Trabalho decente e flexibilização-João+Antônio+Felício

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Trabalho decente e flexibilização-João+Antônio+Felício

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  • MERCADO DE TRABALHOconjuntura e anlise 5

    OPINIO DOS ATORES

    Trabalho decente e flexibilizao trabalhista no BrasilJoo Antnio Felcio*

    * Joo Antnio Felcio, professor da rede pblica e presidente nacionalda CUT.

    A reforma trabalhista do governo federalcoloca-se na contramo das normas funda-mentais da Organizao Internacional doTrabalho (OIT) e dos princpios do traba-lho decente consagrado na 89 reunio daConferncia Internacional do Trabalho. Se-gundo a OIT, entende-se por trabalho de-cente a ocupao que permite o equilbrioentre trabalho e vida familiar, o acesso educao dos filhos do trabalhador e condi-es para retir-los do trabalho infantil. Tra-ta-se da igualdade de gnero, do acesso capacitao para manter-se em dia com asnovas qualificaes tecnolgicas, das condi-es para a preservao da sade, de garan-tias para ter voz no lugar de trabalho e nacomunidade e da distribuio eqitativa dariqueza.

    Ainda segundo a OIT, levando em conside-rao tais princpios, preciso reconhecer umdficit global de trabalho decente. Esse dfi-cit se traduz na oferta insuficiente de empre-go, na proteo social inadequada, naprecarizao ou ausncia de direitos no tra-balho e na deficincia de dilogo social.

    O dficit de emprego resulta em mais de 160milhes de desempregados no mundo e, sefor considerado o subemprego, essa cifra al-cana mais de 1 bilho. Segundo os clculosda OIT, sero necessrios 500 milhes denovos empregos nos prximos 10 anos paraincorporar apenas aqueles que ingressarono mercado de trabalho e reduzir um poucoo desemprego.

    J quanto situao dos direitos, tendocomo referncia a Declarao dos Princpios

    e Direitos Fundamentais de 1998, que con-tou com a assinatura do governo brasileiro,os informes anuais preparados pela OIT con-firmam a negao do direito liberdade eautonomia sindical, a incidncia do traba-lho foroso e infantil e a discriminao notrabalho. O Instituto Internacional de Estu-dos Laborais (IIEL/OIT) indica que dois emcada cinco pases tm srios ou graves pro-blemas com relao liberdade e autono-mia sindical. Entre eles encontra-se o Brasil,que se recusa a ratificar a Conveno 87 daOIT, que, entre outras, assegura o direito econdies de liberdade sindical e negociaocoletiva.

    As razes do aprofundamento das desigual-dades, do desemprego e da precarizao dediretos, segundo a OIT, esto vinculados exclusividade com que os governos e as ins-tituies financeiras de Bretton Woods (FMIe Banco Mundial) deram nas ltimas duasdcadas reduo dos dficits governamen-tais, implementando ajustes estruturais tra-dicionais. Para a OIT chegado o momentode dar ao dficit de trabalho decente a mes-ma prioridade concedida at agora elimi-nao dos dficits governamentais.

    O governo brasileiro, entretanto, apesar deser signatrio de tais declaraes, no temconduzido suas polticas para reduzir o dfi-cit de trabalho decente, ao contrrio, temreunido esforos no sentido de estimular ain-da mais o trabalho indecente.

  • MERCADO DE TRABALHOconjuntura e anlise6

    O Projeto de Lei n 5.483/01 enviado peloexecutivo federal ao Congresso Nacional quealtera o artigo 618 da Consolidao das Leisdo Trabalho (CLT), prevendo que o negocia-do deve prevalecer sobre o legislado, podercomprometer conquistas histricas dos tra-balhadores asseguradas na ConstituioFederal, tal como a flexibilizao do paga-mento das frias, do adicional de 1/3 dasfrias, e do gozo da licena maternidade, dasfrias, do descanso semanal remunerado(DSR), entre outras conquistas obtidas du-rante dcadas de lutas pelos trabalhadores.

    E esta no primeira iniciativa, ainda queseja a mais grave, do executivo federal emflexibilizar direitos trabalhistas e sociais noBrasil. Desde a adoo do Plano Real, o go-verno promoveu sensveis mudanas pormeio de projetos de lei, leis complementa-res, medidas provisrias, portarias, entreoutras modalidades de ao do poder pbli-co, que j promoveram flexibilizao aindamaior da alocao do trabalho (trabalho porprazo determinado, denncia da Conven-o 158 da OIT sobre a demisso imotivada,flexibilizao da legislao para a formaode cooperativas, suspenso temporria docontrato de trabalho, flexibilizao da legis-lao existente sobre o trabalho em tempoparcial e trabalho temporrio e demisso deservidores). Alm disso, introduziu aflexibilizao no tempo de trabalho e na re-munerao (banco de horas, liberao dotrabalho aos domingos e remunerao vari-vel - PLR), e por meio da portaria n865/95do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE),restringiu o poder de autuao da prpriafiscalizao do ministrio.

    Todas as medidas de flexibilizao trabalhis-ta e de direitos sociais aprovadas pelo gover-no federal contaram com a justificativa deque o mercado de trabalho no Brasil mui-to rgido, o custo do trabalho, especialmen-te de admisso, muito elevado e, em razodisso, coloca-se como obstculo importantepara sustentar o crescimento, gerar empre-gos, reduzir a informalidade e at elevar asexportaes. Segundo a tese governamental,anunciada em 1994, a remoo desses obst-culos abriria condies para sustentar o cres-cimento em novas bases.

    Esses argumentos so questionveis, poisdiante de sensveis mudanas j introduzidasna legislao trabalhista, ao longo dos lti-mos anos, tomando como vlida a tese go-vernamental, o desemprego deveria estar emnveis mais baixos, o crescimento econmi-co deveria ser robusto e as exportaes jdeveriam estar gerando supervits na balan-a comercial. No entanto, as estatsticas so-bre mercado de trabalho, custo do trabalho,desempenho econmico e setor externo re-velam, no mnimo, a fragilidade do argu-mento governamental.

    A manuteno dos juros em nveis sempreelevados base de sustentao do Plano Real e o processo indiscriminado de aberturaeconmica do princpio dos anos 90 gera-ram um ciclo instvel de crescimento eco-nmico. O farto ingresso de recursos foidirecionado compra de empresas estataisou de capital privado nacional e, ao contr-rio da tese governamental, no viabilizou aexpanso do investimento produtivo e dasexportaes. Dada a vulnerabilidade exter-na e o perfil dos recursos externos atradosnos ltimos anos, o crescimento mdio daeconomia brasileira no perodo 1994/2000 foide 2,2%, enquanto no perodo 1985-1993correspondeu a uma expanso mdia de2,4%. J os investimentos mantm-se emnveis to baixos (17,5% do PIB/2000 IPEA)quanto aqueles dos anos 80.

    A forte expanso da dvida pblica, que sal-tou de 20% do PIB em 1994 para 51% em2001 (Bacen), levou o executivo federal acortar sistematicamente os investimentos eminfra-estrutura, a despeito do anunciadocolapso do setor energtico, comprometen-do o papel do investimento pblico na pro-moo do crescimento. Alm disso, o gover-no federal congelou os salrios do funcio-nalismo pblico por sete anos e pressionouos gastos nas reas sociais, com vistas a gerarreceitas para pagar os juros da dvida pbli-ca. O total dos recursos sociais (educao,sade, previdncia e assistncia social, em-prego e renda) recuou de 53,33% do totaldos gastos da Unio em 1995 para 43,35%em 2000. Em valores de junho de 2001, a re-duo da participao dos gastos sociais nototal de gastos da Unio equivale a R$ 66,7bilhes (Siafi/Minifaz).

  • MERCADO DE TRABALHOconjuntura e anlise 7

    O ajuste macroeconmico e as medidas deflexibilizao provocaram efeitos dramticosno mercado de trabalho e na situao socialdos trabalhadores. O desemprego aberto, queat 1993 era considerado moderado pelospadres internacionais (OIT/96), saltou de5,3% (PME/IBGE) em 1993 para mais de 7,1%em 2000, refletindo uma expanso de 52,8%do nmero de desempregados no perodo.

    No entanto, a taxa de desemprego aberto(IBGE) no capta a totalidade dos proble-mas atuais do desemprego no Brasil. Em ra-zo das limitaes do seguro-desemprego eda ausncia de uma proteo social maisabrangente, muitos trabalhadores ocultamsua situao de desemprego, realizando ati-vidades descontnuas. A taxa mdia de de-semprego total (PED/Dieese) desempregoaberto mais oculto para seis regies metro-politanas aumentou de 14,6% em 1993 para17,6% em 2000, resultando no crescimentode 32% do contingente de desempregados.

    Junto ao aumento do desemprego, especial-mente o aberto, ocorreu um crescimento ace-lerado da informalidade, contrariando asexpectativas da fora-tarefa do MTE queapostava na tese de que a flexibilizao daalocao do trabalho, reduzindo custos deadmisso, eliminaria os obstculos expan-so da formalizao.

    No entanto, se admitirmos que a infor-malidade reflete o contingente de assalaria-dos sem carteira e os ocupados por conta pr-pria, dada a forte concentrao das diversasmodalidades de vnculo que se concentramneste segmento em virtude dos processos deterceirizao e subcontrao, a presena dainformalidade no total de ocupados cresceude 46,4% em 1993 para 53,8% em 2000 (PME/IBGE), refletindo a crescente dificuldade dostrabalhadores em garantir empregos de qua-lidade.

    E o mais importante a observar que a mo-dalidade mais visvel de informalidade, a con-trao de assalariados sem carteira, foi a quemais cresceu aps a implementao das di-versas modalidades de flexibilizao daalocao do trabalho (contrato de trabalhopor prazo determinado, flexibilizao aindamaior do trabalho a tempo parcial e do tra-balho temporrio).

    Em apenas dois anos (1998-2000) a partici-pao dos trabalhadores sem carteira no to-tal de ocupados cresceu de 26,9% para 29,1%.E essa expanso reflete no s a ineficciada flexibilizao da contratao como ins-trumento de gerao de empregos e deformalizao, mas tambm o relaxamentodo papel de autuao do MTE.

    A elevada rotatividade do emprego (Caged/MTE), entendida aqui como fluxo de admis-ses e demisses no mercado formal de tra-balho, sugere que as empresas encontrampoucas restries financeiras em utilizar arotatividade como instrumento deprecarizao de direitos econmicos e sociaisdos trabalhadores. A denncia da Conven-o 158 da OIT (contra a demissoimotivada) pelo governo federal concedeuirrestrita liberdade s empresas em promo-ver a demisso em massa.

    Alm disso, importante observar que a enormeinformalidade acaba repercutindo num baixograu de cobertura da previdncia social: 60% dostrabalhadores do setor privado (boletim doMPAS/00) quase 40 milhes de pessoas notm direito aposentadoria ou auxlio-doen-a, como tambm tem comprometido a es-trutura de financiamento do seguro-desem-prego.

    O baixo crescimento econmico e a pressodo desemprego colocaram os trabalhadoresna defensiva ao celebrar acordos coletivos,resultando em reduo do rendimento m-dio real dos trabalhadores na indstria detransformao de 6%, entre 1995 e 2000(PME/IBGE). J a produtividade por horapaga subiu cerca de 65%, entre 1995 e 2000(IPEA), revelando que os trabalhadores noobtiveram nenhum benefcio econmico esocial da maior eficincia das empresas, comotambm os salrios vm ocupando uma par-ticipao cada vez menor no custo globaldas empresas. O componente de custo dasempresas que mais cresce o financeiro, de-corrente do pagamento de juros de emprs-timos ou de outras modalidades contradosjunto ao sistema financeiro.

    Esse confronto estatstico entre perdas sala-riais e ganhos de produtividade comprova

  • MERCADO DE TRABALHOconjuntura e anlise8

    que o custo do trabalho no Brasil, alm deser muito baixo (OIT/98), tem exibido umatrajetria decrescente. Se adicionarmos a es-ses indicadores o benefcio da desvaloriza-o cambial para as exportaes, fica eviden-te que medidas dirigidas no sentido de redu-zir o custo do trabalho no surtiro efeitos expanso das exportaes, mas certamen-te resultaro em mais concentrao de ren-da, tal como j ocorre desde 1994.

    Diante do aumento do desemprego, da re-duo real dos salrios e da informalizaodo trabalho, a participao da renda do tra-balho na renda total caiu de 40% para 36%entre 1994 e 1999 (Dieese). Segundo a ONU(2001), o Brasil detm a quarta pior distri-buio de renda do mundo, sendo superadoapenas por Suazilndia, Nicargua e `fricado Sul. J com relao ao ndice de Desen-volvimento Humano (IDH/ONU/2001), n-dice que combina renda per capita com indi-cadores de sade e educao, coloca o Brasilna 69a posio entre 162 pases, apesar de opas posicionar-se entre as 10 maiores eco-nomias do mundo.

    De acordo com os argumentos expostos aci-ma fica evidente que a desregulamentaodo trabalho no o caminho para criar ascondies da retomada do crescimento, e,no entanto, o executivo federal parece estarinsistindo nesta tese. Agora esto defenden-do a posio de que as iniciativas dedesregulamentao no produziram os efei-tos esperados, pois a reforma trabalhista nofoi concluda.

    Segundo o executivo federal, s com adesregulamentao radical da legislao tra-balhista, abrindo o caminho para a elimi-nao dos direitos trabalhistas e sociais con-sagrados na Constituio Federal, sero re-movidos os obstculos retomada sustenta-da do crescimento, gerao de empregos e maior formalizao do trabalho. Quantoa este aspecto, importante ressaltar que aArgentina, tida como referncia para adesregulamentao trabalhista, encontra-sena sua mais grave crise econmica, social epoltica desde o perodo militar.

    O problema central da insustentabilidade docrescimento, da vulnerabilidade externa, dainsero pouco competitiva da economia

    brasileira na economia mundial e da manu-teno do desemprego e da informalidadeem nveis muito elevados de natureza mo-netria, tributria e de orientao do crdi-to. Alm disso, decorrente da ausncia depolticas mais ativas nas reas industrial,tecnolgica, agrcola e agrria e de desenvol-vimento regional que deveriam ser dirigidasa fortalecer o mercado interno, promover asubstituio competitiva de importaes,gerando mais empregos de qualidade,redistribuindo renda e ampliando o nme-ro de empresas e setores em condies de dis-putar o mercado externo.

    Por ltimo, se o governo federal tivesse defato compromisso em forlalecer as negocia-es coletivas e os sindicatos dos trabalha-dores e do patronato, trataria de discutir comas centrais sindicais e entidades patronaismais representativas a ratificao das Con-venes 87 (liberdade e autonomia sindical),151 (liberdade sindical e negociao coleti-va para os sevidores pblicos) e 158 (contraa demisso imotivada) da OIT e a negocia-o de um perodo e legislao de transiopara a constituio de um sistema democr-tico de relaes de trabalho no Brasil.