Tonet, Ivo - Ed., Cidadania e Emancipação Humana (1)

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    IVO TONET

    EDUCAO, CIDADANIA E EMANCIPAO HUMANA

    Para Ivan e Mariana

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    SUMRIO

    PREFCIO..................................................................................................................................INTRODUO...........................................................................................................................

    CAPTULO I -A QUESTO DOS FUNDAMENTOS.............................................................

    1.1. Da centralidade da objetividade centralidade da subjetividade .......................................

    1.2. A centralidade da subjetividade na atualidade: formas e conseqncias ...........................

    1.3. Resgate e reformulao da centralidade da objetividade e superao da

    unilateralidade das perspectivas anteriores.........................................................................

    CAPTULO II -A CRTICA DA CIDADANIA ........................................................................

    2.1. A cidadania na tica liberal ................................................................................................

    2.2. A cidadania e a esquerda democrtica................................................................................

    2.3. A crtica marxiana da cidadania .........................................................................................

    CAPTULOIII- A EMANCIPAO HUMANA NA PERSPECTIVA

    MARXIANA ....................................................................................................

    3.1.

    Questes preliminares.........................................................................................................

    3.2. Trabalho e emancipao humana .......................................................................................

    3.3. A humanidade emancipada.................................................................................................

    3.3.1. Condies ontolgicas de possibilidade..........................................................................

    3.3.2. Condies histrico-estruturais de possibilidade ............................................................

    3.3.3. A essncia da emancipao humana................................................................................

    CAPTULO IV -EDUCAO E EMANCIPAO HUMANA..............................................4.1.Questes preliminares............................................................................................................

    4.2.Educao e emancipao humana .........................................................................................

    4.2.1. Origem e natureza da educao.......................................................................................

    4.2.2. Requisitos para uma atividade educativa emancipadora .................................................

    CONCLUSO.............................................................................................................................

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..........................................................................................................................................................................................................................................................................

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    PREFCIO

    O livro com que Ivo Tonet brinda o pblico leitor , antes de tudo, um empenho

    intelectual, no sentido em que Marx indicava como sendo realmente importante para a Filosofia

    do nosso tempo: contribuir para o conhecimento e a conduo do movimento do real no sentido

    da autoconstruo da humanidade emancipada. Assim, o trabalho de Ivo Tonet, alm de ser uma

    obra de Antropologia Filosfica e Filosofia da Educao, sustentada num conhecimento

    profundo das obras de Marx e Lukcs, uma interveno poltica no debate em curso no pas,

    incidindo e contestando com fora e veemncia alguns dos sensos comuns gestados nas

    discusses sobre polticas pblicas e, particularmente, sobre educao.

    A estratgia da cidadania e da ampliao dos direitos para se alcanar a justia

    social comeou sua trajetria no final dos anos 50 do sculo passado. A reciclagem do

    stalinismo por meio da adoo da chamada via democrtica, a renncia formal do objetivo

    socialista por parte da social-democracia alem e a retomada do liberalismo-democrtico,

    ancorado no pensamento de Tocqueville, estavam a demonstrar os limites ideolgicos do

    movimento operrio e do marxismo ento vigentes, com sua incapacidade de encabear uma

    reforma moral e intelectual, na acepo que Gramsci dava a essa expresso, que criasse as

    condies para a superao da ordem social regida pelo capital. O resultado que os temas da

    cidadania e da democracia, aos poucos, ocuparam o centro das preocupaes terico-prticas daintelectualidade identificada com o progresso social e humano, sendo essa a expresso da

    subalternidade em relao alta cultura liberal-burguesa.

    A chamada via democrtica ao socialismo, cedo mostrou ser um beco cuja sada

    no era outra que a adoo de uma variante de reformismo. Esforos criativos como foi o

    eurocomunismo tampouco obtiveram qualquer sucesso, de modo que, nos anos 80, o declnio

    do movimento originado na esteira da revoluo russa e contaminado pela regresso terica que

    seseguiu morte de Lnin, encontrava-se sem qualquer norte estratgico. A desintegrao daURSS foi oportunidade para que a idia de uma nova esquerda democrtica ou de um

    socialismo-democrtico ganhasse forma, ancorado numa ideologia claramente subsumida a

    liberal-democracia neocontratualista. A estratgia dos direitos democrticos e de cidadania se

    espraiou a partir da vertente social-democrata, tanto para a liberal-democracia como para a

    concepo originada da via democrtica, mas seus limites ficaram patentes diante da

    impotncia em fazer frente ao avano triunfal do neoliberalismo conservador.

    A resistncia democrtica a ditadura militar no Brasil deu-se dentro dessecontexto cultural, que atribua importncia primordial s chamadas polticas pblicas, entre as

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    quais a educao, tendo contribudo no s para a institucionalizao da Cincia Poltica,

    como para a grande difuso do Servio Social e da Educao, como campos de reflexo e

    atuao poltica e profissional. Diante da esclerose da tradio marxista cristalizada no sculo

    XX e a incapacidade (ou impossibilidade) de seus lampejos mais crticos se consubstanciaremnum movimento de concreo emancipatria, a massa de intelectuais que se formou no ltimo

    quarto de sculo se deslocou e foi orientada pela concepo terica nucleada nos preceitos de

    cidadania e democracia. Assim, as lutas pela democratizao da vida social e poltica no Brasil

    vm sendo conduzidas por uma concepo terica lastreada no conceito de cidadania, em tal

    medida a quase se tornar um senso comum, particularmente veiculado no campo da Educao.

    Dentro desse permetro as concepes so complexas e variadas, mas podem,

    numa primeira aproximao, serem repartidas em duas grandes vertentes. H aqueles que

    pensam que a questo do socialismo sempre foi uma iluso mais ou menos perigosa para a

    liberdade ou ento um problema superado pelo prprio desenvolvimento histrico do

    capitalismo. Entre esses se encontram os liberais, os social-democratas e a esquerda democrtica

    (pelo menos, em grande medida), para os quais o problema do vinculo cidadania/democracia se

    encerra em si mesmo, como horizonte possvel da humanidade, j que a ordem do capital parece

    intransponvel.

    Para outros, porm, que declaram uma postura antagnica iniqidade da ordem

    social, o vnculo cidadania/democracia pode constituir uma estratgia de superao da ordem do

    capital, em cujo caso ocorre um deslocamento do problema para o saber qual seria a relao

    existente entre cidadania e socialismo e entre cidadania e emancipao humana. A tendncia

    dessa vertente postular um valor universal para a cidadania e democracia liberais, que

    deveriam, portanto, se verem preservadas e ampliadas no socialismo. Seria o caso de interrogar

    se essa segunda vertente no se encontra irremediavelmente subsumida primeira, ou, como faz

    Ivo Tonet, no o caso de mostrar como a estratgia da cidadania ontologicamente incapaz de

    levar os homens emancipao e liberdade. Ou melhor, a noo e a estratgia da cidadania

    compem uma certa viso de liberdade, determinada e limitada historicamente.

    A noo de cidadania, conforme a construo terica do liberalismo, pressupe uma

    viso positiva do Estado poltico, no mais das vezes entendido como forma de ordenao e

    refreamento da natureza humana, egosta e destrutiva. Nesse contexto, o cidado o individuo

    privado que se v representado no Estado, do qual sdito. A liberdade e a igualdade se

    manifestam na subjetiva dimenso poltico-jurdica, o que no contradita a desigualdade social,

    tida como insuprimvel. Assim, a prpria noo de cidadania deriva de uma insupervel cisoentre a esfera privada e a dimenso pblica que o homem projeta. O predomnio da subjetividade

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    se comprova na importncia dada ao homem no papel de agente do conhecimento do

    mundo natural. O predomnio da subjetividade encontrou seu apogeu na poca da revoluo

    burguesa e na filosofia clssica alem.

    A moderna teoria democrtica, herdeira do liberalismo clssico, parte tambm doindividuo autocentrado dentro de uma comunidade poltico-jurdica. Ainda que insista na

    obteno da justia, aquilo que a moderna teoria poltica fundamentada no liberalismo, e que

    prope a centralidade do vnculo cidadania/democracia, apontando esse como sendo o caminho

    da liberdade, apenas exacerba a esfera da subjetividade, ou seja, da poltica e do direito.

    precisamente essa viso terica que tem informado parte significativa da esquerda brasileira no

    seu esforo de resistir ao neoliberalismo e alcanar uma ordem mais justa e democrtica. No se

    pode deixar de apontar que a idia do resgate da cidadania, da construo da cidadania, vem

    acoplada a idia de fortalecimento da sociedade civil, freqentemente vista como um todo

    indiferenciado que se ope ao Estado. Aqui ocorre uma mera inverso do liberalismo clssico,

    passando o Estado a ser um ente opressivo em relao a uma sociedade civil virtuosa.

    Mas j no momento mesmo de coroao da revoluo burguesa, Marx estabeleceu

    uma ruptura radical com a tradio cultural e filosfica do Ocidente, alcanando um novo

    patamar e avistando um outro continente cientfico. Marx ultrapassou tanto a viso teolgica de

    predomnio a-histrico da objetividade do ser, quanto o predomnio da subjetividade subjacente

    noo de natureza humana, na verdade duas perspectivas voltadas para a mesma realidade.

    Ao historicizar tanto a natureza quanto o homem social, Marx reformula a categoria de

    objetividade, descobrindo no trabalho humano o vnculo indissocivel entre sujeito e objeto do

    conhecimento, entre subjetividade e objetividade, fundando assim uma filosofia da prxis.

    Com esse pressuposto da natureza histrico social do homem que se constri a partir

    da interao com o ambiente por meio do processo de trabalho, o problema da cidadania s pode

    ser compreendida como sendo parte de uma questo mais ampla que a da emancipao

    poltica. Para Marx, a poltica uma dimenso negativa da atividade do homem social, que no

    parte imprescindvel do ser social, sendo apenas uma expresso da alienao de uma fora social

    apropriada por interesses particulares contra os interesses da maioria. Assim, a poltica exprime

    uma ciso do ser social, mas pode tambm ser o meio para impedir a regresso social e a

    barbrie, dentro de determinadas circunstancias histricas.

    O problema da cidadania, para Marx, encontra-se dentro da dimenso da

    subjetividade poltica alienada, mas seus fundamentos ontolgicos devem ser cercados no

    processo de entificao da sociabilidade baseada na acumulao do capital, cuja caractersticaprincipal a compra e venda da fora de trabalho, raiz, por sua vez, da diviso social do trabalho

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    e das classes sociais. Nessa forma social os homens se relacionam entre si como

    proprietrios de alguma coisa exposta no mercado, de modo que seus interesses so conflitantes.

    Se interesses individuais e coletivos so conflitantes, uma real comunidade de homens

    impossvel.A sociabilidade do capital gera e se compem de indivduos competitivos, cujos

    laos de solidariedade so impostos pela ideologia ou pelo direito. A liberdade ento concebida

    como autodeterminao do individuo egico-proprietrio, que se manifesta na livre-iniciativa

    tomada no mercado, no qual todos so formalmente livres e iguais. A sociedade civil do capital,

    que se forma como invlucro do processo de acumulao, composta por interesses privados se

    desdobra e se faz representar numa esfera pblica. Essa ciso entre o privado e o pblico atinge

    tambm o individuo, de modo que o ser livre, igual, racional e proprietrio, presente na

    sociedade civil e no mercado, se desdobra em cidado na vida estatal, que transforma em direito

    a desigualdade gerada na vida civil.

    Mas se todos os homens se virem dotados de direitos civis, polticos e sociais? No

    estaramos a um passo de romper com a desigualdade e a injustia prpria da ordem do capital?

    A estratgia da cidadania / democracia parte precisamente de uma resposta afirmativa para essa

    questo. E dessa resposta deriva a posio estratgica da atividade pedaggica: o educar para o

    exerccio ativo da cidadania traz uma concepo estratgica de superao da injustia e da

    desigualdade. O que no se quer perceber que essa concepo pode, no mximo, radicalizar a

    emancipao poltica e estabelecer um permetro para a liberdade do homem. Homem esse, que,

    no entanto, no transcende a ciso entre particular e universal, privado e pblico, sociedade civil

    e Estado, permanecendo alienado. Se assim for, a estratgia de educar para a cidadania tendo em

    vista a liberdade um equvoco terico e poltico de graves propores. Essa a tese que Ivo

    Tonet procura demonstrar nesse livro que se vai ler.

    Alm desse erro terico na qual recai a chamada esquerda democrtica, o projeto de

    emancipao humana padece ainda das deformaes e do fracasso da transio socialista

    intentada no decorrer do sculo XX. O fracasso foi motivado, fundamentalmente, segundo

    entendimento de Ivo Tonet, pela imaturidade do ser social conjugado com o limitado

    entendimento de que a progresso da transio socialista esta vinculada constituio do

    trabalho associado, do controle da produo e do Estado, cumprindo a subjetividade o papel

    decisivo de regente.

    A transio socialista ou o processo de emancipao humana depende do

    desenvolvimento das foras produtivas sob a regncia da subjetividade do trabalho associado,mas a concreo da liberdade humana encontra-se para alm do trabalho, no estabelecimento de

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    um novo nexo entre ser social e ser natural, entre objetividade e subjetividade. A

    liberdade humana implica o domnio consciente sobre o processo de autoconstruo genrica e

    sobre o conjunto do processo histrico, significando a superao de toda alienao.

    Ivo Tonet demonstra, de um ponto de vista filosfico, a possibilidade real daemancipao humana (ou da construo do comunismo), utilizando as formulaes,

    principalmente, do jovem Marx e do ltimo Lukcs. Mas, diante da situao atual de crise

    profunda da sociabilidade do capital e do extravio da conscincia critica, que redunda no

    discurso da educao pela cidadania, humanista, democrtica, participativa e outras, a elaborao

    terica crtica, a refundao da crtica dialtica revolucionria, ganha importncia crucial. Essa

    deve, entre outras coisas, realar a tendncia conservadora da educao, derivada mesmo de sua

    posio como campo diferenciado de ao e conhecimento, sob a regncia do capital.

    Logo, impossvel definir uma frmula pedaggica emancipatria por dentro desse

    discurso. Uma educao emancipadora exige o claro conhecimento dos fins e o conhecimento do

    processo histrico, cuja implicao mais premente o exerccio da crtica das Cincias Sociais

    como saber fragmentado e alienado. Mas exige tambm o conhecimento profundo do especfico

    campo da Educao e o conhecimento de um conjunto de contedos especficos, at para que

    seja possvel a imprescindvel articulao entre atividade educativa e lutas sociais. Assim, Ivo

    Tonet chama ateno para os limites da reflexo pedaggica existente hoje no pas, sua

    subalternizao diante da alta cultura liberal burguesa e para o extravio da conscincia crtica,

    destacando a importncia do papel da subjetividade e da atividade consciente em direo a

    construo autoconsciente do homem como ser naturalmente scio-histrico.

    Marcos Del Roio

    Prof. de Cincias Polticas

    FFC-Unesp (campus de Marlia)

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    INTRODUO

    1. A articulao entre educao e cidadania

    De longa data, pensadores brasileiros da rea da educao, que se identificam com os

    interesses da classe trabalhadora, se esforam por pensar uma educao que contribua para uma

    transformao revolucionria desta sociedade. Contudo, um dos elementos importantes desta

    reflexo, o conceito de revoluo, tinha um sentido historicamente muito datado. Como

    conseqncia do que era considerado um processo efetivamente revolucionrio, a revoluo

    sovitica de 1917 e outras ocorridas no leste europeu e em vrios outros pases, a revoluo era

    entendida como uma mudana sbita e radical, que constituiria uma espcie de marco zero de

    uma nova sociedade. Deste modo, uma educao revolucionria tambm deveria partir de uma

    espcie de choque, no mbito da educao, que instituiria fundamentos inteiramente novos.

    Por volta da dcada de 1980, por influncia de um conjunto de fatores, tericos e

    prticos, dos quais falaremos mais adiante, muitos destes pensadores comearam a substituir a

    articulao entre educao e revoluo, no sentido acima, por uma articulao entre educao e

    cidadania/democracia, constituintes da chamada via democrtica para o socialismo. De l para

    c, falar em educao cidad, em educao para a cidadania, em escola cidad, tornou-se mais

    ou menos lugar comum, dando por suposto que cidadania seria sinnimo de liberdade. O que

    significaria que, para as classes populares, lutar pela cidadania no seria lutar por uma forma

    determinada de liberdade, nem sequer por uma mediao para a efetiva liberdade, mas pela

    liberdade tout court.

    Freire (1993, p.45), por exemplo, em texto intitulado Alfabetizao como elemento

    de formao da Cidadania, aps afirmar que cidado significa indivduo no gozo dos direitos

    civis e polticos de um Estado, e que cidadania tem a ver com a condio de cidado, quer dizer,

    com o uso dos direitos e o direito de ter deveres de cidado, desenvolve toda uma argumentao

    para mostrar que a alfabetizao pode ser um instrumento para a formao da cidadania.

    Contudo, para que se realize uma cidadania plena, preciso, segundo ele, que a alfabetizao

    seja assumida como um ato poltico, jamais como um que fazer neutro.

    Nada haveria a objetar a estas afirmaes, se no fosse pelo fato de que o grande

    objetivo que norteou toda a reflexo e todo o trabalho prtico de Paulo Freire foi a luta pela

    construo de uma sociedade efetivamente livre; o empenho em contribuir para a emergncia de

    pessoas que pudessem ser plenamente autnomas, sujeitos e no objetos da histria. De modoque, na medida em que ele mesmo no faz nenhuma restrio, parece razovel admitir que por

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    plenitude da cidadania ele quer significar plenitude da liberdade, entendida, obviamente,

    como um processo de construo permanente. Pois, ele est pensando em pessoas que tm

    direitos e deveres, que lutam para conquist-los, defend-los e efetiv-los, tendo no Estado o

    fiador desta sua condio. Em resumo, parece que contribuir para a formao de cidados seriacontribuir para a formao de pessoas conscientes e plenamente livres, o que estaria expresso no

    conceito de cidado.

    Gadotti (1996) outro educador que expressa idias semelhantes, especialmente no

    seu livroEscola cidad. Conta ele que nos anos de 1974 a 1976 participou de uma experincia

    autogestionria na Seo de Cincias da Educao da Faculdade de Psicologia e Cincias da

    Educao da Universidade de Genebra. Sob o impacto das teorias autogestionrias e do

    movimento francs de maio de 1968, foi feita uma revoluo naquela unidade, implantando

    toda uma concepo autogestionria. Ao final de dois anos, constatou-se o fracasso, pois apesar

    de mudanas em muitos aspectos, naquilo que era fundamental, ou seja, quanto aquisio de

    conhecimento pelos alunos, a experincia no tinha dado certo. Os alunos, segundo o autor,

    demonstravam um grande dficit de conhecimentos. Abandonamos a experincia com a certeza

    de que no podamos investir na autogesto e de que necessitvamos de passos intermedirios,

    diz ele. E conclui:

    Na poca eu pensava que as pequenas mudanas impediam a realizao de uma grandemudana. Por isso elas deviam ser evitadas e todo o investimento deveria ser feito numamudana radical. Hoje, minha certeza outra (...), hoje eu creio que na luta cotidiana, nodia-a-dia, mudando passo a passo, que a quantidade de pequenas mudanas numa certadireo oferece a possibilidade de operar a grande mudana. Ela poder acontecer comoresultado de um esforo contnuo, solidrio, paciente. (Gadotti, 1996, p.26-27)

    E a ele desenvolve todo um conjunto de idias para mostrar o que a verdadeira

    autonomia da escola e que escola verdadeiramente autnoma sinnimo de escola popular ou

    tambm de escola cidad. Diz ele: A escola cidad certamente um projeto, de 'criao

    histrica' (Castoriadis, 1991), mas tambm pode ser considerada como horizonte, como crena

    (ibid., p.55). A escola cidad , pois, uma escola autnoma, democrtica, participativa, integrada

    comunidade, disciplinada, que cultiva a criatividade e a curiosidade, que respeita a diversidade.

    Ora, a tese que o autor afirmava pretender defender, no incio do livro, era de que A escola que

    est perdendo a sua autonomia est perdendo a sua capacidade de educar para a liberdade (ibid.,

    p.9). O que, ao final da argumentao, fica demonstrado, que lutar pela escola cidad lutar

    pela liberdade tout court, embora sempre entendida como um processo e como um horizonte e

    no como uma meta final.

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    Para outro autor, Arroyo (1987), a educao deve estar articulada com a

    cidadania. Mas infelizmente esta articulao se apia sobre uma concepo errnea do que seja

    cidadania. Para ele, o equvoco fundamental da reflexo sobre a cidadania est em que esta

    vista mais como uma concesso do que como uma conquista. Os direitos da cidadania teriamsido outorgados pelas classes dominantes e no seriam o resultado da luta da classe trabalhadora.

    Segundo ele, mesmo quando se ressalta a relao existente entre os direitos do cidado e os

    deveres do Estado, a cidadania aparece como um atendimento do Estado s demandas populares.

    Esta forma de encarar a questo teria como resultado o falseamento da compreenso do processo

    real, pois atribuiria o papel ativo apenas ao Estado, enquanto a participao popular ou seria

    ocultada ou apareceria apenas como um entrave (desordem). O que preciso ressaltar, segundo o

    autor, que, na construo da cidadania, o mais importante no o atendimento das demandas,

    que sempre podem ser incorporadas pela lgica capitalista, mas as formas sociais,

    organizativas, os processos polticos em que se inserem inmeras mulheres, homens, jovens,

    associaes, jornais e profissionais da educao (ibid., p.79). E conclui ele:

    Por este caminho nos aproximamos de uma possvel redefinio da relao entre cidadaniae educao. H relao entre ambas? H e muita, no sentido de que a luta pela cidadania,pelo legtimo, pelos direitos o espao pedaggico onde se d o verdadeiro processo deformao e constituio do cidado. A educao no uma pr-condio da democracia eda participao, mas parte, fruto e expresso do processo de sua constituio. (ibid., p.79)

    Em outro momento, ele diz que o equacionamento da relao entre cidadania e

    educao deveria comear pelo exame das teorias (da histria, da sociedade, da poltica) que

    fundamentam esta relao. Estas teorias, segundo ele, esto profundamente equivocadas. E

    conclui:

    S uma viso crtica do progresso capitalista e de suas formas sofisticadas de explorao eembrutecimento (que, obviamente s pode ser fornecida pelas cincias sociais. Observao

    nossa) nos permitir equacionar devidamente os limites reais impostos por esse progresso participao e cidadania e nos mostrar a utopia pedaggica. (ibid., p.69)

    O que fica patente, no texto de Arroyo, que o que questionado no a cidadania

    em si, mas apenas formas equivocadas de compreend-la. Esta, desde que vista como resultado

    da luta social perderia o seu carter mistificador, para assumir um carter efetivamente libertador

    para as classes populares. O autor no diz explicitamente que a cidadania constitui o patamar

    mais elevado da liberdade humana. A leitura, porm, do conjunto do texto, permite inferir que,

    desembaraada dos entraves postos pela sociedade mercantil, a cidadania poder florescerplenamente, transformando todos os homens em cidados plenos, o que equivale a dizer, em

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    homens plenamente livres. Ressalve-se, de novo, que isto sempre compreendido como

    um processo e no como um estado final.

    Um outro pensador consultado Nosella. Em um texto intitulado Educao e

    Cidadania em Antnio Gramsci (1987), ele fala expressamente em velho cidado burgus enovo cidado socialista. Segundo este autor, Todo o sculo XX est marcado,

    fundamentalmente, pela luta cada vez mais acirrada entre socialismo e fascismo, entre o novo

    cidado socialista que est por nascer e o velho cidado burgus que no quer morrer (Nosella,

    p.85). sabido que a leitura predominante de Gramsci fortemente reformista. Sabe-se tambm

    que, nas condies em que escreveu, Gramsci no podia falar em homem socialista, homem

    comunista. Por outro lado, a palavra cidado tem uma carga semntica historicamente definida

    que remete ao mundo do capital. O que seria, ento, um cidadosocialista? Na ausncia de uma

    clara explicitao, que hoje poderia e deveria ser feita, o sentido parece apontar para o universo

    da leitura reformista de Gramsci, ou seja, daquilo que mais adiante chamaremos de via

    democrtica para o socialismo.

    Frigotto (1995), por sua vez, em seu livro A educao e a crise do capitalismo real

    tambm expe vrias idias que manifestam a influncia muito clara da chamada via

    democrtica para o socialismo. Em primeiro lugar, ele se refere ao Partido dos Trabalhadores

    como um partido que, sendo de massas e vinculado organicamente aos interesses das classes

    trabalhadoras e apesar dos seus problemas e equvocos, teria uma grande importncia na

    construo de uma efetiva alternativa democrtica. Ora, sabe-se que a luta pela cidadania e pela

    democracia formam a tnica do Partido dos Trabalhadores. Em seguida, ele se refere a um

    sindicalismo de novo tipo (aspas do autor), cuja expresso so as cmaras setoriais, que tem,

    como sabemos, na negociao e no no confronto com a classe patronal o seu eixo. Outra tese

    defendida por Frigotto, baseada em Oliveira & Singer, de que, no Brasil, a democratizao do

    Estado e dofundo pblico seriam o caminho para a construo de uma sociedade efetivamente

    democrtica. Diz ele:

    Para que o direito educao e outros direitos como o da sade, moradia, transporte eemprego sejam garantidos, o tamanho do Estado tem que, pelo menos, dobrar. No se trata,todavia, de um Estado autocrtico, privatista e centralizador, mas de um Estadoessencialmente democrtico. Isto pressupe foras democrticas organizadascom capacidade efetiva de gerir e controlar este fundo ampliado. (Frigotto, 1995, p.193)

    A educao deveria, pois, articular-se com as lutas democrticas. Afirma ele:

    Nesta perspectiva (nas experincias democrticas realizadas por vrios governos petistas),nem a histria acabou e, menos ainda, a luta para a construo da utopia socialista. Nesta, a

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    efetiva democratizao da escola pblica unitria, de todos os processos de formaotcnico-profissional e dos meios de comunicao social no pode mais ser postergada.Trata-se de uma condio necessria para que a cidadania concretamente possadesenvolver-se e constituir-se para a grande maioria da populao brasileira. (ibid., p.192)

    Este seria o caminho para a construo democrtica do socialismo (...) como omodo de produo estruturalmente capaz de pr fim ao que Marx denominou de pr-histria da

    humanidade, as sociedades regidas pela ciso das classes sociais que cindem o humano

    (Frigotto, 1995, p.193).

    Bastaria o termo socialismo democrtico do qual falaremos mais adiante para

    sinalizar toda uma problemtica. Pois, este conceito foi elaborado exatamente para opor-se ao

    chamado socialismo realmente existente, que seria um socialismo autocrtico. Mas, alm disso,

    Frigotto ainda afirma que

    Os novos movimentos sociais, partidos e sindicalismo de novo tipo e as polticaseducacionais que se desenvolvem em vrias capitais e inmeros municpios por estas foraspolticas ... sinalizam que a alternativa da educao numa perspectiva socialistademocrtica est em curso no plano poltico-ideolgico, tico e terico-prtico. (ibid.,p.203)

    E o mais significativo, ainda, que o captulo em que o autor mais se refere a estas

    questes tem como ttulo Educao e formao humana: ajuste neoconservador e alternativa

    democrtica, e como interttulo Escola unitria e politcnica: a formao na tica da

    emancipao humana. Embora o autor, em nenhum momento afirme a igualdade entre cidadania

    e emancipao humana, parece deixar entrever uma proximidade muito estreita entre estas duas

    categorias.

    A posio de Libneo (1998) tambm exemplificativa desta maneira de pensar. Seu

    objetivo elaborar uma pedagogia escolar crtico-social, quer dizer, uma pedagogia que

    contribua para a construo de uma sociedade para alm do capitalismo. No entanto, aps

    caracterizar a situao da educao escolar diante da difcil e complexa realidade do mundo

    atual, diz que um dos objetivos para uma educao bsica de qualidade a Formao para a

    cidadania crtica, isto , um cidado-trabalhador capaz de interferir criticamente na realidade

    para transform-la e no apenas para integrar o mercado de trabalho (Libneo, 1998, p.192). Se

    a expresso cidado-trabalhador deixasse dvidas quanto ao seu sentido, o contexto as

    esclareceria.Pois o autor diz ainda que esta pedagogia crtico-social deve preparar os indivduos

    para o mundo do trabalho na sua forma atual e para a participao social ativa e consciente.

    Poderamos, certamente, trazer aqui muitos outros autores que fazem esta articulaoentre educao e cidadania. No entanto, estes nos pareceram suficientes, tanto por serem

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    amplamente conhecidos como por serem representativos de um modo de pensar hoje

    amplamente disseminado. Vale ressaltar que no desconhecemos as diferenas, s vezes

    acentuadas, que existem entre os vrios autores. Tambm no nossa inteno fazer uma crtica

    detalhada do pensamento destes e de outros autores a respeito desta questo. Deste modo, nonos parece uma exigncia incontornvel a exata fidelidade ao pensamento de cada um. O que

    nos interessa, neste momento, apenas exemplificar a nfase dada, hoje, cidadania como um

    espao de construo da efetiva liberdade humana.

    Nenhum dos autores consultados faz uma reflexo mais detida sobre a categoria da

    cidadania. Encontramos apenas rpidos esboos histricos no livro Educao e Cidadania, de

    Buffa, Arroyo & Nosella. Nos outros, no entanto, embora haja poucas aluses explcitas, o

    contexto suficiente para mostrar que estes autores atribuem quele conceito um contedo, por

    assim dizer, evidente e que, por isso mesmo, no precisaria ser questionado em profundidade.

    Todos eles parecem pressupor que a cidadania integra um processo no interior da sociedade

    burguesa complexo, contraditrio, de lutas, de avanos e recuos, de perdas e ganhos, em que se

    vai construindo um espao pblico cada vez mais amplo, mais igualitrio, mais participativo,

    mais democrtico, que teria como resultado sempre em processo e sempre articulado com as

    outras lutas sociais uma sociedade cada vez mais livre, mais autenticamente humana. Todos

    eles tambm afirmam expressamente a necessidade da superao do capitalismo e da instaurao

    do socialismo, mas parece que mesmo neste momento a cidadania no seria radicalmente

    superada, mas seria apenas desembaraada dos entraves postos pelo capitalismo ao seu pleno

    desenvolvimento. Ao articular-se com este esforo, a educao tambm estaria contribuindo para

    a construo de uma sociedade livre.

    Tambm, de modo geral, no se faz uma distino entre cidadania como horizonte da

    humanidade, como objetivo final a ser atingido e cidadania como mediao para a superao da

    sociedade capitalista. Parece estar implcita a idia de que esta objetivao faz parte de um

    espao indefinidamente aperfeiovel que, comeando ainda no interior do sistema capitalista,

    estender-se-, certamente com modificaes, para alm dele per saecula saeculorum. Alm

    disto, pareceestar implcito o pressuposto de que a luta pela cidadania, no interior da sociedade

    capitalista (a referncia, mais precisamente, sociedade brasileira), seria ipso facto um

    instrumento revolucionrio, ao mesmo tempo em que constituiria simplesmente uma etapa na

    direo de uma sociedade socialista.

    De todo modo, a ausncia de uma tematizao expressa da problemtica da cidadania

    e do socialismo e de uma clara distino entre estas duas categorias por supor que seu sentido

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    j suficientemente conhecido tem contribudo muito para obscurecer e confundir a

    questo do objetivo maior que se pretende para a educao.

    Pode-se compreender esta falta de uma abordagem mais detida a partir de dois

    motivos. Primeiro, porque a reflexo sobre a atividade pedaggica costuma lanar mo cominteira justeza de conceitos elaborados na rea da filosofia e das cincias sociais e nem sempre

    tem o tempo ou a precauo de examinar estes conceitos mais detidamente. Segundo, e at

    concomitantemente, porque os prprios autores remetem, explicitamente, a filsofos e cientistas

    sociais europeus e brasileiros que formularam a teoria da via democrtica, na qual est

    organicamente inserido o conceito de cidadania. Neste sentido, vemos que Gadotti cita

    explicitamente Castoriadis; Arroyo remete a Cerroni, MacPherson, Bobbio, Hobsbawn, Chau e

    Weffort; Nosella, alm de ter como referncia fundamental o pensamento gramsciano, remete

    diretamente s cincias sociais (1987); Frigotto, tambm, cita explicitamente Coutinho, Weffort,

    Chau e Oliveira. O que parece transparecer, ento, que ou h uma concordncia explcita com

    as idias daqueles autores ou aquelas idias se transformaram em patrimnio do senso comum e

    foram assumidas sem que se sentisse necessidade de maiores questionamentos. O que nos obriga

    a esclarecer o significado da via democrtica para o socialismo.

    2. A via democrtica para o socialismo

    A concepo mais comum entre os marxistas, at por volta da dcada de 1940, era de

    que democracia e cidadania eram valores meramente burgueses que, portanto, deveriam ser

    suprimidos assim que o proletariado assumisse o poder. E este modo de pensar teve uma grande

    influncia em todas as tentativas de revolues socialistas.

    Diversos fatos, contudo, vieram abalar estas convices. Por um lado, as

    conseqncias prticas trgicas deste modo de pensar, nos pases ditos socialistas. Todos tinham

    suprimido as liberdades democrticas e tinham se transformado em ditaduras brutais, tornando

    os homens menos livres e no mais livres, como se supunha que aconteceria no socialismo. Por

    outro lado, nos pases ocidentais, a sociedade capitalista tinha atingido um grau de complexidade

    muito grande, a incluindo as instituies democrticas e os direitos do cidado, de modo que

    seria impensvel suprimi-los para substitu-los por uma ditadura, mesmo que esta fosse a da

    classe trabalhadora.

    Foi esta situao concreta que levou formao da chamada esquerda democrtica,

    num processo extremamente complexo. Italianos e franceses tiveram, a, um papel fundamental.Os primeiros articulando, terica e praticamente, o que viria a ser chamado de via democrtica

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    para o socialismo. Os segundos, fazendo uma crtica do marxismo, especialmente das

    concepes filosficas e polticas.

    neste contexto que se d a reviso dos conceitos de histria, socialismo, revoluo,

    partido, Estado, sujeito da revoluo, democracia, cidadania e outros. Apoiando-se num tericomarxista muito conhecido Gramsci Togliatti, Ingrao, Cerroni, Radice, Gerratana e muitos

    outros intelectuais e dirigentes do PCI lanaram as bases para a construo de um caminho para

    o socialismo que no implicaria, nem antes e nem depois da superao do capitalismo, a

    desvalorizao e a supresso das liberdades democrticas. Isto resumido por uma frase de um

    documento do PCI, citada por Coutinho (1992, p.22), onde se diz que: a democracia no um

    caminho para o socialismo, mas o caminho para o socialismo.

    Os franceses, por sua vez, e aqui citamos dois, porque so referncias explcitas tanto

    de educadores como de filsofos e cientistas sociais brasileiros, dedicaram-se mais crtica

    filosfica e poltica do marxismo. Castoriadis (1982, 1983) critica o que entende ser uma

    concepo determinista da histria em Marx e uma idia indefinida e utpica de socialismo,

    alm dos aspectos autoritrios e centralizadores. Tambm critica a idia de ditadura do

    proletariado e o conceito de proletariado como sujeito de uma misso revolucionria por

    determinao de uma essncia metafsica.

    Lefort (1983), por sua vez, especialmente num livro sintomtico intitulado A

    inveno democrtica, faz uma crtica ao totalitarismo, procurando demonstrar que um

    equvoco gravssimo considerar democracia e cidadania como valores particulares da burguesia.

    uma aberrao afirma ele (...) fazer da democracia uma criao da burguesia. Seus

    representantes mais ativos, na Frana, tentaram de mil maneiras, atravancar sua dinmica no

    curso do s. XIX (1983, p.26). Para, em seguida, enfatizar que a contraposio se d entre

    democracia e totalitarismo. Nas palavras dele:

    Face a essa revoluo democrtica que corre pelos sculos, que tem diante de si o futuro eque, verdade, sempre engendra e provoca cada vez mais, aqui mesmo, uma resistnciadecidida ou disfarada dos detentores da riqueza e do poder ... perante essa revoluoindefinida, sempre em obra, est aquilo que preciso nomear, considerando-a na escala dahistria, a contra-revoluo totalitria. (ibid., p.26-27)

    De Lefort tambm a idia de que, ao contrrio dos regimes totalitrios, que

    petrificam as relaes sociais, desarmam os conflitos e impedem a autonomia e a criatividade, a

    democracia o espao vivo, dinmico, de uma renovao permanente.Em resumo, a via democrtica para o socialismo implica:

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    a)uma concepo ampliada do Estado, em oposio a uma viso estreita e

    instrumentalista, mais prpria de Marx e de Lnin. Isto significa que o Estado, enquanto

    repblica democrtica passou a ser visto como o resultado dinmico de uma correlao de

    foras, um espao de luta entre as diversas classes. Este espao seria hegemonizado pelas classesdominantes, mas a luta social tambm poderia permitir s classes subalternas tornarem-se

    hegemnicas;

    b)uma concepo de socialismo que implicaria no apenas a socializao dos meios

    de produo, como se o resto fosse secundrio ou uma decorrncia necessria, mas tambm a

    socializao do poder poltico, atravs da articulao entre os mecanismos da democracia

    representativa e da democracia direta;

    c) uma concepo de revoluo como um processo gradual e molecular de

    conquista progressiva da hegemonia das classes populares, tanto na sociedade civil quanto nos

    aparelhos de Estado, e de construo de um bloco histrico das classes progressistas, de modo a

    alterar a correlao de foras e se apropriar do poder do Estado, colocando-o a servio de uma

    mudana social radical realizada de modo democrtico;

    d)uma concepo de democracia e de cidadania como valores universais, vale dizer,

    valores que no expressam unicamente os interesses da burguesia, mas contribuem, tanto no

    capitalismo quanto no socialismo, para explicitar as determinaes essenciais do gnero humano.

    De modo que as objetivaes democrticas (diviso de poderes, pluripartidarismo, eleies

    peridicas, rotatividade no poder, etc.) e os direitos civis, polticos e sociais no seriam

    suprimidos, mas seriam liberados dos entraves postos pelo capital, assumindo uma nova

    qualidade e podendo desenvolver-se plenamente. Democracia/cidadania passariam a ser o espao

    indefinidamente aberto de autoconstruo de uma humanidade efetivamente livre. O socialismo

    a democracia sem fim (Santos, 1999, p.277). Vale, no entanto, observar que o sentido de cada

    um destes momentos que compem a via democrtica no , de modo algum, homogneo, nos

    diversos autores.

    Como se pode ver, o conceito de via democrtica no significa apenas uma nfase no

    espao democrtico como o meio mais adequado para a classe trabalhadora travar as suas lutas

    para a superao do capital. Mais do que isto, ele significa que as objetivaes democrtico-

    cidads evidentemente aperfeioadas tero vigncia tambm no socialismo. Mais importante

    ainda: atravs de um deslizamento crescente mais intenso e explcito em alguns, mais sutil e

    implcito em outros a economia vai perdendo o seu lugar como matriz do ser social, como

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    princpio de inteligibilidade deste1 e como momento determinante da ao, sendo

    substituda pela poltica. Deslizamento este que, no por acaso, vai se aproximando cada vez

    mais do pensamento burgus. Como consequncia, tambm na prtica das lutas sociais, a

    poltica colocada no posto de comando, ou seja, as lutas extra-parlamentares devem ser sempresubordinadas luta parlamentar, pois os parlamentos, como diz Coutinho (1992, p.31), se se

    mantiverem abertos presso dos organismos populares (...) podem ser o local de uma sntese

    poltica das demandas dos vrios sujeitos coletivos, tornando-se a instncia institucional decisiva

    da expresso da hegemonia negociada.

    1 Muito provavelmente, esta perda se deve a uma reao equivocada no seu contedo contra o economicismoque marcou a maioria das elaboraes marxistas.

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    3. Papel da educao na via democrtica para o socialismo

    Qual seria, ento, o papel da educao (escolar) neste caminho democrtico para o

    socialismo? Contribuir para a conquista da hegemonia, pelas foras progressistas, no seio dasociedade civil, este seria o papel fundamental da educao, neste momento histrico. Como se

    daria esta contribuio? Atravs da construo de uma educao cidad. Mas, insistem os

    autores, preciso entender esta educao cidad no sentido de uma cidadania ativa, crtica.

    Referindo-se a isto, diz Giroux:

    Para que a educao para a cidadania se torne emancipatria, deve comear com opressuposto de que seu principal objetivo no ajustar os alunos sociedade existente;ao invs disso, sua finalidade primria deve ser estimular suas paixes, imaginao eintelecto, de forma que eles sejam compelidos a desafiar as foras sociais, polticas eeconmicas que oprimem to pesadamente suas vidas. Em outras palavras, os alunosdevem ser educados para demonstrar coragem cvica, isto , uma disposio para agir,como se de fato vivessem em uma sociedade democrtica. (Giroux, 1986, p.262)

    Isto significa formar no apenas cidados, mas cidados crticos, ou seja, pessoas

    que tenham conscincia dos seus direitos e deveres, mas que tambm sejam capazes de intervir

    ativamente na construo de uma ordem social mais justa. Para isto, segundo Giroux, seria

    necessrio enfatizar a participao ativa dos alunos no processo de aprendizagem; a

    aprendizagem crtica; a compreenso crtica das experincias dos alunos por eles mesmos; a

    compreenso da importncia dos valores; o conhecimento das foras ideolgicas que

    influenciam as vidas dos alunos, etc.

    Giroux ressalta mais a problemtica ligada ao saber. Educadores brasileiros

    enfatizam a construo de uma educao cidad como um processo que envolve um conjunto de

    outros elementos, alm do saber2. Entre eles, uma relao de interao ativa entre a escola e a

    comunidade, at na gesto da prpria escola; uma participao ativa da prpria escola na

    elaborao da poltica educacional mais ampla e do setor educativo na elaborao da polticageral do Estado; medidas de ampliao do acesso educao, de qualificao permanente do

    corpo docente, de melhoria das condies de trabalho de todos os que se ocupam diretamente da

    educao, de acesso s melhores tecnologias, etc.

    Em resumo, construindo experincias de uma educao democrtica, participativa,

    autnoma, sintonizada com os interesses das classes populares.

    2 Um bom exemplo disto pode ser encontrado no livro Utopia e Democracia na Educao Cidad. Trata-se de umacoletnea de artigos apresentados no VII Seminrio Internacional de Reestruturao Curricular, centrado naexperincia de uma educao cidad, de Porto Alegre.

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    Mas, como dizia Gadotti (1992), este um processo lento, feito de mil

    pequenos passos dados na vida cotidiana, uma autntica revoluo gradual e molecular que,

    articulada com os passos dados em outras esferas, poderia desembocar numa transformao

    profunda, embora at insensvel, da sociedade. A convico de que ao articular a educaocomo processo de construo da cidadania, aquela estaria contribuindo para a estruturao de

    uma sociedade de homens efetivamente livres, porque plenamente cidados. Libneo resume

    muito bem esta articulao entre escola e cidadania quando, ao enumerar os objetivos para uma

    educao bsica de qualidade cita, entre eles:

    2) Formao para a cidadania crtica, isto , um cidado-trabalhador capaz de interferircriticamente na realidade para transform-la e no apenas formar para integrar o mercadode trabalho. A escola deve continuar investindo na ajuda aos alunos a se tornarem crticos,a se engajarem na luta pela justia social, a entender o papel que devem desempenhar,como cidados crticos, na mudana da realidade em que vivem e no processo dedesenvolvimento nacional, e que a escola os capacite a desempenhar este papel. Cidadaniahoje significa dirigir ou controlar aqueles que dirigem (na expresso de Manacorda); paraisso o aluno precisa ter as condies bsicas para situar-se competente e criticamente nosistema produtivo. (Libneo, 1998, p.192)

    Mas, perguntamo-nos: No ter sido este conceito de cidadania utilizado de forma

    pouco crtica ou ser ele, efetivamente, aceito como sinnimo de plena liberdade humana? Ser

    de fato livre uma sociedade onde vigem plenamente as liberdades democrticas? Ser uma

    sociedade democrtico-cidad o horizonte inultrapassvel da humanidade, isto , uma forma de

    sociabilidade aberta ao contnuo aperfeioamento? No seria a cidadania, embora ressalvando

    decididamente os seus aspectos positivos e a sua importncia na histria da humanidade, uma

    forma de liberdade essencialmente limitada? A crtica radical cidadania implicaria,

    necessariamente, uma opo por uma forma autocrtica de sociabilidade? Em que consiste,

    efetivamente, a cidadania? Haveria bases razoveis, isto , reais, efetivas, para sustentar a

    possibilidade de uma forma superior de sociabilidade ou isto no passaria de uma utopia ou de

    um simples desejo? E em que consistiria esta forma superior de sociabilidade? Qual a natureza

    da liberdade que resultaria desta forma superior de sociabilidade? Esta ltima forma de liberdade

    seria apenas um aperfeioamento da primeira ou haveria entre elas uma diferena essencial? Para

    responder a estas e outras questes, propomo-nos submeter a um exame crtico toda esta

    problemtica.

    Nosso trabalho, ento, ser composto dos seguintes momentos: No primeiro

    momento, apresentaremos os pressupostos que fundamentaro todo o nosso trabalho.Mostraremos, ali, a importncia e a necessidade da explicitao desta questo dos fundamentos,

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    dado o peculiar momento histrico em que nos encontramos. Argumentaremos, tambm,

    que no se trata meramente de uma questo metodolgica ou epistemolgica, mas de um

    conjunto de problemas que abrangem uma concepo de mundo, do ser social, do processo

    histrico e da problemtica do conhecimento. E que este ponto de partida ter conseqnciasdecisivas para toda a investigao.

    No segundo momento, abordaremos brevemente as concepes liberal, clssica e

    contempornea e a concepo da esquerda democrtica acerca da cidadania. Em seguida,

    buscaremos estabelecer a crtica marxiana desta categoria, evidenciando suas razes histrico-

    ontolgicas, sua natureza, sua funo na reproduo do ser social, suas possibilidades e seus

    limites intrnsecos.

    No terceiro momento, abordaremos, baseados especialmente em Marx e Lukcs, mas

    tambm em outros autores, a questo da emancipao humana, verificando, tambm aqui, a sua

    origem histrico-ontolgica, as suas condies ontolgicas e histrico-estruturais de

    possibilidade, a sua natureza e a sua importncia para a reproduo do ser social.

    No quarto e ltimo momento, procuraremos responder, em termos gerais, s

    seguintes questes: quais os requisitos fundamentais, hoje, para uma educao emancipadora?

    De que modo, a emancipao humana, posta como objetivo superior da humanidade, poderia

    iluminar a atividade educativa de modo a que esta contribusse para a construo de uma

    sociedade efetivamente livre e humana?

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    CAPTULO I -A QUESTO DOS FUNDAMENTOS

    Gostaramos, inicialmente, de dizer que o nosso objetivo no a discusso tpica de

    conceitos ou de alguma parte da problemtica metodolgica. Muito menos a apresentao formalde um captulo sobre questes metodolgicas. O que nos interessa enfatizar a mudana global

    de perspectiva, mudana esta que se d a partir da obra marxiana e que, ao nosso ver, instaura

    um patamar radicalmente novo de cientificidade.

    A questo dos fundamentos metodolgicos , sem dvida, sempre uma questo das

    mais relevantes, apesar das afirmaes em contrrio dos chamados ps-modernos. Porm, para

    evitar os mal-entendidos que a cercam na maioria das vezes ela entendida em sentido

    puramente gnosiolgico deixamos claro que, para ns, ela tem um significado ontolgico, vale

    dizer, constituda por um conjunto articulado de categorias que expressam o mundo real e

    norteiam a abordagem de qualquer fenmeno social. E que, alm disto, implica uma articulao

    essencial na maioria das vezes no reconhecida entre o conhecer e o agir.3

    A impostao puramente epistemolgica da problemtica dos fundamentos ou a

    ausncia de uma explicitao clara e aprofundada, so responsveis por inmeros problemas no

    debate intelectual, como veremos mais adiante. Situao esta potencializada pelo momento

    particular em que a humanidade se encontra hoje e ao qual tambm faremos referncia em

    seguida. Da a importncia de desenharmos, mesmo que minimamente, esta questo. Isto

    permitir identificar com clareza o lugar donde falamos, os pressupostos sobre os quais nos

    apoiamos e perceber a articulao entre os resultados e o ponto de partida. Como esta questo

    tem uma histria, permitimo-nos, tendo em vista sua melhor compreenso, fazer um pequeno

    desvio.

    1.1. Da centralidade da objetividade centralidade da subjetividade

    Vale ressaltar, de incio, que na elaborao deste captulo nos apoiaremos, de modo

    especial, em textos do prof. Jos Chasin, especialmente os textos intitulados Marx Da Razo

    do Mundo ao Mundo sem Razo,A Superao do Liberalismo (mimeo),e Marx Estatuto

    Ontolgico e Resoluo Metodolgica, este ltimo um posfcio ao livro de Francisco Jos

    Teixeira Soares, chamado Pensando com Marx (1995).

    3 Ao final deste captulo ficar mais clara a distino entre uma abordagem de cunho gnosiolgico e uma outra decunho ontolgico da questo dos fundamentos.

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    O caminho que se abre, ento, vai no sentido da superao tanto da

    perspectiva da objetividade, vigente desde a Antigidade at o fim da Idade Mdia, quanto da

    perspectiva da subjetividade, que tomou corpo a partir da modernidade, em direo a uma

    perspectiva da totalidade (que inclui subjetividade e objetividade, sob a regncia desta ltima).Esta perspectiva da totalidade inaugurada por Marx e, ao nosso ver, supera a unilateralidade

    tanto da primeira quanto da segunda, mas especialmente desta ltima. A especial importncia da

    superao da perspectiva da subjetividade est no fato de que esta, alm de ser, hoje, o modo de

    pensar dominante, foi, aos poucos, tomando a forma de algo natural, uma espcie de

    pensamento nico, passando a influenciar tanto a elaborao filosfico-cientfica quanto a

    ao prtica nas mais diversas modalidades. Mais ainda, pelo fato de ela estar hoje

    superdimensionada, implicando um corte profundo entre conscincia e realidade. Voltaremos a

    estas questes na parte final deste captulo.

    Faamos ainda um importante esclarecimento. Usaremos freqentemente as palavras

    objeto e objetividade, sujeito e subjetividade. Seu sentido mais comum remete-as ao contexto da

    relao de conhecimento entre sujeito e objeto. Gostaramos de deixar claro que o contexto no

    qual as utilizaremos mais amplo do que a simples relao gnosiolgica. Todos aqueles

    conceitos implicam, para ns, o homem como um ser ativo, ou seja, um ser que conhece e faz. O

    que significa que todos eles tm no apenas um estatuto gnosiolgico, mas tambm, e antes de

    tudo, um estatuto ontolgico. Deste modo, objeto e objetividade, sujeito e subjetividade so

    tomados como o resultado real da atividade humana, que implica conhecimento e ao. Fica

    claro, assim, que a relao gnosiolgica entre sujeito e objeto apenas um momento de uma

    relao mais ampla que a criao da realidade social como totalidade.

    Retornando questo dos fundamentos, podemos dizer, em resumo, que na transio

    do mundo medieval para o mundo moderno, verifica-se o abandono da centralidade do objeto e a

    instaurao da centralidade do sujeito. Esta mudana de paradigma se prolonga, sob formas

    diversas, at os nossos dias e teve e continua a ter profundas conseqncias sobre toda atividade

    terica e prtica. Em que consiste este fenmeno que acabamos de mencionar?

    Sabe-se que para os gregos e para os medievais, o mundo era possuidor de uma

    estrutura e de uma ordem hierrquica definidas e essencialmente imutveis. Estrutura e ordem no

    interior das quais tambm a posio do homem estava claramente definida. O mundo natural ,

    como tambm o mundo social, no eram vistos como histricos e muito menos como resultado

    da atividade do homem. Entre mundo e homem se configurava uma relao de exterioridade. Por

    isso mesmo, ao homem cabia, diante do mundo, muito mais uma atitude de passividade do quede atividade, devendo adaptar-se a uma ordem csmica cuja natureza no podia alterar. Por seu

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    lado, o conhecimento verdadeiro tinha um carter muito mais contemplativo do que

    ativo, pois ao sujeito no cabia mais do que desvelar a verdade existente no ser. Deste modo,

    tanto o conhecimento como a ao tinham como plo regente a objetividade (mundo real), sendo

    esta marcada por um carter essencialmente a-histrico. Esta posio face ao mundo e problemtica da ao e do conhecimento no sofrer alteraes essenciais at o final da Idade

    Mdia.

    A transio do mundo feudal ao mundo capitalista significou uma ruptura decisiva

    tanto no plano material como no plano espiritual. As enormes modificaes econmicas,

    polticas, sociais e cientficas acontecidas neste perodo evidenciaram um mundo infinito, sem

    ordem hierrquica e em constante movimento, ao mesmo tempo em que acentuaram a

    importncia da atividade humana tanto no conhecimento como na construo da realidade social.

    Estas mudanas abalaram os fundamentos em que se assentavam a concepo de mundo greco-

    medieval, o mtodo para conhecer a realidade e a prpria posio do homem dentro dela. Por um

    lado, a relao do homem com o mundo tornou-se uma relao ativa. Embora o mundo natural

    continuasse a ser visto como exterior ao homem, a interveno nele, para transform-lo, j era

    vista como algo permitido e positivo. J quanto ao mundo social, este era visto, pelo menos em

    grande parte, como resultado da atividade humana. o momento em que surge a idia de

    histria e a conscincia de que a histria dos homens profundamente diferente da histria da

    natureza. Contudo, importante acentuar que a historicizao do mundo natural e do mundo

    social sofreu, quanto a este ltimo, uma inflexo particular. Embora profundamente diferente dos

    seres naturais, o homem no deixava de ser originrio da prpria natureza, com a qual guardava

    uma relao ntima. Da natureza recebia determinados dotes que o faziam estar profundamente

    vinculado a ela. De modo que a idia da existncia de uma natureza humana marcada pelo

    mesmo estatuto da natureza natural estabeleceu uma barreira intransponvel ao humana.

    Relativamente ao permetro posto por esta natureza humana natural, o homem s poderia ter uma

    atividade acidental, no podendo intervir para modific-la radicalmente. E, como a economia era

    a expresso desta natureza (luta de cada um para satisfazer as suas necessidades bsicas), suas

    categorias fundamentais tambm teriam um carter de naturalidade natural. O resultado disto era

    que a ao humana, na medida em que era constituidora da sociedade, teria sua expresso

    propriamente dita apenas no mbito da subjetividade, ou seja, no mbito da poltica, do direito,

    da educao, da arte, etc., no no mbito da estruturafundamental, vale dizer, da economia.

    Ainda mais: considerada a importncia decisiva da poltica e do direito na

    instaurao da sociedade, estas duas atividades passam a constituir cada vez mais o lugar a partirdo qual compreendida toda a realidade social. Em especial, a poltica passa a ser vista no s

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    como princpio de inteligibilidade da realidade social, mas ainda como plo regente de

    toda a atividade social.

    No que se refere ao conhecimento, o desaparecimento de um fundamento objetivo

    absoluto para a verdade fez com que a busca de novas bases se tornasse a primeira tarefa a serenfrentada pelos pensadores modernos. E j que este fundamento slido no poderia ser

    encontrado no mundo objetivo, restava busc-lo no mundo subjetivo. Por outro lado, as

    exigncias da produo material mudaram completamente o direcionamento da investigao,

    orientando-a para o conhecimento da natureza. Este conhecimento, porm, ao contrrio do

    carter contemplativo do conhecimento greco-medieval tinha, agora, um carter eminentemente

    prtico. Estava voltado para a transformao da natureza. Por isso mesmo, ele no poderia estar

    direcionado busca da essncia das coisas, mas apreenso daquelas qualidades que pudessem

    ser submetidas mensurao e quantificao. Deste modo, o prprio conceito de realidade se

    modificou, passando a definir-se ao nvel da empiricidade. Ainda mais: a prpria forma da

    produo material, da qual uma das marcas mais decisivas a diviso fragmentada do trabalho,

    teve repercusses fundamentais na constituio da cincia moderna, levando-a a perder de vista

    os vnculos que interligariam os territrios investigados. Deste modo, foi abandonada a

    objetividade (o ser) como eixo do conhecimento, sendo substituda pela subjetividade.4

    Emblemticos desta mudana so tanto o cogito cartesiano, quanto a chamada revoluo

    copernicana no conhecimento, realizada por Kant. A primeira e fundamental questo posta por

    Kant, por exemplo, j no , como para os gregos, a respeito do ser, mas a respeito do conhecer.

    Quais as possibilidades e os limites da razo so, para ele, as primeiras questes a serem

    respondidas, para evitar que a razo se perca em especulaes vazias e insolveis. A resposta

    kantiana a esta pergunta evidencia fortissimamente a centralidade da subjetividade. Pois, ainda

    que ele pretenda superar as unilateralidades do empirismo e do racionalismo por meio de uma

    sntese entre razo e sensibilidade, sua concluso de que ns no podemos conhecer a essncia,

    mas apenas o fenmeno, deixa claro que a prpria objetividade (gnosiolgica), ainda que

    apoiada nos dados empricos, uma construo do sujeito. A categoria da essncia , pois,

    relegada a segundo plano na elaborao kantiana e ser definitivamente expulsa da problemtica

    do conhecimento nos desdobramentos subseqentes desta perspectiva.

    4 Quanto ao fato de que a modernidade instaura o ponto de vista da subjetividade no parece haver nenhum dissenso

    essencial. O dissenso aparece quando, de um lado, este mesmo ponto de vista tem como desdobramento a afirmaode si mesmo como algo inteiramente positivo; como a descoberta do verdadeiro caminho para a fundamentao doconhecimento e da ao; de outro lado, com a instaurao de uma nova perspectiva ontolgica, que reconhece osaspectos positivos, mas tambm evidencia os limites essenciais daquele ponto de vista.

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    Estava, deste modo, constitudo, aquilo que chamamos de ponto de vista da

    subjetividade, cuja caracterstica fundamental consistia em atribuir ao sujeito o papel de

    momento determinante tanto no conhecer quantono agir.

    1.2. A centralidade da subjetividade na atualidade: formas e conseqncias

    A centralidade da subjetividade sempre significou, de alguma forma, uma

    dissociao entre a conscincia e a realidade efetiva na sua integralidade. Pois ela produto de

    um processo social marcado pela produo de mercadorias, do qual o fetichismo momento

    indissocivel. Como diz Marx (1975, p.88): A estrutura do processo vital da sociedade, isto ,

    do processo da produo material, s pode desprender-se do seu vu nebuloso e mstico, no dia

    em que for obra de homens livremente associados, submetida a seu controle consciente e

    planejado.

    No entanto, at a realizao plena da revoluo burguesa este vnculo com a

    realidade, embora entendida apenas como fenmeno e no como nmeno, ainda se mantinha.

    Era o momento de estruturao positiva da nova ordem social; por isso mesmo interessava

    burguesia, seu carro-chefe, a compreenso da realidade, embora esta, por fora de pressupostos

    histrica e socialmente configurados, fosse conceituada de formas unilaterais (idealismo,

    materialismo). Se ao homem no era dado conhecer a realidade at a sua essncia e intervir nela

    at as suas razes mais profundas, pelo menos dentro de determinado permetro seu

    conhecimento e sua ao se realizavam efetivamente. No mbito do conhecimento, o fenmeno

    era considerado como algo real e no ilusrio, embora o movimento da razo individual fosse

    orientado por normas de carter transcendental. Porm, aps a vitria da revoluo burguesa, a

    necessidade de assegurar o carter positivo (conservador) da nova ordem social teve como

    conseqncia a ampliao cada vez maior deste fosso entre a conscincia e a realidade efetiva,

    conferindo ao e razo um carter cada vez mais manipulatrio. No plano doconhecimento,

    esta passagem da regncia da objetividade para a regncia da subjetividade, foi considerada no

    apenas uma conquista fundamental, mas a descoberta do verdadeiro caminho para a produo

    do conhecimento cientfico. No por outro motivo, esta realizao kantiana chamada de

    revoluo copernicana. Isto porque, em oposio passividade do sujeito, implicada pela

    regncia do objeto, esta mudana enfatizava a participao ativa dele no processo de

    conhecimento, ao mesmo tempo em que a destinao prtica deste, em inteira oposio

    perspectiva greco-medieval. Oliveira resume muito bem este modo de ver. Diz ele:

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    A filosofia de Kant tematiza com toda clareza aquilo que era a tendncia oculta dafilosofia moderna: a funo construtiva da subjetividade no conhecimento. E nisto consiste,precisamente, a reviravolta copernicana da filosofia, ou seja, que o mundo s articulvelcomo mundo, ou seja, que o mundo s chega a si mesmo atravs da mediao dasubjetividade. O eu penso, no o eu emprico, mutvel, histrico, sujeito ao mundo, mas oeu transcendental, a conscincia enquanto tal, se manifesta na filosofia de Kant ... como

    mediao universal e necessria para o conhecimento.(Oliveira, 1989, p.16-18)

    neste momento de necessidade de conservao positiva da ordem social que

    comea a se constituir a tradio positivista (num sentido amplo), cujo esforo vai no sentido de

    defender a naturalidade dos fundamentos da ordem capitalista e, portanto, de rejeitar qualquer

    possibilidade de transformao revolucionria e no sentido de construir um mtodo que pudesse

    compreender o objeto sem nenhum comprometimento valorativo do sujeito.

    Ao longo do sculo XX, e especialmente nestas ltimas dcadas, assistimos a uma

    intensificao cada vez maior da fetichizao da realidade e da conscincia. Como expressa

    muito bem Chasin:

    Fetichizao do mundo pelo capitalismo avanado, na trilha (e no poderia ser outra), queacentua a antiga velatura que vem do mercado e da mercadoria. Agora, no escape relativo lei do valor, pe-se o espessamento do vu nebuloso pelo incremento tecnolgico.Poderio do mundo que emerge com fisionomia supra-humana, na fragilizao do homem,posto como refugo que ameaa abarrotar os quartos de despejo da desocupao. Percepoda energia social e de sua frao individual, cada vez mais acentuadamente, como forasexauridas e sobrepujadas, que parecem nada mais poder, nem determinar. O homem vive esofre o mundo, cada vez mais como produto de seu produto. ... Converte-se eminsignificante, diante da exuberncia da mercadoria multiplicada e das foras cada vez maismisteriosas que as pem no mundo. Sobre o vu nebuloso de um passado recenteestende-se uma nova coberta, ainda mais espessa e fantasmagrica. Que intimida e fascina,obnubila e faz proslitos, reduzindo o homem a subproduto de uma histria que anda edesanda sua revelia. Em suma, ele desaparece enquanto sujeito, diante da maravilhosainfinidade da mercadoria partogentica, capaz de se oferecer a uns e de se subtrair a outros,tornando nulo o gesto da mo que avana e da boca que reclama. (Chasin, 1987, p.37-38)

    Para concluir: Mas este incremento da dimenso fisicamente metafsica da

    mercadoria, determinao do incremento tecnolgico, redunda concomitantemente, ao contrrio

    dos tempos do iluminismo, na acentuao tambm objetiva da fraqueza social do homem (ibid.,

    p. 38).

    Fetichismo tambm reforado, e duplamente, pela realidade dos pases chamados

    socialistas, que continuavam sob a regncia da mercadoria. Citando ainda Chasin:

    Enquanto territrio peculiar da mercadoria e de seu fetiche, submerso, portanto, s formassociais em que o processo de produo domina o homem e no o inverso como pretende,a formao do ps-capitalismo diversifica os fatores de estranhamento da conscincia: a)tal como em qualquer sistema de produo de mercadorias, estas aparecem com vidaprpria, (des)regulando a vida e a conscincia dos homens; b) dada a carncia

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    fundamental que matriza o quadro, as coisas aparecem reforadas em seu poder sobre ohomem; ... c) mundo do capital bsico para alm do capitalismo, suposto como processode produo dominado pelo homem, no que deixa de ser metafsica corporificada para setornar pura e simples configurao metafsica: mstica especulativa.(ibid., p.39)

    Confirmando, pois, o que diz Marx (O Capital: fetichismo da mercadoria): onde hmercadoria h necessariamente estranhamento e o desgoverno na produo da mercadoria (caso

    do mundo atual) tem sempre como conseqncia a intensificao deste estranhamento. A

    fragmentao, a diferena, a empiricidade, ento, deixam de ser determinaes histrico-sociais,

    para se tornarem caractersticas naturais da realidade. Esta, sem essncia, sem unidade, sem

    ordem, sem hierarquia, sem gnese. Aos turbilhes, aos trancos e barrancos. Impenetrvel

    razo e completamente avessa a qualquer interferncia substantiva do sujeito.

    Como conseqncia disto, pode-se dizer que hoje vigora no apenas a centralidade,mas a hipercentralidade da subjetividade, que se manifesta sob as mais diversas formas e nas

    mais variadas reas. Na esfera do conhecimento, desde a sua forma mais extremada, que o

    irracionalismo, tnica das chamadas concepes ps-modernas, at as formas mais moderadas,

    como o neo-iluminismo, o pragmatismo e outras, todas elas tm em comum a nfase na

    subjetividade face a uma objetividade que se recusa total ou parcialmente compreenso5. E

    na ao ela aparece ora como demisso face a uma realidade que parece recusar qualquer

    possibilidade de transformao radical, ora como voluntarismo, objetivando moldar fora estamesma realidade renitente, ora como politicismo, atribuindo esfera da poltica a capacidade de

    instaurao de uma sociedade livre e igualitria.

    O resultado disto que, hoje, nos encontramos numa situao extremamente difcil.

    De um lado, produziu-se um esprito de superficialidade, que se manifesta no elevado

    consumo de modas tericas; na ausncia de seriedade com que so abordados, citados ou at

    descartados autores especialmente certos autores, na despreocupao com uma

    fundamentao rigorosa; na utilizao de conceitos como, por exemplo, modernidade, razo,

    crtica, cidadania, democracia, pluralismo, socialismo e outros de forma pouco criteriosa, como

    se fossem dotados de sentido bvio.

    De outro lado, mesmo quando h seriedade e rigor, mesmo quando h empenho na

    defesa da razo e da atividade humana, a rejeio da perspectiva histrico-ontolgica, que

    compreende tanto a realidade objetiva como o conhecimento como resultados da prxis humana,

    5 As coisas foram to longe que no so poucos, hoje, os autores que rejeitam o que, desde o incio da construo dacincia moderna, foi tido como uma das suas caractersticas essenciais, ou seja, o carter universal da cincia.

    Afirma-se at que no existe uma matemtica, uma fsica, uma biologia, etc. universais, mas uma matemtica, umafsica, uma biologia hindu, feminina, muulmana, negra, etc. Estes e outros exemplos so citados no livroorganizado por WOOD &. FOSTER, intituladoEm defesa da Histria.

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    resulta, de um lado, na intensificao do rigor formal e, de outro, no entesamento da

    vontade, sem abalar, de modo algum, o pressuposto fundamental da centralidade do sujeito.

    Deste modo, o discurso rigoroso, apoiado apenas em si mesmo, passa a ter a exclusiva

    responsabilidade de resolver os problemas tericos e s diversas instncias da subjetividade,especialmente poltica, atribuda a tarefa de reger a ao prtica. Disto resulta, em resumo,

    uma sempre maior afirmao da incapacidade do homem de compreender a realidade como

    totalidade e, por conseqncia, de intervir para transform-la radicalmente.

    A esta centralidade e hipercentralidade da subjetividade tambm no escapou o

    marxismo. Como resultado da conjugao de diversos fatores objetivos e subjetivos, a que, por

    brevidade, no podemos nos referir aqui,6 a elaborao marxiana no foi compreendida como

    tendo um carter ontolgico. O que predominou como marxismo foi uma verso de carter

    positivista, o chamado marxismo do movimento operrio, do qual alguns elementos j se

    encontram em Engels e que foi plenamente desenvolvida por Kautski, Bernstein e inmeros

    outros seguidores. Mesmo uma tentativa de resgatar o sentido crtico original da proposta

    marxiana, como a da Escola de Frankfurt, tem um carter nitidamente anti-ontolgico. Carter,

    alis que, como acertadamente assevera Netto (1996, p.9), tambm marca todo o chamado

    marxismo ocidental. O resultado disto , ora uma justaposio entre necessidade e liberdade

    (inevitabilidade do socialismo e apelo luta revolucionria), ora uma crtica subjetiva (no

    subjetivista) do capitalismo, que permanece incapaz de vislumbrar a possibilidade da sua

    superao. Neste passo, o marxismo foi se empobrecendo e perdendo a sua marca distintiva, que

    era o seu carter radicalmente crtico. Radical, porque tinha como base a captura do processo

    real at a sua raiz. Em conseqncia, foi se aproximando cada vez mais da perspectiva da

    cientificidade burguesa que, como vimos, est marcada pela centralidade da subjetividade.

    Apenas para exemplificar, a aceitao do pluralismo, tanto metodolgico como poltico, pela

    ampla maioria dos marxistas, incapazes de encontrar o verdadeiro tertium datur entre

    dogmatismo e pluralismo, uma clara demonstrao do que afirmamos.

    Em resumo, tanto a perspectiva greco-medieval quanto a perspectiva moderna

    enfatizaram um elemento importante da questo: a primeira acentuou o papel da objetividade,

    mas no pde superar o seu carter a-histrico; a segunda enfatizou o carter ativo do sujeito

    buscando superar a centralidade de uma objetividade a-histrica (greco-medieval). Contudo, seu

    prprio ponto de partida uma determinada compreenso da natureza do ser social levou-a a

    6 Sobre isto, ver o nosso artigo As tarefas dos intelectuais, hoje.Novos Rumos. n. 29, 1999, p.28-37.

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    hiperdimensionar o papel da subjetividade por no compreender a relao ntima e

    indissolvel entre ambas.

    Se este ponto de vista da subjetividade fosse admitido como um ponto de vista e no

    o ponto de vista, isto , como um caminho, histrica e socialmente estruturado, nada haveria aobjetar. , no entanto, o fato de ser considerado como oponto de vista que o torna problemtico.

    Pois, ao se tornar natural, ele s admite a possibilidade de divergncias no seu interior, mas

    no de divergncias radicais que o coloquem em questo a partir dos seus fundamentos.

    Compreende-se. Admitir-se como um ponto de vista, cuja gnese se encontra vinculada a

    determinados interesses sociais, implicaria a admisso da possibilidade da sua superao e a da

    ordem social que lhe deu origem. Esta perspectiva impregna de tal modo o pensamento atual que

    faz com que a abordagem de qualquer fenmeno social de uma perspectiva radicalmente oposta

    (histrico-ontolgica) seja considerada como uma pretenso totalmente infundada.7

    As conseqncias deste ponto de vista da subjetividade para a reflexo acerca de

    qualquer fenmeno social so extremamente danosas. Se a realidade social no uma totalidade

    articulada, mas uma coleo de fragmentos; se a fragmentao no um produto histrico-

    social, mas uma determinao natural da realidade; se a nenhuma das partes da realidade

    pertence o carter de matriz de todas as outras; se inexiste um fio condutor que perpasse e d

    unidade ao conjunto da realidade social; se no existe verdade, mas apenas verdades; se no

    existe histria, mas apenas histrias; se no existe gnero humano, mas apenas grupos sociais

    diferentes e, no limite, indivduos singulares; se o conceito de realidade nada mais do que um

    construto mental; se perdido, rejeitado ou nunca efetivamente compreendido o fio condutor que

    articula todo o processo social a autoconstruo do homem pelo homem a partir do trabalho

    s resta ao sujeito interpretar e transformar o mundo segundo critrios por ele mesmo

    estabelecidos. Que, embora isto seja ignorado, no so critrios que brotam de uma interioridade

    pura, mas j so expresses de uma determinada realidade social objetiva.

    A ttulo de exemplo dos problemas oriundos deste hiperdimensionamento da

    subjetividade, veja-se apenas esta questo: a discusso, que perpassa todo o liberalismo e que

    hoje extravasa para a rea do chamado socialismo democrtico acerca da relao entre igualdade

    e liberdade. Apesar das inegveis diferenas, a concluso sempre um impasse insolvel: No

    h possibilidade de harmonizao entre estas duas categorias. O privilgio concedido liberdade

    implicar necessariamente certas restries igualdade e vice-versa. E isto parece estar

    demonstrado no s terica como tambm praticamente. De modo que, diante deste impasse

    insupervel, toda a discusso passa a centrar-se na busca pela subjetividade de formas cada

    7Quanto a isto, ver o nosso texto Cincia: quando o dilogo se torna impossvel.Democracia ou liberdade, 1997, p.239-259.

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    vez mais aperfeioadas de amenizar este conflito. Milhares e milhares de pginas foram

    e ainda sero gastas neste esforo, inteiramente estril. A soluo, como mostraremos mais

    adiante, est vista, mas requer um outro ponto de partida que articule de forma inteiramente

    diferente subjetividade e objetividade.

    1.3. Resgate e reformulao da centralidade da objetividade e superao da unilateralidade das

    perspectivas anteriores

    O que dissemos at aqui permitir compreender melhor a importncia de expor

    detalhadamente a natureza dos fundamentos postos por Marx, nos quais nos basearemos para

    abordar a problemtica da cidadania.

    Muitas vezes, quando se pretende conhecer as idias de Marx a respeito de

    determinada questo parte-se para a busca dos textos nos quais ele se refere diretamente a ela.

    No cremos que este seja o melhor caminho. Por um motivo to simples quanto ignorado. Para

    Marx, a compreenso de qualquer momento da realidade social tem como pressuposto a sua

    articulao com a totalidade, cujo eixo dinmico a autoconstruo humana. Como diz Chasin:

    O que fica perdido, quando a obra marxiana tomada de modo cientificista, seja reduzida a

    uma disciplina qualquer (economia, histria, poltica), ou mera reflexo epistemolgica(lgica, epistemologia, teoria do conhecimento), ou ainda simples ideao da prticapoltica, justamente o centro nervoso e estruturador da reflexo marxiana: o complexo decomplexos constitudo pela problemtica da autoconstruo do homem, ou, sumariamente,o devir homem do homem; a questo ontolgico-prtica que funda, transpassa e configura oobjetivo ltimo e permanente de toda a sua elaborao terica e de toda a sua preocupaoprtica, na ampla variedade em que esta se manifesta.(Chasin, 1989, p.30)

    No faria sentido, pois, discutir a economia, a poltica, a arte, a educao, etc., sem

    v-las como momentos do processo complexo e contraditrio, certamente de tornar-se

    homem do homem. Fora disto, qualquer parte torna-se um momento fetichizado, abstrato e perdeo seu sentido mais profundo. Por isso mesmo, nosso objetivo, nas pginas seguintes, ser o de

    expor os fundamentos elaborados por Marx, procurando deixar claro que a autoconstruo

    humana o eixo que perpassa toda a sua construo.

    Mas, por que Marx e qual Marx? Por que tomar como base o pensamento de um

    autor que, para a maioria dos intelectuais, j est superado ou, no mximo, pode ser considerado

    um entre muitos outros. Alm disto, sabe-se que h muitas leituras de Marx; a qual dela nos

    reportaramos? Questes extremamente complexas, sobre as quais, obviamente, no podemos

    deter-nos. Procuraremos, aqui, apenas sinalizar a resposta, esperando que ela se torne mais clara

    ao longo da exposio.

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    Temos convico, j fundamentada em outros textos,8 de que Marx , entre

    outros autores, o responsvel maior pela elaborao dos fundamentos de uma concepo

    radicalmente nova de mundo assim como de cincia e de filosofia. Ora, estes fundamentos

    implicam o resgate (superador) da centralidade da objetividade.J vimos que a centralidade da objetividade era a marca distintiva da perspectiva

    greco-medieval. Tambm vimos que a caracterstica maior da perspectiva moderna era a

    centralidade da subjetividade. Que sentido teria, ento, falar em resgate da centralidade da

    objetividade? Uma volta ao passado, considerando um erro o caminho tomado pela

    modernidade? Se no uma simples volta ao passado, seria uma reformulao daquela proposta,

    sem contudo alter-la essencialmente? evidente que se assim fosse Marx no teria a radical

    originalidade que nos parece ter. No poderamos dizer que ele rompeu pela raiz com a tradio

    ocidental e que instaurou um novo patamar cientfico-filosfico.

    Cabe-nos, ento, demonstrar qual a diferena entre a centralidade da objetividade

    greco-medieval e a de Marx, que permite no s romper com aquela tradio, mas tambm com

    a perspectiva da centralidade da subjetividade. escusado dizer que, para ns, ruptura radical

    no quer dizer ausncia de qualquer continuidade. Trata-se, ao contrrio, de uma efetiva

    aufhebung no sentido hegeliano. Cremos, pois, que exatamente isto que acontece. As duas

    perspectivas centralidade da objetividade e centralidade da subjetividade so

    conservadas/superadas/elevadas a um novo patamar. Mas, ento, porque referir-se proposta

    marxiana como resgate da centralidade da objetividade? A exposio a seguir mostrar o

    porque da justeza desta denominao ao deixar claro que o resgate da centralidade da

    objetividadedeve ser entendido em articulao com a reformulao da categoria da objetividade.

    Se dizemos que a perspectiva marxiana resgata a centralidade da objetividade, mas

    ao mesmo tempo instaura um patamar qualitativamente diferente, parece razovel admitir que a

    diferena fundamental dever ser buscada na categoria da objetividade. Vale lembrar,

    brevemente, que, para a concepo greco-medieval, o mundo tinha uma natureza e uma ordem

    anteriores e exteriores ao sujeito. Para a concepo moderna, ao contrrio, o mundo era

    construdo pelo prprio sujeito. J dissemos que Marx rompe com ambas as concepes.

    Na I Tese ad Feuerbach, Marx afirma:

    O principal defeito de todo materialismo at aqui (includo o de Feuerbach) consiste emque o objeto, a realidade, a sensibilidade, s apreendido sob a forma de objeto ou deintuio, mas no como atividade humana sensvel, como prxis, no subjetivamente. Eisporque, em oposio ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvido de maneira abstrata

    pelo idealismo que, naturalmente, desconhece a atividade real, sensvel, como tal.8 Pluralismo metodolgico: um falso caminho. Novos Caminhos, 1997, p.203-237. E As tarefas dos intelectuais,hoje,Democracia ou Liberdade, p.28-37.

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    ao e suas condies materiais de vida, tanto aquelas por eles j encontradas, como asproduzidas por sua prpria ao. Estes pressupostos so, pois, verificveis por viapuramente emprica. (1996, p.26)

    E, mais adiante, acentua de novo: Esta maneira de considerar as coisas no

    desprovida de pressupostos. Parte de pressupostos reais e no os abandona um s instante.

    Estes pressupostos so os homens, no em qualquer fixao ou isolamento fantsticos, mas

    em seu processo de desenvolvimento real, em condies determinadas, empiricamente

    visveis. (ibid., p.38)

    Trata-se, pois, para Marx, de partir no de idias, especulaes ou fantasias, mas de

    fatos reais, empiricamente verificveis, no caso os indivduos concretos, o que eles fazem, as

    relaes que estabelecem entre si e as suas condies reais de existncia, para ento apreender as

    determinaes essenciais que caracterizam este tipo de ser e o seu processo de reproduo. Vale

    a pena ressaltar que a palavra emprico tem, aqui, um sentido ontolgico e no empiricista. Ou

    seja, quando Marx diz que estes pressupostos so empiricamente verificveis, est enfatizando o

    carter de realidade deles em contraposio s especulaes produzidas apenas pelo

    automovimento da imaginao ou da razo.

    Fiel a este apelo de ater-se realidade, qual seria o ponto de partida para

    compreender a realidade social? Para Marx, aquilo que de mais imediato aparece: indivduos,

    reais e ativos, que se encontram em determinadas condies materiais de vida, condies estas,

    por sua vez, que j so o resultado da atividade passada de outros indivduos e que continuam a

    ser modificadas pela atividade presente. Indivduos cujo primeiro ato, imposto pela necessidade

    de sobrevivncia, a transformao da natureza, ou seja, o trabalho. Deste modo, est

    identificado o trabalho como o ato humano que por primeiro deve ser examinado.

    Este exame leva-o a constatar, em primeiro lugar, que o trabalho um intercmbio

    do homem com a natureza. O que significa dizer que o homem tambm um ser natural. Como

    tal, o intercmbio com a natureza algo inseparvel da autoconstruo humana. Neste sentidodiz Marx:

    O homem diretamente um ser natural. Como ser natural e como ser natural vivo dotado,por um lado, de foras naturais, de foras vivas, um ser natural ativo; estas foras existemnele como dotes e capacidades, como pulses; por outro lado, como ser natur