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Angelo Mazzuchelli GarciaT e s e d e D o u t o r a d o

A LITERATURA COMO DESIGN GRFICO da poesia concreta ao poema-processo de Wlademir Dias PinoOrientadora: Prof. Dr. Vera Casa Nova

Programa de Ps-Graduao em Estudos Literrios Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

2008

Angelo Mazzuchelli Garcia

A literatura como design grfico

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Angelo Mazzuchelli Garcia

A literatura como design grfico

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A literatura como design grfico

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S

U

M

R

SUMRIO I O

INTRODUO......................................................................................... 8

CAPTULO C A P T U1 L O 1 TEXTO EEIMAGEM: DILUIO DE FRONTEIRAS IMAGE M: DILUIO DE FRONTEIRAS

1.1 1 . 1 O TEXTOE X T ARTES PLSTICAS P L S T I C A S O T NAS O N A S A R T E S A dimenso lexical do texto............................................................. 16 A dimenso grfica do texto............................................................ 19 Uma nova dimenso sgnica para o texto........................................... 21 1.2 A 1 . 2 IMAGEMM A LITERATURA L I T E R A T U R A A I NA G E M N A Iconografia, ilustrao, iluminura.................................................... 23 A visualidade prpria do texto......................................................... 26 Dadasmo, Letrismo e a dimenso sonora do texto............................. 29 A caligrafia e os caligramas............................................................. 31 O Futurismo italiano: colagem X montagem...................................... 35 A Rssia e a tradio....................................................................... 38 O surrealismo e o poema-objeto....................................................... 39 A materialidade do signo potico e o ps-modernismo....................... 41 1.3 1 . 3 TEXTO, T O , I M A G EOBJETO LIVRO E T O L I V R O T E X IMAGEM E O M E O O B J O livro como obra de arte................................................................ 44 A pgina: universo em expanso...................................................... 47 O livro: signo, presena fsica e funcionalidade................................ 50 Entre o livro e o no-livro: o livro de artista..................................... 53

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T U L O 2 2 CAPTULO A LITERATURA E O DESIGND E S I G N G R F I C O L I T E R A T U R A E O GRFICO

O Termo design.............................................................................. 64 O signo verbal e o design grfico..................................................... 66 O design grfico e os experimentalismos modernos........................... 68 A escrita e o conceito de marca........................................................ 75 Os signos no alfabticos................................................................ 78 Montagem: pictografia e ideografia.................................................. 81

C A P T U3 L O 3 CAPTULO O CONCRETISMO EO DESIGN E S I G N G R F I C O C O N C R E T I S M O E O D GRFICO

Um novo espao para a visualidade no Brasil.................................... 86 Racionalidade X Expresso.............................................................. 88 A liberdade tipogrfica. O poema semitico...................................... 90 A montagem e a quadrcula.............................................................. 91 Por uma linguagem universal........................................................... 94 A tipografia concretista................................................................... 96 Legibilidade e geometrismo de formas tipogrficas......................... 99 O princpio do isomorfismo........................................................... 101

C A P T U4 L O 4 CAPTULO O POEMA-PROCESSO: A OBRA DE WLADEMIR DIAS PINO WLADEMIR DIAS PINO E O POEMA-PROCESSO

Rebelando-se contra trs poderes................................................... Uma abertura democrtica.............................................................. O combate ao signo verbal............................................................. Projeto e verso: uma aventura criativa.......................................... O Concretismo e o veculo livro..................................................... O Poema-Processo: a livricidade do livro........................................ O poema-processo e o desconstrutivismo........................................

110 112 114 117 120 122 127

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C A P T U L O 5 CAPTULO 5 CAPTULO V R O S - P O E M A O S L I 5 D E P I N O : F L U X O DA D A C O M B I N ABARROCA B A R R O C A FLUXOS S COMBINATRIA T R I A

A Cabala e o hermetismo............................................................... 133 Labirintos, acrsticos, anagramas................................................... 135 A aritmtica e a geometria aplicada aos labirintos........................... 138 Convergncias............................................................................... 141 Um novo ponto focal..................................................................... 143 A nova arquitetura......................................................................... 145 O labirinto branco......................................................................... 147

C A P T U L O 6 CAPTULO 6 P E R S P E C T I V A S D O LITERRIO I T E R R I O PERSPECTIVAS DO LIVRO L I V R O L

O conceito de hipertexto: origens................................................... Hipertexto e Internet..................................................................... Hipertexto e a tradio impressa..................................................... Hipertexto e o texto literrio.......................................................... O conceito de livro eletrnico........................................................ A ausncia do livro eletrnico........................................................ Pela presena do livro eletrnico...................................................

153 154 155 158 161 164 166

C O CONCLUSON

C

L

U

S

O

A coreografia literria................................................................... 172 O design do poema........................................................................ 173 O design do livro........................................................................... 177

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................ 180

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labirinto clssico, cunhado em moeda grega (sculo ll a.c.)

u ma f orm a s im i la r

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INTRODUO

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Dois prisioneiros, em crceres vizinhos, que se comunicam por batidas na parede. A parede o que os separa, mas tambm o que lhes permite comunicar-se. (...). Toda separao um vnculo. (Simone Weil)

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A d a p t a o d e M e t h a m o r p h o s i s I I I : A n g e l o M a z z u c h e l l i

Uma das maiores dificuldades prticas no estudo da pictografia, segundo Andrew Robinson, em The story of writing, definir em que ponto de uma escala um smbolo torna-se um pictograma. Ou seja, como uma abstrao torna-se um pictograma antes de deixar de ser uma abstrao? Atravs de uma obra de M. C. Escher Methamorphosis III (1967-68) Robinson expe

visualmente aos leitores essa dificuldade. Nessa adaptao da obra de Escher (figura acima), observa-se que as formas esquerda so tringulos (abstraes); e as formas direita, figuras de pssaros (pictogramas). Robinson acrescenta: E o que so as formas entre os tringulos e os pssaros? Se, hipoteticamente, atribussemos s formas de Methamorphosis III valores de signo: o tringulo representando o universo da Literatura e a figura do pssaro, o das Artes Plsticas, poderamos propor perguntas anlogas s formuladas por Robinson: Em que ponto dessa gradao uma obra literria tornar-se-ia uma obra de arte plstica (e vice e versa)? E, como definir, quanto a um possvel valor sgnico, as formas entre os tringulos e as figuras de pssaros?

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A presente tese no pretende responder a essas perguntas: assim como as perguntas de Robinson, elas, muito provavelmente, nunca encontraro

respostas. As obras de arte, no sentido lato do termo, que transitam por esse territrio limtrofe (e de certa forma obscuro para o meio acadmico) entre a Literatura e as Artes Plsticas no comportam sedimentao. E o fato de pertencerem a essa regio movedia, como no caso das criaes de Wlademir Dias Pino, fundador do movimento Poema-processo, parece ressaltar o valor intrnseco dessas obras. Nesse contexto, evitou-se qualificar Pino como um poeta; mesmo porque, como ele prprio afirma, no existe poesia-processo ou poeta processualista: o Poema-processo tem como objetos o poema um corpo, substncia fsica e o ato da leitura. De qualquer forma, o eventual uso do termo poeta para os integrantes do movimento tem antes a conotao original da palavra construtor do poema (do grego, poiets, de poieo, fao, aquele que faz 1) do que a mais corrente, aquele que se consagra poesia.

No obstante o fato de no comportarem sedimentao, pode-se definir um eixo em torno do qual essas obras errantes gravitam; e em torno do qual esta tese foi estruturada. A fora centrpeta que define esse eixo uma prtica fundamentada na utilizao (conjunta ou no) de texto (substncia da literatura) e imagem (substncia das artes plsticas) o design grfico. J incorporado ao vocabulrio brasileiro, design 2 um termo genrico que se refere a um universo profissional que possui diversas especializaes, como design de produto e design de moda. O design grfico tem por fim a comunicao visual. O universo do design tambm envolve problemas relativos ao mercado e ao espao social. Conforme observa Gonzalo Aguillar,

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referindo-se especificamente poca da poesia concreta, a categoria design (...) vinculava a poesia com as demais artes e, ao mesmo tempo, com o espao social: o fato de a arquitetura modernista de Braslia ser uma tentativa de transformar a sociedade brasileira se estendeu poesia concreta, integrando, assim, a poesia vida cotidiana 3. Entretanto, embora a relao

design/literatura possa envolver a discusso desses aspectos, esta tese enfoca o design sob a tica formalista e artstica, ou seja, restringe-se a investigar questes relativas instaurao fsica do objeto artstico.

So utilizados aqui termos prprios do design grfico. O termo logotipo do grego logos, palavra, e do latim typus (grego, typos), aquilo que foi forjado, fabricado 4 designa a configurao tipogrfica, as formas das letras, das palavras que formam o nome de uma empresa, de um produto. O temo marca, do germnico marka, limite, sinal de posse de um territrio 5, designa um elemento identificador, uma assinatura no universo comercial. Esse elemento pode ser um signo grfico (um emblema), um logotipo, uma logomarca (o logotipo associado a um signo grfico), ou ainda o prprio nome de uma empresa, de um produto.

Com relao ao ttulo A literatura como design grfico, pode-se perguntar: por que no A poesia como design grfico dada a especificidade da tese? O ttulo leva em conta a etimologia da palavra literatura, do latim litteratura(m), de littera, letra. Desde o sculo XIX, a palavra literatura define uma atividade que abrange todas as expresses escritas, inclusive textos poticos (anteriormente associados a um sentido solene e elevado).

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A tese foi dividida em seis captulos, mais a concluso. O primeiro captulo enfoca a presena do texto nas artes plsticas; as relaes texto/imagem na literatura particularmente das poticas visuais; e o livro como obra de arte (culminando com a categoria livro de artista). Procurou-se adotar uma perspectiva preferencialmente no-cronolgica, buscando uma fluncia que privilegia aspectos formais e conceituais.

No segundo captulo conceitua-se a atividade do designer grfico e, atravs de exemplos comparativos, traa-se um paralelo entre as poticas visuais da literatura e obras de design grfico. Nesse captulo, e no subseqente, diversos aspectos prticos e conceituais do design grfico so postos em equivalncia com prticas e conceitos das poticas literrias visuais. O leque das poticas abordadas no segundo captulo inclui diversas tendncias internacionais; j no terceiro captulo, o foco o concretismo brasileiro, movimento de origem do Poema-processo.

O quarto captulo trata da teoria do Poema-processo: os conceitos especficos e as divergncias relativas ao movimento concretista; os livros-poema A ave e Solida (geradores da teoria do movimento); e as similaridades com a tendncia desconstrutivista do design grfico. As obras do Poema-processo aqui abordadas limitam-se ao efetivo enquadramento no corpo terico do movimento (por extenso, funcionalidade do design), visto que o alcance do termo foi maior, por iniciativa do prprio Pino. O quinto captulo aborda o Poema-processo (notadamente os livros-poema) a partir de uma perspectiva

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histrica que inclui relaes entre poticas literrias visuais e prticas mgicas, msticas e hermticas da escrita, articuladas pelo conceito de labirinto.

O sexto captulo aborda os possveis desdobramentos da potica de Pino na era digital, relacionando-os ao conceito de hipertexto. Partindo da pressuposio de que a hipertextualidade um conceito que no se resume ao meio digital, fez-se um levantamento das primeiras experincias que unem a prtica literria tecnologia eletrnica. Esse captulo tambm apresenta um questionamento acerca do atual conceito de livro eletrnico e uma tentativa de demonstrar que a potica do livro-poema poderia abrir novas perspectivas para o livro (como objeto), tendo como suporte a prpria tecnologia eletrnica.

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CAPTULO 1 Texto e imagem: diluio de fronteiras

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1.1 O TEXTO NAS ARTES PLSTICAS

A DIMENSO LEXICAL DO TEXTO

No mbito das artes plsticas, os ttulos das obras so uma das formas de relacionar texto e imagem. Michel Butor, falando especificamente da pintura, diz que o ttulo a forma como a consumimos. Embora a pintura no se resuma ao que o ttulo diz, ele designa certos aspectos da obra. Butor observa que h ttulos desde os mais discretos como Composio, ou mesmo Sem ttulo 6; e ttulos mais eloqentes como Le portrait de Mademoiselle Rivire.

H ainda ttulos que desempenham papis essenciais como, por exemplo, os das obras surrealistas particularmente as dos artistas que produziam a chamada pintura literria (vertente do Surrealismo em que a atmosfera onrica de cenas ilgicas e criaturas bizarras eram representadas com realismo fotogrfico). Sintomtico foi o ocorrido numa exposio de Giorgio De Chirico, na Galeria Surrealista, em 1928 (embora ele no tenha sido propriamente um surrealista, mas o criador e praticante da Pintura

Metafsica 7): contra a vontade do pintor, algumas das obras dele foram expostas com os ttulos alterados 8. O fato de conferir-se novos ttulos s obras de De Chirico uma demonstrao clara de que a pintura literria surrealista preteria a autonomia da imagem em favor da articulao entre texto (ttulo) e imagem (pintura).

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Passando a um outro patamar, que ultrapassa o simples carter de vnculo, h uma relao mais orgnica entre texto e imagem, que a presena de textos no interior da prpria obra. Nesse caso, o texto se converte em matria pictrica, escultrica ou grfica. Seja em citaes religiosas ou em escritos seculares, o texto no interior da obra de arte existe desde os tempos mais remotos, como nos rolos nas mos dos Profetas em Santiago de Compostela (fig. 1/1).

Mas foi no sculo XX, atravs do Cubismo, que o texto adquiriu o status de imagem nas artes plsticas. Um ideal comumFig 1/1: Profetas esculpidos em pedra no prtico da Catedral de Santiago de Compostela (c. 1168/88 a.C.) Detalhe do conjunto

aos

movimentos foi o

artsticos da

modernistas

afastamento

representao em favor da realidade do plano pictrico. Maurice Denis, ainda no sculo XIX, j dizia que a pintura antes de ser uma representao, , essencialmente, uma superfcie plana recoberta de tinta. O Cubismo buscava sintetizar, numa nica imagem, diversas vises de um mesmo objeto. Essa viso simultnea de vrios aspectos de um mesmo objeto em um s plano contrapunha-se iluso de profundidade criada pela perspectiva.

Corroborando a realidade do plano pictrico, artistas como Pablo Picasso e Georges Braque introduziram no meio artstico o processo de incorporao de

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recortes

de

papel

(notadamente

de

jornais) na pintura a colagem. Em Copo e garrafa de Suze (fig. 1/2), Picasso combina guache e carvo com recortes de jornal relativos guerra dos Blcs (guerra era entre a liga balcnica Bulgria, Srvia, Grcia e

Montenegro contra a Turquia, emFig. 1/2: Copo e garrafa de Suz e detalhe (1912). Pablo Picasso

1912-1913). So textos que falam sobre morte, batalhas, epidemias de clera,

manifestaes pacifistas. No por acaso, o rtulo da bebida Suze, aperitivo feito de uma erva chamada genciana, foi escolhido. O nome genciana deriva de Gncio, rei que teria descoberto as virtudes tnicas e digestivas da erva. Gncio era rei de Ilria,

localizada exatamente na rea que constitua a liga balcnica 9. Pode-se concluir que, embora embasado pelo desejo de

explorar o plano pictrico, o uso do texto por Picasso no foi arbitrrio.Fig. 1/3: A traio das imagens (verso de 1928/29). Ren Magritte

Uma situao singular do texto convertido em matria pictrica ocorre na obra de Ren Magritte A traio das imagens (fig. 1/3). Nessa obra, o texto se insere na tela, abaixo da figura

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de um cachimbo, sob forma de enunciado: Ceci nest pas une pipe, ou, Isto no um cachimbo. Obra aparentemente simples que, segundo Michel Foucault, lembra um manual de botnica: uma figura e um texto que a nomeia. A relao entre texto e imagem em A traio das imagens est na essncia, faz parte da trama conceitual da pintura: todo o peso conceitual da obra de Magritte vem justamente da confrontao entre o que est escrito e o que est desenhado. A provocao e o desconcerto criados esto em um enunciado que nega (mas ao mesmo tempo afirma) a imagem. Em A traio das imagens no h uma pura e simples justaposio, mas um choque, suscitado por uma aparente contradio, por um aparente paradoxo.

A DIMENSO GRFICA DO TEXTO

Mesmo

em

nveis

diferentes,

tanto

em

os

Profetas, quanto em Copo e garrafa de Suze, ou em A traio das imagens, a relao entre texto e imagem circunstancial. Nos trs casos, os textos foram ou convertidos pictrica), mas em matria continuam

(escultrica

cumprindo seu papel representativo, ou seja, vocabular. Essa relao deixa de ser apenas circunstancial em obras de artistas que se

interessam pelo prprio grafismo (tipogrfico ou cursivo) da escrita: o texto desprovido do carter vocabular a escrita da maneira como a definiuFig. 1/4: Von minimax dadamax selbst konstruiertes maschinchen (1919-1920) Max Ernst

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Roland Barthes: a combinao de algumas retas e de algumas curvas 10.

Em Von minimax dadamax selbst konstruiertes maschinchen (fig. 1/4), Max Ernst explora a configurao tipogrfica de algumas letras. O esprito zombeteiro e o nonsense, prprios do Dadasmo, esto na origem da pequena

mquina de Ernst, um mecanismo em que formas tipogrficas isentas de compromissos vocabulares assumem o papel de peas.

J sob o ponto de vista da cursividade, escritaFig. 1/5 Pastorale detalhe (1927). Paul Klee

e desenho parecem se confundir. Segundo Paul

Klee, no h distino entre escrever e desenhar: so aes idnticas a semelhana est exatamente na cursividade de ambos. Em Pastorale (fig. 1/5), Klee se inspirou em um tecido decorado africano (fig. 1/6), cujos grafismos, por sua vez, tambm se assemelham a uma forma de escrita.

A cursividade o alicerce tambm para trabalhos que exploram especificamente a ilegibilidade da escrita. O ser da escrita ilegvel (fig. 1/7) feita por Bernard Rquichot, poucos dias antes de o artistaFig. 1/6: Tecido decorado. frica

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morrer, no vem do sentido, da comunicao, mas da fria, da ternura ou do rigor com que so traadas suas hastes ouFig. 1/7: Texto ilegvel detalhe Bernard Rquichot

suas curvas 11, afirma Barthes. No h separao entre escrita e

desenho (ou pintura) nesse testamento ilegvel de Rquichot; ambas so como fios entrelaados ao suporte: o texto como textura; espcie de vu bordado. O prprio Barthes combinou retas e curvas para produzir falsas escritas significantes sem significado (fig. 1/8).Fig. 1/8: Signific antes sem significado Roland Barthes

UMA NOVA DIMENSO SGNICA PARA O TEXTO

A escrita de Barthes pode ser definida como um texto que signo de si mesmo. J no universo da arte Pop, movimento que despontou na Inglaterra, mas encontrou nos Estados Unidos um solo frtil para se solidificar, o texto surge como um elemento dos signos de uma sociedade de massa e de consumo. Baseando-se no design comercial e na implacvel tcnica de venda 12, aFig. 1/9: I w as a rich mans plaything. (1972). Eduardo Paolozzi

arte

Pop

incorporou

diversas

faces

da

visualidade do consumismo pode-se citar a

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explorao do design de impressos: I was a rich mans plaything (fig. 1/9), de Eduardo Paolozzi (um dos representantes da arte Pop britnica); de embalagens comerciais: Lata de sopa (fig. 1/10), de Andy Warhol, figura proeminente da arte Pop americana; ou de histrias em quadrinhos: Sweet Dreams, Baby! (fig. 1/11), de Roy Lichtenstein.Fig. 1/10: Lata de sopa detalhe (1961-62). Andy Warhol

Embora no se possa afirmar que no

houve interesse pela dimenso vocabular do texto, o papel do significado das palavras inseridas nas obras parece ser mnimo; o verdadeiro interesse a explorao da

dimenso grfica do mesmo, pois o contexto

Fig. 1/11: Sw eet Dreams, Baby! (1965). Roy Lichtenstein

o

da

visualidade Portanto, o

publicitria.

uso do texto nas obras de arte Pop se liga mais condio de signo de

consumo que se multiplicaFig. 1/12: Le art (composition w ith logos 2) (1987). Ashley Bickerton

ostensivamente nos meios

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de comunicao e nas ruas, como marcas comerciais, por exemplo. A obra Le art (composition with logos 2) (fig. 1/12), de Ashley Bickerton, posterior ao movimento original, mas demonstra o esprito sob o qual o texto se inseria no universo Pop.

1.2 A IMAGEM NA LITERATURA

ICONOGRAFIA, ILUSTRAO, ILUMINURA

No mbito da Literatura, o texto convive com a imagem h sculos. Um dos termos usados para designar essa convivncia iconografia, que vem do grego: eikn, eiknos, imagem; e grapho, gravar, escrever, desenhar; da eikonographo, O termo representar, ilustrao

descrever 13.

com o sentido de traduzir um texto em imagens data do sculo XIX 14.Fig. 1/13: Livro dos Mortos. Sculo XI a. C. Egito

Iluminar tem o mesmo sentido; illuminare vem do latim e

significa, alm de adornar, esclarecer ou revelar 15. Embora no se tratasse de obras propriamente literrias, os Livros dos Mortos (fig. 1/13), do antigo Egito, e os manuscritos iluminados medievais (fig. 1/14) so exemplos do convvio do texto com a imagem, anteriores ao livro impresso 16. Com o advento da tipografia, esse convvio no cessou; segundo Emanuel Arajo, aproximadamente um tero das cerca de trinta e cinco mil obras publicadas no

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sculo XV continha ilustraes. E o ofcio da ilustrao no se restringia a especialistas; renomados artistas tambm ilustravam obras de grandes autores: a primeira edio da Divina Commedia, de Dante, impressa em 1481, foi ilustrada por Sandro Botticelli.

O uso de imagens em textos literrios encontrouFig. 1/14: Manuscrito Iluminado. Idade Mdia

opositores. Gustave Flaubert sustentava que numa obra de fico bastava, tanto ao leitor

quanto ao escritor, o poder do texto sugerir ou aludir. Mas a explorao da imagem aliada ao texto literrio se revela fundamental no processo criativo de alguns escritores, como o poeta ingls William Blake ou o romancista e poeta brasileiro Ariano Suassuna, fundador do Movimento Armorial 17.

Fig. 1/ 15: Pginas de Songs of Experience (1794). William Blake

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Atualmente, o termo ilustrao possui um conceito mais amplo do que o de simples traduo, e incorpora a idia de dilogo, de interao. Nesse sentido, visionrio o procedimento de William Blake, que buscava uma absoluta interao entre texto e imagem. O prprio poeta ilustrava, escrevia ( mo) e diagramava as pginas dos livros dele, como Songs of Experience 18 (fig. 1/15). As pginas de Songs of Experience foram reproduzidas atravs da tcnica da gravura em metal e coloridas, uma a uma, com aquarela.

Ariano Suassuna d incio, a partir da dcada tambm de 1980, a obras aquela nas quais

buscava

integrao

ambicionada por Blake. As obras foram batizadas de iluminogravuras, fuso de iluminura (gravura medieval em madeira) e xilogravura nordestina. O

procedimento de Suassuna semelhante ao de Blake: os textos e imagens das iluminogravuras so reproduzidos porFig. 1/16: Iluminogravura. (anos 1980). Ariano Suassuna

off-set e, posteriormente, cada cpia colorida com guache, leo e aquarela

(fig. 1/16). O desejo de Suassuna sempre foi, afirma o pesquisador Carlos Newton, unir o texto literrio e a imagem num s emblema, para que a Literatura, a Tapearia, a Gravura, a Cermica e a Escultura falem, todas,

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atravs de imagens concretas, firmes e brilhantes, verdadeiras insgnias das coisas 19.

William Blake defendia a idia da no existncia de artes (pintura, escultura, poesia), mas da Arte, como pura atividade de esprito que escapa matria. Tanto esse ideal de Blake quanto a idia do emblema nico de Suassuna decretam a invaso daquele territrio limtrofe e movedio: Suassuna impelido pelo conceito de unicidade, Blake, pelo de indistino. Seja como for, ambos colocam texto e imagem num mesmo patamar.

A VISUALIDADE PRPRIA DO TEXTO

Na poca em que viveu Flaubert (o sculo XIX, particularmente no perodo final), os avanos contriburam

tecnolgicos

para uma massificao da imagem texto: conjugada as aoFig. 1/17: Pgina de Un coup de ds (1897). Sthphane Mallarm (traduo de Haroldo de Campos)

cmeras passaram a

fotogrficas retratar

com

mais

eficincia, por exemplo, cenas de guerra ou de pompa reproduzidas por ilustradores. Partindo desse ponto de vista, Emanuel Arajo detecta em Un coup de ds, de Stphane Mallarm, uma reao inusitada a essa massificao.

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Segundo

Arajo,

esse

poema

de

20

pginas,

publicado

em

1897 20,

demonstrava, sem o auxlio da imagem externa, que o texto bastava-se em seu prprio universo visual 21. Paradoxalmente, o objetivo de Mallarm estava ligado sonoridade, no visualidade das palavras: a estratgia dele para determinar a importncia de cada palavra na declamao do poema foi criar uma hierarquia utilizando diferentes tipos de impresso (fig. 1/17). Os espaos em branco correspondiam ao silncio. A inspirao de Mallarm para a diagramao (semelhante a uma partitura) de Un coup de ds vem da msica, dos concertos. Mallarm acreditava que o valor da poesia no reside nos conceitos atrelados ao significado lexical das palavras, mas no som das palavras e na capacidade delas de evocar imagens. O som adquire valor, segundo ele, a partir das pausas e da ausncia de um significado dado s palavras. As palavras, assim, adquiririam um significado novo.

Embora o impacto de Un coup de ds no tenha sido imediato, foi a partir desse poema que foram introduzidas novas maneiras de usar as palavras e o alfabeto no campo literrio, bem como no campo do design grfico. O poema de Mallarm tornou-se cone de um processo de emancipao da linguagem potica que, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, iniciava um afastamento do discurso de idias. E foi a poesia que se nutriu intensamente dos experimentalismos modernistas detonados por essa obra emblemtica. De modo geral, conforme salienta E. M. de Melo e Castro num ensaio escrito em 1965, o sentimento espacial desse lance de dados manifesta-se como denominador comum de todas as formas atuais de experimentalismo potico 22.

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Os movimentos poticos do incio do sculo XX questionavam, tal como as artes plsticas, a funo representativa da linguagem artstica. Buscava-se a materialidade do signo potico manifestao fsica, palpvel da prpria realidade e a eliminao (ou, pelo menos, a minimizao) dos aspectos semnticos. O desejo era o de trabalhar diretamente com os signos, ignorando o aspecto responsvel pela representao. O pensamento dos modernistas alinha-se ao de Barthes que, contrariando a lingstica, entende que a coisa linguageira no pode ser tida e contida nos limites da frase:

No so somente os fonemas, as palavras e as articulaes sintticas que esto submetidos a um regime de liberdade condicional, j que no podemos combin-los de qualquer jeito; todo o lenol do discurso que fixado por uma rede de regras, de constrangimentos, de opresses, de represses, macias ou tnues no nvel retrico, sutis e agudas no nvel gramatical: a lngua aflui no discurso, o discurso reflui na lngua (...). 23

Combatendo a indistino entre lngua e discurso existente no corpo da lingstica, a semitica barthesiana quer recolher o impuro da lngua retornando ao texto, escritura, literatura, a mais completa das prticas significantes. Para Barthes, a letra no apenas som, e a escrita no um simples sistema subordinado linguagem, um sistema autnomo que deve ser explorado como tal. Essa autonomia foi posta em relevo pelo

experimentalismo potico modernista, tanto sob o ponto de vista da visualidade, quanto sob o ponto de vista da sonoridade, separada ou simultaneamente.

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DADASMO, LETRISMO E A DIMENSO SONORA DO TEXTO

Tal como Mallarm com Un coup de ds, diversos poetas que se voltavam para a explorao da sonoridade acabavam desembocando na visualidade. A potica nonsense do Dadasmo, por exemplo, baseava-se numa pretensa pureza da lngua destituda da funo representativa. Os poetas dadastas

destruam o lxico para dar lugar ao som. Os poemas eram feitos para a declamao, mas no se distinguiam palavras, o havia dadasta apenas Raoul

vocalizaes.

Segundo

Hausmann, o grande passo para introduzir o irracionalismoFig. 1/19: Poema optofontico (1918). Raoul Hausmann

total

na

literatura do poema

foi

dado

atravs

da

introduo

sonoro 24.

Entretanto, havia registros visuais (tipogrficos); ou seja, muitos desses poemas sonoros foram transpostos para a pgina, como Poema optofontico (fig. 1/19), de Hausmann. Sobre esse poema, escreveu Hausmann: O poema sonoro uma combinao de respirao e ao da fala. Para expressar esse componente tipograficamente, utilizei letras pequenas e grandes, para assim dar-lhes um carter de escrita musical 25.

Outro movimento baseado na sonoridade foi o Letrismo (

cap. 5

), elaborado

na Frana pelo poeta romeno Isidore Isou, em 1947. O Letrismo, ou a ordem das letras, no era considerado uma escola potica por Isou, mas uma atitude solitria a espera de sucessores no campo potico. Isou pregava uma poesia

Angelo Mazzuchelli Garcia

A literatura como design grfico

30

fontica, ou auditiva, de natureza no-vocabular; um novo mtodo para suscitar imagens acsticas atravs da justaposio de sonoridades (letras). No Manifesto Letrista 26, escrito em 1942, o poeta combate veementemente as palavras. Segundo ele, palavras destroem sinuosidades, matam a sensibilidade e s servem para determinar coisas. Os sentimentos que no possussem palavras no dicionrio no poderiam existir faltaria a elas uma forma concreta. De acordo com essa teoria, nenhuma palavra capaz de transportar os impulsos que algum queira enviar com elas.

Isou parte de uma crtica mais genrica, dando uma conotao social ao Manifesto segundo ele, aprende-se palavras ao mesmo tempo em que se aprende bons modos. E sem palavras ou modos no se poderia integrar-se sociedade. Nesse contexto, os poetas sofreriam indiretamente, pois as palavras so a matriaprima, a existncia e a tarefa deles. Os poetas, salienta Isou, no enviam verdadeiras emisses, s produzem analogias. Barthes afirmaria, mais tarde, em 1977, na aula inaugural da cadeira de semiologia literria do Colgio de Frana, que os signos de que a lngua feita existem na medida em que so reconhecidos, na medida em que se repetem; o signo seguidor, gregrio; em cada signo dorme este monstro: um esteretipo: nunca posso falar seno recolhendo aquilo que se arrasta na lngua 27.Fig. 1/20: Poema letrista . Isidore Isou

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A literatura como design grfico

31

Para contrapor-se a essa situao, o Letrismo pretendia exterminar as palavras e favorecer as letras. As letras teriam um destino a mais do que somente integrar palavras. Tudo deveria ser revelado pelas letras. A inteno de Isou no era substituir palavras por outras palavras, mas revelar ao espectador as maravilhas criadas com as letras. Criar uma arquitetura de ritmos ltricos a partir dos escombros da destruio das palavras. Avanar na profundidade do desconhecido e tornar entendvel e tangvel o incompreensvel e vago 28. Sementes do Letrismo j existiriam, segundo Isou, poca do Manifesto palavras sem sentido, palavras com significados ocultos em suas letras e onomatopias. No obstante o discurso de Isou pregar uma poesia fontica, o poema ganhava corpo, visualidade (fig. 1/20).

A CALIGRAFIA E OS CALIGRAMAS

Paul Klee no diferenciava o desenho da escrita; Georges Jean detecta uma indistino semelhante ao se referir aos caligramas: segundo ele, os caligramas derivam da escrita caligrfica. Etimologicamente, a caligrafia est ligada bela escrita, mas na prtica, salienta Jean, a frgil fronteira entre o desenho e a escrita dos signos 29. Anteriormente conhecidos como versos figurados, os caligramas s receberam essa denominao aps o trabalho do poeta Guillaume Apollinaire, no sculo XX. A revista de vanguarda LEsprit Nouveau (1920-1925) 30 chegou a publicar exemplos de versos figurados. Portanto, Apollinaire tinha a conscincia de que seus caligramas no eram uma experincia de todo original, tanto que nem se preocupou em sistematiz-la.

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A literatura como design grfico

32

No entanto, ele revigorou um procedimento literrio at ento muito pouco explorado por ser considerado um meio, e no um fim em si mesmo.

Os versos figurados remontam era pr-Crist e eram vistos, segundo Jrme Peignot, apenas como um meio a mais de se mostrar destacaFig. 1/21: Duplo machado. Simmias de Rodes

transparente 31.

Entretanto,

Peignot

Simmias, que viveu na regio de Rodes no ano de 300 a. C., como um poeta que no se contentou em dar a seus poemas um contexto metafrico, cheio de imagens 32. Possivelmente o primeiro autor de caligramas conhecido, Simmias de Rodes tambm teria procurado harmonizar o ritmo dos poemas s figuras que se propusera ilustrar. Como se os traos de um par de asas, de um ovoFig 1/22: Labrys

ou de um machado comportassem cada qual um tipo de versificao apropriada. Aqui, as formas

grficas e as versificadas (...) esto to intimamente ligadas que no se saberia usar uma sem encontrar aquela. 33

No caligrama Duplo machado (fig. 1/21), de Simmias, o texto do poema disposto de forma a aludir as duas lminas desse instrumento cortante em torno de um eixo. A leitura se d do exterior para o interior da figura,

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A literatura como design grfico

33

alternadamente e no sentido horrio, conforme assinala Rafael de Czar 34. O percurso de leitura repleto de circunvolues sugere um labirinto: a palavra labirinto, segundo alguns arquelogos e lingistas, deriva do termo minico labrys, que significa duplo machado (cap. 5

). E uma das

formas clssicas de representao do labirinto alusiva ao duplo machado (fig. 1/22).

A conexo entre caligrama e caligrafia propostaFig. 1/23: A chuva. (1918) Guillaume Apollinaire

por

Georges

Jean

etimolgica

(prefixo

comum, do grego, kalls, belo), e tambm simblica, uma vez que no caligrama as

palavras desenham o tema ao qual se referem. Mas a tipografia tambm usada na construo de caligramas. Diversos so os exemplos na poesia, como A chuva (fig. 1/23), de Apollinaire; mas encontram-se formas semelhantes nos textos em prosa. Numa das pginas do livro Histoire du roi de Bohme et ses sept chteaux, de Charles Nodier, publicado palavras sept en em 1830, as les

descendant de

rampes

lescalierFig 1/24: Histoire du roi de Bohme et ses sept chteaux (1830) Charles Nodier

(descendo os sete degraus da escada) so dispostas de

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A literatura como design grfico

34

forma a sugerir visualmente esses sete degraus (fig. 1/24). Em Alice no pas das maravilhas (1865), Lewis Carroll configura a mancha de texto do Conto do camundongo aludindo a cauda de um

camundongo (fig. 1/25) 35. A disposio grfica do conto do camundongo tem origem na estrutura chamada tail rhyme dois versos curtos rimados seguidos de um outro no rimado e mais

alongado 36: o verso longo, graficamente, seria a cauda do conjunto de trs versos.

Embora possuam direes de leitura diferentes entre si horizontal em Nodier e Carroll; vertical em Apollinaire; e espiralada em Simmias em todos os casos, o texto discursivo e os valores expressivosFig. 1/ 25: Conto do camundongo, em Alice no pas das maravilhas (1865) Lewis Carroll

da

lngua

so

preservados;

a

linearidade da leitura ocidental permanece. Mas o artifcio ldico do caligrama neutraliza a antiga oposio da civilizao alfabtica entre olhar e

ler. Segundo Michel Foucault, o caligrama compensa o alfabeto, pois as regras rgidas s quais esse ltimo se submete o mantm alheio ao mundo das imagens: o caligrama entrelaa, num nico corpo, um texto e uma imagem correspondente.

A tradio milenar do caligrama d-lhe um trplice papel, constata Foucault: compensar o alfabeto; repetir sem o recurso da retrica (cuja essncia se liga

Angelo Mazzuchelli Garcia

A literatura como design grfico

35

mais alegoria) e prender as coisas numa dupla grafia 37. A obra A traio das imagens (fig. 1/3) definida por Foucault como um caligrama desfeito. Magritte teria desentrelaado um caligrama, decompondo-o em duas partes originais: o texto, que havia invadido a figura para formar um caligrama, volta a ser legenda; e a forma volta ao seu silncio nativo 38. O caligrama , resume Foucault, tautologia.

O FUTURISMO ITALIANO: COLAGEM X MONTAGEM

Diferentemente de Apollinaire, Filippo Tommaso Marinetti sistematizou suas idias em forma de manifesto. Em 20 de fevereiro de 1909, ele publica no jornal Le Figaro, de Paris, o primeiro manifesto futurista. O Futurismo, movimento de origem italiana, pregava a ruptura com a arte do passado atravs da glorificao do futuro das inovaes tecnolgicas da era moderna. J no final do sculo XIX, a tipografia, por exemplo, se transformava em indstria, tornando a impresso milhares de vezes mais rpida: maior produo em menos tempo uma distino industrial modernista. A tipografia foi o artifcio tcnico explorado por Marinetti para concretizar o que ele chamou de palavras em liberdade palavras libertas da sintaxe tradicional, e revigoradas visualmente. No rastro de Un coup de ds, o Futurismo comeou efetivamente a demolio do discurso do convencimento, lgico e linear, com o qual a escritura clssica havia se fixado 39. Dizia Marinetti, no Manifesto:

preciso destruir a sintaxe e espalhar os substantivos ao acaso... preciso usar infinitivos... preciso abolir o adjetivo... abolir o

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A literatura como design grfico

36

advrbio... preciso que se confunda deliberadamente o objeto com a imagem que ele evoca... preciso abolir at mesmo a pontuao. 40

O procedimento adotado pelos poetas futuristas foi similar ao da colagem cubista. Assim como a realidade (recortes de papel) se incorporou ao plano da tela na pintura cubista, o processo da colagem na poesia trouxe para o plano da pgina uma realidade a palavra em sua forma grfica e,

conseqentemente, um esvaziamento do aspecto representacional (semntico). Philadelpho Menezes lembra,

em A crise do passado, que alm de um processo tcnico, a colagem tambm um processo formal de organizao

semitica 41. Nesse processo de fortalecimentoFig. 1/26: Zang Tumb Tumb (1914) pgina dupla. Filippo Tommaso Marinetti

semitico semntico,

e os

esvaziamento

futuristas arranjavam no espao da pgina elementos de procedncia variada, sem que houvesse um critrio de arranjo espacial. O primeiro livro no qual Marinetti explorou as palavras em liberdade futuristas foi Zang Tumb Tumb (fig. 1/26), publicado em 1914. Embora regulada pela visualidade, a caoticidade nas pginas de Zang Tumb Tumb vincula-se tambm sonoridade: os signos verbais expressam os sons de uma batalha (fig. 1/27): o livro uma avaliao da batalha de Adrianpolis, Turquia (1912).

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A literatura como design grfico

37

Na fase final do futurismo italiano (anos 1930), houve um afastamento da colagem para priorizar um procedimento um

pouco diferente: a montagem. De acordo com a concepo de Philadelpho

Menezes, o que diferencia a colagem da montagem que a primeira uma

soluo mais sensorial e irracional; a segunda, mais intelectual e racional. O que Philadelpho chama de montagem denominado por E. M. de Melo e Castro de colagem sinttica. apenas umaFig. 1/27: Zang Tumb Tumb (1914) pgina dupla desdobrvel. Filippo Tommaso Marinetti

questo de nomenclatura; em essncia os conceitos so iguais Philadelpho

considera a colagem (diferenciando-a da montagem) um procedimento anti-sinttico por excelncia. A montagem, ou colagem sinttica, uma construo metdica; aFig. 1/28: Em Depero futurista. (1927) Fortunato Depero

colagem, no, mais catica em sua concepo. Portanto, na maturidade do

futurismo, a construtividade e a limpeza da forma (via montagem) tomam o lugar da caoticidade do perodo inicial (via colagem). Correspondem a essa fase as pginas do livro Depero futurista (fig. 1/28), de Fortunato Depero.

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A literatura como design grfico

38

A RSSIA E A TRADIO

Os ideais futuristas se propagaram rapidamente, e os russos foram os que mais absorveram os ideais do movimento italiano. Num pas

envolvido com a revoluo (de 1917), convivendo com a

convulso social e poltica, e com uma populao semi-analfabeta, a palavra aliada imagem era um meio eficaz para a propagao dos ideais revolucionrios. Nesse

contexto, surge o chamado Cubofuturismo, movimento moldado por diversas tendncias: alm doFig. 1/29: Pginas de Uma seleo de poemas do alm das palavras pelo ferreiro da palavra: 1907-1914 (1914). Velimir Khlebnikov (co-autoria: Pavel Filonov, Kazimir Malevich e Vladimir Mayakovsky)

interesse pelo Futurismo e pelo Cubismo, corrente russa

somaram-se as idias do Construtivismo 42 e do Suprematismo 43 (prticas fundamentadas na geometria). Mas o fato de a Rssia possuir uma grande tradio visual atravs dos lubki (singular, lubok), toscos cartazetes xilografados contendo textos e ilustraes, e de revistas polticas ilustradas deu ao Cubo-Futurismo um carter mais vernacular: princpios do

Neoprimitivismo (tendncia que explorava a tradio dos lubki, do folclore, e inspirava-se tambm na arte infantil) tambm foram absorvidos.

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A literatura como design grfico

39

As pginas do livro Uma seleo de poemas do alm das palavras pelo ferreiro da palavra: 1907-1914 44 (1914), de Velimir Khlebnikov (em parceria com Pavel Filonov, Kazimir Malevich e Vladimir Mayakovsky), demonstram a tendncia neoprimitivista: os versos de Khlebnikov (que usou palavras que estavam em desuso e dialetos provincianos) interagem com imagens tpicas dos lubki e com cones da mitologia eslava (fig. 1/29). O objetivo do Cubofuturismo no era a destruio da sintaxe, tal como o Futurismo, mas uma reconstruo sinttica, uma modificao dos modos de comunicao.

O SURREALISMO E O POEMA-OBJETO

Uma nova sintaxe surge com o Surrealismo, movimento lanando em 1924, por Andr Breton. Inicialmente, o Surrealismo foi um movimento de cunho literrio atravs do qual se pretendia expressar verbalmente ou por escrito, o verdadeiro funcionamento do pensamento. O pensamento ditado na ausncia de todo o controle exercido pela razo 45. Esse ideal d origem ao conceito de imagem surrealista: a justaposio fortuita de duas realidades diferentes; e, quanto mais disparatadas fossem tais realidades, mais brilhante seria a centelha da imagem. O potencial humano de criar imagens, segundo Breton, natural, mas s poderia ser realizado se fosse dada ao inconsciente plena liberdade de ao. Embora o interesse inicial do movimento fosse de carter verbal, o Surrealismo se difundiu atravs da imagem. E o campo mais rico de criao foi o dos objetos (categoria artstica): a combinao de objetos

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A literatura como design grfico

40

cotidianos aflora, de modo mais agudo, o surrealismo da imagem surge, assim, o conceito de poema-objeto (fig. 1/30).

Igualmente importante para a instaurao da idia de poema-objeto foi a conceito de ready-made, literalmente o j feito, criado por Marcel Duchamp, artista que transitou pelo O Dadasmo e pelo de

Surrealismo.

procedimento

Duchamp consistia em coletar um objeto do dia-a-dia e eleg-lo como uma obra de arte j pronta, j feita. Segundo

Duchamp, o que importa no o objetoFig 1/30: Poema-objeto (1937). Andr Breton

de arte em si, mas a atitude em relao a ele. Essa idia concretizou um

pensamento de Lautramont, segundo o qual s se pode observar um objeto como forma quando se retira tal objeto de seu contexto convencional; em outras palavras, quando se despe o objeto da eventual funo que o mesmo desempenha. Essa atitude de Duchamp tornou possvel que objetos banais do cotidiano pudessem ser reincorporados sob a forma de obras de arte.

Posteriormente ao movimento surrealista, outros poetas adotam a linhagem do poema-objeto, como o catalo Joan Brossa. Embora conceitualmente

diferentes, os paradoxos visuais de Brossa (fig. 1/31) evocam os objetos surrealistas 46. Os poemas-objeto de Brossa tambm poderiam ter como divisa a

Angelo Mazzuchelli Garcia

A literatura como design grfico

41

mesma frase, de Lautrmont, que Breton tomou como modelo: To belo quanto o encontro fortuito de uma mquina de costura e de um guarda-chuva sobre um mesa anatmica 47.

O termo poesia visual ainda no existia poca, mas os objetos surrealistas podem ser assim

considerados; o mesmo vlido para Un coup de ds; ou para os poemasFig. 1/31: Sem sorte (1988). Joan Brossa

do livro de Velimir Khlebnikov. Segundo Philadelpho Menezes, o

termo poesia visual deriva da poesia visiva italiana, movimento da dcada de 1960. A poesia visual abrange um universo bastante extenso e, no por acaso, indefinido. Indefinio prpria do territrio aqui investigado. A poesia visual explora a forma grfica das palavras; mas tambm pode se valer de signos grficos, de fotos, de desenhos. A poesia visual pode reduzir-se a uma imagem. Ou mesmo a um objeto.

A MATERIALIDADE DO SIGNO POTICO E O PS-MODERNISMO

Um dos marcos do incio do perodo denominado Ps-moderno foi o deslocamento da capital das artes da Europa (Paris) para a Amrica (Nova Iorque). Nessa poca, a Europa estava sendo assolada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e grandes galerias americanas promoveram exposies de artistas modernistas europeus refugiados em Nova Iorque. A organizada

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A literatura como design grfico

42

infra-estrutura dos Estados Unidos em termos de galerias e de museus, frente catica situao europia, fez com que Nova Iorque se tornasse o bero de novos movimentos artsticos, tais como o Expressionismo Abstrato 48 e a Arte Pop americana.

Se a palavra de ordem do Modernismo foi criar o novo; com o Ps-modernismo, o novo perde sua aurola, conforme Antoine Compagnon 49. Segundo esse mesmo autor, a Arte Pop foi o movimento essencial para a desqualificao do novo aoFig. 1/32: Love (1966). Robert Indiana

fundamentar-se na sociedade de consumo e ao sensibilizar-se frente aos objetos banais do

cotidiano dessa sociedade (na linha de Duchamp, um dos poucos artistas que no retornaram Europa aps a guerra). A Arte Pop tirou vantagem quantitativa dos ready-mades de Duchamp, reproduzindo ilimitadamente imagens pertencentes mdia.

O movimento Pop, libertou a arte da religio e do tdio 50, observa Compagnon, e tornou a obra um artigo popular (uma rejeio ao objeto de arte nico e de luxo). A obra Love (fig. 1/32), de Robert Indiana, cujo design inicial se destinava a um carto de natal doFig. 1/33: Love. Peso de papel em metal.

MoMA (Museum of Modern Art), tornou-se

um cone e se multiplicou sob inmeras formas, como: peso de papel (fig.

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A literatura como design grfico

43

1/33), selo, ou elemento urbano (fig. 1/34). Compagnon qualificou a arte Pop como o estopim de um processo que barrou o confinamento da arte s galerias. A arte Pop, portanto, deu incio a uma srie de tendncias em que a arte ganha as ruas, dentre as quais a arte pblica 51 e a land-art 52; e outras em que a obra se desmaterializa na linguagem corporal das artes

performticas.

No rastro dessas novas tendncias da segunda metade do sculo XX, a literatura tambm se expande por novos territrios. A cidade o cenrio para o poema A de barca (fig. 1/35), de Brossa, na regio da Catalunha. EmFig. 1/34: Love (1966-99). Elemento urbano em Manhattan, Nova Yorque.

diversos trabalhos de Brossa, a letra A, chamada por ele de a porta do alfabeto, explorada. Em A de barca, o poema assume grandes dimenses; e a letra A simula a estrutura de uma vela. Essa poesia pblica no simplesmente uma poesia que se realiza nas ruas, mas a poesia que seFig. 1/35: A de barca (1996). Catalunha. Joan Brossa.

realiza atravs da interao com o entorno, com a paisagem urbana e com o passante.

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A literatura como design grfico

44

No mbito da performance 53, o poeta portugus Fernando Aguiar, por exemplo, tem realizado, desde a dcada de 1980, uma srie de obras nas quais trabalha, segundo ele mesmo, com o recurso ao movimento, tridimensionalidade, manipulao das letras e de outros objetos, ao som, e s luzes 54. Na fig. 1/36, um dos momentos da performance

Soneto visual e sonoro, de Aguiar. A foto emblemtica: como que um ilusionista, oFig. 1/36: Performance Soneto visual e sonoro (1996 Sinagoga de Palmovce, Praga, Repblica Tcheca). Fernando Aguiar

poeta domina e faz flutuar a matria-prima de seu ofcio as

letras: a visualidade da poesia se integrando ao conceito de espetculo.

1.3 TEXTO, IMAGEM E O OBJETO LIVRO

O LIVRO COMO OBRA DE ARTE

O arquiteto e designer grfico russo El Lissitsky (Eliezer Markvitch Lissitsky) afirmava, no incio do sculo XX, que o livro deveria possuir uma eficcia de obra de arte 55. Seja qual for o juzo que se tenha sobre o que define uma obra de arte, o livro adquire esse status medida que a distino entre contedo e forma abreviada. Desde a origem da tipografia,

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A literatura como design grfico

45

houve conflito entre a forma e o contedo. A forma era o livro impresso. O contedo era o pensamento. (...) A partir do sculo XIX, a dinmica da arte tipogrfica incentivou uma irresistvel unio entre o significante e o significado. 56

No final do sculo XIX, na Inglaterra, por iniciativa do editor e tipgrafo William Morris e do movimento Arts and crafts (Artes e Ofcios), havia um interesse em produzir livros bem compostos, com nfase no trabalho artesanal.

Fig. 1/37: The w orks of Geoffrey Chaucer (1896). W i l l i a m M o rri s

O movimento tinha como meta principal a melhoria da qualidade dos objetos industrializados. Entendendo a obra de arte como objeto de contemplao, Morris escreveu: Meu empenho fundamental ao produzir livros foi o de que resultassem em prazer para a vista, ao serem contemplados como peas de impresso e composio tipogrficas 57. Em 1891, Morris fundou a Kelmscott Press (grfica particular do Movimento Artes e Ofcios), que editou dezenas

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A literatura como design grfico

46

de volumes cuidadosamente produzidos, observando desde a escolha do papel e da tinta, at o design do livro como um todo (fig. 1/37).

Produto da complementaridade entre as artes, regidas pelo design e pela arquitetura esse era o conceito de obra de arte para a Bauhaus, escola de artes e ofcios fundada em 1919, em Weimar, Alemanha. A Bauhaus tambm se destacou pela produo de livros graficamente bem elaborados (a maior parte projetada por Lazlo Moholy-Nagy), apoiados na crescente mecanizao da poca. As pginas dos livros da Bauhaus apresentavam, freqentemente, formatos diferenciados entre si, bem como elaborados encartes e recortes.

No Brasil (em Pernambuco), a bandeira do livro como obra de arte foi erguida entre os anos 1954 e 1961 58, por um grupo de intelectuais autodenominado O grfico amador. Alm de escritores como Ariano Suassuna, Jos Laurnio de Melo e Osman Lins, o grupo contava com integrantes como Ana Mae Barbosa (arte-educadora), Francisco Brennand (ceramista), Jos Mindlin (biblifilo), Aluso Magalhes (designer grfico). Embora nenhum deles tivesse escrito um manifesto, o objetivo do Grfico amador era acabar com a noo de que o livro, sob o aspecto material, est dispensado de ser uma obra de arte; ou dissociar a idia de qualidade grfica de livro de luxo.

O

grupo,

que

mantinha

correspondncia

com

editores

de

revistas

especializadas de outros pases 59, publicou, em julho de 1955, no primeiro boletim informativo:

Angelo Mazzuchelli Garcia

A literatura como design grfico

47

O Grfico amador rene um grupo de pessoas interessadas na arte do livro. Fundado em maio de 1954, tem a finalidade de editar, sob cuidadosa forma grfica, textos literrios cuja extenso no ultrapasse as limitaes de uma oficina de amadores. 60

Foram publicadas, em pequena tiragem, mais de trinta obras; a maioria inconstil (sem costura). A encadernao, quando necessria, era feita por encadernadores buscavamFig. 1/38: Ilustrao em Aniki Bobo, de Joo Cabral de Melo Neto

profissionais. a

Esses as

livros artes

interconectar

literatura,

plsticas e o design grfico.

O

cuidado

artesanal

do

grupo

pode

ser

exemplificado pelo livro Ciclo, de Carlos Drummond de Andrade, no qual foi empregada a tcnica de encadernao chinesa: as folhas, coladas pelas bordas, formavam uma longa fita que, dobrada alternadamente (pela bordas coladas) davam origem a uma sanfona (formato tambm chamado de gaita ou concertina) que se encaixava pelos dois lados da capa; ou por Aniki Bob, de Joo Cabral de Melo Neto, que continha ilustraes gravadas a partir de matrizes feitas com barbante colado em blocos de madeira (fig. 1/38).

A PGINA: UNIVERSO EM EXPANSO

Quanto menor a distino entre forma e contedo, ou quanto mais slida a unio entre significante e significado, maior o grau da eficcia de obra de arte do livro. Essa eficcia parece ter sido detonada por Un coup de ds. O

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48

editor Jacques Damase escreveu em Revoluo tipogrfica (1966): O estranho poema (...) Un coup de ds pode ser considerado historicamente como o primeiro tiro de canho que despertou o esprito do livro moderno 61. Assim, a semente do esprito do livro moderno comea a germinar onde se instala a revoluo tipogrfica na pgina 62.

Ao inaugurar a diferenciao tipogrfica como um elemento do poema, com Un coup de ds, Mallarm atinge outra realidade alm da pgina: a realidade do livro como objeto, sobretudo como objeto manusevel. A partir da, no quase inexorvel curso da funcionalidade do livro, comearam a surgir desvios que o levam a deixar de ser apenas um suporte de significantes, para se converter no prprio significante.

E foi o tiro de canho de Mallarm que trouxe o primeiro desvio mais significativo: a diferenciao tipogrfica reverbera na superfcie do papel e Mallarm passa considerar duas pginas abertas do livro como espao nico. At essa poca, por um hbito estabelecido muito antes da inveno da imprensa, a leitura s se dava a partir de palavras dispostas em linhas horizontais, pgina por pgina. Por sua vez, essa nova frmula de leitura reverbera no livro como um todo, demandando uma leitura global: segundo Maurice Blanchot, em Un coup de ds h uma busca de enriquecer a leitura analtica pela viso global e simultnea, enriquecer tambm a viso esttica pelo dinamismo do jogo de movimentos (...) 63.

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A literatura como design grfico

49

Igualmente significativo foi o rompimento com o layout tradicionalmente simtrico da pgina, levado a cabo pelo Futurismo. Ao propor as parole in libert, Marinetti pretendia provocar uma exploso tipogrfica na pgina futurista. O poeta italiano considerava repugnante a tradicional idia de harmonia tipogrfica da pgina; segundo ele, deveriam ser usados tantos tamanhos e formas de tipos e tantas cores quantos fossem necessrios. Dessa forma, a fora expressiva das palavras seria duplicada. A pgina deveria ser a expresso do pensamento e do dinamismo futurista.

J na Rssia, pgina agregado um sentimento artesanal. O

modernismo na Rssia, contagiado pela ideologia marxista, aspirava unificao da sociedade atravs da

unificao das artes: classificaes tradicionais que distinguiam as artes numa escala hierrquica artes

aplicadas num patamar inferior s Belas Artes (pintura, foram escultura, suprimidas.

arquitetura)Fig. 1/39: Ardentemente: desejo, comicho (1921). Aleksei Kruchenykh

Esse posicionamento possibilitou a diversos artistas atuar em diferentes

campos, durante as dcadas de 1910 e 1920. Artistas plsticos e poetas passaram a trabalhar em conjunto na produo de livros, buscando subverter ou renovar a esttica do mesmo.

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A literatura como design grfico

50

Na cidade de Tbilisi ( poca, Tiflis), num ambiente de liberdade artstica, formou-se um grupo de artistas plsticos e poetas denominado 41. Esse grupo de artistas explorava uma linguagem adjetivada de trans-racional: a linguagem zaum, que se baseava na explorao de palavras, fragmentos de palavras, letras e smbolos, incorporando a tipografia, o texto manuscrito e carimbos, como no livro Ardentemente: desejo, comicho 64 (fig. 1/39), de Aleksei Kruchenykh. Nas pginas desse livro, Kruchenykh explora esses elementos incorporando, tambm, papis impressos encontrados.

O LIVRO: SIGNO, PRESENA FSICA E FUNCIONALIDADE

A

superfcie

da

pgina

no

foi

suficiente para a revoluo futurista: o prprio objeto livro deveria ser uma expresso do movimento italiano.

Ambicionando criar um signo da Idade da mquina, Fortunato Depero lana,Fig. 1/40: Depero Futurista (1927) Fortunato Depero

em 1927, Depero futurista (fig. 1/40), um livro encadernado com dois grandes

parafusos e duas grandes porcas. Depero futurista foi chamado pelos futuristas de o primeiro livro mecnico. Cinco anos aps o lanamento do livro de Depero, ou seja, em 1932, surge o que talvez tenha sido o signo definitivo da Idade da Mquina o primeiro livro impresso em folhas de metal: Parole in libert: olfattive, tattili, termiche (fig. 1/41), de Marinetti.

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A literatura como design grfico

51

Publicado pela Litolatta, editora especializada em livros de metal, Parole in libert: olfattive, tattili, termiche propunha promover uma interao fsica entre palavras e sensaes olfativas, trmicas e tteis. E foi o fundador da Litolatta, o futurista Tullio d'Albisola, o autor do segundo e ltimo (ao que se sabe) livro impresso em folhas de metal: L'anguria lrica (fig. 1/42), lanado

Fig. 1/41: Parole in libert: olfattive, tattili, termiche (1932). Filippo Tommaso Marinetti

Fig. 1/42: L'anguria lrica (1934). Tullio d'Albisola

em 1934. A leitura, nesses livros mecnicos, passa a ser tambm perceptiva a materialidade de peas de metal atuam como significante. A distino entre

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A literatura como design grfico

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forma e contedo definitivamente se desvanece: o livro se apresenta como presena fsica.

Na

Rssia,

o

sentimento

artesanal

agregado pgina cubo-futurista tambm acaba por contaminar o livro como um todo. Aqui, a eficcia de obra de arte se converteu numa espcie de palavra de ordem. Em Ovo de pscoa do futurista Sergei Podgaevskii (fig. 1/43), lanado em 1914, Sergei colagem, Podgaevskii impresso, mescla papis

aquarela,

rasgados e carimbos. E a impresso por carimbos no se limitou aos tradicionais,

Fig. 1/43: Ovo de pscoa do futurista Sergei Podgaevskii (1914). Sergei Podgaevskii

emborrachados; Podgaevskii tambm usou carimbos (cujas do feitos com batatas nas a

cortadas pginas

impresses, remetem

livro,

embalagens de ovos de Pscoa). No mesmoFig. 1/44: Nu entre os vestidos (1914) Vasilii Kamenskii e Andrei Kravtsov

ano,

Vasilii

Kamenskii

e

Andrei Kravtsov utilizam papel de

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parede para compor as pginas de Nu entre os vestidos (fig. 1/44). O livro tambm apresenta um formato inusitado pentagonal e combina texto (privilegiando a aspecto visual desse) e imagem, promovendo um dilogo entre poesia e artes plsticas.

Tendo exercido grande influncia no desenvolvimento do design grfico moderno (como o pioneiro na utilizao da fotomontagem), El Lissitsky privilegiou a funcionalidade nos livros dele. Em Para a voz, livro contendo poemas de Vladimir Mayakovsky,

publicado em 1923, El Lissitsky adota uma criativa soluo para que os poemas fossem rapidamente localizados: como numa agenda telefnica, a pgina inicial de cada poema acessada por um coneFig. 1/45: Para a voz (1923). Vladimir Mayakovsky, El Lissitsky.

(fig. 1/45). O livro inclui trinta poemas de teor revolucionrio que dialogam com

formas geomtricas e algumas figurativas (que El Lissitsky comps utilizando, predominantemente, fios tipogrficos, peas de metal ou de madeira usadas nas grficas para imprimir linhas de espessuras variadas). El lissitsky referenda a premissa de que um livro , em essncia, um objeto manusevel.

ENTRE O LIVRO E O NO-LIVRO: O LIVRO DE ARTISTA

As obras acima descritas conservam a forma mais tradicional do livro: um conjunto de folhas impressas, agrupadas (costuradas) e protegidas por uma

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encadernao ou capa; ou seja, uma variao do formato cdice. Do latim caudex, tronco de rvore (usado para escrever), ou ainda, tbula de madeira 65, placa contendo um texto, cdice tambm designa, por extenso, um conjunto de tbulas (placas) reunidas, costuradas por cordes ou anis. Mas a arte por vezes quebra convenes bibliogrficas e d lugar a formatos e/ou ao uso de materiais alternativos em livros.

Com La Prose du Transsibrien et de la petite Jehanne de France (fig. 1/46a e 1/46b), Sonia Delaunay-Terk e Blaise Cendrars (Frdric Sauser), muito provavelmente, foram os primeiros a promover a interao texto/imagem aliada ao conceito de livro, deixando de lado o tradicional formatoFig. 1/46a

costurado. Publicado em 1913, em Paris, o livro um folheto desdobrvel 66 (medindo cerca de dois metros de

altura e 35,7 cm de largura) que apresenta um conjunto de manchas coloridas (uma espcie de cascata, pintada por Sonia) justapostas a um texto (de Blaise Cendrars) . O livro baseia-se na idia de simultaneidade: os autores qualificaram a criao conjunta como o primeiro livro simultneo uma sincronia entre as artes da palavra e as da imagem. O67 Fig. 1/46a: La Prose du Transsibrien et de la petite Jehanne de France detalhe (1913). Sonia Delaunay-Terk e Blaise Cendrars

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livro de Sonia e Cendrars promove uma interao similar entre texto e imagem existente em Songs of Experience, de Blake. A grande diferena que as imagens de Songs of Experience so alusivas ao texto (embora ultrapassem, formalmente, o patamar de simples ilustraes); as manchas de La Prose du Transsibrien et de la petite Jehanne de France so abstratas em carter absoluto e abstratas ao texto 68.

La Prose du Transsibrien et de la petite Jehanne de France, bem como Un coup de ds, ou as experincias bibliogrficas Futuristas e Cubo-futuristas, ajudaram a delinear (e podem ser consideradas assim) a categoria artstica que, em meados do sculo XX, recebeu o nome de livro de artista, ou livro-objeto. Sob a denominao livro de artista esto as obras de arte em que se exploram, atravs de intervenes grficas e/ou plsticas, o formato livro, ou aspectos (fsicos e/ou conceituais) vinculados idia de livro tridimensionalidade, manuseabilidade, encadernao etc. leitura, paginao,

A abrangncia do termo livro de artista imprecisa; isso nos d a liberdade de

considerar como tal, no mbito literrio, a edio fac-similada e comentada da obra Fantoches, de rico Verssimo,

originalmente publicada em 1932. A obra em questo de 1972 e contm comentriosFig. 1/47: Pgina de rosto de Fantoches (1972). rico Verssimo

manuscritos e desenhos caricaturais, feitos

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pelo prprio Verssimo, nas pginas da edio original fac-similada. No se trata de um livro ilustrado, mas de uma irnica autocrtica concretizada atravs de interferncias grficas nas pginas da edio original. Na pgina de rosto, por exemplo, Verssimo brinca com a marca da editora Globo, inserindo sob ela a prpria caricatura, como se estivesse erguendo o globo (fig. 1/47).Fig 1/48: Capa de Anekdoten zu einer Topographie des Zufalls (1972). Daniel Spoerri

J sob o ponto de vista das artes plsticas, pode-se citar a obra Topographie anecdote

du hasard, do romeno Daniel Spoerri. Spoerri criou o termo Fallenbild (do alemo, fallen, cair e bild, imagem) para designar as obras dele, que consistiam em fixar sobre

uma superfcie objetos cuja disposio sugere o

resultado de uma situao cotidiana, como o caf da manh, por exemplo.Fig. 1/49: Diagrama de An anecdocted topography of chance (1966). Daniel Spoerri

Topographie anecdote du hasard foi publicado

originalmente em 1962, em forma de catlogo de exposio de Spoerri. Houve edies posteriores, como a inglesa An anecdocted topography of chance, de 1966 69, e a alem Anekdoten zu einer Topographie des Zufalls (fig. 1/48), de

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1972. A obra , basicamente, a transposio da potica fallenbild para o formato livro: apresentado um diagrama (em forma de planta) que mostra a disposio de diversos objetos sobre uma mesa (fig. 1/49). Tais objetos so numerados e, a cada um deles, corresponde um artigo no livro: uma descrio com rigor cientfico, alm de associaes, memrias relativas aos mesmos 70. Spoerri agrega idia de fallenbild o conceito de manuseabilidade do cdice, criando uma dinmica de manipulao em que a cada pgina seja necessria uma volta ao diagrama 71.

Materiais alternativos ao papel so os pilares para a irnica e bem humoradaFig. 1/50: da srie Livrobjetojogo (dcada de 1990). Paulo Bruscky

srie criada por Paulo Bruscky na dcada de 1990, Livrobjetojogo,

tambm baseada no formato cdice. O processo de costura (relativo

encadernao) ganha nfase no segundo trabalho da srie, um livro com pginas de pano (fig. 1/50): a costura no se limita lombada, mas se espalha pela pgina, onde botes e casas (aberturas para botes) se comportam como letras. Outro artista que explorou a idia de cdice e re-substanciou a pgina foi Artur Barrio, com Livro de carne, cuja verso original (1977) foi confeccionada com finas lminas de carneFig. 1/51: Transparncia (1969). Neide S

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costuradas com barbante. A natureza da pgina tecido muscular pode sugerir o Livro como um corpo vivente.

O livro de artista pode atingir o limite entre o livro e a escultura (ou objeto): o que, paradoxalmente, poderamos chamar de no-livro (por no possurem do a

funcionalidadeFig. 1/52: Romance (1996). Fernando Aguiar

caracterstica por no

livro

moderno,

ou

possurem

funcionalidade). Nesse extremo, pode-se incluir Transparncia (fig. 1/51), de

Neide S, de 1969, composto por dois cubos de acrlico transparente (um dentro do outro, e contidos num terceiro) com letras fixadas de s superfcies; Aguiar ou (fig.

Romance,

Fernando

1/52), formado por uma pilha de velhas cartelas de Letraset (letras transferveis) unidas por um fio vermelho, que sugere um manuscrito de um romance. Ainda mais prximas do escultural, so as obras do norte-americano Brian Dettmer, que consiste na transformao fsica de livros antigos. Dettmer reorganiza, em um s corpo, textos e imagens retiradas de fontes diversas (enciclopdias, guias mdicos, livros de engenharia) e constri objetos/livros que parecem ter sido escavados ou autopsiados (fig 1/53).Fig. 1/53: Livro autopsiado. Brian Dettmer

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Esses no-livros carregam a idia do Livro como um lugar: na obra de Neide e na de Aguiar, um lugar por onde transita a matria-prima da literatura signos verbais; na de Dettmer, um lugar por onde transita a matria-prima do design grfico signos verbais e signos visuais.

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CAPTULO 2 A literatura e o design grfico

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O TERMO DESIGN

Para a publicao de um fragmento do poema Blanco, na Mundo Nuevo, em 1967, Octvio Paz pede ao editor da revista que siga cuidadosamente a seguinte disposio tipogrfica:

(...) solicito-lhe que a primeira parte seja colocada precisamente no centro e que os caracteres sejam grandes e o espao entre linha e linha ligeiramente maior, proporcionalmente, ao que normalmente corresponde ao tamanho dos caracteres. O tipo: versalete. A segunda parte, composta de duas colunas, dever ir num tipo menor do que o usado na primeira parte, devendo a composio ser mais cerrada como um bloco de escritura. A coluna da esquerda (...) deve ir em caracteres redondos; a da direita (...) deve ir em negritos. A linha final, de novo no centro, deve ir em itlicos. 72

Ao final da carta, Paz apresenta ao editor um esboo da primeira e da segunda pginas (fig. 2/1).

O experimentalismo moderno j no mais admitia qualquer verso tipogrfica de um poema. A partir do momento em que poetas se propuseram a explorar diretamente os signos verbais, convertendo-os em imagem, e chegando at, em alguns casos, a suprimi-los, passaram a incorporar procedimentos at ento alheios atividade literria. No exemplo anterior, observa-se um antigo e clssico procedimento que faz parte da atividade profissional atualmente conhecida como designer grfico: o criador esboa a idia e passa-a ao arte-

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A literatura como design grfico

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finalista para que esse produza a arte-final, montagem que ser usada para a confeco do fotolito.

O

procedimento

de

Paz

carrega a acepo correta da palavra design. A palavra

inglesa design vem do latim designo, e significa designar, indicar, Portanto,Fig 2/1: Esboo para a publicao de um Fragmento do poema Blanco, na revista Mundo Nuevo (1967). Octvio Paz

dispor, design

ordenar 73. significa

projeto, diferentemente que significa

configurao; de drawing, a de

desenho, por meio

representao

linhas e sombras 74. Em espanhol, essa mesma diferenciao vale para diseo e dibujo, respectivamente.

No por eventualidade que poetas como Paz tenham adotado uma prtica inerente ao design grfico. Tal adoo conseqncia, fundamentalmente, do fato de esses poetas definirem um fazer potico como planejamento, como design. Alm disso, o prprio desejo de modernidade implicava na

incorporao da tecnologia oriunda da tipografia para a efetivao dos poemas.

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O SIGNO VERBAL E O DESIGN GRFICO

A funo do design grfico a efetiva comunicao fundamentada na utilizao, na maioria dos casos conjuntamente, de texto (signos verbais) e imagem (signos visuais). Esse processo de comunicao visual, ou seja, para efetivlo, os signos verbais no so

trabalhados

mesmo

patamar dos signos visuais:Fig. 2/2: Em The end of print. design de David Carson

ambos so encarados como imagens. A dimenso visual

que o texto adquire no universo do design grfico envolve desde o comportamento

coletivo das palavras o que determina a mancha de texto (fig. 2/2) at a

singularidade das letras (fig 2/3).

Equivaleria dizer, se pensarmos em termos lingsticos, que o signo verbal para o designer grfico no um mero registro de sons articulados, como o para a lingstica. Sob esse ponto de vista, possvel destacar um aspecto irnico da imagem criada pelo designer grfico Peter Saville para a capa do disco Unknown pleasures (1980), do grupo Joy Division (fig. 2/4).Fig. 2/3: Capa da revista Vogue. (1941)

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Muito provavelmente, o objetivo de Saville no foi o de produzir uma ironia visual. Entretanto, no contexto desta tese, possvel e desejvel ressaltar esse aspecto.

Para compor a enigmtica imagem, Saville usou curvas, grficos que so informaes digitais provenientes da tela de um computador. Tais curvas correspondem segundo de a um uma som frao de

produzido.

Cento e vinte e uma dessas curvas foram justapostas que para pura formar a

imagem,Fig. 2/4: Capa de Unknow n pleasures , do grupo Joy Division detalhe (1980). Design de Peter Saville

informao

visual oriunda da alta tecnologia. Essa escritura hi-tech na capa de Unknown pleasures poderia

simbolizar a dimenso visual da escrita para o design grfico: ironicamente, os signos visuais que compem essa imagem nada mais so do que registros de sons (embora no articulados).

No fosse o fato de sabermos que a imagem criada por Saville fruto de um projeto grfico, talvez pudssemos at tom-la, por exemplo, como um poema hi-tech de inspirao dadasta, cuja potica (cap. 1

) sobrepunha o som das

palavras ao lxico: os dadastas declamavam poemas, mas no se distinguiam

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65

palavras. Assim, a imagem de Saville poderia ser um hipottico registro visual de vocalizaes de um poeta.

O

desejo

de

afastamento

do

mbito

lingstico

foi

um

dos

fatores

determinantes para que os experimentos poticos modernistas se aproximassem conceitualmente do design grfico. Ou seja, a dimenso da escrita, do texto para o design grfico similar adquirida pelo signo potico nos experimentos modernistas a dimenso material. Para usar uma expresso de Walter Benjamin, por avanarem na excntrica figurabilidade 75 da escrita, que poetas experimentais modernos se tornam designers.

Evidentemente, um designer grfico no ignora o aspecto semntico das palavras para realizar o trabalho dele (vrios poetas modernistas tambm no o ignoravam), mas o signo verbal, em ambos os casos, est vinculado visualidade, sobressai-se pelo aspecto visual que possui ou adquire.

O DESIGN GRFICO E OS EXPERIMENTALISMOS MODERNOS

No por acaso, a denominao designer grfico surge quase que paralelamente aos experimentalismos de vanguarda. Como vimos, os poetas vanguardistas j participavam efetivamente das decises relativas ao aspecto tipogrfico dos poemas. Ao mesmo tempo, as decises tipogrficas relativas comunicao visual num todo tambm vinham sendo retiradas do impressor, passando a ser tomadas pelos designers. At ento, os chamados artistas comerciais (como

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tipgrafos, ilustradores e letristas) eram responsveis por todo o processo, na maioria dos casos.

Cabe aqui um esclarecimento: o que surgiu nessa poca no foi o design (no sentido amplo) propriamente dito, mas antes a conscincia do design como conceito, profisso e ideologia 76, conforme assinala Rafael Cardoso. No entanto, afirmar que trabalhos feitos pelos artistas comerciais so design grfico dbio. Por um lado, h certa dose de anacronismo em descrever como designer algum que provavelmente no reconheceria o sentido da palavra (...) 77, pondera Cardoso. Por outro lado, pode-se considerar diversos servios similares anteriores ao uso do termo ingls como design grfico, devido ao grau de refinamento projetual desses impressos. Assim, o que chamaremos aqui de design grfico independer da cronologia histrica, estar sim atrelado ao conceito de projeto.

Essa conscincia do design como conceito, de que nos fala Cardoso, deve muito concepo visual de Un coup de ds (cap. 1

). O liame entre poesia

moderna e design grfico j havia sido detectado por Benjamin nessa obra de Mallarm: Mallarm reelaborou pela primeira vez as tenses grficas do reclame na figurao da escrita. 78. O poema de Mallarm considerado uma obra fundamental para que, alguns anos aps sua publicao, os designers grficos aprendessem a usar o espao em branco da pgina para enfatizar o sentido da comunicao. Se, para Mallarm, o espao em branco era o silncio, para os designers, , na prtica, a rea que no recebe impresso, mas

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A literatura como design grfico

67

que cumpre diferentes e importantes papis na comunicao grfica, como o de delimitar um espao para simular uma figura (fig. 2/5).

A relevncia de Un coup de ds para o design grfico moderno deve-se tambm ao fato de Mallarm considerar o espao criado por duas pginas abertas de um livro como um espao nico, e usar essecap. 1

espao

assimetricamente (inovao tambm creditada aos futuristas

).

Aps Un coup de ds, j no incio do sculo XX, o design sendo vanguarda grfico prossegue pela (ou

moldado literria

pelas artes de vanguarda, em geral). As experincias de poetas dadastas para comporFig. 2/5: Anncio da Nike em pgina dupla do Jornal Estado de Minas.

poemas

sem

sentido e sem coerncia lgica refletiram-se nos

impressos da poca. Foi Hans Arp, artista plstico e poeta dadasta, quem introduziu o procedimento do acaso na poesia. Mas Tristan Tzara foi mais longe, propondo uma receita para poemas, que consistia em recortar palavras ao acaso nos jornais, coloc-las num saco e retir-las tambm ao acaso. A receita de Tzara ecoa, por exemplo, no anncio criado por John Heartfield, em 1917, promovendo litografias de outro dadasta, George Grosz (fig. 2/6). Em

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termos prticos, foi a habilidade dos dadastas em autopromoo que provocou reflexos diretos no design grfico.

Mas os futuristas italianos que so tidos como os precursores do design grfico tambm moderno. atuavam Alguns deles na

efetivamente

rea. A mais importante contribuio do movimento italiano para a reaFig. 2/6: Anncio de litografias de George Grosz (1917). Design de John Heartfield

foi a liberdade dada s palavras. As

paroles

in

libert aos

futuristas designers de

emprestaram grficos a

possibilidade

produzir inflexes com o texto impresso: na capa do livro Zang Tumb Tumb (1914), de Marinetti, os diferentes pesos visuais e a disposio em ngulos oblquos (fig. 2/7) j so um prenncio das possibilidades de uso do artifcio da inflexo tipogrfica. Nessa poca, em vrias cidades italianasFig. 2/7: Capa e contracapa de Zang Tumb Tumb (1914). Filippo Tommaso Marinetti

surgiram revistas e panfletos animados por palavras libertadas. Alguns artistas e escritores enchiam as pginas com extrema e desenfreada liberdade; outros se restringiam a umas poucas palavras. (...) As palavras substituam as imagens do mesmo modo

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A literatura como design grfico

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que, nos filmes mudos, interrompiam a cena na tela para darem, elas mesmas, prosseguimento narrativa Chega nosso heri ou ento substiturem o som na hora em que a herona gritava Socorro! 79

No anncio do xarope Grindlia (1931), pode-se observar o efeito obtido quando o designer tira partido da expressividade tipogrfica (fig.

Fig. 2/8: Anncio do xarope Grindlia (1931).

2/8), em vez da expressividade focada somente na ilustrao (fig. 2/9). Em ambos os casos, h um texto que apresenta a fala no dos respectivos do xaropeFig. 2/9: Anncio do xarope So Joo (1900).

personagens;

anncio

So Joo, esse texto desempenha um papel meramente complementar. J no

anncio do xarope Grindlia, o texto correspondente adquire um carter suplementar. Outro exemplo do uso da inflexo tipogrfica um cartaz (fig. 2/10) projetado por Alexander Rodchencko, em 1925 (encomendado por uma editora estatal), que reflete o clima revolucionrio na Rssia da poca.

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A literatura como design grfico

70

E

a

Rssia

dos

poetas

dos

anos um

revolucionrios

desempenhou

papel igualmente importante para a consolidao do design grfico

moderno. A explorao da tipografiaFig. 2/10: Cartaz russo (1925). Design de Alexander Rodchencko

adotada

pelos

componentescap. 1

do

grupo 41 ( incorporao de

) inclua a (e outros

fios

elementos tipogrficos) no interior do prprio texto. Tal como fez El Lissitsky em Para a voz (1, fig. 1/45 cap. Fig. 2/11: Lidantiu uma estrela guia (1923). Il'ia Zdanevich

), os fios tipogrficos eram usados para compor imagens. Numa das pginas do livro Lidantiu uma estrela guia (1923), de Il'ia Zdanevich, uma homenagem ao artista Mikhail Lidantiu, quatorze fios foram

usados para formar uma imagem semelhante letra H (fig. 2/11). Note-se que at a numerao de pgina incorporada visualidade da mesma.

Os fios foram amplamente explorados tanto naFig. 2/12: Cartaz russo

literatura (Para a voz e outros) quanto no design grfico (fig. 2/12) russos; e tambm influenciaram

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A literatura como design grfico

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designers brasileiros (fig. 2/13), como Alexandre Wolner. Os fios tipogrficos tornaram-se a marca registrada dos projetos grficos da Bauhaus (cap. 1

). Por volta de 1924, a escola adotou como

marca um perfil geomtrico de uma cabea que poderia ser composta inteiramente por fios (fig. 2/14).Fig. 2/13: Cartaz de Alexandre Wolner

Em 1923, na Alemanha 80, El Lissitsky publicou o manifesto intitulado Topografia da tipografia. Nesse manifesto, ele afirmava que a

percepo visual mais econmica do que a fontica: idias so comunicadas atravs de palavrasFig. 2/14: Marca da Bauhaus (c. 1924).

convencionais, mas a idia deve se configurar atravs

das letras. Para se afirmar fora do campo da lingstica, a poesia teve que adotar uma postura semelhante frente ao signo verbal (ou frente escrita). Assim, movidas pelo desejo de

afastamento do mbito lingstico, as poticas experimentais modernas ajudaram re elaborar oFig. 2/15: Anncio das Galerias Lafayette (1960). Design de Jean Widmer

uso do espao grfico e o da tipografia no design moderno.

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A literatura como design grfico

72

Talvez um dos exemplos mais eloqente e significativo dessa proximidade entre a poesia visual e o design grfico na modernidade seja o anncio criado por Jean Widmer, em 1960, para as Galerias Lafayette, na Frana. Nesse anncio (fig. 2/15), Widmer no se baseia em conceitos oriundos da potica experimental, mas incorpora o prprio experimento vanguardista, o caligrama A chuva, de Apollinaire, para compor o design.

A ESCRITA E O CONCEITO DE MARCA

Uma das funes bsicas do design grfico identificar visualmente (uma empresa, uma instituio, um produto etc). Dar identidade visual a uma organizao, por exemplo, atribuir a ela um elemento grfico uma marca ( essaintroduo

) que de alguma forma se vincule a A marca, assim, reflete as

organizao.

caractersticas, os objetivos dessa organizao.

Em geral, a marca um produto de traos econmicos,Fig. 2/16: Marcas comerc iais

facilitando a reprodutibilidade e a rpida assimilao. A silhueta, produto essencialmente grfico, uma forma recorrente nesse caso: soluo e ponto de partida para

inmeras estilizaes do real no universo do design grfico (como, por exemplo, o smbolo da Bauhaus, fig 2/14). O poder de evocao de uma imagem substrato para o objetivo de uma marca. Tomemos como exemplo a associao figurativa: o grau de reconhecibilidade das silhuetas de cada uma

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A literatura como design grfico

73

das marcas na fig. 2/16 diferente, porm, eficaz, desde a mais naturalista at a mais abstrata.

A idia de marca vincula-se originalmente aos rebanhos. A marca uma espcie de assinatura (do latim assignare, de signum, sinal: apor o signo). Os selos de propriedade (existentes desde a pr-histria), podem ser considerados a origem dos signos de marca. Esses selos, como o prprio nome indica, objetivavam o desejo de visualizar aFig. 2/17: Cabea de boi (1969-82). Joan Brossa

posse ou o domnio de determinado objeto. Mas, os objetos permaneciam o mesmo no ao alcance com do os

proprietrio;

ocorria

animais, particularmente os rebanhos, que no tinham localizao geogrfica fixa dentro dos limites das propriedades. A marcao das reses se fez necessria; e a nica maneira de fazer uma marca perene foi marc-las com ferros quentes. Por ocasio da venda, essa marca servia como sinal de maior ou menor qualidade do animal. Da o conceito de marca como o conhecemos hoje, semelhante ao do termo ingls trade mark, marca comercial.

Se quisssemos determinar um ponto de convergncia entre a literatura e o conceito de marca, encontraramos na poesia visual um vasto campo de investigao. Mas uma obra surge como emblema: o poema Cabea de boi (fig. 2/17), de Juan Brossa. Cabea de boi rene atributos que o tornam uma

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verdadeira marca: poderia converter-