Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo. Reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural

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    Nilma Lino Gomes

    40 Set/Out/Nov/Dez 2002 N 21

    Trajetrias escolares, corpo negro e cabelocrespo: reproduo de esteretipos ou

    ressignificao cultural?Nilma Lino Gomes

    Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educao

    Muito se tem discutido sobre a importncia da

    escola como instituio formadora no s de saberes

    escolares como, tambm, sociais e culturais. Tendo isso

    em vista, alguns estudiosos do campo da educao e

    da cultura tm destacado o peso da cultura escolar no

    processo de construo das identidades sociais, enfati-

    zando a escola como mais um espao presente na cons-

    truo do complexo processo de humanizao (Arroyo,

    2000; Bruner, 2001). Por essa perspectiva, a institui-

    o escolar vista como um espao em que aprende-

    mos e compartilhamos no s contedos e saberes es-

    colares, mas tambm valores, crenas, hbitos e

    preconceitos raciais, de gnero, de classe e de idade.

    Aos poucos, os educadores e as educadoras vminteressando-se cada vez mais pelos estudos que arti-

    culam educao, cultura e relaes raciais. Temas

    como a representao do negro nos livros didticos, o

    silncio sobre a questo racial na escola, a educao

    de mulheres negras, relaes raciais e educao in-

    fantil, negros e currculo, entre outros, comeam a

    ser incorporados na produo terica educacional.

    Porm, apesar desses avanos, ainda nos falta equa-

    cionar alguns aspectos e compreender as muitas

    nuances que envolvem a questo racial na escola,

    destacando os mitos, as representaes e os valores,

    em suma, as formas simblicas por meio das quais

    homens e mulheres, crianas, jovens e adultos negros

    constroem a sua identidade dentro e fora do ambiente

    escolar.

    Lamentavelmente, nem sempre damos a essas

    dimenses simblicas a devida ateno dentro do

    ambiente escolar e, quando o fazemos, nem sempre

    as consideramos dignas de investigao cientfica e

    merecedoras de um trato pedaggico. Dessa forma,

    um dos caminhos para a ampliao do estudo da ques-

    to racial no campo da educao, na tentativa de com-

    preender a sua relao com o universo simblico, podeser a construo de um olhar mais alargado sobre a

    educao como processo de humanizao, que inclua

    e incorpore os processos educativos no-escolares.

    Poderemos, ento, captar as impresses, representa-

    es e opinies dos sujeitos negros sobre a escola, ele-

    gendo, com base nesses dados, temticas que nem sem-

    pre so destacadas em nosso campo de atuao e que

    mereceriam um estudo mais profundo. A relao do

    negro com o corpo e o cabelo uma dessas temticas.

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    Mas como captar as impresses e representaes

    do negro sobre o prprio corpo, articulando-as com

    as experincias escolares e no escolares? Esta no

    uma tarefa fcil, porm no impossvel. Um dos

    caminhos para a sua realizao poder ser o desen-

    volvimento de uma escuta atenta, por parte dos edu-

    cadores e das educadoras, ao que os negros e as ne-

    gras tm a dizer sobre as suas vivncias corpreas

    dentro e fora dos muros da escola. Ao desenvolver-

    mos a pesquisa Corpo e cabelo como cones de cons-

    truo da beleza e da identidade negra nos sales

    tnicos de Belo Horizonte (Gomes, 2002), para a rea-

    lizao do doutorado em antropologia social,1 vrias

    depoentes, ao reportarem-se ao corpo, relembraram

    momentos significativos da sua histria de vida, dan-do um destaque especial trajetria escolar. Para es-

    sas pessoas, na sua maioria mulheres negras jovens e

    adultas, na faixa dos 20 aos 60 anos, a experincia

    com o corpo negro e o cabelo crespo no se reduz ao

    espao da famlia, das amizades, da militncia ou dos

    relacionamentos afetivos. A trajetria escolar apare-

    ce em todos os depoimentos como um importante

    momento no processo de construo da identidade

    negra e, lamentavelmente, reforando esteretipos e

    representaes negativas sobre esse segmento tni-co/racial e o seu padro esttico. O corpo surge, en-

    to, nesse contexto, como suporte da identidade ne-

    gra, e o cabelo crespo como um forte cone identitrio.

    Ser que ao pensarmos a relao entre currculo, mul-

    ticulturalismo e relaes raciais e de gnero, levamos

    em conta a radicalidade dessas questes?

    Na instituio escolar, assim como na socieda-

    de, ns comunicamos-nos por meio do corpo. Um cor-

    po que construdo biologicamente e simbolicamen-

    te na cultura e na histria. A antropologia mostra-nos

    que as singularidades culturais so dadas no somen-

    te pelas dimenses invisveis das relaes humanas.

    So dadas, tambm, pelas posturas, pelas predisposi-

    es, pelos humores e pela manipulao de diferen-

    tes partes do corpo. Por isso, a articulao entre edu-

    cao e antropologia poder trazer-nos novas luzessobre o estudo das relaes raciais e apontar-nos no-

    vos temas por meio dos quais a trama na qual a traje-

    tria escolar tecida desenvolve-se de maneira lenta

    e complexa.

    O corpo fala a respeito do nosso estar no mundo,

    pois a nossa localizao na sociedade d-se pela sua

    mediao no espao e no tempo. Estamos diante de

    uma realidade dupla e dialtica: ao mesmo tempo que

    natural, o corpo tambm simblico. Ele pode ser a

    referncia revolucionria da universalidade do ho-mem no contraponto crtico e contestador coisifica-

    o da pessoa e explorao do homem pelo homem

    na mediao das coisas (Martins, 1999, p. 54).

    As diferentes crenas e sentimentos, que consti-

    tuem o fundamento da vida social, so aplicadas ao

    corpo. Temos, ento, no corpo, a juno e a sobrepo-

    sio do mundo das representaes ao da natureza e

    da materialidade. Ambos coexistem de maneira si-

    multnea e separada. Por isso, no podemos apagar

    do corpo os comportamentos e motivaes orgnicas

    que se fazem presentes em todos os seres humanos,

    em qualquer tempo e lugar. A fome, o sono, a fadiga

    do corpo, o sexo so motivaes biolgicas s quais a

    cultura atribui uma significao especial e diferente.

    a cultura que, sua maneira, inibir ou exaltar

    esses impulsos, selecionando dentre todos quais se-

    ro os inibidos, quais sero os exaltados e ainda quais

    sero os considerados sem importncia e, portanto,

    1 Os espaos pesquisados nos quais o cabelo crespo a prin-

    cipal matria-prima so quatro sales tnicos da cidade de Belo

    Horizonte. Deles emergem concepes semelhantes, diferentes e

    complementares sobre a beleza negra e a condio do negro na

    sociedade brasileira. Dois deles localizam-se no centro da cida-

    de e os outros dois em bairros bem prximos dessa regio.

    Os sujeitos da pesquisa so 28 mulheres e homens negros.

    Destes, 17 so mulheres e 11 so homens. So jovens e adultos, da

    faixa etria dos 20 aos 60 anos. Dentre estes destacam-se as cabe-

    leireiras e os cabeleireiros dos quais cinco so mulheres e quatro

    so homens. Do total de cabeleireiras/os, seis so proprietrias/os

    e as/os outras/os so funcionrias/os de confiana. A parte mais

    intensa da etnografia, com um acompanhamento dirio de cada

    salo, iniciou-se em agosto/setembro de 1999 e terminou em ja-

    neiro de 2001. O trabalho estendeu-se at 2002, porm, nesse pe-

    rodo, a ida ao campo tornou-se mais esparsa.

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    tendero a permanecer desconhecidos. Assim, a cul-

    tura dita normas em relao ao corpo, s quais o indi-

    vduo tender a conformar-se custa de castigos e

    recompensas, at o ponto de estes padres de com-

    portamento apresentarem-se to naturais quanto o

    desenvolvimento dos seres vivos ou o pr-do-sol

    (Rodrigues, 1986, p. 45).

    Quando pensamos nos africanos escravizados

    e trazidos para o Brasil, sempre vem nossa mente

    o processo de coisificao do escravo materializa-

    do nas relaes sociais daquele momento histrico.

    Esse processo se objetivava no s na condio es-

    crava, mas na forma como os senhores se relaciona-

    vam com o corpo dos escravos e como os tratavam:

    os castigos corporais, os aoites, as marcas a ferro,a mutilao do corpo, os abusos sexuais so alguns

    exemplos desse tratamento. Mesmo diante de tal si-

    tuao, em que a liberdade oficial estava condicio-

    nada carta de alforria, os escravos e as escravas

    desenvolveram as mais diversas formas de rebelio,

    de resistncia e de busca da liberdade. Naquele con-

    texto, a manipulao do corpo, as danas, os cultos,

    os penteados, as tranas, a capoeira, o uso de ervas

    medicinais para cura de doenas e cicatrizao das

    feridas deixadas pelos aoites foram maneiras es-pecficas e libertadoras de trabalhar o corpo. Por esses

    costumes possvel percebermos o corpo como uma

    referncia revolucionria da universalidade do ho-

    mem, apontada por Martins (1999, p. 54). Se o cor-

    po fala a respeito do nosso estar no mundo, a rela-

    o histrica do escravo com o corpo expressa muito

    mais do que a idia de submisso, insistentemente

    pregada pela sociedade da poca e que ecoa at hoje

    em nossos ouvidos. Ser que a escola tem dado uma

    outra leitura a essa relao? Ou as crianas negras e

    brancas, quando estudam a questo racial, ainda par-

    ticipam da representao do corpo negro apenas como

    um corpo aoitado e acorrentado? Ser que hoje,

    em pleno terceiro milnio, os livros didticos e as

    discusses sobre a histria do negro no Brasil reali-

    zadas pela escola destacam que o corpo negro, des-

    de a poca da escravido, sempre foi um corpo con-

    testador?

    Durante sculos de escravido, a perversidade do

    regime escravista materializou-se na forma como o

    corpo negro era visto e tratado. A diferena impressa

    nesse mesmo corpo pela cor da pele e pelos demais

    sinais diacrticos serviu como mais um argumento para

    justificar a colonizao e encobrir intencionalidades

    econmicas e polticas. Foi a comparao dos sinais

    do corpo negro (como o nariz, a boca, a cor da pele e

    o tipo de cabelo) com os do branco europeu e coloni-

    zador que, naquele contexto, serviu de argumento para

    a formulao de um padro de beleza e de fealdade

    que nos persegue at os dias atuais. Ser que esse

    padro est presente na escola? A existncia de um

    padro de beleza que prima pela brancura, numa

    sociedade miscigenada como a nossa, afeta ou no anossa vida nas diferentes instituies sociais em que

    vivemos? Essas representaes esto presentes na es-

    cola? Como?

    A relao do homem com o corpo pautada por

    um imperioso processo de alterao. Manipular, ador-

    nar, alterar, pintar, escarificar, tatuar, cortar so aes

    que fazem parte da dinmica cultural e dos diferentes

    rituais de toda e qualquer sociedade. medida que o

    corpo vai sendo tocado e alterado, ele submetido a

    um processo de humanizao e desumanizao. Aexperincia corporal sempre modificada pela cultu-

    ra, segundo padres culturalmente estabelecidos e

    relacionados busca de afirmao de uma identidade

    grupal especfica. Segundo Queiroz e Otta (2000),

    marcas deixadas por escarificaes, perfuraes, ta-

    tuagens e mesmo algumas mutilaes (circunciso,

    extrao de clitris etc.) so sinais de pertinncia, de

    identidade social, ao mesmo tempo que assinalam a

    condio tida por autenticamente humana daqueles

    que a exibem(p. 21).

    O corpo evidencia diferentes padres estticos e

    percepes de mundo. Pinturas corporais, penteados,

    maquiagem adquirem, dentro de grupos culturais es-

    pecficos, sentidos distintos para quem os adota e sig-

    nificados diferenciados de uma cultura para outra. E

    justamente o olhar sobre o corpo negro na escola

    que nos leva a considerar como professores/as e alu-

    nos/as negros e brancos lidam com dois elementos

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    construdos culturalmente na sociedade brasileira

    como definidores do pertencimento tnico/racial dos

    sujeitos: a cor da pele e o cabelo.

    Destacaremos, neste trabalho, de maneira es-

    pecial, o peso da trajetria escolar na conformao

    da identidade negra, dos sentimentos e das impres-

    ses sobre o cabelo crespo na vida de mulheres ne-

    gras jovens e adultas que freqentam sales de be-

    leza tnicos. Parto do pressuposto de que a maneira

    como a escola, assim como a nossa sociedade, vem

    o negro e a negra e emitem opinies sobre o seu

    corpo, o seu cabelo e sua esttica deixa marcas pro-

    fundas na vida desses sujeitos. Muitas vezes, s quan-

    do se distanciam da escola ou quando se deparam

    com outros espaos sociais em que a questo racial tratada de maneira positiva que esses sujeitos

    conseguem falar sobre essas experincias e emitir

    opinies sobre temas to delicados que tocam a sua

    subjetividade.

    O discurso pedaggico, ao privilegiar a questo

    racial, no gira somente em torno de conceitos, disci-

    plinas e saberes escolares. Fala sobre o negro na sua

    totalidade, refere-se ao seu pertencimento tnico,

    sua condio socioeconmica, sua cultura, ao seu

    grupo geracional, aos valores de gnero etc. Tudo issose d de maneira consciente e inconsciente. Muitas

    vezes, por intermdio desse discurso que estereti-

    pos e preconceitos sobre o corpo negro so reprodu-

    zidos. Ser que eles so superados?

    O discurso pedaggico proferido sobre o negro,

    mesmo sem referir-se explicitamente ao corpo, abor-

    da e expressa impresses e representaes sobre esse

    corpo. O cabelo tem sido um dos principais smbolos

    utilizados nesse processo, pois desde a escravido tem

    sido usado como um dos elementos definidores do

    lugar do sujeito dentro do sistema de classificao

    racial brasileiro.

    Essa situao no se restringe ao discurso. Ela

    impregna as prticas pedaggicas, as vivncias esco-

    lares e socioculturais dos sujeitos negros e brancos.

    um processo complexo, tenso e conflituoso, e pode

    possibilitar tanto a construo de experincias de dis-

    criminao racial quanto de superao do racismo.

    Cabelo e trajetria de vida

    As experincias do negro em relao ao cabelo

    comeam muito cedo. Mas engana-se quem pensa que

    tal processo inicia-se com o uso de produtos qumi-

    cos ou com o alisamento do cabelo com pente ou fer-

    ro quente. As meninas negras, durante a infncia, so

    submetidas a verdadeiros rituais de manipulao do

    cabelo, realizados pela me, tia, irm mais velha ou

    pelo adulto mais prximo. As tranas so as primei-

    ras tcnicas utilizadas. Porm, nem sempre elas so

    eleitas pela ento criana negra hoje, uma mulher

    adulta como o penteado preferido da infncia.

    Talvez esse seja um dos motivos pelos quais al-

    gumas dessas mulheres prefiram adotar alisamentose alongamentos na atualidade. A sensao de ter o

    cabelo constantemente desembaraado e de no pre-

    cisar sofrer as presses do pente ou os puxes para

    destranar o cabelo foram comentrios constantes,

    durante as entrevistas, acompanhados de expresses

    de alvio; quando o assunto era o uso das tranas du-

    rante a infncia, sempre ouvamos uma infinidade de

    reclamaes:

    Eu odiava! Minha me fazia quatro tranas e junta-

    va de duas a duas no alto da minhacabea!2 (N.U., 26 anos,

    cabeleireira tnica)

    Puxava tanto o meu cabelo para ele ficar ajeitadinho

    que at esticava os meus olhos. Parecia uma japonesa pre-

    ta! (J., 23 anos, cabeleireira tnica)

    No, nem sempre fui de bem com o meu cabelo,

    no... desde criana, no. Porque era aquele problema de

    puxar, tranar, aquela coisa toda. No tinha alisamento,

    ento, na hora de mame pentear o cabelo, era um drama.

    A, depois, j mocinha, que eu fui me cuidando, aquela

    coisa toda que mudou. Mas de criana, no, eu chorava,

    no gostava de pentear o cabelo porque doa, puxava da-

    qui, puxava dali, mas depois... depois ficou bom. E est at

    agora... (S.A, 51, anos auxiliar de escritrio)

    2 Na transcrio das entrevistas e de trechos do dirio de

    campo, todos os grifos so meus.

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    Minha me, pra pentear o cabelo, ela quase matava

    a gente. Fazia aquelas trancinhas. A gente... eu ficava com

    a cabea toda doendo. Hoje em dia no tem isso mais, no

    ? Veja minha filha, olha o cabelo dela e olha o meu na

    poca dela, no tem nem comparao. Hoje em dia est

    bom para o lado da pessoa negra, porque antigamente...

    nossa! Quando no era aquele ferro quente, pente quente

    que passavam no cabelo da gente, passavam aquele neg-

    cio. Ficava at bonito, mas depois... caia uma poeirinha,

    nossa, ficava um horror. Isso foi at eu atingir a minha ida-

    de de adulta. No tinha opo. Tinha que usar isso mesmo.

    Agora que apareceu cabelo de tudo quanto jeito. (M., 25

    anos, dona de casa)

    O uso de tranas uma tcnica corporal queacompanha a histria do negro desde a frica. Po-

    rm, os significados de tal tcnica foram alterados no

    tempo e no espao. Nas sociedades ocidentais con-

    temporneas, algumas famlias negras, ao arrumarem

    o cabelo das crianas, sobretudo das mulheres, fazem-

    no na tentativa de romper com os esteretipos do ne-

    gro descabelado e sujo. Outras fazem-no simplesmen-

    te como uma prtica cultural de cuidar do corpo. Mas,

    de um modo geral, quando observamos crianas ne-

    gras tranadas, notamos duas coisas: a variedade detipos de tranas e o uso de adereos coloridos. Tal

    prtica explicita a existncia de um estilo negro de

    pentear-se e adornar-se, o qual muito diferente das

    crianas brancas, mesmo que estas se apresentem en-

    feitadas. Essas situaes ilustram a estreita relao entre

    o negro, o cabelo e a identidade negra. A identidade

    negra compreende um complexo sistema esttico.

    Depois de adultas, muitas mulheres negras recon-

    ciliam-se com as tranas. Agora, porm, elas apresen-

    tam-se estilizadas, desde as chamadas tranas africa-

    nas ou agarradinhas, que formam desenhos engenhosos

    no couro cabeludo, at as jamaicanas, de diferentes

    comprimentos. Esses penteados so tambm usados

    pelos homens, porm com menor freqncia.

    Mesmo que reconheamos que a manipulao do

    cabelo seja uma tcnica corporal e um comportamen-

    to social presente nas mais diversas culturas, para o

    negro, e mais especificamente para o negro brasilei-

    ro, esse processo no se d sem conflitos. Estes em-

    bates podem expressar sentimentos de rejeio, acei-

    tao, ressignificao e, at mesmo, de negao ao

    pertencimento tnico/racial. As mltiplas representa-

    es construdas sobre o cabelo do negro no contexto

    de uma sociedade racista influenciam o comportamen-

    to individual. Existem, em nossa sociedade, espaos

    sociais nos quais o negro transita desde criana, em

    que tais representaes reforam esteretipos e inten-

    sificam as experincias do negro com o seu cabelo e

    o seu corpo. Um deles a escola.

    Uma vez... tenho muito cabelo, mas antes eu tinha

    mais... e sempre assim, at uns sete anos pra nove anos, eu

    no tinha problema com cabelo, porque minhas tias, comoeu te falei, mexiam com cabelo. Ento, cada dia eu ia

    arrumadinha para o colgio. Tinha vez que minha tia alisava

    o meu cabelo, quando eu alisava no cortava mais, a ele

    ficava grande! Minha tia alisava o meu cabelo, tinha dia que

    eu ia de trancinha, assim, agarradinha. Tinha vez que ela

    fazia as trancinhas acima, assim. Meu cabelo era grande, a

    as trancinhas ficavam lindas, colocava bolinha. A gente en-

    chia de bolinha assim, mianguinha. Eu colocava, ficava

    balanando, todo mundo achava lindo. Eu era sempre baixi-

    nha, sempre miudinha. [...] Do grupo inteiro, todo mundo at

    hoje tem retrato meu l no grupo que eles guardam. E no

    tinha problema no, sabe? Eles me chamavam de neguinha,

    s vezes os meninos mexiam comigo, mas eu no ligava, no.

    Eu no ligava, eu gostava do jeito que eu era. Eu fui... me

    acostumei comigo, me acostumei com o que eu era, com mi-

    nha raa. Ento, me acostumei e no ligava, no, mas o pes-

    soal mexia. Isso a eu tirava de... ao p da letra. No me

    atrapalhava, no. Eu gostava mesmo. Ento, minha tia, quan-

    do arrumava o meu cabelo, nossa, eu ficava toda metida.

    Cada dia um penteado, nossa, eu achava o mximo, princi-

    palmente porque chamava muita ateno. As pessoas acha-

    vam lindo o penteado... (J., 23 anos, cabeleireira)

    Bom, a minha me, ela sempre cuidou, quando ela

    cuidava do meu cabelo, ela usava muita trancinha... ento

    colocava aquele tanto de badulaque e tal. A os meninos fi-

    cavam assim... olhando, olhava porque colocava aquilo e

    tal. Mas apelido, essas coisas, no, at que muita gente co-

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    meou a aderir tambm. Tinha muita menininha da minha

    idade e tal, tambm que as mes colocavam tranas. At

    porque os professores pediam pra evitar piolho, n, esse tipo

    de coisa, ento, eu num... eu nunca tive problema, no. Nun-

    ca tive, graas a Deus! (AD., 25 anos, auxiliar de escritrio)

    Na infncia eu me senti assim, uma verdadeira ja-

    ponesa negra, n?... Minha me apertava tanto a minha

    trancinha, pra ir pra aula eu usava trancinha. Sabe aque-

    las trancinhas que faz tipo gominho, emendando uma na

    outra? Ento eu sofria, apertava demais, eu sofria muito.

    (N.U., 26 anos, cabeleireira)

    Se antes a aparncia da criana negra, com sua

    cabeleira crespa, solta e despenteada, era algo comumentre a vizinhana e coleguinhas negros, com a entra-

    da para a escola essa situao muda. A escola impe

    padres de currculo, de conhecimento, de comporta-

    mentos e tambm de esttica. Para estar dentro da

    escola preciso apresentar-se fisicamente dentro de

    um padro, uniformizar-se. A exigncia de cuidar da

    aparncia reiterada, e os argumentos para tal nem

    sempre apresentam um contedo racial explcito.

    Muitas vezes esse contedo mascarado pelo apelo

    s normas e aos preceitos higienistas. Existe, no inte-rior do espao escolar, uma determinada representa-

    o do que ser negro, presente nos livros didticos,

    nos discursos, nas relaes pedaggicas, nos cartazes

    afixados nos murais da escola, nas relaes profes-

    sor/a e aluno/a e dos alunos/as entre si. Estudos como

    o de Gonalves (1985) apontam para que na maioria

    das vezes a questo racial existe na escola por meio

    da sua ausncia e do seu silenciamento.

    Na escola tambm se encontra a exigncia de ar-

    rumar o cabelo, o que no novidade para a famlia

    negra. Mas essa exigncia, muitas vezes, chega at essa

    famlia com um sentido muito diferente daquele atri-

    budo pelas mes ao cuidarem dos seus filhos e filhas.

    Em alguns momentos, o cuidado dessas mes no con-

    segue evitar que, mesmo apresentando-se bem pentea-

    da e arrumada, a criana negra deixe de ser alvo das

    piadas e apelidos pejorativos no ambiente escolar. Al-

    guns se referem ao cabelo como: ninhode guacho,

    cabelo de bombril, nega do cabelo duro, cabelo

    de picum! Apelidos que expressam que o tipo de

    cabelo do negro visto como smbolo de inferiorida-

    de, sempre associado artificialidade (esponja de

    bombril) ou com elementos da natureza (ninho de pas-

    sarinhos, teia de aranha enegrecida pela fuligem).

    Esses apelidos recebidos na escola marcam a his-

    tria de vida dos negros. So, talvez, as primeiras

    experincias pblicas de rejeio do corpo vividas na

    infncia e adolescncia. A escola representa uma aber-

    tura para a vida social mais ampla, em que o contato

    muito diferente daquele estabelecido na famlia, na

    vizinhana e no crculo de amigos mais ntimos. Uma

    coisa nascer criana negra, ter cabelo crespo e viver

    dentro da comunidade negra; outra coisa ser crian-a negra, ter cabelo crespo e estar entre brancos.

    A experincia da relao identidade/alteridade

    coloca-se com maior intensidade nesse contato fam-

    lia/escola. Para muitos negros, essa uma das pri-

    meiras situaes de contato intertnico. de onde

    emergem as diferenas e se torna possvel pensar um

    ns criana e famlia negra em oposio aos

    outros colegas e professores/as brancos. Embora

    o discurso que condiciona a discriminao do negro

    sua localizao na classe social ainda seja predomi-nante na escola, as prticas cotidianas mostram para

    a criana e para o adolescente negro que o status so-

    cial no determinado somente pelo emprego, renda

    e grau de escolaridade, mas tambm pela posio da

    pessoa na classificao racial.

    Pertencer ou no a um segmento tnico/racial faz

    muita diferena nas relaes estabelecidas entre os su-

    jeitos da escola, nos momentos de avaliao, nas ex-

    pectativas construdas em torno do desempenho esco-

    lar e na maneira como as diferenas so tratadas.

    Embora atualmente os currculos oficiais aos poucos

    incorporem leituras crticas sobre a situao do negro,

    e alguns docentes se empenhem no trabalho com a ques-

    to racial no ambiente escolar, o cabelo e os demais

    sinais diacrticos ainda so usados como critrio para

    discriminar negros, brancos e mestios. A questo da

    expresso esttica negra ainda no considerada um

    tema a ser discutido pela pedagogia brasileira.

  • 8/8/2019 Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo. Reproduo de esteretipos ou ressignificao cultural

    7/13

    Nilma Lino Gomes

    46 Set/Out/Nov/Dez 2002 N 21

    Os sinais diacrticos operam como demarcadores

    da diferena. Quanto mais aumentam as vivncias da

    criana negra fora do universo familiar, quanto mais

    essa criana ou adolescente insere-se em crculos so-

    ciais mais amplos, como o caso da escola, mais

    manifesta-se a tenso vivida pelos negros na relao

    estabelecida entre a esfera privada (vida familiar) e a

    pblica (relaes sociais mais amplas).

    So nesses espaos que as oportunidades de com-

    parao, a presena de outros padres estticos, estilos

    de vida e prticas culturais ganham destaque no coti-

    diano da criana e do/a adolescente negros, muitas ve-

    zes de maneira contrria quela aprendida na famlia.

    Em alguns casos, o cuidado da me, a maneira como

    a criana vista no meio familiar, que lhe possibilitama construo de uma auto-representao positiva sobre

    o ser negro/a e a elaborao de alternativas particula-

    res para lidar com o cabelo crespo. Diante disso, pode-

    mos inferir que saber lidar, manusear e tratar do cabelo

    crespo est intimamente associado a estratgias indi-

    viduais de construo da identidade negra.

    Pra minha felicidade, a minha relao pessoa, mu-

    lher e o meu cabelo crespo foi tima pelo fato de ter tido a

    minha me, que uma cabeleireira conceituada a j no

    mercado afro, que cuidou sempre do meu cabelo, eu nunca

    sofri. E ela tentou fazer com que eu nunca passasse em

    situaes que ela passou com o cabelo crespo, com a difi-

    culdade que ela teve com o cabelo dela. Ento, assim, eu

    nunca tive problemas com alisamento, a vida inteira alisei

    o cabelo. Nunca tive aqueles problemas famosos com quei-

    maduras e tudo mais. Sempre tive o meu cabelo saudvel.

    (F.A., 26 anos, cabeleireira)

    A reao de cada pessoa negra diante do precon-

    ceito muito particular. Essa particularidade est in-

    timamente ligada construo da identidade negra e

    s possibilidades de socializao e de informao.

    Como nos disse uma depoente, muitas vezes as pes-

    soas so preconceituosas por causa da desinforma-

    o. Elas precisam ser reeducadas:

    Tenho amadurecimento pra isso. Ento, essa ques-

    to da histria do cabelo muito em funo disso. Minha

    irm, ela trabalhava na Usiminas, ento ela tinha mais con-

    tatos... no muito com negros, mas com pessoas que tinham

    outra viso, que davam outro tipo de incentivo. E eu custei

    a cair, vamos dizer assim, no vou chamar de mundo real,

    no, mas a encontrar essa histria do negro pra me identi-

    ficar legal. Acho que por isso que foi esse processo... lento!

    No sei... foi esse processo passo a passo. E eu estou aqui:

    cabelo maravilhoso! Que eu amo... e eu ainda achei inte-

    ressante que... quando eu solto ele assim todo mundo fica

    escandalizado. [risos] A um dia eu fui na padaria e a meni-

    na olhou pro meu cabelo: Por que c num corta seu cabe-

    lo? [risos] Eu achei to fantstico! Por que c num corta

    seu cabelo? Eu falei assim: Porque eu gosto dele as-

    sim, de uma forma muito tranqila... E eu achei legal que

    ela virou e falou assim: Deve dar muito trabalho! Naviso dela, para eu colocar o meu coque assim, simples-

    mente amarrar... A, ningum entende esse coque no meu

    cabelo e todo mundo fica... principalmente os brancos, que

    no sabem como que o simples amarrado. Todo mundo

    quer pegar e ver. Como que seu cabelo fica assim, pra

    cima? Entendeu? Ento, o porqu... porque ns sabemos

    como que ele fica pra cima, mas as pessoas que olham...

    Gente!... so inmeras as pessoas... s vezes a cabeleireira

    B. at me chama a ateno por causa disso, que as pessoas

    querem pegar, ver. diferente. Como que c faz pro seu

    cabelo ficar armado dessa forma? Ento eu explico que o

    meu cabelo crespo, que ele no liso, por isso que ele fica

    pra cima, se eu alisasse com certeza ele cairia. E eu amar-

    ro... A que as pessoas: Ah, ento ele t amarrado, n? Na

    cabea das pessoas, eu acho que elas no conseguem ver

    que eu jogo esse cabelo todo pra cima e amarro. E a eu

    achei interessante... e a ela comentou: Ah, no, isso assim

    d muito trabalho. A eu expliquei pra ela que no dava

    trabalho... a eu mostrei pra ela: Olha, t vendo, ele t amar-

    rado. s eu pentear... Ainda olhei pra ela e falei assim:

    Tem como pentear!!! Eu penteio meu cabelo... e amarro.

    E ao invs de amarrar ele pra baixo como as pessoas tm o

    costume de amarrar, amarro ele pra cima. T diferente, s

    voc perguntar! [gargalhadas] Mas claro, fico bem tran-

    qila, porque eu acho legal as pessoas terem essa liberdade

    de questionar. Porque se de repente entro numa de... porque

    meu cabelo assim, eu quero assim, pronto e acabou e

    voc no tem nada com isso... A pessoa nem sabe como o

    processo de um cabelo... do negro... E a a gente vai infor-

  • 8/8/2019 Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo. Reproduo de esteretipos ou ressignificao cultural

    8/13

    Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo

    Revista Brasileira de Educao 47

    mando de uma forma tranqila... porque uma informa-

    o. (D., 38 anos, contabilista)

    Embora existam aspectos comuns que remetem

    construo da identidade negra no Brasil, cada vez mais

    entende-se que, para discuti-la, precisamos sempre

    considerar como os sujeitos a constroem, no somente

    no nvel coletivo, mas tambm no individual. O mais

    difcil , aps conhecer essas estratgias individuais,

    interpret-las, no julg-las e nem classific-las como

    mais ou menos politizadas, mais ou menos corretas.

    Quem sabe, assim, compreenderemos como o negro

    constri a sua identidade nos seus prprios termos.

    H, ento, um campo mais ntimo que se refere

    esfera da subjetividade, que nem mesmo a interven-o familiar e um debate crtico produzido no espao

    da militncia ou da escola conseguem alcan-lo na

    sua totalidade. Isso no significa ignorar o peso da

    histria, da sociedade e da cultura, mas destacar que

    a subjetividade tambm tem a sua importncia no pro-

    cesso do tornar-se negro. A relao do negro com o

    cabelo nos aproxima dessa esfera mais ntima.

    nesse sentido que o olhar sobre a adolescncia

    dos sujeitos negros se faz importante. A adolescncia

    um dos momentos fortes na construo da subjeti-vidade negra. Alguns/mas depoentes, ao falarem so-

    bre a sua relao com o cabelo, relembraram as expe-

    rincias vividas nesse ciclo da vida e falaram da

    sensao de desencontro, de mal-estar e de descon-

    forto em relao ao seu tipo fsico, seu cabelo, sua

    pele e sua cor, vivida na adolescncia. Dependendo

    do sujeito e da sua forma de lidar com essa experin-

    cia, temos, hoje, um adulto que acumula certos trau-

    mas raciais ou que lida com desenvoltura diante dos

    seus dilemas tnicos e raciais.

    Para o/a adolescente negro/a, a insatisfao com

    a imagem, com o padro esttico, com a textura do

    cabelo mais do que uma experincia comum dos

    que vivem esse ciclo da vida. Essas experincias so

    acrescidas do aspecto racial, o qual tem na cor da pele

    e no cabelo os seus principais representantes. Tais si-

    nais diacrticos assumem um lugar diferente e de des-

    taque no processo identitrio de negros e brancos

    brasileiros. A rejeio do cabelo pode levar a uma

    sensao de inferioridade e de baixa auto-estima con-

    tra a qual faz-se necessria a construo de outras

    estratgias, diferentes daquelas usadas durante a in-

    fncia e aprendidas em famlia. Muitas vezes, essas

    experincias acontecem ao longo da trajetria esco-

    lar. A escola pode atuar tanto na reproduo de este-

    retipos sobre o negro, o corpo e o cabelo, quanto na

    superao dos mesmos.

    E eu cresci assim, ... ... constrangida, porque na

    escola eu fui barrada tambm... Teve bailado e eu quis par-

    ticipar do bailado e diziam que no, que no podia, no.

    Que s iam as meninas brancas, as meninas bonitas.

    Pesquisadora: E falaram isso com vocs claramente?

    Falaram, falaram, falaram, falaram... [pausa] Eu cus-

    tei, eu sofri muito, muito, muito a entender que negro era

    gente tambm... Eu vim descobrir que negro tinha histria

    quando fui pro colgio, porque at ento, pra mim negro

    era um bicho, era um... uma... um defeito, sabe? E morria

    de vontade de ser branca, por causa do cabelo, pra fre-

    qentar assim essas coisas... pra aproveitar.

    Pesquisadora: Isso te lembra alguma coisa? Voc sen-

    te? Por que essa nfase to grande no nosso cabelo?

    Porque, assim... o branco tem o cabelo liso, n?

    Ento, o negro tem o cabelo j crespo, s vezes chega a ser

    carapinha mesmo. Mas vem da a influncia do branco so-

    bre o negro, eu acho que quando voc no tem noo do

    que ser negro, voc se cobra muito aquele cabelo mara-

    vilhoso, n, aquela coisa bonita de passar a mo, de cair,

    de Ai, o meu cabelo lindo, maravilhoso! Quando a gente

    tem uma noo do que ser realmente negro, a a gente se

    aceita com o cabelo que a gente tem. Eu, por exemplo, eu

    daria tudo pra ter o meu cabelo anelado, sabe, eu daria

    tudo para ter o meu cabelo anelado. Mas no consigo t-lo

    crespo. Num sei te explicar por que, mas no consigo...

    Talvez seja, nem seja por mim mesma, seja pela cobran-

    a... c chega num lugar pra trabalhar, se voc... eles olham.

    Voc chega num lugar pra se divertir... s vezes c t pas-

    sando na rua, a um grita de l: Vamos pentear o cabelo?

    Ou ento cantam aquela musiquinha assim: Nega do ca-

  • 8/8/2019 Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo. Reproduo de esteretipos ou ressignificao cultural

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    Nilma Lino Gomes

    48 Set/Out/Nov/Dez 2002 N 21

    belo duro, qual o pente que te penteia. Quer dizer,

    muita coisinha, , .... muita ironia mesmo, s vezes, das

    pessoas... muito complicado, muito complexo, n? (F.,

    36 anos, professora)

    Outras mulheres negras e clientes dos sales pes-

    quisados, quando perguntadas sobre a importncia que

    o cabelo passou a ter depois de sua infncia e adoles-

    cncia, assim se pronunciaram:

    porque a voc j assumiu uma identidade diferen-

    te, voc j entra no caso da aparncia, quer competir com as

    pessoas, no mesmo ponto de vista. Ento, se voc vai a uma

    festa, ou mesmo no dia-a-dia, voc quer ter uma aparncia

    melhor, voc vai se cuidar. Na poca eu j deixei os meuscachos, j parti pra um alisamento, j parti pra um bobe no

    cabelo, e aquilo se identificava comigo, pra mim assumiu

    uma aparncia de competio com as outras pessoas, se fu-

    lano fazia assim eu no queria fazer igual, mas eu queria

    ficar de maneira comparativa: ela na dela e eu na minha.

    Como minhas colegas: umas usavam seu rabo de cavalo,

    seus penteados da poca pigmaleo, touca holandesa, essas

    coisas; ento, eu procurava ir atrs disso dentro daquilo

    que meu cabelo permitia. (S.G, 60 anos, aposentada)

    A, depois que eu comecei a ficar mocinha, esse pe-

    rodo que foi difcil. Que a que eu tinha que trabalhar,

    no tinha ningum pra arrumar o meu cabelo mais. Tinha

    uma poca que eu no queria nem saber, nem cuidar de cabe-

    lo. Ele ficava todo espetadinho pra cima. Era muito cabelo,

    era difcil de arrumar. Ento eu amarrava ele pra cima, as-

    sim, ficava aquela bucha, sabe? Eu no ligava, no estava

    nem a tambm no, era meio desligada mesmo. Tinha vez

    tambm que... igual na poca dos doze, treze, eu gostava

    muito de brincar de casinha, j tinha esse trem de Salo tam-

    bm. Eu colocava aqueles... pegava blusas e colocava assim

    na cabea e ficava na frente do espelho e falava que era meu

    cabelo. Me lembro que pegava as toalhas da minha tia e

    colocava na cabea [risos]. (J., 23 anos, cabeleireira)

    Na adolescncia era uma tragdia! Porque a testa

    era marcada de dentinho de pente, de ferro quente. Aquele

    cabelo ... aquele cheiro de gordura. Porque hoje em dia,

    tem as coisas assim, aperfeioou, e tem o creme certo pra

    passar. Antigamente, no, a gente assentava no fogo e vi-

    nha aquela coisa na cabea cheia de fumaa, a gente quei-

    mava tudo. babyliss que eu usava tambm. Era um trau-

    ma, janela do nibus, jamais pedia para abrir. Nossa, pelo

    amor...aquele calor com as janelas... porque meu cabelo

    vai espetar. Quando eu ia na danceteria, aquelas colegas

    tudo com cabelo lindo. Ia no banheiro, aquele calor, mo-

    lhava o cabelo. Eu jamais podia... uma que no precisava,

    que j estava todo escorrido de... de... aquela fumaa que

    tinha na danceteria, j caa tudo, ento no tinha como,

    mesmo... ... clube, no podia jamais, porque... nossa, como

    que ia molhar o cabelo? Nossa! No gosto, tenho pavor

    de gua, no sei nadar... Porque, lgico, como que ia mo-

    lhar o cabelo, no tinha como [risos]. [...] e na poca, tipoassim, umas... eu tinha mais ou menos uns 17 anos, eu co-

    nheci um rapaz. Eu achei ele umagracinha e tal. Nessa

    poca eu j usava... a j passou o tempo do cabelo alisado,

    usava trancinha africana. E eu colocava um aplique. E es-

    tava assim o nosso namoro, tinha uns dois meses... ele ado-

    rava minha trana, a teve um dia, que ele falou assim: Nos-

    sa! to lindo o seu cabelo, solta o seu cabelo... [risos].

    Eu falava: Pra que voc quer que eu solto o meu cabe-

    lo? Ele falava assim: No, solta o seu cabelo. Ah! Ele

    nem imaginava que era aplique, porque era to bem feito.

    Cabelo idntico ao meu e tal. Eu falei: No, no vou sol-

    tar meu cabelo, no. S que a gente ia num pagode e tinha

    umas meninas que usavam trancinha. A no sei o que acon-

    teceu, algum falou com ele que era aplique. Que deve ter

    falado: Ah! Aquele cabelo dela falso! Um dia ele falou

    assim: Eu sei por que.... Ele falou: Solta o seu cabelo...

    Eu sei porque voc nunca vai soltar o seu cabelo, no ?

    Eu disse: Ih! Alexandre, pelo amor de Deus, vamos mu-

    dar de assunto? Ele disse assim: Ah! Eu sei por que voc

    no vai soltar o seu cabelo, sua amiga me falou que voc

    usa peruca, que voc careca, no ? Nossa! Foi uma

    tragdia! Eu tomei pavor mortal, tomei um dio mortal dele.

    Ele falou assim, passando a mo assim no meu rosto: Eu

    sei, tudo bem. porque voc no tem cabelo, voc care-

    ca, voc usa peruca [risos]. (N.U., 26 anos, cabeleireira)

    A manipulao do prprio cabelo e a viso do

    outro sobre o cabelo do negro assumem contornos

  • 8/8/2019 Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo. Reproduo de esteretipos ou ressignificao cultural

    10/13

    Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo

    Revista Brasileira de Educao 49

    diferentes, de acordo com o gnero e a gerao.

    Deslindar os impactos desse processo sobre os sujei-

    tos implica compreender as prticas culturais, o pro-

    cesso histrico e a construo do racismo no Brasil.

    Contudo, h uma implicao mais profunda e desa-

    fiadora sobre a qual nos falam os depoimentos aci-

    ma: entender a construo da questo racial na subje-

    tividade e no cotidiano dos indivduos, e o peso da

    educao escolar nesse processo.

    Quando conversamos com os/as entrevistados/as

    sobre a sua opinio, hoje, a respeito da relao do ne-

    gro com o cabelo, deparamos-nos com momentos ten-

    sos, discursos ambguos e respostas confusas. A per-

    gunta remetia tambm ao lugar do negro na esfera da

    subjetividade, e no somente ao sujeito poltico e cul-tural. Nesse momento, homens e mulheres negras eram

    convidados a falar de si, a partir de seu interior, da sua

    prpria pele. possvel que essa ebulio de sentimen-

    tos e emoes tenha trazido tona, ao mbito da cons-

    cincia, aquilo que est submerso na esfera do incons-

    ciente e, por isso mesmo, no to fcil de ser dito. A

    nosso ver, essa situao apresenta algo mais comple-

    xo: a construo da identidade negra no Brasil passa

    pelo que Mauss (1974), ao estudar as tcnicas corpo-

    rais, chamou de fatores fisio-psico-sociolgicos.Essa maneira particular de relacionar-se com o

    corpo, com a subjetividade e cultura d-se em um

    determinado contexto social, histrico e poltico. E

    esse contexto, juntamente com a experincia indivi-

    dual, que vai compor o complexo terreno da identida-

    de negra. Homens e mulheres negras de diversas par-

    tes do mundo constroem-na de formas variadas,

    embora tragam consigo algo que os une: um perten-

    cimento racial, oriundo de uma mesma ancestralidade

    africana, cuja maneira de lidar com o cabelo uma

    forte expresso da cultura.

    Esse ponto comum, que atravessa a histria dos

    negros, remete a uma questo que se apresenta coti-

    dianamente na sociedade e no universo escolar: nas

    sociedades em que a questo racial um dos aspectos

    estruturantes das relaes sociais de poder, o cabelo e

    a cor da pele, sendo os sinais mais visveis da dife-

    rena racial e possuidores de uma forte dimenso sim-

    blica, so vistos como smbolos de inferioridade

    (Kobena, 1994, p. 4). O racismo, sendo um cdigo

    ideolgico que toma atributos biolgicos como valo-

    res e significados sociais, impe ao negro uma srie

    de conotaes negativas que o afetam social e subje-

    tivamente. No entanto, no movimento dialtico das

    relaes sociais, a ao do racismo sobre os negros

    resulta em formas variadas, sutis e explcitas de rea-

    o e resistncia. Nesse contexto, o cabelo e a cor da

    pele podem sair do lugar da inferioridade e ocupar o

    lugar da beleza negra, assumindo uma significao

    poltica. Esse mais um dos motivos pelos quais con-

    sideramos que a escola deve superar os preconceitos

    em relao esttica negra.

    Mas, para alm de tanta particularidade, quaisseriam os significados universais da relao do ho-

    mem e da mulher com o cabelo? Segundo Queiroz

    (2000, p. 28), o estado dos cabelos pode revelar a tra-

    jetria de vida de uma pessoa, sua condio de exis-

    tncia e o momento vivido no interior de um determi-

    nado grupo social. O autor chama a ateno para o

    fato de que comum cortar ou raspar os cabelos por

    ocasio dos ritos de passagem, o que tambm co-

    mum entre ns quando do ingresso na universidade,

    em prises, em instituies militares ou religiosas. H,tambm, uma relao entre cabelo, poder e potncia

    sexual. Por isso, cort-lo ou rasp-lo pode equivaler,

    simbolicamente, castrao. Essa a condio dos

    novatos, dos recm-admitidos em determinadas ins-

    tituies. No entanto, os cabelos rebeldes, soltos e des-

    cuidados podem expressar independncia ou mesmo

    relutncia s normas sociais, como o caso de lderes

    religiosos, profetas, rastafaris. muito comum en-

    contrarmos entre os/as docentes a presena de relatos

    que associam os cabelos rastafaris e a esttica dos

    integrantes do movimento hip-hop sujeira e

    marginalidade. No ambiente escolar, essas associa-

    es, muitas vezes, extrapolam a esfera individual e

    transformam-se em representaes coletivas negati-

    vas sobre o negro, seu cabelo e sua esttica.

    Dessa forma, consideramos importante para ns,

    do campo da educao, compreender que, para alm

    do significado social mais amplo e mais genrico do

  • 8/8/2019 Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo. Reproduo de esteretipos ou ressignificao cultural

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    Nilma Lino Gomes

    50 Set/Out/Nov/Dez 2002 N 21

    cabelo, existem variaes de acordo com a cultura,

    classe, raa, idade, sexo, nacionalidade, contexto his-

    trico e poltico. Cortar o cabelo, alis-lo, rasp-lo,

    mud-lo pode significar no s uma mudana de es-

    tado dentro de um grupo, mas tambm a maneira como

    as pessoas se vem e so vistas pelo outro; o cabelo

    compe um estilo poltico, de moda e de vida. Em

    suma, o cabelo um veculo capaz de transmitir dife-

    rentes mensagens, por isso possibilita as mais dife-

    rentes leituras e interpretaes. Desse modo, para

    muitos, o cabelo a moldura do rosto e um dos pri-

    meiros sinais a serem observados no corpo humano.

    Circulando pelo salo, fui at a sala da manicure, onde

    I. fazia a unha de S., uma vendedora de tecidos. S. negra,tem o cabelo cortado bem curto, estilo mquina 1. Ao con-

    versarmos, ela me disse que resolveu cortar o cabelo bem

    curto porque ele dava muito trabalho. Quando acordava, o

    marido ficava brincando com ela, chamando-a de Os

    Simpsons. Ela disse que quando cortou o cabelo sentiu-se

    mais bonita e que at vendeu melhor os seus produtos. Ela

    disse: O cabelo a moldura do rosto! A gente pode estar

    com uma roupa linda, mas se o cabelo no estiver bonito,

    no d. Essa uma opinio comum a todas as pessoas

    que encontro no salo. (Dirio de campo, 16/10/1999)

    Chegou uma senhora negra com a filha e o neto. Ela

    assentou perto de mim quando eu estava no banho infraver-

    melho, e conversou sobre o cabelo, o que comum no

    salo. Falou-me de como o seu cabelo era maltratado, de

    como ele caiu, e que quando chegou no Salo D. ela esta-

    va quasesem cabelo. Agora que ele est melhor!, dis-

    se ela, toda satisfeita. E continuou: Porque voc sabe,

    minha filha, quando a gente vai sair, a gente v s o cabe-

    lo. A senhora acha mesmo?, perguntei-lhe. Mas

    claro!!!, respondeu-me enfaticamente. (Dirio de cam-

    po, 12/05/2000)

    ***

    Consideramos, ento, que o estudo sobre as re-

    presentaes do corpo negro no cotidiano escolar po-

    der ser uma contribuio no s para o desvelamento

    do preconceito e da discriminao racial na escola,

    como tambm poder ajudar-nos a construir estrat-

    gias pedaggicas alternativas que nos possibilitem

    compreender a importncia do corpo na construo

    da identidade negra de alunos/as, professores/as ne-

    gros, mestios e brancos, e como esses fatores inter-

    ferem nas relaes estabelecidas entre esses diferen-

    tes sujeitos no ambiente escolar. Na escola, no s

    aprendemos a reproduzir as representaes negativas

    sobre o cabelo crespo e o corpo negro; podemos tam-

    bm aprender a super-las. Para isso, elas tero que

    ser consideradas temticas merecedoras de um lugar

    em nosso currculo e em nossas discusses pedaggi-

    cas. Mas quais sero as representaes sobre a rela-

    o negro, corpo e cabelo presentes na escola? Em

    que momentos elas aparecem e como elas aparecem?Como tais representaes se manifestam no currcu-

    lo? Como os sujeitos negros e brancos vivem suas

    experincias corpreas dentro e fora da escola? Mui-

    tas vezes, esses processos delicados e tensos passam

    despercebidos pela instituio escolar e pelos/as pro-

    fissionais da educao, e no so includos nos deba-

    tes e nas discusses desenvolvidas nos cursos de for-

    mao de professores/as.

    O estudo sobre o corpo e o cabelo, como cones

    da identidade negra presentes nos processos educati-vos escolares e no escolares, poder apontar-nos ou-

    tros caminhos alm da denncia da reproduo de pre-

    conceitos e esteretipos. A manipulao do cabelo do

    negro e da negra, nessa perspectiva, pode ser vista

    como continuidade de elementos culturais africanos

    ressignificados no Brasil. Parafraseando Munanga

    (2000, p. 99), quando este autor escreve a respeito da

    arte afro-brasileira, podemos dizer que descobrir a

    africanidade presente ou escondida na manipulao do

    cabelo do negro e da negra da atualidade, e nos pentea-

    dos por eles realizados, constitui uma das preocupa-

    es primordiais para a definio da fora histrica e

    cultural desse segmento tnico/racial. Esses so aspec-

    tos a serem considerados pela educao escolar.

    NILMA LINO GOMES, doutora em antropologia social pela

    USP, professora adjunta na Faculdade de Educao da Universi-

    dade Federal de Minas Gerais. Alm de vrios artigos e captulos

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    Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo

    Revista Brasileira de Educao 51

    de livros, publicouA mulher negra que vi de perto: o processo de

    construo da identidade racial de professoras negras (Belo Hori-

    zonte: Mazza, 1995); e organizou, em colaborao com Lilia K.

    M. Schwartz,Antropologia e histria; debate em regio de fron-

    teira (Belo Horizonte: Autntica, 2000), e com Petronilha Beatriz

    Gonalves e Silva, Experincias tnico-culturais para a forma-

    o de professores (Belo Horizonte: Autntica, 2002). Atualmen-

    te, junto com o professor Juarez T. Dayrell, desenvolve o projeto

    de pesquisaJuventude, prticas culturais e identidade negra.

    E-mail: [email protected]

    Referncias bibliogrficas

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    foco: condicionantes culturais e psicolgicos na definio da

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    Recebido em agosto de 2002Aprovado em outubro de 2002

  • 8/8/2019 Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo. Reproduo de esteretipos ou ressignificao cultural

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    Resumos/Abstracts

    168 Set/Out/Nov/Dez 2002 N 21

    mechanisms operate to govern

    childhood. This research, inspired by

    Michel Foucaults ideas, seeks to show

    how mechanisms of power/knowledge

    concerning childhood are produced

    within pedagogical relationships. Inthis article, an analysis of the

    government of childhood is

    undertaken, examining propositions

    presented in the document and

    stressing the ways technologies of the

    self operate. Related to political

    technologies and governmental

    rationalities this work emphasises the

    RCN as a mechanism that proposes to

    produce childrens subjectivities and

    that aims to organise, impart and

    control the circulation of knowledge in

    early childhood institutions.

    Key-words: early childhood education,

    childrens subjectivities, technologies

    of the self, power mechanisms.

    Nilma Lino Gomes

    Trajetrias escolares, corpo negro e

    cabelo crespo: reproduo de

    esteretipos e/ou ressignificao

    cultural?

    O trabalho estabelece uma arti-

    culao entre os processos educativos

    escolares e no-escolares e a constru-

    o da identidade negra. Discutem-se

    as representaes e as concepes se-

    melhantes, diferentes e complementa-

    res sobre o corpo negro e o cabelo

    crespo, construdas dentro e fora do

    ambiente escolar, a partir de lembran-

    as de adolescentes e jovens negras

    entrevistadas durante a realizao de

    uma pesquisa etnogrfica sobre corpoe cabelo como cones identitrios em

    sales tnicos. Pretende-se compreen-

    der o significado social do cabelo e do

    corpo e os sentidos a eles atribudos

    pela escola e pelos sujeitos negros en-

    trevistados. O entendimento desse

    contexto revela que o corpo como su-

    porte de construo da identidade ain-

    da no tem sido uma temtica privile-

    giada nos estudos sobre relaes ra-

    ciais e educao.

    Palavras-chave: educao, identidade

    negra, corpo.

    School trajectories, black skin and

    Afro hair: reproduction ofstereotypes and/or cultural

    resignificance

    This study establishes an articulation

    between school and non-school

    educational processes and the

    construction ofNegro identity. It

    discusses the representations and simi-

    lar, different and complementary

    conceptions about the Negro body and

    afro hair, constructed within and

    without the school environment, based

    on the memories of adolescent and

    young Negros interviewed during an

    ethnographic research on body and

    hair as identity icons in ethnic

    hairdressing salons. The intention is to

    understand the social significance of

    hair and body and the meanings

    attributed to them by the school and by

    the Negro subjects interviewed. The

    understanding of this context reveals

    that the body as a support for the

    construction of identity has not been a

    theme given prominence in studies on

    racial relations and education.

    Key-words: education, negro identity,

    body.

    Maria Helena Rodrigues Paes

    A questo da lngua na escola

    indgena em aldeias Paresi de

    Tangar da Serra-MT

    Os ndios Paresi, de Tangar da

    Serra-MT, embora de grande apegoaos elementos da sua cultura tradicio-

    nal, vivem um processo de intensas

    relaes com a sociedade envolvente,

    ressignificando seus hbitos tradicio-

    nais e os incorporados da cultura

    ocidentalizada, sendo a escolarizao

    formal um instrumento essencial para

    transmisso dos cdigos simblicos

    da cultura ocidentalizada. Em um mo-

    mento de transio entre um modelo

    de escola tradicional para um modelo

    que atenda s especificidades da reali-

    dade local, este trabalho prope uma

    reflexo, luz dos estudos culturais,

    do discurso da valorizao da lnguaportuguesa na rotina escolar, no en-

    tendendo esta opo como sobreposi-

    o aos valores da cultura tradicional,

    num processo de homogeneizao,

    mas como uma ferramenta e um ins-

    trumento de poder, que visa marcar o

    lugar do Paresi na sociedade

    envolvente.

    Palavras-chave: educao indgena,

    hibridizao, linguagem.

    The language question in the present

    dilemmas of the indigenous school in

    paresi villages in Tangar da Serra

    in the State of Mato Grosso

    The Paresi Indians, from Tangar da

    Serra, in the State of Mato Grosso,

    although greatly attached to elements

    of their cultural tradition, experience a

    process of intense relations with the

    society by which they are surrounded,

    giving new meaning to their traditions

    and to those incorporated from the

    westernised culture. In this process,

    formal schooling has proved an

    essential instrument for the

    transmission of symbolic codes of

    westernised culture. In a phase of

    transition from a traditional school

    model to a model which attends the

    specificities of local reality, this paper

    proposes a reflection, in the light of

    cultural studies, on the discourse

    which values the use of Portuguese

    language in school routine, notunderstanding this option as an

    imposition on the values of the

    traditional culture as part of a process

    of homogenisation but as a tool and

    powerful instrument which aims to

    establish the place of the Paresi in the

    surrounding society.

    Key-words: indigenous education,

    hybridisation, language.