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Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE • 47 * Assistente Hospitalar: Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Santo André, EPE. ** Assistente Hospitalar: Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE. *** Psiquiatra: CRI - ET de Coimbra. **** Chefe de Serviço: Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra. Tratamento de Dependências – Perspectivas Clínica e Jurídica Breve Reflexão a Propósito de dois Casos Clínicos Sofia Fonseca*, Mariana Morins**, Manuela Fraga***, José Morgado Pereira**** RESUMO: O consumo de substâncias psicoactivas, co- nhecidas vulgarmente por drogas, incluindo o consumo de álcool, de modo esporádico ou crónico, está directamente relacionado com alterações na conduta do consumidor e pode espoletar estados psicopatológicos de evolução subaguda ou crónica. O consumo excessivo de álcool ou consumo de substâncias ilícitas por indivíduos sem doença mental, são actos praticados de livre vontade, o que os torna criminalmente responsáveis pelos seus actos, mesmo quando optam vo- luntariamente por um estado de intoxicação e durante esse estado praticam uma acção cri- minosa. Da prática clínica reconhece-se que qualquer tipo de tratamento em doentes que sofram destas patologias só é eficaz quando o doente a ele adere voluntariamente e o internamento compulsivo apenas é desencadeado quando o quadro psicopatológico associado justifica os pressupostos do artigo 12.º da Lei de Saú- de Mental. Por outro lado, se o tratamento compulsivo tiver um carácter de imposição judicial, o indivíduo é obrigado a tratar-se, independentemente de ser portador ou não de doença mental. A propósito de 2 casos clínicos, um de toxico- dependência e um de alcoolismo, as autoras reflectem sobre as perspectivas, clínica e ju- rídica, relacionadas com o tratamento destas entidades clínicas. Palavras-Chave: Álcool; Substâncias Ilícitas; Tratamento Compulsivo. TREATMENT OF ADDICTION - CLINI- CAL AND JUDICIAL PERSPECTIVES. Two Cases Reports Abstract: The sporadic or chronic use of drugs and al- cohol is directly related to conduct disorders and to the triggering of psychopathological states of sub-acute or chronic course. The excessive consumption of alcohol and excessive traffic/consumption of illicit drugs by individuals without mental illness or dis- ability are actions of free will; they are there- fore criminally responsible for their behav- iour, even if they commit a crime during the state of intoxication, which the individual chose voluntarily to experience. In clinical practice, it is widely accepted that the treatment of these disorders is only effec- tive when the patient accepts it voluntarily and that involuntary commitment (com- pulsive treatment) is only carried out when the psychopathological state associated jus-

Tratamento de Dependências – Perspectivas Clínica e Jurídica

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Dois casos clínicos

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  • Revista do Servio de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE 47

    * Assistente Hospitalar: Servio de Psiquiatria e Sade Mental do Hospital de Santo Andr, EPE. ** Assistente Hospitalar: Servio de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE. *** Psiquiatra: CRI - ET de Coimbra. **** Chefe de Servio: Centro Hospitalar Psiquitrico de Coimbra.

    Tratamento de Dependncias Perspectivas Clnica e JurdicaBreve Reflexo a Propsito de dois Casos ClnicosSofia Fonseca*, Mariana Morins**, Manuela Fraga***, Jos Morgado Pereira****

    RESUMO:

    O consumo de substncias psicoactivas, co-nhecidas vulgarmente por drogas, incluindo o consumo de lcool, de modo espordico ou crnico, est directamente relacionado com alteraes na conduta do consumidor e pode espoletar estados psicopatolgicos de evoluo subaguda ou crnica. O consumo excessivo de lcool ou consumo de substncias ilcitas por indivduos sem doena mental, so actos praticados de livre vontade, o que os torna criminalmente responsveis pelos seus actos, mesmo quando optam vo-luntariamente por um estado de intoxicao e durante esse estado praticam uma aco cri-minosa. Da prtica clnica reconhece-se que qualquer tipo de tratamento em doentes que sofram destas patologias s eficaz quando o doente a ele adere voluntariamente e o internamento compulsivo apenas desencadeado quando o quadro psicopatolgico associado justifica os pressupostos do artigo 12. da Lei de Sa-de Mental. Por outro lado, se o tratamento compulsivo tiver um carcter de imposio judicial, o indivduo obrigado a tratar-se, independentemente de ser portador ou no de doena mental. A propsito de 2 casos clnicos, um de toxico-dependncia e um de alcoolismo, as autoras reflectem sobre as perspectivas, clnica e ju-

    rdica, relacionadas com o tratamento destas entidades clnicas.

    Palavras-Chave: lcool; Substncias Ilcitas; Tratamento Compulsivo.

    treAtMent of ADDiCtion - Clini-CAl AnD JuDiCiAl PersPeCtives.two Cases reportsAbstract:

    The sporadic or chronic use of drugs and al-cohol is directly related to conduct disorders and to the triggering of psychopathological states of sub-acute or chronic course. The excessive consumption of alcohol and excessive traffic/consumption of illicit drugs by individuals without mental illness or dis-ability are actions of free will; they are there-fore criminally responsible for their behav-iour, even if they commit a crime during the state of intoxication, which the individual chose voluntarily to experience.In clinical practice, it is widely accepted that the treatment of these disorders is only effec-tive when the patient accepts it voluntarily and that involuntary commitment (com-pulsive treatment) is only carried out when the psychopathological state associated jus-

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    Sofia Fonseca, Mariana Morins, Manuela Fraga, Jos Morgado Pereira

    tifies the presuppositions of Article 12 of the Mental Health Law. However, if the compul-sive treatment is of a penal character, man-dated by a judge, the individual is obligated to accept treatment, independent of whether or not he suffers from mental illness.The authors present two case studies, one of drug addiction, the other of alcoholism, and discuss the clinical and judicial perspectives on the treatment of these clinical entities.

    Key-words: Alcohol; Drugs; Compulsive Treatment.

    INTRODUO

    Existem estados psquicos patolgicos (ano-malias psquicas graves) que impedem que seja atribuda responsabilidade ao indivduo quando este viola a lei ou se envolve em actos de que no tem capacidade actual para avaliar a sua natureza lcita ou ilcita, nem as suas consequncias. A estes indivduos a sociedade reconhece que no se justifica culpar ou punir e criou medidas para defender os seus direitos. Muitas vezes impe-se, no seu interesse e da comunidade, internar ou tratar compulsiva-mente estes doentes que sem a crtica necess-ria recusam o tratamento1.Casos particulares so os das denominadas Doenas Psiquitricas Transitrias, ex-presso que pelas suas caractersticas cor-responde mais a um conceito jurdico do que propriamente psiquitrico. Do ponto de

    vista psiquitrico, so estados transitrios de anomalia psquica, de intensidade fora do comum, que podem condicionar a capacida-de do indivduo para avaliar correctamente a natureza lcita ou ilcita dos actos praticados e que podero ser potencialmente recorrentes2. O autor do ilcito pode regressar pouco depois a uma condio psquica normal. Podemos incluir neste conceito os quadros dissociativos, os quadros crepusculares epilpticos, a em-briaguez patolgica e outras intoxicaes agu-das. So situaes que carecem de seguimento psiquitrico e, eventualmente, de intervenes teraputicas especficas.Sendo assim devero ser apreciadas para efei-tos do artigo 20. do Cdigo Penal. Foi nomea-damente para estes casos (perante a eventual formulao de um juzo de perigosidade) que surgiram as medidas de tratamento alter-nativas ao internamento no mbito das medi-das de segurana aplicveis3-6.

    CASO CLNICO 1:

    Manuel, 38 anos, raa caucasiana, soltei-ro, pintor da construo civil (de momento desempregado), residente em Coimbra. Filho mais velho de uma fratria de dois, cresceu aos cuidados dos avs e tias maternos, aps abandono pelos pais aos dois anos de idade. Proveniente de ambiente socio-econmico desfavorecido. Descreve-se como uma pessoa que gosta de curtir a vida e que no gosta de confuses.

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    Tratamento de Dependncias Perspectivas Clnica e Jurdica

    Padro de relacionamentos afectivos inst-vel devido aos consumos. Actualmente vive sozinho.Iniciou consumos de haxixe por volta dos 9 anos de idade. Vivia numa zona onde o acesso s substncias psicoactivas ilegais era fcil e tinha tendncia a relacionar-se com indiv-duos mais velhos achavam-me muita piada e davam-me coisas para consumir. No gos-tava de andar na escola e nunca se esforou por aprender.Aos 12 anos iniciou consumos de herona por via endovenosa um dos indivduos mais ve-lhos com quem me relacionava dava-me he-rona e em troca eu vendia/traficava por conta dele. Nesta altura foi expulso de casa pelo av. Comeou a viver na rua, em casas aban-donadas, mantendo alguns contactos com a av e tias.Por volta dos 16 anos o indivduo que lhe forne-cia a herona foi preso e o Manuel conheceu as ressacas. Comeou a trabalhar como pintor na construo civil para ter dinheiro para comprar a herona. Aos consumos de herona, associou consumos de cocana, drunfs, speads... O seu crculo de relacionamentos resumia-se a consumidores e traficantes. Continuava a fre-quentar a escola, mas sem aproveitamento. Abandonou a escola aos 18 anos, tendo comple-tado apenas o 2. ano do ciclo.Fez um 1. tratamento de desintoxicao de herona, aos 18 anos, durante 15 dias, no Hospital Sobral Cid. Recaiu pouco tempo depois.

    Cumpriu o servio militar aos 19 anos, mantendo os consumos dirios de herona (1 a 2g/dia).Aps cumprir o servio militar teve o 1. rela-cionamento afectivo significativo que o moti-vou para um 2. tratamento de desabituao no CAT de Coimbra. Seguiu-se o maior perodo de abstinncia da sua vida, durante a gravidez da namorada e at ao nascimento do filho. Re-caiu de seguida. Deu-se a separao ainda o filho tinha meses. Manteve contactos regulares com o filho at h 3-4 anos, altura em que deixou de conse-guir trabalhar e comeou a ficar debilitado fisicamente. Comeou a traficar regularmente para ter di-nheiro para os consumos.No ano de 2000 (com 32 anos) foi detido pela 1 vez pela polcia e foi apresentado no TIC por trfico e consumo de drogas. Foi obri-gado a tratamento e apresentaes peridicas na polcia. No cumpriu e em 2002 foi preso no Estabele-cimento Prisional de Coimbra, condenado a 14 meses. S cumpriu 7 meses. Durante o perodo em que esteve preso parou com os consumos. Saiu em Liberdade Condicional com dever de se apresentar periodicamente no Instituto de Reinsero Social (IRS). Voltou a contactar com indivduos ligados ao consumo de drogas e recaiu em pouco tempo.Aps 3 meses foi chamado pelas autoridades e -lhe proposto novo tratamento e acompanha-mento no CAT de Coimbra. Cumpriu at perfa-

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    Sofia Fonseca, Mariana Morins, Manuela Fraga, Jos Morgado Pereira

    zer os 14 meses da pena. Recaiu de seguida no consumo de heronaEm Agosto de 2006 foi novamente detido por trfico e consumo de drogas. Foi conduzido a tribunal e condenado a 3 anos e 4 meses de pri-so, convertidos em obrigao de tratamento e acompanhamento pelo IRS (de 15 em 15 dias) e pela Comisso para a Dissuaso da Toxicode-pendncia (1 vez por ms). Integrou programa de substituio de baixo limiar com metadona no CAT de Coimbra, foi orientado para a Asso-ciao Sol Nascente e beneficiou de um quarto alugado pago com o Rendimento Mnimo.

    CASO CLNICO 2:

    Joo, 46 anos, raa negra, solteiro, natural de Cabo Verde, servente de Pedreiro; 5. ano de escolaridade; 3 filhos. Filho mais velho de uma fratria de nove. Ape-sar das dificuldades econmicas, teve uma in-fncia feliz. Abandonou a escola aos 14 anos, indo trabalhar para ajudar nas despesas.Cumpriu o servio militar dos 19 aos 21 anos em Cabo Verde, sem intercorrncias.Considera-se uma pessoa alegre, extrovertida, que faz amizades com facilidade e no gosta de estar parado - tem que ter sempre trabalho. Teve vrios namoros com durao de meses e anos. H 14 anos, conheceu a me dos seus filhos, com quem viveu 7 anos. Separaram--se por iniciativa dela que o acusava de ser violento quando bebia lcool. Ficou a viver sozinho.

    Iniciou o consumo de bebidas alcolicas aos 15 anos de idade. Aos 25 anos passou a con-sumir lcool diariamente, aps o trabalho e ao fim de semana. Nos ltimos anos, quando bebia, era frequente ficar exaltado, descontro-lado e batia na mulher.Desde 1999, foi internado 2 vezes num hos-pital psiquitrico porque bebia em excesso, ficava desconfiado, ouvia vozes na cabea e tinha medo que me fossem matar. Aps as altas nunca cumpriu a medicao prescrita, faltou s consultas e reiniciava o consumo de lcool em excesso.Em Maro de 2003, preso por dois crimes de ofensa integridade fsica qualificada; dois crimes de injria agravada; um crime de re-sistncia e coaco sobre funcionrio.Ficou detido preventivamente e foi submetido a percia psiquitrica em Outubro de 2003. Da percia concluiu-se que o Joo era inimpu-tvel por ser portador de anomalia psquica permanente (debilidade mental). Sofria de de-pendncia alcolica desde h 15 anos, patolo-gia que agravou a sua capacidade de avaliao dos factos. Sendo inimputvel mas previsvel a repetio dos factos ou outros de igual nature-za, devia tambm ser considerado perigoso e ser alvo de tratamento psiquitrico em insti-tuio adequada para o efeito. Em Dezembro de 2003, foi aplicada a medida de internamento psiquitrico em instituio vocacionada para o tratamento de patologias relacionadas com o lcool, pelo perodo de 18 meses, deduzido o tempo de priso preventiva.

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    Tratamento de Dependncias Perspectivas Clnica e Jurdica

    No entanto, a medida ficou suspensa na sua execuo pelo perodo de 3 anos, condicio-nando-se a suspenso ao cumprimento, pelo Joo, das seguintes condies: Submeter-se aos tratamentos e regimes

    de cura ambulatrios em estabelecimen-to psiquitrico vocacionado para o trata-mento de patologias relacionadas com o lcool;

    Sujeitar-se a observaes e exames mdicos nos locais que lhe fossem indicados;

    Cumprir as orientaes dos tcnicos do Ins-tituto de Reinsero Social (IRS).

    Em Janeiro de 2005, o Joo deixou de cum-prir as condies impostas, foi trabalhar para Beja e s voltou a ser acompanhado pela equipa do IRS de Beja em Abril de 2005. Em Novembro de 2005, foi internado compulsi-vamente por heteroagressividade, com altera-es graves de comportamento consequentes ao consumo excessivo de lcool.Em Maio de 2006, foi determinado o interna-mento do arguido no Servio de Psiquiatria do Hospital Prisional de Caxias, pelo tempo que lhe restava cumprir devido evoluo nega-tiva da sua situao, resultante do abandono dos tratamentos e da manuteno do consu-mo excessivo de lcool. A sua permanncia em meio livre foi tambm considerada um factor de perigosidade social.Desde Outubro de 2006, est internado no Ser-vio de Psiquiatria Forense - Hospital Sobral Cid para cumprimento da medida judicial imposta.

    DISCUSSO E CONCLUSO

    As Patologias Aditivas constituem actualmen-te, escala mundial, um problema gravssimo com importantes repercusses sanitrias, fa-miliares, sociais, econmicas, e criminais. A ingesto de bebidas alcolicas no conduz a actos criminosos na maioria dos indivdu-os, nem a maioria dos alcolicos se envolve em crimes. O lcool pode estar relacionado com algumas categorias de crimes, mas so-mente sob a influncia de determinantes so-ciais, culturais, emocionais e situacionais. O lcool altera as funes cognitivas (per-cepo, raciocnio, coordenao motora) promovendo a imprevisibilidade dos com-portamentos e afectos que podem ligar-se a um acto criminoso. De um modo particular, o estado de alcoolismo agudo pode estar significativamente associado prtica de crimes violentos (o que no to frequen-te com os consumos crnicos do lcool) e associado a perigosidade eminente, quando j existe uma alterao marcada da perso-nalidade, com alteraes cognitivas e com-portamentais. O alcoolismo agudo ou crnico por si s no uma transgresso/delito. Um indivduo tem a liberdade de consumir be-bidas com lcool continuamente se o desejar. Assim se afirma no risco de adoecer por algu-ma doena provocada pelo lcool, incluindo a dependncia de lcool. So excepes os casos em que a ingesto de lcool acompanhada

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    por uma conduta que infrinja a lei, o que o torna criminalmente responsvel pelos seus actos e mesmo que o acto ilcito seja praticado durante um estado de intoxicao alcolica, esta apenas poder servir como atenuao da sua imputabilidade. O fenmeno do abuso de substncias psi-coactivas/droga tem vindo a constituir em Portugal, com particular incidncia desde a dcada de 80, um verdadeiro problema da so-ciedade e tem exigido, pela consciencializa-o das suas graves implicaes, a tomada de medidas tendentes a contrariar a progressiva difuso do consumo. Estas medidas reflec-tem-se quer ao nvel da Preveno (primria, secundria e terciria), quer atravs da rati-ficao de diferentes protocolos, directivas ou convenes internacionais, de mbito mdi-co e no mdico, acompanhada das necess-rias medidas legislativas para a sua aplicao prtica. neste contexto que se tem verificado uma cada vez maior sensibilizao do Direito, que pelas sucessivas reformas judiciais se vem adaptando, a um ritmo rpido, s novas realidades sociais. J no artigo 44. do Decreto-Lei n.15/93 (Legislao de combate droga) se previa, nos termos da Lei, a suspenso da pena e obrigao de tratamento aos indivduos considerados toxicodependentes e condenados pela prtica do crime previsto no artigo 40. do mesmo decreto (consumo de drogas)3. Mais recentemente, no artigo 5. da Lei n.30/2000 (que define o regime jurdico aplicvel ao

    consumo de estupefacientes e substncias psicotrpicas e revoga o artigo 40. e 41. do Decreto-Lei atrs mencionado) assistimos criao de uma Comisso para a Dissuaso da Toxicodependncia com a finalidade de processar as contra-ordenaes e aplicar as respectivas sanes aos indivduos considera-dos toxicodependentes3,4,7. Esta comisso tem poder para suspender a determinao da san-o se o consumidor toxicodependente aceitar sujeitar-se, voluntariamente, a tratamento em servio pblico ou privado devidamente habi-litado. Operodo de suspenso pode ir at trs anos.Independentemente do prazo estabelecido para a medida de segurana aplicvel, para os mdicos, a dimenso essencial do tratamen-to que est sempre presente, pois de doentes que estamos a falar. O projecto teraputico no mbito da aplicao das medidas de tratamen-to por imposio judicial recorre-se das inter-venes hoje disponveis (psicofarmacolgi-cas, psicoteraputicas, socio-familiares e de integrao profissional) adequadas situao em causa e atendendo evoluo do quadro clnico presente, reconhecendo-se natural-mente que a eventual ineficcia da interven-o possa justificar a aplicao de medidas de pura segurana. Muitas vezes as diferenas de linguagens e de preocupaes entre o Direito e a Psiquiatria impede um verdadeiro intercmbio promo-tor de um conhecimento mtuo aprofundado quer no plano terico quer na prtica.

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    Tratamento de Dependncias Perspectivas Clnica e Jurdica

    Talvez a Psiquiatria no tenha sido ainda capaz de influenciar e dar respostas s preo-cupaes do Direito e talvez o Direito ainda no tenha compreendido a verdadeira di-menso destas doenas e a complexidade do seu tratamento, que em princpio no dever ser imposto, mas ser sim uma opo voluntria do doente, com vista ao tratamen-to plenamente assumido, e com maior pro-babilidade de sucesso teraputico. Apesar de tudo, importa que os psiquiatras, enquanto mdicos-peritos, repensem a sua colabora-o, fornecendo aos juzes os elementos in-dispensveis a uma mais perfeita administra-o da Justia. Da a necessidade de um dilogo permanente para continuar a discutir e desenvolver projec-tos e propostas capazes de acompanhar o Di-reito, que vem avanando a um ritmo clere, nomeadamente em matria de ressocializao e salvaguarda dos direitos dos doentes sujeitos a estas medidas de tratamento. Por seu lado, os servios de sade dispem actualmente de meios de tratamento mais completos e efica-zes. Atendendo evoluo destas doenas pontua-das por recadas frequentes e reincidncias dos danos associados ao consumo, ser de ponde-rar a que tipo de interveno a longo prazo devemos submeter os doentes. A quem devemos atribuir essa competncia?Essas medidas devero ser aplicadas em con-texto clnico ou por imposio judicial?

    Que formas de colaborao so possveis e de-sejveis?At que ponto a obrigatoriedade restringe a li-berdade de escolha individual?Como compaginar direitos individuais, graves riscos para a sade individual e proteco da sociedade?Esperamos ter trazido para a reflexo alguns dos elementos mais pertinentes na perspectiva clnica e um contributo para fomentar a dis-cusso de um assunto que suscita apreenso e a todos diz respeito.

    BIBLIOGRAFIA

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