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 1 Thorstein Veblen   O Teórico da Economia Moderna    Murillo Cruz 

Thorstein Veblen – O Teórico Da Economia Moderna

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Nos últimos 14 anos, aproximadamente, estive envolvido quase que integralmente com o ensino, apesquisa, e a redação deste livro; que versa sobre a obra completa (especialmente o núcleo dosprincipais livros e artigos) do maior teórico social das Américas e um dos maiores economistas esociólogos de todos os tempos: Thorstein Veblen (1857-1929).Este é o primeiro livro em língua portuguesa sobre a obra (completa) de Veblen. Trabalhos feitos oupublicados sobre Thorstein Veblen por autores brasileiros (ou mesmo por portugueses) sãorelativamente poucos. Existem disponíveis, em nossa língua, somente artigos, ensaios, compilaçõesde ensaios, monografias ou teses sobre temas específicos e um pequeno Guia. No Brasil, dos 11livros de Veblen, somente 2 tiveram traduções para o português: The Theory of the Leisure Class (ATeoria da Classe Ociosa); e The Theory of Business Enterprise (A Teoria da Empresa de Negócios,traduzido como A Teoria da Empresa Industrial). Acredito que esta lacuna (em nossa língua)decorra da abrangência temática que Veblen cobriu. E foi pensando exatamente em cobrir estalacuna em nossa língua, que iniciei, há 14 anos, este meu projeto, e que ora apresento ao público.Todos os economistas, antropólogos, sociólogos e intelectuais relevantes como um todo, conhecemVeblen; mas não possuem, acredito eu, informações precisas sobre a obra completa e sobre o―modelo de pensamento‖ que Veblen aplicou e utilizou ubiquamente em Sociologia, em Economia,em Estética e em Psicologia. Veblen é tão importante que há, internacionalmente, inclusive, umapremiação em seu nome (The Veblen-Commons Award, da AFEE – The Association forEvolutionary Economics), e o seu primeiro e mais famoso livro (The Theory of the Leisure Class,1899) é considerado, por Robert Down´s ―111 Books that Shaped Western Civilization‖, um dos111 livros mais importantes do Ocidente, desde o Renascimento.O legado de Veblen é impressionante. Veblen é considerado o maior teórico social das Américas, eum dos maiores economistas de todos os tempos. É praticamente o grande fundador, junto comJohn Commons, e com menor participação de Wesley Mitchell e Clarence Ayres, da única Escolade Economia autêntica das Américas (A ―Escola Institucionalista Original de Economia‖); possuienorme relevância para a Ecologia moderna, para a Sociobiologia, para a Estética contemporânea, eé um dos fundadores da Psicologia Econômica. Foi o primeiro economista a explicar teoricamenteo funcionamento das modernas Corporações e como a capitalização das mesmas ésignificativamente distinta da capitalização das típicas empresas dos séculos XVIII e XIX. Pode serigualmente considerado um pioneiro da semiótica (dos objetos), pois suas obras são repletas deexemplos analíticos de objetos (muitas vezes triviais) para a compreensão de um comportamentosocial mais complexo. Suas teorias e conceitos influenciaram fortemente o New Deal nos EUA,assim como o Movimento Tecnocrático do início dos anos 1930, e com muita probabilidade oMITI/METI japonês.Certa vez, Veblen foi descrito pela Revista Fortune norte americana … ―como o mais brilhante einfluente crítico do sistema de negócios norte Americano‖. (Susan Mizrushi, 2008)O reconhecimento público de sua obra ocorreu em 1925, quando então foi convidado, com aassinatura de mais de 200 membros da academia, para presidir a conhecida American Economic4Thorstein Veblen – O Teórico da Economia Moderna – Murillo CruzAssociation, e que Veblen declinou por motivos de saúde (entre outros). Veblen pode serconsiderado, em resumo, o grande teórico da Economia Moderna.

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    THORSTEIN VEBLEN O Terico da Economia Moderna

    Teoria Econmica, Psique e Esttica da Ordem Patriarcal

    PRIMEIRA EDIO

    MURILLO CRUZ

    Copyright 2013,2014, Murillo Cruz

    CRA 637.547 Livro 1225 Folha 242

    2014

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    APRESENTAO

    Nos ltimos 14 anos, aproximadamente, estive envolvido quase que integralmente com o ensino, a

    pesquisa, e a redao deste livro; que versa sobre a obra completa (especialmente o ncleo dos

    principais livros e artigos) do maior terico social das Amricas e um dos maiores economistas e

    socilogos de todos os tempos: Thorstein Veblen (1857-1929).

    Este o primeiro livro em lngua portuguesa sobre a obra (completa) de Veblen. Trabalhos feitos ou

    publicados sobre Thorstein Veblen por autores brasileiros (ou mesmo por portugueses) so

    relativamente poucos. Existem disponveis, em nossa lngua, somente artigos, ensaios, compilaes

    de ensaios, monografias ou teses sobre temas especficos e um pequeno Guia. No Brasil, dos 11

    livros de Veblen, somente 2 tiveram tradues para o portugus: The Theory of the Leisure Class (A

    Teoria da Classe Ociosa); e The Theory of Business Enterprise (A Teoria da Empresa de Negcios,

    traduzido como A Teoria da Empresa Industrial). Acredito que esta lacuna (em nossa lngua)

    decorra da abrangncia temtica que Veblen cobriu. E foi pensando exatamente em cobrir esta

    lacuna em nossa lngua, que iniciei, h 14 anos, este meu projeto, e que ora apresento ao pblico.

    Todos os economistas, antroplogos, socilogos e intelectuais relevantes como um todo, conhecem

    Veblen; mas no possuem, acredito eu, informaes precisas sobre a obra completa e sobre o

    modelo de pensamento que Veblen aplicou e utilizou ubiquamente em Sociologia, em Economia,

    em Esttica e em Psicologia. Veblen to importante que h, internacionalmente, inclusive, uma

    premiao em seu nome (The Veblen-Commons Award, da AFEE The Association for

    Evolutionary Economics), e o seu primeiro e mais famoso livro (The Theory of the Leisure Class,

    1899) considerado, por Robert Downs 111 Books that Shaped Western Civilization, um dos

    111 livros mais importantes do Ocidente, desde o Renascimento.

    O legado de Veblen impressionante. Veblen considerado o maior terico social das Amricas, e

    um dos maiores economistas de todos os tempos. praticamente o grande fundador, junto com

    John Commons, e com menor participao de Wesley Mitchell e Clarence Ayres, da nica Escola

    de Economia autntica das Amricas (A Escola Institucionalista Original de Economia); possui

    enorme relevncia para a Ecologia moderna, para a Sociobiologia, para a Esttica contempornea, e

    um dos fundadores da Psicologia Econmica. Foi o primeiro economista a explicar teoricamente

    o funcionamento das modernas Corporaes e como a capitalizao das mesmas

    significativamente distinta da capitalizao das tpicas empresas dos sculos XVIII e XIX. Pode ser

    igualmente considerado um pioneiro da semitica (dos objetos), pois suas obras so repletas de

    exemplos analticos de objetos (muitas vezes triviais) para a compreenso de um comportamento

    social mais complexo. Suas teorias e conceitos influenciaram fortemente o New Deal nos EUA,

    assim como o Movimento Tecnocrtico do incio dos anos 1930, e com muita probabilidade o

    MITI/METI japons.

    Certa vez, Veblen foi descrito pela Revista Fortune norte americana como o mais brilhante e

    influente crtico do sistema de negcios norte Americano. (Susan Mizrushi, 2008)

    O reconhecimento pblico de sua obra ocorreu em 1925, quando ento foi convidado, com a

    assinatura de mais de 200 membros da academia, para presidir a conhecida American Economic

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    Association, e que Veblen declinou por motivos de sade (entre outros). Veblen pode ser

    considerado, em resumo, o grande terico da Economia Moderna.

    Em 1948, Max Lerner escreveu:

    O que tanto contribuiu para a formao de uma espcie de lenda em torno de Veblen? Havia a

    sua imensa erudio, o seu domnio de inmeras lnguas [registros biogrficos e pessoais

    informam que Veblen dominava c. 26 lnguas], os seus profundos conhecimentos das sagas

    islandesas e nrdicas em geral, seus amplos conhecimentos de literatura, arqueologia, e histria

    racial bem como de artefatos diversos ou mensuraes de crneos; havia a sua incrvel preciso

    e habilidade em discorrer, por um lado, sobre pequenssimos detalhes de vrias culturas, e por

    outro lado, sobre grandes abstraes; a facilidade com que se movia na Histria, desde os tempos

    Neolticos at os ltimos relatrios industriais de Comits do Congresso Americano. Veblen era,

    como j se disse. o ltimo homem a saber de tudo

    Uma das melhores apresentaes acerca do alcance e da importncia intelectual de Thorstein

    Veblen no campo da Economia e da Sociologia encontra-se registrada no livro A History of

    Economic Thought, 1953/1967, de John Fred Bell, e que transcrevo abaixo:

    ... Durante o perodo (1875 1925) houve muitos que puseram prova as doutrinas (econmicas)

    aceitas no todo ou em parte, porm de longe o mais crtico e desafiante nessa nao (EUA), ou

    em qualquer outra, foi Thorstein Veblen um extraordinrio filsofo, iconoclasta, economista,

    psiclogo, socilogo, antroplogo social, vidente e at mesmo profeta. ... As tendncias de um

    Estado dinmico em crescimento foram provavelmente vistas com mais clareza por Veblen do

    que por qualquer outro pensador do perodo. Certamente nenhum outro identificou as boas e as

    ms caractersticas como Veblen o fez, e nenhuma outra pessoa ousou criticar praticamente todos

    os aspectos da vida com a invectiva desse homem. Em todos os seus escritos h tambm um tom

    proftico cuja preciso se afirma com o correr dos anos. Teve algo de mstico durante a vida

    inteira; nos anos subseqentes sua morte (1929) o conceito mstico tendeu a ceder lugar

    revelando um homem que poder com o tempo ser considerado o maior profeta da transformao

    econmica deste pas (EUA).

    ... sua mentalidade, enormemente superior do estudioso mdio, foi nutrida em Spencer, Hume e

    Kant, cuja influncia lhe deu viso inquisitiva, especulativa e crtica aplicvel praticamente a

    tudo ... (leu) praticamente todas as disciplinas ... Biologia, Antropologia, Folclore, Filologia, ...

    era hbil tradutor (do noruegus, islands, alemo, francs ...) nenhum outro homem viu (as

    transformaes scio-econmicas) to claramente e nenhum outro descreveu certos elementos de

    maneira to fulminante quanto o fez esse homem quieto, reservado e taciturno ...

    No se pode duvidar de que tenha alcanado (Veblen) um direito a um nicho por moldar a

    tendncia do pensamento econmico. Nenhum outro crtico, nem mesmo Marx, forou um tal

    reexame dos postulados da Economia Poltica. Ao atacar as hipteses bsicas foi mais desafiante

    do que se houvesse atacado as teorias em sua forma final.

    Murillo Florindo Cruz Filho

    professor da UFRJ (do Instituto de Economia e do Instituto de Psicologia)

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    CONTEDO

    Captulo 1 - Thorstein Veblen Introduo

    Influncias Histricas, Intelectuais e tnicas na Formao de Veblen

    Influncias Histricas

    Influncias Intelectuais

    Looking Backward de Edward Bellamy e sua Influncia em Veblen

    Fundamentos tnicos na Formao e na Teoria de Veblen

    A Obra de Veblen Retrica ou Cubismo - Caractersticas Gerais

    O Ncleo e a Estrutura da Obra de Veblen

    Sumrio Biogrfico de Thorstein Veblen - De Tosten a Thorstein

    Captulo 2 - O Pano-de-Fundo das Teorias Econmicas e Sociais

    de Veblen. Os Estgios Histrico-Culturais e a Grande Inflexo

    Histrica. O Status Brbaro das Mulheres nas Culturas Predatrias

    Os Estgios Histricos e Culturais de Veblen

    Caractersticas Gerais

    A Selvageria Pacfica (the free workmanship)

    O Estgio Predatrio Brbaro

    A Propriedade Individual. Das Mulheres s Riquezas em Geral

    O Conceito de Consumo Conspcuo de Veblen como um Refinamento da

    Escravizao das Mulheres da Etapa Brbara

    A Era do Artesanato (the Handicraft Era)

    O Moderno Sistema Industrial

    A Compreenso da Antropologia e da Arqueologia Modernas sobre as Etapas Culturais

    da Selvageria Pacfica e Brbara Predatria de Veblen. A Grande Inflexo. Marija

    Gimbutas e a Hiptese Kurgan

    Marija Gimbutas e a Hiptese Kurgan

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    Captulo 3 - Compreendendo a Esttica e a Materialidade do

    esquema geral de Veblen e Outros Conceitos Bsicos

    A Norma do Desperdcio Conspcuo e a Reputao Pecuniria

    Fins Ostensivos (mecnicos); e Fins Aproximados (pecunirios ou comerciais)

    O Significado de Funo para a Biologia

    Postulados Bsicos que Prevalecem na Anlise Funcional em Teoria Social, mas que so

    Relativamente Distintos para a Anlise Funcional de Veblen

    Funes Manifestas e Funes (Motivaes) Latentes

    Culturas Pecunirias

    Culturas Pecunirias e as Classes Dominantes

    A Conteno Consciente da Eficincia da Economia por Parte dos Homens de Negcios

    (the conscientious withholding of efficiency)

    Captulo 4 - A Dinmica e o esquema Completo de Veblen. O

    Ponto de Vista Evolucionrio

    Introduo. The Instinct of Workmanship. A Emulao Industrial ou Funcional e a

    Emulao Predatria ou Pecuniria

    O Ataque de Veblen ao Pressuposto Hedonista e a Passividade do Homo Oeconomicus

    da Teoria Econmica Convencional em seu Artigo de 1898 (e Outros)

    O Conceito de Natureza Humana para Veblen

    Os Movimentos Primordiais e Outros

    Tropismos e Instintos

    O Instinct of Workmanship Um caso Especial

    Hbitos de Pensamento ou Instituies

    A Condio de Sociabilidade Humana e Caractersticas para Veblen

    O Instinto de Trabalho Eficaz (the instinct of workmanship) - Frmula Esquemtica

    A Emulao (indiferenciada e geral)

    A Emulao Industrial ou Funcional

    A Emulao Predatria e Pecuniria Frmula Esquemtica (e de Veblen)

    A Diferena dos Bens e Produtos entre Valores e Utilidades

    Bens, Produtos e Riquezas Ks como Valor Social (value)

    Bens, Produtos e Riquezas Ks como Utilidade Individual e Privada (utility)

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    A Dinmica Paradoxal do Desperdcio

    Compreendendo a Manifestao do instinct of workmanship como um instinct of

    sportsmanship Atravs de um Exemplo. Ou Como Veblen Analisaria um Jogo de Tnis

    O Adensamento das Motivaes Econmicas Bsicas em Sociedades Predatrias e

    Pecunirias em Direo Materialidade dos Objetos, Construes e Estruturas Tangveis

    Captulo 5 - O esquema de Veblen nos Produtos, Bens,

    Construes e Estruturas Tangveis

    Exemplo n.1: B# = um Automvel

    Exemplo n.2: B# = Um Edifcio Arquitetonicamente pr-Funcionalista

    Exemplo n.3: B# = Um Vestido de Baile

    Consideraes Adicionais sobre o Vesturio como Expresso das Culturas Pecunirias e

    a Moderna Teoria das Marcas Comerciais, Branding, etc.

    A Pioneira Contribuio de Veblen para uma Moderna Teoria das Marcas, Brand Names e

    Styling

    Captulo 6 - O esquema Terico de Veblen no Moderno Sistema

    Industrial. O Capitalismo Corporativo Financeiro

    Empregos Industriais e Pecunirios, e a Evoluo dos Captains of Industry

    As Origens

    A Consolidao

    O Sistema Mecnico Moderno e as Empresas de Negcios

    O Processo de Mecanizao

    O Imperativo da Coordenao Intersticial Objetiva

    A Empresa de Negcios (moderna)

    O Good-will e o Aguamento (Watering) Financeiro

    Captulo 7 - O esquema de Veblen na Estrutura do Capital das

    Modernas Corporaes

    O Conceito de Capital para as Modernas Corporaes - Capital Nominal e Capital Efetivo

    (business capital)

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    Aes Ordinrias e Aes Preferenciais

    O Capital Comercial (cap^) das Corporaes e a Taxa de Juros (i)

    A Capacidade de Rendimento e o Good-will

    Captulo 8 - Os Engenheiros e Veblen A Era Progressista

    A Era Progressista (The Progressive Era) (c.1890 1920)

    O progressivism e os Engenheiros

    Veblen e os Engenheiros

    Captulo 9 - Concluses Finais

    A Importncia do Good-will para o Esquema Terico de Veblen Indivduos e Empresas

    Consumo Emulao Reputao e Escassez

    A Dinmica Vebleniana no Contexto das Culturas Predatrias Pecunirias

    O Futuro Prximo para Veblen

    O Problema Social para Veblen

    Bibliografia

    Informaes sobre o Autor

    Thorstein Veblen Obra Completa

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    Captulo 1

    Thorstein Veblen - Introduo

    Thorstein Veblen foi reconhecidamente o mais original e profundo economista e crtico social

    dos Estados Unidos. (Rick Tilman, 1992)

    Em certa ocasio, um aluno de Veblen perguntou-lhe: "como ele poderia se lembrar de tantas

    coisas, e com tamanha preciso, e Veblen respondeu que ele possua em sua mente uma viso geral

    do ser humano, na qual cada fato, alm de se encaixar perfeitamente, passa tambm a fazer parte

    deste esquema geral. (Dorfman, 1934, 248)

    O que o pargrafo acima informa e sugere, e que ser objeto deste livro, que Veblen possua, em

    sua privilegiada mente, uma espcie de ponto arquimediano (terico), e que, confessadamente, fez

    uso deste esquema geral em toda a sua imensa e significativa obra. De acordo com registros

    biogrficos, possvel que este esquema tenha sido transmitido ou semeado na mente de Veblen, a

    partir das constantes conversas que empreendeu, quando jovem, com seu pai (Thomas Anderson

    Veblen).

    Thorstein comentou com Henry Waldgrave Stuart, um de seus alunos na Universidade de

    Chicago, que as ideias bsicas de A Teoria da Classe Ociosa vieram dos tempos de sua infncia,

    de suas frequentes conversas com seu pai, que era um profundo pensador. (Jorgensen, 1999, 10)

    Este ponto arquimediano de Veblen, uma espcie de cdigo gentico de sua obra, ou seja, um

    princpio presente em todas as clulas de sua obra, permitia-lhe cobrir, com extrema coerncia, um

    arco impressionante de situaes, objetos, processos e comportamentos.

    Neste sentido, Max Lerner, entre outros, em 1948, ao comentar sobre a vida e a obra de Veblen,

    percebeu a facilidade com que Veblen cobria um conjunto imenso de fenmenos, desde os mais

    simples aos mais complexos; e percebeu, igualmente, a estabilidade terica de Veblen. Alis, esta

    estabilidade terica uma das caractersticas distintivas da obra de Veblen; ou seja, desde os

    primeiros escritos em economia e sociologia (1891), at os ltimos artigos (1925-27), a obra de

    Veblen de uma coerncia e regularidade no muito comum no campo da teoria social

    O que tanto contribuiu para a formao de uma espcie de lenda em torno de Veblen? Havia a

    sua imensa erudio, o seu domnio de inmeras lnguas [registros biogrficos e pessoais

    informam que Veblen dominava c. 26 lnguas], os seus profundos conhecimentos das sagas

    islandesas e nrdicas em geral, seus amplos conhecimentos de literatura, arqueologia, e histria

    racial bem como de artefatos diversos ou mensuraes de crneos; havia a sua incrvel preciso

    e habilidade em discorrer, por um lado, sobre pequenssimos detalhes de vrias culturas, e por

    outro lado, sobre grandes abstraes; a facilidade com que se movia na Histria, desde os tempos

    Neolticos at os ltimos relatrios industriais de Comits do Congresso Americano. Veblen era,

    como j se disse. o ltimo homem a saber de tudo

    certo, porm, que Veblen deparou-se com uma falange de opositores ... Veblen tornou-se um

    pensador solitrio, escrevendo em um meio profundamente hostil. To agudamente sentiu Veblen

    a necessidade de construir um arete para derrubar os muros de sua oposio, que ele tornou-se,

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    cada vez mais, repetitivo e longnquo, e tentava, a todo o momento, expor tudo de uma s vez.

    (Lerner, 1948, 8-31)

    Em funo de sua memria prodigiosa; da facilidade com que dominava inmeras lnguas; da

    rapidez com que resolvia operaes matemticas de cabea, e do uso sinedquico e polissmico

    frequente que fazia das palavras, mesclando significados e conotaes ao mesmo tempo, Veblen

    possua um evidente trao de genialidade, reconhecido at por seus opositores. Tais caractersticas

    mentais especiais devem ter sido herdadas, com muita probabilidade, de sua me, Kari

    Thorsteinsdatter Bunde Veblen, que possua, reconhecidamente, uma memria e uma velocidade de

    raciocnio fora do comum.

    (A erudio de Veblen) era surpreendente e interessante. Ele guardava de memria detalhes que

    teriam sobrecarregado a maioria dos espritos e se transformado num fim em si mesmo mas

    Veblen no perdia as grandes linhas mestras ... Sua voz suave podia num momento usar uma

    expresso de gria para manifestar uma opinio, e no minuto seguinte estar recitando estrofe aps

    estrofe de um hino latino medieval. (Heilbroner, 1959, 203)

    Se levarmos em considerao as caractersticas j amplamente conhecidas por especialistas e

    psiclogos acerca das mentes de gnios, a biografia e a obra de Veblen indicam que ele possua

    quase todos os traos dos portadores de sndrome de Asperger, isto , possua uma genialidade e

    uma criatividade inatas, conspicuamente fora do comum (memria eidtica ou fotogrfica;

    capacidade precoce de leitura; facilidade extraordinria no aprendizado de lnguas; comportamento

    social atpico, rotina e regularidade de comportamento claramente fora da mdia, dficit de empatia,

    etc.). Muitas destas caractersticas de Veblen sero vistas ou indicadas ao longo deste livro. Para um

    aprofundamento, ver Michael Fitzgerald e Brendan OBrien, Genius Genes, How Asperger Talents

    Changed the World, 2007; e Michael Fitzgerald, The Genesis of Artistic Creativity, 2005.

    Este livro busca demonstrar o esquema geral que Veblen possua em sua mente, esquema este que

    lhe permitia cobrir um arco to amplo de temas, fatos e fenmenos; ou seja, como indicou Lerner,

    a facilidade com que Veblen movia-se na Histria, desde os tempos Neolticos at os ltimos

    relatrios industriais de Comits do Congresso Americano. E poderamos completar: a facilidade

    e a segurana com que Veblen projetava e explicava o comportamento de toda uma civilizao, a

    partir da simples anlise da composio e forma de uma colher; de um animal; ou de uma pea de

    vesturio.

    Influncias Histricas, Intelectuais e tnicas na Formao de Veblen

    Influncias Histricas

    Thorstein Veblen (1857-1929) viveu na confluncia de dois mundos; e esta sizgia faz parte no

    apenas de sua experincia pessoal, familiar e tnica, mas tambm da estrutura de pensamento

    adotado por ele em suas teorias sociais e econmicas. Veblen nasceu em uma famlia norueguesa de

    esclarecidos fazendeiros (que imigrou para os EUA em 1847), na cidade de Cato, distrito de

    Manitowoc, em Wisconsin, s vsperas de um dos perodos mais conturbados e importantes da

    histria moderna norte americana, caracterizado por inmeras desordens e mudanas sociais,

    econmicas e territoriais, sendo a Guerra Civil (1861/1865), e a rpida industrializao aps o

    trmino deste sangrento episdio, certamente, os fatos histricos de maior relevncia. E faleceu em

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    agosto de 1929, portanto, alguns poucos meses antes da quebra da bolsa de Nova Iorque e a Grande

    Depresso, igualmente um dos momentos mais turbulentos e tormentosos dos EUA. Em sua

    infncia e adolescncia a Amrica era uma sociedade fundamentalmente agrcola; e no fim de sua

    vida, alm de uma expanso territorial extraordinria, os EUA suplantam a Gr-Bretanha em

    produo industrial, e avana a passos largos na direo de uma sociedade de consumo de massa.

    No existem dvidas, portanto, de que esta metamorfose dos EUA teve uma importncia decisiva

    nas concepes e nas teorias de Veblen. Em termos mundiais, Veblen presencia a 1 Guerra

    Mundial, a Revoluo Bolchevique, e testemunha a dbcle da era vitoriana.

    A Amrica, que produziu o mais completo e tenaz ramo da civilizao de Negcios, produziu

    igualmente o seu mais completo e tenaz crtico e analista. Este o significado central da obra de

    Thorstein Veblen. Veblen desenvolvia a sua formao intelectual nos anos 1880, quando os

    trustes, os cartis e demais conglomerados industriais e financeiros estavam emergindo, e a nova

    Corporao Dinstica estava estabelecendo-se solidamente na trajetria dos ideais polticos

    tradicionais. O primeiro artigo sobre economia publicado por Veblen, apareceu [no final de

    1891], dois anos aps a promulgao da Lei Sherman Antitruste. Seus ltimos trabalhos escritos

    foram feitos nos anos 1920, durante o perodo que passou a ser designado por Novo Capitalismo

    (financeiro Corporativo), quando ento os monoplios consolidaram, definitivamente, seus

    poderes.

    Entre todos os pensadores que buscaram analisar a natureza e as consequncias deste novo

    imprio dos negcios do Ocidente, mais vasto do que qualquer outro imprio que a Histria tenha

    produzido, Veblen indiscutivelmente a figura mais elevada. Sua crtica de nossa civilizao

    to impiedosa e prdiga como a marxista, mas, ao mesmo tempo, ela mais sutil e ampla, pois

    uma anlise mais profunda, abrangendo uma psicologia, uma antropologia, e uma teoria das

    civilizaes. (Max Lerner, 1948, 1)

    Nas palavras de Andrew Veblen, irmo mais velho de Thorstein, as fazendas de seus pais tanto a

    primeira, em Cato/Wisconsin, como a segunda, em Nerstrand/Minnesota eram exemplos de

    proeminentes e marcantes casos de autossuficincia e trabalho assduo e diligente. O contraste

    entre a terra como fonte de lucro especulativo por parte dos comerciantes e homens de negcios

    urbanos, cujo objetivo era obter dos imigrantes o mximo possvel em troca de nada (get something

    for nothing at the expense of the imigrants), e a terra como fonte e meio de subsistncia e trabalho

    ordenado e objetivo (workmanship) ficou marcado na mente de Veblen, desde a sua infncia e

    adolescncia; e quando adulto, Veblen far referncia a este contraste em seus relatos sobre the

    American Country Town, e especialmente, ao longo de toda a sua obra, em sua antinomia terica

    fundamental, a distino entre predao (predation) e trabalho eficaz (workmanship).

    Os inmeros problemas sociais e econmicos dos fazendeiros nos EUA eram significativos neste

    perodo de fortes transformaes. E vrios movimentos polticos de revoltas e contestaes

    floresceram nas trs ltimas dcadas do sculo XIX, como por exemplo, o The Patron of

    Husbandry, The Grange, etc. O movimento Populista de revoltas, por exemplo, teve o seu auge no

    incio dos anos 1890, e alguns intrpretes de Veblen como Ralph Schimmer, 1994 acreditam

    que este forte movimento de contestao social influenciou Veblen (positivamente) de alguma

    forma. Schimmer afirma que algumas ideias de Veblen, e especialmente a sua linguagem e

    terminologia, inclusive a forma satrica como abordava certos temas sociais, podem ter suas origens

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    neste movimento, pois Veblen esteve totalmente consciente, tanto dos problemas dos fazendeiros do

    meio oeste americano, como das propostas do movimento Populista.

    Entretanto, esta posio de Schimmer , no mnimo, controvertida, pois no parece claro que este

    movimento tenha influenciado Veblen positivamente. Para Veblen, o movimento Populista era

    basicamente reformista; no era antagonista da propriedade privada ou dos interesses investidos,

    reivindicava basicamente mudanas nas polticas governamentais e a defesa de um capitalismo de

    pequena escala. E isto est bastante afastado das anlises, das convices e da crtica profunda de

    Veblen acerca da ordem institucional (predatria) na Amrica de ento. Tanto assim que Veblen

    chegou a afirmar, de forma irnica e cortante, como lhe era peculiar muitas vezes, que os

    fazendeiros tm cultivado no s o solo frtil como tambm as grandes oportunidades (the farmers

    have been cultivators of the main chance as well as of the fertile soil).

    Veblen notou que muitos fazendeiros, apesar da retrica oposicionista e aparentemente lcida,

    estavam preocupados, basicamente, com aquisio e ganhos pecunirios, e no propriamente com

    a produo diligente ou com melhorias para a comunidade como um todo, e que as suas demandas,

    em ltima instncia, caminhavam para uma reabilitao da propriedade em novas bases de

    distribuio. Parece claro, portanto, que Veblen discordava da direo dita crtica deste movimento

    poltico; e o que mais significativo ainda: no s deste stream de contestao, mas de muitos

    outros que surgiram nos anos finais do sculo XIX nos EUA, como por exemplo o The Army of

    Commonweal ou Coxeys Army, que chegou a escrever um artigo, em 1894.

    O objetivo ostensivo do movimento Army of the Commonweal tem sido a criao de meios de

    sobrevivncia para um grande nmero de pessoas atravs da criao de empregos, obtidos estes

    pela criao de capital por meio de emisso monetria e inflao. Ou seja, o mago do

    movimento uma alucinao articulada. (Veblen, 1894b, 97)

    A posio de Veblen sobre as propostas do movimento Populista nos EUA, brevemente descrita

    acima, as quais considerava, no mnimo, diversionistas, bastante importante em sua obra, pois

    Veblen dir, desde o seu primeiro artigo econmico e sociolgico, de 1891, Some Neglected Points

    in the Theory of Socialism, que os movimentos de reivindicaes dos trabalhadores norte

    americanos (e muitos outros), inclusive em suas vertentes socialistas, eram igualmente

    diversionistas; pois, por trs de uma aparncia de protesto e discordncia mais consequente acerca

    das instituies vigentes, isto , dos hbitos de pensamento, o que se verificava, na verdade, nestes

    movimentos, era um desconforto dos trabalhadores diante de um empobrecimento relativo, mas no

    absoluto. Tratava-se, basicamente, muito mais de um sentimento de emulao econmica, agora

    exacerbado pelas condies tecnolgicas e produtivas do moderno sistema industrial, do que uma

    carncia absoluta dos meios de sobrevivncia, ou de uma convico de quo deformadas,

    perniciosas e inconsequentes eram (e so) as instituies predominantes sob o comando dos homens

    de negcios e dos interesses investidos. Este tema e estas crticas sero constantes na obra de

    Veblen.

    O sistema (econmico) existente no fez, e no tende a fazer, o trabalhador industrial mais pobre

    se analisarmos em termos absolutos de meios de subsistncia; mas tende a faz-los relativamente

    mais pobres, aos seus olhos, se mensurado em termos de importncia econmica comparativa; e,

    curiosamente, isto o que parece ter importncia. No so os abjetamente pobres que esto

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    protestando de forma veemente; e quando um protesto ouvido em seus nomes ocorre atravs de

    interlocutores que no pertencem a esta classe, e que no possuem autorizao para falar por eles.

    O protesto provm daqueles que habitualmente, ou por necessidade, no sofrem privaes

    fsicas. O qualificativo necessidade merece ateno. Existe uma quantidade considervel de

    privao fsica sofrida por muitas pessoas neste pas que no so fisicamente necessrias. A causa

    muito frequente que o que deveriam ser os meios de conforto encontram-se desviados para

    propsitos de manuteno de uma aparncia decente, ou mesmo a demonstrao de algum luxo.

    (Veblen, 1891, 392)

    Influncias Intelectuais

    Dissemos acima que, historicamente, Veblen viveu na confluncia de dois mundos. E esta

    confluo igualmente verdadeira quando abordamos as profundas revolues intelectuais que

    Veblen presenciou e participou. E no por coincidncia que os dois marcos intelectuais que

    abalaram o mundo contemporneo possuem uma importncia fundamental na obra de Veblen.

    O primeiro grande abalo intelectual do mundo contemporneo ocorre com a publicao, em 1781,

    da Crtica da Razo Pura, de Imannuel Kant.

    A importncia de Kant para o pensamento de Veblen no se reduz relevncia bvia e natural que

    Kant possui para todos os intelectuais contemporneos. Em 1790, Kant publica a sua terceira

    crtica, A Crtica da Faculdade do Juzo, um dos livros seminais para a compreenso da esttica

    moderna e do funcionalismo em Arte, Arquitetura e Design, apesar de grandes controvrsias sobre

    estas reais contribuies de Kant para uma esttica especificamente funcionalista moderna. A tese

    de doutorado em filosofia de Veblen, em Yale 1884, The Ethical Grounds of a Doctrine of

    Retribution, um dos poucos trabalhos perdidos de Veblen, versou precisamente sobre esta terceira

    crtica de Kant; e seguramente jogou um papel essencial na teoria esttica e econmica de Veblen.

    Em captulos posteriores deste livro explicaremos e demonstraremos que a teoria econmica de

    Veblen possui um inquestionvel fundamento esttico, assim como a sua teoria esttica possui um

    inquestionvel fundamento econmico ou frugal, como todas as grandes correntes artsticas

    funcionalistas modernas. E Kant um dos dois grandes intelectuais que influenciaram a teoria

    esttica (e portanto econmica) de Veblen. David Hume o segundo

    O segundo grande abalo intelectual do mundo contemporneo, de grandes consequncias para a

    teoria de Veblen, ocorre em 1859, com a publicao da teoria da evoluo das espcies, de Charles

    Darwin; e a Descendncia do Homem, de Darwin, em 1871. A importncia do evolucionismo em

    Veblen no se resume interpretao unicamente darwinista, como muitos apressadamente

    imaginam quando se referem Veblen; alguns conceitos constantes da Philosophie Zoologique, de

    J.B.Lamarck, de 1809, jogam papel igualmente relevante nas teorias de Veblen. No por outra

    razo que alguns intrpretes de Veblen sentem-se relativamente desconfortveis com certos

    aspectos lamarckistas da interpretao evolucionista de Veblen. O que, curiosamente, hoje so

    aspectos igualmente considerados na biologia evolucionria, e o prprio Darwin concordava com

    vrios conceitos de Lamarck.

    Com a teoria da evoluo e a descendncia do homem no somente a imagem de que o homem

    tenha evoludo de um tronco antropoide que causou um abalo profundo nas pessoas. To

    importante, ou at mesmo mais importante para a intelligentsia da poca e especialmente para os

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    telogos, foram as concluses darwinistas bvias, decorrentes de sua teoria, de que: (i) nada pode

    ser dito ou verificado que comprove o criacionismo ab initio de qualquer espcie; (ii) no existe

    uma rigidez (biolgica) das espcies; todas as espcies evoluem; (iii) no h uma especialidade ou

    magnanimidade de qualquer espcie ou criatura; o homem, assim, no possui qualquer dote especial

    diante das demais espcies; e (iv), no h um destino teleolgico (supranatural ou mesmo natural)

    para o homem ou para qualquer outra espcie. Com a teoria da evoluo, o homem fica, pela

    primeira vez na Histria, solitrio e fortemente responsvel pelas trajetrias de sucesso biolgico ou

    fracasso biolgico e extermnio.

    Descrever e delimitar precisamente as foras intelectuais, autores e correntes que tiveram influncia

    na formao de Veblen e nas concepes bsicas de suas teorias um exerccio bastante

    complicado e difcil, embora feito recorrentemente pelos seus principais intrpretes. Isto porque

    Veblen era um leitor voraz desde a sua infncia, e nos anos de sua formao estudou e cobriu um

    arco impressionante de temas e disciplinas, como por exemplo, filosofia, antropologia, psicologia,

    biologia, histria, sociologia, artes, economia, arqueologia, paleontologia, e outras.

    Alm destas disciplinas, Veblen estava totalmente inteirado da literatura de sua poca,

    especialmente a literatura nrdica, presente e passada, que era um dos temas que ele cultivou

    durante toda a vida e que possui importncia central em sua formao e mesmo em sua teoria,

    conforme veremos adiante. Adicionalmente, como Veblen possua conhecimento de inmeras

    lnguas europeias (tanto modernas quanto antigas), isto lhe concedia um imenso capital intelectual e

    lingustico, pois podia acessar muitos textos antigos ou avanados bem antes destes livros ou textos

    estarem disponveis em lngua inglesa nos EUA. Um bom exemplo, eram os livros e os artigos em

    arqueologia e paleontologia do dinamarqus Sophus Mller, especialmente Vor Oldtid, de 1897,

    que s podiam ser lidos em dinamarqus, e que Veblen incorporou em suas anlises. (ver captulo

    2)

    Discernir as foras intelectuais que moldaram o pensamento social e econmico de Veblen um

    exerccio problemtico na medida em que, mais frequente do que se pensa, ele evitava as

    convencionalidades acadmicas de identificar precisamente as suas referncias, com o argumento

    curioso de que elas eram facilmente identificveis para as pessoas preparadas. ... Entretanto, tal

    exerccio facilitado nas ocasies em que Veblen cita os autores, especialmente as c. 80

    referncias bibliogrficas que ele recomendava em seu principal curso (Economic Factors in

    Civilization), e que foram publicadas em seu terceiro livro. (Edgell, 2001, 65)

    Apesar da dificuldade acima exposta, podemos delimitar e classificar, razoavelmente, aqueles

    autores ou correntes intelectuais que possuem importncia indiscutvel na formao e na teoria de

    Veblen em dois grandes conjuntos, conforme abaixo descritos.

    1. Autores ou correntes intelectuais de indubitvel importncia para a obra de Veblen:

    1.1 Expresso tnica e literatura nrdica: Bjrnstjerne Bjrnson e Hendrik Ibsen; ademais, toda a

    mitologia nrdica joga um papel central no cavername da obra de Veblen, embora este seja um dos

    aspectos mais complexos e ricos de sua obra;

    1.2 Evolucionismo: Charles Darwin; Herbert Spencer; J.B.Lamarck; Ernst Haeckel;

    1.3 Filosofia e Esttica: Immanuel Kant; David Hume, Ernst Grosse, William Morris;

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    1.4 Edward Bellamy;

    1.5 Antropologia, Arqueologia e Paleontologia: Sophus Mller, James Frazer, J.J. Bachofen, Franz

    Boas, Edward Tylor;

    1.6 Escolas Histricas Alemes de Economia: Werner Sombart, Gustav Schmoller, Karl Knies;

    1.7 Psicologia: William James, William McDougall, Gabriel Tarde;

    1.8 Outros: Richard Hakluyt; Jacques Loeb; Gregor Mendel; Hugo de Vries; James Cook; Lester

    Ward;

    2. Autores ou correntes intelectuais de importncia subjacente para a obra de Veblen: Henry

    George; Charles Peirce; Lewis Morgan; Karl Marx; Charlotte Perkins Gilman; Henry Gantt; John

    Hobson; John Ferguson McLennam; Thomas Kirkup; W.H. Mallock; Robert Flynt.

    Looking Backward de Edward Bellamy e sua Influncia em Veblen

    Em 1888, surge nos EUA um dos maiores sucessos literrios do final de sculo XIX, e um dos mais

    significativos romances utpicos sociais e de fico cientfica do Ocidente, Looking Backward

    2000 1887, de Edward Bellamy. (H traduo para o portugus, com o ttulo Daqui a Cem Anos).

    Atrs apenas de A Cabana do Pai Toms, Looking Backward foi extremamente popular poca,

    vendendo mais de um milho de cpias em pouco tempo, e influenciou diretamente inmeros

    intelectuais e vrios movimentos sociais. Thorstein Veblen foi um deles. De acordo com

    informaes biogrficas, e tambm de sua primeira esposa (Ellen Rolfe), Looking Backward teria

    influenciado Veblen de forma profunda e definitiva. Pode-se afirmar, inclusive, que muitas

    propostas de uma organizao social harmoniosa e justa, com as caractersticas que Veblen pugnar

    por toda a sua vida, e que se encontra subjacente em muitas passagens de sua obra, ecoam deste

    famoso livro de Bellamy.

    O leitmotiv de Looking Backward foi, naturalmente, os grandes movimentos de protestos e revoltas

    existentes nos EUA, das ltimas dcadas do sculo XIX. O seu sucesso no decorre propriamente

    da caracterstica de certo pioneirismo na crtica social da poca, pois inmeros outros livros e

    autores importantes publicaram igualmente textos bem significativos demonstrando esta social

    unrest quase que generalizada na Amrica de ento, como por exemplo, Laurence Gronlund (The

    Co-operative Commonwealth, 1884); John Macnies (The Diothas, 1883), Henry George (Progress

    and Poverty, 1879), e tantos outros. O sucesso estrondoso de Looking Backward decorre,

    provavelmente, da forma como Bellamy apresenta os grandes problemas sociais e econmicos da

    poca, apresentando-os com solues extremamente criativas.

    O tema bsico do romance ou da utopia o deslocamento, no tempo, de um cidado (Julian West)

    de Boston, que se encontrava hipnotizado em dependncias subterrneas de uma construo,

    quando ocorre, ento, uma grande catstrofe de destruio global da sociedade e da ordem

    predatria de c. 1887 nos EUA. Julian West no morre, por fora deste transe hipntico e de sua

    localizao subterrnea, e quando acorda, 113 anos depois, isto , no ano 2000, encontra-se diante

    de uma sociedade radicalmente diferente, onde todas as relaes sociais e econmicas, e as

    instituies, foram transformadas e cristalizadas em uma ordem socialista absolutamente racional,

    justa, equilibrada e materialmente desenvolvida, sem qualquer carncia para os cidados, etc. E a

    narrativa do livro, ento, a explicao desta Nova Ordem feita pelo tutor de Julian West, o Dr.

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    Leete, e as demonstraes concretas de como esta ordem socialista e justa funcionava (e muito

    bem).

    Looking Backward foi escrito em resposta irracionalidade e ao desperdcio que Bellamy via por

    toda a parte no sistema capitalista. Nesta nova ordem socialista onde Julian West acorda, a moeda

    foi abolida, e os cidados usavam uma espcie de carto de crdito onde abatiam as suas

    aquisies para as suas necessidades. A riqueza privada foi extinta e submetida riqueza coletiva,

    reinando um igualitarismo econmico. Toda a produo e a distribuio eram centralmente

    planejadas, e de forma racional. E isto era obtido no pelo abandono da industrializao ou do

    progresso tcnico, e um retorno a um quase medieval sistema de trabalho manual ou artesanal, na

    maneira como o socialista William Morris props para os males desta mesma poca em sua utopia

    News From Nowhere (1891).

    A nova ordem de Bellamy estimulava e incorporava todos os desenvolvimentos cientficos e

    tecnolgicos seguindo uma lgica de centralizao crescente do capital (material), e estabelecendo

    uma espcie de monoplio total, de tal forma, que, pela nacionalizao, o estado tornava-se o nico

    proprietrio do capital. A Nao, explica o Dr. Leete para Julian West, encontra-se organizada

    como uma grande Corporao de Negcios, na qual todas as demais corporaes foram absorvidas.

    Assim, pela eliminao do extraordinrio desperdcio da empresa privada, e aproveitando os

    ganhos enormes da produtividade do sistema mecnico da fbrica (automatizada), possvel dividir

    os ganhos entre todos os cidados e viverem todos em abundncia, ao custo de pouco trabalho.

    Nesta Nova Ordem, os cidados obtm a sua aposentadoria aos 45 anos de idade, e as horas

    trabalhadas por dia esto em relao inversa severidade do trabalho a ser executado.

    Bellamy aponta, atravs do Dr. Leete, que no sculo XIX havia uma dicotomia de interesses entre

    uma classe de homens de negcios (business class) e a comunidade; e que eram os homens de

    negcios (um subconjunto da idle class) que restringiam a produo para obterem mais lucros

    pessoais. This, Mr. West, is what was called in the nineteenth century a system of production

    (Isto, Sr. West, o que era designado no sculo XIX de sistema de produo). Deixo para a sua

    opinio concluir se este sistema era um sistema de produo ou um sistema de restrio da

    produo! Nesta Nova Ordem, as depresses econmicas tambm foram eliminadas, pois estas

    eram causadas pela lgica e pelas necessidades do capitalismo, e no eram inerentes ao sistema de

    fbrica.

    Bellamy atacou igualmente a psicologia hedonista dos economistas clssicos e neoclssicos

    afirmando que sob diferentes condies sociais, diferentes motivaes poderiam surgir na natureza

    humana. ...

    Parece verdadeiro para o senhor, responda-me meu amigo, que a natureza humana seja insensvel

    a quaisquer outras motivaes alm do desejo e da nsia por luxos, e que seja possvel obter

    segurana e igualdade de meios de subsistncia sem as motivaes e os esforos para isto?

    (Bellamy, Looking Backward, 1888)

    Bellamy tambm apontou que o imenso crescimento da produtividade trazido pelo industrialismo

    no foi devido percia dos empresrios, mas comum herana do conhecimento passado e

    realizaes, os quais a classe dos homens de negcios explorava para seus prprios ganhos, ao custo

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    da comunidade. Faltou muito pouco para Bellamy concluir, como Veblen concluir mais tarde,

    utilizando este mesmo raciocnio acima, que no existem, portanto, produtividades individuais.

    Bellamy, nesta Nova Ordem, apresentou uma srie de caractersticas que seriam quase que

    inconcebveis de serem vislumbradas nos anos 1880. Alm do carto de crdito, ou melhor, do

    carto de compras, Bellamy vislumbrou que nesta nova sociedade as pessoas receberiam em suas

    casas, (atravs de fios), programas de msicas, discursos e sermes ! S faltou explicar que a

    Internet j estava em sua utopia h muito tempo!

    O livro de Bellamy, ao apontar as ideias acima, e outras, estimulou o surgimento nos EUA de um

    forte movimento nacionalista, ou seja, no um movimento nacionalista tradicional (dinstico),

    mas um nacionalismo semelhante ao propugnado pela Nova Ordem; um movimento de

    centralizao e planejamento total da economia, etc. Mais de 160 clubes nacionalistas com o

    esprito de Looking Backward foram criados, e mesmo um Partido Poltico. No existem dvidas,

    portanto, de que Looking Backward de Bellamy jogou um papel importantssimo no

    desenvolvimento de vrias ideias que esto contidas na obra de Veblen.

    Os estudiosos em economia japonesa, especialmente a forma como a economia japonesa estruturou-

    se a partir da segunda guerra mundial, poderiam concluir que Bellamy esteve e est,

    simbolicamente, presente entre os nipnicos. No totalmente, claro, mas bem confortvel, sentado

    ao final do auditrio, onde o espetculo econmico e tecnolgico japons desenrola-se no palco.

    Embora Looking Backward seja claramente uma utopia socioeconmica, interessante observar que

    quase todas as proposies feitas por Bellamy para esta sociedade utpica ocorreram na Histria;

    eram prticas comuns, por exemplo, durante sculos, na extraordinria civilizao de Creta

    (minoica), antes de hordas brbaras e guerreiras predatrias destrurem esta civilizao. Ver

    captulo 2 adiante.

    Fundamentos tnicos na Formao e na Teoria de Veblen

    O fundamento tnico, isto , cultural, familiar e comunitrio da formao de Veblen uma das mais

    importantes caractersticas para uma compreenso correta e profunda de suas teorias e, obviamente,

    de sua vida. Talvez seja a mais importante caracterstica e influncia. Por exemplo, Helge Peukert,

    em 1996, afirma, de forma contundente:

    A pedra de toque dos valores morais de Veblen reside no pacfico fazendeiro - agricultor da

    primitiva comunidade islandesa ... (Edgell, 2001, 59)

    Durante algum tempo, aps o falecimento de Veblen, em 1929, este fundamento tnico foi

    relativamente negligenciado e/ou obscurecido nos estudos sobre Veblen, por fora de um

    intencional equvoco de interpretao de seu bigrafo (no autorizado), Joseph Dorfman (Veblen

    and His America, 1934). Para Dorfman, e outros que acabaram simplesmente repetindo suas

    opinies, este fundamento tnico (nrdico noruegus escandinavo) teria jogado um papel no

    propriamente positivo na vida de Veblen, e consequentemente no entendimento de sua obra, pois

    teria sido a razo principal das atitudes de isolamento social de Veblen. Alis, esta caracterizao de

    marginalidade social de Veblen, que tanto prejuzo causou e continua causando para uma correta

    compreenso do alcance de sua obra e de sua vida, comeou nos anos 1920, quando Alvin Johnson

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    e Paul Homan identificaram a genialidade de Veblen com algumas caractersticas de isolamento e

    circunspeco social. Uma espcie de marciano entre os humanos (Man of Mars), dado a imensa

    cobertura interpretativa dos fatos sociais e econmicos que Veblen empreendia, e que muitos nunca

    tinham percebido.

    Esta ideia de Veblen como um homem de Marte (Man of Mars), com esta mesma interpretao

    singela de genialidade, tem uma fonte adicional clara, em duas citaes de obiturios feitas por

    Wesley Mitchell, um ex-aluno de Veblen e que foi seu amigo por toda a vida, quando afirmou

    Mitchell que ... Os comentrios de Veblen eram engraados, caam do espao como meteoros;

    Veblen trouxe para a Economia o distanciamento de um visitante de Marte. E um ano depois

    Mitchell afirmou o gnio perturbador de Thorstein Veblen o visitante de outro mundo, etc.

    Assim, extremamente claro que Mitchell usou estas imagens cosmolgicas para enfatizar a

    originalidade e a genialidade das ideias de Veblen, e que ajudaram a remodelar o estudo da

    economia e da sociologia. Este afastamento vebleniano deveria ser visto, ento, majoritariamente,

    como um simblico distanciamento metodolgico, interpretativo e analtico, ou seja, o

    afastamento de um tpico cientista moderno ao analisar os fenmenos em pauta; e no topogrfico

    ou comportamental.

    A partir de ento, os crticos, ou os mais incomodados com as teorias e as concluses de Veblen,

    comearam um processo lento e sutil de mutao desta caracterstica de recolhimento,

    circunspeco, reserva, seriedade, e amplitude analtica de Veblen, para sucessivamente caracteriz-

    lo como um estrangeiro ou forasteiro (outsider), algum que no se integrava sociedade

    (someone halfway of society; socially unacceptable outsider), para finalmente marc-lo como um

    alienado (alianated) (sic). Ora, talvez a ltima caracterstica pessoal que possa ser admitida para

    Veblen seja este branding de alienado da sociedade, pois Veblen considerado, juntamente com

    K.Marx e M.Weber, os trs grandes intrpretes e analistas do capitalismo, e, alm do mais, o

    nico que gerou uma escola de Economia autntica nas Amricas (O Institucionalismo), e

    considerado o maior terico social das Amricas. Se quisermos considerar Veblen um alienado da

    sociedade, no sentido de no integrar-se s instituies predatrias, androcrticas e corruptas

    predominantes, a ento poderemos concordar, facilmente, com este epteto de alienado.

    Este stream de tentar condenar a obra de Veblen atravs da condenao de caractersticas pessoais,

    chegou ao ponto risvel de afirmar que aos 17 anos, quando entra para o Carleton College

    Academy, Veblen ainda no sabia ingls, dado o seu recolhimento tnico noruegus de suas

    comunidades! Aos 17 anos de idade Veblen j dominava o noruegus e o ingls. Veblen passou em

    primeiro lugar nos exames de entrada em Carleton College, ganhando o prmio Atkins de $80. Em

    um caso de rara exceo administrativa e pedaggica, dado a genialidade e a precocidade intelectual

    de Veblen, o Carleton College permitiu que Veblen terminasse, em apenas 3 anos, a sua formao,

    quando eram necessrios 4 anos para todos os demais alunos, e isto nos 2 ciclos de estudos que

    empreendeu em Carleton; ou seja, Veblen concluiu os 8 anos necessrios em apenas 6. E, como dito

    anteriormente, ao final de sua vida, Veblen dominava 26 lnguas (no s vivas como mortas) e

    estava aprendendo a 27., que era o russo. Logo aps a sua formatura em Carleton, Veblen j

    possua noes do idioma grego e domnio completo do alemo, que aprendeu sozinho. No ptio da

    Universidade de Chicago, onde Veblen lecionou de 1892 at 1906, podia-se ouvir alunos

    comentarem em voz baixa: - l vai o Prof. Veblen, que fala 26 lnguas.

  • 19

    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    Dissemos acima que houve um intencional equvoco de Joseph Dorfman no episdio relatado

    porque a fonte original destas informaes o irmo mais velho de Thorstein, Andrew Veblen, que

    forneceu tantas informaes familiares e pessoais de Thorstein para Dorfman ao ler os

    manuscritos antes da impresso final solicitou que Dorfman fizesse as correes de suas

    informaes, pois muitas estavam diferentes do que ele informou, e Dorfman simplesmente ignorou

    esta solicitao. Esta uma das razes pelas quais Andrew Veblen renegou, publicamente, vrias

    informaes que esto impressas no famoso livro de Dorfman, Veblen and His America (1934).

    Atualmente, inmeros intrpretes srios de Veblen tm feito vrias crticas a esta copiosa biografia

    de Veblen, escrita por Dorfman. Entretanto, curioso que muitos destes intrpretes no tenham

    percebido como Dorfman era, no fundo, um crtico sutil de Veblen. O ttulo desta sua biografia

    famosa sobre Veblen : Veblen and His America, que d a entender que a America que Veblen

    analisava, criticava e denunciava como profundamente predatria, desperdiadora, injusta, corrupta,

    etc., era apenas a Sua America, isto , a que Veblen percebia, e no a America real. Ademais,

    parte importante das 556 pginas desta profusa biografia de Veblen, um exerccio montono de

    Dorfman, mas em vo, em demonstrar que muitas ideias de Veblen encontram-se em outros

    autores ou previamente publicadas. Quase que o acusando de abastardamento, mas com a sutileza

    caracterstica de um scholar bem situado.

    Dorfman reconhece que o domnio das vrias lnguas nrdicas (inclusive as mortas) ampliou

    claramente a erudio de Veblen, mas no avana nenhuma concluso mais correta sobre a

    relevncia da etnia de Veblen para a compreenso de sua teoria.

    Dorfman tentou entrar em contato vrias vezes com T.Veblen, e Veblen no o atendeu em nenhum

    momento; e, como dito acima, muitas informaes que o irmo mais velho de T.Veblen - Andrew

    Veblen transmitiu para Dorfman, foram, na maior parte, consideradas como mal interpretadas e

    no coerentes com as informaes por ele fornecidas.

    Como a biografia de Dorfman criou uma aura de autoridade durante muitos anos, a importncia

    tnica na formao e na obra de Veblen ficou relativamente obscurecida - ou apenas levemente

    analisada como uma influncia negativa - pelos comentrios pejorativos de Dorfman sobre o tema,

    at o aparecimento de bons trabalhos plotando o verdadeiro papel deste backgroud cultural nrdico

    em sua teoria, como por exemplo, os trabalhos de George Fredrickson (Thorstein Veblen: the Last

    Viking, 1953), Jonathan Schwartz (Tracking Down the Nordic Spirit in Thorstein Veblens

    Sociology, 1990), Russel Bartley e Sylvia Yoneda (Thorstein Veblen on Washington Island, 1994),

    J.R. Christianson (Thorstein Veblen: Ethnic Roots and Social Criticism of a Folk Savant, 1995),

    Rick Tilman (The Intellectual Legacy of Thorstein Veblen, 1996), Stephen Edgell (Rescuing Veblen

    from Valhalla, 1996), Helge Peukert (T.Veblens Habit of Thought), Elizabeth e Henry Jorgensen

    (Thorstein Veblen. Victorian Firebrand, 1999)

    Os primeiros trabalhos mais importantes que vincularam a tradio nrdica de Veblen com a sua

    teoria enfatizaram as correlaes mtuas de certas caractersticas do luteranismo, a religio dos

    familiares de Veblen, com certos ideais das convices de Veblen e que migraram para a sua obra: a

    mutualidade, o esprito cooperativo, o ascetismo, o trabalho diligente, a parcimnia.

    De fato, a influncia do cristianismo (no institucional) na obra de Veblen, possui uma importncia

    que no foi ainda totalmente avaliada, pois a crtica contundente de Veblen Cristandade

  • 20

    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    institucional acabou deixando na penumbra algumas de suas posies - importantes para a sua obra

    - sobre outras tradies crists, especialmente as comunidades crists primitivas. Veblen discordava

    conspicuamente da Cristandade institucional. Suas stiras cortantes e devastadoras das igrejas

    institucionais, dos sacerdotes, dos rituais e das construes devotas (the devout observations) eram

    idnticas ou bem prximas s de Voltaire. Certa vez, ainda jovem, Veblen referiu-se s

    organizaes eclesisticas como lojas de bugigangas, e a igreja romana apostlica como loja de

    vendas a varejo.

    A Cristandade institucional Veblen considerava como aparentada das tendncias animistas e

    antropomrficas das culturas brbaras pr-modernas, e estava convencido de que a significao

    contempornea desta instituio era completamente negativa. ... Veblen ridiculariza as

    explicaes sobrenaturais no cientficas, e era especialmente crtico acerca do desperdcio dos

    clrigos da Cristandade institucionalizada. (Edgell, 2001, 11)

    Entretanto, as opinies de Veblen sobre as mensagens, as prticas e a tica dos grupos cristos

    primitivos (gnsticos) eram bem diferentes.

    ... Em relao tica crist primitiva de irmandade fraternal e mutualidade Veblen considerava

    esta caracterstica como sendo nada mais do que uma manifestao especializada do instinct of

    workmanship. (Ardzrooni, 1934, 216) E como tal, antecede a Cristandade institucional; e

    embora tal princpio seja continuamente e diuturnamente reafirmado, h uma evidente

    discrepncia entre a moralidade crist de mutualidade, e a moralidade do individualismo no

    capitalismo. (Edgell, 2001, 11)

    Ora, na medida em que o instinct of workmanship, como veremos neste livro, uma das principais

    variveis do esquema terico de Veblen, a sua assertiva acima extremamente clara - sobre a tica

    crist primitiva como sendo um caso especial do instinct of workmanship, deveria induzir uma

    pesquisa mais detalhada sobre esta virtual correlao altamente original, apontada pelo prprio

    Veblen. De fato, vrias concluses podem ser tomadas sobre esta correlao, mas que no sero

    aqui desenvolvidas. Uma delas, a impressionante possibilidade de plotar quase todo o modelo

    social de Veblen sob as luzes da Gnose tradicional. impressionante como a estrutura terica do

    pensamento de Veblen pode ser decalcada nas grandes explicaes da Gnose clssica, ou melhor,

    em uma espcie de Gnose secular. Se esta linha de argumentao aqui exposta superficialmente

    possuir alguma validade ou coerncia, ento, a perseguio ou o esquecimento da

    importantssima obra de Veblen nos meios acadmicos tidos como reputados, nos ltimos c. 80

    anos, passa a ter uma explicao bem mais profunda e sofisticada.

    Podemos falar, portanto, provisoriamente, e sem grandes explicaes aqui neste livro, que h uma

    eventual aderncia de Veblen a uma espcie de verso secularizada da Gnose. E tambm, se

    basearmo-nos no estilo de vida de Veblen, em sua indumentria, em suas construes materiais

    (mveis domsticos e casas, por ele mesmo construdos), e em suas teorias, etc., podemos afirmar,

    com grande nfase e com pouca margem de erro, que h uma aderncia de Veblen a uma espcie de

    verso secularizada do protestantismo, especialmente do luteranismo.

    Outra verificao do acima exposto, mas que Veblen no desenvolveu em sua obra por razes

    desconhecidas, e que se adapta um pouco mais s suas ideias do que a prpria cristandade primitiva,

    so as prticas, os comportamentos, a igualdade de gneros, e at mesmo as convices e as

  • 21

    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    construes estticas da riqussima experincia dos Shakers nos EUA, durante, inclusive, a prpria

    vida de Veblen. O modelo idealizado por Veblen como o representativo do estgio histrico

    cultural inicial da humanidade (e qui o prospectivo), que veremos no captulo 2, pacfico,

    produtivo, cooperativo, no androcrtico, acolhedor dos progressos cientficos e tecnolgicos, etc.,

    encontrou na experincia dos Shakers, nos EUA, uma clara materializao, e que se prolongou por

    muitas dcadas.

    Um conhecido intrprete de Veblen, Louis Patsouras, um dos poucos, ou mesmo o nico, que

    chegou a perceber a importncia dos Shakers para uma parte importante da obra de Veblen,

    especialmente a importncia do feminismo em Veblen, conforme veremos igualmente no captulo 2.

    Em 2004, Patsouras, em seu livro Thorstein Veblen and the American Way of Life, afirma: Nas

    propostas socialistas utpicas do sculo XIX, a igualdade de gneros, por exemplo, era uma das

    maiores preocupaes. Os Shakers, fundados por Anne Lee Stanley, que acreditavam que Deus era

    tanto um homem como uma mulher, praticavam uma vida comunitria, com distribuio equitativa

    da produo, baseados em uma igualdade sexual. (Patsouras, 2004, 190)

    Outra linha de argumentao inicial sobre a importncia tnica na obra de Veblen proveio do

    igualitarismo democrtico da cultura nrdica, de ampla e longnqua tradio. O respeito pelas

    mulheres nestas tradies nrdicas, e as constantes crticas de Veblen ao patriarcalismo e

    submisso das mulheres de sua poca e de pocas passadas, foi lembrado tambm como uma das

    razes pelas quais Veblen tanto apreo possua por Hendrik Ibsen e Bjrnstjerne Bjrnson, apreo

    este que se encontra em inmeras passagens de sua obra. O feminismo e o igualitarismo de Ibsen

    (e.g., Casa de Bonecas - Et Dukkehjem), de Bjrnson, e da cultura nrdica como um todo, ecoam

    claramente na obra de Veblen. Ademais, a conhecida pea de Ibsen, Um Inimigo do Povo (En

    Folkenfiende), pode ser tambm uma excelente porta de entrada para compreender um pouco o

    esprito nrdico que veste parte da mente e da personalidade de Veblen, e mesmo de sua prpria

    obra; no causa espanto algum perceber no Dr.Thomas Stockmann, um dos personagens principais

    desta pea de Ibsen, um virtual Dr. Veblen. ...

    (ltimo dilogo de Um Inimigo do Povo):

    Dr. Stockmann psiu! Mas no digam por enquanto nada a ningum, porque eu fiz uma (outra)

    grande descoberta.

    Sra. Stockmann Mais uma?

    Dr.Stockmann Sim, mais uma! Ouam (todos) com ateno o que lhes vou dizer: o homem mais

    poderoso que h no mundo o que est mais s. ...

    Um Inimigo do Povo, de Ibsen, uma obra prima sobre a maneira como um indivduo bem

    intencionado, honesto e competente, pode ser esmagado pelas instituies e pela mediocridade

    humana; descreve a quase que total falncia de um indivduo (correto) diante da unanimidade

    estpida, parva e atoleimada das massas. Mesmo diante da vontade de praticar o bem comum, Dr.

    Stockmann entra em choque com os interesses mesquinhos de sua cidade. Vtima da maioria e da

    unanimidade cega e estpida, o homem que queria salvar a cidade torna-se, contraditoriamente, um

    inimigo do povo. A pea uma impiedosa crtica s elites corruptas, aos governos, aos partidos, e,

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    em ltima instncia, ao pensamento nico aparvalhado. (q.v. Ibsen, Um Inimigo do Povo, edio

    L&PM, 2003)

    Vrias outras correlaes foram feitas e publicadas acerca da influncia da etnicidade nrdica na

    obra de Veblen. George Fredrickson (1953), argumentou que os valores de liberdade e

    independncia dos fazendeiros noruegueses proprietrios de terras, ecoam por toda a obra de

    Veblen, e que o faz um verdadeiro Viking nmade. (like a Viking wanderer). Jonathan Schwartz,

    1990, relaciona a importncia do trabalho eficaz, diligente, atencioso e produtivo (workmanship),

    como uma destas expresses da formao cultural de Veblen. Bartley e Yoneda exploraram a

    importncia da cultura islandesa para Veblen, a partir dos fortes laos de amizade que Veblen

    possua com a comunidade islandesa de Washington Island, onde Veblen passou, por c. 30 anos

    (1896 a 1926), muitas de suas frias e de seus momentos de lazer. Rick Tilman enfatizou vrios

    aspectos desta influncia tnica, especialmente a importncia dos laos familiares dos veblens; e

    tantos outros.

    O interesse de Veblen pelas suas origens tnicas nrdicas tambm est retratado, sabidamente, em

    sua extensa obra, em suas aulas, e em seus momentos de lazer. Relatos de ex-alunos indicam que

    Veblen fazia referncia sistemtica histria e pr-histria das culturas escandinavas para ilustrar

    argumentos. O seu curso principal (Economic Factors in Civilization) cobria igualmente um arco

    significativo de fontes nrdicas. Em 9 de seus 11 livros Veblen faz referncia a fontes e temas

    nrdicos. E mais: (i) a sua considerada excelente traduo da famosa saga islandesa, The Laxadaela

    Saga, e em especial a sua Introduo para a edio de 1925; (ii) as suas frequentes idas

    comunidade islandesa de Washington Island, por mais de 30 anos, e onde construiu ele prprio duas

    cabanas e seus mveis; (iii) as suas viagens Europa para visitar museus, locais e/ou intelectuais

    vinculados aos interesses da cultura nrdica, como por exemplo William Morris, et al.; (iv) a sua

    ajuda a Rasmus Bjrn Anderson na traduo de vrios itens da literatura norueguesa; (v) o seu

    ativismo poltico, em Yale, na divulgao de Ibsen; etc., so exemplos conspcuos desta sua direta e

    atvica vinculao com a cultura e a tradio escandinava.

    Atualmente, h uma espcie de consenso entre os principais intrpretes de Veblen, acerca da

    expressiva importncia tnica em sua formao e em sua obra. O exemplo de uma bem sucedida

    cooperao familiar, as virtudes do trabalho diligente, a nfase na educao e na prudncia, a

    prioridade de sustentar a vida mais do que ganhar lucros, e tantos outros aspectos que esto

    relacionados tica e tradio das culturas nrdicas, da commonwealth nrdica, no foram

    esquecidas ou abandonadas por Veblen. Muito pelo contrrio. Estes elementos desta herana

    cultural, e tantos outros, podem ser facilmente identificados nos escritos de Veblen sobre o

    trabalho eficaz e pacfico em oposio predao e competio; no coletivismo versus o

    individualismo, na repugnncia ao desperdcio e ostentao; na busca do livre conhecimento

    versus o obscurantismo, no respeito s mulheres.

    Pode ser sugerido, ainda, que nas inmeras apresentaes de Veblen sobre o trabalho eficaz e

    pacfico, sobre a mutualidade e cooperao, e sobre o igualitarismo, caractersticas dos perodos

    iniciais da repblica islandesa, antes de sua decadncia e colapso final para um sistema mais

    predatrio, h uma insinuao da sociedade ideal de Veblen, e que est incrustada em sua

    etnicidade (ver captulo 2 adiante). Existem tambm fortes evidncias da validade deste argumento

    fora da prpria literatura relacionada a Veblen, pois Piotr Kropotkin, por exemplo, que no foi um

  • 23

    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    especialista na vida ou na obra de Veblen, em Mutual Aid. A Factor of Evolution, 1902, desenvolve

    argumentos bem prximos a esta ideal comunidade vebleniana, invocando, precisamente, as

    comunidades islandesas antigas.

    Deve-se notar, entretanto, para efeitos de uma pequena correo ou complementao, que o modelo

    de organizao social, cooperativa, justa, cientfica e tecnicamente desenvolvida e harmoniosa que

    Veblen perece ter indicado, de forma subjacente, em toda a sua obra, deve ser buscado, tambm,

    como dissemos anteriormente, nas linhas e nas indicaes do famoso best seller de Edward

    Bellamy, Looking Backward, de 1888, que tanta importncia possui para toda esta reflexo e para a

    prpria formao de Veblen.

    A Obra de Veblen Retrica ou Cubismo - Caractersticas Gerais

    Muito j se falou sobre a retrica de Veblen. Infelizmente, so poucos os comentrios construtivos

    e relevantes feitos sobre esta retrica. Diversos comentrios feitos sobre a forma escrita como

    Veblen apresenta seus argumentos, desde seus primeiros trabalhos, so, muitas vezes, comentrios

    travestidos de avaliaes literrias isentas, mas que, no fundo, podem ser identificados como um

    estratagema de criticar a obra e os conceitos de Veblen em si, mais do que propriamente uma crtica

    sua, digamos, esttica literria. Incluem-se aqui, tambm, os que afirmam que a obra de Veblen

    difcil de ser compreendida porque est eivada de ironia e stira, e fica difcil, ento, perceber o que

    srio e o que no srio nas linhas e nos pargrafos escritos por Veblen.

    Ora, parece claro que esta ltima posio provm de pessoas que no leram, de Veblen, nada mais

    alm do que alguns pargrafos ou captulos de seu primeiro livro, The Theory of the Leisure Class

    (1899), que contm, certo, algumas passagens claramente irnicas. Os que afirmam esta ubqua

    presena da ironia e da stira na obra de Veblen, concluo que no passaram, ento, na melhor das

    hipteses, do primeiro dos onze livros de Veblen; no leram a maioria de seus 75 artigos; no leram

    a maioria dos 54 book reviews que Veblen publicou; e complementaria: no leram, tambm, a

    Introduo The Laxadaela Saga. S para exemplificar, o terceiro livro de Veblen, o livro que ele

    considerava, inclusive, o seu mais importante livro, no contm, pelo menos em minhas anotaes,

    assertivas irnicas ou satricas significativas. O seu segundo livro, um dos livros mais importantes

    de economia do sculo XX, possui, unicamente, quatro pequenas construes irnicas, e, mesmo

    assim, so frases irnicas, sim, mas que apenas esto presentes na construo para sustentar o

    argumento central; logo, podemos claramente, se quisermos, ignorar as assertivas irnicas e

    concordar (ou no) com a argumentao central, que normalmente est bem clara. Em suma, o meu

    argumento neste pargrafo duplo: (i) a obra de Veblen, como um todo, no uma obra irnica ou

    satrica; embora certas (poucas) passagens sejam efetivamente irnicas ou satricas; e (ii) estas

    pequenssimas passagens irnicas ou satricas podem ser eliminadas dos argumentos centrais, pois

    no os invalidam.

    Mas h outro conjunto de comentrios sobre o estilo literrio de Veblen, e que um pouco mais

    complicado de se avaliar, que provm de pessoas que parece que no entenderam bem o que

    estavam lendo, e a soluo de contorno mais simples, ento, nestes casos, para estas pessoas, e para

    no ficar claro que elas no estavam entendendo muito bem o que estavam lendo, afirmar que a

    retrica de Veblen um dos obstculos para o entendimento do que Veblen estava explicando.

    Normalmente, esta estratgia funciona bem, e se dissemina com eficcia, pois esta dificuldade

  • 24

    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    prescritiva e decretada por algum, ainda mais se este algum reputado, serve de bom argumento

    para algumas pessoas continuarem contentes com o seu benchmark anortico de leitura, e poder

    com isto, em certos crculos, repetir que Veblen muito complexo ou boring pois a sua retrica

    insuportvel.

    Por outro lado, para outras pessoas, curiosamente, a leitura de Veblen era um agradvel lazer e

    passatempo. Albert Einstein, por exemplo, que, como todos sabemos, no era especialista em

    sociologia ou em economia, (embora os economistas atuais, como um todo, estejam vivendo bem

    prximos dos universos tericos e cosmolgicos de Einstein), no s conseguia ler Veblen

    facilmente, como achava a sua prosa uma das poucas que valiam a pena para entret-lo.

    Eu devo inumerveis horas felizes pela leitura dos trabalhos de Bertrand Russell, algo que no

    posso dizer de nenhum outro escritor cientfico moderno, com exceo de Thorstein Veblen. (A.

    Einstein, 1944, in Shupp P.A.)

    O que me proponho neste item, entretanto, e em poucos pargrafos, algo mais construtivo.

    Tentarei demonstrar, em geral, que a forma, o estilo, a retrica de Veblen, encontra-se

    perfeitamente adequada e coerente com as suas teorias. E mais, tentarei demonstrar adiante que

    somente aqueles que compreenderem corretamente o esquema central de Veblen, encontram-se

    aptos a compreender as razes pelas quais Veblen exps as suas teorias e pensamentos da maneira

    como o fez.

    As teorias de Veblen so, muitas vezes, complexas, difceis e originais. E mais ainda, algumas

    teorias de Veblen possuem tamanha complexidade, que uma das maneiras que Veblen encontrou

    para tentar explic-las (linearmente, em prosa) seria format-las, precisamente, com uma linguagem

    que pudesse, minimamente, explicar o contedo de seus argumentos sem perder a complexidade

    dos mesmos. Porm, o fato de uma teoria social e econmica (ou de qualquer outra disciplina) ser

    complexa, difcil e original, no deve invalidar a busca de sua compreenso plena; e, em minha

    opinio, Veblen apresenta, com a sua linguagem ou com a sua retrica, perfeitamente os tpicos

    relevantes de seus argumentos centrais, de seu esquema central, de suas proposies centrais.

    Uma das dificuldades inerentes compreenso dos conceitos de Veblen diz respeito quantidade

    significativa de fontes e temas que ele utiliza, quase que ao mesmo tempo. Como vimos acima, nas

    palavras de Lerner

    To agudamente sentiu Veblen a necessidade de construir um arete para derrubar os muros de

    sua oposio, que ele tornou-se, cada vez mais, repetitivo e longnquo, e tentava, a todo o

    momento, expor tudo de uma s vez. (Lerner, 1948, 31)

    Outra caracterstica importantssima de sua obra e de sua esttica, e que est diretamente

    relacionada s suas prprias teorias, o uso polissmico e cubista que ele faz, recorrentemente, de

    certas palavras, expresses ou locues, ao longo de toda a narrativa. Esta uma das caractersticas

    mais relevantes de sua esttica, e uma das caractersticas que mais dificuldade oferece a um

    entendimento firme e no paradoxal de certos conceitos veblenianos. Mas Veblen no procede

    assim por diletantismo, por diverso, ou para afetar os mais elevados centros cerebrais de algum

    (como este algum certa vez afirmou); mas sim por necessidade; pois Veblen leva a srio a sua

  • 25

    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    orientao evolucionista e a sua viso biolgica e psicolgica complexa do homem e das

    sociedades.

    Veblen utiliza polissemicamente e sinedoquicamente certas palavras e expresses em suas obras

    exatamente para tentar demonstrar para o leitor/pesquisador, que ele precisa renegar,

    conspicuamente, os significados taxonmicos da linguagem moderna (fortemente influenciada pela

    Gramtica de Port Royal, que busca sempre atribuir um significado nico e preciso, lgico e

    racional para cada significante). Veblen no chega a ostentar em sua obra uma tendncia para o

    simbolismo em suas assertivas e narrativas, mas pretende, claramente, em algumas passagens e

    conceitos, mormente os mais importantes de suas teorias, deixar evidente que as palavras escritas,

    como significantes de uma lngua, no podem ou no conseguem, obrigatoriamente, cobrir, com um

    nico significado, o que a vida, o fato social, o comportamento ou a psique de um indivduo requer

    para uma explicao avanada e coerente.

    Veblen talvez tenha sido o primeiro terico social e economista (e talvez o nico at o momento)

    que fez uso de certas palavras com sentido polissmico, sinedquico e cubista exatamente para

    expressar uma complexidade conceitual que normalmente est associada, em sua obra, a

    fundamentos biolgicos ou psicolgicos. As palavras para Veblen, assim, muitas vezes, parecem ser

    expresses artsticas plsticas; especificamente expresses plsticas da corrente artstica cubista do

    sculo XX. Para o cubismo, que entendido como a arte da simultaneidade, os objetos precisam

    ser vistos de forma relativa, isto , sob vrios pontos de vista, sendo que nenhum deles possui

    autoridade exclusiva de viso sobre os demais. E ao dissecar objetos, os v simultaneamente, por

    todos os lados; por cima e por baixo; por dentro e por fora. Nenhum ngulo dominante ou superior

    aos demais. O cubismo tambm a arte da sindoque, pois transmite ao apreciador somente parte

    do todo que quer retratar, mas esta parte, para o espectador, suficiente, ou deve ser suficiente, para

    a apreenso e compreenso do todo.

    importante informar tambm, que Veblen empreendia este procedimento de abordar

    sinedoquicamente ou cubisticamente uma srie de palavras e expresses, e com muita facilidade e

    tranquilidade, pois ele conseguia ler, ao mesmo tempo, duas colunas de um livro ou de um jornal.

    Ademais, as palavras para Veblen, alm do citado acima, possuam pesos semnticos. (ver captulo

    3)

    Por exemplo, quando Veblen explica o conceito de instinct of sportsmanship em sua obra, como

    sendo uma variante do instinct of workmanship (q.v. captulo 4), o radical sport, sports, ou

    sporty da expresso sportsmanship informa, para a sua teoria e para os leitores, uma srie de

    significados, todos eles perfeitamente coerentes e necessrios para o que Veblen pretende

    efetivamente explicar como sportsmanship. Neste caso, no mnimo, sete significados (ao mesmo

    tempo) so importantes para Veblen, e em uma ordem que depende do que ele quer ressaltar em

    cada frase ou ideia. Ou seja, em certos contextos ele utiliza um ou dois significados

    preferencialmente, em outros momentos utiliza outros significados. Entretanto, no conjunto, todos

    so relevantes. (ver com ateno Figura 1.1).

    Apenas para um exemplo adicional, a palavra leisure (associada leisure class) em Veblen, to

    importante e ubiquamente utilizada em sua obra, presente no ttulo de seu mais famoso livro,

    normalmente traduzida, em vrias lnguas, com o sentido de ociosidade (portugus e espanhol

  • 26

    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    e.g.), ou lazer (em francs loisir), ou fina, delicada, elegante, distinta, esnobe (em alemo feinen),

    ou confortvel, abastada, rica (em italiano agiata), ou livre do trabalho (como em noruegus Den

    arbeitsfrie klasse), etc.

    Na realidade, Veblen no intencionava conceituar estas pessoas ou classes como ociosas, pois se

    assim quisesse, teria escrito idle Class, como est em toda a obra de Edward Bellamy, que tanto

    influenciou Veblen, conforme vimos acima. Veblen foi inclusive bem claro, em 1899, ao afirmar

    que leisure, para ele, no estava diretamente associado indolncia ou ociosidade tout court ...

    ... o termo cio (leisure) no significa, aqui, indolncia ou inatividade. Significa tempo

    (despendido) em atividade no produtiva, tanto pelo sentimento de indignidade do trabalho;

    quanto para demonstrar a capacidade pecuniria de viver uma vida inativa. (Veblen, 1899a, 24)

    Para Veblen, leisure era uma destas palavras sinedquicas ou cubistas, cujo conjunto de

    significados, para ele, cobria vrias caractersticas, sendo que as mais complexas e desconhecidas

    eram as que, muitas vezes, mais lhe convinha. Por exemplo, leisure significa claramente lazer,

    folga, no ocupao em trabalho de serventia, sem pressa, ocioso, livre de responsabilidades ou

    deveres, etc. Entretanto, acredito que muitas pessoas no perceberam que leisure possui mais trs

    significados importantssimos e que Veblen deu nfase, precisamente, nestes trs significados

    adicionais: (1) pessoa(s) que vive(m) de rendas (que em outras partes de sua obra ele designou por

    anonymous pensioners; (2.1) proveniente do latim licre, e do francs antigo leisir (pessoas que

    podem fazer qualquer coisa porque tudo permitido); e (2.2) do latim tardio allaudre e do ingls

    medieval allouren, (pessoas que so elogiadas e invejadas). Leisure se aplica tambm a coisas que

    no tm utilidade. Os que possuem conhecimentos das teorias de Veblen, mesmo que nfimos,

    podem aqui rapidamente concluir como estes ltimos trs significados so importantes para

    compreender uma simples palavra e a sua prpria teoria.

    Figura 1.1

    Assim sendo, muitas palavras e expresses que Veblen utiliza em suas teorias precisam ser

    decodificadas ou compreendidas com ateno; outras vezes, com muita ateno, pois a sua obra,

    como um todo, extremamente workmanlike, ou seja, hbil e atenciosamente construda. Suas

    pginas eram lidas e relidas, feitas e refeitas inmeras vezes por ele antes de irem para a publicao.

  • 27

    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    Outra caracterstica do uso de certas expresses e palavras por Veblen, e que tambm pouco

    compreendido, a escolha dos significados das palavras que Veblen fazia. extremamente comum

    na obra de Veblen o uso do(s) significado(s) mais longnquo(s) de certas palavras, dos

    aparentemente mais simples e diretos. Os prprios alunos de Veblen, em muitas ocasies,

    comentavam com Veblen que ele havia falado, em ingls, uma palavra que no existia. Veblen

    sorria, e continuava. Dias depois este aluno voltava cabisbaixo aps ter descoberto que a tal palavra

    que Veblen citou provinha do ingls medieval, que ningum mais utilizava.

    Uma consequncia enorme do exposto acima para a obra de Veblen, sobre este uso polissmico,

    sinedquico e cubista de certas palavras para expressar conceitos complexos, a idntica

    dificuldade que muitas pessoas tm em entender que inmeras dicotomias e dualidades de sua

    obra (e a sua obra est repleta destas dicotomias), no so dicotomias plenas e simples (A ou B).

    So, de fato, antinomias. (A e B) (ao mesmo tempo). E por esta razo que inmeros intrpretes e

    leitores apressados de Veblen, perdem-se, ou confundem-se com os muitos (aparentemente)

    paradoxos ou contradies contidos na obra de Veblen. muito comum certos intrpretes

    perceberem que Veblen afirma algo em uma frase com um sentido X, e logo adiante, afirma este

    mesmo algo com um sentido `Y (parcialmente distinto de X); e acham que Veblen est

    confuso ou contraditrio. No h nenhuma confuso ou contradio vebleniana, e nem sequer

    Veblen deseja que as pessoas fiquem confusas. O que ocorre, simplesmente, que Veblen utiliza,

    muitas vezes, antinomias, onde ns lemos apenas dicotomias. Alis, quem procede desta maneira,

    em quase toda a sua obra, ou pelo menos em seus conceitos importantes, Immanuel Kant; e como

    Veblen bebeu em fontes kantianas desde o seu doutorado, supe-se, portanto, que este uso de

    antinomias de Veblen tenha sido herdado, tambm, de Kant.

    Mas no sejamos apressados nesta concluso, pois o raciocnio antinmico de Veblen um pouco

    mais complexo ainda. Ou seja, h uma complicao adicional. A complicao adicional que

    Veblen utiliza suas dualidades como antinomias especiais retiradas de um pensamento

    evolucionrio/biolgico. Algumas importantes antinomias de Veblen, inclusive a principal de sua

    obra, conforme veremos, resolvem-se no como (A e B) (ao mesmo tempo), como nas antinomias

    normais, mas resolve-se biologicamente como (A e B), sendo B derivado, muitas vezes, do

    prprio A, ou seja, B sendo uma metamorfose, ou mutao, ou manifestao do prprio A em novas

    circunstncias. como se (A e B) seja, na realidade, (A e ). por esta razo, por exemplo, que

    muitos leitores de Veblen, at mesmo os mais bem intencionados, no conseguem concluir se na

    teoria de Veblen os Instintos so mais importantes do que as Instituies, ou se so estas ltimas

    mais importantes do que os Instintos. A explicao de Veblen sobre este impasse bem simples

    e, ao mesmo tempo, pouco simples! (ou seja, igualmente uma explicao antinmica).

    Finalmente, uma ltima observao sobre a obra de Veblen como um todo: existem vrios nveis de

    compreenso de suas teorias e conceitos. Muitos de seus conceitos podem ser compreendidos em

    um plano relativamente simples, como por exemplo o seu conceito de consumo conspcuo, que

    relativamente fcil de compreender, isto , de compreender em um plano simples; mas este mesmo

    conceito pode ser compreendido como algo mais complexo e sofisticado (ver captulo 2 por

    exemplo). Esta caracterstica da obra de Veblen, de possuir vrios nveis de dificuldades, digamos

    assim, facilita bastante a compreenso geral de suas ideias, mas, se esta compreenso verificar-se

    unicamente na superfcie deste entendimento, muitos outros pontos so perdidos. Neste livro, tentei

    alcanar todas as possibilidades de entendimento vislumbradas dos principais conceitos de Veblen.

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    Ncleo e a Estrutura da Obra de Veblen Correspondncias com os

    Captulos deste Livro

    A Figura 1.2 indica, detalhadamente, o ncleo importante da obra de Veblen (livros e artigos

    principais), e as correspondncias com os captulos deste livro. Por exemplo, os temas tratados em

    The Theory of the Leisure Class, conectados com os artigos Some Neglected Points in the Theory of

    Socialism; The Theory of Womans Dress; The Instinct of Workmanship and the Irksomeness of

    Labor, e The Barbarian Status of Women, esto tratados, neste livro, nos captulos 1,2,3,4 e 5. Isto

    no significa, entretanto, que certos temas no estejam presentes, igualmente, em outros captulos

    de livros ou artigos de Veblen, at mesmo pelo que foi exposto em pargrafo anterior, sobre o uso

    sinedquico de alguns de seus conceitos principais. A Figura 1.2 deve ser compreendida, tambm,

    como possuindo duas amplas colunas verticais e uma centralidade. Uma ampla coluna vertical

    esquerda, que orienta o grande tema de Veblen Business; e uma ampla coluna vertical direita,

    que orienta o seu outro grande tema, Industry, cuja sizgia encontra-se no centro da Figura, entre

    Business e Industry, e que desgua em seu livro The Engineers and the Price System, de 1921.

    A listagem da obra completa de Veblen, encontra-se no final deste livro.

    Sumrio Biogrfico de Thorstein Veblen - De Tosten a Thorstein

    Thorstein Bunde Veblen nasceu em 30 de julho de 1857, em Valders, Municpio de Cato, Distrito

    de Manitowoc, Wisconsin, e tomou o nome de Tosten Bunde Anderson, embora no censo de

    Manitowoc, Cato, WI, ele estivesse listado com o nome de Terson Anderson pgina 84, famlia

    590, sexo M idade 3 anos. Tosten tomou o nome de seu av materno (Thorstein Bunde), que morreu

    aos 35 anos deixando sua filha Kari rf de 5 anos. O primeiro nome de Veblen (Tosten) foi

    germanizado para Thorstein em meados de 1870, um pouco antes de ele entrar para o Carleton

    College; e faleceu em 3 de agosto de 1929, prximo a Menlo Park, Califrnia, em sua pequena casa

    no bosque, com sua filha adotiva Becky, de sua segunda esposa, que o tratava carinhosamente por

    Toyse.

    Os primeiros 8 anos de idade Veblen passa, portanto, na fazenda de seus pais, em Valders,

    Manitowoc, Wisconsin.

    Em 1865, quando Tosten tinha 8 anos de idade, a famlia Veblen (Veflen) mudou-se de sua fazenda

    em Cato, Wisconsin, mais para o oeste, indo para uma nova fazenda em Wheeling, perto de

    Nerstrand, Rice County, Minnesota (adjacente ao que hoje Nerstrand Big Woods State Park).

    Esta fazenda dos Veblens em Nerstrand existe at hoje, sendo que a casa sede um dos principais

    locais tursticos do municpio.

    Tosten Veblen viveu em Nerstrand dos 8 aos 17 anos, quando ento enviado por seu pai, junto

    com a sua irm Emily, para estudar no Carleton College (Preparatory School) (Northfield), cerca de

    10 milhas de sua fazenda. Thomas Veblen, seu pai, construiu, ele prprio, a casa/cabana prxima de

    Carleton, onde os dois irmos iriam morar, estudar e descansar.

    Veblen frequentou 6 anos o Carleton College. Dado a sua genialidade e precocidade intelectual,

    Veblen completou os dois perodos de 4 anos normais, para cada ciclo, em apenas 3 anos, cada

    ciclo, ganhando, inclusive, o prmio The Atkins (Athens) Prize de $80 pela melhor monografia de

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    Thorstein Veblen O Terico da Economia Moderna Murillo Cruz

    entrada para o College. (O seu irmo mais velho, Andrew, ganhou igualmente este prmio). Sua

    monografia de graduao, em 1880, teve o ttulo de Mills Examination of Hamiltons Philosophy of

    the Conditioned. Em Carleton, Veblen rapidamente sobressaiu-se, e foi considerado o mais

    brilhante aluno que o College havia graduado. pelo menos, um de seus professores afirmou que

    Veblen foi o mais brilhante aluno de Carleton College. (Joergensen, 1999, 21)

    A partir de Carleton College, Thorstein segue seus estudos na John Hopkins e na Universidade de

    Yale. Em John Hopkins Veblen possua, inicialmente, grande interesse por Filosofia e Lgica,

    seguindo os cursos de filosofia grega, tica, Kant, e o curso de Lgica Elementar fornecido pelo

    renomado Charles Peirce. Entretanto, aps um curso de economia poltica feito com o conhecido

    Prof. Richard Ely, Veblen assumir interesse pela disciplina, tentando, inclusive, obter uma bolsa de

    estudo com a monografia J.S.Mill Theory of the Taxation of Land. Veblen no consegue esta bolsa

    de estudo, e segue ento para Yale, onde obteve o seu doutorado (Ph.D) em filosofia, em 1884, com

    uma tese sobre Spencer e a terceira crtica de Kant, de 1790, A Crtica da Faculdade do Juzo, tese

    intitulada