Trabalho Vivo Trabalho e Emancipac3a7c3a3o Cap 2

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Dejours

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  • lienao, suicdio: sabemos, desde a

    publicao de seu livro A banalizao

    da injustia social, que o trabalho

    capaz de produzir o que h de pior. Ainda

    assim, tem tambm a faculdade de fomentar

    o melhor. Sua competncia de propiciar a

    realizao de si mesmo e a emancipao, isso

    deixa muita gente incrdula, e este o

    caminho empreendido nestes dois tomos,

    que propem, ao estabelecer uma nova

    teoria do trabalho, pensar politicamente a

    organizao deste.

    0 primeiro tomo analisa as relaes entre

    trabalho, corpo e sexualidade e evidencia que

    o trabalho de produo uma avaliao para

    a subjetividade como um todo, de onde

    podem surgir novas habilidades, isso a partir

    do instante que esta avaliao seja

    complementada por um segundo trabalho, de

    si sobre si, ou de transformao de si.

    0 segundo tomo mostra que as incidncias da

    organizao do trabalho ultrapassam em

    muito as fronteiras de seu universo. No

    trabalho pode-se certamente aprender o

    respeito pelo outro, o discernimento, a

    solidariedade, a determinao, os princpios

    fundadores da democracia; pode-se ainda

    descobrir a instrumentalizao do outro, a

    dissimulao, a deslealdade, o cada-um-por-

    si, a covardia, o mutismo. Assim, a

    organizao do trabalho apresenta-se

    tambm como locus de prendizagem do

    engajamento ou da desero dos espaos

    polticos...

    A

    Christophe Dejours

    Trabalho Vivo balho e emancipao

    Paralelo 15

  • Christophe Dejo urs

    Notas do tradutor

    a Qualificaes tcitas, baseadas mais

  • na habilidade pessoal do

    que no conhecimento

    transmitido. b Neologismo formado

    pela fuso de corpo e

    apropriao,corpspo

    priation no original.

    Cf. nota Jdo primeiro

  • captulo do tomo I,p.

    54. c Grue du zle (greve do zelo) no original. Cf. nota a do

    primeiro captulo do

    tomo I, p. 56.

  • 49

    A psicologia das massas sob a perspectiva da clnica do trabalho

    reud publicou Psicologia das massas e anlise do Eu em 1921. Seu objetivo , primeiramente, a anlise dos diferentes processos de adeso de um sujeito a uma massa razo de figurar no prprio

    ttulo a meno ... e anlise do Eu. Depois, prope a anlise do efeito de retorno dess integrao d uma massa sobre o funcionamento do aparelho da alma individual. Por fim, h um terceiro objetivo: produzir uma teoria da massa ou, de forma mais limitada, uma teoria dos processos em causa na formao de uma massa a partir dos indivduos.

    Com O futuro de uma iluso (1927) e0 mal-estar na civilizao (1930), com Consideraes atuais sobre a guerra e a morte (1915) e Por que a guerra? (1932),Psicologia das massas e anlise do Eu faz parte de um conjunto de escritos referenciados sempre que, em psicanlise, se reabre o dossi dos progressos e das regresses da condio moral e cultural da humanidade.

    Sobressai neste conjunto que Freud era bastante reservado quanto possibilidade de um progresso moral e poltico da humanidade. Pois, se a sexualidade , como vimos, o vis pelo qual o ser humano pode emancipar-se das determinaes biolgicas que so exercidas em seu corpo, ela tambm o que limita as possibilidades de conjurar a violncia e a guerra entre os humanos e, talvez seja o que traz de volta o ser humano, de maneira inelutvel, embriaguez de participar repetio do que h de pior.

    Mesmo se a cultura suscetvel de um progresso e se, em seu seio, est sedimentado o que h de melhor no gnio humano, no certo que o

    F

    Trabalho e emancipao

    progresso cultural o progresso do conhecimento, da cincia, das tcnicas e das artes traga consigo um progresso moral e poltico da humanidade, ou possa testemunhar tal progresso.

    Se devemos nos consagrar leitura deste texto de Freud em funo de seu diagnstico pessimista no estar assentado s na teoria do i sujeito humano, mas na concepo que tem da sociedade. No se pode 1 considerar Freud apenas como terico do aparelho da alma individual.

    Malgrado as crticas formuladas pelos socilogos e etnlogos sobre os textos ditos sociolgicos de Freud, acusados de impregnao exces- ; siva de psicologismo, deve-se reconhecer que Freud apresenta de fato | uma teoria das relaes entre os seres humanos e, para retomar uma expresso que j encontramos a propsito da filosofia de Maine de Biran, uma teoria dos princpios que permitem aos seres humanos o viver junto. Esta teoria sobre o que est no princpio da vida em sociedade deve ser examinada em seus fundamentos, pois ela est coerente com a teoria freudiana do sujeito. Coerente, no apenas congruente episte- mologicamente, mas tambm suscetvel de ser ainda necessria coerncia da metapsxcologia como um todo. Necessria, ao se lhe acordar, junto com a teoria da centralidade da sexualidade, a gnese dos comportamentos humanos. Coerente e necessria, isso significa que uma teoria social, para ser admissvel, depois da descoberta da sexualidade infantil e de suas consequncias sobre o resto da vida de todo ser humano, deveria pela lgica ser capaz de elucidar o que implica para a sociedade, o fato de o ser humano, antes de ser adulto,foi anteriormente uma criana.. Ningum duvida que a sociedade e as instituies, da mesma forma que para as lnguas e as culturas, sejam produtos do ser humano. Cumpre assim a cada teoria social oferecer do ser humano individual urna teoria que explicitada de forma diferente, em consonncia com os pressupostos de cada autor. Ao inverso, toda teoria do sujeito deveria poder; ;l elucidar suas consequncias sobre a teoria da sociedade.

    Considerar, assim como o fao aqui, o primado do corpo ergeno para a ideao, a inteligncia e o trabalho introduzir a sexualidade no

    4 6 princpio de todas as produes humanas, por conseguinte da cultura, mas tambm das instituies e da sociedade. Quais so as incidncias da sexualidade e de suas

  • Trabalho e emancipao

    vicissitudes sobre a formao e a evoluo das sociedades, esse um tema sobre o qual no pode se furtar anlise, a partir da teoria psicanaltica.

    Freud tem uma teoria dos princpios societrios, cuja formulao est contida em Psicologia das massas e anlise do Eu. Examinaremos seu contedo de um ponto de vista particular: esta teoria de Freud_ estaria compatvel com uma concepo da condio humana que faz referncia no apenas ao primado do corpo na ordem individual, mas centralidade do trabalho na ordem sociolgica e poltica?

    Esforcei-me, no primeiro tomo deste livro, para mostrar que na esfera da teoria do sujeito a centralidade do trabalho compatvel com a centralidade da sexualidade, sob reserva de admitir o lugar que cabe formao do corpo subjetivo como condio sine qua non tanto da sexualidade como do pensamento; e de considerar, com todo o rigor de suas implicaes antropolgicas, a definio da pulso como exigncia de trabalho.

    Contudo, de se observar que na teoria dos princpios do social, Freud, como veremos, segue uma via que, a partir da pulso, retm sobretudo desta ltima o que sobressai ao infantil e ao amor, mas no o que advm da exigncia de trabalho imposta ao psiquismo. Esta orientao epistmica de Freud estaria compatvel com uma teoria social que acordaria, como estamos empenhados em propor aqui, um lugar crucial dimenso do Arbeit no mbito da subjetividade e do trabalho -poiesis no domnio das relaes sociais?

    0 texto e Freud

    Ao retomar o livro de Gustave Le Bon, Freud examina o que este autor considera sob o ttulo de Psicologia das multides.1 O trabalho tem por objeto

    a influncia exercida simultaneamente sobre o indivduo por um grande nmero de pessoas com. as quais mantm algum tipo de ligao, outras, no entanto, que lhe so completamente estranhas. A psicologia das massas; jtrata assim do homem tomado de forma isolada enquanto membro de! uma tribo, de um povo, de uma classe, de um Estado, de uma instituio: ou como parte constitutiva de uma aglomerao humana que se organiza como massa em um dado momento para um fim determinado (p. 6).2

    E o que mobilizadesde pronto Freud a hiptese de uma pulso social, hiptese que abandonar em seguida: a pulso social no primordial, no

    1 Gustave Le Bonr Psychologie des foules, Paris, Presses Universitaires de France, 2002. 2 As indicaes de pgina entre parnteses remetem edio de Psychologie des masses et

    analyses du moi, in Sigmund Freud, uvres compltes, tomo XVI, Paris, Presses Universitaires de France, 1991 [1921].

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    indivisvel e sua origem pode ser encontrada em um crculo mais estreito que a massa, por exemplo na famlia (p. 6).4 Ele anuncia desta forma o objetivo principal de seu trabalho: o ! que estabelece ligaes entre os seres para que formem uma massa, ; seno a pulso social? Antes de explicitar sua anlise das caractersticas do elo, ele adianta trs questes: O que uma massa? Mediante o que a massa adquire a capacidade de influenciar a vida da alma? Em que consiste a modificao anmica imposta pela massa ao indivduo?

    Freud parte de questes sobre a massa como entidade para isolar- lhe suas principais propriedades. A resposta a essas questes depende, com certeza, daqueia conferida primeira delas: o que uma massa? Em realidade, Freud responder apenas muito adiante em seu texto:

    provvel que foram reunidas sob o termo de massa formaes muito jdiversas que ensejam uma distino. As asseres de Sighele, Le Bon e outros se reportam s massas de um gnero efmero (p. 21),'

    conjunto este que Freud designar alhures sob o nome de massa natural. Mas h outras espcies de massas, massas ou associaes : estveis nas quais os homens passam toda a vida e que tomam corpo nas instituies da sociedade (p. 22).d

    Freud toma assim o partido de estender o campo de sua psicologia social aos limites das instituies. Seti campo de pesquisa cobre aquele tradicionalmente explorado pela sociologia. Ao conservar o termo de massa, ele fala neste caso de massas organizadas (em contraposio s massas no organizadas ou naturais).

    Os primeiros captulos so consagrados ao estudo das propriedades da massa no organizada. O modelo fenomenolgico dessa ltima tomado emprestado a Le Bon. A multido psicolgica um ser: provisrio. No indivduo integrado massa, a vida do esprito se esvai em benefcio de uma alma coletiva. Aparecem novas propriedades do funcionamento individual que despontaria da formao de um; sentimento de potncia invencvel: desaparece o sentimento da responsabilidade (que Freud atribui suspenso dos recalques, deixando manifestar-se tudo o que h de ruim na alma humana e que est contido no inconsciente); fenmeno de contgio mental (indo at ao sacrifcio do interesse pessoal em prol do interesse do conjunto) que poderia vincular-se ao fenmeno da ordem hipntica; sugestionabili- dade e

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    perda de conscincia de seus atos, descida de vrios degraus na escala da civilizao (retorno ao instinto, barbrie, espontaneidade, violncia, ferocidade, entusiasmos e herosmos dos seres primitivos); recurso ao pensamento por imagens; simplismo e exageros dos sentimentos alcanando extremos.

    Desta lista, reteremos para a discusso sobre a emancipao, segundo Le Bon e Freud, que a formao de uma massa no organizada leva a um desgaste ou a uma regresso do pensamento racional ou conceituai para um pensamento por imagens (p. 14) e ao emprego mgico das palavras (p.l7).e

    Em contrapartida, na massa organizada, os indivduos preservam suas qualidades primeiras (intelectuais e morais) e, segundo McDou- gall citado por Freud, h lugar para tradies, costumes e disposies, em particular os que dizem respeito relao dos membros uns com os outros (p. 25)/E Freud, aps estabelecer a hiptese segundo a qual nas massas (organizadas ou no) so relaes de amor (ou ligaes de sentimentos) que constituem [...] a essncia da alma da massa, ataca o estudo da natureza da ligao nas massas altamen te organizadas, duradouras, artificiais: a Igreja e as foras armadas. Mesmo se ele prope o recurso ao conceito de Eros para substituir a noo de organizao de McDougall, isso no erradica as hesitaes: as massas altamente organizadas artificiais estariam protegidas, explica, da dissociao por constrangimentos externos (perseguies ou punies em caso de tentativa de debandar da massa). Em outro trecho ele diz e repete que o que impede s ligaes de associao de se romperem a ligao libidinal em relao ao lder que asseguraria a coeso da massa.

    A sequncia do texto abandona a contribuio das punies e das represlias para a manuteno da unidade da massa,para centrar a anlise ligao libidinal, como cimento desta unidade.

    Diferentes formas de ligaes libidinais so ento observadas: As ligaes dessexualizadas ou inibidas quanto ao objetivo, que relevam do

    amor.

    A identificao (que para Freud a oportunidade de introduzir uma discusso sobre o ideal do Eu, a conscincia moral e o narcisismo originrio).

    O estado amoroso com, em seu centro, uma idealizao do objeto do amor,

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    idealizao que seria aqui deslocada sobre o lder (nas massas no organizadas, particularmente) e que explicaria, via a fascinao, o surgimento de uma sugestionablidade comparvel quela que se observa na hipnose.

    A ativao de um resto filogentico do homem primordial que explica sua predisposio para viver em hordas.

  • Trabalho e emancipao

    Quando, por fim, a partir dessas anlises sobre as relaes entre a |massa e o Eu e sobre a natureza da ligao produtora deste fenmenos das massas, Freud prope um desenvolvimento terico sobre a ; formao do Eu, considera as diferentes formas de assimilao e de emancipao do Eu em relao massa.

    Cada indivduo diz ele [...] participa da alma de diferentes massas, aquelas de sua raa, da classe, da comunidade de credo, de pertencimento , a um Estado etc., e pode ademais elevar-se at uma parcela de autonomia ; e de originalidade [a emancipao?] .*

    Significa dizer que, para Freud, se as pulses sexuais inibidas quanto meta o que permite a perenidade de uma relao amorosa, tanto como a estabilidade das ligaes no interior de uma massa, ele tambm tem a ideia, menos explcita, que as ligaes assim constitudas so to fortes que bem difcil um indivduo livrar-se delas. Ao final do texto, Freud reafirma que a formao de massas repousa nas pulses sexuais inibidas quanto meta, diferentemente das pul- ! ses sexuais (no inibidas) que seriam, essas, antiagregadoras, e mesmo : antissociais. Retoma-se assim aqui o dualismo ligao - desagregao transposto no dualismo Eros-Sexual, que no apenas est no cora- co da sexualidade, mas que teria desempenho similar tanto na esfera do indivduo como no domnio da massa, tanto em nvel de massa natural como artificial.

    Neste texto pois, Freud prope uma teoria dos princpios dos rea- grupamentos humanos. E, no curso da demonstrao de sua tese, ele levado a fazer alguns desenvolvimentos sobre a metapsicologia individual: o Eu, o ideal do Eu, a identificao, a idealizao, o estado

    i amoroso, so objeto de anlise cuja validade no depende diretamente da tese sociolgica.

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    Nova apreciao sobre os dois tipos de massas

    Voltemos tese sociolgica. Do ponto de vista que mais nos interessa, este texto importante porque Freud prope por seu intermdio uma discusso sobre dois tipos de massas ou de reagrupa- mentos humanos que ele distingue com clareza. Ao sair das massas no sentido que lhes foi atribudo por Le Bon as massas naturais, primrias ou no organizadas , ele levado a realizar uma diferenciao essencial entre as massas artificiais ou organizadas que so, por exemplo, a Igreja e as foras armadas e que indicam, ademais, um movimento em direo s formas sociais muito organizadas que so as instituies e o Estado. Nesses dois tipos de massas, ele aponta uma diferena fenomenolgica essencial: as massas naturais so instveis e; de curta durao; as massas artificiais podem, ao contrrio, conhecer uma longa durao.

    Mas se Freud estabelece claramente a distino entre duas entidades bem diferentes, ele trata da ligao entre os humanos nos dois casos, como se fossem de mesma natureza. A partir do momento em que Freud desenvolve sua teoria da ligao, que os ps-freudianos retomam de forma incansvel sob o termo genrico de ligao social, tudo ocorre como se ele no estivesse interessado na distino que antes estabelecera entre os dos tipos de aglomeraes humanas. Freud certamente est aqui animado pela ambio de produzir uma teoria dos princpios do reagrupamento humano, ou seja, uma teoria universal que se poderia encontrar no processo de formao de todas as formas de massas ou de associaes humanas. Ele formula a questo das relaes entre os dois tipos de massas de forma aterica, recorrendo a uma metfora: entre massas com caractersticas efmeras, segundo os dados de Sighele, Le Bon e outros (p. 21), e massas ou associaes estveis (p. 22), a articulao anunciada da forma que segue: As massas do primeiro gnero so de alguma maneira sobrepostas a essas ltimas como as ondas curtas, porm altas, sobre enormes vagalhes (p. 22).h

    Ora, o problema que nos preocupa aqui precisamente o das relaes entre esses dois tipos de massas ou de associaes que no funcionam da mesma forma, tanto em nvel das massas elas mesmas, como em nvel da

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    psicologia individual de cada um de seus membros. A demarcao ntida desde o momento em que Freud entra no passo marcado por Le Bon. O que est descrito sobre a massa natural ou no organizada , em suma, um quadro bastante tenebroso do que pode ser reconhecido como figuras cardiais da barbrie, ou seja, como formas constituintes em oposio cultura, sobre uma base explcita que no nada alm do fracasso do pensamento, a abolio do que Freud designa alhures como Kulturarbeit (trabalho de cultura). Quando os indivduos se integram em uma massa natu- \ ral, as mudanas de seu funcionamento psquico so traduzidos pelas caractersticas que seguem: eliminao da vida do esprito; sentimento de potncia invencvel; desaparecimento do sentimento de responsabilidade; manifestao de tudo o que de ruim abriga a alma humana; contgio mental; sugestionabilidade; queda de muitos nveis na escala da civilizao; volta ao instinto, barbrie, espontaneidade, violncia, ferocidade,

    aos entusiasmos e aos herosmos dos seres primitivos; recurso ao pensamento por imagem; queda do rendimento intelectual; simplificao e exagero dos sentimento, atingindo extremos; disposio em estado de latncia das caractersticas habituais do

    pensamento e da personalidade em funcionamento como autmato, uma vez que sua vontade tornou-se impotente para o comando. Em detrimento desta lista, Freud pontua, seguindo os passos de Le Bon:

  • Christophe Dejours

    [...] as massas so Igualmente capazes, sob influncia da sugesto, de elevadas demonstraes de renncia, desinteresse, devotamento a um ideal. Enquanto para o indivduo isolado a vantagem pessoal talvez seja o nico mvel, para as massas predomina muito raramente. Pode-se falar ; de uma moralizao do indivduo pela massa. Enquanto o rendimento intelectual da massa situa-se sempre muito abaixo daquele do indivduo, seu comportamento tico pode tanto situar-se bem acima como descer muito abaixo desse (pp. 16-17).'

    Algumas pginas antes, Freud, citando Le Bom, escreveu: As propriedades aparentemente novas [do indivduo] so justamente as manifestaes desse

    inconsciente, no qual est contido, em predisposio, tudo de ruim da alma humana. [E prossegue:] a defeco da conscincia 1 moral ou do sentimento de responsabilidade no oferece nenhuma difi-

    culdade nossa compreenso (p. 10)/

    No apenas Freud deixa de comentar essa contradio como, acerca da moralizao do indivduo pela massa, no ser mais questo no texto, assim como do desempenho sob influncia da sugesto. Contudo, ele precisa na sequncia: J h muito afirmamos que o ncleo do que se denomina conscincia moral angstia social. Esse ponto ser retomado e confirmado posteriormente em O mal- -estar na civilizao. Eis portanto que a sociedade a um s tempo: ; responsvel pela angstia social, que o ncleo da conscincia ; moral, e responsvel por seu desaparecimento. Quais so ento as | condies que agem sobre a sociedade em um sentido como no ou- \tro? Esta questo Freud no trata e sequer a menciona. Qualquer que seja o tratamento reservado ao poder moralizador da massa, parece tal como o admitem os principais exegetas do texto que Freud no d grande crdito moral s obras humanas, sequer s maiores entre essas. E segundo a opinio de autores como Laurence Kahn, razovel seguir o caminho proposto por Freud nessa afirmao.3

    3 Laurence Kahnr Fare parler le destin, Paris, Klincksieck, 2005.

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    Observaes sobre a emancipao

    Assim seja! Mas, assim mesmo! Que o progresso do gnero humano seja mera iluso, h argumentos suficientes em favor dessa tese para que se a recuse. Mas teria sido uma iluso, a iluso de emancipa-; o, sem dvida uma preocupao permanente entre os pensadores.. Emancipao e progresso no so sinnimos. A ideia de emancipao releva na essncia a conscincia individual, e assim cabe psicanlise elucidar-lhe os mVis "subjetivos; bem como psicologia social, ou melhor, sociologia, precisar-lhe as condies capazes de autorizar ou arruinar o esforo de emancipao individual.

    A emancipao, a partir de tal perspectiva, conota um esforo pessoal e repousa antes sobre o poder de pensar, sem prejulgar o poder do indivduo em atribuir o comportamento ou a ao sobre o pensamento, em razo justamente desta outra limitao, bem diferente do obstculo sociopoltico que constitui a resistncia do inconsciente.

    A emancipao concebida como esforo pessoal pode requerer uma , passagem pela juno de muitos esforos individuais, o que ns trataremos adiante sob o termo de cooperao. Que a articulao comum dos esforos de emancipao no seja v o que sugere o conceito platnico de comunidade de iguais, retomada por Montaigne e La Botie, e mesmo por Hannah Arendt. Mas necessrio admitir que, ainda sob a forma de cooperao sobre a qual tambm falaremos adiante , a convergncia dos esforos de emancipao se chocam ; no registro axiolgico com limites que detalharemos na sequncia I em que se condensam as razes de duvidar de um progresso da hu-manidade. Nada impede! Os esforos de emancipao merecem nossa ateno porque expressam com frequncia uma exigncia bastante forte para ser capaz de organizar as formas de vida e de fruio que rompem com o risco de alienao pela massa.

    Para voltar ao tema dos diferentes tipos de massas, diria que a me-tamorfose freudiana das marolas e dos vagalhes para o ajuntamento de massas no organizadas e de massas organizadas pode bem eximir um dos problemas maiores da filosofia poltica e da teoria social, quando no o seu problema central: o da oposio entre barbrie e civilizao. O que est no

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    princpio da organizao de uma massa artificial constitui o objeto mesmo da sociologia ou mais exatamente da teoria social.

    Freud no discute com a sociologia. Nem neste texto essencial ou em O mal-estar na civilizao. Alm de Le Bon, ele cita em Psicologia das massas e anlise do Eu alguns socilogos: Sighele, McDougall,Trotter,Tarde, Brugeilles, Kaskovic. Nenhuma palavra sobre Dilthey, Durkhem, Simmel, Weber, Dewey, Mauss, contemporneos seus, ou aos anteriores, Montesquieu, Comte, Marx,Tocqueville, Saint Simon ou Spencer.

    Da obra desses autores sobressaem, mais do que a fundao das sociedades o que assegura a associao entre os humanos para compor uma massa organizada , os acordos, as normas, as regras e os valores. Toda sociologia assenta-se em uma teoria da tica. Mesmo se, tal como insiste Paul Ladrire, distingue-se entre concepo imperativa; da moral [que] prioriza o justo sobre o bem e a concepo atrativa [que] prioriza o bem sobre o justo, e caso se admita no primeiro, o problema o da exatido da norma, no segundo, o problema o do que seria a vida boa, o objetivo de uma vida realizada.4 A segunda das duas concepes ditas concepes atrativas ,no poderia ser conduzida ao princpio dos reagrupamentos humanos que Freud prope: libido, amor ou Eros. Essas noes freudianas (libido e Eros) no podem ser consideradas como propulsores psicolgicos de toda funo social, ou seja, como o princpio dos princpios. Observaremos adiante que a clnica do trabalho pleiteia antes pela disjuno entre os'mveis psquicos e os mveis ticos do viver junto.

    Assim, Freud dispensa a teoria social e dispensa apenas uma ateno casual ao trabalho. Escreve:

    A experincia mostrou que, em casos de trabalho conjunto, so instauradas comumente ligaes libidinais entre os camaradas, que prolongam e fixam a relao entre eles para alm do que meramente vantajoso [...]. A libido apoia-se na satisfao das grande^ necessidades vitais e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que nela participam. No indivduo, assim como na evoluo da humanidade como um todo, apenas o amor que atua como fator de cultura, no sentido de uma reviravolta do egosmo em altrusmo (p. 41) .fe

    4 Paul Ladrire, verbete Sociologie, in Monique Canto Sperber (dir), Dictionnaire dthique et de philosophie morale, Paris, Presses Universitaires de France , 2004, tomo 2, p. 1.813.

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    Mesmo se de forma marginal, este excerto mostra bem a direo que toma o pensamento de Freud sobre a natureza das ligaes que so estabelecidas entre os humanos, por ocasio do trabalho. Ser necessrio confrontar essa indicao freudiana com a clnica do trabalho stricto sensu, pois ela atesta um postulado que para ns ocupa um lugar essencial: a cooperao-

    A decomposio da ligao social

    Se concedermos teoria social dos socilogos mais crdito do que o fez Freud, somos levados a retomar a questo mesmo se, de maneira inversa empreendida por Freud sobre o que desagrega as ligaes que associam uma massa organizada ou artificial para dar luz uma massa no organizada ou natural.

    Enquanto Freud procura estabelecer uma teoria do que proporciona a ligao, de nosso lado procuramos compreender o que dissolve essas ligaes entre os componentes de uma massa organizada, ou seja, em uma massa que, para apresentar certa estabilidade pressupe por parte dos indivduos associados um sentido moral que no se resume angstia social (dito de outra forma, o temor de represlias, de perseguies ou de punies severas) contra o in-divduo que tentaria afastar-se da massa, mas passa pela mobilizao de competncias morais especficas, as mesmas evocadas sem sequer explicit-las Freud:

    A alma da massa (no organizada) tambm capaz de criaes geniais do I esprito, como inicialmente a prpria lngua demonstra, e ainda o canto popular, o folclore, entre outros (p. 21).1

    Ora, essas produes citadas por Freud nada possuem de natural e no se poderia imputar seus mritos alma da massa no organizada. Elas procedem de fato de uma atividade normativa extremamente complexa. Basta apenas o exame da evoluo de uma lngua e se observar o quanto encerra de lutas para ija_ dominao simblica, de compromissos, de arbitragens e de acordos normativos sem a estabilizao das quais nenhuma intercompreenso seria possvel ante um processo de babelsmo generalizado.

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    Para se ter a exata noo da formao de uma massa no organizada (a partir de uma massa organizada), talvez seja necessrio procurar inicialmente do lado das foras suscetveis de desestruturao das ligaes de civilidade que associavam, at ento, os indivduos em uma massa artificial, apoiando-nos em uma teoria do sujeito, do trabalho e das ligaes que os humanos estabelecem por ocasio do trabalho.

    O trabalho ordinrio a oportunidade de formao, entre os membros de um coletivo, dos elos que no so apenas de regulao quanto eficincia do trabalho, mas presidem tambm estruturao do viver junto e da comunicao orientada rumo ao entendimento.

    Contudo, mesmo em uma conjuntura favorvel cooperao e ao agir racional em relao s normas e aos valores, no sempre possvel I evitar que se desenvolvam, de forma simultnea, processos coletivos | muito mais ambguos no plano axiolgico. o caso especfico da i situao em que o trabalho implica riscos para a integridade fsica: riscos de acidente, por exemplo, ou riscos de intoxicao profissional, de insalubridade. Pois essa dimenso do trabalho o risco introduz na situao de trabalho uma dimenso especfica: o medo.

    O medo gera formas qualificadas de cooperao defensiva ou ainda de estratgias coletivas de defesa, em alguns casos definidas como ideologia defensiva. O medo no trabalho catalisa a formao j de tipos de coletivo que no so os mesmos que aqueles fundados! sobre a referncia de uma obra comum.

    importante retrocedermos brevemente sobre a clnica das estratgias de defesa para mostrar que toda atividade normativa capaz de produzir acordos e ligaes entre os membros de um coletivo, mesmo para o trabalho, no desemboca sempre em resultados neutros, sob uma perspectiva tica.

    O caso das situaes de trabalho com risco

    O trabalho, s vezes, implica enfrentar constrangimentos deletrios para a sade fsica e mental. O marceneiro expe-se s inalaes de p de serragem, correndo riscos de pneumopatias, ao barulho das mquinas que levam surdez; o piloto de caa corre o risco de acidentes;

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    o comediante de humilhao pelo pblico; o veterinrio pode ser constrangido a matar;5 a enfermeira a contrair uma doena letal;6 o delegado sindical aos efeitos deletrios do sofrimento dos trabalhadores;7 a acompanhante de pessoas portadoras de necessidades especiais a uma organizao do trabalho pouco edificante;8 o psiclogo a constrangimentos antideontolgicos;9 o policial a espetculos de horror;10 as prostitutas violncia de seus clientes;11 pessoas pertencentes a minorias ao racismo;12 os pecuaristas e demais criadores s condies infames infligidas aos animais criados para o abate...13

    Prudncia e preveno pressupem habilidade e engenhosidade. Para tanto, os riscos no so, em geral, administrados em sua integra- lidade. Alguns nem mesmo podem s-lo, pois a situao de trabalho implica, de facto, a inalao de vapores txicos, por exemplo, ou a vibraes deletrias. Esses malefcios irredutveis e inerentes tarefa, alm dos efeitos diretos produzidos sobre o corpo, apresentam incidncias indiretas sobre o funcionamento psquico. O medo do acidente, da mutilao ou da doena

    5 Lise Gaignard 8c Alain Charon,Gestion de crise et traumatisme: Les effets collatraux de la vache folle. De langoisse singulire lembarras collectif, Travailler,n. 14,2005.

    6 Marie-Claire Carpentier-Roy, Corps et me (psychopathologie du travail infirmier), Montreal, Liber, 1991.

    7 Marie-Claire Carpentier-Roy, Micheline Saint-Jean, Louise Saint-Arnaud 8c Marc-Andr Gilbert,Le travail du conseiller syndical: Ne pas mourir mais mourir presque7, in Marie-Claire Carpentier-Roy 8c MichelVezina, Le travail et ses malentendus,Toulouse, Octars, 2000.

    8 Marie Grenier-Pez, Chroniques de la violence ordinaire. Organisation psychique individuelle, organisation du travail, organisation du systme de soins, Travailler, n. 4, 2000; Isabelle Gernet 8c Florence Chekroun, Travail et gense de la violence: A propos des soins aux personnes ges, Travailler, n. 20,2008.

    9 Nicole Roelens,Intoxication productiviste et dshumanisation des rapports humains. Une psychologue du travail analyse les causes de son puisement professionnel, Travailler, n. 4,2000.

    10 Jean-Michel Chaumont, Vulnrabilit, in Christophe Dejours (dir), Conjurer la violence. Travail, violence et sant, Paris, Payot, 2007.

    11 Jean-Michel Chaumont,Stratgie de dfense et prostitution: Un enjeu personnel et f politique, Travailler, n. 10,2003.

    12 Valrie Ganem,Un processus dassignation psychologique peut en cacher un autre. propos de la couleur de peau en Guadeloupe, Travailler, n. 16,2006.

    13 Jocelyne Porcher, Eleveurs et animaux, rinventer le lien, Paris, Presses Universitaires de France - Le Monde, 2002 ;Jocelyne Porcher,La mort nest pas notre mtier, La Tour dAigues, LAube, 2003.

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    profissional, o receio de no estar altura do exerccio da tarefa ou das responsabilidades, a exasperao diante do absurdo de tarefas repetitivas suscitam conflitos intrapsqui- cos que demandam, por sua vez, a construo e implementao de estratgias de defesa que no podem ser comprovadamente ajustadas s necessidades especficas do impacto psquico que determina cada um dos prejuzos em causa. A investigao clnica dessas estratgias de' defesa implementadas caso a caso para conter o sofrimento psquico no trabalho leva a uma discusso metapsicolgica embaraosa em muitos aspectos, uma vez que sugere: tendencialmente, essas defesas atravancam os poderes do pensamento; essas defesas desempenham um papel importante como propulsores

    subjetivos da servido e da dominao; essas defesas podem contribuir de forma significativa formao da

    violncia coletiva e at da violncia de massa.Na medida em que se trabalha, no se trata apenas de produzir, mas

    tambm de proteger-se contra os riscos do trabalho. As estratgias de defesa que se deve construir podem avariar em profundidade ; a mobilizao da inteligncia individual e entrar em concorrncia com a inteligncia coletiva. Para maior clareza, interessa uma lembrana sumria dos principais dados clnicos relativos s estratgias de defesa contra o sofrimento no trabalho.

    Estratgias individuais de defesa Diante do trabalho repetitivo sob o constrangimento do tempo, como em

    uma linha de montagem, os trabalhadores desenvolvem com frequncia estratgias de defesa destinadas a lutar contra o aborrecimento, em primeiro lugar, contra a angstia de se sentir transformado em um verdadeiro rob, em seguida (ou seja, de sentir sua capacidade de pensar no apenas congelada, mas progressivamente deteriorada), contra o medo de no conseguir segurar a cadncia da linha. A injuno em no pensar, em comportar-se como executor disciplinado no tarefa fcil de ser respeitada. Os estudos clnicos mostram que o pensamento espontneo pode, por si mesmo, ser fonte de sofrimento suplementar. Pensar nessas circunstncia no pensar o trabalho, pois os espaos abertos engenhosidade e habilidade so

  • Trabalho e emancipao

    demasiado restritos. Esses espaos so de antemo investidos pela preocupao de procurar os caminhos e os modos operatrios que permitem a economia de esforos, de uma parte, de conjurar o cansao e as dores, de outra. E de imediato no haver nada mais a ganhar sobre os espaos abertos para os remanejamentos rapidamente esgo- i tados. Pensar consiste ento voltar ou refletir sobre a sua prpria con- i dio. O que o leva a tomar a dolorosa conscincia de sua condio de animal laborans (para aqui retomar a expresso de Hannah Arendt em A condio humana). Pensar a ameaa de ser despossudo de si pelo trabalho repetitivo uma fonte suplementar de sofrimento. Com ou sem a injuno organizacional de no pensar, aquele ou aquela que se esfora em assumir a situao de trabalho, no longo prazo tomado pelo desejo de no mais pensar... sente a necessidade de pr um basta

    6lj ao sofrimento e angstia que implica a conscincia clara da situao

    vivenciada. Mas no mais pensar no coisa fcil. Para espantar um pensa- ; mento,

    deve-se eventualmente procurar desvi-lo sobre um objeto substitutivo mobilizador de investimento afetivo. Na situao aqui em perspectiva, essa estratgia obliqua, e mesmo impossvel. Apenas os mais dotados entre os operrios ou empregados, quando ainda jovens, alcanam o objetivo: evadem-se pelo devaneio. Os outros no conse- >guem porque a atividade repetitiva sob o constrangimento do tempo bloqueia de fato o livre curso do pensamento que busca livrar-se da situao. Gostaria de deixar levar-se pela imaginao, mas alcanado pela tarefa, de forma inexorvel.

    Outra estratgia pode, como ltimo recurso, ser experimentada. Ela consiste em apoiar sobre a atividade repetitiva prescrita e acelerada o maior desempenho possvel. ento necessrio concentrar toda a sua ateno to s na cadncia. Esta estratgia toma geralmente a forma de autoacelerao. Elevado a um ritmo desenfreado, o pensamento simplifica-se e aos poucos se embota. Aps um determinado tempo de ativismo exacerbado, possvel reduzir a cadncia, a em- botadura do pensamento persiste. E uma espcie de hipoestesia ou mesmo de anestesia plena obtida pelo vis de uma hiperatividade sensrio-motora.

    Muitos operrios e operrias encontram, cada qual por conta prpria, a via de autoacelerao como estratgia de defesa que leva mais completa

    Trabalho e emancipao

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    confuso do pensamento e com isso permite sofrer menos com esta sua condio de animal laborans.

    Essa estratgia de defesa pela autoacelerao que acalma a angstia esgota as foras, essa estratgia de defesa traz consequncias importan- ; tes na economia psquica como um todo. Em razo do esforo fsico j que demanda, ela se torna preciosa. Fora do trabalho melhor evitar ; muita distncia em relao ao que implica a camisa de fora psquica, to duramente adquirida. Pois, experimentar demais o prazer de pensar livremente e de se encontrar a si, seria necessrio, ao retornar linha de montagem, recomear o ciclo infernal da autoacelerao ne-

    S!\ cessrio para atingir o embrutecimento adaptativo. O melhor continua sendo manter a defesa fora do trabalho e no mais soltar as rdeas da imaginao. O lazer, caso exista, ser destinado a atividades que esgotam, de maneira a no deixar lugar, em caso de calmaria, seno vontade de dormir.

    Pudemos mostrar em outra publicao que a sobrecarga de trabalho imposta a alguns executivos, em particular no setor de comrcio, chegava ao mesmo resultado psquico que nos operrios: a embota- dura do pensamento e da afetividade pode ser obtida pelo ativismo, mesmo em tarefas essencialmente cognitivas e relacionais.

    Este funcionamento psquico, no qual o poder de ideao est mais ou menos gravemente ancilosado pela estratgia de defesa, tem igual- mente consequncia nos relacionamentos do espao privado. A falta , ;de flexibilidade psquica afetiva, a intolerncia, e a inaptido para a fantasia podem pesar na economia das relaes amorosas e erticas com incidncias srias sobre o desenvolvimento psicoafetivo das i crianas (devido pobreza da comunicao que estas esperam estabe-

    lecer com o adulto que, de seu lado, se esfora em no se deixar levar : pela criana ao afastamento de seus comportamentos defensivos).

    possvel retomar metapsicologicamente os elementos constitutivos desta clnica e mostrar que a estratgia de defesa pela autoace-'; lerao funciona como uma represso (Unterdrckung) que convmj distinguir do recalque (Verdrngung). Pois se a represso pulsional passai pela paralisia do pensamento, o recalque, ao contrrio, a contrapar-' tida de uma atividade do

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    pensamento muito intensa.14 Sem dvida importante, para avaliar as consequncias polticas da

    sobrecarga de trabalho e do que Hannah Arendt descreve sob a denominao de atarefamento, observar que a condio de animal laborans no diz respeito apenas aos trabalhadores submetidos ao trabalho repetitivo sob o constrangimento do tempo, mas atinge,

    14 Cf. a teoria da tradutibildade do recalque em Laplanche: FondementsiVers la thorie de la sduction gnralise, in Jean Laplanche, Nouveaux fondements pour la psychanalyse, Paris, Presses Universitaires de France, 1987.

  • Christophe Dejours

    progressivamente, numerosos outros trabalhadores, mesmo em atividade nos setores servio e gesto, e pode incidir no seu entorno social imediato, em especial nas crianas. Esta a razo da tendncia geral intensificao do trabalho sobre a qual Hannah Arendt foca a anlise na condio do homem moderno, para quem, devido ao atarefamento, ao frenesi e ao ativismo no trabalho, os propulsores mesmos do pensamento poltico e da ao poderiam sofrer um processo progressivo de involuo.

    Estratgias coletivas de defesa As estratgias coletivas de defesa construdas em uma comunidade de

    trabalho renem os esforos de todos para a proteo dos efeitos desestabilizadores, para cada um, do confronto com os riscos que so, em uma primeira abordagem, os mesmos para todos os membros do coletivo de trabalho. o caso para a indstria da construo civil e das grandes obras de engenharia, para as foras armadas, para as indstrias que envolvem grandes riscos (qumica, nuclear, tratamento de resduos industriais, pesca etc.). Essas estratgias associam, de modo geral, condutas paradoxais sobre como assumir os riscos, uma indisciplina em relao s medidas de preveno e de segurana, a no manifestao pblica de expresso do medo ao sofrimento e a obrigao de participar de demonstraes ostentatrias de desprezo e enfrenta- mento quanto ao risco, bem como exibio dos sinais exteriores da coragem, da resistncia ao sofrimento, da fora, da invulnerabilidade e da virilidade.

    A estrutura de uma estratgia coletiva de defesa complexa e exige, para sua coerncia interna, a participao de todos. A anlise de cada um de seus elementos constitutivos mostra que esses compem vetores constitudos pela vontade de reverter simbolicamente a posio subjetiva em relao ao risco. De vtima impotente e passiva exposta ao risco, a posio subjetiva revertida pelas atitudes de provao, de provocao e de escrnio pelas quais se afirma o controle total da situao, com o recurso suplementar de uma eufemizao coletiva da percepo do risco.

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    Afinal, a estratgia coletiva de defesa parece colocar em operao uma negao concertada da coletividade sobre a percepo do risco, um meio eficiente de tornar possvel no pensar nos riscos durante uma atividade perigosa. Pode-se mostrar que sem essa negao de percepo seria difcil, at mesmo impossvel, prosseguir na

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    atividade e cumprir a tarefa. Deve-se admitir ainda que com as estratgias coletivas de defesa contra o medo, tal

    como em relao s estratgias individuais de defesa contra a monotonia e a sobrecarga de tarefas, a relao com o trabalho joga contra o pensamento: fazer de uma maneira tal que no se pense no que funda uma ameaa para a coeso psquica. E realmente o que constitui a espinha dorsal de todas as defesas (negao de percepo da realidade).

    De um lado, necessrio convir sobre a utilidade, o valor adapta- tivo, mas de outro importa observar que a negao dos afunilamentos da capacidade de pensar apresentam l seus inconvenientes. No apenas porque acarretam uma reduo da subjetividade, mas porque ainda engendram a famosa resistncia mudana. Difceis de serem operacionalizadas, dispendiosas em esforo e em energia, quando so instaladas e que se mostram eficazes, as defesas devem ser conservadas, mantidas e protegidas. Assim, as estratgias de defesa participam da perpetuao das situaes sobre as quais, justamente, elas tm por princpio combater os efeitos psquicos deletrios.

    Os constrangimentos organizacionais patognicos no decorrem da fatalidade. So determinados pelas relaes de dominao, das quais no podem ser considerados apenas como consequncia, so ainda o seu instrumento: pois tambm pelo vis da organizao do trabalho que as relaes sociais se estabelecem.

    Ao se considerar esses dados sociolgicos sobre a diviso social do trabalho, importa reconhecer que as estratgias coletivas e individuais de defesa destinadas, em primeira instncia, a proteger a sade mental, constituem, em segunda instncia, poderosos mveis para a servido voluntria e para a reproduo da dominao.

    As ideologias defensivas

    Quando as situaes axiognicas agravam-se, quando a ameaa comea a progredir sob o efeito, por exemplo, de um endurecimento dos mtodos de gesto ou de uma nova administrao no comando na empresa as defesas podem revelar-se insuficientes. A ameaa de dispensa, por exemplo, cria entre os trabalhadores relaes de concor- rncia com vistas a fugir da ameaa. A divulgao de novos contingen- ciamentos oramentrios impe dificuldades suplementares na organizao concreta do trabalho e leva os diferentes servios a conflitos de interesse e a hostilidades. Dessa forma, a ameaa traduz-se, mais cedo j ou mais tarde, pela perda de confiana e de lealdade, pela desconfiana j

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    e,por fim,pela desestruturao das solidariedades. O coletivo de defesa corre o risco de ser ameaado em sua coeso por essa mesma desconfiana que faz com que cada um seja mais frgil frente a luta contra o medo. a partir dessas condies que se inicia, com trequncia, em um clima de grande tenso, um recurso a uma estratgia ltima, s vezes desesperada: tentar salvar a qualquer preo o coletivo, mesmo se necessrio for empreender uma guerra santa contra o inimigo comum, o que pressupe proceder designao do dito inimigo como responsvel pela crise. ento possvel que se desenvolvam processos que conduzam ao estigma de um alvo lanado desforra coletiva. Sob o imprio do medo produzido pela intensificao da ameaa, os que hesitam (aqueles que no exibem de forma clara os sinais exteriores de adeso s estratgias de defesa coletiva), tornam-se alvos fceis, avos preferenciais. Neste estgio, custe o que custar, as defesas devem ser protegidas. E em suma necessrio defender as defesas.

    A partir desta etapa, quando a defesa passa a ser construda como um fim em si, torna-se iminente o risco de partir deriva. A coeso! do coletivo se refora sob um regime de denncias contra o inimigo comum. A violncia da excluso, das perseguies, do linchamento j j no est muito distante. A radicalizao das posturas defensivas demanda o surgimento de lderes e de bons oradores capazes de propor palavras de ordem sobre como operar e difundir o pensamento de

    emprstimo destinado ao controle do medo, bem como contrapor- se defeco do pensamento diante do medo. No se fala mais ento em estratgias de defesa, mas em ideologias defensivas para qualificar ; aqui a derrocada do pensamento sob o imprio do medo. Exemplos significativos foram objeto de publicaes, nestes ltimos anos, em pscodinmica e em psicopatologia do trabalho.15

    Aqui estamos, via as ideologias defensivas, no limiar do que, reto- mando Gustave Le Bon, Freud descreve a propsito da agregao doUr ' indivduo em massa.

    A passagem progressiva do medo s estratgias coletivas de defesa e s

    15 Cf. as ideologia defensivas do realismo econmico no pessoal de direo nas novas formas de gesto e de empreendedorismo in Christophe Dejours, Souffrance en France, coleo Lhistoire immdiate, Paris, Seuil, 1998.m

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    ideologias defensivas constitui uma clnica que abre o acesso in statu j ,, , nascendi ao processo em causa na formao dos grupos ou das massas ! no organizadas.

    Embora no presente caso, este processo repouse em seu princpio no como o sustenta Freud sobre a formao de ligaes operadas , pelo amor ou a libido, mas ao contrrio, sobre a desestruturao das ligaes de cooperao preexistentes, sob o imprio do medo.

    Formao de uma massa no organizada

    O que sugere a clnica do trabalho que, no incio do processo de mutao da massa organizada em massa no organizada, h antes de\ qualquer outro propulsor o medo. O medo catalisa a formao de um itipo de ligaes reacionais completamente novas: a coeso coletiva contra o inimigo comum podendo alcanar a violncia intencional 'contra o alvo designado no exterior o inimigo. Ou no interior o traidor ou mesmo, em bom nmero de casos, o bode expiatrio.

    Esta ligao nova que toma o lugar das regras do viver junto organizando um coletivo de trabalho assim alimentada pelos dios \ v ; individuais.Tais dios no levam ao esfacelamento interno enquan- 1 to a massa mantiver coesa em sua determinao de atuar contra 0 outro o inimigo externo. Isso nos traz de volta discusso travada entre Freud e McDougall a propsito do pnico. Segundo este ltimo, o pnico poderia desempenhar um papel importante na formao da massa.

    A clinica do trabalho pleiteia neste mesmo sentido. Entre os membros de um grupo (ou de uma massa) unidos por uma ideologia defensiva, ou seja, por uma defesa contra o medo, a ligao estabelecida mais a partir de um procedimento que recorre ao imaginrio do que , a uma deliberao racional fundada na intercompreenso. Reencon- ; tra-se a o modo de funcionamento do pensamento por imagens, com 'economia do pensamento stricto sensu, cujo encadeamento alimenta-do pelo medo, pela representao caricatural do inimigo comum, pelo ;,dio e a sede de vingana.

    Freud evoca esta possibilidade de uma ligao dos indivduos da massa pelo dio e no pelo amor:

    O dio a uma pessoa ou instituio determinada poderia redundar em uma ao de unificao e suscitar ligaes afetivas anlogas quelas provocadas pela dependncia positiva (pp. 38-39).

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    Mas em seguida abandona este caminho que ser substitudo por uma reflexo que promete evidenciar o caminho mais curto que so as ligaes de libido que caracteriza uma massa (p. 3 9 ) E vo c a na 1 sequncia_a ambivalncia amor-hostilidade e confirma a orientao; principal de sua concepo, a saber que os movimentos hostis s es; capam percepo aps o recalque. Por fim, ele imputa eliminaoj dos sentimentos de repulso entre os membros da massa s

    restries do narcisismo [que], segundo nossa perspectiva terica, s podem ser engendradas por um fator, pela ligao libidinal a outras pessoas. O amor a si encontra limite apenas no amor ao outro, no amor aos

    : objetos (pp. 40-41)/ Reafirma assim o princpio segundo o qual a ligao est na libido e no amor. Se

    Freud evoca a ligao pelo dio, ele decide simplesmente esquec-la para resolver a contradio atribuindo libido o poder de limitar, e mesmo de dissolver o dio.

    A clnica do trabalho que permite captar, in statu nascendi, a formao de uma massa no organizada a partir de uma massa organizada pleiteia por outra concepo da ligao que se estabelece aqui. Evidentemente, a contradio relevada por Freud volta: como o dio que deveria de fato dissociar as ligaes entre os indivduos pode, neste caso, servir de liga? O primeiro argumento explicativo consistiria na evocao como, por sinal, j o fizemos anteriormente da reverso do dio e da destrutibilidade para o exterior, contra o inimigo comum, o que livraria a massa das foras de desunio - desagregao. um elemento, decerto, da explicao, mas que no suficiente. Livrar a massa das foras desagregadoras no constitui dot-la, em contrapartida, de um elemento de ligao. E como, ademais, todo processo inicia-se com a desconfiana entre os membros do coletivo de trabalho, no enxergamos como, a partir de tal ambiente, poderiam disseminar o amor e desenvolver a libido assegurando a coeso da massa.

    A fora de agregao provm com certeza de outro lugar. O que proposto pelo lado da ideologia defensiva? Nada menos do que mutao no contrrio de sua experincia efetiva do medo: um sentimento de potncia e de fora, a embriaguez do poder que confere o nmero ou, para retomar a expresso de Le Bon citada por Freud, um sentimento de invencibilidade. Essa experincia da fora experimentada no modo de coeso

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    imaginria de compor apenas um, unio total acrescida da fora de um gigante. O imaginrio do gigante pe um termo, a um s tempo, ao sentimento de medo e ao sentimento de solido (desmoronamento das referncias comuns = desolao). Em outros termos: o que estabeleceria a ligao entre os membros da massa no organizada, cuja ideologia defensiva uma das formas clnicas mais comuns, no seria nem a libido nem o amor, nem Eros, mas antes a virtude reconfortante de um conluio imaginrio capaz: de conjurar as foras de desagregao mobilizadas pelos dios individuais, e de reunir graas ao sentimento de todo-poderoso que confere a cada indivduo a embriaguez do apelo violncia coletiva contra o inimigo comum.

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    Sob o efeito do medo, uma massa organizada at ento por acordos normativos to difceis de elaborao pode transformar-se em massa no organizada cuja coeso depende apenas de um conluio imaginrio.

    Ligao imaginria, acordos normativos e idealizao

    As relaes estabelecidas entre os membros unidos por causa de uma ideologia defensiva no esto na ordem das relaes interin- dividuais. So relaes entre o indivduo e a massa como um bloco imaginrio. A ligao imaginria, ou imaginai,5 ope-se aqui ligao simblica. Laplanche designa sob o nome de ligao especular, ligao em massa, ou ainda em Gestalt esta ligao imaginria, para distingui-la da ligao de tradutibilidade, passando pelo pensamento e no pela imagem (ligao simblica). Esses dois tipos de ligao, sempre segundo Laplanche, operariam no mbito do narcisismo. A primeira alcanando um benefcio flico; a segunda resultando em termos de amor de si.

    Desde que se mantenha a referncia ideologia defensiva, como tipo de massa espontnea, a restrio do narcisismo evocada por Freud a propsito dos indivduos que compem uma massa no organizada (ou espontnea) deve ser entendida antes como ajuste das l diferenas individuais em beneficio do imaginrio em bloco. E, para / maior preciso, seria necessrio conceber esta restrio do narcisismo como o primeiro tempo de um processo: ao enfraquecimento do Eu 'sob o imprio do medo, ocorreria um segundo tempo de inflao do Eu por fuso imaginria com a massa. Quanto a Freud, ele afirmava que a restrio narcsica permitia a eliminao dos sentimentos de repulso entre os membros da massa. E essa restrio poderia ocorrer, segundo ele, apenas em consequncia do amor do outro (pp. 40-41)."

    No captulo relativo identificao, Freud introduz a dimenso especfica do ideal do Eu. O ideal do Eu para o qual so investidas quatro funes: a funo de auto-observao, a conscincia moral, a censura do sonho, a influncia maior sobre o recalque.

    Na ideologia defensiva, alinham-se ligaes que sugerem o estabe-lecimento de uma jiistino mais ntida com o que se pode observar na formao de um coletivo de trabalho stricto sensu. Pode-se identificar a dois processos, podendo cada qual conduzir formao de figuras ideais, a tudo

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    opostas. Uma primeira, que levaria formao de uma instncia moral

    procurando a concordncia com o ideal oferecido de fora os valores da vida de bem e da cultura e com a autoridade parental.

    A outra, que traria antes superfcie a nostalgia de uma poca extinta, a do narcisismo primordial no qual o Eu infantil bastava a si prprio (p. 48)s e participava da toda poderosa his majesty the baby. Este ideal de uma poca extinta (a menos que se trate da iluso retroativa de um passado fictcio que nunca existiu), que corresponde a uma dilatao do amor-prprio, no tem muito a ver com o sentido i moral. Teria algo em comum com o que fala Freud a propsito do estado amoroso e da idealizao do objeto, evoluindo paralelamente a j uma desvalorizao narcsica do Eu?

    Na ideologia defensiva, parece que o narcisismo especular se restabelece invocando um imaginrio todo-poderoso a fixar uma espcie de continuidade entre a megalomania infantil e o imaginrio do gigante do qual discorramos h pouco. Nesta configurao, seria possvel que o objeto neste caso o lder, sobre quem Freud insiste muito no seja propriamente um objeto querido, amado. Sua funo, como o sugere Freud, no seria decisiva na formao da massa, o lder podendo com facilidade ser substitudo por uma ideia-guia. Ela no seria por isso contingente: a funo do lder consistiria em formular slogans e palavras de ordem, bem como exaltar as imagens do nmero, associadas fora e ao poder, dos quais se alimenta o imaginrio social da massa, ou seja, o modo de pensamento por imagens. A ideia f A ' ........................................................................ ........... .............. - da fora e da onipotncia fundamentalmente amoral. Orientado

    .....

    / J\ ademais pelo dio, a violncia e a coeso contra o inimigo comum, ele tudo menos uma instncia moral. O sentido moral pressupe O: emprego do pensamento pr-consciente e no do modo regressivo e simplificado do pensamento por imagens.

    A identificao imaginria, ou conluio imaginrio, capaz de restabelecer a clivagem e, via o imaginrio social, de fornecer as racionalizaes a justificarem o emprego da fora e da violncia que o sentido moral reprova. Esta a razo da

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    frmula de Freud (p. 54): os indivduos da massa puseram um nico e mesmo objeto no lugar de seu ideal do Eu e, em consequncia, identificaram-se uns com os outros em seu Eu,' operao pela qual certo nmero de indivduos estariam aptos a integrarem a massa primria, e no admissvel apenas se se compreender.como ideal do Eu a instncia imoral objetivando a onipotncia, construda de modo imaginrio a partir do conluio dos amores-prprios.

    Concluso

    Ao se admitir que Freud reconheceu de fato a distino entre a massa natural ou no organizada e a massa artificial ou organizada, a clnica do trabalho sugere acentuar esta distino e no criar eufemis- mos, como ele prope, na inteno de reuni-los sob um princpio de coeso nico: a libido.

    A libido, ao amor, a Eros, ao carinho, s pulses sexuais inibidas quanto meta, dessexualizao, hipnose, identificao, ideao e ao estado amoroso como variantes do princpio nico de coeso da i massa, seria provavelmente mais justo contrapor uma tese a distinguir jdois tipos de ligaes que tudo separa.

    Na massa organizada at as formas complexas que compreendem instituies complexas, o princpio organizador penderia para as deliberaes de cunho racional, os acordos normativos e a tica, que seria necessrio opor aqui, com todo o rigor, libido, pois esta ignora a tica.

    Na massa no organizada, ou massa primria, o princpio de coeso dos indivduos estaria assegurado pela tentativa de transformar a experincia do medo em sentimento de fora invencvel, ou mesmo de onipotncia.

    Do ponto de vista da emancipao, a massa organizada propcia possibilidades a serem examinadas, em detalhes, a partir da clnica do trabalho. Esta clnica permitir a realizao de uma anlise dos agentes da cooperao e da solidariedade. Em contrapartida, a massa no organizada, cuja ideologia defensiva contra o medo serviu de modelo

    e que experimenta, a um s tempo, o fracasso da atividade dentica e a derrota do pensamento - s capaz de produzir destruio, mais ainda, promover a barbrie.

    Por fim, na passagem da coeso (que repousa sobre ligaes de civilidade) coeso

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    (que repousa na referncia do inimigo comum), necessrio considerar dois processos que so sucessivos, mas independentes: neutralizao e desestruturao das ligaes de solidariedade e de cooperao sob efeito do medo, inicialmente; na sequncias edificao de um conluio imaginrio. Nenhum mecanismo preside encadeamento desses dois processos. Quando, aps o primeiro deles, o segundo no chega ao seu termo, assiste-se a descompensaes psi- copatolgicas frequentes e graves, chegando a extremos tais como o suicdio no local de trabalho. Em caso de sucesso do segundo processo, as descompensaes psicopatolgicas so conjuradas, mas abre-se ento a via que leva destrutibilidade coletiva.

    Qual o lugar que se deve atribuir s relaes de trabalho na anlise desses processos onde so observados simultaneamente a cultura e o viver junto? A clnica do trabalho deve ser considerada assim como as demais clnicas exemplo capaz de explicar a formao e a desestruturao das relaes sociais? O que ele revela contingente? A vida do esprito pode ser teorizada sem referncia ao trabalho?

    Deve-se admitir que a metapsicologia freudiana, mesmo se abre espao em um grande nmero de ocorrncias ao termo Arbeit, no percebe tudo o que, no funcionamento tanto anmico individual como na psicologia das massas, diz propriamente respeito ao trabalho.

    Nos prximos captulos, ser examinado o sentido no qual a referncia clnica e teoria do trabalho permitiria renovar a anlise das relaes entre sexualidade, sublimao e cultura, bem como considerar as possibilidades e os limites entre os quais poderia, consequentemente, ocorrer a dinmica da emancipao.

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    Notas do tradutor

    a Para o leitor brasileiro, h a possibilidade de cotejar as edies francesas referenciadas e uma das mais recentes edies brasileiras deste trabalho de Freud: . Psicologia das massas e anlise do Eu, in Sigmund Freud, Obras completas, Vol. 15, So Paulo, Companhia das Letras, 2011. O livro de Gustave Le Bon, Psicologia das multides, foi editado em 2008 pela Martins Fontes. b Idem, pp. 15-16. c Ibidem, pp. 33-34. d Ibidem, p. 34. e Ibidem, pp. 25-26 e p. 29. / Ibidem, p. 38. g Ibidem, p. 92. h Ibidem, pp. 33-34. i Ibidem, pp. 27-28. j Ibidem, p. 21. k Ibidem, pp. 58-59. I Ibidem, p. 33. m Christophe Dejours, A banalizao da injustia social, Rio de Janeiro, Editora Fundao Getio Vargas, 2000. n Sigmund Freud,Psicologia das massas e anlise do Eu, op. cit., p. 55. o Ibidem, p. 56. p Ibidem, p. 58. q Imaginale, no original. r Sigmund Freud,Psicologia das massas e anlise do Eu, op. cit.,p. 58. s Idem, p. 48. t Ibidem, p. 76.

    Outra forma de civilidade: A cooperao

    Para um conceito crtico do trabalho

    ideia segundo a qual o trabalho pode ser um mediador da emancipao objeto de bom nmero de controvrsia entre os tericos da Escola de Frankfurt. Da leitura dos textos de Marx, retm-se sobretudo a ideia inversa, ou seja, o

    trabalho pode ser um mvel maior da alienao (no sentido pejorativo do termo). Conserva-se tambm a ideia do primado do trabalho sobre o conhe- i cimento: a partir da experincia do mundo, qual se acede devido ao trabalho, que a verdade do mundo revela-se. Ou, para diz-lo de outra forma, o trabalho seria uma condio imanente de lodo conhecimento do mundo.

    Mais raros so os autores que retm de Marx a ideia de que o trabalho possa tambm constituir uma provao mediante a qual os poderes do ser humano revelam-se para ele mesmo, de uma parte; e a ideia de que o trabalho social possa constituir-se no vis essencial da emancipao, de outra.

    Em um texto de 1980 a tratar especificamente do trabalho, Axel Honneth retraia a maneira como o trabalho foi conceituado nas diferentes etapas da teoria crtica. Ele precisa que Marx jamais justificou a tese-chave segundo a qual a emancipao dos trabalhadores deve ser explicada a partir das relaes imanentes do trabalho alienado.

    A