 entender o porqu no sigo essa motivao e ento apresente sobre o que vai falar minha tese. Estudo 'desvenda' longevidade de organismo assexuado10: a psicologia no rido terreno da CinciaEntendemos, com isso, uma cincia que se quer objetiva, situando-se entre as outras cincias objetivas com sua pretenso de instru-las sobre as funes intelectuais que permitem que elas sejam as cincias que so. Contra essa pretenso de dar conta do todo sendo somente parte dele, a filosofia no pode deixar de erguer-se. Assim, ela deve deixar a psicologia continuar a propor, ela prpria, suas aquisies tericas para serem possivelmente exploradas pela pedagogia, pela economia e, finalmente, pela poltica. Quanto filosofia, sua tarefa no a de aumentar o rendimento do pensamento, mas de lembrar-lhe o sentido de seu poder (Canguilhem, 1990, s/p).

Uma das coisas que falta ser dita, j que estou aqui a discorrer sobre os bastidores do mundo cientfico a que tive acesso durante o meu doutorado, que a psicologia ocupa uma posio bastante delicada no territrio da Cincia, especialmente quando esta definida em termos da epistemologia Moderna. em funo deste estatuto epistemolgico mal definido, que Canguilhem (1973) referese esta disciplina como um empirismo composto destinado transmisso (estratgia de investimento em si mesma), que nem bem se define como tcnica, nem bem como cincia (na medida em que nem seu objeto nem seus mtodos

O Estado de So Paulo Digital, 12 de outubro de 2007: Peculiaridade gentica de invertebrado garante sobrevivncia, diz pesquisa. Uma equipe de cientistas da Universidade de Cambridge, na Gr-Bretanha, descobriu como um animal microscpico consegue sobreviver h 80 milhes de anos sem sexo. Segundo a pesquisa britnica, o pequeno invertebrado conhecido como bdelodio rotfero tem uma peculiaridade gentica que oferece um tipo de recompensa pelo celibato prolongado. (...) A pesquisa foi publicada nesta sexta-feira na revista especializada Science. Esta foi a primeira vez que um truque gentico como este foi demonstrado em um organismo assexuado.Os bdelodios geralmente vivem em gua doce. Mas, se forem privados de gua, eles entram em um estado de desidratao em que podem permanecer por muitos anos, sobrevivendo quase total ausncia de gua. Ento, voltam vida, sem nenhum problema, quando retornam gua. A nova pesquisa mostra como a Adineta ricciae, uma espcie de bdelodio rotfero, evoluiu sem sexo para conseguir sobreviver em condies mais secas. (...) O lder da pesquisa, Alan Tunnacliffe, do Instituto de Biotecnologia da Universidade de Cambridge, disse que sua equipe conseguiu mostrar pela primeira vez que cpias genticas em organismos assexuados podem ter funes diferentes. " particularmente animador que tenhamos descoberto funes diferentes, mas complementares em genes que ajudam os bdelodios rotferos a sobreviver dessecao", disse. "A evoluo da funo do gene desta maneira no pode acontecer em organismos sexuados, o que significa que deve existir algum benefcio nos milhes de anos sem sexo", acrescentou. A matria completa est disponvel em: .

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33 podem ser claramente definidos11), e cujos trabalhos denotam um misto de filosofia sem rigor, tica sem exigncias e medicina sem controle. Tambm Foucault (1999a) problematiza essa questo, afirmando que o fato da psicologia, ou as demais cincias humanas, terem nascido do solo epistemolgico Moderno, no suficiente para defini-las como cincias. Intil, pois, dizer que as cincias humanas so falsas cincias; simplesmente no so cincias; a configurao que define sua positividade e as enraza na epistm moderna coloca-as, ao mesmo tempo, fora da situao de serem cincias; e se se perguntar ento por que assumiram esse ttulo, bastar lembrar que pertence definio arqueolgica de seu enraizamento o fato de que elas requerem e acolhem a transferncia de modelos tomados de emprstimo a cincias (Foucault, 1999a, p. 507). Essa posio peculiar, no a presena de um obstculo, no alguma deficincia interna (Foucault, 1999a, p. 506), mas coloca as cincias humanas ao lado das cincias como constituintes de outras configuraes do saber (p. 506). Para Foucault (1999a) a questo que afasta as cincias humanas das cincias propriamente ditas, conferindo-as um diferente status epistemolgico, diz respeito simultnea excluso-incluso das cincias humanas do triedo epistemolgico que as fundamenta, quais sejam, as cincias dedutivas, cincias empricas (cincias da vida biologia; da produo economia; e da linguagem filologia) e reflexo filosfica; e a constituio da representao como sendo ao mesmo tempo o seu campo emprico e objeto. Desse modo, a constituio do objeto que define as cincias humanas a reduplicao do homem na esfera da representao (ser que vive, produz e se comunica; que ao mesmo tempo se oferece aos saberes e busca conhecer) simultaneamente sua condio de possibilidade e causa de sua impreciso. Isso o que determina, para Foucault, que esse homem forjado pelas cincias humanas possa ser objeto de um domnio de saber, mas no objeto da cincia.11

Poder-se-ia, claro, argumentar que algumas das abordagens da psicologia possuem estas questes bem delimitadas. No entanto, mais uma vez cabe lembrar que venho trabalhando com a psicologia como uma unidade institucional, e que estas perspectivas a partir dessas delimitaes no se tornaram independentes e so constituintes dessa grande disciplina que se define como Psicologia. Alm disso, tais especificidades tericas normalmente s fazem sentido nas disputas internas cincia e produzem pouco ou nenhum efeito quando pensamos na disseminao dos discursos psi nas redes sociotcnicas.

34 Mais ressalvas em relao produo de conhecimento em psicologia, viro da anlise crtica que Latour faz sobre as cincias sociais (cuja denominao, em sua opinio, j problemtica), porm seus argumentos seguem por linhas distintas. A anlise foucaultiana da posio epistemolgica da psicologia apresentada em As palavras e as coisas, constri-se com bases na natureza do objeto no sendo esta, porm, a principal crtica de Foucault disciplina, na medida em que ele tambm vai interrog-la do ponto de vista tico e poltico, no que diz respeito s suas prticas de governo. Por sua vez, Latour (2000a) vai argumentar exatamente contra os binarismos, e busca combater as grandes divises que constituem o Ocidente, tal como a diviso entre Natureza X Cultura, e por decorrncia o dualismo dos modos de investigao tributrios das cincias duras e sociais, que sustentam uma diviso entre objetos humanos e nohumanos. Para Latour (2000a), o ponto nevrlgico est nesta diviso e na tentativa das cincias sociais imitarem as cincias naturais, a qual, ele afirma, tem sido uma comdia de erros (p. 114), evidente quando, por exemplo, cientistas sociais acreditam que a superioridade dos cientistas naturais esteja relacionada ao controle destes sobre seus objetos; ou quando se tenta reproduzir uma postura em que cientistas desinteressados voltam-se para entidades objetivas que poderiam ser controladas e explicadas em termos causais. Outra forma de reproduo seria insistir que questes sociais requerem outro tipo de cientificidade (p. 114). Sua crtica formula-se ento, em termos de mostrar que nem os laboratrios so reinos de imparcialidade, controle e desinteresses, nem os cientistas naturais so parciais, tendenciosos, egostas, interessados e assim por diante, embora isso tudo possa fazer parte das pesquisas. A questo central que eles lidam com um tipo de objetividade diferente: a capacidade destes objetos de objetar sobre o que se diz deles. disso que se trata a atividade cientfica em laboratrios, que paradoxalmente, o que os cientistas sociais tentam evitar quando assumem a postura de um cientista desinteressado buscando produzir conhecimentos sobre sujeitos considerados menos propensos quanto possvel a influenciar o resultado (Latour, 2000a, p. 115) o que aparentemente simularia as condies ideais para a produo de uma cincia to dura quanto s naturais. No entanto, segue Latour (2000a), embora tenha gosto e cheire como cincia dura isso no passa de uma

35 imitao falsa e barata, pelo fato de que a objetividade exatamente o que permite a uma entidade objetar sobre o que se diz sobre ela (p. 115), portanto, a influncia do objeto, sua resistncia, sua recalcitrncia, o que determina a possibilidade de objetividade. O problema com humanos estaria na sua baixa capacidade em objetar, na medida em que facilmente desempenham o papel de objetos passivos, to logo um jaleco branco lhes pede para sacrificar sua recalcitrncia em nome de objetivos cientficos mais altos (p. 116), e sugere: Se cientistas sociais quiserem se tornar objetivos, eles tero que encontrar a situao rara, custosa, local, miraculosa onde eles possam fazer seus sujeitos de estudo, tanto quanto possvel, capazes de objetar o que dito sobre eles, ser to desobedientes quanto possvel ao protocolo e ser to capazes de levantar suas prprias questes em seus prprios termos e no naqueles dos cientistas cujos interesses eles no tm que compartilhar! Ento, humanos comearo a se comportar nas mos dos cientistas sociais to interessantemente como objetos naturais nas mos dos cientistas naturais (Latour, 2000a, p. 116). Isso no significa, adverte Latour, o investimento em mais trabalho interpretativo ou qualitativo, mas a busca das situaes raras onde a humanidade no se defina pela intencionalidade, conscincia ou reflexividade. Canguilhem, Foucault e Latour, formulam diferentes questes Psicologia, porm todas concernentes impossibilidade de inscrever este modo de saber nas matrizes de um modelo tomado de emprstimo das cincias naturais, seja em funo das indefinies relativas ao seu projeto, objeto ou mtodo, ou ainda, interrogando sobre a dimenso tica e poltica destes saberes. Nestes termos, pode-se dizer que a insistncia em agregar esse referencial de cientificidade Moderno psicologia no passa de um engodo, ao mesmo tempo produtivo e grotesco. Extremamente produtivo, eu diria, se pensarmos em tudo que mobiliza e faz funcionar em torno da sustentao deste modelo, da centralidade que o mesmo adquiriu nos programas de formao de profissionais e pesquisadores em psicologia, nas polticas de financiamento de pesquisa e no valor que se pode agregar aos discursos na contemporaneidade quando estes so adjetivados como

36 cientficos. Grotesco12, porque se sustenta em uma impossibilidade (decorrente da relao que se estabelece entre seu objeto, mtodo e projeto) que, no entanto, no faz ponderar seu poder (especialmente no que concerne ao seu poder de normalizao e moralizao) e no evita que a psicologia seja freqentemente ridicularizada e desqualificada pelo confronto com o modo absurdo como, muitas vezes, constri e sustenta suas formulaes; apesar de que isso no a desmerea em termos de sua eficcia poltica. Isso possvel porque o que se pe em anlise so os efeitos de verdade e as formas de poder que exercem por esses discursos, cujo valor de verdade para alm das instncias de produo cientfica e validao epistemolgica no dado a priori pela condio de ser cientfico, mas pela sua habilidade em tornar-se um modo de vida. A incorporao da psicologia vida cotidiana, que ser melhor discutida adiante, no depende de suas credenciais epistemolgicas. Quem, alm dos prprios pesquisadores, pergunta sobre como uma pesquisa foi feita, como se obtiveram os resultados, como uma teoria ou conceito foi construdo, e assim por diante? Logo, essa posio intersticial da psicologia no organograma da cincia, ao lado de uma inegvel eficcia discursiva, pode ser tomada como condio privilegiada, como fenda por onde possam brotar outras formas de saber resistentes aos universalismos da Cincia, que tantas vezes ergue-se para fazer acusaes e alertas em relao periculosidade de saberes no-cientficos, mas tambm, com freqncia, se isenta de uma reflexo sobre seus efeitos e responsabilidades, ao mesmo tempo em que se fecha ao controle externo, o que a torna extremamente perigosa (Souza, 2004). Entrincheirada pela prpria condio de ser cientfico, se auto-atribui uma posio intocvel e privilegiada na medida em que deduz que o cientfico justifica-se a si mesmo13. Ento, s nos resta acabar com a psicologia e fechar a porta das universidades e programas acadmicos de pesquisa? No. Pelo menos no, necessariamente. A questo que se coloca no uma disputa sobre qual modelo permitir a produo de uma verdade mais verdadeira, mas conquistar espaos onde se possa fazer falar aquilo que escapa (ou calado) pela epistemologia clssica; no a hierarquizao dos saberes dentro de um sistema epistemolgico cientfico, mas o12

Tomo o termo grotesco emprestado de Foucault (2001), quando define por grotesco o fato, para um discurso ou para um indivduo, de deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrnsica deveria priv-los (p. 15). 13 Essa questo trabalhada por Latour (2000b, 2002) ao problematizar o tratamento assimtrico dado ao que dito pelos cientistas (idias racionais) e por no-cientistas (idias irracionais).

37 reconhecimento da existncia de saberes constitudos por diferentes relaes de poder. No significa tampouco, o abandono de toda forma de rigor terico, mas de uma nfase necessria na dimenso tica e poltica daquilo que se produz e do que se quer com o que se produz. Para ser mais precisa, o que se delimita aqui no apenas a importncia de pensar em termos de conhecimentos de outra ordem, como refere Foucault; mas que se assumir como tal, questionando o que se define como cientfico, seja, talvez, a condio mais digna para os saberes psi. Isso no implica em qualquer forma de des-qualificao da psicologia, mas de re-qualificao, pela redefinio e reposicionamento da mesma no domnio dos saberes. Neste sentido, acredito que Foucault e Latour juntos fornecem elementos, para pensar a possibilidade certamente no a nica da pesquisa em psicologia nas instituies acadmicas, sem necessidades de apelos Cincia. Agregando ingredientes diferentes numa mistura no homogeneizada, mas tampouco incompatvel embora talvez explosiva ou corrosiva busco ferramentas no pensamento destes autores que ao mesmo tempo em que minam o campo do conhecimento institudo, abrem brechas para pensar a importncia da produo de saberes de outra ordem, ao fazer ou deixar falar aquilo que normalmente silenciado no territrio da Cincia. Contudo, no h prescrio metodolgica de como isso possa ser feito e no h pretenso de estabelecimento do que deva ser feito. O que se pode encontrar nestes autores so pistas relativas a um caminho possvel de problematizao e questionamento daquilo que est sendo feito e da organizao de certos modos de fazer. Foucault (2006c) busca mostrar, com sua arqueologia do saber, ...que a demonstrao cientfica no fundo nada mais que um ritual, mostrar que o sujeito supostamente universal do conhecimento na realidade nada mais que um indivduo historicamente qualificado de acordo com certo nmero de modalidades, mostrar que a descoberta da verdade na realidade certa modalidade de produo da verdade, trazer assim o que se d como verdade de constatao ou como verdade de demonstrao para o embasamento das qualificaes do indivduo cognoscente, para o sistema da verdade-acontecimento... (Foucault, 2006c, p. 306).

38 Latour (2004) ao propor uma epistemologia poltica14, prope que se faa a anlise explcita dos poderes entre cincias e polticas (p. 376), fazendo visveis seus entrelaamentos: Quanto s disciplinas cientficas, uma vez tornadas visveis, presentes, ativas, agitadas, cessando de ser ameaadoras, vo poder desprender este formidvel potencial de pluriverso, que elas no tiveram jamais, at aqui, ocasio de desenvolver... libertadas de sua funo de epistemologia (poltica), multiplicar os recintos, as arenas, as instituies, os fruns, as experincias, as provas, os laboratrios pelos quais se associam os humanos e os no-humanos, todos novamente libertados. A Cincia est morta, viva a pesquisa e vivam as cincias (Latour, 2004, p. 95). Trabalhando com estes autores, diante dos paradoxos apresentados e desta posio incmoda em que me encontro, a escrita dessa tese reduo (ou no) da experincia-doutorado a um documento cientfico se apresenta para mim como um dilema entre a obedincia ou a aposta. Por um lado, a escolha por obedecer e cumprir os ordenamentos claramente definidos pelos tribunais epistemolgicos tradicionais, predominantes na psicologia e fortes nesta instituio, que poderiam ser atendidos meramente com o que Latour (2000b) chama de uma deciso esperta no momento da escrita. Omitindo o processo, bastaria atender s prescries, seguir a regra, e fazer um pouco mais do mesmo: Como um bom jogador de bilhar, um autor esperto pode calcular tacadas com trs, quatro ou cinco repiques. Seja qual for a ttica, fcil perceber a estratgia geral: faa tudo o que for necessrio com a literatura anterior para torn-la o mais til possvel tese que voc vai defender. As regras so bastante simples: enfraquea os inimigos, paralise os que no puder enfraquecer...; ajude os aliados se eles forem atacados; garanta informaes seguras com aqueles que o abastecem com dados inquestionveis...; obrigue os inimigos a brigarem uns com os outros...; se voc no tiver certeza que vai ganhar faa declaraes atenuadas. De fato, so regras simples: so as regras dos velhos polticos (Latour, 2000b, p. 66).A epistemologia poltica ope-se aos termos epistemologia enquanto o estudo das cincias; e epistemologia (poltica), ou epistemologia policial, que seria a utilizao do conhecimento cientfico para fins polticos, fazer poltica ao abrigo de toda poltica (Latour, 2004, p. 376).14

39

Por outro lado, tomar o risco da aposta de que as regras de controle de qualidade, produo de conhecimentos e da prpria definio das cincias, no estejam absolutamente universalizadas e fechadas. a aposta de que o exame da caixa-preta possa dimensionar a experincia para alm das pginas da tese, evidenciando o modo como coletivamente se produzem os doutores-jogadores-debilhar (ou no), os projetos de pesquisa e as teses que materializam um novo fato cientfico (que com maior ou menor fidelidade e competncia usaro as regras dos velhos polticos), em sua indissociabilidade de uma instncia poltica, usualmente ocultada e no-oficializada da cincia. tambm uma aposta de que vale a pena tentar fazer parte da no-universalidade acadmica, de um pluriverso15 onde se possa produzir resistncias e enfrentamentos, basicamente por entender que aqui tambm lugar de se fazer poltica! Pesquisadores16

discutem

critrios

e

normas

acreditadas

para

bioensaios : condies, impossibilidades e crise da/na universidadePor um lado, temos um modelo que ainda aplica o velho lema: quanto menos vinculada uma cincia, melhor; por outro, existem diversas disciplinas de status incerto, que tentam aplicar sem sucesso o modelo antigo e no se acham ainda preparadas para apregoar algo parecido com o que vimos dizendo: acalmem-se, descontraiam-se, quanto mais vinculada uma cincia, melhor... (Latour, 2001, p. 33).

A abertura do que Latour chama de caixa-preta, permite que se transite pela produo disso que se apresenta como o resultado de um processo de15

Com esta palavra Latour expressa oposio ao termo uni-verso, universalizao, e defende a expresso de proposies que no operem no sentido de unificao ou essencializao do mundo compartilhado por humanos e no-humanos. 16 Portal do Agronegcio, 01 de agosto de 2007: A necessidade de desenvolver e validar estratgias de bioindicao levou um grupo europeu a criar uma metodologia nos estudos de solos que consolidou-se em normas ISO. (...) Uma das principais dificuldades para criao de normas para bioensaios mant-las flexveis o suficiente para distinguir o que variabilidade aceitvel e o que erro. Em ensaios de base qumica e fsica os dados so exatos, mas na biologia no. A preocupao se amplifica quando se trata de OGMs. Apesar da atuao rigorosa dos rgos regulamentadores, como a CTNBio (Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana), h margens para questionamentos na liberao de plantios e comercializao destes produtos. (...) O primeiro passo, e o mais complexo, definiu os critrios: relevncia ecolgica; mtodos padronizados, validados e sensveis s alteraes; boa relao custo/benefcio; boa cobertura geogrfica; facilidade de amostragem e de comunicao a no especialistas. A etapa seguinte levou construo de estratgias que depois de testadas e validadas em campo por parceiros em diferentes pases deram a base para o estabelecimento de normas ISO que, por sua vez, so revistas a cada cinco anos.... A matria completa est disponvel em: .

40 investigao cientfica, que convertida em pesquisa nos d visibilidade dos procedimentos, rituais e tcnicas de produo de verdade aos quais o fato ou artefato foi submetido. E aqui, mais uma vez, v-se potencializar o encontro entre Foucault e Latour quando se coloca em anlise o cientfico e suas relaes polticas. Latour (2001) contrape a noo de Cincia, definida como possuidora de certeza, frieza, distanciamento, objetividade, iseno e necessidade (p. 33), noo de Pesquisa: ela incerta, aberta, s voltas com problemas insignificantes como dinheiro, instrumentos e know-how, incapaz de distinguir at agora o quente do frio, o subjetivo do objetivo, o humano do no-humano (pp. 33-4). Alm da disputa entre a Cincia e a pesquisa, o autor afirma que outra oposio se manifesta nas cincias humanas pelos chamados modelos ps-moderno e nomoderno17. Tudo aquilo que o primeiro invoca como justificao para uma ausncia, mais desmascaramento, mais negao e mais desconstruo, o segundo acolhe como prova de presena, desenvolvimento, afirmao e construo (p. 35). Essa diferenciao e oposio fundamentam-se para Latour no fato de que a modernidade jamais constituiu a ordem do dia (p. 35). A transio da Cincia para a Pesquisa acenaria com a possibilidade de libertar as cincias da poltica a poltica da razo... libertar os no-humanos da poltica da objetividade e os humanos, da poltica de subjetificao (p. 36). Fazer Pesquisa, ao invs de participar das guerras das cincias, permite evidenciarmos os acontecimentos invisveis obscurecidos pela etiqueta18 cientfica recusando a separao entre contexto e contedo, que justificam os caminhos escolhidos para a escrita desta tese. O foco de Latour est na processualidade da cincia, desafiando uma viso que postula a cincia como aquilo que (como expresso de fatos objetivos no mediados), a partir da compreenso daquilo que se torna. O trabalho cientfico visto desta perspectiva, deve ser analisado com referncias s instituies na materialidade de organizaes (substantivo) que promovem formas de organizao (verbo), ordenaes e classificaes do mundo. Estes duas formas de17

Modernismo um acordo responsvel pela criao de uma poltica em que boa parte da atividade poltica justifica-se por referncia natureza. Assim, modernista toda concepo de um futuro em que a cincia ou a razo desempenharo papel importante na ordem poltica. O psmodernismo a continuao do modernismo, exceto pelo fato de a confiana na amplitude da razo ter arrefecido. O no-moderno, em contrapartida, recusa-se a atalhar o devido processo poltico, recorrendo noo de natureza, e substitui a linha divisria entre natureza e sociedade pela noo de coletivo [associao de humanos e no humanos] (Latour, 2001, p. 352). 18 Entendida como as boas maneiras e como rtulo de certificao.

41 organizao no podem ser dissociadas, porque a atividade de organizar necessita de organizaes (substantivo) que a sustente, e no h como se compreender as organizaes (substantivo) sem referncia aos seus atos de organizao (verbo) (Harris, 2005). Mostrar os rituais que produzem acontecimentos, deslocando a questo da descoberta para a produo e evidenciando as relaes de poder a implicadas, tambm o que Foucault pretende ao situar historicamente a produo de conhecimentos na sociedade ocidental. Trata-se de estratgias diferentes por um lado o estudo da cincia em ao; por outro o estudo da arquegeneaologia dos saberes que convergem para um objetivo em comum de problematizao do universalismo e imperialismo dos discursos que tentam des-politizar as cincias (seja por apelos hierarquia epistemolgica da Cincia, ou pelo recurso epistemologia (poltica) de que fala Latour). As prticas de investigao delineadas pela Cincia e predominantes da psicologia, privilegiam abordagens que supem a possibilidade de se atingir a verdade, que como analisa Foucault (2006a, 2006c), embora se considere estar em toda parte e em todo o tempo, cabe a ns encontrar a boa perspectiva, o ngulo conveniente, os instrumentos necessrios (2006a, p. 309). Ela depende, pois, de momentos e de procedimentos pelos quais ela no apenas se desvela, mas se produz, pela qualificao de quem a enuncia, pelo domnio dos instrumentos necessrios para descobri-la, as categorias necessrias para pens-la e a linguagem adequada para formul-la em proposies (2006c, p. 302), ou seja, depende de toda uma tecnologia da construo, tecnologia da demonstrao da verdade correspondente prtica cientfica como descoberta, que encobriu os acontecimentos e colonizou os gestos, o corpo, o pensamento dos indivduos, os territrios e superfcies (pp. 315-6) e constitui-se como uma norma universal, na sociedade ocidental. O que esta tecnologia demonstrativa produtora de uma verdade-cu (2006c, p. 304) recobre, segundo Foucault, uma forma de verdade anterior em nossa histria, uma verdade dispersa, no universal, local, que no da ordem do que , mas que da ordem do que acontece... uma verdade que no constatada mas que suscitada, perseguida... que no se d pela mediao de instrumentos, mas que se provoca por rituais (2006c, p. 304), onde o que importa no o mtodo, mas a estratgia. A arqueologia busca mostrar como o ocidente passou a

42 privilegiar a forma verdade-descoberta que por ora um poder dominante e tirnico (p. 306) em detrimento da verdade-acontecimento, verdadeestratgia, verdade-raio, que em oposio primeira (focada na relao de conhecimento) uma relao de poder. A demonstrao cientfica deriva das transformaes nos procedimentos de produo de verdade sobre o saber emprico no ocidente (a generalizao da tcnica jurdico-poltica do inqurito, sua aplicao ao inqurito da natureza, a rarefao dos que podem descobrir a verdade, a produo de fenmenos atravs da experimentao controlada em laboratrios), evidenciando toda uma rede de poder poltico e econmico que a ela se vincula, na passagem da Idade Mdia para a sociedade industrial: emergncia de um poder poltico que tem a forma do Estado; extenso das relaes mercantis em escala global; colocao das grandes tcnicas de produo (Foucault, 2006a, p. 314). Estas consideraes enfatizam o paradoxo que me imposto pelo referencial terico que tomo como ferramenta e minha posio e objetivos ao operar com estas ferramentas: inserida num programa acadmico, construir um artefato que seja reconhecido como uma tese, que ao mesmo tempo corresponde e conflitua com a normatizao cientfica que busco criticar. Paradoxo entre a apresentao de uma tese-demonstrativa conformada aos modelos institudos pela Cincia Moderna ou uma tese-acontecimento, conciliada com seus rituais, com sua localidade e provisoriedade, que desde uma perspectiva no-moderna busca evidenciar a construo dos saberes e sua estreita vinculao histrico-poltica (seus rituais, tecnologias, procedimentos, validaes...). Paradoxo que produz uma crise! E inevitvel fazer aqui um paralelo entre o que Foucault (2006c) discute sobre a tecnologia da crise na prtica mdica e o manejo da crise na instituio acadmica. A noo de crise que esteve no centro da tecnologia de produo de verdade-prova (em oposio verdade demonstrao) na medicina at o sculo XVIII (anterior anatomia patolgica) significava o momento crucial de batalha, de combate, de deciso entre vida ou morte; momento de apreenso e produo de sua prpria verdade. Era na crise que o mdico deveria intervir, no para eliminla, mas para tentar buscar um equilbrio, para que ela ao mesmo tempo se manifestasse, sem ser violenta demais. A crise era condio de possibilidade de identificao da doena, de produo de uma verdade-acontecimento e o mdico

43 seria o gerente da crise, ele no curava, ele previa a crise, avaliava as foras e as sadas possveis. Ao final do sculo XVIII a noo de crise deu lugar tecnologia do inqurito aplicada sade, um quadriculamento inquisitorial (Foucault, 2006c, p. 317), matriz das tecnologias de verdade-demonstrao. E assim se deu o processo de excluso da crise que se torna uma prova dispensvel frente ao inqurito dos hospitais psiquitricos: a) como sistema disciplinar, a ordem hospitalar no comporta a crise. O espao disciplinar do asilo no pode ceder lugar crise da loucura (p. 319); b) a verdade da loucura pode ser buscada na anatomia, dispensando a crise do ponto de vista epistemolgico e; c) a crise, devido associao da loucura criminalidade, pode ser perigosa para a sociedade. Em sntese, a crise torna-se ao mesmo tempo dispensvel e indesejvel. O paralelo que quero fazer, transpondo essa anlise para o universo acadmico, diz respeito ao modo como seus agentes tambm se esforam no sentido de eliminar a crise, no a crise da loucura, mas aquela que se produz frente dvida e o questionamento da Cincia e dos sistemas tericos das disciplinas. Chamarei de crise acadmica, essa crise que se produz na e em relao universidade, o incmodo, o desconforto, a indignao, a dvida, que eu, como muitos outros que se aventuram por um doutorado, vivenciam durante seu processo de tornar-se doutor, ou em suas atividades acadmicas em geral quando j so parte do quadro profissional nestas instituies. A crise tambm aqui poderia significar o momento crucial de batalha na pesquisa, de combate, de deciso entre produo ou reproduo de saberes, momento de apreenso e produo de sua prpria verdade. Na crise, os agentes institucionais acadmicos (primordialmente orientadores e professores) poderiam intervir, no para elimin-