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TÓPICOS EM SAÚDE E DIREITOS Carla Aparecida Arena Ventura
Gustavo D’Andrea
Ricardo Gonçalves Vaz de Oliveira
Marinêz de Fátima Ricardo
(Organizadores)
Sociedade Brasileira de Comunicação em Enfermagem Ribeirão Preto, 2017
INFORMAÇÕES EDITORIAIS
© 2017 by Carla Aparecida Arena Ventura et al.
E-mail para contato com os organizadores: [email protected]
Capa: Carla Cristina Barizza Serviço de Criação e Produção Multimídia Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP/USP) Imagens gratuitas: www.pixabay.com/pt (Licença Creative Commons CC0).
Página deste livro na Internet: bit.ly/livrosaudedireito2017.
Ficha Catalográfica feita pelos organizadores
T674 Tópicos em Saúde e Direitos / Carla Aparecida Arena Ventura… [et al.], organizadores. — Ribeirão Preto: Sociedade Brasileira de Comunicação em Enfermagem, 2017.
ISBN 978-85-64922-08-2
1. Direito. 2. Saúde. 3. Relações entre Direito e Saúde. I. Ventura, Carla Aparecida Arena. II. D’Andrea, Gustavo. III. Oliveira, Ricardo Gonçalves Vaz. IV. Ricardo, Marinêz de Fátima. V. Título.
CDU: 342.7:61
Mergulho em você mesmo
Temos medo de estarmos conosco, mergulharmos em nosso interior. O silêncio e sua prática nos leva a esta possibilidade de encontro profundo e revitalizador. Com o silêncio, encontramos a paz e o amor incondicional vem com toda a força transformadora. O amor é a força mais sutil do mundo. O mundo está farto de ódio. E é este ódio irracional e distante da força criadora que
destrói, corrompe e ensurdece a humanidade.
Pare! Recomece! Reprograme-se... O silêncio pode ser o ponto chave desta nova caminhada. Pratique-o diariamente e transforme um pouco nosso mundo. Ouça-se.
Temos de nos tornar a mudança que queremos ver no mundo. Você tem que ser o espelho da mudança que está propondo. Se eu quero mudar o mundo, tenho que começar por mim.
Pratique diariamente o silêncio da paz. Respire profundamente algumas vezes. Inspire e sopre lentamente até ir relaxando e mergulhando dentro de si mesmo. Feche os olhos e silencie seus medos, preocupações e ansiedades diárias, por alguns momentos. Dê a chance à sua paz e a
paz do mundo.
Faça a sua parte, doe-se sem medo. O que importa mesmo é o que você é...
Mesmo que outras pessoas não se importem. Atitudes simples podem melhorar sua vida.
Você nunca sabe que resultados virão da sua ação. Mas se você não fizer nada, não existirão resultados. Espalhe esta ideia.
Transforme o mundo, a partir de você. Seja a mudança que você deseja para o mundo.
— Mahatma Gandhi
SUMÁRIO
TÓPICO: DIREITO À SAÚDE
APRESENTAÇÃO 7AUTORES 10
Direito à saúde no Brasil: do processo constituinte aos desafios à efetivação
Erika Maria Sampaio Rocha, Rita de Cássia Duarte Lima, Joel Hirtz do Nascimento Navarro, Alexandre Andrade Alvarenga, Eliane de Fátima Almeida Lima, Maria Angélica Carvalho Andrade
15
O “estado de coisas inconstitucional” e o papel da Enfermagem na concretização do Direito à Saúde
Augusto Martinez Perez Filho, Gustavo D’Andrea33
O direito ao não convencional: sobre terapias complementares e práticas populares em saúde
Marcela Jussara Miwa47
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
TÓPICO: DIREITO À SAÚDE MENTAL
TÓPICO: DIREITOS DE GRUPOS VULNERÁVEIS DA POPULAÇÃO
TÓPICO: DIREITOS HUMANOS E PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Pessoas com transtornos mentais e garantias de direitos: uma reflexão sobre instrumentos e documentos internacionais relativos à Saúde Mental
Bruna Sordi Carrara, Raquel Helena Hernandez Fernandes, Carla Aparecida Arena Ventura, Isabel Amélia Costa Mendes
60
A Enfermagem e os Direitos Humanos das pessoas com transtornos mentais e dependentes de álcool, crack e outras drogas
Marciana Fernandes Moll, Cheila Cristina Leonardo de Oliveira Gaioli
76
A judicialização da internação psiquiátrica: contexto histórico e panorama atual no Brasil
Rachel Torres Salvatori e Carla Aparecida Arena Ventura
88
O resgate de direitos sociais dos moradores de Serviços Residenciais Terapêuticos
Vanessa Vieira França, Iracema da Silva Frazão
110
Infância e Adolescência: direitos e transtornos
Marinêz de Fátima Ricardo, Michelle Andrea Marcos129
Políticas públicas em saneamento básico: o controle social como subsídio à concretização
Ricardo Gonçalves Vaz de Oliveira, Thiago Luiz da Silva
152
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
TÓPICO: ÉTICA, BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS
Autonomia do paciente: uma discussão bioética
Bruno de Paula Checchia Liporaci166
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APRESENTAÇÃO
O Direito é produto das relações sociais. Nesse sentido, relações de
caráter emancipador ou conservador impulsionam a criação e transformação
da ordem jurídica. O direito, pensamento e prática jurídica comprometidos com
os direitos humanos podem converter-se em pauta política, ética e social que
embase a construção de uma racionalidade mais abrangente e inclusiva.
Dessa forma, a ideia de universalidade dos direitos humanos pode representar
um marco que permita a todos criar condições para que a concepção de
dignidade humana um dia se torne possível.
Em contextos caracterizados por grandes desigualdades sociais,
ressalta-se o desafio de buscar formas plurais de garantia dos direitos
humanos, especialmente do direito à saúde. A concepção de saúde como
direito humano consolidou-se a partir da segunda metade do século XX,
gerando embates econômicos, políticos e sociais, especialmente sobre o papel
do Estado em sua garantia.
No Brasil, o sistema de saúde passou por profundas transformações
influenciadas pela concepção de saúde como direito, o que levou a avanços
conceituais e organizacionais por meio da criação do Sistema Único de Saúde
(SUS), com a determinação de se oferecer à população um leque de ações
integrais de saúde, com fundamento em uma compreensão mais global do
indivíduo e em uma conceituação de saúde que ultrapassa a ideia de doença e
envolve diferentes determinantes sociais.
Esta obra reflete algumas das discussões empreendidas no âmbito do
Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Desenvolvimento (GEPESADES) da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
da Universidade de São Paulo (EERP-USP), buscando compreender as
interrelações entre os direitos humanos e a saúde e as possibilidades de
atuação de profissionais da saúde, especialmente dos enfermeiros, em
conjunto com os profissionais do direito e a comunidade, na garantia do
exercício dos direitos humanos por grupos mais vulneráveis da população.
O GEPESADES foi criado e cadastrado no Diretório de Grupos de
Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) em outubro de 2011 e iniciou suas atividades de estudo com reuniões
para leitura na íntegra e discussão de diversas obras de Hannah Arendt, agora
seguidas pelas obras de Michel Foucault. Nosso objetivo é estudar em
profundidade diferentes referenciais teóricos que possam direcionar nossas
pesquisas. Além das reuniões de estudos, também trabalhamos em conjunto
com a Liga de Direitos Humanos e Saúde (LIDiHUS) e o Centro de Educação
em Direitos Humanos e Saúde (CEDiHUS), ambos da EERP-USP, na
organização e realização de atividades de extensão com a comunidade. Dentre
as atividades desenvolvidas anualmente desde 2012, ressalto o Workshop
Direitos Humanos e Saúde, com sua sexta edição realizada em 2017.
Dessa forma, os capítulos do primeiro volume do Livro Tópicos em
Saúde e Direitos foram construídos por membros do GEPESADES e também
por pesquisadores convidados, e organizados sob a liderança e
empreendedorismo do Professor Gustavo D’Andrea, com apoio dos co-
organizadores, Professora Marinêz de Fátima Ricardo e Professor Ricardo
Gonçalves Vaz de Oliveira. Agradeço imensamente aos três por toda a
dedicação para a excelência desta obra. Agradeço também profundamente a
todos os autores dos 11 capítulos publicados neste livro, que compartilharam
conosco os resultados de seus estudos desenvolvidos na área.
São dez capítulos subdivididos em cinco tópicos: Direito à Saúde (três
capítulos); Direito à Saúde Mental (quatro capítulos); Direitos de Grupos
Vulneráveis da População (um capítulo); Direitos Humanos e Participação
Social (um capítulo); Ética, Bioética e Direitos Humanos (um capítulo).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Optamos por incluir um tópico específico sobre saúde mental, uma vez que
este representa o foco central da maioria das pesquisas desenvolvidas pelos
membros do GEPESADES.
A diversidade e abrangência dos temas discutidos nesta obra desvelam
a complexidade de nossa área de pesquisa e atuação, assim como os grandes
desafios a serem enfrentados para a efetivação da saúde como real direito de
todas as pessoas. Nessa perspectiva, esperamos que a leitura destes artigos
atue como disparador de reflexões, estudos e discussões profundas sobre
possibilidades de ações provenientes da academia que, em conjunto com a
comunidade, possam gerar mudanças em direção à maior equidade em saúde.
Desejamos assim uma excelente leitura a todos!
Carla Aparecida Arena Ventura
Coordenadora do GEPESADES e CEDiHUS
Tutora da LIDiHUS
Novembro/2017
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AUTORES
Alexander Andrade Alvarenga Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Vila Velha (UVV); Mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pesquisador assistente em Saúde Global e Diplomacia da Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ).
Augusto Martinez Perez Filho Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca – FDF, Master of Laws – LLM, pela Brigham Young University (EUA), Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP. Professor no curso de Direito da Universidade Paulista – UNIP, Campus Ribeirão Preto - SP e no Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto -SP. Advogado.
Bruna Sordi Carrara Graduação em Psicologia (2013), pelo Centro Universitário de Franca (Uni-FACEF). Mestrado em andamento em Enfermagem Psiquiátrica (2016-2018) pela Universidade de São Paulo - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem).
Bruno de Paula Checchia Liporaci Especialista em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP). Graduado em Direito. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/USP) e do Grupo de Pesquisa: Direitos da Personalidade e as novas tecnologias da FDRP-USP (docente responsável: Profª. Drª. Lydia Neves Bastos Telles Nunes)
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Carla Aparecida Arena Ventura Possui graduação em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (1993), graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1998), mestrado em Direito Internacional pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2001) e doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo (2004). Professor Associado do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Diretora do Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/USP).
Cheila Cristina Leonardo de Oliveira Gaioli Enfermeira Doutora do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Eliane de Fátima Almeida Lima Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora do Curso de Graduação e Mestrado Profissional em Enfermagem da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória (ES), Brasil.
Erika Maria Sampaio Rocha Médica graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG). Mestra e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo(UFES), Vitória(ES), Brasil.
Gustavo D’Andrea Advogado. Mestre em Ciências pela FFCLRP-USP (Psicologia). Doutor em Ciências pela EERP-USP (Enfermagem Psiquiátrica). Professor na Universidade Paulista (UNIP - Campus Ribeirão Preto). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/USP). Autor do livro “O que esperar da Faculdade de Direito”. Autor do blog Forense Contemporâneo. Criador da Forensepédia.
Iracema da Silva Frazão Doutorado em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestrado em Nutrição (área de saúde pública) UFPE, Bacharelado em Enfermagem pela Universidade Federal da Bahia. Pós-doutorado em
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Enfermagem /UFBA em Ética na Formação Docente. Professor Associado do Departamento de Enfermagem da UFPE / Centro de Ciências da Saúde. Atua no curso de graduação em Enfermagem na área de Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental, professora dos cursos de mestrado e doutorado do quadro permanente do Programa de Pós-graduação em Enfermagem/UFPE. Coordenadora local do Edital PROCAD UFC/UFPE/UFPI. Líder do grupo de pesquisas Saúde Mental e Qualidade de Vida no Ciclo Vital. CNPq/desde 2007.
Isabel Amélia Costa Mendes Graduada em Enfermagem (1968) e Enfermagem de Saúde Pública (1969) pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto USP (EERP-USP), Mestre em Ciências da Enfermagem UFRJ (1975), Doutor (1986) e Livre-docente em Enfermagem (1989) pela EERP/USP. É Professor Titular da EERP/USP desde 1991 e Pesquisadora 1A do CNPq. Foi Diretora da EERP/USP em 2 mandatos (1994-1998 e 2002-2006), Vice-diretora (1990-1994) e nos mesmos períodos Diretora do Centro Colaborador da OMS para Pesquisa em Enfermagem. Presidiu a Rede Pan-Americana de Centros Colaboradores da OMS para o Desenvolvimento da Enfermagem (PANMCC) de 2003 a 2005. Diretora do Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem de agosto de 2006 a maio de 2017. Em julho de 2007 foi eleita Secretária Geral da Rede Global de Centros Colaboradores da OMS para Enfermagem e Obstetrícia. Mandato: 2008/2014.
Joel Hirtz do Nascimento Navarro Fisioterapeuta graduado pelo Centro Universitário Metodista do Sul, do IPA. Mestre em Gerontologia Biomédica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sula(PUCRS), doutorando em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Espírito Santo(UFES), Vitória(ES), Brasil.
Marcela Jussara Miwa Graduada em Ciências Sociais pela Unicamp. Mestre em Ciência Política pela Unicamp. Doutora em Ciências pela USP. Pós-doutora pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP. Áreas de interesse: Sociologia e Antropologia da Saúde; Terapias Complementares; Práticas Populares em Saúde; Direito à Saúde; Etnografia; Narrativas; Histórias de Vida.
Marciana Fernandes Moll Graduada em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (1994), Especialização em Saúde Mental (2000), Mestrado em Enfermagem pela Universidade de São Paulo (2008), Doutorado em Ciências (2013), Especialização em Docência na Saúde (2015) e Pós-doutorado (em andamento com previsão de término em 2018). Atualmente é
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
enfermeira assistencial da Prefeitura Municipal de Uberaba, professora na Universidade de Uberaba (Graduação e Pós-graduação latu sensu) e Coordenadora de Curso de Pós-graduação latu sensu na Universidade de Uberaba. Tem experiência na área de Enfermagem, com ênfase em Enfermagem Psiquiátrica, atuando principalmente nos seguintes temas: Enfermagem, Rede de Atenção à Saúde, Esquizofrenia, Saúde Pública, Depressão, Direitos humanos, Residências terapêuticas e Cidadania de pessoas com transtornos mentais.
Maria Angélica Carvalho Andrade Médica, Professora adjunta do Departamento de Medicina Social e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) – Vitória (ES), Brasil.
Marinêz de Fátima Ricardo Graduanda em Pedagogia. Graduada em Letras. Mestre e Doutora em Estudos Literários. Professora na rede pública.
Michelle Andrea Marcos Especialista em Direito Público. Advogada. Professora.
Rachel Torres Salvatori Mestre em Enfermagem pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. Especialista em Saúde Suplementar pela Universidade de Brasília /UnB. Especialista em Regulação de Saúde Suplementar, com atuação na Diretoria de Fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Especialista em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca - ENSP/FIOCRUZ . Doutora em ciências pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - EERP/USP. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/USP). Professora do curso de MBA da Trevisan Escola de Negócios de Ribeirão Bonito.
Raquel Helena Hernandez Fernandes Graduação em Direito (2010), pela Faculdade de Direito de Franca. Especialização em Criminologia (2015), pelo Instituto Paulista de Estudos Bioéticos e Jurídicos (IPEBJ). Mestrado em andamento em Ciências (2016-2018), pelo programa de pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem). Docente de cursos técnicos.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Ricardo Gonçalves Vaz de Oliveira Mestrando pelo Programa de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP - USP). Especialista em docência no ensino superior (2013). possui graduação em Direito pelo Instituto Municipal Matonense de Ensino Superior (2012). Atualmente é escrivão de polícia da Delegacia Seccional de Polícia de Sertãozinho. Foi professor e coordenador do curso de extensão universitária de investigação criminal e ciências forenses do centro Universitário Moura Lacerda (2014). Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, Saúde Global, Direito e Desenvolvimento (GEPESADES-EERP/USP) e do Observatório de Violência e Práticas Exemplares (FFCLRP/USP).
Rita de Cássia Duarte Lima Enfermeira, Professora Titular do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória (ES), Brasil.
Thiago Luiz da Silva Bacharel em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Pós-graduação lato sensu em História, Cultura e Sociedade pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto.
Vanessa Vieira França Mestrado em Enfermagem pela Universidade Federal de Pernambuco, Bacharelado em Enfermagem pela UFPE, Residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental pelo Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira - IMIP (2016-2017). Membro do Grupo de Pesquisas Saúde Mental e Qualidade de Vida no Ciclo Vital - CNPq.
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Direito à saúde no Brasil: do processo constituinte aos
desafios à efetivação
Erika Maria Sampaio Rocha
Rita de Cássia Duarte Lima
Joel Hirtz do Nascimento Navarro
Alexandre Andrade Alvarenga
Eliane de Fátima Almeida Lima
Maria Angélica Carvalho Andrade
RESUMO
O direito à saúde não está posto. Sua conquista se insere nas lutas cotidianas
das arenas de disputas entre interesses e intenções diversas. Este texto traz
uma reflexão sobre a complexidade da efetivação do direito à saúde no Brasil.
Tem como ponto de partida as bases históricas das noções de direito à saúde
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
no Brasil e aspectos importantes do Movimento da Reforma Sanitária que
culminaram na maior política de inclusão da América Latina, que é o Sistema
Único de Saúde-SUS. Em paralelo, o capítulo aponta ameaças e desafios
éticos que se impõem à consolidação deste direito desde a sua homologação,
na Constituição Cidadã de 1988, e seguem se explicitando ao longo do tempo,
com articulações e estratégias políticas restringindo garantias e colocando o
Estado em favor de interesses privados.
INTRODUÇÃO
No contexto nacional, a discussão sobre os desafios para
sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) universal e gratuito tem
sido parte de debates que dizem respeito à necessidade de rompimento com
as desigualdades sociais, em que a garantia dos direitos é uma condição para
a obtenção pelos cidadãos da ampliação do acesso qualificado ao sistema e
serviços públicos de saúde.
Este debate vem se estendendo desde a criação do SUS (PAIM 2008,
PAIM et al., 2011) e, nos últimos anos, motivado pelas fragilidades e constantes
ameaças ao sistema público de saúde, tem sido objeto de frequentes
enfrentamentos entre aqueles que defendem a ampliação do SUS e os que
advogam pela necessidade de reduzir o seu tamanho e abrangência.
Assim, essas diferentes forças em disputa têm favorecido a emersão
de importantes desafios ético-político-econômicos, produzindo muitas
interferências na efetivação do direito à saúde. Segundo Santos (2015) e
Menicucci (2014), as perdas de direitos vêm se acumulando na sociedade
brasileira desde a conformação do arcabouço constitucional do sistema, nas
décadas de 80 e 90, até os dias atuais, fruto das negociações com grupos
representantes de interesses diversos, notadamente, os vinculados aos
setores privados na saúde que têm exitosamente conseguido a inclusão de um
subsistema privado dentro do SUS, limitando as garantias constitucionais
relativas ao financiamento e ao controle social, fragilizando a efetivação do
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
direito à saúde e evidenciando a mercantilização das políticas de saúde
(VIEIRA, 2016).
Nesse sentido, a aprovação do SUS, na década de noventa, se
constituiu num processo contra hegemônico, inclusive em disputa com a
expansão do modelo neoliberal e sua tese de menos Estado e mais mercado.
Em 1993, o Banco Mundial publicou um relatório intitulado “World development
report 1993: investing in health”, que recomendava aos estados nacionais
reduzir investimentos públicos em saúde, em nome da livre iniciativa do
mercado privado (WORLD BANK, 1993). Estes interesses mercadológicos
influenciaram no contexto interno de aprovação do SUS, disputando espaço
com aqueles defensores da Reforma Sanitária Brasileira(RSB),e este embate
ficou marcado na conformação possível do direito à saúde, tendo em vista as
negociações entre estes grupos.
Em conformidade com este pensamento, Vieira (2016) aponta a tensão
no cenário nacional, na luta pelo estado de bem estar social, num momento
tardio, em relação aos países europeus, e que se agravou recentemente com o
discurso de ajuste fiscal e corte de gastos sociais.
É tácito que as possibilidades de se implementar o direito à saúde no
cotidiano das práticas são ditadas pela economia política vigente e, no atual
contexto de economias globalizadas e preponderância do mercado
internacional, novos riscos se apresentam para a efetivação desse direito. No
confronto entre a lógica neoliberal e a democrática, o direito à saúde vivencia
crescentes ameaças com privatização de sistemas de saúde tradicionalmente
universais, custos crescentes para os usuários, diretos e indiretos e restrições
severas às políticas sociais (GIOVANELLA, STEGMÜLLER, 2014), sendo esta
discussão muito presente na agenda política atual (SCHEFFER, BAHIA, 2015;
PAIM, 2015).
Muitos estudos apontam as impactantes conquistas sociais alcançadas
desde meados da década de 1970, com a organização da sociedade civil em
torno das discussões e movimentos políticos em defesa dos direitos, da
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
cidadania, das concepções de saúde e sua determinação social. As mudanças
prosseguiram após a 8° Conferência Nacional de Saúde (CNS),em 1986, com
inquestionáveis avanços e melhorias nas condições de vida e saúde da
população brasileira (SANTOS, 2015; PAIM et al, 2011; PAIM, 2015; MENDES,
2013; BRASIL, 2014), que alcançaram um grande patamar com relação ao
acesso aos serviços de saúde, mas a qualidade, que engloba a resolutividade,
a abordagem integral e dialógica, o caráter de humanização que caracterizam
um SUS digno e equânime, ainda apontam a necessidade da luta pela sua
efetivação (CAMPOS, 2014; SOUZA et al., 2014; SARTI, 2015).
Fleury (2009, p.744) afirma que para transformação de "direitos
constitucionais em direitos em exercício" são necessárias políticas públicas que
atuem na correlação de forças, de modo a favorecer o empoderamento dos
sujeitos e a "construção permanente de sujeitos políticos", efetivando a RSB.
Diante desse contexto, este capítulo constitui-se numa reflexão sobre
as bases sociais e políticas no Brasil, cujo desdobramento sustentaram a
construção nacional do direito à saúde, e as implicações de decisões e
discussões atuais sob a perspectiva de efetivação desse direito na Constituição
de 1988.
Destaca-se o fato de que a consolidação do direito à saúde ocorre no
cotidiano dos muitos cenários que envolvem as macro e micropolíticas
institucionais. Com efeito, a garantia do direito à saúde traz como desafio
compreendê-lo como ação social articulada às constantes disputas nas
agendas políticas e, dessa forma, às posturas e ao compromisso ético político
exigidos dos atores envolvidos no seu dia a dia.
UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA SOBRE A CONQUISTA DOS DIREITOS E A
CONCEPÇÃO DE CIDADANIA BRASILEIRA
As noções de direito e cidadania construídas por uma sociedade ao
longo de sua história são os fatores que a mobilizam em defesa de suas
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
conquistas, especialmente em conjunturas políticas de disputa de interesses e
de ameaças a direitos adquiridos. Nesse sentido, para uma reflexão sobre o
tema torna-se necessário conhecer o percurso histórico vivenciado pelo povo
brasileiro, marcado por uma frágil incorporação da cidadania, com modelos
políticos, fortemente vinculados aos interesses do mercado externo,
acarretando implicações diretas na consolidação do direito à saúde (LUZ, 2007;
CARVALHO, 2013).
A ordem cronológica com que se dá a conquista dos direitos civis,
políticos e sociais, que caracterizam o cidadão pleno, é decisiva em relação ao
modo como um determinado povo vivencia a cidadania e, portanto, define o
quanto este coletivo desenvolve habilidades de resistência e luta em defesa de
seus interesses e necessidades (CARVALHO, 2013).
A sequência desta conquista, segundo Marshall, coincide com aquela
que se deu, por exemplo, na Inglaterra: primeiro vieram os direitos civis, no
século XVIII, coincidindo com a formação dos primeiros burgos. Depois, com o
crescimento destes, por volta do século XIX, instituiu-se um poder controlador e
administrador do coletivo, com a noção moderna de Estado e os direitos
políticos. Só mais tarde, por volta do século XX, os cidadãos, agora mais
instruídos e organizados politicamente, passam a reivindicar do Estado
melhorias de condições de vida, tais como moradia digna, segurança,
educação de qualidade, garantias trabalhistas, ou seja, os direitos sociais
(MARSHALL apud CARVALHO, 2013).
No caso do Brasil, a ordem cronológica com que se formalizaram os
direitos aconteceu de modo muito diferente do que foi colocado por Marshall:
primeiro obtivemos os direitos sociais, depois os civis e políticos. Carvalho
(2013) questiona até o termo ‘direito’, já que, neste caso, não foram conquistas
sociais, mas sim concessões, em maior ou menor número, conforme os
períodos da nossa história. Nesse sentido, este autor destaca uma prática na
política brasileira, que ele denominou de “estadania”, em lugar de cidadania,
uma vez que o Estado sempre teve papel central, especialmente o poder
executivo, que sempre foi o mais forte, seja como um duro controlador e
!19
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
cobrador de impostos ou como distribuidor de benesses. Baptista et al.(2009),
em uma análise da atuação dos poderes públicos, mostra a forte ação
regulatória do poder executivo.
Esta cronologia da conquista de direitos no Brasil relaciona-se com a
formação do povo brasileiro com um característico distanciamento político, o
que favoreceu a recorrente aparição do autoritarismo, seja em governos civis
ou militares, visto em vários momentos da história brasileira, e a
implementação de políticas que muitas vezes não representavam as
necessidades reais da sociedade civil (LUZ, 2007; CARVALHO, 2013). Como
exemplo, Luz (2007) destaca o processo de independência do Brasil, realizado
a partir de negociações entre Portugal, Inglaterra e os latifundiários, que não
representou um processo revolucionário ou uma mudança. Toda a burocracia
portuguesa se manteve com o nosso primeiro imperador, Dom Pedro I, filho do
rei de Portugal. Fomos Estado, sem termos sido nação (CARVALHO, 2013). De
modo semelhante, a constituição da República brasileira também não
representou de um processo amplo de transformação social, ao contrário, se
deu atendendo a interesses, econômicos e políticos, de abrir o país ao
mercado externo. A situação do país mostrava várias limitações à economia
capitalista: uma população com baixíssimos índices de alfabetização,
extremamente desinformada, e uma economia de tradição escravocrata, com
mão de obra pouco qualificada e não assalariada, baixo consumo de
manufaturas e com regime de produção com baixa circulação monetária. A
mudança do regime atendeu então a interesses do mercado externo. A
república, assim instalada, apresentou uma estrutura centralizadora, autoritária,
vertical, não sendo representativa da diversidade da sociedade civil. Suas
políticas públicas sociais são instáveis, distantes da população, exatamente por
não representarem genuinamente a sociedade civil (LUZ, 2007).
A revolta da vacina, no Rio de Janeiro, no início da República, ilustra
bem o distanciamento entre a população e os agentes públicos. Os abusos
significativos, constrangimentos e agressões sofridos pela população,
constantemente desinformada sobre os procedimentos sanitários, contribuíram
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
para aumentar a desconfiança em relação ao governo, gerando maior
instabilidade política, econômica e maior risco de epidemias (FAUSTO, 2008).
Conforme, Lima et al (2013), as políticas estatais de saúde, no final do século
XIX e início do século XX, tinham o foco nos interesses capitalistas de
recuperação da força de trabalho que adoecida em função do quadro sanitário
precário, dizimando parcelas consideráveis da população e impactando o
processo produtivo emergente.
Esta conformação política, segundo Luz (2007), trouxe três importantes
características à sociedade brasileira, diretamente relacionadas à efetivação do
direito à saúde. A primeira característica é um forte individualismo nas práticas
políticas, distante das noções de solidariedade, características de sociedades
democráticas, onde foram incorporadas as noções de cidadania. As ações de
solidariedade demonstradas pelo povo brasileiro em situações críticas de
sofrimento coletivo, tais como acidentes naturais, ou mesmo casos de
sofrimento individuais, ou em campanhas de ajuda, não se estendem à atuação
política.
A segunda característica apontada pela autora (LUZ, 2007) se refere a
um desconhecimento, pelo cidadão, dos limites entre o individual e o coletivo,
que reverbera na confusão entre os limites do público e do privado e favorece
aos mais fortes, detentores de poder nas decisões políticas. Esta característica
torna a população muito vulnerável ao que é veiculado pela mídia que, de
modo geral, defende os interesses do capital privado.
E a terceira característica apontada, consequência da segunda, é o
fato de as instituições civis ligadas ao poder público, que deveriam defender os
interesses da sociedade, transformarem–se em centros de mando, controle e
desconsideração do cidadão. Observamos muitas vezes que, ao adentrar no
serviço público, o profissional desconsidera o usuário, aceitando que “em
princípio, todos são iguais, mas há alguns mais iguais que outros” (LUZ, 2007,
p. 297).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
É relevante destacar também o mito do brasileiro como um povo
pacífico, característica que foi sempre realçada, ganhando traços de
passividade política e correndo risco de esvaziar o significado de conflitos e
revoltas ocorridos na história do Brasil e que são hoje retomadas por
historiadores (CARVALHO, 2013).
Diante do exposto pelos autores (LUZ, 2007; FAUSTO, 2008;
CARVALHO, 2013), entende-se que o processo histórico do povo brasileiro
favoreceu uma estruturação frágil das concepções de direito e de cidadania,
impactando negativamente a capacidade de articulação da população em prol
da defesa de seus direitos, o que é fundamental na conjuntura política e
econômica atual, na qual as políticas sociais são definidas conforme os
interesses do mercado financeiro internacional (SANTOS, 2002; PAIM, 2015).
A IMPLEMENTAÇÃO COTIDIANA DO DIREITO À SAÚDE
No processo inicial de efetivação do direito à saúde, ressalta-se o
afastamento das bases populares como importante dificultador das
negociações na Assembleia Nacional Constituinte para a aprovação da
Constituição Federal de 1988 (RODRIGUES NETO, 1997). Para simbolizar
essa concentração de forças em torno das vias legislativo-parlamentar e
técnico-científica e menos articulada com as massas populares, Sergio Arouca
usou a alegoria do “fantasma da classe ausente” (PAIM, 2008). Esse caráter do
movimento teve sérias implicações, uma vez que, desde seu início, limitaram a
implementação ampla da Reforma Sanitária, tal qual vinha sendo elaborada
(SANTOS, 2015; PAIM, 2008).
O texto constitucional expressa os citados interesses em disputa, por
exemplo ao contemplar a concepção de seguridade social, mas, ao mesmo
tempo, garantir a liberdade à iniciativa privada, apresentada sob a possibilidade
da complementariedade, como visto no Artigo 199° (BRASIL, 1988). De modo
análogo, este antagonismo segue na legislação infraconstitucional. Na
aprovação da Lei 8080/1990 (BRASIL, 2007a), todos os artigos referentes à
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
participação social e ao financiamento, bases de sustentação do SUS como
reforma social ampla e não apenas uma reforma setorial da saúde, foram todos
vetados e retomados na Lei 8142/1990, meses depois, com limitações ao
funcionamento das instâncias participativas, dependência do poder executivo,
indefinições em relação ao financiamento para a área da saúde e o
condicionamento, para sua aprovação, da participação da iniciativa privada no
sistema de saúde (BRASIL, 2007b; VASCONCELOS; PASCHE, 2013).
Muitos princípios do direito à saúde ainda não se efetivaram, dentre
eles a participação social (COSTA, 2003; PAIM, 2008). O pleno controle social
se tornou uma ameaça, motivo da “colonização de instâncias participativas por
interesses partidários, corporativos e de grupos” (PAIM, 2015, p. 81). A luta em
defesa de interesses específicos e o corporativismo se fazem cada vez mais
acirradas nas instâncias deliberativas das políticas públicas (SANTOS, 2015;
SCHEFFER; BAHIA, 2015). A representatividade da sociedade civil, já
comprometida pelo seu percurso histórico, se esfacela na prática das
instituições, apesar das diretrizes constitucionais. Acresce a isso, as crises de
várias dimensões na saúde pública, decorrentes de várias situações que vão
do subfinanciamento crônico, a aposta no fracasso desse modelo, a não
adesão das corporações profissionais, a postura insistente da mídia de só
mostrar o SUS que não dá certo, aumentando a desinformação e descrédito da
população sobre as potencialidades desse modelo. Alguns autores (MATTOS,
2006; TEIXEIRA, 2011), questionam se o direito à saúde tem sido efetivamente
uma conquista da sociedade. Nesse sentido, muitos autores apontam as
diferentes formas de silenciamento de usuários e trabalhadores, no dia a dia
nas instituições de saúde (MOREIRA; ESCOREL, 2009; GUIZARDI;
PINHEIRO, 2006; WENDHAUSEN; CAPONI, 2002; MARTINS, 2008; SOUZA
et al., 2012, PEIXOTO; LIMA, 2007). Por outro lado, estudos mostram que os
usuários vêm desenvolvendo formas diferenciadas de participação que se dão
fora das instâncias formais, estando presentes nos cenários das práticas de
cuidado. Estes atores lutam por afirmar seu protagonismo da maneira que lhes
é possível, seja por meio dos “barracos” nas unidades de saúde
(QUINTANILHA et al., 2013), seja pelos caminhos alternativos construídos na
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
rede de serviços (MEHRY, 2013), seja pelo tensionamento criado com os
trabalhadores nas unidades de saúde (SARTI, 2015). Destas formas,
independente dos caminhos e escolhas eles contribuem para a construção do
SUS no dia a dia dos serviços de saúde.
AMEAÇAS À SAÚDE COMO DIREITO SOCIAL
O direito à saúde só se fundamenta na política e na ação. Assim, as
ofensivas ao direito à saúde não podem ser compreendidas descoladas de um
conjunto de políticas e ações conservadoras e protetivas da hegemonia do
capital, que vêm atuando em diversas frentes, sendo mais evidentes na saúde
e educação dado o potencial transformador das mesmas.
Uma das medidas que fortaleceu o setor privado e retirou o apoio
político de parte da classe dos trabalhadores, teve início na época da fusão dos
vários Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) no Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS) em meados da década de 1960. O governo optou
por terceirizar a prestação de serviços médicos para este grande número de
trabalhadores, fortalecendo o capital de empresas médicas com subsídios
estatais, nascendo assim as grandes seguradoras de saúde (PAIM, 2008).
Estes grupos constituíram fortes adversários nas negociações da
Assembleia Nacional Constituinte e vêm, até hoje, posicionando-se
politicamente em defesa das políticas de mercado privado em detrimento do
setor público e espoliando duplamente os recursos públicos, pela utilização
direta de equipamentos e infraestrutura do serviço público e pela garantia na
legislação de isenção fiscal a um grande número de contribuintes, exatamente
aqueles com melhores condições econômicas. O crescimento das empresas e
cooperativas médicas, que se intensificou após a década de 1990, reduziu
também o apoio de grande parte da classe médica, que passou a ter o foco no
trabalho nestas empresas (MENICUCCI, 2014).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
No Brasil, estas medidas, iniciadas pelos Ministérios da Administração
do Estado e do Planejamento, tornam-se cada vez mais explícitas nas políticas
de retração social, com um drástico subfinanciamento, precarizações das
remunerações e das relações de trabalho e a entrada da iniciativa privada por
meio das terceirizações. Especialmente após 1995, quando teve início a
segunda geração da Reforma do Estado que teve como marco o Relatório do
Banco Mundial de 1997 e foi caracterizada pela participação da iniciativa
privada nas políticas públicas e pela presença crescente das Organizações
Sociais, empresas públicas de direito privado com o discurso da
desburocratização da estrutura do Estado (ANDREAZZI, 2013).
Outra estratégia restritiva foi o desvio dos recursos da Contribuição
Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF) da área da saúde, por
meio da Desvinculação das Receitas da União (DRU) que retira ao todo 20%
do orçamento da Seguridade Social (SANTOS, 2015). No ano de 2000, a
aprovação de Emenda Constitucional 29, determinou como investimentos
mínimos de recursos na saúde a taxa de 12% das receitas dos estados e
Distrito Federal e 15% para os municípios, sem assegurar o percentual de
investimento federal (SANTOS, 2015).
A CF/1988 proíbe a utilização de recursos públicos para benefício de
instituições privadas com fins lucrativos, mas permite o estabelecimento de
convênios e subsídios a empresas privadas do setor saúde (BRASIL, 1988). As
empresas de saúde se fortaleceram ao longo deste tempo atuando em duas
frentes: na garantia de apoio político, por meio de investimentos pesados em
campanhas políticas e junto aos parlamentares, garantindo que estes aspectos
permaneçam intocáveis na legislação; e investimento na mídia, com
campanhas subliminares valorizando a medicina suplementar e a paralela
degradação ou invisibilidade das conquistas do SUS (DIRETORIA DO CEBES,
2014; SCHEFFER, BAHIA, 2015; XAVIER, NARVAI, 2015). É frequente o uso
do discurso em defesa do SUS, por candidatos que, após eleitos, atuam contra
ele, aprovando medidas que favorecem a privatização e a lógica da saúde
como bem de consumo (VIEIRA, 2016).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Asensi (2010, p. 15) afirma um constante tensionamento, no que diz
respeito à garantia do direito à saúde, que como um direito social fundamental,
tem “força normativa suficiente para sua incidência imediata e independente de
providência normativa ulterior para sua aplicação”. No entanto, na prática, a
estratégia de sobrevivência estatal é a escolha de grupos que serão
favorecidos em detrimento de outros que arcam com o sofrimento e a falta de
proteção social (ASENSI, 2010). Neste sentido, termos como ‘mínimo
existencial’ e ‘reserva do possível’ são muito utilizados pelo Estado, ainda que
não existam na Constituição, para condicionar a efetivação de direitos à
condição econômica de custeá-los (ASENSI, 2010). ‘Mínimo existencial’ seria o
conjunto dos direitos mínimos para uma vida digna, dentre os direitos
fundamentais, e que não podem ser restritos pelo Estado. Mas, fica então a
possibilidade de o Estado cortar direitos, que não façam parte deste conjunto,
em caso de falta de recursos estatais. E a ‘reserva do possível’ justifica o corte
de recursos para determinados setores, sob a alegação de que o Estado não
possui condições de arcar com os custos (ASENSI, 2010).
Este movimento de ameaça aos direitos, com retração do Estado, vem
se mantendo na Europa e outros países da América Latina com aspectos
diversos, mas tendo em comum o aumento das políticas de copagamentos,
aumento dos custos diretos para os usuários e as privatizações (PAIM, 2015).
Nesta lógica, uma estratégia denominada ‘cobertura universal de saúde’ foi
liderada pela Fundação Rockefeller e pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) e teve início com a aprovação da resolução 58.33, em 2005, na
assembleia da OMS. Com o discurso da sustentabilidade dos sistemas de
saúde e dos riscos, aponta como solução a maior participação do capital
privado como forma de proteção. Apesar do uso do termo universal, a proposta
visa o enfraquecimento dos sistemas universais e a expansão dos sistemas
privados e dos seguros de saúde. Ainda assim, o direito à saúde no Brasil se
viu mais diretamente ameaçado após a 67° Assembleia das Nações Unidas,
onde os representantes brasileiros se pronunciaram favoráveis à proposta da
‘cobertura universal de saúde’, de acordo com a qual a saúde deixaria de ser
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
um direito e passaria a ser um bem de consumo (DIRETORIA DO CEBES,
2014).
Mendes (2013) mostra a experiência de países que optaram pela
criação de sistemas de saúde para as parcelas da população com condições
de arcar com copagamentos, sob a alegação de que haveria um excedente a
ser investido em sistemas básicos, limitados nas tecnologias de média e alta
complexidade, para maior cobertura de serviços para populações carentes. O
resultado destas estratégias foi um maciço subfinanciamento dos sistemas de
saúde nestes países, especialmente devido à baixa organização social e
pequeno poder de vocalização desta parcela mais desfavorecida da população.
Recentemente, Paim (2015, p.63) listou sérias ameaças ao direito à
saúde, tais como: a rejeição da emenda popular Saúde + 10; a abertura da
saúde ao capital estrangeiro; o orçamento impositivo; a obrigatoriedade de
planos privados de saúde para empregados; o projeto de lei das terceirizações;
o reconhecimento da constitucionalidade das Organizações Sociais (OS); e o
compromisso do Governo com a proposta da cobertura universal da saúde.
Segundo este autor, tais ameaças revelam que os três poderes do Estado
Brasileiro atuam na contramão dos princípios e diretrizes do SUS.
A alegação de insustentabilidade do SUS, frente à recente crise
econômica, utilizado sistematicamente como justificativa de cortes de recursos,
é uma falácia, pois são muitas as evidências do desmonte desta política de
inclusão, a maior da América Latina, desde sua aprovação (VIEIRA, 2016). A
sociedade brasileira, a exemplo do que ocorre em vários países, tem
demonstrado insatisfação e descrença no atual jogo político comprometido com
o capital financeiro especulativo e a macroeconomia global, ao mesmo tempo
ficam evidentes as buscas por estratégias, verdadeiramente vinculadas ao bem
estar coletivo e aos interesses nacionais. Assim, a possibilidade da retomada
das diretrizes da RSB reside na participação da sociedade, assumindo os
rumos do financiamento e entendendo que o SUS pertence a cada cidadão, o
seu maior financiador (SANTOS, 2015).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O SUS real vive contradições próprias de processos inovadores e em
construção, numa sociedade tão complexa e diversa como a brasileira, em que
a conquista de direitos, a construção da cidadania e o valor da vida se produz,
de forma diferenciada e lentamente. Ao mesmo tempo em que se obtém
ganhos reais de expansão do acesso qualificado aos serviços de saúde e
melhorias de vários indicadores de saúde, vivenciam-se muitas mazelas
decorrentes da desassistência cotidiana da população, bem como submetem
os trabalhadores às precárias condições de trabalho, aumentando as situações
de risco e vulnerabilidade laboral.
Portanto, não podemos perder de vista que o jogo pela garantia dos
direitos à saúde não está ganho, é uma conquista cotidiana nos diferentes
espaços em ação e atuação, uma vez que os interesses do capital, da
financerização da vida nos impõe estar sempre alertas. Dessa forma, a
realidade nos impõe o desafio permanente de estarmos atentos às tensões e
disputas de diferentes projetos de sociedades que vão sendo produzidas nas
arenas, convocando-nos a não esmorecer na luta em defesa do já conquistado
e na busca do almejado, que indubitavelmente tem sido representado pela
maior política de inclusão social da América Latina, que é o SUS. Apesar do
crescente subfinanciamento das políticas públicas, são inegáveis as conquistas
e melhorias de vários indicadores de saúde da população brasileira. A
cobertura exclusiva do SUS a 71% da população brasileira - cerca de 140
milhões de pessoas -, em uma complexidade crescente do processo de saúde-
doença-cuidado, trouxe ao SUS reconhecimento internacional.
As muitas vivências democráticas, as tantas experiências exitosas dos
muitos SUS espalhados pelo Brasil deixam raízes e promovem mudanças nos
cidadãos de direitos, sejam usuários, profissionais de saúde ou gestores. E,
ainda que sejam tempos preocupantes, há esperança e somos capazes de
pensar, falar e agir em meio a este cenário de ameaças. Podemos, nessa
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
caminhada, nos apropriarmos do sentimento legítimo de que nós somos o
SUS.
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!32
O “estado de coisas inconstitucional” e o papel da
Enfermagem na concretização do Direito à Saúde
Augusto Martinez Perez Filho
Gustavo D’Andrea
RESUMO
O princípio da integralidade, relacionado ao Direito à Saúde é revelador da
dignidade da pessoa humana, pois, para além da mera existência, pugna pela
qualidade de vida holística dos indivíduos. Ocorre que os serviços públicos de
saúde no Brasil enfrentam carências das mais diversas em termos de
qualidade, sendo frequentemente objeto de crítica pela opinião pública. Diante
da baixa efetividade dos direitos fundamentais, o Poder Judiciário tem sido
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
acionado no sentido de fazer valer, no caso concreto, as prerrogativas previstas
abstratamente na lei. No entanto, a despeito dos esforços do Judiciário – de
inquestionável eficácia no âmbito individual – a teoria do “Estado de coisas
inconstitucional” sinaliza para a possibilidade de uma solução, em escala
coletiva, para a questão da saúde pública, sem desfigurar a tradicional
separação dos Poderes estatais. Trata-se da possibilidade de uma atuação
mais incisiva do Poder Judiciário frente a situações em que se configure a
reiterada e contínua violação dos direitos fundamentais, atingindo número
indeterminado de pessoas. Neste diapasão, o profissional da enfermagem
pode auxiliar sobremaneira, ao exercer a advocacia da qualidade na saúde
pública.
INTRODUÇÃO
O princípio da integralidade, previsto no artigo 198, II da Constituição
Federal estabelece que o Direito à Saúde há de ser compreendido a partir de 1
uma abordagem holística na qual atividades preventivas são aliadas às práticas
de medicina curativa, permeando todos os aspectos do ser humano, desde o
físico, biológico, até o psicológico e o meio ambiente no qual se encontra
inserido o indivíduo. Trata-se do cerne da manifestação jurídica, quiçá, mais
reveladora da dignidade da pessoa humana. Afinal:
É no âmbito do Direito à Saúde que se manifesta de forma mais contundente a vinculação do seu respectivo objeto [...] com o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. A despeito do reconhecimento de certos efeitos decorrentes da dignidade da pessoa humana mesmo após a sua morte, o fato é que a dignidade atribuída ao ser humano é essencialmente da pessoa humana viva. O direito à vida (e, no que se verifica a conexão, também o direito à saúde) assume, no âmbito dessa perspectiva a condição de verdadeiro direito a ter direitos, constituindo, além disso, pré-condição da própria dignidade da pessoa humana (SARLET, 2014, p. 591).
“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e 1
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: [...] II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais” (BRASIL, 1988).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Ocorre que os serviços públicos de saúde, em termos de qualidade,
são frequentemente mal avaliados pela opinião pública tendo obtido a média
20, numa escala de 0 a 100, onde acima de 50 pontos considera-se o serviço
público como sendo de boa qualidade, tal como se verifica na pesquisa
“Retratos da Sociedade Brasileira – Serviços públicos, tributação e gasto do
governo”, publicada pela Confederação Nacional da Indústria – CNI (CNI,
2016).
Além disso, os noticiários divulgam sérias dificuldades no campo da
saúde pública, em decorrência da falta de recursos, insuficiência estrutural e
também toda sorte de desafios na área da gestão de recursos humanos, seja
em razão número insuficiente de profissionais, seja pelas más condições de
trabalho, ou mesmo pela remuneração inadequada (PUFF, 2016). Enfim, não é
por demais afirmar que o Direito à Saúde, no Brasil, encontra-se em grave
crise.
Diante da baixa efetividade dos direitos fundamentais, o Poder
Judiciário tem sido acionado no sentido de fazer valer, no caso concreto, as
prerrogativas previstas abstratamente na letra da Carta Magna. Todavia, esta
atuação tem sido de grande valia nas situações em que se pleiteia a
determinação de cirurgias, o fornecimento de medicamentos ou a realização de
tratamentos – ou seja, tudo isto - no plano individual.
Nesse diapasão, o presente trabalho objetiva verificar como a teoria do
“Estado de coisas inconstitucional”, acolhida pelo Supremo Tribunal Federal
poderia representar efetivo ganho – em escala – na efetivação do Direito à
Saúde. Além disto, pretende verificar o papel a ser desempenhado pelo
profissional de Enfermagem, o qual, por meio da advocacia em saúde, poderá
auxiliar no empoderamento dos usuários destinatários das políticas pública de
saúde, bem como — diante de sua experiência direta com a realidade fática —
obter e analisar as informações necessárias à melhoria de todo o sistema, de
modo a se concretizar, materialmente, todo arcabouço legislativo exarado em
termos de saúde pública.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL
O Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2015), em sede de Cautelar em
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ao julgar ação na qual
se discutia a situação de máximo abandono do sistema prisional brasileiro, no
qual – historicamente - tem-se verificado o reiterado descumprimento de
direitos humanos, entendeu que o mesmo se encontrava submetido a
verdadeiro “estado de coisas inconstitucional”. Sobre o conceito de estado de
coisas inconstitucional, Dirley da Cunha Júnior (2016, sem p.) leciona que:
[...] o Estado de Coisas Inconstitucional tem origem nas decisões da Corte Constitucional Colombiana (CCC) diante da constatação de violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais. Tem por finalidade a construção de soluções estruturais voltadas à superação desse lamentável quadro de violação massiva de direitos das populações vulneráveis em face das omissões do poder público.
A primeira decisão da Corte Constitucional Colombiana que reconheceu o ECI foi proferida em 1997 (Sentencia de Unificación - SU 559, de 6/11/1997), numa demanda promovida por diversos professores que tiveram seus direitos previdenciários sistematicamente violados pelas autoridades públicas. Ao declarar, diante da grave situação, o Estado de Coisas Inconstitucional, a Corte Colombiana determinou às autoridades envolvidas a superação do quadro de inconstitucionalidades em prazo razoável.
Em outros termos, em havendo grave, duradoura e generalizada
violação dos direitos fundamentais de modo a atingir um número indeterminado
de indivíduos, e verificando-se que esse quadro resulta da:
Omissão reiterada de diversos e diferentes órgãos estatais no cumprimento de suas obrigações de proteção dos direitos fundamentais, que deixam de adotar as medidas legislativas, administrativas e orçamentárias necessárias para evitar e superar essa violação, consubstanciando uma falta estrutural das instâncias políticas e administrativas [...]
Há a necessidade de a solução ser construída pela atuação conjunta e coordenada de todos os órgãos envolvidos e responsáveis, de modo que a decisão do Tribunal é dirigida
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
não apenas a um órgão ou autoridade, mas sim a uma pluralidade órgãos e autoridades, visando à adoção de mudanças estruturais (como, por exemplo, a elaboração de novas políticas públicas, a alocação de recursos, etc.). (CUNHA JUNIOR, 2016, sem p.).
Nessas situações, a atuação mais altiva do Poder Judiciário,
imiscuindo-se de funções originariamente impostas aos demais Poderes,
sobretudo o Poder Executivo não pode ser vista como um desrespeito à
máxima da separação dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).
Diz o referido julgado (BRASIL, 2015), cuja relatoria é da lavra do
Ministro Marco Aurélio:
Os cárceres brasileiros não servem à ressocialização dos presos. É incontestável que implicam o aumento da criminalidade, transformando pequenos delinquentes em “monstros do crime”. A prova da ineficiência do sistema como política de segurança pública está nas altas taxas de reincidência. E o que é pior: o reincidente passa a cometer crimes ainda mais graves. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, essa taxa fica em torno de 70% e alcança, na maioria, presos provisórios que passaram, ante o contato com outros mais perigosos, a integrar alguma das facções criminosas. A situação é, em síntese, assustadora: dentro dos presídios, violações sistemáticas de direitos humanos; fora deles, aumento da criminalidade e da insegurança social. [...]
A responsabilidade pelo estágio ao qual chegamos, como aduziu o requerente, não pode ser atribuída a um único e exclusivo Poder, mas aos três – Legislativo, Executivo e Judiciário –, e não só os da União, como também os dos estados e do Distrito Federal. Há, na realidade, problemas tanto de formulação e implementação de políticas públicas, quanto de interpretação e aplicação da lei penal. Falta coordenação institucional. O quadro inconstitucional de violação generalizada e contínua dos direitos fundamentais dos presos é diariamente agravado em razão de ações e omissões, falhas estruturais, de todos os poderes públicos da União, dos estados e do Distrito Federal, sobressaindo a sistemática inércia e incapacidade das autoridades públicas em superá-lo. [...]
Importa destacar que a forte violação dos direitos fundamentais dos presos repercute além das respectivas situações subjetivas, produzindo mais violência contra a própria sociedade. [...]
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Repita-se: a intervenção judicial mostra-se legítima presente padrão elevado de omissão estatal frente a situação de violação generalizada de direitos fundamentais. Verificada a paralisia dos poderes políticos, argumentos idealizados do princípio democrático fazem pouco sentido prático.
O quadro de amplo desrespeito aos direitos humanos, mencionado
pelos ministros do Supremo Tribunal Federal autoriza que o Poder Judiciário
determine aos demais poderes, sobretudo ao Poder Executivo, a realização de
medidas concretas. Ou seja, trata-se, em tais casos, do Judiciário ordenar,
exemplificativamente, a edição de atos administrativos ou mesmo a liberação
de recursos contingenciados.
Ressalta-se que o Poder Judiciário e demais órgãos a ele afetos, tal
como o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, há muito têm contribuído para a
efetivação do Direito à Saúde, conforme lição de Lucília Alcione Prata (2013, p.
267):
[...] o CNJ inova em vários segmentos da atividade judiciária recomendando aos Tribunais brasileiros medidas que não se limitam à prestação jurisdicional, mas que certamente servirão de uma base de dados para um diagnóstico da saúde com a finalidade de subsidiar a execução das políticas públicas por todos os segmentos da Administração Estatal.
Ocorre que o Supremo Tribunal, ao acolher a tese do estado de coisas
inconstitucional avançou no que tange à efetivação dos direitos fundamentais,
deixando de concretizá-lo – “no varejo” representado pelas demandas
individuais – para impor medidas de caráter genérico, tal como o fez na ADPF
supracitada, ao determinar a imediata liberação de numerário pertencente ao
Fundo Penitenciário Nacional, retidos a título de contingenciamento pelo Poder
Executivo, além da implantação - em todo o território pátrio – da audiência de
custódia.
A mesma atuação, altiva e concretizante – ao menos em tese – é
possível de ser realizada no âmbito dos serviços de saúde pública. No entanto,
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
faz-se necessário a descrição pormenorizada da real situação envolvendo os
usuários do sistema único de saúde, com a obtenção de dados concretos
obtidos a partir de pesquisas de campo, além da análise crítica implícita aos
profissionais da Enfermagem, que podem auxiliar sobremaneira no processo
de empoderamento dos usuários dos serviços de saúde.
O PROFISSIONAL DE ENFERMAGEM COMO ADVOGADO NA BUSCA
PELA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE
O ideário objetivado pelo constituinte aos diversos setores
responsáveis pela elaboração de todo arcabouço jurídico relacionado à
prestação dos serviços públicos de saúde acaba por ser desrespeitado no
cotidiano da população, ensejando regular atuação do Poder Judiciário, no
intuito de resguardar direitos.
No entanto, para que esta atuação seja ampliada em termos coletivos,
torna-se imperioso o contato direto com a realidade vivenciada pelos usuários
destes serviços, ou seja, a identificação de oportunidades e carências de todo
o Sistema Único de Saúde; uma análise crítica e empírica, que se encontra ao
alcance do profissional da Enfermagem. Um dos meios para esta atuação é a
advocacia em saúde.
Não há, em português, um termo mais apropriado do que “advocacia”
para fazer referência ao que, em inglês, se nomeia “advocacy”. Inescapável
usar, portanto, um termo que é mais tradicionalmente empregado como
dizendo respeito à função do advogado devidamente habilitado junto ao seu
órgão de classe. Segundo Dallari et al (1996, p. 592-601), “é preciso distinguir
a advocacia lato sensu, da advocacia stricto sensu, usualmente empregada
para designar os serviços de um bacharel em direito”, sem que aquela
prescinda desta.
Os autores complementam:
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
A despeito da terminologia, as posturas do advogado em sentido amplo e do advogado tradicional divergem radicalmente ao menos em um ponto: o envolvimento político na causa. Ainda que o bacharel tenha convicções políticas coincidentes com o direito que defende perante o Poder Judiciário, esta não é uma característica definidora do trabalho que desenvolve. Já no caso de um advogado em saúde, tal envolvimento é condição absolutamente necessária para a elaboração de estratégias políticas. (DALLARI et al (1996, p. 597).
Por isso saber o que é advocacia em saúde é importante. Há uma
grande carga subjetiva nessa prática, porquanto o engajamento em defesas de
direitos acaba envolvendo uma convicção interna, muitas vezes fundada em
experiências pessoais, propósitos de vida e visões de mundo particulares. A
frieza da burocracia, a impessoalidade da estrutura administrativa pública,
direcionam o funcionamento do Estado para atribuições pré-definidas, gerando
a ilusão de que cada profissional deve estar estanque nas suas tarefas
contratuais, como se fosse possível prever cada parcela de acontecimentos e
destinar recursos humanos para resolvê-los um a um. O mesmo acontece no
setor privado. Isso faz com que passem a faltar verdadeiros gestores ou
administradores, sendo substituídos por um funcionamento sistemático pouco
sensível às demandas reais de saúde, especialmente do ponto de vista do ser
humano na sua integralidade.
Esse prisma, que merece apontamento é o trazido por Germani e Aith
(2013, p. 41), com o tema "advocacia em promoção da saúde". Os autores
tomam o assunto de maneira mais específica, abrangendo tópicos como
capacitação e determinantes de saúde, oferecendo a seguinte definição:
[...] podemos definir a advocacia em promoção da saúde como o conjunto coordenado e articulado de ações de cidadãos e/ou grupos sociais, voltado a influir sobre as autoridades estatais e sobre a sociedade em geral para promoção do bem-estar físico, mental e social dos indivíduos e da comunidade, para a garantia da equidade em saúde.
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Os autores complementam tal definição, da seguinte forma:
Percebe-se, pelo conceito exposto, que a advocacia em promoção da saúde envolve um conjunto de atores, saberes e fazeres que devem ser articulados na sociedade democrática para a fi nalidade específi ca de promoção da saúde, englobando, assim, elaboração e implementação de políticas públicas, ações de educação em saúde que apoiem modos de vida, desenvolvimento de ambiente saudável (domiciliar, profi ssional, comunitário), oferta de serviços com foco para a saúde, dentre outros temas interssetoriais fundamentais para a proteção do direito à saúde. (GERMANI; AITH, 2013, p. 4).
A integração entre diferentes áreas é importante para o sucesso da
advocacia em saúde, mas há diversas dificuldades, consubstanciadas,
principalmente, em conflitos de interesses, incluindo econômicos, e problemas
de validação de informações divulgadas nos meios de comunicação de massa.
(GERMANI; AITH, 2013).
Por isso, é importante analisar como no campo da Enfermagem os
profissionais poderiam desempenhar a advocacia em saúde. Tomaschewski-
Barlem e colegas (2016) realizaram uma pesquisa qualitativa, procurando
compreender como enfermeiros exercem a advocacia do paciente em contexto
hospitalar. Os autores, por meio de análise textual discursiva, descobriram,
entre os participantes de sua pesquisa, duas categorias referentes ao modo de
proceder dos enfermeiros em relação ao tema central da advocacia por eles
praticada em prol dos pacientes. São elas: a categoria representada pelo
"diálogo franco"; e a das estratégias de resistência voltadas ao exercício da
advocacia do paciente.
No que se refere ao diálogo franco, a autoras citadas usam, também, o
termo "coragem de verdade". De fato, na nossa cultura institucional, é preciso
coragem e disposição para afrontar as práticas da equipe de saúde ou do
próprio Estado, quando essas se mostram contrárias aos direitos dos usuários.
Não se ignoram os riscos de conflitos profissionais, mas as autoras escutaram
falas que traziam a ideia de que a franqueza vale o risco, e isso acaba
colocando os enfermeiros mais conscientes de sua autonomia e em posição de
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
exercício de poder onde atuam. Já no aspecto da resistência, no trabalho
citado, os enfermeiros mencionaram estratégias como exercício da autonomia,
persistência e busca pelo conhecimento em termos de capacitação e
qualificação profissional, bem como a exigência de condições melhores de
trabalho.
Contribuem para a composição de estratégias as etapas identificadas
por Dallari e colegas:
Para o desenvolvimento do processo da advocacia em saúde torna-se necessário passar pelas seguintes etapas: clareamento do problema, coleta de dados sobre a situação, elaboração de estratégias para se atingir os objetivos, apresentação das estratégias para a clientela de tal forma que a mesma tenha autonomia para selecionar as que melhor lhe convierem, aplicação da estratégia escolhida e avaliação.(DALLARI et al, 1996, p. 591)
Em resumo, na elucidação das etapas pelos autores, o clareamento do
problema tem como foco identificar um problema real e a legislação aplicável,
com coleta de dados para fundamentar estratégias. A escolha das estratégias
depende da natureza do problema e a situação política do momento.
Nota-se que não basta aos enfermeiros ter consciência da existência
de uma prática como a advocacia em saúde. É preciso que, adicionalmente,
compreendam seu significado e sua localização na conjuntura política, e
busquem continuamente o aperfeiçoamento técnico e intelectual para
compreenderem melhor cada problema e as estratégias aplicáveis. No campo
mais direto, a atitude independente, corajosa e resistente compõe-se como
perspectiva ideal para uma atuação mais influente no campo mais amplo da
advocacia em prol do Direito à Saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A situação crítica da saúde pública em nosso país demanda profunda
reflexão e ações corretivas urgentes. Os exemplos de excelência merecem
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
tornar-se regra e uma abordagem holística se faz premente, na medida em que
– guardada as proporções – não é por demais exagero dizer que a condição de
estado de coisas inconstitucional, marcada pelo reiterado desrespeito aos
direitos humanos, também pode ser verificada nesta área de serviços públicos.
Neste contexto, o Poder Judiciário acaba por ser alçado à condição de
protagonista no processo de concretização do Direito à Saúde, afastando-se de
seu conceito tradicional de mero aplicador da lei, despontando como
verdadeiro fomentador deste direito social:
A atividade judiciária, divergente da atividade judicial que se limita ao julgamento da demanda, implica na convergência do Poder Judiciário ao sistema de proteção aos direitos sociais, conjugando esforços, dentro de sua esfera como Estado-juiz, para que não só os princípios de acesso à jurisdição sejam cumpridos, mas especialmente aliando esforços para a fomentação de novas políticas públicas, aptas a garantir a mais ampla proteção jurídica, social e econômica ao direito à saúde dos cidadãos brasileiros. (PRATA, 2013, p. 267).
Ocorre que no desempenho do seu mister, o Juiz se encontra
formalmente adstrito aos limites e provas contidas nos autos processuais, de
maneira a carecer de maior exposição no que tange à realidade vivenciada
pelos usuários dos serviços públicos de saúde. Não se olvida, aqui, da
inspeção judicial, prevista no artigo 481 do Código de Processo Civil, instituto
de grande importância que acaba por ser pouco utilizado ante a dificuldade
prática de o magistrado deixar o local de seus afazeres comuns – com todas as
consequências disto decorrentes, tais como a não realização de audiências, a
não edição de sentenças e o não atendimento de advogados, dentre outros
afazeres inerentes à carreira – para se deslocar até o local noticiado pelas
partes, a fim de – pessoalmente – tomar conhecimento acerca da realidade dos
fatos objeto do litígio que lhe fora apresentado.
Nesta conjuntura, ganha especial importância o papel desempenhado
pelo profissional da Enfermagem, haja vista sua incomum práxis, capaz de
auxiliar sobremaneira o Poder Judiciário na efetivação do direito social à saúde,
por meio da produção de dados e informações acerca dos desafios enfrentados
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
pela saúde pública. As pesquisas realizadas in loco pelos profissionais da
Enfermagem suprem importantes lacunas do conhecimento jurídico,
infelizmente ainda carente de maior multidisciplinaridade, além de arraigado em
conceitos positivistas – tecnicista - nos dizeres de Antônio Alberto Machado
(2009, p. 175):
A prática pedagógica se encontra vazada exclusivamente no método lógico-formal, que proporciona [...] um conhecimento meramente descritivo, e não especulativo ou crítico-reflexivo [...] Esse conhecimento, ou, melhor dizendo, esse treinamento formalista impede [...] identificar concretamente o sentido de [...] atuação frente aos reclamos sociais, impedindo também de detectar as relações de poder que estão por trás das normas que faz operar na sociedade. (MACHADO, 2009, p. 175).
Todavia, a atuação do enfermeiro não se limita em auxiliar o Poder
Judiciário, mas em realizar verdadeira advocacia (no sentido de falar por
outrem) em favor dos usuários dos serviços públicos de saúde, conforme
lecionam Carla Ventura e colegas:
[...] quão importante é esta conscientização do enfermeiro sobre o seu papel junto aos usuários dos serviços de saúde, em diferentes esferas de sua atuação. Não buscamos aqui minimizar a relevância das ações técnicas específicas da enfermagem. Além da excelência na realização de suas atividades, o enfermeiro desempenha, em sua prática, um contato direto com situações que o levam a agir também como agente político em busca de mudanças, como "advogado" dos usuários dos serviços de saúde.
Os enfermeiros são profissionais diferenciados, devido aos seus conhecimentos técnicos, habilidades holísticas e a possibilidade de advogarem pelos usuários dos serviços de saúde, reconhecendo também a atuação de outros profissionais da área. Dessa forma, a advocacia em saúde pode e também é desempenhada pelos profissionais de saúde na defesa de diversos aspectos do processo de cuidar em saúde, destacando-se o enfermeiro como um profissional-chave e responsável pelas ações de acompanhamento dos usuários do Sistema Único de Saúde.
Em conjunto com os usuários, os enfermeiros podem auxiliar no processo de empoderamento dos sujeitos, para que se tornem usuários ativos e corresponsáveis pelo cuidado. O conceito de advocacia vem do latim "advocatus" que significa aquele que oferece evidências. As ações de advocacia são definidas como apoio verbal ou argumentação com relação a
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
uma causa, como função do advogado. (VENTURA et al., 2012, p. 896).
Ao empoderar os usuários dos serviços de saúde pública, o profissional
de Enfermagem estará auxiliando com a difícil tarefa de sobrepujar
desigualdades históricas e sociais que, recorrentemente excluem — em
particular, os mais necessitados — do gozo efetivo de um direito social
constitucionalmente previsto. Mais do que isso, estará promovendo o
verdadeiro exercício da cidadania, corroborando para que situações à margem
do bem estar social, material, que lamentavelmente ainda sã vivenciadas
cotidianamente, deixem de existir.
REFERÊNCIAS
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__________. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 Distrito Federal. Relator Min. Marco Aurélio. DJ 09.09.2015 Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665>. Acesso em: 14 jul. 2016.
__________. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, 17 mar. 2015.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
GERMANI, A. C. C. G.; AITH, F. Advocacia em promoção da saúde: conceitos fundamentos e estratégias para a defesa da equidade em saúde. Revista Direito Sanitário, v. 4, n. 1, p. 34–59, 2013. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v14i1p34-59>. Acesso em: 25 out. 2016.
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O direito ao não convencional: sobre terapias complementares e
práticas populares em saúde
Marcela Jussara Miwa
RESUMO
No Brasil, existem políticas que instituem a inserção e discussão de terapias
complementares, medicinas tradicionais e práticas populares no Sistema Único
de Saúde, no entanto, nem sempre essas políticas são conhecidas ou
respeitadas. O presente manuscrito pretende ampliar a discussão sobre
práticas não convencionais em saúde ao resgatar políticas nacionais que
viabilizam a inserção dessas práticas no SUS e explorar os possíveis motivos
do pouco acesso a essas modalidades terapêuticas. A monocultura do saber e
do rigor, hegemônica nas formas de produzir conhecimentos e nos modos de
exercer o cuidado, apresenta-se como um dos principais obstáculos para o
reconhecimento dessas outras modalidades de cuidar e produzir saúde.
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
INTRODUÇÃO
A Declaração de Alma-Ata (WHO, 1978a), ao tratar de cuidados
primários em saúde, atestou a importância de práticas tradicionais em saúde
ao afirmar que os cuidados primários podem incluir praticantes tradicionais
“conforme seja necessário, convenientemente treinados para trabalhar, social e
tecnicamente, ao lado da equipe de saúde e responder às necessidades
expressas de saúde da comunidade”. No mesmo ano, a Organização Mundial
da Saúde (OMS) publicou um documento específico sobre medicinas
tradicionais: “The promotion and development of traditional medicine” (WHO,
1978b), no intuito de promover e desenvolver diversos aspectos das medicinas
tradicionais, defendendo, inclusive, sua integração com a medicina
convencional e inserção nos sistemas nacionais de saúde.
No caso brasileiro, há um esforço para afirmar a legitimidade das
terapias complementares e conhecimentos tradicionais em saúde. No entanto,
assume-se que há ainda uma hegemonia da racionalidade médica
convencional, a biomedicina, que por vezes dificulta a inserção de terapias 1
complementares ou práticas tradicionais/populares no sistema de saúde
brasileiro, obstaculizando o ideal de “integralidade” em saúde (TESSER; LUZ,
2008).
O primeiro passo para abrir o diálogo entre essas práticas não
convencionais e a biomedicina foi a Política Nacional de Humanização
(BRASIL, 2004, 2010). Essa Política, estabelecida em 2003, entre outras
coisas, visou estimular a corresponsabilidade na produção de saúde, por meio
do diálogo e da criação de vínculos solidários permeados por trocas e
construção de saberes, superando a assistência fragmentada, burocratizada e
O termo “racionalidade médica” foi elaborado por Madel T. Luz (1988). Segundo a autora, é 1
racionalidade médica “todo sistema médico complexo construído racional e empiricamente em cinco dimensões: uma morfologia humana (provisoriamente definida como ‘anatomia’), uma dinâmica vital (provisoriamente definida como ‘fisiologia’), uma doutrina médica (definidora do que é estar doente ou sadio, do que é tratável ou curável, de como tratar, etc.), um sistema diagnóstico e um sistema terapêutico” (Luz, 2012: 19). A autora acrescenta ainda que há uma sexta dimensão: a cosmologia. Além da racionalidade da medicina ocidental contemporânea (biomedicina), identificam-se outras racionalidades médicas como: medicina homeopática, medicina tradicional chinesa e medicina ayurvédica (medicina tradicional da Índia).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
verticalizada, promovendo o trabalho em redes, com a participação coletiva no
processo de gestão e oferecendo serviços adequados ao ambiente e à cultura
local. Nesse sentido, para construir saberes em conjunto e oferecer serviços
adequados à cultura local é importante que se reconheça a legitimidade de
conhecimentos que fogem à racionalidade biomédica e que seja possível
agregar esses conhecimentos às práticas e assistência em saúde.
Três anos após a Política de Nacional de Humanização, publicou-se a
Política Nacional de Promoção da Saúde (BRASIL, 2006a) enfatizando ações
de “integralidade, equidade, responsabilidade sanitária, mobilização e
participação social, intersetorialidade, informação, educação e comunicação, e
sustentabilidade”. Estimulando o uso de alternativas inovadoras e socialmente
inclusivas, considerando metodologias participativas e o saber popular e
tradicional. Mesmo reconhecendo a importância dessa interação entre
biomedicina e terapias complementares, conhecimentos populares/tradicionais,
ainda assim, essa política de promoção à saúde parece não ter sido suficiente
para conferir legitimidade a essas práticas “não convencionais”.
Nesse contexto, o presente manuscrito pretende ampliar a discussão
sobre o uso desses recursos “não convencionais”, por meio do resgate de
políticas nacionais que asseguram a inserção dessas práticas no Sistema
Único de Saúde (SUS), assim como, com base na Sociologia das Ausências,
de Boaventura de Sousa Santos (2007), explorar possíveis motivos do pouco
acesso a essas práticas.
Alternativo, complementar ou integrativo?
Antes de discorrer sobre as políticas de saúde sobre práticas não
convencionais, considera-se importante fazer um breve esclarecimento
conceitual dos termos: “terapias alternativas”, “terapias complementares” e
“terapias integrativas”.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Segundo Barros e Nunes (2006) o termo “terapia alternativa” surgiu na
década de 1960 com o movimento da contracultura. Esse movimento,
incentivou uma maior politização da vida social, como também, questionou a
sociedade tecnocrata-capitalista, ampliando os debates e tensões com as
instituições sociais vigentes, contestando paradigmas, contribuindo para o
surgimento de novas ideologias (BARROS, 1997; SADER, 1988), permitindo,
inclusive, uma (re)valorização de conceitos, práticas e sujeitos, marginalizados.
A contracultura afetou a área da saúde ao questionar conceitos como “saúde”,
“doença”, “sofrimento”, “vida e morte”, buscando outras dimensões explicativas,
por vezes distintas daquelas oferecidas pela racionalidade biomédica. Tal fato
contribuiu para a re-apropriação ou criação de perspectivas holísticas, ou
mesmo, místicas, no que se refere ao corpo e ao estado de saúde (MIWA,
2012). Nessa conjuntura, o termo “terapia alternativa” foi cunhado como uma
ideia de oposição à medicina oficial hegemônica.
Na década de 1980, as terapias, que até então eram vistas como
“alternativas”, passaram a ser incorporadas paulatinamente como novas
práticas terapêuticas dentro da medicina oficial (BARROS, NUNES, 2006).
Diluiu-se a ideia de “oposição” e emergiu a noção de “terapia complementar”,
como algo que pode auxiliar o tratamento convencional, contudo, as terapias
complementares continuaram a serem vistas como subordinadas à
biomedicina.
No que diz respeito ao termo “práticas integrativas”, segundo Tesser
(2012), trata-se de um termo institucional do governo brasileiro após a
aprovação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares
(PNPIC), que “contempla sistemas médicos complexos e recursos terapêuticos,
os quais são também denominados pela OMS de medicina tradicional e
complementar / alternativa(MT/MCA)” (BRASIL, 2008, p. 11).
A noção de uma “prática integrativa” abre a possibilidade de uma nova
relação entre biomedicina e práticas não convencionais, não mais de
subordinação das últimas à primeira, mas uma interação mais horizontal, em
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
que ambos os lados admitem a legitimidade de cada um e que consigam
trabalhar em conjunto.
Feito esse pequeno esclarecimento, voltemo-nos às políticas nacionais
de saúde.
Políticas nacionais do “não convencional” em saúde
O ano de 2006 foi profícuo para os saberes não convencionais de
saúde. No referido ano, foram aprovadas duas políticas significativas: a Política
Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (BRASIL, 2006b) e a Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC-SUS)
(BRASIL, 2008).
A Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos pretende
assegurar o “acesso e uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos em
nosso país”, com o desenvolvimento de tecnologias, inovações e o uso
sustentável da biodiversidade.
Considerando que o Brasil possui uma grande biodiversidade e que
populações locais se valem de conhecimento ancestral para o uso de
determinadas plantas, ignorar tais saberes seria um verdadeiro “desperdício da
experiência” (SANTOS, 2007).
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS
tem como proposta ampliar a oferta de ações de saúde no SUS, oferecendo
alternativas a tratamentos convencionais por meio de tecnologias eficazes e
seguras para a prevenção de agravos, promoção e recuperação da saúde.
Entre as racionalidades médicas e recursos terapêuticos contemplados pela
PNPIC encontram-se: homeopatia; acupuntura (medicina tradicional chinesa);
uso de plantas medicinais – fitoterapia; termalismo-crenoterapia; e medicina
antroposófica.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Além disso, segundo o site Portal da Saúde desde abril de 2016 a 2
terapia comunitária, dança circular/biodança, yoga, oficina de massagem/
automassagem, auriculoterapia e massoterapia passaram a fazer parte dos
serviços do SUS.
Recentemente foi publicada a Portaria n° 145 de janeiro de 2017
(BRASIL, 2017) que amplia a oferta de práticas integrativas e complementares
no SUS. Dentre os tratamentos incluídos estão: arteterapia, meditação,
musicoterapia, tratamento naturopático, tratamento osteopático, e reiki.
Dessa forma, há de se admitir o esforço do Governo em aumentar a
inserção dessas práticas complementares nos serviços, contribuindo com o
processo de humanização e assistência integral ao usuário. Todavia, trata-se
de práticas e procedimentos que dependem de um conhecimento e preparo
especializados que nem sempre fazem parte do cotidiano dos sujeitos e, de
certa forma, podem acabar reproduzindo uma relação hierarquizada: saber
especializado x saber popular. Já no caso da Política Nacional de Educação
Popular em Saúde, além de tentar estimular os preceitos já presentes na
política de humanização, há o resgate da legitimidade dos saberes e práticas
populares em saúde.
A Política Nacional de Educação Popular - PNEPS foi aprovada em
2013 (Brasil, 2013) visando “promover o diálogo e a troca entre práticas e
saberes populares e técnico-científico no âmbito do SUS”. Para sua
efetividade, a PNEPS-SUS pressupõe diálogos multiculturais, a construção
compartilhada do conhecimento, a emancipação dos sujeitos, socialização de
tecnologias e perspectivas integrativas e a amorosidade, no intuito de estimular
o protagonismo popular na resolução de questões sociais de saúde, assim
como incentivar a participação popular no processo de gestão da assistência.
Conforme o Plano Operativo do Conselho Nacional de Secretários de
Saúde (CONASS) sobre a PNPES (CONASS, 2013), deve-se considerar “além
D i s p o n í v e l e m : h t t p : / / d a b . s a u d e . g o v. b r / p o r t a l d a b / n o t i c i a s . p h p ?2
conteudo=_&cod=2297.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
dos conhecimentos técnicos e científicos, os saberes populares, como é o caso
dos raizeiros, das benzedeiras, curandeiros, parteiras, práticas dos terreiros, de
matriz africana, dos indígenas, entre outros.” (p. 04).
Mais do que reforçar vínculos solidários, a PNEPS reinsere as práticas
populares na discussão e atendimento nas instituições de saúde,
reconhecendo que, mesmo que sejam tecnologias aparentemente ineficazes
cientificamente, fazem parte do cotidiano dos sujeitos e devem ser integradas
no quadro das práticas em saúde. Ao serem aceitos e valorizados pelos seus
saberes e práticas, os usuários dos serviços de saúde readquirem a
“autorização” para a fala, permitindo uma troca menos hierarquizada com os
profissionais e gestores de saúde. Tal fato contribui também para seu
empoderamento, com aumento da autonomia, capacidade de organização e
reivindicação, no caso, de direitos em saúde (WENDHAUSEN; BARBOSA;
BORBA, 2006).
A Sociologia das Ausências e práticas não convencionais em
saúde
A Sociologia das Ausências é uma proposta de Boaventura de Sousa
Santos (2007) para superar “monoculturas” hegemônicas que produzem “não-
existência”, isto é, a lógica dessas monoculturas obscurecem ou negam a
existência de outras formas de ser, pensar e agir que sejam diferentes das
concepções hegemônicas.
Santos (2007) identifica cinco tipos de monoculturas:
1. A do saber e do rigor: nesse tipo de monocultura apenas o
conhecimento científico é considerado legítimo, excluindo outras formas de
produção de saber, como o conhecimento popular, indígena, religioso,
mágico, etc. A sua forma de produzir ausência é a ignorância;
2. A do tempo linear: “ideia de que a história tem um sentido, uma
direção, e de que os países desenvolvidos estão na dianteira” (p. 29). Essa
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
monocultura está associada à noção de “progresso”. O modo de produzir
inexistência é a ideia de “simples”, “selvagem”, “pré-moderno”;
3. A da naturalização das diferenças: nessa monocultura ocultam-se
hierarquias, como por exemplo, a classificação étnica/racial ou sexual. A
ausência é produzida pela “inferiorização”;
4. A da escala dominante: está baseada nas concepções de
universalismo e globalização, há um privilégio do global, macro, em
detrimento daquilo que é considerado “pequeno”, “local”. A não existência é
produzida ao considerar o “particular” e o “local” como descartável ou
desprezível;
5. A do produtivismo capitalista: ideia de um crescimento econômico e
produtividade aplicada tanto ao trabalho como à natureza. A ausência é
produzida quando se identifica algo como “improdutivo”.
Pensando no caso das práticas não convencionais, pela ótica da
Sociologia das Ausências, é possível relacionar a dificuldade da inserção
dessas práticas, nos sistemas de saúde, à persistência da monocultura do
saber e do rigor.
Muitas práticas, consideradas complementares ou tradicionais, como a
medicina tradicional chinesa (LUZ, 2012B), a homeopatia (CAMPELLO, LUZ,
2012), o reiki (MIWA, 2012), etc., fundamentam-se em conceitos que diferem
em muito dos princípios biomédicos. Sua lógica operacional alicerça-se na
premissa de uma “energia” que influencia o ser e os desajustes energéticos
seriam os principais causadores dos problemas de saúde. O rigor científico
exige evidências, entretanto, nem sempre é possível provar claramente a
existência de “energias sutis”. Olvida-se que quando algo não pode ser
comprovado cientificamente não significa, necessariamente, que seja inválido,
talvez seja apenas o caso de não se ter os instrumentos adequados para
pesquisar e analisar esse algo.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Mesmo com as dificuldades de serem reconhecidas pela biomedicina,
algumas dessas práticas já foram apropriadas pela categoria médica, como é o
caso da homeopatia e a acupuntura, da medicina tradicional chinesa. Porém, o
que dizer dos conhecimentos populares em saúde?
Os conhecimentos populares, por vezes, não são estruturados ou
sistematizados, ora podem estar mesclados com crenças religiosas ou
“superstições”. Sua forma de transmissão geralmente não segue os cânones
da escrita acadêmica, está no cotidiano das pessoas, é comumente informal.
Esse tipo de conhecimento, por ser ordinariamente popular, é o que corre maior
risco de ser vítima do epistemicídio praticado pela monocultura do saber e do
rigor. Nas palavras de Santos (2007):
Essa monocultura [do saber e do rigor] elimina muita realidade que fica fora das concepções científicas da sociedade, porque há práticas sociais que estão baseadas em conhecimentos populares, conhecimentos indígenas, conhecimentos camponeses, conhecimentos urbanos, mas que não são avaliados como importantes ou rigorosos. E, como tal, todas as práticas sociais que se organizam segundo esse tipo de conhecimento não são críveis, não existem, não são visíveis. [...] Ao constituir-se como monocultura [...] destrói outros conhecimentos, produz o que chamo de ‘epistemicídio’: a morte de conhecimentos alternativos.” (p. 29)
Ao se deslegitimar os saberes populares, não se deslegitima apenas
uma prática de saúde, deslegitima-se também um modo de vida, uma visão de
mundo. A consequência disso é o “desempoderamento”, uma vez que se nega
à população uma possiblidade de autocuidado, destituindo sua autonomia.
Contudo, paira a questão: como efetivar a coexistência de profissionais
de saúde e praticantes de terapias complementares e/ou saberes populares?
Nem o PNPIC-SUS (Brasil, 2008) nem a Portaria n° 145 de janeiro de
2017 (BRASIL, 2017), que amplia a oferta de práticas integrativas e
complementares no SUS, deixam claro a forma de contratação desses
praticantes de especialidades não convencionais. A Portaria n° 145 apresenta a
Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) associada a cada uma das
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
modalidades terapêuticas integrativas e complementares e nota-se a
predominância de profissionais graduados em saúde. Surge outra dúvida:
esses profissionais da saúde serão contratados de acordo com sua formação
profissional e, conforme for conveniente, irão trabalhar com as especialidades
não convencionais ou serão contratados especificamente por essas “novas”
modalidades terapêuticas? E aqueles que não possuem status de profissionais
de saúde, serão contratados pelos serviços públicos de saúde ou contentar-se-
ão com o voluntariado? São indagações que merecem um debate mais
aprofundado entre gestores, profissionais de saúde e terapeutas não
convencionais.
E no caso de práticas populares em saúde, como conciliar
benzedeiras, mateiros, curandeiros, etc., com os serviços de saúde?
Os profissionais de saúde, e o próprio serviço, estão preparados para
dialogar com tais sujeitos?
A ciência moderna ainda repousa sobre as bases da monocultura do
saber e do rigor (SANTOS, 2007; SANTOS, 2011) e a formação acadêmica, por
sua vez, está estruturada segundo a lógica da ciência moderna, ou seja, os
profissionais de saúde, durante sua formação acadêmica, dificilmente são
preparados para esse tipo de diálogo. Há diversas formas de epistemicídios na
trajetória acadêmica, porém, nem sempre são percebidos, pois são
frequentemente produzidos como não existentes, uma vez que fogem do
padrão científico. Então como esperar que profissionais de saúde sejam
capazes de acolher e construir novas formas de conhecimento em conjunto
com saberes tão díspares de sua formação?
Diante do que foi exposto, entende-se que assegurar a inserção de
terapias complementares e práticas populares nos serviços de saúde não
significa apenas ampliar a oferta de terapêuticas, mas sim, restituir a
legitimidade de outras formas de conhecimento e de estar no mundo que foram
injustamente produzidos como não existentes. Trata-se, em outras palavras, de
uma luta política, uma forma de garantir o “direito à diferença” (BITTAR, 2009).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão sobre a inserção de terapias complementares e práticas
populares em saúde é extensa. Vários elementos estão envolvidos, como
visões de mundo, organização social e profissional, assim como, relações de
poder. Nem todas as pessoas, e isso pode incluir alguns profissionais da
saúde, têm consciência das políticas acima apresentadas e, não raro, ignora-se
que isso é também um direito em saúde. Contudo, a simples publicação de
decretos ou portarias não é suficiente para salvaguardar a existência dessas
práticas não convencionais nos serviços de saúde. Necessita-se, também, de
uma mudança estrutural, tanto nas formas de produzir conhecimento como nos
modos de exercer o cuidado.
REFERÊNCIAS
BARROS, N.F. Médicos em Crise e em Opção: uma análise das práticas não biomédicas em Campinas.1997. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – FCM/UNICAMP, Campinas, 1997.
BARROS, N. F.; NUNES, E. D. Complementary and alternative medicine in Brazil: one concept, different meanings. Cadernos de Saúde Pública, v. 22, n. 10, p. 2023-2039, 2006.
BITTAR, E. C. B. Reconhecimento e direito à diferença: teoria crítica, diversidade e a cultura dos Direito Humanos. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 104, p. 551-565, 2009.
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização – Humaniza SUS – Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
__________. Ministério da Saúde. Política Nacional de Promoção de Saúde. Série Pactos pela Saúde, v. 7. Brasília: Ministério da Saúde, 2006a.
__________. Ministério da Saúde. Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2006b.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
__________. Ministério da Saúde. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: PNPIC: atitude de ampliação de acesso. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.
__________. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e intervenção. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
__________. Ministério da Saúde. Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Portaria n° 2761, de 19 de novembro de 2013.
__________. Ministério da Saúde. Altera procedimentos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS para atendimento na Atenção Básica. Portaria n° 145, de 11 de janeiro de 2017.
CAMPELLO, M. F.; LUZ, H. S. A racionalidade médica homeopática. In: LUZ, M. T.; BARROS, N. F (Org.) Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: Ed. da CEPESC/IMS-UERJ/ABRASCO, 2012.
CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE – CONASS. Plano Operativo da Política Nacional de Educação Popular em Saúde 2013-2015. Brasília: Conass, 2013.
LUZ, MT. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
__________. Contribuição do conceito de racionalidade médica para o campo da saúde: estudos comparativos de sistemas médicos e práticas terapêuticas. In: LUZ, M. T.; BARROS, NF (Org.) Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS-UERJ/ABRASCO, 2012a.
__________. Medicina tradicional chinesa, racionalidade médica. In: LUZ, M. T.; BARROS, N. F. (Org.) Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS-UERJ/ABRASCO, 2012b.
MIWA, M. J. Com o poder nas mãos: um estudo sobre johrei e reiki. 2012. Tese (Doutorado em Enfermagem Psiquiátrica) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2012.
SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SANTOS, B. S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
__________. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2011.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
TESSER, C. D. Pesquisa e institucionalização das práticas integrativas e complementares e racionalidades médicas na Saúde Coletiva e no SUS: uma reflexão. In: LUZ, MT; BARROS, NF (Org.) Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS-UERJ/ABRASCO, 2012.
TESSER, C. D.; LUZ, M. T. Racionalidades médicas e integralidade. Ciência & Saúde Coletiva, v. 13, n. 1, p. 195-206, 2008.
WENDHAUSEN, A.; BARBOSA, T. M. ; BORBA, M. C. Empoderamento e recursos para a participação em conselhos gestores. Saúde & Sociedade, v. 15, n. 3, p. 131-144, 2006.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Declaration of Alma-Ata. International Conference on Primary Health Care, Alma-Ata, URSS, 6-12 September. 1978a.
__________. The promotion and development of traditional medicine. Geneva, Switzerland, 1978b.
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Pessoas com transtornos mentais e garantias de direitos: uma
reflexão sobre instrumentos e documentos internacionais
relativos à Saúde Mental
Bruna Sordi Carrara
Raquel Helena Hernandez Fernandes
Carla Aparecida Arena Ventura
Isabel Amélia Costa Mendes
RESUMO
As pessoas com transtornos mentais possuem todos os direitos da pessoa
humana e os governos encontram-se no dever de respeitar, promover e realizar
seus direitos fundamentais, de acordo com o que há definido em documentos
internacionais de direitos humanos obrigatórios. Com a criação das Nações
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Unidas, foi possível o desenvolvimento de instrumentos internacionais e,
também, regionais, especificando as preocupações sobre os direitos humanos
particulares de cada região. Esta reflexão apresenta como objetivo descrever
medidas de proteção e garantias de direitos das pessoas com transtornos
mentais previstas em instrumentos e documentos internacionais. Foram
realizadas buscas por meio de pesquisa documental, incluindo documentos
oficiais retirados da base de dados eletrônica MiNDbank, plataforma da
Organização Mundial da Saúde. Foram selecionados 15 instrumentos,
interpretados por meio da análise temática, a fim de examinar o conteúdo dos
dados extraídos. As categorias criadas apontam as semelhanças que os
instrumentos selecionados trazem sobre proteção de direitos de pessoas com
transtornos mentais. Percebe-se que os instrumentos são um ponto de partida
para novas ações, mas não é suficiente. São necessários esforços coletivos
para reduzir a estigmatização, a exclusão e a violação de direitos das pessoas
com transtornos mentais.
INTRODUÇÃO
As pessoas com transtornos mentais sofreram, ao longo da história,
profundas injustiças por serem consideradas ameaças para si próprias e para
os outros e incapazes de tomarem decisões. Assim, foram excluídas da vida
em sociedade, privadas de sua liberdade e isoladas em instituições
psiquiátricas que comprometeram suas condições de saúde e de vida (GABLE
et al., 2005). Este cenário é ainda real mesmo após a definição deste grupo
pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como um grupo vulnerável e como
uma das populações mais marginalizadas da maioria dos países (WHO, 2005).
Nesse contexto, as pessoas com transtornos mentais possuem
dificuldades para exercer seus direitos, seja no interior de instituições ou na
comunidade (WHO, 2005). Observa-se, portanto, que o exercício dos direitos
não é possível a todas as pessoas, apesar da aprovação da Declaração
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que reconheceu os direitos
humanos como universais (SILVA, 2005).
Dentre os direitos mais violados, destaca-se o direito à saúde,
considerado um direito social, conforme estabelece o artigo 25 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Assim, é um direito com grande destaque em
instrumentos internacionais, como a Pacto das Nações Unidas sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (1966) e, também, na Constituição da
Organização Mundial da Saúde (OMS) e em outros documentos organizados
por organizações internacionais e não governamentais. A proteção dos direitos
humanos está intimamente ligada à proteção da saúde de todo ser humano,
principalmente dos grupos mais vulneráveis e estigmatizados, como as
pessoas com transtornos mentais (VENTURA; BRITO, 2012).
As pessoas com transtornos mentais possuem todos os direitos da
pessoa humana e, portanto, os governos encontram-se na obrigação de
respeitar, promover e realizar os direitos fundamentais das pessoas com
transtornos mentais, de acordo com o que há definido em documentos
internacionais de direitos humanos obrigatórios. Neste cenário, observam-se
esforços para o desenvolvimento da proteção dos direitos humanos para
pessoas com transtornos mentais, elucidando princípios fundamentais para
proteção dos direitos e liberdades do ser humano, com base nos fundamentos
dos direitos humanos como igualdade, a não discriminação, o direito à
privacidade e autonomia individual, liberdade de tratamento desumano e
degradante, princípio de ambiente menos restritivo e direito à informação e
participação (GABLE et al., 2005; OMS, 2005).
Existem, nesse contexto, reações internacionais de luta pela proteção
das pessoas com transtornos mentais, em países desenvolvidos e em
desenvolvimento. A partir de 1945, surgiram tratados internacionais dos direitos
humanos e outros instrumentos, conferindo uma forma legal aos direitos
humanos inerentes a todo ser humano. Com a criação das Nações Unidas, foi
possível o desenvolvimento de instrumentos internacionais e, também,
regionais, especificando as preocupações sobre os direitos humanos
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
particulares de cada região. Nesse sentido, as normas consistem em tratados,
declarações, resoluções, diretrizes e princípios (ONU, 2014).
Os tratados podem ser pactos, cartas, protocolos, convenções,
caracterizados como um acordo entre os Estados que se comprometem com
regras específicas. A ratificação ou adesão a um tratado são expressões
formais do consentimento de um Estado em se comprometer a cumprir o seu
conteúdo. As declarações, resoluções, recomendações, diretrizes e princípios
não têm nenhum efeito vinculativo legal sobre os Estados, mas representam
amplo consenso internacional, adquirindo, portanto, força moral nas práticas
dos Estados em relação a sua conduta nas relações internacionais (ONU,
2014).
Quando se coloca em prática as normas contidas nesses instrumentos
e documentos, nasce a expectativa de que direitos e garantias fundamentais
das pessoas com transtorno mental sejam tutelados. Nesse cenário, este
estudo apresenta como objetivo descrever medidas de proteção e garantias de
direitos das pessoas com transtorno mental previstas em instrumentos e
documentos internacionais.
MÉTODO
Para o desenvolvimento deste artigo de reflexão, não foram utilizadas
metodologias referentes às revisões sistemática e integrativa. Nesse contexto,
foram realizadas buscas por meio de pesquisa documental, incluindo
documentos oficiais retirados da base de dados eletrônica MiNDbank. Esta
base pertence à Organização Mundial da Saúde (OMS) e possui recursos
extensivos sobre os países membros da OMS (políticas, planos, estratégias e
legislação), nas áreas de saúde mental, deficiência, saúde em geral e dos
direitos humanos, juntamente com os tratados internacionais e regionais
(WHO, 2001).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
A MiNDbank é produto do projeto Quality Rights, desenvolvido pela
OMS com o propósito de melhorar os cuidados e eliminar as violações dos
direitos humanos dirigidas às pessoas com incapacidade mental e psicossocial,
a fim de facilitar o debate, o diálogo, a advocacia e a investigação para
promover reformas de acordo com os direitos humanos e com as boas práticas
internacionais (WHO, 2001).
Nesta plataforma on-line, há livre acesso aos chamados “recursos” e,
dentre eles, os itens “National mental health policies, strategies and laws” e
“International and regional human rights conventions and treaties” foram os de
interesse para este estudo.
A partir do link “Mental Health Publications”, foi selecionado o tópico
“Mental Health Policy, Services, Law and Human Rights” e os seguintes
arquivos foram selecionados: “Improving Health Systems and Services for
Mental Health”, “Resource Book on Mental Health, Human Rights and
Legislation”, “Mental Health, Legislation and Human Rights”.
Esses arquivos possuem informações relacionadas à saúde mental que
exploram os direitos das pessoas com transtornos mentais, por meio de um
levantamento de instrumentos universais e regionais. Estes instrumentos
apresentam diretrizes aos países, visando à minimização de violação de
direitos.
Para a interpretação dos instrumentos foi utilizada a análise temática, a
fim de examinar o conteúdo dos dados extraídos e identificar os temas
relevantes. Primeiramente, foi realizada leitura dos documentos para
identificação dos instrumentos relacionados à temática. Posteriormente,
unidades de significados foram formadas e agrupadas em unidades temáticas
que se repetiam nos instrumentos elegidos (POLIT; BECK, 2011). Esta
codificação permitiu a criação de categorias relacionadas às pessoas com
transtornos mentais e a garantia de direitos.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
RESULTADOS
Dos arquivos “Improving Health Systems and Services for Mental
Health”, “Resource Book on Mental Health, Human Rights and Legislation”,
“Mental Health, Legislation and Human Rights”, foram selecionados 15
instrumentos.
No Quadro 1, os 15 instrumentos estão listados e suas informações
foram extraídas e categorizadas em tipo de documento (Universal ou Regional;
Declaração, Convenção, Pacto, Recomendação; Mandatório ou Não-
Mandatório), ano de aprovação, entrada em vigor e regiões onde os
documentos foram elaborados e ratificados.
DISCUSSÃO
Com base na leitura dos 15 instrumentos, percebeu-se que unidades
temáticas se repetiam nos instrumentos e, assim, foram criadas as categorias
discutidas a seguir a fim de expor as semelhanças que os referidos
instrumentos trazem sobre proteção de direitos de pessoas com transtornos
mentais.
Quadro 1. Informações extraídas dos documentos internacionais selecionados
neste estudo.
Título do Documento Tipo de Documento Ano de Aprovação
Entrada em Vigor Regiões
Declaração dos Direitos Humanos da ONU
Universal/Declaração/Não-Mandatório 1948 1948 Mundial
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP)
Universal /Pacto/Não-Mandatório 1966 1976 Mundial
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)
Universal /Pacto/Não-Mandatório 1966 1976 Mundial
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Lei da Saúde Mental: Dez Princípios Básicos das Nações Unidas para a Proteção de Pessoas com Enfermidade Mental e a Melhoria da Atenção à Saúde Mental (Princípios ASM)
Universal/Princípio/Não-Mandatório 1991 1991 Mundial
Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais
Regional /Convenção/Não-Mandatório 1950 1953
R e g i ã o Europeia
Recomendação 1235 sobre Psiquiatria e Direitos Humanos
Regional/Recomendação/Não Mandatório 1994 1994
R e g i ã o Europeia
Recomendação Re l a t i va à Proteção dos Direitos Humanos e da Dignidade da Pessoa com Transtornos Mentais
Recomendação 2004 2004R e g i ã o Europeia
Convenção Interamericana sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiências
Regional/Convenção 1978 1999R e g i ã o d a s Américas
Recomendação Interamericana sobre a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos de Pessoas com Deficiências Mentais
Regional/Recomendação 2001 2001R e g i ã o d a s Américas
Declaração de Caracas Regional /Declaração/Não-Mandatório 1990 1990
R e g i ã o d a s Américas
Convenção das Nações Unidas contra Tortura e Outro Tratamento ou Punição Cruel, Desumano e Degradante
Universal/Convenção/Não-Mandatório 1984 1984 Mundial
Convenção Europeia para a P r e v e n ç ã o d a To r t u r a e T r a t a m e n t o o u P u n i ç ã o Desumanos ou Degradantes
Regional/Convenção 1987 1987R e g i ã o Europeia
Convenção Europeia para a Proteção dos Diretos Humanos e Liberdades Individuais
Regional/Convenção 1950 1953R e g i ã o Europeia
Recomendação Nº R (83) 2 Regional/Recomendação 1983 1983R e g i ã o Europeia
Declaração de Madri Regional/Declaração 1996 1996 Mundial
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Atenção à saúde mental: da heterogeneidade à busca de um
consenso por homogeneidade com base nos direitos das pessoas
com transtornos mentais
A atenção à saúde, incluindo a atenção à saúde mental, é direito
fundamental de todas as pessoas e é destaque em instrumentos internacionais,
como na Declaração dos Direitos Humanos da ONU, no Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), na Recomendação
1235 sobre Psiquiatria e Direitos Humanos nos Princípios das Nações Unidas
para a Proteção de Pessoas com Enfermidade Mental e a Melhoria da Atenção
à Saúde Mental (Princípios ASM), na Lei de Saúde Mental: Dez Princípios
Básicos e na Declaração de Caracas. Os acordos e as normas internacionais
podem garantir que a atenção e o tratamento sejam fornecidos por serviços de
saúde e ajudar na acessibilidade e qualidade dos serviços em saúde mental,
oferecendo às pessoas com transtornos mentais a oportunidade de exercerem
seus direitos. No entanto, muitos países possuem serviços de saúde mental de
difícil acessibilidade, disponíveis apenas para segmentos específicos da
população ou, até mesmo, indisponíveis em alguns países (WHO, 2003; WHO,
2005).
Nos Princípios ASM, destacam-se os princípios 1 (Liberdades
Fundamentais e Direitos Básicos) e 8 (Normas de Atenção), voltados ao
acesso à atenção de alta qualidade. O princípio 1 estabelece que todas as
pessoas têm o direito a melhor atenção disponível em saúde mental como
parte do sistema de atenção à saúde e de assistência social, e o princípio 8
estabelece que o direito de receber atenção à saúde mental deve ser
apropriado às necessidades da pessoa e proteger contra danos. Na Lei de
Saúde Mental: Dez princípios básicos, o princípio 2 estabelece o acesso aos
cuidados básicos de saúde mental (WHO, 2003; WHO, 2005).
Nesse sentido, melhorar o acesso à atenção à saúde mental significa
aumentar a disponibilidade dos serviços, a acessibilidade financeira e
geográfica e o fornecimento de serviços de qualidade adequada, ou seja,
implica reduzir as barreiras de acesso (WHO, 2005).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Apesar do avanço nos últimos cinquenta anos em serviços e
tratamentos em saúde mental, muitas pessoas que poderiam se beneficiar
destes serviços se deparam com as barreiras do acesso, que dificultam a total
adesão ao tratamento. Duas dessas barreiras são a estigmatização e a
discriminação existentes com relação ao transtorno mental (CORRIGAN,
2004).
Uma estratégia viável para melhorar o acesso de populações à atenção
à saúde é a inserção de intervenções de saúde mental na atenção básica
(WHO, 2005), que tem potencial para desenvolver dois principais tipos de
ações, como a detecção de queixas relacionadas ao sofrimento psíquico e
promoção de escuta qualificada nesta problemática. Enfatiza-se também que
se deve buscar diferentes formas de lidar com os problemas detectados, com a
oferta de tratamento, tanto na própria atenção básica quanto no
encaminhamento a serviços especializados (TANAKA; RIBEIRO, 2009).
Proteção contra discriminação
Entre os instrumentos internacionais que afirmam a proteção contra
discriminação estão o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
(PIDCP), o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(PIDESC), a Convenção Interamericana sobre Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra Pessoas com Deficiências, a Recomendação
Interamericana sobre a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos de
Pessoas com Deficiências Mentais e os Princípios das Nações Unidas para a
Proteção de Pessoas com Enfermidade Mental e a Melhoria da Atenção à
Saúde Mental (Princípios ASM).
A primeira convenção internacional que abordou, especificamente, os
direitos das pessoas com transtorno mental foi a Convenção sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com
Deficiências, que se destaca por ter como principal objetivo a prevenção e a
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
eliminação de todas as formas de discriminação contra pessoas com
deficiências mentais ou físicas (WHO, 2003; WHO, 2005).
A discriminação consiste em tratamento injusto, formas de
relacionamento, avaliações e atendimentos desfavoráveis e desiguais às
pessoas alvo de preconceitos (KRUGER, 2004). Pessoas que acreditam que
um indivíduo com transtorno mental é perigoso, podem avaliá-lo
negativamente, agirem com medo e preconceito, levando-as à discriminação
(CORRIGAN, 2004).
A discriminação, portanto, influencia o acesso de uma pessoa a
tratamento e atenção adequados, assim como em aspectos da vida, como
emprego, educação, relacionamentos e habitação (WHO, 2005).
Desse modo, a proteção contra discriminação não é, simplesmente,
banir leis que excluam ou neguem oportunidades às pessoas com transtornos
mentais, refere-se, também, à legislação que produz o efeito de negar direitos
e liberdades. O que ocorre é que as leis não discriminam ativamente as
pessoas com transtornos mentais, mas impõem barreiras desnecessárias que
interferem na integração dessas pessoas à sociedade, exacerbando o
transtorno mental (WHO, 2005).
Direito de integração à sociedade e Direito a tratamento na
comunidade
Os instrumentos internacionais, Princípios das Nações Unidas para a
Proteção de Pessoas com Enfermidade Mental e a Melhoria da Atenção à
Saúde Mental (Princípios ASM), Convenção Interamericana sobre Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiências,
Recomendação Interamericana sobre a Promoção e Proteção dos Direitos
Humanos de Pessoas com Deficiências Mentais e Declaração de Caracas,
tratam sobre o direito das pessoas com transtornos mentais de integração à
sociedade.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
A Convenção Interamericana sobre Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra Pessoas com Deficiências preconiza, também, a
promoção da integração plena das pessoas com transtornos mentais à
sociedade como um dos objetivos principais, sendo importante por ser a
convenção que trata de forma direta com os direitos das pessoas com
transtornos mentais (WHO, 2003; WHO, 2005).
Os Princípios ASM reconhecem que toda pessoa com transtorno
mental deve ter o direito de viver e trabalhar, na medida do possível, na
comunidade (WHO, 2003; WHO, 2005). A Declaração de Caracas (1990)
afirma que o tratamento por internação em um hospital psiquiátrico, como único
recurso, isola o paciente de seu ambiente natural, gerando maior deficiência,
além de afirmar que os serviços ultrapassados de saúde mental colocam em
risco os direitos humanos dos pacientes. A Declaração também visa promover
serviços de saúde mental de base comunitária e integrados, trazendo como
sugestão uma reestruturação da atenção psiquiátrica existente e empenho para
manter as pessoas com transtornos mentais em suas comunidades (WHO,
2005).
Proteção contra tortura, tratamento cruel e desumano
A tortura e o tratamento cruel e desumano ainda perduram no mundo,
especialmente com grupos vulneráveis, como é o caso das pessoas com
transtorno mental. Nesse contexto, alguns instrumentos internacionais preveem
proteção contra tortura, tratamento cruel e desumano.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP, 1966),
em seu Artigo 7 prevê proteção contra aquelas condições e se aplica a
instituições médica e, principalmente, a instituições que fornecem tratamento
psiquiátrico. O Comentário Geral sobre o Artigo 7 exige que os governos
“forneçam informações sobre detenções em hospitais psiquiátricos, medidas
tomadas para impedir abusos, processo de apelações disponível a pessoas
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
admitidas em instituições psiquiátricas e queixas registradas durante o período
de informe” (WHO, 2005).
A Convenção das Nações Unidas contra Tortura e Outro Tratamento ou
Punição Cruel, Desumano e Degradante (1984) é de suma importância para as
pessoas com transtornos mentais. Em seu Artigo 16, a Convenção enfatiza que
os Estados são responsáveis por prevenir atos de tratamento ou punição
crueis, desumanos ou degradantes (WHO, 2005).
Além dos instrumentos acima mencionados, tem-se a Convenção
Europeia para a Prevenção da Tortura e Tratamento ou Punição Desumanos ou
Degradantes (1987). A referida Convenção é regional e trata de proteção dos
direitos humanos para pessoas com transtorno mental. O 8º Relatório Anual do
Comitê sobre Tortura, do Conselho da Europa, estipulou padrões para prevenir
maus-tratos a essas pessoas (WHO, 2005).
Proteção contra hospitalização/admissão (tratamento) involuntária
Outra situação muito comum e violadora de direitos é a hospitalização
e/ou internação involuntária de pessoas com transtorno mental. Assim, alguns
instrumentos internacionais preveem formas de diminuir a hospitalização e/ou
admissão involuntária.
A Convenção Europeia para a Proteção dos Diretos Humanos e
Liberdade Individuais (1950) fornece proteção obrigatória para os direitos
humanos de pessoas com transtornos mentais residentes nos estados que
ratificam a Convenção. Dessa forma, os Estados europeus são obrigados a
fornecer salvaguardas contra a hospitalização involuntária, com base em três
princípios estabelecidos pelo Tribunal Europeu de Direitos: a) o transtorno
mental é definido por conhecido médico objetivo; b) o transtorno mental é de
caráter e grau que justifique o confinamento compulsório; e c) para a
continuidade do confinamento, é necessário provar persistência do transtorno
mental (WACHENFELD, 1992 apud WHO, 2005) (WHO, 2005).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
A Recomendação 1235 sobre Psiquiatria e Direitos Humanos (1994)
influencia as legislações dos Estados europeus. A referida Recomendação foi
adotada pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e estabelece
critérios para admissão involuntária, o procedimento da admissão involuntária,
padrões para atenção e tratamento de pessoas com transtornos mentais, e
proibições para prevenir abusos na atenção e prática psiquiátricas (WHO,
2005).
Nessa seara, também se tem a Recomendação Nº Rec (2004) 10
Relativa à Proteção dos Direitos Humanos e da Dignidade da Pessoa Humana
com Transtorno Mental (2004), a qual foi aprovada em setembro de 2004 pelo
Comitê de Ministros do Conselho da Europa. Essa Recomendação propõe que
os Estados membros ampliem a dignidade, os direitos humanos e as
liberdades fundamentais das pessoas com transtornos mentais, em particular,
daquelas submetidas a internação involuntária ou tratamento involuntário
(WHO, 2005).
Existe outra convenção europeia que resguarda os direitos de pessoas
com transtornos mentais no que se refere à hospitalização e/ou admissão
(tratamento) involuntária, sendo ela a Recomendação Nº R (83) 2, a qual foi
adotada pelo Conselho de Ministros de 1983 e é uma importante proteção legal
de pessoas com transtorno mental que são colocadas em instituições como
pacientes involuntários (WHO, 2005).
Além das convenções, resoluções e recomendações acima expostas, a
ONU tem adotado uma ampla gama de diretrizes técnicas e formulações
políticas, sendo que essas podem ser de extrema importância para a
interpretação das convenções internacionais de direitos humanos. Nesse
contexto, tem-se a Declaração de Madri (1996), a qual foi adotada pela
Assembleia Geral da Associação Psiquiátrica Mundial (WPA) em 1996. Fato
interessante é que além de a Declaração ser um conjunto de diretrizes e
normas, elaborado por associações internacionais de profissionais de saúde
mental, para comportamento e prática profissionais, ela insiste no tratamento
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
baseado em parceria com pessoas com transtornos mentais e na aplicação de
tratamento involuntário somente sob circunstâncias excepcionais (WHO, 2005).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a Declaração Universal de Direitos Humanos, muitos outros
instrumentos e documentos internacionais foram elaborados com o intuito de
tutelar os direitos do homem, os quais podem ser considerado um grande
avanço se fatos passados forem analisados, como a Segunda Guerra Mundial,
por exemplo.
Entretanto, é possível perceber que mesmo com os instrumentos e
documentos internacionais expostos neste trabalho, direitos são violados
constantemente e, principalmente, de grupos vulneráveis, como o de pessoas
com transtornos mentais.
Nesse contexto, há ainda muito preconceito em relação às pessoas
com transtorno mental, pois existem crenças de que essas pessoas podem ser
perigosas e que, por isso, devem ser trancadas e internadas, mesmo que não
haja necessidade e que essas medidas representem violações de direitos.
Infelizmente, comportamentos psicológicos que fogem à normalidade
racional do homem médio são incompreendidos, fazendo com que as pessoas
com transtornos mentais sejam vistas como “loucas”, desconhecidas pela
sociedade e protagonistas de crenças negativas (FOUCAULT, 2004).
Assim, essas crenças negativas só contribuem para a estigmatização
das pessoas com transtorno mental, o que atribui à essas pessoas um status
desvalorizado em relação ao outro (GOFFMAN, 1998) e, consequentemente, a
exclusão das mesmas.
Por outro lado, percebe-se que esses instrumentos e documentos vêm
justamente para combater as violações de direitos, trazendo ideias de que
essas pessoas devem viver em comunidade, já que é uma forma de
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
tratamento, bem como a ideia de incluir a saúde mental na atenção básica e de
que os tratamentos psiquiátricos devem ser humanizados e desenvolvidos em
parcerias com os pacientes. Assim, é necessário construir um novo paradigma
de saúde/doença mental que busque o desenvolvimento de uma relação
saudável entre o paciente e os profissionais de saúde (SARACENO, 1999).
Com a implementação das ideias que esses instrumentos e
documentos trazem, é possível acreditar que as pessoas com transtorno
mental poderão desfrutar de uma existência mais digna, caminhando para uma
vida com menos sofrimento e violações de direitos.
REFERÊNCIAS
CORRIGAN, P. W. How stigma interferes with mental health care. American Psychologist. v. 59, p. 614-625, 2004
FOUCAULT, M. História da Loucura. Trad. José Teixeira Coelho Neto, São Paulo: Perspectiva, 2004.
GABLE, L. et al. Mental health and due process in the Americas: protecting the human rights of persons involuntarily admitted to and detained in psychiatric institutions. Rev Panam Salud Publica/Pan Am J Public Health, Washington, v. 18, n. 4, p. 366-373, 2005.
GOFFMAN, E. Estigma: notas da manipulação da identidade deteriorada. 4 ª edição. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1998.
KRÜGER, H. Cognição, estereótipos e preconceitos sociais. In: Pereira ME, Lima MEO. Estereótipos, preconceitos e discriminação: perspectivas teóricas e metodológicas. Salvador: Edufba 2004; 23-40.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em 20 fev. 2017.
POLIT, D.F.; BECK, C.T. Fundamentos de pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para prática em enfermagem. São Paulo: Artmed, 2011.
SARACENO, B. Reabilitação como cidadania. Rio de Janeiro (RJ): TeCorá, 1999.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
TANAKA, O. Y; RIBEIRO, E. L. Ações de saúde mental na atenção básica: caminho para ampliação da integralidade da atenção. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, vol.14, n. 2, p. 477-486, 2009.
VENTURA, C.A.A.; BRITO, E.S. Pessoas portadoras de transtornos mentais e o exercício de seus direitos. Rev Rene., Fortaleza, v. 13, n. 4, p. 744-54, 2012.
WHO. World Health Organization. Resource book on mental health, human rights and legislation. Genebra, 2005. Disponível em: <http://www.who.int/mental_health/policy/Livroderecursosrevisao_FINAL.pdf>. Acesso em: 05 mai. 2015.
__________. The World Health Report 2001. Mental Health: New Understanding, New Hope. Genebra, 2001. Disponível em: <http://www.who.int/whr/en/>. Acesso em: 05 mai. 2015.
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A Enfermagem e os Direitos Humanos das pessoas com
transtornos mentais e dependentes de álcool, crack e
outras drogas
Marciana Fernandes Moll
Cheila Cristina Leonardo de Oliveira Gaioli
RESUMO
Os Direitos Humanos devem ser assegurados a todas as pessoas sem
qualquer forma de discriminação, inclusive àquelas que estão em condições de
vulnerabilidade tais como as pessoas com transtornos mentais e/ou
dependência química. Diante dessa realidade, este ensaio reflexivo discutiu a
promoção do exercício dos Direitos Humanos no cotidiano da assistência de
enfermagem, à luz da Ética em Enfermagem. Os direitos à liberdade e à
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
igualdade compõem direitos de primeira dimensão, os quais são considerados
direitos negativos e não garantidos pela ação estatal às pessoas de forma
geral. Contudo, sobre a vulnerabilidade das pessoas com transtornos mentais
e/ou dependência química em tratamento, espera-se que os cuidados de
enfermagem sejam pautados nos aspectos éticos da autonomia, beneficência,
não maleficência, confidencialidade, justiça, fidelidade e veracidade. Portanto,
a ética na assistência em enfermagem psiquiátrica é premissa básica para a
aplicabilidade dos Direitos Humanos na prestação de cuidados às pessoas com
transtornos mentais e/ou dependência química.
INTRODUÇÃO
Os princípios para a proteção e melhoria da assistência à Saúde
Mental devem ser informados às pessoas com transtorno mental e
dependência química, preferencialmente após a admissão em qualquer serviço
de saúde (OMS, 2005). Ao se abordar os aspectos éticos da enfermagem, cabe
à esta equipe buscar estratégias para implementar os direitos dessas pessoas,
uma vez que elas não se encontram em condições de reividicá-los.
Deve-se ressaltar que embora durante a fase aguda do transtorno
mental ou da dependência, a pessoa deixe de exercer seus deveres não se
pode permitir que ela seja impedida de acessar os seus direitos.
Nesse sentido, o enfermeiro não deve agir apenas como gestor da
saúde, mas também como gestor para a manutenção dos direitos de cidadania.
Para tanto faz-se necessário que este profissional desenvolva ações similares
a de um tutor desse indivíduo. Essa realidade fez com que se desenvolvesse
esse estudo que visa aprofundar as reflexões sobre esta temática junto aos
enfermeiros.
Trata-se de um ensaio reflexivo, construído com base na leitura crítica
de alguns materiais sobre Direitos Humanos, Reforma Psiquiátrica e ética na
assistência de enfermagem e em estudos científicos mais atuais, que
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
referenciam as práticas em saúde e enfermagem. Essa construção teórica
aproxima-se da abordagem qualitativa, tendo em vista a interpretação e a
análise dos elementos teóricos obtidos por meio do levantamento bibliográfico
realizado (MINAYO, 2006).
DIREITOS HUMANOS E ENFERMAGEM
A partir da contextualização anterior, prossegue-se abordando os
aspectos históricos imprescindíveis para ampliação de conhecimentos da
equipe de enfermagem, com vistas à manutenção dos cuidados e dos direitos
das pessoas com transtornos mentais e/ou dependência química.
No século passado, a década 1950 foi marcada por dois
acontecimentos que colaboraram para a humanização da assistência às
pessoas com transtornos mentais. O primeiro foi a descoberta dos
neurolépticos, que favoreceu a permanência das pessoas hospitalizadas junto
às suas famílias e no seu meio social (LIMA; BANDEIRA; GONÇALVES, 2003).
O segundo foi descrito por Amarante (1995) como o início de uma reação da
sociedade frente aos atos violentos e às limitações das instituições hospitalares
com o propósito de oferecer um tratamento mais humanizado a essas pessoas.
Nesse sentido, Rocha (2005) esclarece que, historicamente, as
pessoas eram submetidas a pressões para se adaptarem às normas
hospitalares e por isso os cuidados de enfermagem se centravam na
manutenção das regras institucionais, as quais não podiam ser questionadas
por quaisquer pessoas ali assistidas. Essa realidade, associada a longos
períodos de internação, possibilitava que esses sujeitos perdessem,
gradativamente, a possibilidade de exercício de sua cidadania.
Frente a essa realidade, iniciou-se um movimento de reação da
sociedade, fundamentado nos Direitos Humanos de todas as pessoas e
reafirmado em uma série de acordos internacionais como o Pacto da ONU
sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto da ONU sobre Direitos Econômicos,
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Sociais e Culturais, de 1966. Ambos os Pactos foram incorporados à legislação
interna de diversos países na condição de direitos fundamentais, assumindo o
Estado diferentes papéis para a efetivação dos direitos propostos em cada um
deles (PIOVESAN, 2006). É importante destacar que os direitos civis e políticos
são considerados de aplicação imediata ao passo que os direitos econômicos,
sociais e culturais preveem aplicação progressiva pelos países.
Contudo, apesar do processo de afirmação dos Direitos Humanos,
permanecem frequentes as violações aos direitos das pessoas com transtornos
mentais, o que resultou em um movimento internacional propondo um modelo
de intervenção com base na desinstitucionalização da pessoa com transtorno
mental e/ou dependência química, por meio da desconstrução da concepção
manicomial e da estruturação de novas práticas assistenciais aos enfermos, as
quais deveriam permitir o resgate de sua cidadania e sua reinserção social
(RANDEMARK; JORGE; QUEIROZ, 2004).
Os pressupostos desse movimento fundamentam-se em diferentes
instrumentos internacionais como a Convenção Interamericana sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação contra pessoas com
deficiências (1999) e a Recomendação da Comissão Interamericana sobre
Direitos Humanos para a Promoção e Proteção dos Direitos dos Mentalmente
Enfermos (2001), que incluem o direito a serviços de reabilitação, à integração
na comunidade, à acomodação razoável e à liberdade e segurança da pessoa
(ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2005).
Os Direitos Humanos devem, portanto, ser assegurados a todas as
pessoas sem qualquer forma de discriminação. Todavia, ainda existem práticas
assistenciais de enfermagem centradas apenas na medicalização para a
manutenção da ordem social, o que não se adequa às novas propostas
assistenciais resultantes do Movimento de Reforma Psiquiátrica, nas quais
esses cuidados devem se fundamentar nos seguintes eixos: elaboração de
estratégias de inclusão social; promoção de um cuidado sistematizado e
integral; estabelecimento de um relacionamento terapêutico; manutenção das
necessidades humanas básicas e medicamentalização.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Dessa forma, alguns conceitos merecem maior atenção, especialmente
sobre a promoção do exercício dos Direitos Humanos no cotidiano da
assistência de enfermagem, a partir da Ética em Enfermagem.
Conceitos legais sobre pessoas com transtornos mentais e
dependentes químicos
Neste ensaio, fez-se uma análise reflexiva, abordando a correlação
entre os Direitos Humanos, os pressupostos da Reforma Psiquiátrica para os
cuidados de pessoas com transtornos mentais e/ou dependência química e a
ética em Enfermagem, a partir do Código de Ética e Deontologia dessa
profissão (CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM, 2007).
De acordo com a Constituição Federal de 1988, todos os cidadãos são
iguais perante a lei. Essa afirmativa é norteada pelo Estado Democrático de
Direito que pressupõe a acessibilidade universal aos bens materiais, à cultura e
à educação, o que Musse (2008) denomina de igualdade material ou positiva.
Existe, também, a igualdade formal ou negativa que determina a não
discriminação social, política, religiosa ou de gênero, o que se torna positivo
diante da ponderação de que os homens são diferentes. Nesse contexto,
Carvalho Netto (2003, p. 52) aponta que “é um direito sermos diferentes”.
Portanto, percebemos que, em um primeiro momento, a proteção dos
Direitos Humanos fundamentou-se na igualdade formal, na qual se
desconsideravam as diferenças individuais. No entanto, gradativamente a
sociedade contemporânea foi considerando que a “diferença” deve ser
valorizada, mas não deve ser utilizada para retirar ou diminuir os direitos, mas
sim para promovê-los. Dessa forma, parece-nos necessário garantir às
pessoas com transtornos mentais e/ou dependência química uma proteção
especial em virtude das suas vulnerabilidades e das próprias limitações
impostas pelo adoecimento ou pela sociedade diante do diagnóstico
psiquiátrico propriamente dito.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Frente à concepção da diferença entre os homens, foram valorizadas
as singularidades decorrentes dos transtornos mentais e isso se tornou um
desdobramento da igualdade, o que prioriza assegurar a essas pessoas
possibilidades reais de inclusão social (MUSSE, 2008).
Consideramos que a inclusão social está intimamente relacionada à
saúde e ao exercício do direito à saúde, que já se expressava em documentos
de cunho nacional e internacional (Declaração Universal dos Direitos Humanos
-1948, Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
-1966, entre outros apud CURY, 2005).
De maneira geral, no Brasil, o direito à saúde se afirmou somente a
partir da Constituição da República de 1988, que o reconheceu como um direito
humano fundamental, de todos, e dever do Estado, resultando em um avanço
significativo para a proteção da saúde. Dispõe o art. 196 da Constituição da
República que:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988, p. 41).
Ainda, para melhor estabelecer a necessidade de respeito à dignidade
humana das pessoas com transtornos mentais, em 2001, foi publicada a Lei
10.216, que, nos artigos 1º e 2º, elenca os direitos específicos desse grupo de
pessoas.
Neste contexto legal deve-se acrescentar que a construção de uma
consciência individual e coletiva depende do aprimoramento do comportamento
ético da equipe de enfermagem, o que deve se fundamentar em aspectos
éticos direcionados pelo Código de Ética em Enfermagem. Tais aspectos estão
diretamente relacionados a essa realidade, são eles: a não maleficência que se
refere ao ato de evitar prejudicar ou machucar alguém e a fidelidade que se
refere ao acordo em se manter promessas (manter os cuidados e estabelecer o
relacionamento terapêutico) que se correlacionam diretamente ao direito à
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
igualdade. Ainda se destaca a justiça que se refere à imparcialidade, a qual
está intimamente relacionada ao direito à saúde, pois nele está determinada a
necessidade de oferecer cuidados integrais a essa clientela. De maneira geral,
o profissional de enfermagem deve respeitar a vida, a dignidade e os direitos
humanos, em todas as suas dimensões (CONSELHO FEDERAL DE
ENFERMAGEM, 2007).
Para Riva (2008), ao longo do século XVII a cidadania civil foi
delineada a partir dos direitos à liberdade, dos quais se sobressaíram a
liberdade de pensamento, de reunião, de ir e vir, pessoal e econômica. Desde
então, todo e qualquer ser humano passou a ser considerado um cidadão
detentor desse direito.
Nessa perspectiva, destacamos que a liberdade de pessoas com
transtornos mentais e/ou dependência química ainda é um tema discutível,
uma vez que mesmo diante de legislações e movimentos reformistas, muitas
dessas pessoas foram e ainda são privadas de sua liberdade devido ao
isolamento em instituições psiquiátricas, o que gera a exclusão social.
Assim, a autonomia ético-jurídica das pessoas com transtornos mentais
e a prática dos direitos civis são temas que merecem atenção, pois é preciso
considerar que esses sujeitos estão respaldados pela legislação civil, como
todo e qualquer cidadão. Entretanto, as peculiaridades da doença mental, tais
como o diagnóstico, propriamente dito, e a relação desse diagnóstico à
validade ou invalidade dos atos dos seus portadores, são analisadas no
contexto jurídico que avalia a capacidade desse sujeito exercer a(s) sua(s)
vontade(s) com autonomia (MUSSE, 2008).
A partir desse contexto, percebemos que a capacidade civil de pessoas
com transtornos mentais e/ou dependência química estava sujeita à sua
condição psíquica, o que Musse (2008) esclarece estar sujeita à capacidade de
exercício que se relaciona ao exercício de atos civis representados pela
compra, venda ou doação de bens, pelo casamento, pela adoção e demais
ações executadas pelo ser humano ao longo de sua vida cotidiana. Contudo,
!82
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Diniz (2005) alerta ser inerente à condição humana a capacidade de direito,
segundo a qual o cidadão deve acolher e executar seus deveres, bem como
usufruir de seus direitos.
A partir dessas considerações de Musse (2008) e Diniz (2005) acerca
da capacidade, consideramos importante mencionar que o artigo 3º e o inciso I
do art. 166 do Código Civil dispunha que “os atos jurídicos praticados pelos
absolutamente incapazes só eram validados se fossem praticados por meio do
seu representante legal” (BRASIL, 1995). Os sujeitos com incapacidade
absoluta não possuem autonomia para praticar os seus direitos e tampouco
responder pelas consequências dos seus atos civis, o que os fazia ter um
representante legal.
Ainda de acordo com o caput do artigo 4º e inciso I do art. 171 do
Código Civil, a incapacidade era relativa quando os sujeitos conseguiam
praticar os atos da vida civil, os quais já foram exemplificados nos parágrafos
anteriores (BRASIL, 1995). Nessa condição, os sujeitos deviam ser assistidos
por um representante legal.
Mas recentemente ocorreram mudanças, no Código Civil e as pessoas
com deficiência passam a ser, em regra, capazes para o Direito Civil, com
vistas à plena inclusão social e à dignidade humana (BRASIL, 2015).
Ainda quanto às atualizações na legislação brasileira, deve-se
enfatizar a Lei 13.146/2015 conhecida como a Lei de inclusão da Pessoa com
deficiência que estabelece que a deficiência não interefere na plena
capacidade civil das pessoas. Com um discursso humanitário a referida Lei
altera a proteção aos incapazes e regulamenta mudanças estruturais e
funcionais que repercutem diretamente nos institutos do Direito de Família, na
interdição e na curatela (BRASIL, 2015).
Considerando as mudanças na legislação, o discursso referente às
incapacidades deixou de ter um modelo rígido, o que corrobora às propostas
da Organização Mundial da Saúde que, desde 2005 já expressava a
!83
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
necessidade de ações afirmativas para proteger os direitos de pessoas com
deficiência (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2005).
Sendo assim, a restituição e a manutenção da liberdade da pessoa
com transtorno mental e/ou dependente química ainda são prioridades do
movimento da Reforma Psiquiátrica. Buscando atender a essas prioridades,
Rotelli (1994) defende “a liberdade é terapêutica” (p.153) proposta pelo
movimento de Psiquiatria Democrática Italiana que fundamentou o movimento
de reforma brasileiro.
Pessoas com transtornos mentais e dependência química
Ferreira, Padilha e Starosky (2010) ressaltam que os serviços de saúde
mental devem valorizar a desinstitucionalização das pessoas com transtornos
mentais, sua singularidade e inclusão social para que sua liberdade seja
mantida e/ou restituída.
Sendo assim, o direito à liberdade, também está presente no aspecto
ético da não maleficência, já foi abordado anteriormente, e na autonomia que
representa um acordo para se respeitar os direitos do próximo ao determinar o
curso da ação presente no cuidado de Enfermagem.
Além disso, há aspectos éticos que se correlacionam indiretamente aos
direitos à igualdade e à liberdade, mas que são fundamentais para a
aplicabilidade do direito à saúde por meio de um exercício profissional pautado
no respeito e na dignidade humana, são eles: beneficência, veracidade e
confidencialidade.
A beneficência consiste na realização de ações positivas para ajudar
outras pessoas. Este princípio ajuda a guiar decisões difíceis quando os
benefícios do tratamento podem ser desafiados por riscos ao bem-estar do
paciente ou à sua dignidade. Já a veracidade consiste em dizer sempre a
verdade, não mentir e nem enganar paciente (com este princípio subentende-
se a necessidade de se realizar acordos e orientações antes de quaisquer
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
condutas). E a confidencialidade consiste em salvaguardar a informação de
caráter pessoal obtida durante o exercício profissional (CONSELHO FEDERAL
DE ENFERMAGEM, 2007).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando que o Código de Ética de Enfermagem foi elaborado e
reformulado durante o contínuo processo de Reforma Psiquiátrica é necessário
que sejam valorizadas as individualidades das pessoas com transtornos
mentais e/ou dependência química, bem como as suas diferenças.
Diante desta realidade, o enfermeiro deve colaborar no processo de
mudança cultural em relação à compreensão do transtorno mental e da
dependência química e para que isso aconteça é primordial que as práticas
cuidativas e gerenciais de enfermagem se fundamentem nos direitos humanos
que se relacionam diretamente à ética em enfermagem e aos pressupostos da
Reforma Psiquiátrica Brasileira.
De maneira geral, as práticas de Enfermagem fundamentadas na ética
de cuidados são sensíveis às relações desiguais que podem levar a um abuso
de poder profissional sobre o paciente. Por isso a ética no cuidado em
enfermagem psiquiátrica é uma premissa básica para a aplicabilidade dos
Direitos Humanos ao se prestar cuidados às pessoas com transtornos mentais
e/ou dependência química.
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A judicialização da internação psiquiátrica: contexto histórico e
panorama atual no Brasil
Rachel Torres Salvatori
Carla Aparecida Arena Ventura
RESUMO
A judicialização da internação psiquiátrica no Brasil está inserida no contexto
maior do movimento de judicialização das ações de saúde, tema de grande
relevância e bastante discutido na atualidade. Essa situação tem repercussões
que envolvem desde o reforço do modelo asilar de assistência à saúde mental
até o direito de respeito à dignidade da pessoa humana. Dessa forma, o
presente artigo realiza uma reflexão sobre o processo de judicialização da
internação psiquiátrica no Sistema de Saúde Brasileiro, envolvendo o sistema
público e o Sistema de Saúde Suplementar (sistema de planos de saúde). Para
isso, apresenta uma visão integrada, panorâmica e histórica da atenção à
saúde mental no Brasil, destaca a ênfase na assistência à saúde do
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
dependente de drogas nesse processo e finaliza com uma discussão sobre a
judicialização do direito à saúde e da internação psiquiátrica no Brasil.
INTRODUÇÃO
A judicialização da internação psiquiátrica no Brasil, ou seja, o
processo de os juízes decidirem sobre a internação de uma pessoa, em razão
de transtornos mentais, está inserido no contexto maior do movimento de
judicialização das ações de saúde no País.
Embora não se tenham estudos de impacto das medidas judiciais para
a internação psiquiátrica na vida de portadores de transtornos mentais, é
possível conjecturar, baseado nas evidências de estudos sobre decisões
judiciais, que essas medidas têm repercussões sociais muito importantes
relacionadas ao reforço do modelo asilar de assistência à saúde mental,
sobretudo à abertura de leitos privados; à transferência de recursos para
financiamento das internações psiquiátricas em detrimento da assistência em
rede aberta; à garantia dos direitos fundamentais dos portadores de transtornos
mentais, fundamentalmente o respeito à dignidade da pessoa humana; à
competência do Poder Judiciário para decidir questão de ordem médica e à
atuação dos profissionais de saúde para a consolidação dos princípios
estabelecidos pela Lei 10.216/2001.
Dessa forma, o presente artigo realiza uma reflexão sobre o processo
de judicialização da internação psiquiátrica no sistema de saúde brasileiro,
envolvendo o sistema público e o sistema suplementar de saúde (sistema de
planos de saúde). Para isso, apresenta uma visão integrada e histórica da
atenção à saúde mental no Brasil, destaca a ênfase na assistência à saúde do
dependente de drogas e finaliza com uma discussão sobre a judicialização do
direito à saúde e da internação psiquiátrica no Brasil.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
A ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL E SEU PROCESSO DE
REFORMA
Sob o ponto de vista de modelos políticos hegemônicos que se
refletem na prática da assistência às pessoas portadoras de transtornos
mentais, a assistência à saúde mental no Brasil pode ser dividida em duas
fases: a anterior à reforma psiquiátrica, período que se estende desde o Brasil
colônia até meados de 1970, e a posterior ao movimento de reforma, que vai
do final da década de 1970 até os dias atuais. As mudanças ocorridas no Brasil
acompanharam as transformações no modelo de atenção psiquiátrica que
aconteciam no mundo, principalmente na Europa (AMARANTE, 1998).
Ao buscar as origens dos modelos de atenção à saúde mental,
constata-se que sua história representa a história da loucura, ao longo da
evolução humana, e vem demonstrar a pouca tolerância do homem com a
diferença existente entre os seus semelhantes (FORTES, 2010). Na Grécia
antiga, predominava a concepção mística. Os loucos eram considerados
pessoas com poderes capazes de influenciar o destino dos homens e, por esse
motivo, eram valorizados nas sociedades primitivas, não havendo necessidade
de segregação (ALVES et al., 2009).
No período medieval, a abordagem à loucura esteve relacionada com a
possessão por maus espíritos, encontrando nas práticas inquisitoriais e do
exorcismo seu tratamento (AMARANTE, 1998).
No final do século XVII, com a propagação do pensamento racionalista,
resultado da revolução científica em plena expansão, a loucura passou a ser
compreendida como um aspecto da moral: o louco era alguém com caráter
desviado da razão que, por sua doença, não sabia distinguir entre o certo e o
errado. Decorrente desse fato, adveio a associação da loucura com a
periculosidade e a necessidade do controle social (AMARANTE, 1998).
A filosofia mercantilista, que tinha na produtividade seu primeiro
pressuposto, contribuiu para a marginalização e encarceramento daqueles que
não conseguiam adaptar-se a ela. Assim, loucos, desvalidos, mendigos, idosos
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
doentes, crianças abandonadas, prostitutas e usuários de drogas eram
recolhidos das ruas e destinados a verdadeiros depósitos humanos (ALVES et
al., 2009). O objetivo nesse momento era apenas retirar o “lixo” das ruas.
Essas pessoas eram levadas para pavilhões isolados dentro de hospitais.
Esses locais eram sujos, sem iluminação e sem ventilação adequada, onde
essas pessoas permaneciam até sua morte. Não havia finalidade terapêutica,
os indivíduos que não conseguissem adequar-se à nova ordem social,
passavam a ser vistos como ameaças e, por isso, precisavam ser retirados da
sociedade. Nessa época, o Brasil vivia seu período colonial, e a abordagem à
loucura mesclava as práticas de controle da Igreja com a exclusão pelo Estado.
Foi no período que se seguiu à Revolução Francesa, no final do século
XVIII, que a loucura assumiu a conotação de doença mental. A diferença
humana foi transformada, pela ciência, em doença. Surgiu a psiquiatria, tendo
como expoente maior o médico Philippe Pinel. De acordo com as ideias de
Pinel, a loucura, resultado de disfunções e lesões cerebrais, deveria ser tratada
medicamente (FORTES, 2010).
Além disso, a influência do pensamento iluminista, que tinha como
ponto de partida a formação moral, abriu caminhos para a incorporação de uma
abordagem que privilegiasse o “tratamento moral”, já que Pinel também
acreditava que a loucura estava associada a um caráter malformado do
indivíduo (BRASIL, 2003). Inaugura-se, então, o primeiro tratamento da loucura
na era moderna, baseado no confinamento, em sangrias e em outros métodos
purgativos. Nesse contexto, o manicômio, hospício ou hospital psiquiátrico foi
consagrado como a melhor opção terapêutica, constituindo-se como instituição
asilar, corretiva, controladora, excludente e disciplinadora dos doentes mentais,
sendo o lugar social dos loucos.
O Brasil, no final do século XVIII, ainda estava voltado para as práticas
de recolhimento dos marginais, desempregados, mendigos, órfãos e loucos em
celas especiais, nos hospitais gerais e nas Santas Casas de Misericórdia, sem
destinar a eles qualquer tratamento de saúde (COSTA, 1976).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Somente no início do século XIX é que o Brasil, com a instalação da
família real em solo brasileiro, começou a realizar práticas interventivas para
tratar a loucura. Na metade do século XIX, dá-se início à assistência
psiquiátrica pública, exercida pela Igreja, de forma leiga, por meio das Santas
Casas de Misericórdia, com caráter asilar e segregador (FORTES, 2010). A
mesma autora comenta que o “elemento perturbador”, os “inoportunos”, eram
retirados do convívio social e que essa situação era legitimada pelo Estado
imperial, resultando na construção de um lugar específico para os loucos,
nascendo, em 1852, o Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro
(FORTES, 2010). Foi o primeiro hospital psiquiátrico do Brasil e significou a
reprodução da abordagem à loucura nos moldes praticados pela Europa.
A Medicina começa a desenvolver tratamentos que vão desde a
abordagem moral da loucura até a utilização da eletroconvulsoterapia (ECT),
entre 1930 e 1950 (ALVES et al., 2009). A medicina “psiquiatrizou” a loucura,
via na perturbação social, causada pela presença do louco no seio da
comunidade, uma oportunidade para o desenvolvimento científico e para a cura
de uma determinada classe de “doença”. A partir desse momento, diversos
hospitais começaram a surgir em vários estados brasileiros.
No decorrer do século XX, tornaram-se frequentes as denúncias por
maus tratos e pela subtração dos direitos humanos das pessoas internadas em
hospitais psiquiátricos. Variadas frentes buscavam alternativas para superar
aquela situação. Num primeiro momento, defendeu-se a humanização do
hospital psiquiátrico, já que este não estava cumprindo sua função social.
Além disso, havia a necessidade de acolher e recuperar os feridos e
traumatizados egressos da II Guerra Mundial, com o objetivo de reconstruir os
Estados. O momento era de transformação mundial, com a revolução das
artes, movimento feminista e pela reconstrução dos Estados Nacionais. Nesse
contexto, começaram, também, iniciativas pela reorganização da assistência
psiquiátrica. Os movimentos iniciados pelos Estados Unidos e pela Europa,
sobretudo pela Itália, com Franco Basaglia, começaram, a partir de 1970, a
influenciar a política de saúde mental brasileira (AMARANTE, 1998).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Nessa época, o Brasil lutava pelo fim da ditadura militar. A situação da
assistência psiquiátrica era crítica: havia em torno de 80 mil leitos psiquiátricos
no total de mais de 500 hospitais psiquiátricos, públicos e privados, com
denúncias de violência, maus tratos e, inclusive, mortes acidentais. O hospital
constituía-se em uma instituição que promovia e agravava a deterioração da
assistência aos portadores de transtornos mentais. Crescia, a passos largos, a
participação privada na assistência à saúde mental. Observa-se, nesse
período, um declínio da assistência psiquiátrica pública e sua substituição
gradual pelo Sistema de Saúde Suplementar, que começava a se organizar. A
maior parte dos leitos privados era conveniada ao Instituto Nacional de
Previdência Social, destinados à classe trabalhadora e seus dependentes.
Entretanto, o governo militar decidiu “ampliar a cobertura previdenciária para
setores da população que não a possuíam” (PAULIN; TURATO, 2004).
Assim, com o apoio do governo militar, desenvolveu-se o setor privado
psiquiátrico. Esse ramo lucrativo da economia, tendo em vista o pouco
investimento necessário, à época, para a assistência psiquiátrica, permitiu o
crescimento vertiginoso dos leitos psiquiátricos, o incremento da rede
conveniada ao sistema previdenciário de saúde e, por conseguinte, o aumento
do número das internações psiquiátricas. Esse processo ficou conhecido como
“indústria da loucura” (CERQUEIRA, 1984), uma vez que, com uma rede vasta
de leitos psiquiátricos, tornava-se necessária a “fabricação de loucos” para
alimentar todo esse sistema. Esse cenário foi denunciado pelos trabalhadores
de saúde mental que, juntamente com pesquisadores, estudiosos, entidades de
familiares de portadores de transtornos mentais, deram início ao movimento
para o redirecionamento da assistência à saúde mental, desencadeando, no
Brasil, o movimento da reforma psiquiátrica.
Com o advento da reforma psiquiátrica, movimento ideológico, político
e assistencial que buscou superar o modelo manicomial de assistência
psiquiátrica, houve uma redução considerável de hospitais e de leitos
psiquiátricos sem que, paralelamente, houvesse a criação e o funcionamento
suficiente e efetivo de serviços assistenciais alternativos aos portadores de
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
transtornos mentais. Esse fenômeno foi responsável pela desassistência a uma
parcela desses usuários.
O modelo manicomial de assistência psiquiátrica no Brasil é contestado
desde meados da década de 1970, após mais de um século da persistência da
quase exclusividade desse tipo de tratamento para os transtornos mentais. O
novo paradigma da assistência psiquiátrica denunciava o hospital especializado
como um lugar de exclusão social, punição e estigmatização. Tal movimento
antimanicomial resultou nas transformações das políticas públicas de saúde
mental e, por conseguinte, no fechamento e na redução de hospitais e leitos
psiquiátricos, respectivamente.
A Lei no 10.216/2001, que demorou mais de dez anos para ser
aprovada, consagrou os ideais da reforma psiquiátrica, estabelecendo
dispositivos para a proteção dos direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental e
privilegiando o tratamento em serviços comunitários de saúde mental. A
internação está presente como uma alternativa à insuficiência dos recursos
extra-hospitalares e definida por meio de três modalidades: a voluntária – que
se dá com o consentimento do usuário; a involuntária – que se realiza sem o
consentimento do usuário e a pedido de terceiro, e a compulsória – que é
determinada por um magistrado (BRASIL, 2001). O artigo 6o da mesma Lei
dispõe que “a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo
médico circunstanciado que caracterize os seus motivos” (BRASIL, 2001), o
que inclui todas as modalidades de internação dispostas na Lei.
No entanto, o que acaba acontecendo é que a internação compulsória
nem sempre é antecedida por uma avaliação médica. Fortes (2010) é um dos
primeiros autores a apontar essa situação no cenário brasileiro, atentando para
a “preocupação aos profissionais médicos, por caracterizar a chamada
judicialização de ato médico”. Essa temática carece de uma discussão moral
por considerar os efeitos que as decisões do Poder Judiciário podem acarretar
para as conquistas das lutas antimanicomiais.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Quando o transtorno mental se relaciona à dependência química ou de
drogas, soma-se a associação da periculosidade à iminência da criminalidade,
ao risco à saúde e à segurança do próprio indivíduo, de sua família e da
sociedade. Desse modo, são exatamente por esses motivos que as políticas de
assistência à saúde dos dependentes químicos se tornaram uma prioridade em
nível internacional e nacional.
A ASSISTÊNCIA À SAÚDE DO USUÁRIO/DEPENDENTE DE DROGAS
Dados do Relatório Mundial sobre Drogas (UNITED NATIONS
OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2011) estimam que cerca de 210 milhões de
pessoas em todo o mundo, o equivalente a quase 5% da população mundial,
com idade entre 15 e 64 anos, usaram algum tipo de droga ilícita no ano de
2009. No Brasil, o II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas
Psicotrópicas estima que 22,8% da população já fizeram uso de drogas ilícitas
na vida (BRASIL, 2006). O consumo de substâncias psicoativas cresceu
assustadoramente a partir da segunda metade do século XX, tornando-se um
grave problema social em virtude de suas consequências associadas à
violência, mortes, doenças, problemas familiares e sociais. Ressalta-se, nesse
cenário, que as drogas tidas como lícitas, álcool e tabaco, ocupam o topo do
ranking da prevalência do uso de substâncias psicotrópicas.
O I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de
Álcool da População Brasileira aponta que, em 1999, último ano investigado,
85% das internações por transtornos relacionados ao consumo de substâncias
psicotrópicas foram decorrentes do álcool (BRASIL, 2007). De acordo com as
informações dos juízes e defensores públicos que integram o Comitê Executivo
de Saúde do Estado de São Paulo, a dependência química constitui-se, hoje,
em um dos principais motivos para a internação psiquiátrica compulsória no
estado de São Paulo (REUNIÃO DO COMITÊ EXECUTIVO DE SAÚDE DO
ESTADO DE SÃO PAULO, 2011).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
A política brasileira sobre drogas passou, nas últimas duas décadas,
por profundas alterações ideológicas. A Resolução nº3/GSIPR/CH/CONAD, de
27 de outubro de 2005, que institui a política nacional sobre drogas (BRASIL,
2005), está fundamentada em cinco dimensões - prevenção; tratamento,
recuperação e reinserção social; redução de danos sociais à saúde; redução
da oferta; e estudos, pesquisas e avaliações.
Essas dimensões reorientam o enfrentamento público das drogas para
um modelo que privilegia ações abrangentes, focadas na prevenção, na
promoção da saúde e da vida, na recuperação, na educação, na capacitação
das pessoas, de profissionais e de instituições, na divulgação das informações,
e na operação governamental articulada intra e intersetorialmente com os
diversos tipos de organizações privadas e do terceiro setor. Esse conjunto de
ações busca uma parceria que possibilite, por meio da responsabilidade
compartilhada, a atuação em rede, única alternativa capaz de buscar o “ideal
de construção de uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso
indevido de drogas lícitas” (BRASIL, 2005). Verifica-se, portanto, que a política
de combate às drogas vigente busca uma aproximação com a assistência, com
o tratamento e com a recuperação dos usuários/dependentes de drogas e, por
conseguinte, o bem-estar social desses indivíduos e das coletividades nas
quais estão inseridos.
O tratamento dos dependentes químicos, tradicionalmente, teve por
base o modelo biomédico, hospitalocêntrico, estando diretamente relacionado à
assistência psiquiátrica (BRASIL, 2005b). Somente em 2002, com a III
Conferência Nacional de Saúde Mental, o Ministério da Saúde elabora o
Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e
outras Drogas. Nesse contexto, foram criados pela Portaria n. 336/2002 os
CAPSs ad, serviços de atenção psicossocial para o desenvolvimento de ações
em saúde mental para pacientes com transtorno decorrentes do uso/abuso de
álcool e outras drogas (BRASIL, 2004).
Em 2003, o Ministério da Saúde assumiu de modo integral e articulado
a tarefa de prevenir o consumo de drogas, tratar e reabilitar seus usuários,
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
reduzir o consumo e seus danos. A Política para a Atenção Integral a Usuários
de Álcool e outras Drogas fundamenta as diretrizes para uma nova abordagem
ao fenômeno das drogas, que são: intersetorialidade, integralidade, prevenção
de danos, promoção e proteção da saúde. As orientações propostas por essa
política estão em consonância com a política de saúde mental, reorientada
desde 2001 pela Lei n. 10.216/2001. Vale lembrar que o redirecionamento
desenhado por essa lei adequou o Brasil aos padrões internacionais
recomendados pela Organização Mundial da Saúde.
Assim, a referida política preconiza que o enfrentamento do problema
das drogas se dê por meio da articulação entre as diferentes áreas que estão
implicadas nessa problemática: saúde, educação, social e desenvolvimento.
Deve considerar a contemplação de ações estruturais de educação, assistência
e reabilitação, desenvolvidas de forma descentralizada pelos três entes da
federação, tendo como norte a prevenção, que se constitui no planejamento e
na implementação de múltiplas medidas que objetivam a redução dos fatores
de vulnerabilidade e risco, e fortalecimento dos fatores de proteção individuais
e coletivos (BRASIL, 2004).
Nesse contexto, afirma-se que as redes de saúde, por meio de seus
equipamentos abertos e articulados com outros serviços de saúde e sociais,
têm grande responsabilidade no enfrentamento desse problema.
Apesar da existência de diretrizes assistenciais gerais para a área da
saúde mental no sistema público, cada serviço se organiza de uma forma. Não
há padrões de suficiência da rede assistencial estabelecidos e, desse modo,
não há como avaliar, com bases estatísticas, se os serviços existem em
quantidade satisfatória para atender a população que deles necessita. Outra
questão importante é a qualidade, categoria de análise que permeia desde a
estrutura do serviço até o atendimento profissional, sendo muito subjetiva e,
por isso, de difícil mensuração (BRASIL, 2011).
Entretanto, é comum o apontamento, por pesquisadores da área, da
incapacidade de resposta desses serviços às demandas de assistência à
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
saúde mental, que inclui o acompanhamento aberto dos indivíduos sofredores
de transtornos mentais e egressos de hospitais psiquiátricos. Assim, esses
autores concluem que os serviços, que deveriam ser substitutivos aos
manicômios, acabam não cumprindo suas funções, seja pela insuficiência
quantitativa, seja pela forma como se dá o atendimento do usuário no sistema.
A principal consequência desse cenário é a desassistência do usuário que,
muitas vezes, não consegue ter o direito à saúde garantido (FORTES, 2010).
Se no Sistema Único de Saúde (SUS) a assistência não é adequada,
no Sistema de Saúde Suplementar, a situação não é muito diferente. Tratada à
margem das coberturas assistenciais pelos contratos de planos de saúde, a
assistência à saúde mental sempre foi alvo de abusos e restrições por parte
das operadoras de planos de saúde, por carregarem a marca do alto custo e do
prejuízo referente ao longo curso das internações psiquiátricas. Atualmente, a
Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, tem-se preocupado em
atribuir caráter mais homogêneo à regulação das coberturas assistenciais
referentes à área da saúde mental.
É conveniente elucidar que, no Sistema de Saúde Suplementar,
sistema constituído pela rede de planos de saúde, o beneficiário de plano de
saúde é o indivíduo que assina um contrato com uma operadora de planos de
saúde, uma empresa que vende esse plano. Esse contrato dá-lhe o direito de
utilizar os serviços de saúde descritos nas cláusulas contratuais, a uma
contraprestação pecuniária (mensalidade) paga à operadora. Esta, por sua vez,
recebe a contraprestação e paga aos prestadores credenciados (médicos,
hospitais, clínicas, laboratórios) os serviços de saúde utilizados por seus
beneficiários (SALVATORI; VENTURA, 2012).
Nesse sistema, o tratamento conferido à saúde mental é recente. A
preocupação com essa área começou a surgir em meados de 1998, com a
elaboração de uma política de saúde mental específica para os planos de
saúde. Enquanto o SUS, nesse período, já estava bem avançado, o Sistema de
Saúde Suplementar caminhava lentamente, repetindo trajetos iniciais
fracassados do Sistema Único de Saúde, como a marginalização dessa área
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
de atenção à saúde e a pouca ênfase dispensada no contexto dos
instrumentos normativos do setor (SALVATORI; VENTURA, 2012).
Anteriormente à Lei n. 9.656/1998, não existia nenhum regramento
para a atenção à saúde mental no sistema operado pelos planos de saúde,
havendo apenas as portarias emanadas pelo Ministério da Saúde que
abrangiam somente os prestadores de assistência à saúde mental (hospitais e
clínicas) em suas relações com o SUS. Com exceção da Portaria SAS/ n. 145
(BRASIL, 1994), que teve como objetivo criar um subsistema de supervisão,
controle e avaliação da assistência em saúde mental, pelos diversos níveis do
SUS, as demais faziam referência, quase que exclusivamente, a
procedimentos para cadastros de hospitais para internação psiquiátrica no
âmbito do SUS, serviços, cobranças e normas para alimentação dos Sistemas
de Informação Ambulatorial e Hospitalar (SIA e SIH).
Atualmente, a política de atenção à saúde mental do setor suplementar
de assistência à saúde está disposta na Resolução Normativa n. 387 de 28 de
outubro de 2015, que atualiza o rol de procedimentos e eventos em saúde,
constituindo-se na referência básica para cobertura assistencial mínima nos
planos privados de saúde, contratados a partir de 1º janeiro de 1999 (AGÊNCIA
NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR, 2015).
Apesar de priorizar o tratamento ambulatorial expressamente, no
normativo vigente, a cobertura de sessões de psicoterapia estão limitadas
quanti e qualitativamente (se a sessão será com psicólogo ou com terapeuta
ocupacional, por exemplo), a depender do diagnóstico recebido pela pessoa,
conforme estabelecem as diretrizes de utilização da norma. O mesmo ocorre
com o hospital-dia, único equipamento substitutivo ao hospital psiquiátrico no
Sistema de Saúde Suplementar. No caso das internações, mesmo havendo a
obrigatoriedade do estabelecimento de mecanismos financeiros de regulação
idênticos para as internações em todas as especialidades médicas, inclusive a
psiquiátrica, quando a operadora optar por esta previsão, é permitida a
cobrança de coparticipação crescente, até o limite de 50% (AGÊNCIA
NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR, 2015) do valor pago pela operadora,
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
por dia de internação, ao prestador, para as internações psiquiátricas que
excedam 30 dias de duração, ou seja, se a internação do portador de
transtorno mental durar mais do que 30 dias ou se o número de suas
internações psiquiátricas, por ano de contrato, for superior a esse total, o
beneficiário poderá ter de arcar com até 50% do custo da internação
excedente. Esse tratamento conferido à assistência à saúde mental no Sistema
de Saúde Suplementar demonstra sua discriminação negativa quando
comparada às outras áreas assistenciais.
Assim, se hoje a assistência à saúde mental, no âmbito do sistema
privado de saúde, possui uma configuração desalinhada com as políticas
ministeriais, tal constatação é um produto do desenvolvimento e da evolução
das políticas de saúde mental capitaneadas pela ANS. Entretanto, deve-se
ressaltar que essas políticas desenvolvidas para o setor privado são resultado
da não hegemonia do modelo de reforma psiquiátrica em curso no SUS e,
principalmente, dos interesses econômicos intrínsecos ao setor privado
SALVATORI; VENTURA, 2012).
De todo modo que possam expressar-se os normativos da ANS que
regulam a saúde mental, o direito à saúde é superior a qualquer regra
administrativa, eis que direito fundamental consagrado na Carta Magna e,
inclusive, nos tratados internacionais dos quais o Brasil é país signatário e,
dessa forma, qualquer interpretação que o subtraia deve ser relativizada para
promover esse direito.
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE E DA INTERNAÇÃO
PSIQUIÁTRICA NO BRASIL
O direito à saúde é um direito fundamental e social, tal como está
expresso na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, artigo 6o,
com redação dada pela Emenda Constitucional nº 64/2010:
[...] são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social,
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a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 1988).
Dessa forma, é possível fazer algumas interpretações. A primeira é a
de que o referido artigo se insere no título constitucional “Dos Direitos e
Garantias Fundamentais” e no capítulo “Dos Direitos Sociais”, que têm a
intenção de demonstrar que a saúde é um direito básico, primordial, essencial
e fundamental de todo brasileiro. É um direito intrínseco a um Estado
Democrático de Direito, como o Brasil, já que o respeito aos direitos
fundamentais constitui um dos pilares dessa forma de Estado (STRECK;
MORAIS, 2000).
A Constituição de 1988 dedicou uma seção, composta de cinco artigos,
para tratar do direito à saúde. O artigo 196 dispõe que
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).
Assim, pode-se constatar que ao Estado é imputada a obrigação de
garantir a saúde a todos, sendo de sua responsabilidade a elaboração e a
execução de políticas públicas para essa finalidade. Ainda acrescenta que o
Estado deverá garantir um acesso universal (para todos) e igualitário
(respeitando os mesmos critérios para todos que estejam na mesma situação)
às ações e aos serviços que vão desde a promoção até à recuperação da
saúde.
O artigo 197 classifica as ações de saúde como um serviço de
relevância pública e que, por esse motivo, devem ser regulamentadas,
fiscalizadas e controladas pelo próprio Estado, podendo sua execução ser feita
diretamente pelo Estado, ou por pessoa física ou jurídica de direito privado
(BRASIL, 1988).
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Ficou definido no artigo 198 que o SUS seria organizado em forma de
uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único, tendo
como princípios de operacionalização a descentralização, o atendimento
integral e a participação comunitária na gestão (BRASIL, 1988). No mesmo
artigo, são estabelecidas as formas de financiamento do sistema, por meio do
orçamento da seguridade social e de impostos da União, estados e municípios.
O artigo 199 possibilita que a iniciativa privada participe da assistência
à saúde, vedando, entretanto, a subvenção pública às instituições privadas
com fins lucrativos. Assim, tal artigo permite a coexistência do sistema privado
de planos de saúde, mais conhecido como Sistema de Saúde Suplementar
(BRASIL, 1988).
O artigo 200 (BRASIL, 1988) elenca as competências do Sistema
Único de Saúde, que são regulamentadas pela Lei n. 8.080/1990 – a Lei
Orgânica da Saúde, que vincula o conceito de saúde à qualidade de vida e
define melhor as competências e as obrigações de cada ente da federação na
implantação, na consolidação, na operacionalização e no monitoramento do
SUS (BRASIL, 1990).
É possível observar que houve preocupação do legislador com o texto
Constitucional da saúde. Os artigos permitem compreender que o direito à
saúde é algo muito maior do que a ausência de doenças ou seu tratamento. É
algo que envolve políticas econômicas e sociais que precisam atuar na
prevenção, na promoção, no tratamento e na reabilitação, e que têm como
objetivo final a melhoria da qualidade de vida do cidadão. Por esses motivos,
necessita ser pensado, executado e avaliado transversalmente, ou seja,
perpassando outras áreas de relevância social, como saneamento básico e
infraestrutura, assistência social, cultura, educação e economia, por exemplo.
Um Estado Democrático de Direito é um Estado no qual o direito
conduz os atos dos mandatários. Isso significa que o Estado deve agir
conforme as regras de direito. Nesse sistema, o poder do Estado é dividido em
três funções: a legislativa, a executiva e a judiciária. Cabe ao Poder Judiciário
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fazer cumprir o direito. Este, quando provocado, faz sua atuação por meio de
um processo judicial, no qual será proferida uma decisão sobre o litígio levado
ao tribunal.
Um fenômeno novo, discutido por pesquisadores, operadores do direito
(juízes, advogados, Ministério Público, Defensoria Pública, órgãos de defesa do
consumidor) e pelo Conselho Nacional de Justiça, é a judicialização da saúde –
processo que representa a efetivação do direito à saúde por meio da
intervenção jurisdicional (GANDINI; BARIONE; SOUZA, 2010).
A via judicial tem sido o meio que muitos usuários do SUS e
beneficiários do Sistema de Saúde Suplementar vêm utilizando para, em
muitos casos, fazer valer um direito fundamental. Nessa seara, encontra-se a
judicialização da internação psiquiátrica.
O direito à saúde, compreendido como o direito que todo ser humano
possui, essencial à manutenção de uma vida digna e ao desenvolvimento do
próprio projeto de ser humano, inclui variados elementos que, em seu conjunto
e em níveis adequados, respondem pela materialidade desse direito:
alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda,
educação, transporte, lazer, acesso aos bens e serviços essenciais, os quais
compreendem o acesso aos serviços de saúde (BRASIL, 1990). Como parte do
direito ao acesso aos serviços de saúde está o direito à internação psiquiátrica
que, apesar de apresentar-se como “aparente” paradoxo frente à reorientação
do modelo de assistência à saúde mental ainda praticado no Brasil, tem-se
tornado alvo de críticas, nem sempre fundamentadas no melhor interesse do
paciente e, por esse motivo, apresenta-se como uma questão de relevância
para a compreensão das especificidades dos direitos dos portadores de
transtornos mentais.
Nesse cenário, a judicialização da internação psiquiátrica tem
assumido, pelo menos, duas facetas: a de defesa do direito das famílias e da
sociedade em reabilitar uma pessoa que não consegue conviver
equilibradamente em sociedade e a da possibilidade para o exercício, pelos
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próprios portadores de transtorno mental, do seu direito à internação, como
consequência do seu direito à saúde no contexto do acesso ao serviço de
saúde.
Há vários estudos especializados sobre o tema, os quais enfocam,
principalmente, a judicialização da prestação da assistência farmacêutica
(envolvendo lides que vão desde medicamentos de dispensação essencial – os
utilizados para tratar as doenças mais comuns da população – até os
excepcionais – os de alto custo para o governo, geralmente utilizados para
tratar doenças crônicas e raras) e a do acesso a coberturas assistenciais no
Sistema de Saúde Suplementar.
Porém, o acesso à assistência à saúde mental e às internações
psiquiátricas por via judicial ainda é pouco discutido no Brasil. Fortes
(FORTES, 2010) descreve, de forma breve, a intervenção judicial no caso da
internação compulsória e aponta algumas de suas consequências políticas,
sociais e éticas; sendo esse um tema ainda muito pouco investigado pela
academia.
Nesse sentido, uma iniciativa pioneira tem sido a do Comitê Executivo
de Saúde do Estado de São Paulo, do Conselho Nacional de Justiça,
responsável pelo estudo e pelas proposições de soluções para a questão da
judicialização da saúde no estado de São Paulo.
Os juízes que integraram o Comitê Executivo de Saúde do Estado de
São Paulo, no ano de 2011, relataram o drama de alguns casos de internação
psiquiátrica que estiveram sob seu julgamento. Noticiaram que as famílias
costumam buscar a tutela judicial como último recurso, após a tentativa, por
diversos meios (acompanhamento do familiar afetado pelos serviços
ambulatoriais – CAPSs, CAPSs ad, oficinas terapêuticas, grupos de ajuda,
atendimentos em serviços de emergência, internações breves em hospitais
gerais e psiquiátricos, entre outros) para recuperar o membro da família
portador de transtorno mental e reinseri-lo na sociedade (REUNIÃO DO
COMITÊ EXECUTIVO DE SAÚDE DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2011).
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Mencionaram, também, haver situações nas quais o indivíduo, para o qual se
solicitava a internação, nem sequer ter recebido algum tratamento ambulatorial,
sob a alegação da falta de oferta dos serviços, de seu difícil acesso ou de sua
ineficiência em promover as respostas esperadas. Sem opções efetivas para
dirimir a situação posta em julgamento, os juízes, ali presentes, acabavam
decidindo pela internação psiquiátrica compulsória.
Há muitos fatores a serem considerados em qualquer discussão que se
faça sobre as internações psiquiátricas judiciais. O uso de drogas e suas
consequências sociais estão no topo das preocupações jurídicas, afinal, o
assunto sempre foi tratado como crime ou esteve relacionado a ele.
Quando pode ser estabelecido o nexo causal entre um ato criminoso e
a presença de drogas, e existe um pedido familiar para a internação visando à
recuperação do indivíduo, o juiz se coloca em uma situação dilemática. Por um
lado, precisa proteger a dignidade da pessoa humana, 3o princípio
constitucional fundamental, que se efetiva por meio de um conjunto de deveres
de Estado, civis e personais. Por outro, para garantir essa mesma dignidade
tem como alternativa mais imediata “prender” esse indivíduo, para que ele
possa recuperar sua saúde, o que é uma medida violenta, que restringe a
liberdade da pessoa humana, direito humano fundamental, assegurado pela
constituição e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Assim, para a maioria dos juízes (SALVATORI, 2013), a internação
psiquiátrica é uma medida de saúde, para a qual é necessária um pedido
familiar, na maioria das vezes seguido de relatório médico ou consequente a
este documento, para garantir o direito à saúde e o princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana.
Contudo, no Sistema de Saúde Suplementar, Salvatori (2013) afirma
que as representações da internação psiquiátrica assumem significados
diferentes, tendo um enfoque eminentemente consumerista. A internação
psiquiátrica é um serviço a ser executado por quem foi contratado para efetivá-
lo, no caso as operadoras de planos de saúde, e a decisão judicial procedente
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à internação psiquiátrica é meio de fazer a operadora cumprir uma obrigação
que nem sempre é contratual, mas que está no bojo da missão dos planos de
saúde: garantir saúde.
Essas representações nem sempre são iguais. A existência de
representações diferentes, em um mesmo Poder Judiciário, apresenta desafios
igualmente diferentes para os atores envolvidos no processo da internação
psiquiátrica. Entretanto, a melhoria dos serviços de assistência à saúde mental,
que envolve uma melhor formação profissional, um atendimento mais
humanizado e focado nas necessidades do portador de transtorno mental; a
presença de uma rede aberta, suficiente e fortalecida pelas gestões de seus
sistemas de saúde; e a participação consciente da família permanecem como
pilares de qualquer mudança significativa nos resultados da assistência ao
portador de transtorno mental, independentemente dos rumos da judicialização
da internação psiquiátrica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reforma psiquiátrica foi um movimento social que se consagrou por
exigir uma mudança de paradigma na assistência aos portadores de transtorno
mental. Ela almejou, prioritariamente, alterar o lugar social do cuidado,
prestado originariamente em hospitais psiquiátricos, para centros comunitários
abertos, e o modo da prestação desse serviço de saúde, por meio da
incorporação de uma assistência mais humanizada, integral e que resgatasse a
cidadania dos sujeitos desse cuidado.
Foi, primeiramente, pela promulgação da Constituição de 1988, que a
saúde foi reconhecida como um direito social e dever do Estado.
Posteriormente, a Lei 8.080, de 1990, e a Lei 9.656, de 1998, regulamentaram
aspectos da prestação da saúde pública e da saúde ofertada pelos planos de
saúde, conferindo direitos aos sujeitos usuários e beneficiários desses
sistemas, respectivamente. Mas, foi somente com o sancionamento da Lei
10.216, de 2001, que restou demonstrada, pela sociedade brasileira, a
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necessidade de se redirecionar a assistência à saúde mental que até então
vinha sendo praticada. Essa Lei foi um marco na assistência à saúde dos
portadores de transtornos mentais e, conjugada aos marcos legais anteriores,
representou um grande avanço na política de saúde mental brasileira.
Contudo, a assistência ao portador de transtorno mental conferida nas
políticas públicas de saúde focou-se substancialmente na política antidrogas e
na assistência à saúde dos dependentes químicos pelo fato desta questão, a
dependência química, estar bastante associada a crimes e à violência. Essa
associação, em muitas situações, acaba confluindo no Poder Judiciário, que é
chamado à lide para decidir sobre um direito expresso em Lei: a internação
psiquiátrica.
A judicialização da internação psiquiátrica é um fenômeno que,
acompanhando a judicialização da saúde, vem crescendo nos últimos dez anos
(SALVATORI, 2013). É um fenômeno que está principalmente relacionado ao
uso de drogas e à intervenção da família do portador de transtorno mental junto
ao Poder Judiciário, exigindo a efetivação do direito à saúde. Em que pese a
necessidade de tratamento do portador de transtorno mental, em longo prazo,
a prática de internações psiquiátricas para dependentes químicos pode trazer
consequências prejudiciais ao modelo de assistência à saúde mental, baseado
no tratamento em rede aberta e substitutiva à internação asilar.
Por esse motivo, merece ser investigada para que se torne possível
pensar em soluções para os problemas que dela podem decorrer. Em qualquer
aproximação que se faça sobre o assunto, é necessário considerar a história
da psiquiatria, os impactos sociais da dependência química, o direito à saúde, o
direito à liberdade, o direito à paz social e o papel do Poder Judiciário quando
todas as instâncias anteriores falham na missão de cuidar da saúde dos
usuários do sistema público de saúde ou dos beneficiários do Sistema de
Saúde Suplementar.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
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O resgate de direitos sociais dos moradores de serviços
residenciais terapêuticos
Vanessa Vieira França
Iracema da Silva Frazão
RESUMO
Objetivo: refletir sobre o processo de resgate dos direitos sociais do morador
de Serviços de Residenciais Terapêuticos (SRT). Método: Estudo transversal,
censitário, realizado entre janeiro e julho de 2015 com 190 moradores de SRT
de Recife, Pernambuco. As variáveis estudadas foram as de perfil demográfico
e familiar e o histórico psiquiátrico por meio do cálculo das frequências
percentuais e suas distribuições e utilizado o teste de qui-quadrado para
verificar associação entre as variáveis dependentes e as independentes.
Resultados: A população curatelada corresponde à 22,1% com predominância
das faixas etárias de 25 a 44 anos e maiores de 60 anos, com renda entre 1 e
2 salários-mínimos, com contato familiar recente, frequentando os SRT em
média 1 vez ao mês. Observou-se associação significativa entre os usuários
não curatelados e a ausência de renda, escolaridade e de contato com
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
familiares. Conclusões: As variáveis sociodemográficas e familiares apontam
várias fragilidades na condição dos moradores como cidadãos. Direitos
fundamentais como o acesso à saúde, documentos e a autonomia para
aquisição de bens de subsistência ficam frequentemente ameaçados pela falta
de estrutura na rede de atenção, bem como pela intervenção negativa de
algumas famílias que mantém o morador sob curatela indefinidamente.
INTRODUÇÃO
O movimento da Reforma Psiquiátrica foi o principal responsável por
denunciar, no Brasil, a violência dos manicômios, a mercantilização da loucura
e a hegemonia de uma rede privada de assistência. Dentre os objetivos estava
a sensibilização e construção coletiva da crítica ao modelo hospitalocêntrico na
assistência às pessoas com transtornos mentais, pois propunha que o cuidado
a estas pessoas fosse realizado na comunidade, ao lado de uma rede de apoio
social (PARENTE, 2013).
Houve, portanto, o estímulo e a preparação do paciente
institucionalizado para a sua desospitalização e retorno às famílias e
comunidades de origem. Todavia, não foram raros os casos em que o grupo
familiar não possuía as condições emocionais, afetivas ou mesmo de estrutura
física da residência para acolher mais um membro principalmente com
necessidades singulares. Com o desenvolvimento do processo de
desospitalização e criação de uma rede comunitária substitutiva, que ofertava o
cuidado, foi evidenciado o surgimento de um grupo de pacientes estáveis em
sua condição psiquiátrica e com potencial para residir na comunidade, apesar
de não possuírem laços familiares disponíveis, aptos ou habilitados para
recebê-los (MACEDO, SILVEIRA, EULÁLIO, 2013; BRASIL, 2004).
Para responder à questão da fragilidade de laços familiares e sociais
dos moradores do hospital, foi instituído, por meio da Portaria 106/2000, o
Serviço Residencial Terapêutico (SRT) em saúde mental. Estes dispositivos
são casas inseridas na comunidade que tem por público os portadores de
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transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa
permanência, sem suporte social e com laços familiares ausentes ou
fragilizados que comprometam a devida inserção social dos mesmos (BRASIL,
2000).
Após saírem dos manicômios os agora moradores dos SRT vêm
desfrutando dos benefícios advindos da liberdade de ir e vir, de controlar o
tempo e a própria vida. Entretanto, os longos anos de permanência no
manicômio deixaram marcas físicas e comportamentais. Ainda, depois de tanto
tempo, nem sempre é possível identificar os reais determinantes dos agravos
que também acometem a população em geral.
Dentre a população de egressos de internamentos em hospitais
psiquiátricos puderam ser evidenciadas comorbidades clínicas associadas aos
transtornos mentais como hipertensão, diabetes, tabagismo, sobrepeso, entre
outros. Este quadro evidencia os desafios que a assistência comunitária deverá
enfrentar para a resposta às demandas de cuidado (ALVES et al., 2010).
Adicionalmente, as perdas sociais são comumente identificadas em
moradores de instituições de longa permanência. A clientela dos manicômios
foi desde sempre predominantemente formada por pessoas das classes
populares, ou seja: “desempregados, migrantes, filhos de subempregados,
pacientes portadores de patologias físicas” (DELGADO, 2001), que se
encontravam em situação de extrema vulnerabilidade social, caracterizada pelo
baixo poder aquisitivo, baixa escolaridade e pela ausência da noção de direitos
ou da possibilidade de reivindicá-los. Estas características, referendadas por
um diagnóstico clínico, conferiam a condição de excluído e asilado, levando à
pessoa a incorporação do papel de doente, alienado e definitivamente incapaz.
Não seria prudente afirmar que todas as pessoas “psiquiatrizadas”
como diria Delgado (2001), em uma instituição manicomial, teriam um futuro
brilhante, caso não houvessem recebido a sentença condenatória do
diagnóstico psiquiátrico associado à reclusão prolongada. Entretanto, é
inquestionável que a instituição fechada consegue ter um poder iatrogênico de
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
despersonalizar o indivíduo. Contrariando a opinião de especialistas que à
época atribuíam a condição de morbidez, apenas ao curso natural da doença
mental, Goffman (1993) atribuía esta condição aos prejuízos inerentes ao
ambiente manicomial como a carreira moral do doente mental. Estudos de
Barton já caracterizavam com detalhes os danos clínicos e sociais advindos da
reclusão em instituições totalitárias e denomina este estado como neurose
institucional (BARTON, 1974). Entre outros padrões de comportamento, é
possível mencionar como característico da neurose institucional, a total
submissão às atitudes autoritárias, indiferença, desinteresse por
acontecimentos futuros, resignação diante de fatos e coisas e apatia diante de
pessoas. Essa combinação de características inibem quaisquer discussões
sobre direitos fundamentais, diante de tamanho dano à dignidade do ser
humano.
Diante destas questões relacionadas à negligência dos direitos sociais
vivenciadas pelas pessoas portadoras de transtornos mentais, o presente
estudo teve como objetivo refletir sobre o processo de resgate dos direitos
sociais de moradores de Serviços Residenciais Terapêuticos com base nas
suas características psicossociais.
MÉTODO
Estudo descritivo, de corte transversal. Teve como cenário os 31
Serviços Residenciais Terapêuticos em funcionamento, até março de 2015, no
município de Recife – PE.
A população do estudo considerou os 229 moradores de ambos os
sexos, residentes em SRT entre janeiro e julho de 2015 no município de Recife
– PE. A amostra foi do tipo censitário em virtude do tamanho da população e
pelas singularidades que envolviam suas histórias clínicas e psiquiátricas.
Considerando os critérios de elegibilidade, observou-se durante a coleta a
ocorrência de óbitos (5), internamentos hospitalares (2), afastamento do
morador da cidade durante a coleta de dados (3), recusa do participante (13)
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
ou de seu curador legal (16). Foram excluídos ainda, moradores
impossibilitados de participar do estudo por questões de enfermidade física ou
mental e que não possuíam curador legal nomeado ou que o curador não
pudesse ser contatado durante o período de coleta de dados, de forma que
foram entrevistados 190 moradores.
Utilizou-se para a coleta de dados de instrumento estruturado,
elaborado com base no Caderno de Atenção Básica nº 19 do Ministério da
Saúde e no modelo de formulário para atendimento ambulatorial do Núcleo de
Atenção ao Idoso (NAI), serviço universitário da Universidade Federal de
Pernambuco que presta cuidado multiprofissional a idosos. Para este estudo
foram analisadas as variáveis de perfil socioeconômico e familiar: idade, sexo,
estado civil, renda, escolaridade, curatela, histórico de abandono familiar, de
situação de rua, de perda de documentos pessoais pregressa ao SRT e contato
familiar após mudança para SRT. Com relação ao perfil psiquiátrico,
analisaram-se as variáveis: número de internamentos em hospital psiquiátrico
durante a vida, tempo do último internamento em hospital psiquiátrico, tempo
de residência em SRT, internamento em hospital de custódia e tratamento
psiquiátrico, além dos diagnósticos psiquiátricos mais prevalentes em
prontuário.
A coleta de dados ocorreu por meio de entrevista, com uso de
questionário estruturado, mediante pacto com a coordenação dos SRT e com
as equipes técnicas de cada residência e dos respectivos CAPS de referência.
Inicialmente, por exigência da gestão, a coleta de dados ocorreu
individualmente, em local reservado nos CAPS, após o convite de participação
na pesquisa pela equipe técnica das SRT e esclarecimento dos termos do
estudo. No dia e horário agendados um veículo da prefeitura fazia o translado
de ida e volta desse morador ao seu CAPS de referência, onde seria realizada
a entrevista.
Durante o primeiro momento evidenciou-se que parte da população
apresentava dificuldades de locomoção, questões clínicas e psiquiátricas que
dificultavam seu translado ou até mesmo se recusavam a sair de casa. Devido
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
a tais questões, a equipe de pesquisa foi autorizada a realizar a coleta de
dados nas instalações dos SRT nestes
casos específicos.Tal mudança não atrapalhou o andamento da pesquisa. Pelo
contrário, contribuiu para que o número de perdas fosse reduzido. Para
minimizar os vieses relacionados à memória e às respostas incompletas, foi
realizada a triangulação dos dados com a confirmação dos dados informados,
por meio de consulta ao prontuário disponível no CAPS bem como a validação
das informações pelo cuidador responsável.
Para análise dos dados, foi construído um banco no programa EPI
INFO, versão 3.5.2, por meio de dupla digitação, posterior validação e correção
dos valores divergentes.
O banco foi exportado para o software SPSS, versão 18, em que foi
realizada a análise.
Para avaliar o perfil epidemiológico, familiar e psiquiátrico foram
calculadas as frequências percentuais e construídas as distribuições de
frequência. Na avaliação da associação estatística da variável dependente com
as independentes foi utilizado o teste quiquadrado para independência. Nos
casos em que as suposições do teste não foram satisfeitas, foi aplicado o teste
Exato de Fisher. Em todas as análises, foram consideradas como diferenças
significativas p-valores <0,05.
Este artigo é parte do projeto intitulado “Serviços de Residências
Terapêuticas: demandas de cuidado para enfermagem”,que atende a
Resolução 466/12 e obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do
Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco, através
do CAAE: 37085914.0.0000.5208 e parecer de número 859.731.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
RESULTADOS
O perfil da população estudada (tabela 1) foi formado por homens
(64,7%), solteiros (82,6%), não escolarizados (43,7%), não curatelados (77,9%)
e com renda entre um e menos do que dois salários-mínimos (70,6%). A
distribuição etária foi predominantemente de pessoas com 60 anos ou mais
(33,2%), com idade mínima registrada de 25 anos, máxima de 89 anos e média
de 54,05 anos (DP=13,33). Ao analisar os 31 SRT disponíveis no período de
coleta de dados pode-se evidenciar que cerca da metade (16 casas, o que
corresponde à 51,6%) estavam localizadas em área com cobertura da
Estratégia Saúde da Família.
Com relação aos vínculos familiares (tabela 2) maior parcela dos
usuários relatou durante a entrevista possuir familiares (55,8%) sendo 39,6%
desses familiares de segundo grau (em especial irmãos). A identificação do
padrão de visita dos familiares foi categorizada em períodos de tempo
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
escolhidos pelos usuários em que a maior parcela relatou ter contato semanal
com seus parentes (34,0%).
Em se tratando do histórico psiquiátrico dos usuários residentes em
SRT (Tabela 3) evidenciou-se que 41,6% dos moradores tiveram entre 3 e 10
internamentos psiquiátricos durante a vida. No último internamento, o tempo de
estada no hospital psiquiátrico variou entre 5 meses e 40 anos com tempo
médio de 9,48 anos (DP=8,409). A maioria dos moradores residia em SRT
entre 1 e 5 anos de SRT (55,8%). Pode ser identificado nesse estudo ainda que
o relato de ausência de documentos na admissão ou perda durante o
internamento psiquiátrico em hospital ocorreu em 32,6% dos casos.
Ao avaliar a distribuição dos usuários curatelados segundo as suas
características epidemiológicas, familiares e psiquiátricas (tabela 4) evidencia-
se que o grupo de usuários curatelados é formado em sua maioria por homens
(76,2%), com predominância dos extremos estudados de faixas etárias de (25
a 44 anos e maiores de 60 anos – 28,6%), com renda entre um e dois salários-
mínimos (76,2%), com ensino fundamental completo ou incompleto (38,1%),
com contato familiar atual (92,9%) principalmente de irmãos, mantendo um
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
padrão de visitas mensais (43,6%). Relatam ter vivenciado entre 3 e 10
internamentos psiquiátricos pregressos com um tempo igual ou superior a 10
anos em seu último internamento.
A análise bivariada entre a variável curatela e os fatores
sociodemográficos e epidemiológicos (tabela 5) demonstrou que estão
estatisticamente associados com a ausência de curatela dentre os moradores
de SRT a ausência de renda (p-valor = 0,022), de escolaridade (p-valor=0,049),
de contato familiar (p-valor<0,001) e último internamento psiquiátrico com
duração entre 2 e 9 anos (p-valor=0,013). Não houve associação estatística
significativa entre a variável dependente curatela e as independentes idade (p-
valor= 0,549), sexo (p-valor=0,078), grau de parentesco do familiar que
frequenta o SRT (p-valor = 0,433),padrão de visitas familiares (p-valor = 0,070)
e número de internamentos psiquiátricos pregressos (p-valor = 0,261).
DISCUSSÃO
A maior prevalência de homens solteiros, evidenciada nos SRT de
Recife, também pôde ser encontrada em outros estudos realizados tanto em
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
residências do Piauí e Rio de Janeiro, quanto em Hospitais Psiquiátricos. Essa
distribuição por sexo não é observada no perfil demográfico da cidade do
Recife onde a população feminina corresponde a 53,87%. As análises
epidemiológicas sobre a prevalência de transtornos mentais entre os gêneros
evidenciam que as mulheres são mais vulneráveis aos transtornos mentais,
com ênfase aos sintomas ansiosos e depressivos, aos transtornos alimentares
e às sequelas das situações de violência de gênero (LAGO et al., 2014; ALVES
et al., 2010).
!119
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
O impacto que o transtorno mental exerce, no cotidiano doméstico,
está relacionado à posição que o paciente ocupa nessa família. Culturalmente,
o homem exerce o papel de provedor financeiro da casa, enquanto a mulher,
apesar de hoje apresentar jornadas duplas de trabalho, ainda exerce a função
de cuidadora da casa, da família e dos seus membros, adoecidos ou não
(ROSA, 2003; SANTIN, KLAFKE, 2011; ROSA, CAMPOS, 2012).
Dessa forma, a família que recebe esse portador de transtorno mental
em casa após longos períodos de internamento psiquiátrico, apresenta
expectativas diferentes entre os gêneros, baseada no cenário cultural. O
predomínio de pacientes do sexo masculino em hospitais psiquiátricos pode
estar relacionado à esperada atuação do usuário, por sua família, no papel de
provedor financeiro. Esta expectativa pode ser frustrada em decorrência do
transtorno mental apresentado pelo usuário. Já entre as mulheres, mesmo com
algum comprometimento, ainda é possível em muitos casos a realização de
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
atividades domésticas mais simples, culturalmente aceitas como desempenho
social suficiente (FRAZÃO, 2007).
A falta de cobertura do Programa Estratégia de Saúde da Família é um
fator que compromete o acesso dos moradores aos serviços de saúde.
Gestores referem que estão cientes desta necessidade, entretanto se esbarram
na falta de edificações no território adscrito que atendam as configurações
legais necessárias a elevação de uma casa à condição de Residência
Terapêutica. Por outro lado nem sempre os recursos disponíveis estão
compatíveis a localidade, sendo preciso buscar bairros fora da área de
cobertura da ESF. Estando fora da área de cobertura, os técnicos passam
muitas vezes a ter que utilizar de influências pessoais para viabilizar
atendimentos de saúde aos moradores, o que desvirtua a proposta do SUS.
Outro problema evidenciado foi a ausência de documentos, por parte
dos moradores. Existem relatos, à semelhança do que se observou no
manicômio de Barbacena, em que os pacientes chegavam ao manicômio sem
documentos e por este motivo, não era possível assegurar os dados de
nascimento e filiação, a falta destas informações compromete o acesso aos
programas de benefícios sociais e geração de renda, funcionando como mais
um entrave à ressocialização e ao acesso aos direitos de cidadania (ARBEX,
2013).
O morador curatelado, na maioria dos casos tem contato com seus
familiares. Tal fato desperta a discussão acerca do relacionamento dessa
família com o morador e do papel que a renda deste desempenha no cotidiano
doméstico da sua família de origem. Se por um lado a curatela representa
responsabilidade com relação às decisões e cuidados a alguém, pessoa
inimputável, ao mesmo tempo, em muitos casos os curadores transferem essa
responsabilidade de cuidado cotidiano para os SRT, assumindo de fato apenas
com a responsabilidade nas decisões financeiras. Estas questões podem ter
origem no desgaste das relações familiares, no ônus financeiro e na falta de
expectativa deste grupo em relação ao futuro do doente, que traz conflitos e
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
descompassos, e repercute diretamente no processo terapêutico (FRAZÃO,
2007).
Faz-se importante evidenciar que, em proporções diferentes do que foi
observado na população geral onde é mais prevalente a presença da
população com 60 anos ou mais, no grupo de usuários curatelados são
encontrados além de usuários idosos a faixa etária de usuários mais jovens do
estudo (25 - 44 anos). A presença de altos percentuais de usuários em idade
economicamente ativa no grupo de curatelados evidencia que além das
fragilidades provocadas pela doença, a ociosidade e a falta de estímulo para a
atuação em atividades laborais podem contribuir para manter o portador de
transtorno mental economicamente improdutivo. Altas prevalências de pessoas
em idade economicamente ativa nos hospitais psiquiátricos ou nos serviços da
RAPS (como os ambulatórios e os CAPS) resulta no incremento da
necessidade de concessão de benefícios financeiros por incapacidade
temporária para os cofres públicos.
Estudo ecológico realizado com dados secundários do Ministério da
Previdência Social entre 2008 e 2011, evidenciou que os transtornos mentais e
comportamentais figuram como o terceiro maior motivo para a concessão de
benefícios. A diminuição da força produtiva pode gerar importantes custos ao
Estado e a exclusão social pode agravar ainda mais o sofrimento do grupo
(SILVA JÚNIOR; FISCHER, 2014).
Entre os participantes do estudo observou-se um número elevado de
pessoas que possuía nenhum, ou poucos anos de estudo. Tal fato pode ser
explicado em razão de muitos destes participantes terem vindo de famílias
socialmente vulneráveis, sem facilidade acesso à educação, principalmente
nos casos em que há necessidade de atendimento especial no ambiente
escolar. No Brasil, a educação especial só começou a ser implantada como
política pública a partir de 2008, não contemplando os atuais moradores das
RT (BRASIL, 2010).
!122
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Por outro lado, os transtornos psicóticos com frequência afloram seus
primeiros sintomas entre o final da adolescência e o início da vida adulta. Esse
fator por si já é suficiente para comprometer a formação acadêmica e
profissional destas pessoas. Logo, além do transtorno mental, que, de certa
forma, já contribui para estabelecer uma dificuldade nos relacionamentos
interpessoais, o isolamento provocado pelos longos períodos de internamento
reforça o comprometimento de ordem social. Ainda hoje é um grande desafio
para as pessoas com transtornos mais graves manter-se na escola após o
primeiro surto psicótico, tanto pelas manifestações clínicas, mas principalmente
pela falta de suporte de uma rede de atenção que acolha esta pessoa em sua
singularidade.
No presente estudo, entre os usuários curatelados a presença de renda
mensal entre 1-2 SM foi a mais prevalente, tendo em vista que esta faixa
salarial corresponde ao somatório de dois benefícios previdenciários: o
benefício de prestação continuada e a bolsa de volta para casa. A renda de
moradores de RT em geral não vem do trabalho destas pessoas. Isso pode
comprometer a satisfação pessoal e a dignidade de ter seu trabalho e esforço
reconhecido, mais uma vez pela falta de programas sociais que acolham as
demandas de um trabalho protegido, o que viria a reforçar o princípio da
equidade e do acesso igualitário às oportunidades.
É interessante evidenciar que esteve estatisticamente associado aos
usuários não curatelados a ausência de vínculos familiares. Tal fato traz à
discussão dois pontos importantes: o primeiro é que pela ausência de um
vínculo familiar ou social de referência, muitos usuários são privados de
receber benefícios financeiros, por se tratar de uma pessoa com
comprometimento cognitivo grave e ou em estado de institucionalização
‘profunda’ e sem vínculos com o território onde residem atualmente. O segundo
dado que pode auxiliar no entendimento é que, em muitos casos, o cuidado a
um usuário com histórico de internamentos psiquiátricos de longa duração
implica na renúncia do trabalho remunerado por parte do cuidador e envolve
aumento dos custos com transporte para o tratamento e com alimentação
!123
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
(muitas vezes associada a um aumento do apetite do usuário pelo uso do
psicofármaco) (LIMA, NOGUEIRA, 2013).
Durante a realização do presente estudo, as autoras observaram que,
por vezes, a família adota o benefício do usuário como principal provento
familiar, mas ‘terceiriza’ a responsabilidade do cuidado deste doente ao hospital
psiquiátrico ou SRT. Tal fato pode ser evidenciado pelos resultados observados
na variável “padrão de visitas”, em que para os que são curatelados as visitas
de seus familiares se dão em 43,6% dos casos mensalmente. Estudo realizado
em um Centro de Referência em Saúde Mental de Teresópolis com usuários e
familiares evidenciou que o benefício recebido por esse usuário lhe confere o
status de provedor da renda familiar, sendo seu dinheiro fundamental para a
sobrevivência da família. Geralmente esse provedor apresenta dificuldades
para administrar suas finanças e, por consequência, não possui autonomia
financeira para gastos pessoais (ROMAGNOLI, 2006).
A maioria não é curatelado e apesar de morar na RT, mantém contato
com pais filhos ou irmãos. Apesar de todos os esforços das equipes de
desinstitucionalização, as vezes é difícil retomar os laços familiares rompidos
em alguns casos até de forma traumática e anos depois as marcas dos
relacionamentos impedem uma reaproximação completa. Por outro lado, o
estigma da irreversibilidade e da agressividade exigem do familiar um tempo de
reaproximação que permita a quebra da crença perpetuada ao longo dos anos
e que se estabeleça uma nova relação, lenta e gradualmente, onde as
individualidades possam ser respeitadas e os afetos possam ser reconstruídos
na medida do possível. Desta forma, é plenamente compreensível que os
contatos se fortaleçam ao longo do tempo, sem que isso determine uma volta
para casa dos familiares.
O tempo de internamento apresentado no estudo, refere-se apenas ao
internamento mais recente. Este dado pode mascarar um longo internamento,
sucedido por um internamento mais curto, o que não invalida os achados, pois
mesmo com esta limitação, observa-se que os moradores possuem vários
reinternamentos por tempo prolongado inclusive na última hospitalização. Ou
!124
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
seja, este dado ainda poderia ser mais significativo se alcançasse o maior
tempo de internamento na vida. Já em relação ao tempo de vida na RT,
observa-se um predomínio daqueles que lá estão entre um e cinco anos, em
virtude desta política ter recebido seus maiores investimentos nos últimos cinco
anos. Antes disso haviam algumas iniciativas pontuais de residências,
funcionando dentro de hospitais psiquiátricos, a exemplo do Hospital Ulisses
Pernambucano que por volta de 1999 já possuía uma casa para onde iam os
pacientes mais organizados psiquicamente. Entretanto, apesar de poderem
circular livremente para fora do hospital, eles ainda ficavam sob os cuidados da
equipe do mesmo, além da casa estar localizada dentro das grades do
manicômio (AGUIAR, 2009).
A maioria dos curatelados mantém contato com a família, entretanto
cabe destacar o registro de três moradores curatelados que não mantinham
nenhum contato com a família regularmente e que possuíam renda proveniente
de benefício. Tal dado pode servir como indício de que este benefício pode não
estar sendo revertido para o beneficiário de direito. Logo, um quantitativo
aparentemente pequeno pode estar escondendo algo grave que precisaria ser
melhor apurado pelos órgãos competentes.
A variável curatela não expressou nenhuma diferença significativa em
relação ao tempo do último internamento, entretanto observa-se que pessoas
com maior tempo de internamento na vida apresentam-se mais frequentemente
sob a curatela de terceiros. Tal observação reforça o entendimento de que o
internamento prolongado é gradualmente incapacitante e desta forma, nocivo à
pessoa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora existam diversos estudos analisando o perfil de moradores de
hospitais psiquiátricos e de outros dispositivos da RAPS, os resultados acima
apresentam dados relevantes a respeito dos usuários que efetivamente
encontram-se atualmente em processo de desinstitucionalização, mesmo
!125
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
apresentando o impedimento de reinserção pela via da família. Diante do
pouco tempo de existência dos Serviços Residenciais Terapêuticos e dos
números expressivos casas adicionadas à rede do município de Recife-PE, os
dados descritos adicionam clareza acerca do perfil sociodemográfico,
psiquiátrico e familiar deste usuário e das dificuldades enfrentadas na
ressocialização destas pessoas com histórico institucionalização de longo
período.
Os resultados evidenciaram que uma parcela pequena da população
estudada é curatelada, mas que este grupo apresenta características
peculiares em relação a faixa etária, renda, (compreendida pelo somatório do
benefício de prestação continuada e a bolsa de volta para casa), o recente
contato com a família, sendo feito principalmente por parentes de segundo grau
e que frequentam os SRT em média uma vez ao mês para visitar o morador. Já
os usuários não curatelados estiveram estatisticamente associados com a
ausência de renda, de escolaridade e de contato com familiares.
A saída do manicômio não rompe automaticamente com os efeitos
deletérios da prolongada alienação que se construiu ao longo dos anos. Já fora
dos muros e grades, o morador da residência terapêutica continua enfrentando
muitas dificuldades no processo de ressocialização e quebra da
institucionalização instalada. Ao estigma de “louco” são somadas: a dificuldade
de acesso aos serviços de saúde, o cuidado com o transtorno mental, as
comorbidades clínicas decorrentes da realidade do envelhecimento, o
persistente distanciamento da família, dos antigos amigos e de sua
comunidade de origem agravado pelos longos anos vivendo alienado; a perda
de fases de vida onde se esperava constituir uma família, adquirir uma
formação acadêmica ou profissional que o habilitasse ao mercado de trabalho;
a falta de recursos financeiros ou ainda a falta de acesso aos recursos
existentes, devido a apropriação por parte de um curador, entre outros desafios
que precisam ser enfrentados singularmente, no resgate da cidadania.
Cabe aos gestores, órgãos formadores, dispositivos da RAPS,
trabalhadores sociais, da saúde e do direito, dentro das suas esferas de
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
atuação, manter o tema em constante discussão, de forma a avançar nas
práticas que buscam devolver aos ex-moradores de instituições manicomiais o
cuidado à saúde negligenciado, a dignidade ignorada, os laços rompidos e os
afetos esquecidos. Desta forma, poderemos ter a esperança de um futuro mais
equânime e justo para toda sociedade.
REFERÊNCIAS
AGUIAR, B. L. Serviços de Residências Terapêuticas: entre a tutela e a autonomia, a incansável busca pelo cuidado….2009. 124 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de de Pernambuco, Recife, 2009.
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DELGADO, P. G. G. Perspectivas da psiquiatria pós-asilar no Brasil. In: COSTA, S. (Ed.). Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. 7ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 171-202.
FRAZÃO, I. S. Eu acho que a pessoa doente mental pode trabalhar ; Eu trabalho e não sou doente mental?: o processo de reinserção da pessoa com transtorno mental no mercado de trabalho. 2007. 275 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
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LIMA, M. T.; NOGUEIRA, F. M. D.. O modelo brasileiro de assistência a pessoas com transtornos mentais: uma revisão sistemática da literatura. Rev. Bras. Promoç. Saúde, v. 26, p. 1, p. 128-138, 2013.
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Infância e Adolescência: direitos e transtornos
Marinêz de Fátima Ricardo
Michelle Andrea Marcos
RESUMO
O sucesso social e escolar das crianças passou a depender de variantes que
estão, muitas vezes, relacionadas a seu emocional, à sua saúde mental.
Algumas crianças chegam à escola com diferentes quadros de transtornos
psiquiátricos como Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), depressão,
escarificações (automutilação). A situação é tão grave que há campanhas para
que se conscientize sobre a medicação excessiva para crianças,
principalmente em relação ao consumo do Metilfenidato. Em relação à
depressão, é raro o quadro depressivo ser notado, pois nem sempre os
sintomas são observados e podem passar desapercebidos por pais e
educadores sem que a criança receba a assistência necessária. Além disso,
outro quadro preocupante é o da automutilação, cada dia mais crescente
principalmente entre grupos de adolescentes, que lesionam o seu próprio corpo
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
em busca de um alívio para as dores emocionais que eles não conseguem
sanar. Diante disso, esse estudo objetiva relacionar os direitos elencados no
ECA à saúde e à educação e contrastá-los com estudos que versam sobre a
saúde mental infantil e as suas consequências no âmbito escolar, na tentativa
de propor possíveis ações que amenizem o quadro atual. Dessa maneira, esta
é uma pesquisa bibliográfica, baseada em documentos o mais recentes
possível, pois o recorte feito é dinâmico e ainda é pouco focalizado.
INTRODUÇÃO
Atualmente, com o desenvolvimento tecnológico e mudanças
socioculturais, o comportamento das crianças também sofreu alterações e isso
tem refletido em vários contextos, inclusive no escolar.
A conduta infantil tem despertado preocupação em educadores e pais,
pois, em vários casos, destoa da expectativa social e escolar, fazendo com que
não se saiba como agir. Cada vez mais há ocorrências de crianças com
dificuldade em seguir regras disciplinares e em acompanhar o processo de
ensino/aprendizagem.
Nesse contexto, muitos pais (na maioria das vezes orientados pelos
educadores) procuram ajuda com especialistas da saúde para verificar se há
alguma explicação patológica para as atitudes de seus filhos. Entre os
diagnósticos, um dos mais constantes é o TDAH (Transtorno de Déficit de
Atenção com Hiperatividade) normalmente já nos primeiros anos de
escolarização.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (2014) conceitua o TDAH como
um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta a parte de atenção,
desorganização e/ou hiperatividade-impulsividade. A criança apresenta
inquietação, impulsividade, intromissão em atividades alheias; atitudes essas
que são comuns às crianças, porém devem ser observadas com mais atenção
se forem excessivas para a idade.
!130
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Outro quadro preocupante nas escolas é a depressão. Doença que
atinge grande número de habitantes no mundo inteiro, passou a ser também
um problema apresentado por crianças. São vários os fatores que podem fazer
com que a criança apresente sintomas depressivos e é a combinação de vários
sintomas que definem qual o grau de depressão em que a pessoa se encontra
e qual é o tratamento indicado, ressaltando que a tristeza (um dos sintomas
depressivo) é natural do ser humano e deve ser respeitada, deve-se ficar alerta
somente quando acompanhada por outros distúrbios e por tempo prolongado.
Na criança, isso se agrava, pois muitas vezes os pais não notam a
mudança comportamental do filho ou não tratam a situação com a seriedade
que ela necessita. Além disso, há crianças que não demonstram os seus
problemas, mascarando a situação e impossibilitando que sejam ajudados.
Além das situações anteriores, há outro quadro infantil alarmante que é
a automutilação, que consiste em cortes feitos na pele, principalmente na fase
da adolescência, com diferentes objetos: lâmina de apontador ou estilete, caco
de vidro, compasso etc. Deve-se observar que os ferimentos não objetivam o
suicídio, é uma lesão cutânea que concretiza um sofrimento emocional, a não
aceitação ou a não compreensão de situações pelas quais a criança esteja
passando, muitas vezes consequência de quadro depressivo.
Le Breton (2010) afirma que os cortes podem variar de profundidade de
acordo com a intensidade do sofrimento e que pode ser apenas em uma parte
do corpo ou em várias dependendo da situação. Os ferimentos são uma
“cirurgia de significados”, permitindo que a dor sentida saia, é uma
transformação da dor emocional em física.
Com esse cenário inquietante, ao considerarmos o Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) sobre o direito à Saúde, muitos podem interpretar que
cumpri-lo seja apenas garantir que a criança tenha assistência médica e
medicamentação necessárias para que seu bem-estar esteja assegurado. É
importante que se faça uma leitura mais ampla e adequada à realidade atual
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
local para entender que o bem-estar infantil está relacionado a outras
garantias.
No entanto, o Brasil é um país grande que apresenta realidades muito
distintas. Há crianças que ainda não recebem assistência mínima devido ao
local em que moram e que, a elas ter um médico que as atenda, é um
privilégio. Além disso, pela situação de miséria em que vivem, não têm acesso
às tecnologias e as brincadeiras das quais participam, normalmente, são com
outras crianças.
Por isso, faz-se necessário constar que há outros contextos que
também precisam ser analisados e que devido à extensão do assunto, esta
pesquisa se deteve apenas na realidade das crianças que já recebem um
acompanhamento mínimo em regiões mais estruturadas, nas grandes
metrópoles, e que carecem de outras atenções especiais à sua saúde.
Portanto, é importante uma interpretação mais ampla e mais
contextualizada do ECA, pois as necessidades variam e as soluções para elas
também. Além disso, os direitos devem ser salvaguardados, sem que as
responsabilidades sejam ignoradas e que todas as personagens desse
processo tenham clara a sua participação: poder público, sociedade, família e a
criança.
Dessa maneira, este estudo focaliza três problemas graves recorrentes
em crianças e, consequentemente, presente nas escolas, tentando organizar
informações importantes para profissionais da Educação e da Saúde, além da
sociedade em geral, para que, assim, possam ajudar as crianças que estejam
em alguma das situações focalizadas.
Cabe ainda ressaltar que, para esse estudo, ao nos referirmos à
criança, teremos como conceito norteador presente na Convenção sobre os
Direitos da Criança (ONU, 1989) que define “criança” como menoridade ao
tratar do tema saúde mental, que no caso do Brasil é a pessoa menor de 18
anos de idade, inserindo, assim, também neste grupo os adolescentes
focalizados pelo ECA.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
TDAH
O TDAH é atualmente um dos diagnósticos mais comuns entre
crianças que apresentam dificuldade de aprendizagem nas escolas. Porém,
esse mal não está presente apenas entre as crianças, há vários adultos que
também são diagnosticados com a doença, apesar de que ainda não haja uma
unanimidade entre os pesquisadores sobre até qual idade a doença se faz
presente.
Segundo definição dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS)1, os sintomas geralmente são atenuados no fim da adolescência, embora uma minoria experimente o quadro completo até o meio da idade adulta. Já a Associação Brasileira de Déficit de Atenção assume que o TDAH é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. (BRATS, 2014, p. 2)
O que se observa é que a forma de diagnóstico é recente e mutável e
por mais que se tenham estudos sobre o assunto, é muito prematuro ainda
para se ter conceitos definitivos sobre a doença, o que dificulta o laudo e o
tratamento.
De acordo com Folquitto:
[...] o TDAH é um transtorno amplamente estudado, porém de diagnóstico difícil, e muitas vezes controverso. Tendo como referência a tríade de sintomas hiperatividade/desatenção/impulsividade, o diagnóstico deste transtorno geralmente é realizado a partir de manuais, que caracterizam o fenômeno exclusivamente por suas manifestações sintomáticas. (FOLQUITTO, 2013, p. 27)
Essa dificuldade de diagnóstico pode gerar pareceres incorretos e
tratamentos desnecessários, pois é importante lembrar que a curiosidade, a
agitação e dificuldade em se manter focado em apenas uma atividade são
!133
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
características normais na infância e nem sempre podem ser consideradas
como patologia.
Muitas vezes, a excessiva agitação e a desatenção podem ocasionar dificuldades no aprendizado, já que a criança dificilmente consegue focar sua atenção numa tarefa por um período longo de tempo. Por outro lado, dificuldades no aprendizado, em certo grau, são comuns ao desenvolvimento da maioria das crianças e não devem ser confundidas com sintomas de TDAH, como erroneamente tende a acontecer. Portanto, as dificuldades escolares não são critérios para o diagnóstico de TDAH, embora possam parecer como dificuldades secundárias, possivelmente decorrentes dos sintomas apresentados, ou de outras questões não relacionadas diretamente ao transtorno, como problemas de adaptação escolar ou à rotina de estudos, por exemplo. (FOLQUITTO, 2013, p. 31)
Sendo assim, o insucesso no processo de alfabetização é algo que
várias crianças podem apresentar e antes de encaminhá-las para um
especialista é importante pesquisar as causas da falta de atenção e das
dificuldades de aprendizado em casa e no ambiente escolar. Não se pode
resolver de maneira simplista e medicamentosa como alguns especialistas
tentam.
De acordo com a Associação Brasileira do Déficit de Atenção, os medicamentos recomendados em consensos de especialistas são os estimulantes (lis-dexanfetamina e metilfenidato), a atomoxetina, os antidepressivos (imipramina, nortriptilina, bupropiona), a clonidina e a modafinila. Os estimulantes são a primeira linha para o tratamento, englobando os grupos do metilfenidato e das anfetaminas, que possuem propriedades e efeitos adversos similares. Apesar de não serem indicados para o tratamento dessa condição, alguns clínicos prescrevem antidepressivos. (BRATS, 2014, p. 3)
A maioria das crianças são tratadas com o metilfenidato, que se
encontra no mercado brasileiro com os nomes comerciais de Ritalina e
Concerta. O número de consumidores é crescente e os medicamentos são
vistos como solução para vários problemas, desde comportamentais até de
aprendizagem. Alguns especialistas são defensores de que o enquadramento
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
da criança em um padrão social é um direito dela e que devemos garanti-lo de
qualquer maneira, mesmo que seja a medicando, sem considerar as
individualidades de cada um.
A criança com dificuldades em leitura e escrita é diagnosticada, procuram-se as causas, apresenta-se o diagnóstico e em seguida a medicação ou o acompanhamento terapêutico. E o que é mais perverso nesse processo, sob o nosso ponto de vista, é que os defensores das explicações organicistas defendem a patologização da criança que não aprende ou não se comporta na escola, como um direito. Utilizam a mesma lógica que se faz presente para as modalidades de doenças, para o processo de aprendizagem. Dizem aqueles que defendem a medicalização do aprender que é um direito da criança ser medicada, ser atendida e ser diagnosticada. Os defensores das explicações organicistas no campo da educação afirmam que é um direito da família saber o problema que esta criança tem e mais do que isso, que cabe ao Estado brasileiro arcar com as despesas do diagnóstico, do tratamento e da medicação. Esse argumento vem ganhando os espaços legislativos de grande parte de cidades e estados brasileiros por meio de inúmeros projetos de lei que visam criar serviços sejam nas Secretarias de Educação, seja na Secretaria de Saúde, para atender as crianças com problemas escolares. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013, p. 9)
Esse desvio de expectativa dos professores e das famílias tem gerado
vários encaminhamentos de crianças a neurologistas e o diagnóstico, em
muitos casos, é de TDAH, sem que, nem sempre, sejam consideradas as
consequências, a longo prazo, do tratamento medicamentoso.
Os dados sobre utilização de metilfenidato, droga controlada, tarja preta, e que pode provocar reações adversas, frequentes e graves, como consta em qualquer livro de farmacologia e na própria bula do produto, ministrada a crianças e adolescentes por médicos de várias especialidades com a finalidade de melhorar os sintomas de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH (distúrbio que não raramente está acoplado aos diagnósticos de dislexia), teve um aumento de venda de 71.000 caixas em 2000 para 2.000.000 de caixas em 2010 (dados do IDUM – Instituto de Defesa de Usuários de Medicamentos, 2010). Atualmente, o Brasil é o segundo maior consumidor mundial de metilfenidato situação que nos preocupa sobremaneira. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013, p. 9)
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Dessa forma, é importante não ser tão imediatista e resolver o
problema apenas momentaneamente, pois nessa ânsia de solução rápida
podem ser criados problemas maiores futuros. O alto consumo do metilfenidato
é um alerta para que outras medidas sejam tomadas em relação ao
comportamento das crianças, pois não se pode sanar essa questão apenas os
medicando.
DEPRESSÃO
A depressão é uma patologia que preocupa muito na atualidade. O
número de pessoas com quadro depressivo é cada vez maior, resultando em
problemas individuais e sociais.
De acordo com as estatísticas da Organização Mundial da Saúde
(apud MONTEIRO e LAGE, 2007), é estimado para as próximas décadas um
aumento significativo no número de deprimidos. Assim sendo, estima-se que
em 2020 a depressão representará a segunda enfermidade que mais constará
nos anos de vida útil da população mundial, podendo até mesmo ultrapassar o
número de afetados por doenças cardiovasculares. Atualmente, é tida como a
quarta causa mundial de deficiência e o segundo lugar na faixa etária
compreendida entre 15 a 44 anos, havendo a possibilidade de se tornar um
problema recorrente que incapacite o sujeito, ao ponto de não conseguir cuidar
de si mesmo e nem de suas atividades diárias.
Algumas pessoas confundem a depressão com um profundo
sentimento de tristeza, o que, muitas vezes, dificulta um diagnóstico. Ocorre
que o sentimento de tristeza faz parte da experiência normal de vida do
indivíduo. Entretanto, o conceito de depressão não é sinônimo de tristeza nem
de infelicidade, ainda que a infelicidade seja uma característica comum do
humor depressivo.
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A depressão pode se apresentar como um sintoma, uma síndrome ou
um transtorno, com a tristeza fazendo parte de um imenso elenco de
problemas, que pode incluir a perda de interesse nas atividades, baixa
autoestima, perturbações do sono, mudanças de apetite, entre outros.
Há vários níveis do quadro depressivo. Lima (2004) afirma que o afeto
depressivo e a cognição depressiva são sintomas experimentados por
inúmeras pessoas ao longo da vida, sem ter qualquer conotação patológica.
Em contrapartida, o termo síndrome é mais do que um mero sintoma isolado,
ele agrega uma combinação de vários sintomas constituintes de um complexo,
determinando a síndrome depressiva.
Ainda há o chamado transtorno depressivo maior, que é o sinônimo
para o que todos conhecem como depressão, sendo considerada uma doença
grave.
Insta mencionar o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-V) que define como depressão maior quando a
pessoa apresenta, concomitante, cinco dos sintomas a seguir,
independentemente da idade, por um período maior que duas semanas e que
esse quadro seja diferente ao que ela apresentava anteriormente, sendo que o
item 1 ou 2 devem estar presentes nos sintomas.
1. Humor deprimido na maioria dos dias, quase todos os dias (p. ex.: sente-se triste, vazio ou sem esperança) por observação subjetiva ou realizada por terceiros (Nota: em crianças e adolescentes pode ser humor irritável);
2. Acentuada diminuição do prazer ou interesse em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia, quase todos os dias (indicado por relato subjetivo ou observação feita por terceiros);
3. Perda ou ganho de peso acentuado sem estar em dieta (p.ex. alteração de mais de 5% do peso corporal em um mês) ou aumento ou diminuição de apetite quase todos os dias (Nota: em crianças, considerar incapacidade de apresentar os ganhos de peso esperado);
4. Insônia ou hipersônia quase todos os dias;
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5. Agitação ou retardo psicomotor quase todos os dias (observável por outros, não apenas sensações subjetivas de inquietação ou de estar mais lento);
6. Fadiga e perda de energia quase todos os dias;
7. Sentimento de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada (que pode ser delirante), quase todos os dias (não meramente autorrecriminação ou culpa por estar doente);
8. Capacidade diminuída de pensar ou concentrar-se ou indecisão, quase todos os dias (por relato subjetivo ou observação feita por outros);
9. Pensamentos de morte recorrentes (não apenas medo de morrer), ideação suicida recorrente sem um plano específico, ou tentativa de suicídio ou plano específico de cometer suicídio. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 201-202)
Infelizmente, esses distúrbios não afetam apenas adultos, as crianças
também apresentam diagnóstico de transtorno depressivo. No entanto, neles
os sintomas depressivos podem ter formas de apresentação distintas das
ocorridas em adultos.
Segundo Lima (2004), quando as crianças são muito pequenas, não
têm capacidade de se expressar. Podem apresentar muito choro ou
irritabilidades e queixas somáticas. Já quando as crianças são maiores, ou na
adolescência, os sintomas são mais parecidos com os dos adultos.
De acordo com Abramovitch e Aragão (2011), em crianças menores,
observam-se várias dificuldades emocionais, com sintomas depressivos,
podendo haver hiperatividade e ansiedade. Igualmente comum é o fato das
crianças exibirem posturas de oposição e desafio, de hostilidade, instabilidade
de humor e crises de raiva. Segundo as autoras, esses sintomas causam
prejuízos psicossociais e acadêmicos e, após a recuperação do episódio
depressivo, o desenvolvimento normal da criança não será mais atingido ou
ficará incompleto.
Além disso, as crianças também apresentam sintomas físicos como dificuldades em ganhar peso ou perda inadequada para a idade. Podem ter insônia ou hipersônia diurna, agitação ou lentificação psicomotora, fadiga ou perda de energia –
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expressas no correr e brincar –, sentimentos de desvalia ou culpas, dificuldade de pensar ou de se concentrar – presentes na queda do rendimento escolar – e podem, também, ter pensamentos de morte. (ABRAMOVITCH e ARAGÃO, 2011, p. s/n)
Ainda, faz-se necessário salientar que a depressão maior só pode ser
considerada na adolescência caso se apresentar de forma duradoura e
frequente, afetando as mais variadas funções e causando danos psicossociais
significativos.
São inúmeros fatores possíveis de causar a depressão em crianças e
adolescentes, tais como o papel desempenhado pela família. Abuso emocional,
físico e/ou sexual, problemas acadêmicos e divórcio dos pais são alguns
relevantes fatores de risco. A expressão da depressão maior no indivíduo varia
conforme a sua idade e a etapa do desenvolvimento em que esse se encontra
quando adoece.
É importante observar que momentos depressivos, às vezes, são
necessários para a compreensão das perdas que ocorrem durante a vida,
fazendo parte do desenvolvimento e crescimento de um indivíduo. Igualmente,
existem momentos em que é normal estar depressivo ou apresentar
personalidade triste, além de reações essencialmente depressivas, como a do
luto. Por isso a importância de se distinguir sintomas depressivos de transtorno
depressivo maior, aceitando que essa enfermidade possa acometer o indivíduo
em tenra idade, procurando lhe dar o encaminhamento necessário com a maior
rapidez possível, garantindo a eficácia da recuperação da criança sem
comprometer o seu desenvolvimento biopsicológico.
AUTOMUTILAÇÃO
Na atualidade, observa-se constantemente um culto ao corpo, à
estética, à boa forma física. São produtos de beleza, alimentação, esporte,
imagens que propagam o belo, o corpo como uma forma de ser aceito em uma
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
sociedade. Porém, esse corpo também é guardião de muitos sentimentos e
desejos não tão belos ou compreendidos pela sociedade. Alguns sentimentos
como ansiedade, angústia, desespero, desânimo podem levar a ações que
marcam o corpo de uma forma não tão bela e feliz: a automutilação.
A automutilação traduz-se em um ato de agressão ao próprio corpo,
sendo uma verdadeira autolesão, efetuada de forma superficial, moderada ou
profunda, sem intenção suicida. Há um tipo específico de automutilação que é
a escarificação, também chamada de cutting, que é o ato de provocar um
ferimento em si mesmo com o uso de instrumentos cortantes, tais como faca,
estilete, lâmina, caco de vidro etc. Essa agressão em seu próprio corpo é cada
vez mais comum na adolescência e representa “uma verdadeira técnica de
sobrevivência para os jovens em sofrimento” (LE BRETON, 2010, p. 25).
Todavia, Arcoverde e Soares (2012, apud KOVÁCS, 2008) defendem
que apesar de a autolesão em si não ter manifestadamente motivação suicida,
esse modo de comportamento autodestrutivo também significa uma afronta,
ainda que feita de forma inconsciente, à própria vida, tal como o abuso de
drogas e o envolvimento em situações arriscadas.
Além disso, é importante ressaltar que a automutilação é uma forma
primitiva de comunicação em que o indivíduo marca em seu próprio corpo,
através de sangue, cicatrizes e dor, a sua incapacidade para verbalizar a
angústia que sente. Assim sendo, faz-se necessário investigar quais motivos
realmente levam o indivíduo a cometer um ato de agressão contra si, tendo em
vista que isso contraria o instinto de sobrevivência que é natural a todos os
seres humanos, o de proteger-se.
Pode-se considerar a conduta autolesiva como uma alternativa de ação utilizada como estratégia de escapismo ou de enfrentamento do estresse: ao se encontrar numa situação de sofrimento psíquico, o indivíduo se fere propositalmente, pois a dor física desvia o foco desse sofrimento, resolvendo o problema, ainda que temporariamente. (ARCOVERDE e SOARES, 2012, p. 295)
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Nesse contexto, a autolesão significa provocar a dor física para aliviar a
dor emocional, em uma tentativa verdadeira, ainda que aparentemente
contraditória, de sobreviver em meio a experiências imbuídas de sofrimento
psíquico. Há estudos que mostram que o alívio da dor emocional parece se
sobrepor à dor física.
De fato, vários autores afirmam que o comportamento autolesivo pode ser
praticado como forma de aliviar temporariamente emoções negativas, pois
diante do flagelo, o cérebro produz endorfina para aliviar a dor do corpo e esse
alívio é sentido pelo indivíduo como um alívio da ansiedade, ou até uma
sensação de bem-estar, mesmo que temporária.
De acordo com Richardson e Zaleski (1986 apud ARCOVERDE e
SOARES, 2012), a repetição da autolesão é como um sistema que envolve um
círculo vicioso, isto é, a agressão corporal causa a liberação de β-endorfina,
que provoca a sensação de bem-estar; porém, uma vez repetida, a conduta
autolesiva causa o fenômeno da tolerância e é necessária uma quantidade
cada vez maior de β-endorfina para que o mesmo efeito ocorra. Isso gera uma
dependência dessa substância, o que pode ser notado com a repetição da
automutilação.
Quando o indivíduo se torna dependente dessa conduta, pode acabar se
ferindo mais gravemente do que o desejado, perdendo totalmente o controle
perante seus impulsos, podendo, em casos mais graves, ser levado até a
morte, ainda que esse não seja o seu objetivo.
Há ainda as atitudes motivadas pela necessidade que o adolescente tem
de correr riscos. Como o ato de escarificação vem sendo cada vez mais
divulgado na internet, os adolescentes veem, ouvem falar e querem
experimentar, assim como gostam de testar vários comportamentos arriscados,
desafiando seus próprios limites. Alguns adolescentes o praticam mesmo como
forma de imitação ou para inserir-se em um grupo de já praticantes.
De qualquer forma, trata-se de um ato lesivo e merece a devida atenção.
Até mesmo porque, ainda que tal ato seja desencadeado por aparentes
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
modismos, representa igualmente um ato de desrespeito ao corpo, um
comportamento que fere a própria dignidade da pessoa que o pratica. E, ainda
que o indivíduo experimente a automutilação por mera curiosidade, ele só irá
tornar essa prática autolesiva em um hábito se realmente pretender a
regulação emocional, assim como todos os demais.
Le Breton (2010, p. 40) conceitua que “as escarificações são o preço a
pagar para não se perder, a parte a ser sacrificada para salvar o todo da
existência. Elas são um recurso antropológico para opor-se a esse sofrimento e
preservar-se”.
Dessa forma, os cortes são feitos como uma forma silenciosa de pedir
ajuda, não se sabe ao certo o que angustia a pessoa e nem como organizar os
diferentes sentimentos que a atormentam nem como lidar com os temores sem
explicação. Nesse caos emocional, a única forma, às vezes, de externar todo
conflito é mutilando o próprio corpo.
Por isso, uma vez constatada a automutilação, esta não deve, em
hipótese alguma, ser negligenciada pela família. Deve ser encarada como um
pedido de socorro feito por determinada pessoa que luta para se manter viva
em meio a adversidades emocionais e, a partir dessa compreensão, haver o
devido encaminhamento para se tratar esse transtorno e combater as suas
causas, devolvendo ao indivíduo que se automutila o amor próprio e o prazer
de viver.
ECA: SOLUÇÕES E TRANSTORNOS
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em vigor desde 1990, é
uma lei federal que tem como objetivo garantir direitos das crianças e
adolescentes no Brasil.
Apesar da Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, definir
criança como toda pessoa menor de dezoito anos (e não prever a figura do
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adolescente), pela definição do ECA, criança é a pessoa com até doze anos
incompletos e adolescente é a pessoa entre doze e dezoito anos.
Anteriormente ao ECA, havia no Brasil o Código de Menores, de 1927,
que adotava a doutrina da situação irregular. Ou seja, somente quando as
crianças e adolescentes estivessem em alguma situação irregular
(abandonados, em situação de risco, praticando ato infracional etc.) é que
faziam jus a uma proteção especial. Fora disso, aplicava-se o Código Civil e os
conflitos judiciais eram direcionados às Varas da Família, Varas Cíveis etc.
O ECA modificou isso, adotando a doutrina da proteção integral, que
significa que em qualquer caso que as crianças e adolescentes se encontrem
ele deverá ser aplicado. Além disso, a decisão do juiz da Vara da Infância e da
Juventude é a que prevalece em casos de conflito, inclusive sobre a decisão
dos pais.
Assim, a partir do ECA, crianças e adolescentes brasileiros, sem
distinção de raça, cor ou classe social, passaram a ser reconhecidos como
sujeitos de direitos e deveres, considerados como pessoas em
desenvolvimento a quem se deve prioridade absoluta do Estado. O objetivo
estatutário é a proteção dos menores de 18 anos, proporcionando a eles um
desenvolvimento físico, mental, moral e social condizente com os princípios
constitucionais da liberdade e da dignidade, preparando para a vida adulta em
sociedade.
De acordo com o Estatuto, cabe ao Estado, à família e à sociedade
zelar para que as crianças e adolescentes se desenvolvam em condições
sociais que favoreçam a integridade física, liberdade e dignidade.
Assim, conforme o artigo 7º do ECA (BRASIL, 2016): “A criança e o
adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de
políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento
sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Contudo, não se pode atribuir tal responsabilidade apenas a uma
suposta inaplicabilidade da lei, uma vez que tais indivíduos nada mais são do
que o produto da entidade familiar e da sociedade, as quais têm importância
fundamental no comportamento dos mesmos.
Portanto, mesmo depois de tantos anos, o ECA ainda é um documento
que destoa imensamente da realidade da sociedade brasileira. São vários os
fatores que geram a discrepância entre a lei e o que se depara no cotidiano;
entre eles estão as diferenças cronológicas e regionais. O documento,
elaborado há mais de 25 anos, visava garantir direitos essenciais às crianças e
aos adolescentes de um contexto social da década de 1980, dessa maneira,
não era possível prever como seriam os seus futuros beneficiários e quais as
consequências de sua aplicabilidade no porvir.
As crianças e adolescentes naquela época tinham mais contatos umas
com as outras, brincavam juntas na rua, conversavam mais. Atualmente, até
mesmo por causa do excesso de violência nas ruas, as pessoas passam a
maior parte do tempo livre lidando com algum tipo de tecnologia (celular,
computador, videogame), o que faz com que se desliguem do mundo e de si
mesmas para viverem em um ambiente virtual, o que pode ser extremamente
prejudicial, notadamente na fase de desenvolvimento, em que o ser humano
necessita extravasar as energias e explorar o mundo ao seu redor afim de
realizar novas descobertas.
Outro ponto que sofreu mudanças, nas últimas décadas, foi a estrutura
familiar. Até os anos de 1990, era comum ter mães que se dedicavam
exclusivamente aos filhos e à casa, porém isso é cada vez mais raro de se
encontrar na atualidade, ou porque a mulher deseja trabalhar e conquistar o
seu espaço profissional ou porque ela necessita da contraprestação gerada
pelo trabalho, seja pelo fato de ser mãe solteira, seja pelo fato do salário do
marido não ser suficiente para sustentar a família. E, desse modo, os pais
passam mais tempo longe dos seus filhos, deixando de acompanhar de perto o
seu desenvolvimento.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Essas mudanças do contexto de criação e formação da criança
geraram problemas para esse grupo; entre os muitos, destacamos apenas
alguns relacionados à Saúde que se refletem na Educação; pois, na atualidade,
não basta assegurar a frequência escolar, material didático e alimentação
adequada. A maioria dos problemas infantis atuais que afetam o desempenho
escolar estão fora dos muros da escola e, na maioria das vezes, não podem
ser resolvidos dentro deles.
Por mais que se mantenham camuflados entre desvios de
comportamento que poderiam ser considerados comuns para a faixa etária, há
uma súplica silenciosa das crianças que são cobradas por desempenho e
atitudes das quais elas não têm conhecimento e não sabem como atingir.
Possível consequência disso é o aumento do consumo de
metilfenidato, que em 2013 foi de 71,8 toneladas, sendo os Estados Unidos o
maior consumidor (OICS, 2014). Esse cenário precisa ser considerado um
alarme para que haja uma conscientização de que a forma como as crianças
estão sendo cuidadas não é o mais indicado.
Pode-se observar que muitos pais não conseguem colocar limites,
dizer “não”, orientar seus filhos sobre como se comportar em sociedade. O
papel que cabe à família está sendo, cada vez mais, transferido para
instituições de ensino desde muito cedo.
Devido à necessidade dos pais de trabalharem, as crianças são
normalmente encaminhadas para berçários, creches etc. Essa única mudança
por si só não seria prejudicial se a criança tivesse convivência e orientação
efetivas nos outros momentos em que a família estivesse reunida. No entanto,
o mais comum é que os responsáveis se tornem permissivos por se sentirem
culpados pela sua ausência ou por estarem muito cansados de suas atividades
profissionais ou por estarem muito atarefados com as atividades domésticas.
Além disso, outra postura observada é de excesso de proteção às
crianças. Muitas não são orientadas a cuidar de seus objetos pessoais,
material escolar, a ajudar em pequenas atividades domésticas e essa aparente
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
preservação pode gerar duas situações preocupantes: a formação de um ser
que não se sente responsável pela manutenção da sociedade em que vive,
portador apenas de direitos que devem ser mantidos pela família e pelo Estado
sem que a ele caiba alguma responsabilidade ou regras que devem ser
respeitadas; e o fato de não se ver como pertencente a uma sociedade com a
qual precisa contribuir para a sua manutenção, respeitando-a e preservando-a.
Por isso muitas vezes acredita-se dispensável a ela.
Esses sentimentos, juntamente com a falta de orientação e limite,
podem ser fatores que estão afetando a saúde mental infantil. Pois, em muitos
casos, a criança diagnosticada com TDAH, por exemplo, apenas precisava que
seus responsáveis tivessem atitudes diferentes com ela. Não afirmamos que a
medicação é desnecessária em todos os casos, mas que seja oportuna uma
revisão nos casos em que as crianças precisam de tratamento medicamentoso.
Sobre a depressão infantil, Avanci, Assis e Pesce (2008) afirmam que a
depressão, em crianças, ainda é pouco diagnosticada e que, muitas vezes,
passa desapercebida pela família e pela escola.
Isso pode ocorrer devido às várias atividades pelas quais os pais são
responsáveis, e, às vezes, a mudança de humor ou comportamento pode ser
justificada apenas por algum acontecimento esporádico ou em decorrência da
fase de desenvolvimento infantil em que se encontra. Isso procede, porém, se
forem sintomas constantes e por tempo prolongado, deverá despertar
preocupação nas pessoas que convivem com a criança para analisar se ela
necessita de algum atendimento especializado antes que o quadro se agrave.
Em alguns cenários depressivos graves, a criança pode tentar tirar a
própria vida, pois acredita que dessa forma deixará de sofrer; em outras
situações, pode iniciar um processo de automutilação, lutando, à sua maneira,
contra as dores e as angústias que a cercam. Esse comportamento é mais
observado na fase que o ECA designa como adolescência.
Segundo Le Breton (2010), a agressão contra o seu próprio corpo é
uma forma de se manter vivo, sacrificando uma parte de seu corpo para
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continuar existindo, é uma forma de exteriorizar o seu caos interior, pois o seu
corpo seria, ao mesmo tempo, o mundo externo e interno.
O agravante é que, diante das várias transformações físicas que
ocorrem nessa fase, a criança não consegue compreender o seu mundo
interior e nem os fatos do exterior, sente-se perdida e sem respostas para
diversos questionamentos. Além disso, por não se ver como integrante de uma
sociedade, ela não assume a responsabilidade que tem sobre o seu próprio
bem-estar, muito menos pondera sobre as consequências de seus atos não
apenas para o seu corpo, como para as demais pessoas com quem convive.
Como agravante, ainda há a visão de muitos profissionais, alguns
inclusive das áreas da Saúde e da Educação, que, ao se depararem com uma
pessoa que pratica a automutilação, considera que seja apenas um “modismo”
juvenil e não tratam o caso com a seriedade que merece.
Esse é o cenário inquietante que algumas crianças vivem, por isso,
mais que garantir direitos a elas por leis, urge que vejamos com seriedade os
sentimentos que as afligem e que as orientemos para que a sua saúde mental
seja preservada e que cresçam, reconhecendo-se como integrantes da
sociedade que as cerca, respeitando as normas do grupo em que estão
inseridas. E essa responsabilidade de formação é da família, inicialmente,
expandindo para a escola, Estado e comunidade como um todo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mudanças nos contextos sociais, apontadas anteriormente, muito
contribuem para uma inadequação na criação e formação das crianças. Os
principais atores responsáveis pela proteção dos direitos infantis (família,
sociedade e escola) tentaram se adequar ao contexto social atual, porém, sob
alguns aspectos, essa adequação não foi suficiente para dar suporte às
crianças que também apresentam outros comportamentos e dificuldades.
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Houve uma grande e rápida evolução tecnológica que não cessa e
evidencia o quanto objetos desejados hoje podem se tornarem obsoletos em
anos, gerando uma saciedade quase inatingível.
Além disso, mudaram-se as formas de se relacionar socialmente, o
que, cada vez mais rompe a barreira entre o real e virtual, mundos que se
dialogam; todavia calam comunicações de outrora e se distanciam pessoas
que estão presentes em um mesmo ambiente. Outra transformação ocorrida é
na forma de aprender e de ter acesso ao conhecimento. Com os avanços
tecnológicos, a informação está disponível em diferente equipamentos, em
qualquer lugar e de fácil busca.
Tudo isso gerou muito estímulo e pouca orientação de como agir nessa
sociedade mutante. Porém, as condutas exigidas das crianças no meio em que
vivem, principalmente no escolar, são as determinadas por um padrão anterior
em que não havia as variantes atuais. Há uma anacronia entre o paradigma e
as crianças atuais.
Assim, há uma quebra de expectativa e é necessário que se direcione
e se explique à criança claramente as regras dos comportamentos adequados
para cada contexto e qual o papel dela, com suas responsabilidades e deveres,
e evidenciar quais são as sanções caso isso não seja respeitado.
Muitos casos diagnosticados como TDAH talvez sejam falta de regras e
limites em casa, além de um ambiente saudável e que haja uma rotina
organizada de atividades. É importante salientar que a criança aprende mais
facilmente quando há, além da orientação, o exemplo. Se ela vive em um
contexto familiar tumultuado no qual não lhe são atribuídas responsabilidades e
normas, será muito difícil para ela se adequar ao universo escolar.
Em relação à depressão, ela reflete esse desajuste entre a sociedade
vivida e o questionamento existencial tão inerente ao homem e mais latente na
adolescência. No entanto, enquanto há respostas para quase tudo na internet,
não há como responder às angústias e as inseguranças pessoais em uma
busca sem que ela seja dentro de si e esse pode ser um processo doloroso. A
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criança que cresce sem norte, terá dificuldade em se ver como integrante da
sociedade em que vive, pode se sentir uma intrusa incompreendida e que
apenas gera problemas. Esses sentimentos podem acarretar em quadro
depressivo.
Outra provável consequência dessa desarmonia entre as inquietudes
pessoais e a compreensão do mundo que cerca a criança é a automutilação.
Nesse contexto, as mudanças acontecem no mundo particular, em seu corpo,
em seus sentimentos e, muitas vezes, não há com quem conversar e nem bem
como organizar o discurso para pedir ajuda, pois não se consegue interpretar
todas as atribulações que lhe afligem.
Um agravante para essa situação é que a saúde mental ainda não é
um assunto ao qual a sociedade em geral dá a devida importância, até mesmo
quando se tratam de adultos cometidos por tais enfermidades. Ocorre que,
ainda mais do que os adultos, as crianças e os adolescentes necessitam de
zelo, prioritariamente, por serem considerados pessoas em desenvolvimento.
Nesses cenários, infelizmente, a solução mais comum é a
medicamentosa, pois é mais fácil medicar do que mudar o contexto e o
comportamento dos responsáveis envolvidos na educação da criança.
Entretanto, não é esse o caminho adequado, já que os problemas não se
resolvem, somente se agravam, podendo até causar consequências
demasiadamente gravosas para a sociedade.
Como suporte para a medicalização infantil, recorre-se ao ECA, em um
conceito em que a saúde é garantida pelo atendimento médico, sem considerar
os fatores que a fizeram adoecer. É uma leitura rasa do artigo 7° do ECA, pois
assegurar a saúde infantil inicia no seu bem-estar em ambiente familiar
harmonioso para que a sua saúde mental seja mantida. E esse é um papel que
cabe a todos os membros da sociedade: Estado, família, escola e toda
sociedade.
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Portanto, acima de tudo, faz-se necessário que todos se conscientizem
que as crianças precisam muito mais do que atendimento médico,
medicamentos, escola, material escolar e alimentação para se desenvolverem
plenamente e saudáveis. Para tanto é importante que haja uma mudança de
comportamento de todos envolvidos para que as crianças sejam melhor
amparadas e orientadas e não se sintam tão estrangeiras na sociedade em que
vivem.
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Políticas públicas em saneamento básico: o controle social como
subsídio à concretização
Ricardo Gonçalves Vaz de Oliveira
Thiago Luiz da Silva
RESUMO
Nas últimas décadas houve significativa implementação de normas jurídicas
buscando criar um cenário de governança voltado melhoria do saneamento
básico. Contudo, o que verifica-se, é que muitas das vezes a mera edição de
leis pelo Congresso Nacional não tem o condão de vincular a implantação de
políticas públicas de qualidade. Partindo dessa premissa, o presente texto
busca discutir os reflexos e consequências da ausência da criação dos Planos
Municipais de Saneamento Básico (PMSB), previsto na Lei Federal
11.445/2007, principal norma jurídica que trata do saneamento básico no país.
Em decorrência da falta de ação do Poder Público, sugere-se que deva ser
criados mecanismos que permitam que os cidadãos acompanhem as decisões
Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
das autoridades, iniciando canais de diálogos, seja por meio do instituto da
participação popular previsto na legislação de saneamento ou por meio de
cobrança dos gestores e agentes públicos visando a prestação de serviços de
qualidade de forma a atender as demandas de saneamento básico.
INTRODUÇÃO
Saneamento básico é considerado o conjunto de serviços de
infraestrutura prestado pelo Estado, incluindo-se o abastecimento de água
potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos,
além de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas. A prestação de
serviços adequados de saneamento básico, ainda não é privilégio de todos,
uma vez que não alcança todas as populações urbanas ou rurais. Conforme
destaca Lobo (2003, p. 28), “[...] no imaginário dos moradores, a manilha, a
vala, o córrego e a fossa que transborda constituem o único sistema de esgoto
conhecido”.
Passando-se uma década de publicação da Lei de Saneamento
Básico, a Lei Federal 11.445 de 05 de janeiro de 2007, verifica-se que ainda há
muitas coisas por se fazer, como é possível verificar, por exemplo, no último
Diagnósticos dos Serviços de Água e Esgoto, realizado em 2014 pela
Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA) que revela que, apenas
72,4% dos municípios do país possuem esgotamento sanitário instalado e que
destes, somente 63% do esgoto é tratado, significando que boa parte desses
resíduos é lançada diretamente em rios e córregos. (BRASIL, 2015).
Um detalhado estudo realizado pela Confederação Nacional das
Indústrias (2015) revelou que o problema no desenvolvimento de infraestrutura
com a finalidade de universalização dos serviços de saneamento básico é
atribuído a pouca eficiência na aplicação dos recursos públicos, excesso de
burocracia, morosidade dos processos e problemas de gestão.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Um dos grandes problemas de saneamento básico é o fornecimento de
água potável para as populações urbanas, especialmente se considerarmos a
forma desorganizada de execução da infraestrutura por parte do Estado, ou
seja, quanto maior a infraestrutura, mais água potável é fornecida para a
população, maior será o consumo e, consequentemente, o volume de esgoto.
O setor somente começou a ter atenção do Estado a partir da década
de 60, ocasião em que houve a criação do Banco Nacional de Habitação
(BNH), oportunidade que promoveu um esforço com a finalidade de enfrentar o
problema existente de abastecimento de água. Mesmo com este esforço
nacional, vinte anos depois, durante a década de 80, a Organização das
Nações Unidas (ONU) se posicionou em parecer dizendo que o serviço de
abastecimento prestado pelo Estado brasileiro estava muito abaixo do que era
necessário (LOBO, 2003).
Tão importante quanto o abastecimento de água, é o tratamento
adequado ao esgotamento sanitário, sendo necessário que todas as
residências possuam vasos sanitários com veiculação hídrica ligada à um
sistema público de coleta de esgoto, possibilitando o devido tratamento dos
resíduos sanitários urbanos.
Tais cuidados são de extrema necessidade, uma vez que, em muitas
comunidades urbanas e rurais, a população, devido à falta de infraestrutura e
de educação sanitária, tende a jogar dejetos no solo ou em rios e córregos
abertos, criando cenários favoráveis à transmissão de doenças (BRASIL,
2006).
Fato que torna mais grave tal situação, é que a Lei Federal 12.305 de 2
de agosto de 2013, a qual instituía a Política Nacional de Resíduos Sólidos,
PNRS, tem entre seus objetivos a não geração, redução, reutilização,
reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos, bem como disposição final
ambientalmente adequada dos rejeitos” (BRASIL, 2013, art.7ª, II). Para esta
Lei, qualquer material resultado de atividade humana descartado em rede
pública de esgoto é considerado como resíduo sólido (art. 3º, XVI).
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
A natureza, por si só, não é uma fonte inesgotável de recursos capaz de atender as necessidades consumeristas da sociedade moderna. É preciso investimento do setor público para reversão da situação existente, já que se estima, que cada 1 real (hum real) gasto no setor de saneamento básico, deixa-se de gastar 4 reais (quatro reais) com serviços médicos curativos (BRASIL, 2006).
A busca pelo devido investimento e prestação de serviços públicos
adequados de saneamento básicos é de todos, Estados, Municípios e a União,
inclusive dos próprios usuários, os quais, através de meios adequados,
poderão cobrar e participar das políticas públicas dessa área.
Pretende-se com o presente trabalho analisar as responsabilidades da
Administração Pública na execução de planejamentos adequados de serviços
de saneamento básico, especialmente em âmbito municipal, por meio do Plano
Municipal de Saneamento Básico, dialogando com os mecanismos e formas de
participação do cidadão junto às políticas públicas desenvolvidas para o setor.
PLANEJAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE SANEAMENTO BÁSICO
A previsão constitucional do art. 225 da Constituição Federal (CF),
coloca como dever do poder público a defesa do meio ambiente
ecologicamente equilibrado e a tomada de medidas para preservá-lo; mas,
concentrou na União a competência para legislar sobre a maioria das normas
gerais de temas relacionados a políticas de recursos hídricos e águas (art. 21,
XIX; art. 22, IV) e a instituição de legislação geral sobre saneamento básico:
art. 21, “XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive
habitação, saneamento básico e transportes urbanos;” (BRASIL, 1988).
Apesar da competência para legislar sobre normas gerais ser da União
(competência legislativa), a própria Constituição Federal colocou como
responsabilidade de todos os entes federativos, ou seja, União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, a execução de obras e programas relacionados
ao saneamento básico (competência político administrativa): art. 23. É
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios: IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria
das condições habitacionais e de saneamento básico (BRASIL, 1988).
Dessa forma, conforme explicado por Barroso (2007), a competência
para atuar na área de saneamento básico deverá ser distribuída de acordo com
o interesse, assim, à União, caberia a realização de políticas públicas em
âmbito nacional e a execução de obras que atendam o interesse de toda
nação, seja por questões econômicas, financeiras ou até mesmo de saúde
pública. Aos Estados, caberia a responsabilidade de execução de serviços
regionais, que atendam os interesses estaduais, que vão além do âmbito
municipal, como no caso de regiões metropolitanas.
Não muito diferente, no tocante ao uso de águas, a Lei Federal nº
9.433, de 8 de janeiro de 1997, a qual institui a Política Nacional de Recursos
Hídricos, atribuiu aos Municípios, por meio do artigo 31, o papel de promover
as políticas locais de saneamento básico:
Na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, os Poderes Executivos do Distrito Federal e dos municípios promoverão a integração das políticas locais de saneamento básico, de uso, ocupação e conservação do solo e de meio ambiente com as políticas federal e estadual de recursos hídricos (BRASIL, 1997).
A Lei Federal 11.445 de 05 de janeiro de 2007 é a principal legislação
que trata sobre saneamento básico, sendo que no momento de sua publicação,
acabou por revogar expressamente a Lei Federal 6.528 de 11 de maio de 1978,
a qual tratava do mesmo assunto. Entre os princípios estabelecidos pela nova
Lei estão a universalização do acesso e o fornecimento e abastecimento de
água e esgotamento sanitário de forma adequada à saúde pública e à proteção
do meio ambiente.
O ambiente institucional criado pela lei no 11.445/2007 aponta para a necessidade de estudos e pesquisas que estabeleçam diretrizes para a elaboração de políticas públicas setoriais e regulatórias, identifiquem formas de arranjos federativos de regulação, discutam desenhos de entes reguladores adaptados
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
às realidades regionais e, em especial, indiquem caminhos para a universalização dos serviços (JUNIOR; PAGANINI, 2009).
Conforme destacado por Madeira (2010, p. 143), a tarefa de
regulamentar o setor de saneamento básico não é fácil, exige-se empenho do
gestor e a existência de uma equipe técnica qualificada, para manter o
interesse das empresas terceirizadas, quando houver, para realização de
investimentos privados, a definição de uma tarifa pública justa a ser cobrada
dos usuários e o monitoramento dos custos sociais das atividades a serem
desenvolvidos, bem como eventuais prejuízos relacionados ao meio ambiente
e saúde pública. Como bem lembrado pelo autor, a existência desse marco
regulatório consistente “é fundamental a fim de definir diretrizes para alcançar
os objetivos econômicos e sociais do setor”.
Entre as novidades trazidas pela nova norma, estão a criação de
planos de saneamento básico, nos níveis nacional e regional, com a finalidade
de regulamentar a execução da melhoria do serviço de saneamento básico. Tal
plano, segundo o §1º do artigo 19 da Lei 11.445, “serão editados pelos titulares,
podendo ser elaborados com base em estudos fornecidos pelos prestadores de
cada serviço e, segundo o §2º do mesmo artigo, “a consolidação e
compatibilização dos planos específicos de cada serviço serão efetuadas pelos
respectivos titulares e serão revistos periodicamente, em prazo não superior a
4 (quatro) anos.”
O planejamento do saneamento básico decorre da elaboração de
políticas públicas também previstas no artigo 9º da Lei Federal 11.445: “O
titular dos serviços formulará a respectiva política pública de saneamento
básico, devendo, para tanto: I - elaborar os planos de saneamento básico, nos
termos desta Lei. ”
Assim, o planejamento de ações a serem desenvolvidas, passou a ser
algo essencial e indispensável na elaboração de políticas públicas de
saneamento, estipulando-se que cada ente federativo, deverá planejar, de
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
acordo com sua área de atuação, local, regional ou nacional, as estratégias
envolvendo abastecimento de água, esgotamento sanitário, gerenciamento de
resíduos sólidos e limpeza urbana.
O planejamento em saneamento básico é regulamentado pelo Decreto
Federal 7.217, de 21 de junho de 2010, o qual, em seu artigo 2º, define
planejamento como sendo atividades visando “à identificação, qualificação,
quantificação, organização e orientação de todas as ações, públicas e
privadas, por meio das quais o serviço público deve ser prestado ou colocado à
disposição de forma adequada”. (BRASIL, 2010).
Em âmbito nacional, houve a previsão de criação do Plano Nacional de
Saneamento Básico (PNSB), para que incorporasse as políticas públicas de
saneamento básico a serem desenvolvidas em um horizonte de 20 anos e
revistas a cada 4 anos, sendo, ainda, necessária a realização de avaliações
anuais.
A referida lei estabeleceu que o PNSB, a ser elaborado, deverá adotar
diretrizes a serem cumpridas pelos diversos agentes públicos, em nível local,
regional e nacional, que deverão agir de forma articulada, sob a coordenação
do Ministério das Cidades do Governo Federal, permitindo, ainda, a criação de
planos regionais para atendimento de demandas específicas, sendo que
somente em 2014, após estudos envolvendo diversos órgãos públicos, ocorreu
a publicação do PNSB.
PLANO MUNICIPAL DE SANEAMENTO BÁSICO
Considerando a lógica anteriormente apresentada, os Municípios
também deverão apresentar planejamentos para a área de saneamento básico,
por meio da elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB).
É por meio do PMSB que os municípios têm a capacidade de
demonstrar que conhecem os problemas locais, através de estudos técnicos
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
para apresentar soluções mais adequadas para resolvê-los, do ponto de vista
técnico, financeiro e social (BRASIL, 2014).
Apesar de sua importância, segundo levantamento realizado pela
OSCIP Instituto Trata Brasil (2016), dos 100 maiores municípios brasileiros
apenas 34 apresentaram planos municipais de saneamento básico na sua
abrangência completa, ou seja, abastecimento de água, esgotamento sanitário,
limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas
pluviais urbanas, sendo que a mesma pesquisa identificou a existência de
diversos municípios que não apresentaram ou criaram planos relacionados a
nenhum tipo de serviço público, ou seja, em plena afronta a Lei Federal 11.445,
bem como ao Decreto Federal 7.217.
A mesma entidade constatou que dos municípios analisados, todos os
planos continham os requisitos mínimos exigidos pela lei 11.445, ou seja:
Constar todos os componentes do saneamento básico (abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de formas adequadas à saúde pública e à proteção do meio ambiente) – III, art. 2º; Possuir como conteúdo mínimo o diagnóstico, objetivos e metas, ações de emergência e contingência – I a V, art. 19; Conter viabilidade econômico-financeira do Plano (II, art. 11); Haver participação social na elaboração (§ 5º, art. 19); Ter Regulação (parágrafo único, art. 20).
Constatada a inércia do município, surge a dúvida: seria possível a
intervenção do Ministério Público ou outros órgãos com legitimidade ativa para
proteção dos direitos difusos e coletivos, frente a eventual desídia ou
morosidade do órgão titular do serviço público com a finalidade de obrigá-lo,
através da via judicial, a elaborar o plano de sua devida área de atuação?.
Após pesquisa realizada junto a sites dos principais Tribunais de
Justiça brasileiros, verificou-se o que o Poder Judiciário tem entendido sobre a
possibilidade de se obrigar o ente federativo a elaborar o referido plano.
TJ-SP. Agravo de Instrumento nº 2174162-18.2015.8.26.0000. Ementa - AÇÃO CIVIL PÚBLICA Meio ambiente Pedido que visa à imposição de liminar, ao município, para a elaboração do
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Plano Municipal de Saneamento Básico Cabimento Presença dos requisitos legais Dever que decorre de ordem constitucional e legal Longo período sem conclusão das medidas Prorrogação de prazo em legislação específica que diz respeito apenas à condição para recebimento de repasse de recursos federais e não à elaboração do documento em si. Recurso improv ido. TJ-RS. APELAÇÃO CÍVEL nº 70039605993. Ementa Direito Público não especificado. embargos à execução de obrigação de fazer. Termo de compromisso de ajustamento. Município de Carazinho. Ministério Público. O compromisso foi firmado objetivando fixar obrigações e estabelecer prazos para a formulação do Plano Municipal de Saneamento Básico. Município/embargante que deixou de observar todos os requisitos do artigo 19 da Lei nº 11.445/07. Fixação da multa diária de R$ 120,00 que não se mostra excessiva, estando o março inicial correto, a partir do ajuizamento dos embargos, descabida a incidência a partir do trânsito [...]. (RIO GRANDE DO SUL; SÃO PAULO, 2015).
Assim, o entendimento da jurisprudência, em caso de não implantação
do Plano de Saneamento Básico pelo Município, além de grave lesão à
sociedade, o Município também fica impedido de contratar ou até mesmo licitar
com terceiros a prestação de serviços de saneamento básico, haja vista, que,
conforme destacam as decisões, tais tomadas de decisões estão prejudicadas,
portanto nulas de serem realizadas, já que deveriam estar previstas no
planejamento adotado pelo órgão.
O problema da alternativa apresentada é que nosso país já sofre de
uma judicialização absurda e excessiva que atinge diversos setores de
prestação de serviços, especialmente os relacionados à saúde pública, como
no caso do fornecimento de medicamentos e tratamentos médicos, que muitas
vezes, embora tratar-se de direito incontestável dos usuários, somente acabam
alcançados mediante a via judicial, o que traz diversos prejuízos e efeitos
colaterais a esses setores.
POSSÍVEL SOLUÇÃO: INCENTIVO À PARTICIPAÇÃO POPULAR
Devido ao fato do interesse do saneamento básico ser sempre a
melhoria social, a participação social é de extrema importância e deverá
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
abranger desde a elaboração do Plano de Saneamento Básico ao controle
social das atividades exercidas pelo titular do serviço público, sendo que tal
participação popular deverá estar prevista no PMSB.
Para que não haja dúvidas, a própria Lei Federal 11.445, em seu
artigo 3º, IV, define o controle social
Para os efeitos desta Lei, considera-se: [...] IV - controle social: conjunto de mecanismos e procedimentos que garantem à sociedade informações, representações técnicas e participações nos processos de formulação de políticas, de planejamento e de avaliação relacionados aos serviços públicos de saneamento básico (BRASIL, 2007).
Tal controle social encontra-se previsto, de forma semelhante, no
parágrafo único do artigo 14 da Lei 12.305 e no inciso XI da mesma norma, a
qual determina a criação de planos, também em nível nacional, estadual e
municipal, de resíduos sólidos.
O levantamento realizado pelo Instituto Trata Brasil (2016) também
verificou que, na prática, muitos planos elaborados pelos Municípios preveem a
participação social no controle, contudo não descrevem como essa
participação ocorrerá. Daqueles planos em que há tal descrição, a participação
em Audiências Públicas é o tipo de participação mais comum. Essa falta de
previsão legal sobre a participação popular nos PMSB, pode contribuir para a
dificuldade da população em assumir seu papel de exercício da cidadania e a
falta de identificação com a atuação política que ele deveria exercer.
Conforme apontado por Souza (2016), um dos aspectos de
relevância envolvendo o êxito nas políticas públicas em saneamento básico
está na participação popular como uma forma de aproximação dos cidadãos
com esta cultura. A referida autora acredita que a legislação brasileira sobre
saneamento básico possui instrumentos que incentivam o controle social,
contudo, há cerceamento desse princípio devido ao caráter meramente
consultivo dos mecanismos criados.
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
Essa falta de eficácia real da participação popular não é
exclusividade do setor de saneamento básico, pois em nossa legislação há
outros exemplos de tentativa de aproximação da democracia participativa por
meio da criação dos conselhos de políticas públicas, como os Conselhos de
Educação, Segurança Pública etc, em especial, ganhando maior destaque, os
Conselhos de Saúde, os quais foram um reflexo da reforma sanitária ocorrida
nas décadas de 70 e 80 e da inserção constitucional da “participação da
comunidade” como sendo uma das diretrizes do SUS.
Batagello, Benevides e Portillo (2011), fazendo referência à
participação popular exercida junto aos Conselhos Municipais de Saúde dos
municípios, afirmam que existe grandes dificuldades em aproximar o cidadão
com o modelo deliberativo de políticas públicas devido a questões ideológicas
e de interesses econômicos, o que ocorre incentivado pela burocracia e
brechas legais.
Mesmo com as dificuldades de participação popular, o que também
ocorre em outros setores de políticas públicas, o que se observa é que a
elaboração de planos e metas em saneamento básico não integram as
prioridades da administração pública, especialmente das gestões municipais. É
provável que, com real participação popular, os gestores possam se sentir
pressionados a dar mais atenção ao setor do saneamento básico,
especialmente na prestação de serviços que normalmente não são observados
de forma direta no cotidiano da população, como no caso do tratamento de
esgoto ou descarte de resíduos sólidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em que pese a população brasileira ter, em âmbito constitucional e
infraconstitucional, o direito de prestação de serviços públicos e saneamento
básico garantidos, ainda há muito por fazer, pois grande parte destes sujeitos
de direito, especialmente aqueles moradores de periferias urbanas, ainda
sequer possuem acesso a serviços mínimos, de modo que estão em constante
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Tópicos em Saúde e Direitos ____________________________________________________________
risco de prejuízos à sua saúde, como no caso de doenças e poluição do meio
ambiente geradas por falta de uma rede de saneamento adequada.
Especialmente no âmbito dos municípios, a falta de interesse da
administração pública muitas vezes é demonstrada, inclusive, pela não
elaboração dos PNSB, que além de ser uma obrigação provinda de lei, atende
ao interesse da coletividade, que espera que nele sejam traçadas as
estratégias locais de expansão e melhoria dos serviços de saneamento básico.
É necessário, portanto, que os cidadãos acompanhem as decisões das
autoridades, iniciando canais de diálogos, seja por meio do instituto da
participação popular previsto na legislação de saneamento ou por meio de
cobrança dos gestores e agentes públicos para que se prestem serviços de
qualidade de forma a atender as demandas de saneamento básico. Sabe-se
que esta não é uma tarefa fácil, mas, sendo necessária exigirá a elaboração de
novos estudos com a finalidade de traçar estratégias para alcançar um efetivo
controle social das políticas públicas tratadas no texto.
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Autonomia do paciente: uma discussão bioética
Bruno de Paula Checchia Liporaci
RESUMO
O presente estudo teve como objetivo iniciar uma discussão sobre a autonomia
do paciente e como esta autonomia se desenvolve, interligada aos demais
princípios bioéticos como capacidade e beneficência. O capítulo faz uma
interação entre a autonomia e os demais princípios elencados, discutindo esta
interação entre esses princípios. Trata-se de um ensaio teórico, no qual foi
utilizada a revisão literária sobre o assunto determinado. Defende-se que a
autonomia deve ser um elemento discutível em meios universitários e
profissionais.
INTRODUÇÃO 1
O reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana,
principalmente daqueles que têm necessidades urgentes em saúde é um
Agradecimento ao Professor Ronildo Alves dos Santos da EERP/USP, pela 1
colaboração na revisão deste capítulo.
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marco importante do progresso humano. A admissão do paciente como ser
humano, integrante de um marco sociocultural, portador de direitos
fundamentais, de dignidade, de vontade própria, de decisão é resultado, hoje,
da práxis médicas, trazendo um avanço para o exercício ético e correto da
medicina. Os exercícios profissionais hoje são baseados em códigos
deontológicos ou códigos de ética profissional, que tem como base garantir os
valores que devem ser praticados pelos profissionais, atendo as necessidades
que uma determinada categoria profissional serve e representa.
Para Tonol, Funck e Tavares (2012, On-line):
O Código de Ética profissional é um guia orientador e estimulador de novos comportamentos e está fundamentado em um conceito de ética direcionado para o desenvolvimento, servindo simultaneamente de estímulo e parâmetro para que o profissional amplie sua capacidade de pensar, visualize seu papel e torne sua ação mais eficaz diante da sociedade.
O profissional médico, respaldado em seu código de ética, age
profissionalmente com maior cautela, respeitando a dignidade, os valores
éticos, culturais e religiosos dos pacientes, havendo um diálogo de interação,
deixando as suas vontades e seus desejos, e é exatamente o desrespeito a
essas categorias que tornam a profissão conflitante, devido ao que Goldim
(2017, On-line) chama de paternalismo existente na profissão:
Na prática médica atual ainda são realizadas ações paternalistas, isto é, alguns profissionais, muitas vezes pressionados pela família dos pacientes, tomam decisões sem consultar as preferências individuais dos mesmos, assumindo o que supõe ser o melhor para eles.
Já Silva (2010, p.423) entende que: O paternalismo se refere ao dilema bioético, se o respeito à autonomia do paciente cabe restrição à autonomia do médico de exercer sua autoridade profissional. De modo mais simples, paternalismo significa o governo paternal, em que o pai se responsabiliza em prover seus dependentes, com total autoridade, restringindo suas liberdades. O paternalismo se constitui na forma de exercer ação, objetivando beneficiar a pessoa, cuja vontade ou interesses deixam de ser respeitados.
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O profissional médico além de fazer juízos diagnósticos, terapêuticos e
outros também deve fazer juízos morais e éticos da relação médico-paciente,
tendo o profissional consciência de que o tratamento não é só biológico, mas
também moral. A pessoa que se encontra enferma tem uma história, uma
família, valores, crenças diversas que não podem ser ignorados.
Para exercer a medicina, tornam-se indispensáveis a dimensão ética e
seus conceitos de dignidade e autonomia, os quais fundamentam a ideia de
que os pacientes têm direitos que devem ser reconhecidos. O trabalho busca
discutir a autonomia do paciente, interligando-a com a capacidade e a demais
princípios da bioética principialista, como princípio da beneficência, que são
complementares do princípio da autonomia, não havendo como falar de
autonomia sem discutir capacidade do indivíduo e como ele se beneficiará da
sua escolha.
Em 1979, os norte-americanos Tom L. Beauchamp e James F.
Childress publicam um livro chamado “Principles of Biomedical Ethics”, onde
expõem uma teoria, fundamentada em quatro princípios básicos - não
maleficência, beneficência, respeito à autonomia e justiça - que, a partir de
então, tornar-se-ia fundamental para o desenvolvimento da Bioética e ditaria
uma forma peculiar de definir e manejar os valores envolvidos nas relações dos
profissionais de saúde e seus pacientes (LOCH, 2002, On-line).
Utiliza-se para isto, um ensaio teórico, no qual foi utilizada a revisão
literária para expor à guisa de conclusão, um pensamento conclusivo dialético
sobre a questão.
Diniz e Silva (2008, p. 22) entendem que: A dialética enquanto método não interessa às Ciências Exatas que procuram ler as composições biofísicas e fisioquímicas dos seres materiais e mais ligadas aos fatos. No caso das Ciências Humanas que estão atentas a Como os fatos se apresentam, o Por Quê e o Para Quê tornam-se questões interessantes para compreensão e explicação de fenômenos que se relacionam com os destinos dos seres humanos na vida, seja individual ou coletividade.
Na realidade, pode-se até dizer que a relação médico-paciente é
triangular, segundo a interpretação de Muñoz e Fortes (1998, p.60), ambos
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professores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que a
definem da seguinte forma: “o médico, o paciente e a sociedade. Cada um com
um significado moral específico: o paciente atua guiado pelo princípio da
autonomia, o médico, pelo da beneficência e a sociedade, pelo da justiça”.
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA
Há várias elaborações teóricas sobre o princípio da autonomia.
Podemos citar a título de exemplo o pensamento de John Stuart Mill (1909),
que buscava entender o indivíduo soberano sobre si mesmo, seu corpo e
mente. Outro pensador que ganha destaque em relação à teoria da autonomia
é Immanuel Kant, que busca aperfeiçoar sua teoria na comparação de um
poder de si sobre si mesmo, ligado à questão da liberdade, exercido por uma
lei denominada de razão advinda da moral:
A autonomia da vontade é a constituição da vontade, pela qual ela é para si mesma uma lei - independentemente de como forem constituídos os objetos do querer. O princípio da autonomia é, pois, não escolher de outro modo, mas sim deste: que as máximas da escolha, no próprio querer, sejam ao mesmo tempo incluídas como lei universal (Kant, 2005,p.63).
Na visão de Beauchamp; Childress (2002, p. 141):
a Autonomia tem diferentes significados, tão diversos como autodeterminação, direito de liberdade, privacidade, escolha individual, livre vontade, comportamento gerado pelo próprio indivíduo e ser propriamente uma pessoa.
Observa-se que sempre é ligado à ação e liberdade do indivíduo, que
por vez está integralmente ligado a questão de cidadania e ao respeito da
pessoa.
Percebe-se então que uma pessoa autônoma é aquela que tem seus
objetivos estabelecidos, que segue uma direção, livremente de pressões
sociais e familiares, que governa sua vida considerando os seus valores
morais.
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Para Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine (2007), o
princípio do respeito da autonomia, incorpora pelo menos duas convicções
éticas: “1) as pessoas deveriam ser tratadas com autonomia; 2) as pessoas
cuja autonomia está diminuída devem ser protegida”.
A ideia de autonomia conduz logo ao pensamento da ideia de liberdade
e de capacidade de exercício ativo de si, da livre decisão dos indivíduos sobre
suas próprias ações e às possibilidades e capacidades para construírem seus
trajetos de vida (FLEURY-TEIXEIRA et al., 2008).
O Relatório Belmont (1978) denomina a autonomia como Princípio do
Respeito às Pessoas:
Respeito pelas Pessoas. - O respeito pelas pessoas incorpora pelo menos duas convicções éticas: em primeiro lugar, que os indivíduos devem ser tratados como agentes autónomos e, segundo, que as pessoas com autonomia diminuída têm direito a proteção. O princípio do respeito pelas pessoas divide, assim, em duas exigências morais separadas: a exigência de reconhecer a autonomia e a obrigação de proteger as pessoas com autonomia diminuída. Uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberação sobre objetivos pessoais e de agir sob a direção de tal deliberação.
Para Maria Helena Diniz, (2008, p.23):
O princípio da autonomia da vontade, se funda na liberdade contratual dos contratantes, consistindo no poder de estipular livremente, como melhor convier, mediante acordo de vontades, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.
O Código de Ética Médica (CFM, 2009) traz em seu art. 24 a garantia
do exercício da autonomia dos pacientes nas relações médicas, vedando este
profissional deixar de garanti-la ao paciente:
É vedado ao médico:
Art. 24 CEM. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.
A autonomia foi consolidada após as revoluções inglesa, americana e
francesa, no século XVII e fim do XVIII. Com o surgimento dos direitos
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humanos, na relação médico-paciente, o princípio da autonomia foi
incorporado, a partir da década de 1960.
AUTONOMIA E CAPACIDADE
Por autonomia existem dois vieses que abrangem os indivíduos com
capacidade plena: há, primeiramente, aqueles que devem ser tratados com a
sua autonomia independente, privada, e – outrossim -, os que têm a sua
autonomia diminuída; ou seja, não plena. Destarte, são denominados
vulneráveis e devem ser protegidos eticamente pela sociedade e pela lei.
A título de exemplo, nos artigos do livro I da Parte Geral de nosso
Código Civil (2002), “Das Pessoas” e, Capítulo I, “Da Personalidade e da
Capacidade”, encontram-se previstas as deliberações acerca da capacidade
dos indivíduos inseridos em nossa sociedade, desde a plena e, também, as de
caso especial – denominadas “relativamente incapaz” ou “incapaz”. Podemos
citar, exempli gratia, os casos de deficientes mentais de nível grave. Em tais
circunstâncias, necessita-se de um curador, reconhecido juridicamente, para
exercê-las:
Art. 1º CC. Toda pessoa é capaz de direitos e deveres.
Art. 3o CC. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.
Art. 4o CC. São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
I - Os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
IV - os pródigos (BRASIL, 2002).
É possível considerar, portanto, que a capacidade respalda na
personalidade da pessoa e em seu reconhecimento jurídico, pelo Código Civil.
Ainda que, do ponto de vista jurídico, não esteja suficientemente esclarecido,
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toda atenção é necessária – uma vez que, recentemente, houve mudanças no
Direito Brasileiro no que se refere à Teoria das Incapacidades, mudança
ocorrida pela lei nº13.146 / 2015 denomina de (Estatuto do Deficiente).
Já o exercício da autonomia deve ser praticado e reconhecido pelos
médicos, o seu próprio código de ética prevê, este fato. O atual Código de Ética
Médica, (CFM, 2009), faz uma referência a este fato, buscando um canal
comunicativo entre paciente e medico, buscando saber até aonde alcança a
autonomia da vontade dos pacientes em requerer do médico qual o tipo de
tratamento que deseja para sanar a sua moléstia. Se porventura ocorrer
somente uma possibilidade para o tratamento, não há como falar no exercício
do direito da autonomia da vontade, sendo uma decisão peremptória, não
admitindo outra escolha, a não ser que o próprio paciente recusou o tratamento
sugerido pelo médico. Os capítulos IV e V do CEM (Código de Ética Médica)
mostram as restrições do profissional de medicina a respeito da proteção da
autonomia do paciente:
Capítulo IV do CEM:
Art. 26. Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte, tratá-la.Capítulo V do CEM:
É vedado ao Médico:
Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte (BRASIL, 2009).
Na relação Médico e Paciente, na maioria das vezes, coloca-se em
xeque a autonomia do indivíduo, por falta de informação, autoridade
profissional, pressões familiares e sociais, o qual acaba se desfazendo desta
autonomia e escolhendo tratamentos ou outros meios afins para resolverem os
seus males, adversos daquele que desejava. Para exercer esta autonomia, o
indivíduo precisa ser capaz, para efetivar a capacidade de decisão. Este
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necessita sanar suas dúvidas sobre o assunto, compreender e analisar todos
os tipos de procedimentos clínicos existentes para a resolução do problema,
desde os invasivos e os não invasivos, avaliar e contrapor as diversas
alternativas e por último comunicar sua escolha ao profissional, lembrando-se
sempre que o paciente é senhor do seu próprio corpo.
Dentre os direitos da personalidade está o direito ao corpo, nele
incluídos os seus tecidos, órgãos e partes separáveis, bem como a proteção ao
cadáver. O corpo pertence à pessoa que nasce e representa sua expressão
física de individualização na sociedade (BUSNELLI,2009).
Em nosso Código Civil de 2002, o legislador coloca a ideia do corpo
humano pertencer ao seu dono que é detentor da vida nesse corpo:
Art. 15 CC. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica (BRASIL, 2002).
Para Lima (2017,On-line): a autonomia da vontade é a faculdade que o indivíduo possui para tomar decisões na sua esfera particular de acordo com seus próprios interesses e preferências. Isso significa basicamente o reconhecimento de um direito individual de fazer tudo aquilo que se tem vontade, desde que não prejudique os interesses de outras pessoas. Para ser mais claro: cada um deve ser senhor de si, agindo como um ser responsável por suas próprias escolhas, especialmente por aquelas que não interferem na liberdade alheia.
A capacidade requer um estudo e discussão de vários outros
elementos, estudando os princípios bioéticos da metodologia principialista para
a resolução de conflitos de prática clínica, porém, não é o único método
existente para resolver conflitos médicos. A pratica médica, hoje, se apoia no
direito ao consentimento informado do paciente, onde o paciente precisa
adquirir informações para realizar a tomada de decisão, este direito requer que
o paciente seja capaz para decidir e colocar a sua autonomia em exercício.
Para Almeida (2010,p.390):
o direito ao consentimento informado não é apenas requisito político ou legal, estando vinculado a um dos princípios éticos
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mais fundamenta is da soc iedade contemporânea, nomeadamente o da autonomia e respeito à pessoa.
A capacidade do paciente deve ser observada interdisciplinarmente
com o dever do médico, a beneficência e não maleficência, respeito e justiça,
uma vez que a autonomia deve ser exercida privadamente a cada indivíduo.
Assim, o paciente deve ter sua tomada de decisão respeitando os princípios
legais e éticos dos profissionais de saúde e resolvendo conforme sua plena
sabedoria o que é benéfico para si mesmo.
AUTONOMIA E BENEFICÊNCIA
O respeito à autonomia, tem relação com respeitar as decisões
deliberativas de cada indivíduo, desde o agir e pensar, sempre pensando na
não maleficência e buscando a beneficência do paciente, analisando caso a
caso.
Pode- se constatar que a não maleficência e a beneficência são coisas
distintas, que os autores muitas vezes erroneamente abordam como sendo um
único princípio em si. Enquanto maleficência é a obrigação de não criar dano a
um indivíduo, a beneficência é a caridade, é a benevolência ou benignidade.
Hipócrates, ao redor do ano 430 a.C. propôs aos médicos, no
parágrafo 12 do primeiro livro da sua obra Epidemia: “Pratique duas coisas ao
lidar com as doenças: use os regimes para o bem dos doentes e nunca para
causar danos ou mal a alguém.” (CREMESP; HIPÓCRATES, 2016).
Portanto observa-se nessa frase de Hipócrates, que autonomia e
beneficência são pontos comuns na relação médico-paciente; pois o médico
tem sua autonomia profissional, sendo o detentor da capacidade para lidar com
doenças e o paciente tem sua autonomia privada, podendo desde que capaz,
escolher os seus tratamentos de forma que lhe beneficie melhor, exercendo
sua capacidade e autonomia para promover sua saúde.
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“Hoje, o papel do médico – além de diagnosticar e tratar as doenças
humanas – é o de esclarecer orientar e respeitar a decisão do paciente como
ser autônomo” (WANSSA, 2011,p.114).
Segundo Frankena (1973, p.154), “o Princípio da Beneficência não nos
diz como distribuir o bem e o mal.” Só nos manda promover o primeiro e evitar
o segundo. Quando se manifestam exigências conflitantes, o mais que ele
pode fazer é aconselhar-nos a conseguir a maior porção possível de bem em
relação ao mal. A beneficência é o não causar o mal e tentar diminuir os
possíveis danos, sempre pensando em maximizar os seus benefícios.
Beauchamp e Childress, (2002, p. 282) definem Beneficência como
sendo uma ação feita no benefício de outros. O Princípio da Beneficência é que
estabelece esta obrigação moral de agir em benefício dos outros. Em relação
ao médico é dever do profissional agir eticamente através do interesse do
cliente, no caso aqui, o paciente.
Deve-se criar a desconstrução paternalista que a sociedade tem em
relação aos médicos, assim qualquer ato médico deve ser de interesse pessoal
do paciente através do seu consentimento.
Wanssa, (2011,p.113) diz que “a substituição do modelo paternalista
pelo da autonomia é o passo fundamental da relação médico-paciente nessa
sociedade plural que contesta a autoridade em nome da autonomia”.
Efetivar o exercício da autonomia tem como objeto almejado a escolha
de um tratamento adequado, que condiz com a compreensão do paciente,
surgindo a busca pela beneficência, liberdade e proteção da vida dos
pacientes, que têm o direito de decidir, seguindo as informações prestadas
pelos profissionais de saúde, interligando beneficência e autonomia, sendo que
a autonomia é a tomada de decisão do que vem a ser benéfica na saúde em
particular de cada indivíduo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na relação médico paciente, autonomia e beneficência são os pontos
cruciais para uma relação saudável, respeitando ambas uma à outra. O mundo
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se modernizou e a cada dia deixa de lado aquela relação paternalista entre
médicos e pacientes. Hoje é difícil encontrar aqueles famosos ``médicos de
família``, na qual a família, confiava como sendo o seu protetor, acreditando
piamente em tudo o que ele diagnosticava e em suas decisões de tratamento,
como sendo o melhor para o caso, sem deixar a pessoa livre para decidir. Os
médicos paternalistas, de épocas pretéritas tomavam a decisão pelos seus
pacientes, julgando ser a melhor escolha. A própria família deixava a cargo do
médico a escolha.
O médico, deve indicar quais são os determinados tipos de tratamentos
existentes, seus risco e benefícios, construindo uma relação de respeito
fundamental e de responsabilidade conjuntas.
O médico nessa perspectiva deverá instruir e demonstrar soluções
concretas que sejam viáveis. O profissional mostra qual tratamento é o mais
indicado e dá as opções de tratamentos para seus pacientes, o paciente deve
então decidir se aceita o tratamento que o médico sugeriu, deixando livremente
o paciente se decidir perante a sua própria autonomia e colocando em
contrapeso os benefícios: prós e contras, para aquilo que julgar ser mais
benéfico para si, decidindo de maneira autônoma, exercendo seu direito de
escolha sobre seu próprio corpo.
Hoje, a autonomia é vista como um princípio libertador e está
totalmente ligada às liberdades individuais.
Portanto, hoje, os pacientes acordam suas decisões, após serem
esclarecidos sobre os tipos de alternativas de tratamentos através do princípio
da beneficência e da autonomia, onde os pacientes oferecem seu
consentimento informado, por meio de um documento assinado, denominado
termo de consentimento livre e esclarecido. Esse termo é assinado após o
paciente concordar com as alternativas oferecidas pelos profissionais da
medicina, porém ainda hoje a autoridade do médico se constitui como elemento
determinante para a decisão de seu paciente.
Destacamos que a autonomia sofreu grande avanço na medicina. Hoje
ela é exercida com maior precisão e reconhecida não só pelos princípios
éticos, mas pela própria legislação, colocando complexidade na relação entre o
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médico e o seu paciente. O avanço já foi muito significativo e podemos sentir
isto hoje, mas ainda não está no patamar desejado. Espera-se que a
autonomia na medicina possa alcançar o seu verdadeiro papel de
independência, criando benefícios para se chegar a uma relação humanizada e
respaldada no respeito com o próximo e com suas tomadas de decisões, sem
haver para isto, o emprego de pressão ou coação de qualquer outro indivíduo
em sua decisão.
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