Tradução Artigo ACHAB

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/3/2019 Traduo Artigo ACHAB

    1/4

    CONTRIBUIO AO DEBATE SOBRE A POLTICA DIRECIONADA SMANIFESTAES CULTURAIS MARANHENSES.

    Arinaldo Martins*

    Como este se trata de um evento cujo pblico principal so agentes polticospreocupados com um melhor gerenciamento das questes culturais do pas, tentarei namedida do possvel fazer uma higienizao do discurso das categorias eminentementesociolgicas. A poltica cultural implementada pelos sucessivos governos estaduais no

    Maranho, com particular nfase no bumba-meu-boi, foi a minha primeira preocupaoacadmica e a nica que tenho tido at pouco tempo atrs, haja vista a minha incipienteinsero no campo da cincia. No entanto, foi alvo de um estudo interessado de minhaparte, realizado por cerca de trs anos em So Lus do Maranho e tambm um pouco nointerior do Estado.

    No final do trabalho, acabou configurando-se para mim uma certa viso daquilo quechamei de o campo do bumba-meu-boi, usando para isso da noo de campo cunhada pelosocilogo francs Pierre Bourdieu1, no sentido de que, para pensar uma manifestaocultural, tal como o bumba-meu-boi, no se pode prescindi-la de um campo de relaessociais no qual ela , ao mesmo tempo, agente determinada e determinante. Assim sendo,para pensar este universo particular da vida social, o campo das manifestaes culturais,

    preciso que tenhamos em mente que h relaes e que h uma configurao socialespecfica, na qual os agentes2 orientam as suas aes por um sentido subjetivamentevisado, ou seja, h interesses em jogo. Ao falar disso, baseio-me, sobretudo, numa certaidia do socilogo Max Weber, de que as relaes humanas so relaes de sentido.

    E que interesses seriam esses? Em primeiro lugar, quero deixar claro que no bumba-meu-boi, objeto privilegiado do meu trabalho, mas que pode lanar luz sobre outrasmanifestaes e, claro sobre a poltica cultural maranhense, na medida em que ele tem sidoo objeto privilegiado tambm desta poltica, pode-se perceber uma clara inter-relao entre,pelo menos, trs campos especficos da vida social maranhense, o cultural (que compreendeas manifestaes culturais, tais como tambor-de-crioula etc, mas que, por motivos derecorte do trabalho, preferi reduzir para os grupos de bumba-meu-boi), o burocrtico-

    * Arinaldo Martins de Sousa socilogo, aluno do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais daUniversidade Federal do Maranho.1 Para o Bourdieu (2002, p. 27), A noo de campo , em certo sentido, uma estenografia conceptual de ummodo de construo do objeto que vai comandar ou orientar todas as opes prticas da pesquisa. Ela

    funciona como um sinal que lembra o que h que fazer, a saber, verificar, que o objeto em questo no est

    isolado de um conjunto de relaes de que retira o essencial das suas propriedades. Por meio dela, torna-se

    presente o primeiro preceito do mtodo, que impe que se lute por todos os meios contra a inclinao

    primria para pensar o mundo social de maneira realista ou, para dizer como Cassirer, substancialista.2 Quando falo em agentes me refiro a pessoas com determinado poder de ao e capaz de influirdecisivamente em um determinado campo (trata-se de jornalistas, polticos, funcionrios pblicos, os prprioschamados brincantes)

  • 8/3/2019 Traduo Artigo ACHAB

    2/4

    poltico3 (onde esto includos os funcionrios estatais) e o intelectual4 (agentes produtoresde explicaes e de ideologias sobre as manifestaes culturais).

    Esta inter-relao entre estes campos faz com que o bumba-meu-boi seja um

    produto hbrido, produzido tanto pelos brincantes, quanto pelos agentes do Estado, quantopor determinados intelectuais. Esta produo de um certo nvel da realidade, est inscritano nvel do discurso. H um discurso hegemnico que diz quais as manifestaes quedevem ser incentivadas (e a este incentivadas deve ser posto entre aspas, pois no sepode considerar bem um incentivo o que se faz), quais as caractersticas de taismanifestaes e at quais so aquelas dignas de existir. Como pretendo que fiqueexplicitado no final, o que se entende pela verdade do que seja bumba-meu-boi doMaranho um artefato, algo criado arbitrariamente, impondo-se sobre a realidade,negando algumas coisas e criando outras.

    A prtica de concesso de incentivos financeiros a grupos de bumba-meu-boioriginou-se como uma prtica sistemtica de poltica estatal por volta dos anos 1960.

    quando um rgo especfico do Governo do Estado, a FURINTUR (Fundo de Incentivo aoTurismo e ao Artesanato do Maranho) depois chamada de MARATUR (EmpresaMaranhense de Turismo), sob uma orientao nacional do Governo Autoritrio ps-64,volta-se para o que na poca se entendia como folguedos folclricos, numa tentativa deus-los como a expresso da identidade nacional e maranhense5, para promoo do turismo.A partir da vemos uma srie de polticas serem implementadas para a atrao dos turistaspara ver o bumba-meu-boi e o tambor de crioula, consideradas legtimas manifestaes deuma suposta identidade maranhense. O Parque Folclrico da Vila Palmeira, conhecido nadcada de 70 como Parque da Maratur, foi um local construdo e administrado por aquelergo estatal para a promoo das apresentaes dos grupos, com afluncia de pblico locale turistas. Permaneceu como referncia para tais apresentaes at 1982, que quando, por

    causa de alguns problemas, a massa do pblico, a saber, os prprios maranhenses, deixa deir para l e comeam a frequentar os arraiais.

    importante salientar que somente depois desse uso de tais manifestaes comobjetivos eminentemente tursticos (o prprio fato da administrao de toda a festa serrealizada pela MARATUR atesta isso) o que bumba-boi, que antes no tinha para a

    3 Entendam que esta juno do burocrtico com o poltico primordial porque est sendo usada tambm comouma estenografia, na medida em que supe que o campo da representao poltica no Maranho se sustentasobre uma burocracia estatal que, para manter seus cargos dentro dos governos, reproduz a ideologia dosgovernantes. Implica dizer que, no Maranho, os altos funcionrios pblicos no servem populao, mas, aocontrrio, so a base de sustentao de quem est no poder. Trata-se de um sistema muito eficiente deapropriao do pblico como se fosse algo privado, o que se chama comumente de patrimonialismo. E isto sed tambm no nvel do funcionalismo pblico. Acredito que depende muito dele, inclusive.4 Talvez pudesse juntar tambm o campo intelectual ao que eu chamei de campo burocrtico-poltico, pois,alguns dos seus agentes so tambm funcionrios do Estado, ou j foram, ou de algum modo esto a eleligados. E mais, so estes agentes que tem o maior capital para falar, so eles que fazem entrevistas, publicamlivros. So eles que so ouvidos, enfim. E justamente deles a quem me refiro quando falo em agentesintelectuais. bom salientar que, parta ser intelectual aqui, voc tem que estar ligado a alguma agncia deconsagrao, tal como a AML Academia Maranhense de Letras, ou o IHGM Instituto Histrico eGeogrfico do Maranho, ou a CMF Comisso Maranhense de Folclore, ou mesmo a Universidade. Comrelao a esta ltima, as monografias de concluso de curso, e at trabalhos mais consistentes comodissertaes e teses, a respeito das manifestaes culturais tm reproduzido a ideologia dominante.5 A ideologia pregada pelos governos autoritrios ps-64 era de que o Brasil se constitua uma unidade nadiversidade, com distintas manifestaes que caracterizariam o ser do povo brasileiro. Para uma discusso arespeito, cf.: Ortiz (1994).

  • 8/3/2019 Traduo Artigo ACHAB

    3/4

    populao expresso igual existente durante o perodo, passa por um processo queculminaria na eleio do fenmeno que ns hoje conhecemos. Comeam a surgir os gruposmais significativos, alguns gravam os seus primeiros LPs, surgem espetculos teatrais cujo

    tema o auto do boi, surgem grupos de orquestra, a necessidade de cadastrar os grupos,programas de rdio e televiso sobre ele.

    No entanto, o que se desenvolveu no bojo disto tudo foi uma concepo utilitaristada manifestao que perdura at hoje. No interessava o sentimento dos grupos com relao sua manifestao, no interessava tambm uma poltica de cultura que primasse pelavalorizao dos grupos tomados individualmente, de modo a evitar que, nodesenvolvimento acelerado desta nova configurao, alguns grupos menos preparados paraisto sucumbissem e perdessem muitos dos aspectos de seu patrimnio imaterial (ao dizeristo no me refiro a alguma noo de tradio). Nesta discusso, o que eu chamo aqui dedepoimento do Boi da Madre Deus extremamente relevante. Quem conhece a trajetria doBoi da Madre Deus sabe que, at a dcada de 80, este grupo exerceu uma influncia muito

    grande, comparvel, guardadas as devidas propores e as evolues tecnolgicas, ao que sentido hoje com relao ao Boi da Maioba. Foi o primeiro a gravar LP; era o maisrequisitado, o mais noticiado, possua uma relao com o poder estatal. No entanto, comonum passe de mgica, em 1981 ele comea a apresentar sinais de decadncia. Isto estdocumentado em jornais da capital. E o que parece mais interessante que crnicas do anoimediatamente posterior mostram-no como o grupo mais expressivo do que era entendidocomo a manifestao por excelncia da cultura popular do Maranho.

    O que se pode entender por isto? Como o fruto de uma poltica que se serve dasmanifestaes culturais apenas para atender a seus objetivos imediatos, a saber: a promoodo turismo. No importa o que acontea a alguns desses grupos. Os outros garantem amanuteno da festa.

    A nica coisa que eu poderia afirmar que mudou dos anos 60 para c foi o fato daincluso na lista de interesses dos que dizem promover as manifestaes culturais domarketing poltico. De alguns poucos anos para c, estar ligado s manifestaes culturaistem sido entendido como uma moeda na conquista de votos ou do status poltico. Uma dospilares da popularidade da ex-Governadora Roseana Sarney no Maranho, talvez esteja nasua ligao com a chamada cultura popular. Outro aspecto deste campo o modo deincentivo, que se d via pagamento de cach, tornando o Estado um comprador quandodevia ser o incentivador. Isto cria uma concorrncia nociva entre os grupos. Os efeitos dissose fazem sentir em muitos deles, que so, sob certo ponto, marginalizados.

    Para fugir marginalizao, os grupos, que so os representantes do campo cultural,tm adotado vrias estratgias. Dentre elas, temos a produo de discursos sobre o valor de

    uma suposta tradio combinadas com prticas que valorizam elementos modernos. Talcontradio revela que os grupos se encontram em um ambiente utilitrio, onde elesprecisam responder s necessidades de seu pblico e de seus compradores para podercontinuar existindo. H uma dominao, embora o discurso seja o de promoo dasmanifestaes. Os grupos se enquadram em um jogo que, para tirar vantagens, precisam seenquadrar a normas criadas externamente.

    Outra faceta desta inter-relao entre esses campos se d a partir da contribuio docampo intelectual. Este ltimo foi responsvel pelo efeito mais perverso e mais destruidordas prticas culturais no Estado. Graas a uma srie de autores, reprodutores da mesmaideologia um aps o outro, centenas de grupos no interior do Maranho esto relegados inexistncia. porque, para ser considerado grupo de bumba-meu-boi no Maranho, o

  • 8/3/2019 Traduo Artigo ACHAB

    4/4

    grupo deve estar includo numa classificao realizada desde a dcada de 1960 por autoresque, aspirando a uma legitimidade conferida categoria dos intelectuais, registraram comocaractersticas primordiais da manifestao caracteres de grupos que se apresentavam no

    contexto de So Lus, generalizando-os ao interior do Estado. Tomando-se o mapa doMaranho na busca dos grupos enquadrados nos chamados sotaques6, a regio em que estesgrupos aparecem compreende a Ilha de So Lus e uma faixa que imediatamente a circunda. como se o sul do Maranho no tivesse produzido nenhum tipo de bumba-meu-boi. E omais instigante que o ciclo do gado, que dizem ter dado origem manifestao deu-se apartir do sul do Estado. Temos um discurso contraditrio, porm eficiente.

    O discurso que elegeu estas caractersticas para o bumba-meu-boi do Maranhoreduz a manifestao a caractersticas que so apenas a menor parte de toda a sua riqueza.No interior do Estado, o bumba-boi est presente o ano inteiro na vida das pessoas, emconversas, rodas de bares, em festas (s para citar um exemplo, existe uma festa emBacurituba, com centenas de grupos de bumba-meu-boi que acontece em outubro, e h

    grupos do interior do Estado que se apresentam no Natal e h indcios de outros noCarnaval). A variedade de grupos maior do que a que se apresenta em So Lus.

    No entanto, por conta de um discurso hegemnico que consagrou determinadascaractersticas, qualquer tentativa destes grupos de vir existncia entendida comoinovao. Tentaram fazer isso com os grupos de baixada e costa de mo na dcada de 70quando apareceram por aqui. H registros jornalsticos de um destes intelectuais, na pocafuncionrio do Estado, dizendo claramente que estes grupos eram inovaes.

    O que eu gostaria de colocar a vocs para pensarmos juntos o que se pode fazerpara impedir que as polticas de turismo revestidas de um carter de polticas culturaisagridam ainda mais o patrimnio imaterial das manifestaes culturais, patrimnio que nosso, e que precisamos preservar. O que faremos com o clima de competio criado desde

    a dcada de 60 em So Lus, que obrigou os grupos mudarem radicalmente seus modos demanifestar-se e colocou determinados grupos em posio inferior a outros? Que polticasimplementar numa tentativa de contemplar os grupos do interior do Estado ainda nototalmente maculados pela ao predatria das polticas implementadas pelo Governoatualmente? Talvez fosse necessrio ao Governo Federal criar uma legislao que probaprticas abusivas dos Estados, visando a garantia da propriedade intelectual dos grupos, ademocratizao dos recursos. O Estado Autoritrio, h vrias dcadas, cedeu redemocratizao. Em muitos aspectos, o Maranho parece, s vezes, viver ainda no regimemilitar.

    REFERNCIAS

    BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

    ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. So Paul: Brasiliense, 1994.

    6 O campo intelectual registra atualmente a existncia de 5 sotaques: matraca, zabumba, orquestra, baixada ecosta de mo.